Você está na página 1de 5

A CONQUISTA DO AFETO

Tatiana Monassa

Em Honkytonk Man, um plano longo detém-se no rosto de Whit, enquanto este


observa seu tio gravar uma música no estúdio. O plano nos inscreve na
atmosfera da sala; mais particularmente, nos põe em contato com o estado
emotivo do menino naquele momento. (1) Sabemos da amizade e do carinho
crescente entre os dois personagens, além de outros aspectos de sua relação,
desenvolvidos ao longo de filme, como dependência e admiração. Mas
caracterizações ou sentidos desta ordem não são suficientes para dar a
dimensão de um plano como este, no qual um instante de ficção ganha um
mistério apenas presenciável.
Trata-se de um plano que dá a medida de uma operação constante na obra de
Clint Eastwood: a distensão e o esgarçamento da cena para além de suas
necessidades narrativas. Estas “janelas” abertas dentro da decupagem – ou
desvios momentâneos da narratividade – trabalham como uma espécie de fenda
que suga o espectador para um vazio além-filme, um vácuo no qual o sentimento
se prolonga. O desenrolar das ações que constroem pouco a pouco os sentidos
do relato abrem espaço para puras capturas de instantes, de diálogos ou de
olhares, nas quais o cinema parece contemplar de forma direta a vida que ele
representa ou tenta emular. Nestas ocasiões privilegiadas, podemos perceber a
atenção concedida aos seres que habitam este universo.
Sabe-se que o cinema de Clint Eastwood é, intensamente, um cinema do ator:
um cinema feito de planos pausados, de gestos e de expressões, no qual a
câmera nunca omite ou negligencia uma presença no espaço da ação. Todo
personagem, mesmo secundário, tem direito a uma imagem, ou a uma fala,
ainda que pontuais, para manifestar-se dentro de uma cena. É desta forma,
ancorando-se abertamente num “fator humano” inscrito no seio de um
“classicismo”, que os sentidos suscitados pelas ações ganham reverberações
múltiplas e não-prescritas. De um lado, a materialização de uma “realidade
cinematográfica” pela decupagem e pela interpretação, de outro, uma abstração
do drama pela mise en scène. O dom de Clint para a descrição faz com que os
personagens se concretizem em suas ações, ao mesmo tempo em que a
psicologia que os conduziria se esvaece em nome de um sentimento do
momento.
Há uma transparência cultivada na condução da narrativa, que evoca uma
verdade dos fatos e das presenças. Acima do roteiro, acima da decupagem e da
montagem, pairam os homens com suas expectativas, seus pensamentos e seus
anseios, ainda que a câmera não possa perscrutá-los e, no mais das vezes,
apenas capte suas manifestações físicas. Como protagonista, Clint encarna
sempre variações de um personagem que é fantasma de si mesmo: homens que
carregam memórias (ou não-memórias) dolorosas, que trazem atrás de si um
passado “sem nome”. Homens que traçam, solitários, seu próprio caminho no
mundo e no tempo. No entanto, há nestes personagens, desenvolvidos num
trabalho de superfície, de visibilidade assertiva, uma abertura semelhante às que
irrompem na narrativa e os tornam reais: sua “ação pura” sintetiza uma vida para
além dela, sentimentos que percorrem os planos e se condensam no intervalo
entre eles. E descobrimos que, por trás de sua distância, de seu individualismo
ou de sua “dureza” de caráter, existe um pendor para a afetividade.
Pode-se dizer, portanto, que o percurso da narrativa eastwoodiana revela-se
quase sempre um percurso de conquista de um afeto. Isto se daria,
precisamente, no desdobramento da “trajetória” como elemento privilegiado da
construção narrativa (clássica). Tanto nos filmes que trabalham mais
explicitamente com a herança do road movie, como Rota Suicida, Josey Wales
– o Fora da Lei, Bronco Billy, Honkytonk Man ou Um Mundo Perfeito, quanto
naqueles em que a trajetória percorrida em conjunto é mais abstrata, como
Interlúdio de Amor (Breezy), Cavaleiro Solitário, O Destemido Senhor da Guerra,
Rookie – um profissional do perigo, As Pontes de Madison, ou Menina de Ouro.
Há sempre esse sentido de uma afetividade possível, de um desenvolvimento
ou recuperação de uma ligação significativa entre duas ou mais pessoas. Em
alguns casos, este movimento se manifesta inclusive de forma paralela à trama
“principal”, como o flerte entre John Kelso e Mandy e a amizade que se delineia
entre ele e Lady Chablis em Meia Noite no Jardim do Bem e do Mal, ou a tentativa
de aproximação de Luther com sua filha Kate em Poder Absoluto.
Partindo deste foco de atenção, é interessante notar o fato do primeiro filme
dirigido por Eastwood, Perversa Paixão, deter-se nos meandros da construção
de uma relação a dois. Vemos o delicado e sutil processo de envolvimento entre
duas pessoas evoluir de formas diversas e conflitantes ao longo da narrativa: a
tentativa de Dave de reatar seu relacionamento com Tobie é paralela (e oposta)
à vontade desesperada de Evelyn de consolidar uma ligação com ele. Por fim,
aprendemos que os afetos não surgem do desejo, mas de um trabalho de
convivência, como o que Dave procura desenvolver ao longo do filme. (2) E este
trabalho não vem destacado da operação de “abertura” descrita acima, ao
contrário: são nos longos e dispersivos idílios entre Dave e Tobie, que seu afeto
toma corpo para nós (ao mesmo tempo em que inviabiliza a loucura de Evelyn).
Para o fluxo de imagens de Clint, é preciso tomar desvios, criar pausas e
espaços, para permitir que os personagens ganhem consistência e a afetividade,
substância. (Talvez por isso o espaço-tempo do idílio de Dave e Tobie seja
necessariamente elíptico e abstrato.)
Este “trabalho de convivência”, ou “labor do afeto”, passa, então, a constituir um
refrão na sua obra, com tratamentos diferenciados e maior ou menor ênfase de
filme pra filme. E se havia em Perversa Paixão, para além de uma transparência
da narrativa, um desejo de transparência sentimental, o próprio título em inglês
do filme (Play Misty for Me) indica de alguma forma o caminho futuro do
personagem eastwoodiano: ser “nebuloso” para não cair nas armadilhas do
afeto, para encontrá-lo ocasionalmente, apenas e tão somente ali onde ele é
pontual (e verdadeiro). O passado torna-se, pois, pura sombra, que finge fazer
tabula rasa para um presente desafetado.
É o caso de O Estranho Sem Nome, seu filme seguinte e o primeiro de seus
westerns, no qual vemos Clint assumir uma “atualização” do seu Homem Sem
Nome em Sergio Leone para o seu próprio universo. O personagem precisa,
agora, lidar diretamente (ainda que se mantenha razoavelmente esquivo) com
as pessoas ao seu redor. Mas a convivência (em sociedade, no caso) mostra-se
cínica e praticamente inviável. E, como o filme insinua, talvez seja ela a própria
razão dele ter se tornado um drifter, sem nome, sem casa, sem passado. Resta
então ao protagonista expor os mecanismos falsos que regem a cidade e buscar
alguma parceria com aquele alijado desta convivência: o anão Mordecai.
Já em Josey Wales – o Fora da Lei, visualizamos pela primeira vez o perigo
maior do afeto, aquilo que o colocará em xeque: a morte (que já havia se
delineado nas pulsões homicidas de Evelyn em Perversa Paixão). Josey passa
a se proibir afeições pelo trauma da perda (“sempre que eu gosto de alguém,
esse alguém se vai”). No entanto, apesar de sua postura “nebulosa”, ele acaba
encontrando (e aceitando) novos laços, se permitindo constituir uma nova
“família”, desta vez composta por desgarrados diversos que também conhecem
o peso da perda. De forma semelhante, o pastor de Cavaleiro Solitário pratica o
convívio em determinados núcleos; embora sempre parta, não obstante os
afetos que as pessoas nutram por ele. Aparentemente, também como resultado
de experiências desagradáveis do passado.
Em determinado ponto, porém, o afeto “renegado” por este cavaleiro nebuloso
passa a tentar abrir espaço em meio à trama: em Rota Suicida, Ben Shockley e
Gus Mally, contra todas as expectativas lançadas pela narrativa (e as suscitadas
por seus comportamentos), se envolvem e se apaixonam pela exposição a uma
convivência forçada. A ele seguem-se Bronco Billy e Honkytonk Man, nos quais
temos personagens se unindo em parcerias que se revelam como a razão em si
da trajetória.
Porém, à medida que a idade avança para a persona de Eastwood (e com ela
sua obra), os afetos deixam de se apresentar circunstancialmente, de forma
imprevista ou oculta, e tornam-se uma espécie de nó cego a ser “solucionado”.
Os personagens passam a nutrir uma vontade de reconstruir e resgatar afetos,
de resolver questões em suspenso em suas vidas. Em O Destemido Senhor da
Guerra, o sargento Tom Highway busca reatar um relacionamento com a ex-
mulher; em Poder Absoluto, Luther Whitney vai atrás de sua filha; em Sobre
Meninos e Lobos, Sean Devine precisa encontrar uma forma de se reconciliar
com a mulher; em Menina de Ouro, Frankie Dunn quer restabelecer também um
contato com a filha.
Simultaneamente, os filmes ganham dobras e sentidos transversos; as
narrativas em torno dos personagens se complexificam e ganham outros
matizes. Em Bird e Coração de Caçador, por exemplo, um profundo afeto por
uma arte é atravessado por outros afetos e por uma empatia pela vida mesclada
a uma pulsão de morte. Em O Destemido Senhor da Guerra, a já citada tentativa
do sargento de recuperar um afeto perdido emparelha-se com outra situação de
“convivência forçada” que termina por criar ligações entre as pessoas: o
processo de treinamento dos marines sob sua responsabilidade. Algo
semelhante ocorre em Os Imperdoáveis, em que a eventualidade de uma
convivência (o pedido do garoto de uma parceria para a execução do serviço)
traz à tona um afeto primeiro, da ordem do extracampo – o amor entre Munny e
sua falecida esposa, mistério inexplicável, tal como exposto nas cartelas que
iniciam e fecham o filme. Este amor que “salvou” o personagem da crueldade,
da bebida e de tudo que havia de ruim, mas que não podemos conhecer, irá se
refletir em diversos pontos do filme: na sua relação com os filhos, com os
animais, com Ned e, por fim, também com o garoto. Já em Menina de Ouro, é a
tentativa frustrada de Frank retomar um relacionamento com a filha que encontra
ecos na lida com seus lutadores e com Scrap e, finalmente, no convívio a
princípio indesejado com Maggie.
Compartilhar um convívio indesejado. Após Perversa Paixão, este convívio
torna-se, de fato, o trabalho pelo qual os personagens reconquistarão uma
inserção social qualquer. E Interlúdio de Amor (Breezy), neste sentido, é
exemplar. Breezy e Frank aprendem, um com o outro, a necessidade de
contornar seu individualismo e a possibilidade de investirem num relacionamento
e não estarem mais sozinhos, apesar do risco do fim. (3)
Novamente: o afeto nunca vem “de graça”, embora suas razões não sejam
prescritíveis ou determináveis. Esta é a tônica, ainda, de Um Mundo Perfeito e
de As Pontes de Madison, nos quais podemos observar um relacionamento
particular tomar forma, pouco a pouco, através de um jogo de ação e reação
entre os personagens. Mini-conflitos e situações cambaleantes fazem o afeto
sobrevir como o resultado de um trabalho. Em As Pontes de Madison, que
estabelece um interessante diálogo com Interlúdio de Amor, estamos no terreno
do romance. Mas não se trata de um romance mágico com ares de
transcendência; o amor, por mais misterioso que possa ser, se manifesta em
toques, trocas de olhares, sorrisos e, principalmente, conversas. O interesse
mútuo crescente, transfigurado em desejo, delineia-se nos diálogos entre Robert
e Francesca. Através de suas falas e ações, vemos os mundos e anseios de um
se presentificarem ao outro, e, progressivamente, “costurá-los” emocionalmente.
Por fim, Robert, que, assim como Breezy, vagava pelos afetos do mundo sem
se apegar a nenhum em particular, “aprende” a convivência.
Mas a vida pode ser traiçoeira em suas determinações e fazer com que este
trabalho ganhe contornos indesejáveis. O romance entre Francesca e Robert só
poderá existir em função de sua fugacidade. O afeto já não é renegado, muito
pelo contrário, mas sua durabilidade permanece restrita. Francesca deverá
encarar sua situação, “medir” os afetos de acordo com sua vivência diária, fazer
escolhas e se posicionar, abrindo mão, enfim, do seu amor. De forma análoga,
Maggie, em Menina de Ouro, “obriga” Frank a realizar a ação que dará um fim à
sua vida e, portanto, ao seu afeto compartilhado. Ambas as tragédias
sentimentais carregam este peso das ações que pautam as relações entre as
pessoas, o aspecto trágico do labor da convivência: o que é necessário ser feito
em razão do afeto é aquilo que irá condená-lo. E, se em As Pontes de Madison,
esta “morte da convivência” é sublimada pela sobrevivência da memória, através
da escrita de Francesca e de sua transmissão aos filhos, e pela segurança de
saber que o casal não mais sofre no momento presente da narrativa, em Menina
de Ouro, ela vem acompanhada da própria aniquilação de uma vida – e destrói
o outro consigo. (4)
Acima de toda a vida, paira a sombra de sua morte. E é desta forma que Sobre
Meninos e Lobos e A Conquista da Honra ecoam esta problemática em torno do
afeto. Neste último, Bradley, frente à ameaça premente da morte, abre-se à
amizade circunstancial de Iggy na ocasião mesma de seu surgimento. E se esta
atitude em si parece ter dissipado toda a névoa, as trevas do mundo persistem,
abrindo rombos, lançando sombras fatais e engolindo as pessoas: Iggy sucumbe
à guerra e desaparece. A morte, apesar de vislumbrada, surpreende em sua
potência aniquiladora.
No caso de Sobre Meninos e Lobos, as trevas estão disseminadas no interior
dos próprios homens – embora digam menos respeito ao passado do que ao seu
próprio estar no mundo. Os atos assombrosos dos “lobos” danificam toda a
prática de convivência de Dave; seu comportamento futuro termina por
comprometer sua relação com a esposa, assim como sua própria existência.
Paralelamente, o ciúme do garoto Ray em relação ao namoro do irmão acaba
numa morte inesperada – que traz um fim amargo ao amor de Jimmy pela filha.
Menina de Ouro parece deter-se exatamente neste ponto nevrálgico da relação
do cinema de Eastwood com o afeto: a eterna iminência de seu fim. O lado
reverso da alegria, da sensação de “pertencimento”, ou do ideal romântico;
aquilo que fará de um homem um “cavaleiro nebuloso” que circula solitário nas
sombras. É como se o filme se detivesse no sofrimento enfrentado por Josey
Wales nos minutos iniciais de Josey Wales – O Fora da Lei, fazendo-nos
vivenciar de fato o que ali apenas “aprendemos” de forma relâmpago; presenciar
o nascimento do afeto e a sua morte – o fim da vida – no momento exato em que
eles se dão.
Há um desequilíbrio primordial entre a vida e a morte que deve ser encarado. Os
afetos – questão de presenças, convivências, momentos –, será preciso vivê-los
enquanto o viver os comportar. Talvez seja essa a razão do apego incondicional
de Saito pela vida, em Cartas de Iwo Jima. Ele conquista o direito ao amor (por
sua esposa, por sua filha recém-nascida), por uma brava luta pelo direito à vida.
E se Bradley, em A Conquista da Honra, morre atormentado pela lembrança do
amigo, Saito confia à memória de suas vivências e de seus afetos (a simpatia
pelos colegas de batalha, o amor pela esposa) um legado de existência viva,
assim como Kuribayashi e todos os que escrevem as “cartas”.
É tempo de lidar com as memórias, este espectro fugidio da vida, espécie de
decalque da morte, como a carga de mundo que nos cabe. Toda a dispersão
narrativa de Cartas de Iwo Jima e sua imersão no tempo e no espaço visam
contemplar um mundo de nuances que se recusam a não existir, que precisam
impregnar a imagem – mais do que nunca em Eastwood. Porque no sol que Saito
vê quando está deitado na praia, na maca ao lado dos americanos, parece haver
força suficiente para compensar as sombras que atravessam os homens e se
espalham pelo mundo. Em momentos como estes, o amor ao cinema se
confunde com o amor à vida.

Você também pode gostar