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SOBRE A ÉTICA E A

POÉTICA DE ARISTÓTELES
EDSON RESENDE*
JOÃO B. CARVALHO**

RESUMO
Apresentamos um breve histórico de algumas das principais correntes de
interpretação da Poética com o objetivo de destacar as possíveis conexões
entre a ética e a poética, em Aristóteles. A partir daí, elaboramos algumas
reflexões sobre os efeitos benéficos das emoções trágicas e sobre o prazer
proporcionado pela tragédia.
Palavras-chave: ética, poética, tragédia, mimesis, emoções, prazer

ABSTRACT
We introduce an outline of the main interpretations of Aristotle’s Poetics.
We intend to emphasize the connections between ethics and poetics. From
then onwards, we reflect on the beneficial effects of the tragics emotions and
on the pleasure aroused by tragedy.
Keywords: ethics, poetics, tragedy, mimesis, emotions, pleasure

A importância da tragédia grega e da Poética para a filosofia


prática de Aristóteles tem sido constantemente reconhecida e
considerada por destacados intérpretes contemporâneos. O século XIX
e o início do século XX assistiram a um debate que confrontava os
defensores de uma compreensão moral da catarse trágica e os novos
defensores de uma compreensão médica da mesma, sobretudo após
Jacob Bernays. Na segunda metade do século XX emerge uma
interpretação estética da tragédia notadamente com os trabalhos de
Leon Golden. Este novo paradigma interpretativo tem sido
ultimamente questionado através de numerosos trabalhos que resgatam
o antigo paradigma ético, acrescido de novos argumentos: Stephen,
Halliwell, Richard Janko e Martha Nussbaum, são alguns importantes

*
Doutor em Filosofia pela PUC-RJ. Professor do Programa de Pós-Graduação em
Filosofia da Universidade Gama Filho. E-mail: edsonresende@ugf.br.
**
Mestre em Filosofia pela UGF. Doutorando em Filosofia pela UFRJ. E-mail:
joaobeli@uol.com.br.

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intérpretes que retomaram o ponto de vista ético na análise da catarse


e da tragédia como um todo.
Como observa Destrée1, o paradigma médico sofre o defeito
de ser pouco satisfatório do ponto de vista filosófico (seria a tragédia
apenas um remédio para os males da alma ?), assim como o paradigma
estético parece sofrer de um anacronismo irremediável. Na verdade,
não há, entre os gregos, uma distinção tão clara entre estética e ética
ou entre ética e medicina2. O novo paradigma ético se caracteriza
justamente, apesar das diferenças entre seus defensores, por não tentar
separar radicalmente (e anacronicamente) estas três dimensões.
Em geral, são duas as causas apontadas para a poesia3. A
primeira é que o “imitar é congênito do homem”, isto é, faz parte de
nossa natureza desde a primeira infância. A segunda causa se reparte
entre o prazer de contemplar a representação (mimesis) e a harmonia
e o ritmo que também correspondem a uma disposição psíquica natural
do homem. As seguintes passagens apoiam o que afirmamos acima:

“Ao que parece, duas causas, e ambas naturais,


geraram a poesia. O imitar é congênito no homem (e
nisso difere dos outros viventes, pois, de todos, é ele
o mais imitador e, por imitação, apreende as primeiras
noções), e os homens se comprazem no imitado. Sinal
disto é o que acontece na experiência: nós
contemplamos com prazer as imagens mais exatas
daquelas mesmas coisas que olhamos com
repugnância (...). Causa é que o aprender não só muito
apraz aos filósofos, mas também aos demais homens
(...).” (Poética 1448b13; cf. 1448b20).

Estas palavras, sem dúvida, nos remetem às primeiras palavras


da Metafísica onde está escrito que todos nós desejamos, por natureza,
conhecer. Na Retórica 1371b4 temos:

1
Destrée, Pierre. Présentation. Les Études Philosophiques: 433-435, Octobre 2003.
2
Cf. Nussbaum, Martha C. The Therapy of Desire. Princeton: Princeton University
Press, 1996.
3
Poetica IV. Cf. Comentário In: Poética. Tradução, Prefácio, Introdução, Comentário
e Apêndices de Eudoro de Souza. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda,
1992, pg. 155.

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“E como aprender e admirar é agradável, necessário


é também que o sejam as coisas que possuem estas
qualidades; por exemplo, as imitações, como as da
pintura, da escultura, da poesia, e em geral todas as
boas imitações, mesmo que o original não seja em si
mesmo agradável; pois não é o objeto retratado que
causa prazer, mas o raciocínio de que ambos são
idênticos, de sorte que o resultado é que aprendemos
alguma coisa”.

Acreditamos, portanto, seguindo Halliwell4, que o prazer, a


emoção e o entendimento, de maneira interrelacionada, são elementos
chaves para compreender a interpretação de Aristóteles da experiência
da representação. O prazer vem a partir da imitação, enquanto atividade
motivada por uma emoção (desejo) natural, e vem também do
entendimento proporcionado pela contemplação da mimesis (mesmo
que o imitado não seja algo agradável de se ver). As emoções são
muitas vezes provocadas pelas ações representadas (uma resposta
emocional à mimesis). Por exemplo, a ação trágica pode resultar em
uma situação que vai despertar a piedade no público. Mas pode ser
também uma força motivadora da própria ação trágica, como, por
exemplo, uma vingança violenta que resulta da cólera exacerbada do
personagem. A emoção também acompanha o desenrolar da ação. Em
Retórica I 11 1370a25, “o prazer consiste em sentir uma certa emoção”.
Ora, este prazer, como diz Aristóteles em EN X, acompanha e
complementa nossas atividades. Além disso, o prazer e a dor estão
diretamente ligados às emoções5.
Vamos retornar mais adiante às emoções a ao prazer envolvidos
na poesia trágica e ao seu papel na ética aristotélica, Antes, entretanto,
atendendo às características introdutórias deste ensaio, convém
apresentar muito brevemente um pequeno histórico de algumas das
principais correntes de interpretação da Poética que servirá para
ilustrar (ou destacar) abordagens que têm defendido de forma

4
Halliwell, Stephen. Pleasure, Understanding, and Emotion in Aristotle’s Poetics.
In: Essays on Aristotle’s Poetics. Princeton University Press, 1992, pg. 241.
5
Cf. Frede, Dorothea. Mixed Feelings in Aristotle’s Rethoric. In: Essays on Aristotle’s
Rethoric. Los Angeles: University of California Press, 1996, pg. 258. Retórica 2 I:
“as emoções são as causas que fazem alterar os seres humanos e introduzem
mudanças nos seus juízos, na medida em que elas comportam dor e prazer”.

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diferenciada as conexões entre a tragédia e a filosofia prática de


Aristóteles6.
Após a retomada dos estudos da poética no renascimento
italiano, o período do neoclassicismo foi dominado por uma visão
moralista ou didática da catarse, segundo a qual a tragédia ensina
através de exemplos a refrear nossas emoções e os danos que elas
podem causar. Aprendemos a evitar paixões que podem conduzir ao
sofrimento trágico. A catarse é vista como sinônimo de um ensino
ético direto (ex: Corneille, Rapin e Dacier na França; Dryden e Johnson
na Inglaterra). Essa interpretação moralista incorpora algumas vezes
a analogia médica desenhada por Aristóteles em Política 8 (embora
esta analogia não seja essencial como no caso de Bernays). Uma
segunda interpretação, próxima da anterior, é a que admite a noção de
catarse como “fortalecimento emocional”. Exposta aos sofrimentos
dos outros nossa sensibilidade emocional à piedade e ao medo é
treinada e, na vida real, é reduzida. A tragédia nos ajuda a ficarmos,
de certo modo, habituados a situações dolorosas (desagradáveis), em
geral por causa de algum infortúnio, de modo que não seremos mais
exageradamente afetados por elas. Ficamos mais tolerantes aos
desastres do acaso. É uma visão estóica que foi, na renascença, adotada
por alguns intérpretes importantes (ex: Castelvetro). A redução
emocional é aqui o próprio objetivo do espetáculo. Num extremo
estóico estaríamos a caminho da imunidade emocional completa. A
moderação pode dar título a uma outra (terceira) interpretação da
catarse que busca alguma relação com a noção aristotélica de meio
termo. Alguns intérpretes ainda sustentam algumas formas alternativas
deste ponto de vista. A diferença para a abordagem anterior
(fortalecimento) é que esta advoga um efeito de maior equilíbrio
psicológico (emocional), não uma mera redução ou eliminação de
reações emotivas. É até mesmo concebível que a catarse proporcione
uma capacidade ampliada de se emocionar para aqueles que são
deficientes quanto a este aspecto em suas personalidades (cf. Retórica
1382b34, 1385b19). O fator crucial é o hábito, logo há um forte apelo
educacional. Nossas ações e experiências ajudam a modelar nossa
capacidade de lidar com futuras ações e experiências semelhantes. A

6
Cf. Halliwell, Stephen.. Aristotle’s Poetics. Chicago: The University of Chicago
Press, 1998, pg. 350-356.

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piedade e o medo despertados na tragédia nos acostumam a sentir


essas emoções do modo correto e na medida apropriada.
A tendência moderna dominante tem sido a que considera a
catarse um processo de desprendimento emocional ou uma purgação
– um meio agradável e inofensivo de descartar (dispensar) emoções
excessivas. O patrono desse ponto de vista é Jacob Bernays que
interpreta o processo como um fenômeno patológico. A analogia ética-
medicinal parece evidente. Entretanto, segundo Halliwell, Bernays e
seguidores enfatizam essa analogia a fim de caracterizar a catarse
com um sentido quase exclusivamente terapêutico, eliminando
praticamente a dimensão ética da experiência (se diferenciam de
antecessores como Milton e Dacier que empregaram a analogia médica
combinada com diferentes tipos de leitura moral).
Diferente das interpretações anteriores que enfatizaram as
questões emocionais envolvidas na catarse ( e na poesia trágica como
um todo) apareceram, recentemente, algumas tentativas de deduzir
da Poética uma doutrina da catarse intelectual. Golden apresentou a
primeira de muitas argumentações que defenderam a catarse como
“clarificação intelectual”. Esta teoria enfatiza (corretamente) o status
cognitivo da arte mimética. Golden é um nome de grande importância
entre os comentadores da Poética de Aristóteles por ter sustentado a
“clarification theory” em alguns artigos a partir de 1962. Esta
interpretação sobre a catarse foi herdada, ao menos parcialmente, por
diversos intérpretes, desde então. Ele é considerado uma das mais
influentes autoridades vivas no que diz respeito à Poética de
Aristóteles. Se, hoje em dia, a maioria dos “scholars” reconhece a
importância dos elementos cognitivos de algum tipo na catarse trágica,
Golden é, em grande parte, responsável por isto. Algumas objeções,
entretanto, mostram que não devemos considerar como sinônimos a
catarse e a experiência cognitiva da mimesis. Uma objeção relevante
é que tal leitura deixaria Aristóteles sem uma resposta adequada aos
ataques de Platão contra a irresponsabilidade emocional dos poetas.
Não esgotamos, até aqui, nem mesmo as principais teorias sobre
a catarse. Mas creio que já temos elementos suficientes para defender
que as reações emocionais são constituintes indispensáveis à tragédia
tanto como fator fundamental na comunicação com a audiência (como
efeito de algum reconhecimento ou peripécia que surge na
representação) quanto como componente da própria mimesis de
situações de alto teor emocional que podem ser contempladas (ainda
que com intenções meramente cognitivas) no teatro ou mesmo lidas,

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pois a tragédia pode transmitir todas as suas qualidades também através


da leitura (Poética 1462a8-14).
É sobre as emoções trágicas e sobre o prazer com a mimesis
que ainda queremos dizer algumas palavras. Como observou Meyer7,
o pathos é precisamente “a voz da contingência, da qualidade que se
vai atribuir ao sujeito, mas que ele não possui por natureza, por
essência” (2000, pg. XXXII). O pathos é “o momento contingente e
problemático que busca reencontrar a natureza das coisas, sua
finalidade própria, determinada pela essência. Preserva a identidade
do sujeito graças à diferença daquilo que não é ele, mas que, mesmo
assim, é” (pg. XXXIII). Constitui assim o lugar da diferença sem o
qual não haveria identidade. Não há sujeito sem esta contingência
que o afeta e o define. A paixão incontornável exige a ação. Daí a
obrigatória relação ética com a paixão, pois a moral se estriba numa
justa deliberação capaz de ensejar a ação. A paixão é “o lugar do
outro, da possibilidade diferente do que somos afinal; o individual
por oposição ao universal indiferenciado”. É, portanto a representação
interiorizada da diferença entre nós e os outros. Por ser contingente
exprime nossa individualidade. Na Poética, Aristóteles estuda o
discurso que mimetiza as ações e as paixões que motivaram tais ações
assim como os efeitos residuais destas ações que vão também despertar
paixões e emoções imprevisíveis. “E nas ações assim determinadas
tem origem a boa ou a má fortuna dos homens” (Poética 1450a).
Estas ações, nos limites entre o acaso e o infortúnio, são em
seu residual causadoras das grandes desgraças que nós temos a
oportunidade de contemplar nas boas tragédias. As reações emocionais
diante delas, no palco e na audiência, revelam com toda ênfase e
evidência aquilo que mais nos aproxima como humanos (reações
plausíveis e verossímeis) e, ao mesmo tempo, um espaço quase
ilimitado de diferenças individuais. Como observou Frede 8, a
psicologia (como entendemos hoje) não pode ser encontrada no tratado
oficial de psicologia de Aristóteles, o De Anima. Este tratado contém
estudos sobre as faculdades naturais dos seres vivos, sobre o
movimento, a percepção e sobre o pensamento (a função mental

7
Meyer, Michel. Prefácio. In: Retórica das paixões / Aristóteles. São Paulo: Martins
Fontes, 2000, pg. XXXI-XL.
8
Frede, Dorothea. Mixed Feelings in Aristotle’s Rethoric. In: Essays on Aristotle’s
Rethoric. Los Angeles: University of California Press, 1996, pg. 258.

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especial dos seres humanos). Será preciso procurar nas éticas ou na


Retórica onde estes aspectos da natureza humana são avaliados com
mais detalhes. Mas é preciso considerar que estes tratados (assim como
o próprio De Anima) são também herdeiros das observações que
Aristóteles teve a oportunidade de realizar quando estudou a tragédia,
buscando, entre outras coisas, identificar o mérito dos poetas e da
poesia trágica no que concerne à educação e ao treinamento das nossas
emoções e dos nossos desejos.
Nas passagens onde as emoções trágicas são mais nitidamente
apresentadas como critério de sucesso do gênero (Poética XIII e XIV),
o argumento de Aristóteles supõe que a audiência responderá
emocionalmente como um sinal (e como parte) de sua apreensão dos
fatos que o enredo apresenta9. A poética conecta especificamente a
catarse e a mimesis. O prazer próprio da tragédia é o prazer que
sentimos a partir da piedade e do medo despertados pela representação
(1453b12). Há uma distinção entre os sentimentos provocados por
eventos reais (dolorosos) e aqueles que são provocados pela mimesis
(que são prazerosos) (1448b12). Segundo Janko10, a resposta de
Aristóteles ao ataque de Platão à poesia é também uma resposta ao
ponto de vista do mestre sobre as emoções. Quando Sócrates desafia
os que amam a poesia a provar que ela é benéfica para a sociedade
(República X 607d), Platão já pode estar incluindo Aristóteles entre
aqueles que ele está desafiando. Uma das principais objeções de Platão
à poesia mimética é que ela pode alimentar emoções que deveriam
ser suprimidas ou controladas pela parte racional da alma (605d-606d).
Despertar tais emoções é perigoso, pois será difícil, depois disso,
controlá-las nas circunstancias cotidianas da vida. Uma das
vulnerabilidades dos argumentos que defendem a catarse como
purgação (cura) de emoções indesejáveis é justamente que eles devem
partir da hipótese de que Aristóteles mantinha uma opinião negativa
sobre as emoções (que precisavam ser removidas periodicamente).
Mas Aristóteles reconhece em diversas passagens que as reações
emocionais bem equilibradas são um fator importante para escolhas
corretas e também para compor um bom caráter. A análise de

9
Cf. Halliwell, Stephen.. Aristotle’s Poetics. Chicago: The University of Chicago
Press, 1998, pg. 197.
10
Janko, Richard. From Catharsis to the Aristotelian Mean. In: Essays on Aristotle’s
Poetics. Princeton University Press, 1992.

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Aristóteles do papel educativo da mousiké na Política VIII esclarece


como a poesia pode contribuir para a virtude, uma vez que mousiké
significa não apenas música, mas também poesia (a qual muitas vezes
era representada junto com a música). Se ouvir música pode nos
habituar a sentir as reações emocionais apropriadas na vida real porque
ela contém “semelhanças” com emoções como a cólera ou a piedade,
então a poesia dramática, que também desperta e representa tais
emoções, deve ter o mesmo efeito (cf. Política 1341b32-41).
Temos assim boas razões para supor que na Poética Aristóteles
considera a tragédia como moralmente benéfica. Além disso (como
mostrou Golden), obter prazer com a imitação é aprender e, em certa
medida, se dedicar à contemplação filosófica (1448b10-17) que é uma
atividade supremamente virtuosa. O fato de a tragédia superar a
epopéia (Poética XXVI) também sugere que ela é moralmente
benéfica. Belfiore11 sustenta que uma das funções da tragédia e das
emoções que ela suscita é a de se opor aos descontroles do thumos
(desejo impulsivo), ajudando a educá-lo. A piedade e o medo ajudam
a moderar desejos impulsivos, emoções agressivas, associados aos
excessos do thumos. Ajudaria, portanto, a produzir um estado
emocional moderado. Homens gregos treinados para serem
competitivos e agressivos encontrariam na tragédia uma
complementação adequada para sua educação, reguladora do thumos,
essencial para a boa convivência com seus companheiros cidadãos
em tempos de paz e nas atividades políticas dentro da polis.
Mas se a tragédia é útil como instrumento educacional para as
emoções e como campo de contemplação dos mistérios da alma
humana, ela é também uma fonte genuína de prazeres. O prazer que
acompanha as performances dramáticas tem formas e objetos próprios
(1462b12). A tragédia envolve e combina tantos tipos de prazeres
que é difícil determinar qual deles é o principal e quais são apenas
acidentais (1451b7, 1448b5).
Muito já se escreveu sobre qual seria o prazer próprio da
tragédia. Obtemos prazer em atividades dos sentidos sobre seus objetos
naturais: música, dança, espetáculo, declamação de poesia são, em si
mesmos, agradáveis aos sentidos. Há também os prazeres da mimesis:

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Belfiore, Elizabeth. Tragédie, thumos, et plaisir esthétique. Les Études
Philosophiques: 451-465, Octobre 2003.

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prazer em ver e reconhecer representações, prazer com as formas e


estruturas das representações (mesmo quando o que é representado é
feio ou desagradável). Os prazeres miméticos específicos do drama
trágico podem ser aqueles que se relacionam com o que talvez seja
nosso prazer mais profundo, o prazer de aprender, com os prazeres
terapêuticos e com prazeres de identificação e moderação. Quando é
bem estruturada e bem apresentada, a tragédia combina prazeres
sensoriais, terapêuticos e intelectuais. Prazeres afetivos e
introspectivos. São prazeres sobre prazeres, prazeres dentro de
prazeres, produzindo prazer12.
A tragédia proporciona aos cidadãos a experiência da atividade
contemplativa virtuosa acompanhada, naturalmente, pelo prazer que
lhe corresponde. Mas proporciona também, de maneira única, através
de nossas emoções, uma experiência onde utilidade (educação cívica,
emocional, moderação, esclarecimento, purgação) e prazer se mostram
intimamente conectados. Uma experiência que vai nos questionar
permanentemente sobre o estatuto da utilidade diante do prazer. Pois
através da educação poética (utilidade pública, bem comum) de nossas
reações emocionais somos conduzidos aos prazeres mais genuínos e
mais virtuosos. E através dos prazeres oferecidos pela cena trágica (e
pelo texto), pelos quais somos atraídos a compartilhá-los com nossos
concidadãos, somos também conduzidos a vivenciar lições éticas e
políticas (e psicológicas) de uma forma singular que apenas a tragédia
pode proporcionar.

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Cf. Rorty, Amélie O. The Psycology of Aristotelian Tragedy. In: Essays on Aristotle’s
Poetics. Princeton University Press, 1992.

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