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UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS – ARAPIRACA

Teoria da Literatura 1 – Prof. David Lopes


Fichamento de citações

UMBERTO ECO. “A Poética e nós”. In: _______. Sobre a Literatura. Trad. Eliana Aguiar. 2ª. Ed. RJ: Record, 2003. Pp. 219-
234.

“Creio, porém, ter sofrido minha primeira experiência aristotélica decisiva ao ler a Filosofia da Composição, de
Edgar Allan Poe, onde ele analisa palavra por palavra, estrutura por estrutura, o nascimento, a técnica, a razão de ser de
seu O corvo. Neste texto, Aristóteles não é nunca nomeado, mas seu modelo está sempre presente, mesmo no uso de
alguns termos-chave.
“O projeto de Poe consistia em mostrar como o efeito de ‘uma intensa elevação da alma’ (a Beleza) se atinge ao
preço de uma organização de estruturas, e em fazer ver como ‘a obra procede, passo a passo, em direção à sua
completude com a precisão e as rígidas consequências de um problema matemático’, levando em conta uma unidade de
impressão (que é materialmente a unidade do tempo de uma sessão de leitura), do lugar, do tom emocional.
“O escândalo deste texto é que seu autor explica a regra mediante a qual conseguiu dar a impressão de
espontaneidade, e esta é a mesma lição que nos vem da Poética, contra toda estética da inefabilidade. Esta lição
aristotélica pode ser encontrada também no Sublime do Pseudo-Longino, que de hábito é entendido como uma
celebração do je-ne-sais-quoi estético. O Sublime pretende certamente falar de um efeito poético que não se funda na
persuasão racional ou moral, mas sim em uma sensação de maravilha que se produz como êxtase e fulguração. Mas desde
a primeira página de seu tratado, o Anônimo nos diz que não quer apenas definir o objeto de seu discurso, mas também
dizer através de que artifícios é possível reproduzi-lo. Donde, na segunda parte, uma análise minuciosa das estratégias
retóricas a por em ação para atingir, através de procedimentos definíveis, este efeito que não pode ser definido. [...]
“O ensaio de Poe é aristotélico em seus princípios inspiradores, em seus fins, em seus resultados e em suas
ambiguidades. Lubomir Dolezel colocou a questão de saber se a poética aristotélica é uma obra de Crítica (que visa à
avaliação das obras de que fala) ou de Poética que, justamente, visa a definir as condições da literariedade. Dolezel,
citando Frye, recorda-nos que a Poética traz à luz uma estrutura inteligível do conhecimento, que não é nem a própria
poesia, nem tampouco a experiência da poesia, e (remetendo-se a algumas distinções que aparecem na Metafísica), a
considera como ciência produtiva, que visa a consciência com o objetivo de criar objetos. [...]
“Dolezel observa assim que a Poética de Aristóteles é ao mesmo tempo o ato fundador seja da Teoria da
Literatura, seja da Crítica Literária ocidental, e justamente em virtude de sua íntima contradição. [...]
“Aristóteles não nos fala apenas de critérios abstratos de ordem e medida, de verossimilhança ou necessidade, de
equilíbrio orgânico (1450b21 ffg), mas também daquele critério que irá provocar uma reviravolta em qualquer leitura
puramente formalista da Poética. O elemento fundamental da tragédia é o enredo [1], e o enredo é imitação de uma
ação cuja finalidade, o télos, é o efeito que produz, o ergon [2]. E este ergon é a catarse. Bela – ou bem-sucedida – será
a tragédia que souber provocar a purificação das paixões. Logo, o efeito catártico é uma espécie de coroação da obra
trágica, e isso não se manifesta na tragédia enquanto discurso escrito ou recitado, mas antes enquanto discurso recebido.
“A Poética representa a primeira aparição de uma estética da recepção, mas como qualquer reader oriented
theory apresenta alguns problemas não resolvidos.
“Sabemos que a catarse pode ser interpretada de dois modos e ambas as interpretações são sustentadas por
aquela expressão enigmática que aparece em 1449 b 27-28: a tragédia realiza ten ton toiuoton pathematon katharsin.
“A primeira leitura é que Aristóteles está falando de uma purificação que nos libera através da experiência intensa
de nossas paixões – como seria sugerido pela Política (que entretanto, infelizmente, remete à Poética para uma explicação
que em nenhuma das obras é explicitada), e portanto a purificação seria entendida em termos médicos tradicionais como
ação homeopática, liberação do espectador por identificação com as paixões dos personagens – e impor-se-ia como
experiência daquilo que não podemos evitar. A tragédia seria uma máquina coribântica e psicagógica (se fosse possível
algum distanciamento, ele aconteceria apenas na comédia, mas daquilo que Aristóteles entendia por comédia sabemos
muito pouco).
“A segunda leitura entende a catarse em sentido alopático, como purificação sofrida pelas paixões mesmas, uma
vez que ‘belamente’ representadas e vistas de longe como paixões dos outros, através do olhar frio de um espectador
que se transforma em olho puro e desencarnado – e que desfruta não das paixões que experimenta, mas do texto que as
encena.
“Para radicalizar o conflito interpretativo, de um lado origina-se uma estética dionisíaca e de outro uma estética
apolínea. [...]
“Outras fecundas ambiguidades fazem a atualidade da Poética. Aristóteles é um alexandrino que, em parte,
perdeu o espírito religioso que animava o século V. Ele trabalha um pouco como um etnólogo ocidental contemporâneo
em busca de invariantes universais nas narrativas de selvagens, pelas quais é fascinado, mas que não compreende senão
de fora. E eis então uma outra leitura, muito moderna, de Aristóteles, e que ele mesmo encoraja quando finge falar da
tragédia enquanto, na realidade, nos oferece uma semiologia da narratividade. O espetáculo trágico compreende a
história, as personalidades, a elocução, o pensamento, o espetáculo e a música, porém ‘o mais importante destes
elementos é a composição das ações... De fato, o fim da tragédia são os fatos e a narrativa’ (1450 a 15-23).
“Estou de acordo com Ricouer quando diz que, na Poética, a narração fundada no enredo, esta capacidade de
compor um conto e ton pragmaton sustasis, torna-se como que o gênero comum, do qual a epopeia se reduz a espécie. O
gênero de que fala a Poética é a representação de uma ação (pragma) através de um mythos (quer o chamemos de plot
ou de enredo), do qual a diegese épica e a mimese dramática são apenas espécies.
“Ora, a teoria do enredo talvez seja aquilo que influenciou de modo mais profundo o nosso século. A primeira
teoria da narratividade nasce com os formalistas russos que propõem, de um lado, a distinção entre fabula e sjuzet e, de
outro, a decomposição da fábula em uma série de motivos e funções narrativas. É difícil encontrar referências diretas a
Aristóteles nos textos de Chklovski, Veselovski ou Propp, mas o primeiro estudo sobre os formalistas russos, de Victor
Erlich (Russian formalism, 1965), mostrava claramente qual era o débito dos formalistas em relação à tradição aristotélica
– embora Erlich notasse justamente que as noções formalistas de fabula e sjuzet não são estritamente coextensivas às de
pragma e mythos. Da mesma forma, se poderia dizer que as funções narrativas de Aristóteles são menos numerosas que
as de Propp. Mas o princípio é o mesmo, sem dúvida, e disso se deram conta os primeiros críticos estruturalistas no início
dos anos sessenta [...]
“Não digo que uma teoria do enredo e da narratividade tenha nascido somente em nosso século [XX]. Mas o fato
curioso é que a cultura contemporânea retornou a este aspecto ‘forte’ da Poética justamente no período em que,
segundo muitos, a forma romanesca estava entrando em crise.
“Contudo, contar e ouvir histórias é uma função biológica. [...] Mesmo a recusa, por parte do Nouveau Roman, de
levar-nos a experimentar piedade ou terror, faz-se excitante sobre o pano de fundo de nossa profunda persuasão de que
um conto deve produzir tais paixões. A biologia se vinga. Quando a literatura se recusou a nos dar enredos, fomos buscá-
los nos filmes ou nas reportagens jornalísticas.
“Há também uma outra razão pela qual nosso tempo deixou-se fascinar pela teoria do enredo. É que estamos
convencidos de que o modelo da dupla fábula/discurso narrativo, pragma e mythos, não serve apenas para explicar
aquele gênero literário que os ingleses chamam de fiction. [...]
“A Poética tem muitas faces. Nenhum livro pode ser fecundo sem que tenha produzido também resultados
contraditórios. Entre as minhas primeiras descobertas da atualidade de Aristóteles recordo um livro de Mortimer Adler,
que elaborou uma estética do filme em bases aristotélicas. Em seu Art and Prudence, ele dava a seguinte definição: ‘Um
filme é a imitação de uma ação completa, de uma certa grandeza, usando ao mesmo tempo imagens, efeitos sonoros,
música e outros’. [...]
“Não aceito a ideia de que a Poética não possa definir a arte ‘alta’, mas é certo que, com sua insistência nas leis do
enredo, mostra-se particularmente adequada para descrever as estratégias da mídia. [...]
“O problema é, eventualmente, se a piedade e o terror que [a mídia] provoca levam realmente a uma catarse,
mas se se entende catarse em seu sentido homeopaticamente mínimo (chora e te sentirás melhor) ela é, em seu estado
mínimo, a Poética aplicada.
“Seria possível dizer, aliás, que se nos ativermos às ideias aristotélicas para a construção de um mythos que
produza um ergon eficaz, cai-se inevitalmente no midiático. Para retornar a Poe, lendo apenas as páginas que ele dedica à
produção das emoções colocadas como um fim, pensaríamos estar diante de um roteirista de Dallas. Querendo escrever
uma poesia que, em um pouco mais de cem versos, produza uma impressão de melancolia (‘pois a Melancolia é o mais
legítimo entre os tons poéticos’), ele se perguntava qual, entre todos os sujeitos melancólicos, seria o mais melancólico, e
entre as mortes considerava melancolíssima a de uma bela mulher, ‘sem dúvida o argumento mais poético que existe no
mundo’.
“Se Poe tivesse se limitado unicamente a esses princípios teria escrito Love Story. Mas felizmente, Poe sabia que,
se o enredo é o elemento dominante em toda história, ele deve de qualquer modo ser temperado com outros elementos.
Poe escapou da armadilha midiática (mesmo que ante litteram) porque tinha outros princípios formais. Donde o cálculo
dos versos, a análise da musicalidade do never more, o calculado contraste visual entre o busto branco de Pallade e o
negror do corvo, e todo o resto que faz de O corvo uma composição poética e não um filme de terror.
“Mas ainda estamos em Aristóteles. Poe calculava uma justa e orgânica mistura de lexis, opsis, dianoia, ethos,
melos. Assim se dá carne ao esqueleto de um mythos. [...]
“Chegamos à última ambiguidade. A Poética é a obra em que, pela primeira vez, desenvolve-se uma teoria da
metáfora. Ricouer (citando a este propósito Derrida, para quem, em Aristóteles, o definido está implicado no definidor)
observa que, para explicar a metáfora, Aristóteles criou uma metáfora, tomando-a emprestada da ordem do movimento.
[...]”

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