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ARISTÓTELES (384-322 a. C.

) POÉTICA

Principais conceitos abordados:


Mimesis ou "imitação", "representação".
Catharsis ou "purgação", "purificação", "esclarecimento".
Peripeteia ou "reversão".
Anagnorisis ou "reconhecimento", "identificação".
Hamartia ou "erro de cálculo" (entendida no Romantismo como "falha trágica").
Mythos ou "roteiro", "argumento".
Ethos ou "caráter".
Dianoia ou "pensamento", "tema".
Lexis ou "retórica", "fala".
Melos ou "melodia", "música".
Opsis ou "espetáculo".

Decifrando a poética aristotélica


Entre os escritos e obras, A Poética de Aristóteles é uma obra esotérica e terá por base a fundamentação
conceitual de imatação (mimesis) e de catarse (katharsis, purificação, purgação). Mimesis, no sentido
aristotélico, é ativa e criativa, determina o modo de ser do poema trágico e estará sempre ligada à idéia
de arte (tecgné) e de natureza (physis), defendendo sempre que a arte imita a natureza. Já a catarse
para Aristóteles é uma força emotiva causada pela mimesis levando a um efeito suscitado pela tragédia
no público.
No primeiro capítulo da obra aristotélica, são abordados alguns aspectos da poesia e da imitação
segundo os meios, o objeto e o modo de imitação. Nesse sentido, apresenta-se como propósito da obra a
abordagem da produção poética em si mesma e seus gêneros, da função de cada um desses gêneros e
a maneira pela qual a fábula deve ser construída com vistas à conquista do belo poético. A epopéia, a
poesia trágica, a comédia, a poesia ditirâmbica, a maior parte da aulética e da citarística enquadram-se
nas artes da imitação, havendo entre elas, contudo, a diferença de que seus meios não são os mesmos,
tampouco os objetos que imitam e a maneira pela qual se dá essa imitação. Nas artes citadas, a imitação
ocorre por meio do ritmo, da linguagem e da harmonia, empregados em conjunto ou separadamente. A
epopéia utiliza a palavra simples e nua dos versos.
No segundo capítulo encontra-se uma abordagem acerca das formas pelas quais se utiliza a imitação.
Assim, afirma-se que a imitação aplica-se aos atos das personagens, as quais podem unicamente ser
boas ou ruins, dependendo da prática do vício ou da virtude. Nesse sentido, as personagens são
representadas como melhores ou piores.
No terceiro capítulo é tratado do refinamento da classificação focalizada no capítulo anterior, afirmando
ser possível imitar os mesmo objetos nas mesmas situações e numa mesma narrativa, seja pela
introdução de um terceiro personagem, seja insinuando-se a própria pessoa sem a intervenção de outro
personagem. Uma outra forma de seria contar com a ajuda de personagens que agem por si só.
No quarto capítulo ocorre uma análise acerca da origem da poesia e seus diferentes gêneros, que teria
duas causas, ambas devidas à natureza do homem. Tendo em vista que a imitação corresponde a um
instinto humano, característica que o distingue dos demais seres vivos, pela imitação são adquiridos os
primeiros conhecimentos e experimentado o prazer. A poesia, então, teria sido criada pelos homens mais
aptos à execução da imitação, por meio de ensaios improvisados. A divisão em gêneros resultaria das
diferenças entre os caracteres dos sujeitos imitadores: aqueles mais propensos à gravidade
reproduziriam as belas ações e seus realizadores, ao passo que os menos propensos se voltariam para
as pessoas ordinárias com o objetivo de censurá-las. Aponta-se Homero como o pioneiro dos gêneros
dramático e cômico. Defende-se, também, a superioridade da tragédia e da comédia em relação ao
iambo e à epopéia. Tal superioridade seria a responsável pela migração dos poetas para os dois
primeiros gêneros.
No quinto capítulo é efetuada uma comparação entre epopéia e tragédia. A primeira, assim como a
tragédia, focaliza os assuntos sérios, porém não inclui qualquer forma negativa e é menos limitada
quanto à duração em relação à tragédia. Ambas apresentam partes constitutivas comuns e todos os
caracteres presentes na epopéia encontram-se também na tragédia.
No sexto capítulo são focalizadas as diferentes partes da tragédia, conceituando esta, entendendo-se
que o pensamento é a arte de encontrar o modo de exprimir o conteúdo do assunto de maneira
conveniente e busca provar a existência ou não de determinada coisa e realizar uma declaração de
ordem geral. Já o caráter torna possível a decisão após a reflexão, razão pela qual o caráter somente se
revela após a decisão dos personagens. A elocução é a escolha dos termos, os quais apresentam o
mesmo poder de expressão, seja no prosa ou no verso. Já o canto é o principal tempero do espetáculo.
Defende-se a idéia de que a despeito do efeito de seu efeito sobre os ânimos, a encenação em si mesma
não pertence à arte da representação e não guarda qualquer relação com a poesia. Dessa forma, a
tragédia existiria por si só, independentemente da representação e dos atores.
O sétimo capítulo trata da extensão da ação, parte primeira e capital da tragédia. Conceitua-se princípio
como sendo aquilo após o qual é natural haver ou produzir-se outra coisa; fim como sendo o contrário, ou
seja, ocorre após outra coisa e é algo após o qual nada ocorre. Assim, para se ter uma voa composição
na fábula, seria necessário que o início e o fim não fossem obras do acaso, mas de condições indicadas.
Assim, afirma-se que para que algo seja considerado belo, deve não só apresentar ordem em suas
partes, como também comportar certas dimensões. Sob essa ótica, um ser vivente muito grande ou muito
pequeno não poderia ser belo. Dessa forma, a dimensão dessa extensão seria dada pela duração dos
concursos e pelo grau de atenção do espectador, ponto este que não dependeria da arte.
O oitavo capítulo trata da unidade da ação e afirma que, ao contrário do que se pode pensar, o que
confere unidade à fábula não é a personagem principal. Assim, o que importa é que a unidade da
imitação resulte na unidade do objeto, de forma que a supressão ou deslocamento de uma parte seja
suficiente para mudar ou confundir o conjunto.
O nono capítulo versa sobre a competência do poeta ao narrar exatamente o que acontecido, mas sim o
que poderia acontecer, o possível, a verossimilhança ou a necessidade. Assim, a diferença entre o
historiador e o poeta não é a forma da obra, mas o que ela relata. Assim, o historiador relata o que
ocorreu e o poeta, o que poderia ter ocorrido. Por isso, a poesia é mais filosófica e de caráter mais
elevado, pois permanece no universal - o que uma categoria de homens diz ou faz em determinadas
circunstâncias segundo o verossímil ou necessário - ao passo que a história focaliza o particular. Assim,
a missão do poeta concentra-se em criar fábulas e não em fazer versos, sendo poeta justamente porque
imita ações. Neste capítulo, atribui-se a maus poetas a criação de fábulas episódicas, obras em que a
conexão dos episódios não observa a verossimilhança e nem a necessidade. Assim, a tragédia deve
imitar a ação em seu conjunto e, além disso, imitar fatos capazes de suscitar o terror e a compaixão,
principalmente se tais sentimentos nascerem de fatos que se encadeiam contra a experiência do
espectador, causando, assim, maior admiração do que se fossem devidos ao acaso e à fortuna.
No décimo capítulo traz tão-somente a noção de que as fábulas são classificadas em simples ou
complexas de acordo com as ações que imitam.
No décimo primeiro capítulo são apresentados os elementos da ação complexa, quais sejam peripécia,
reconhecimento e catástrofe ou patético. A Peripécia é um elemento de ação complexa, que, segundo
Aristóteles, consiste numa reviravolta das ações, o que conduz a história a um rumo contrário ao que
parecia indicado e natural. O uso da peripécia é um dos instrumentos usados para que se chegue ao
objetivo de causar terror e compaixão, ou catarse, finalidade da qual se presta qualquer tragédia. Como
várias das peças já eram conhecidas do público, estratégias como essa provocavam mais interesse do
público, o prendia mais e o deixava ansioso. Logo, essa reviravolta na história fazia com que o público
ficasse mais curioso e mais identificado com a história e, assim, a interação do público com a peça
aumentava. É com o uso da peripécia e de ações simples, diz Aristóteles, que se alcança o fim que se
propõe alcançar, a saber a emoção trágica e os sentimentos da humanidade.
No décimo segundo capítulo encontram-se as divisões da tragédia, que são: prólogo, epílogo, êxodo e
canto coral. O Prólogo é a parte que a si mesma se basta e que precede a entrada do coro (párodo). O
episódio é uma parte completa da tragédia colocada entre cantos corais completos. O êxodo é uma parte
completa da tragédia, após há qual não há canto coral.
No décimo terceiro capítulo fala das qualidades da fábula em relação às personagens. A fábula bela deve
ser complexa e capaz de excitar temor e compaixão. Nelas, o infortúnio dos personagens não são fruto
de sua perversidade, mas sim das suas ações. Para ser bela, a fábula necessita propor um fim único,
oferecendo a mudança da felicidade para o infortúnio em virtude de um erro grave.
No décimo quarto capítulo aborda os diversos modos de produzir o terror e a compaixão, os quais podem
nascer do espetáculo cênico, podendo, porém, derivar do arranjo dos fatos, o que é preferível e evidencia
maior habilidade do poeta. Na tragédia, o temor e a piedade devem ser causados pelas ações. As ações
que inspiram dor devem ocorrer entre amigos ou inimigos, ou indiferentes. Numa boa tragédia, o
personagem não hesita em matar, saiba ou não quem é a vítima.
No décimo quinto capítulo ressalta-se a importância de que a representação e o entrosamento dos fatos
apresentem verossimilhança de modo que as ações e palavras da personagem estejam de acordo com o
necessário e verossímil. Assim, o desenlace das fábulas deve nascer da própria fábula e não de um
artifício cênico, não havendo, tampouco, espaço nas ações para o irracional.
Nos capítulos seguintes são apresentados alguns conselhos ao poeta Diz-se que, ao organizar sua
fábula, o poeta deve sentir como se a tivesse diante de seus olhos e completar o efeito do que é dito
pelas atitudes das personagens, razões pelas quais a poesia exige entusiasmo. Fala-se, ainda, que os
assuntos devem conter primeiramente uma idéia global, distinguindo os episódios a seguir. Então, devem
ser atribuídos nomes aos personagens, os quais variam em função da sua terminação em neutros,
femininos ou masculinos.
No décimo oitavo capítulo afirma-se que em todas as tragédias há o nó e o desenlace. O primeiro
corresponde à parte que vai do início ao ponto em que ocorre mudança e o desenlace é a parte que vai
da mudança até o final da peça. Uma boa peça deve conjugar adequadamente o lace e o desenlace. O
canto coral teria o papel de passagem entre uma peça e outra.
Nos dois capítulos seguintes são encontradas observações acerca da elocução e do pensamento, dois
dos elementos essenciais da tragédia. O pensamento tem como objeto a retórica e é de seu domínio tudo
aquilo que se exprime por meio da linguagem, incluindo a demonstração, a refutação e a maneira pela
qual se movem as paixões, tais como compaixão, temor, e a cólera, os quais devem dotar de importância
e verossimilhança. A elocução é tratada a partir de seus elementos essenciais: letra, sílaba, conjunção,
nome, verbo, artigo, flexão e expressão.
A partir daí encontra-se o objeto e as formas dos nomes ou figuras. O nome simples é desprovido de
elementos significativos. Já a composição do nome duplo varia pode ser de um elemento significativo
com um elemento vazio de sentido ou de elementos todos significativos. Os nomes usados podem ser da
própria língua ou estrangeiros. Faz-se uso também de metáforas e nomes forjados, que são aqueles que
em princípio não apresentam sentido, mas que passam a possui-lo pela utilização do poeta. Os nomes
alongados assim se chamam devido ao alongamento ou abreviação. Os nomes masculinos terminam em
N, R, S ou letras compostas de S, que são as consoantes duplas Y e X. Os femininos terminam em vogal
sempre longa, como H, W e A alongado. Nenhum nome termina em muda ou vogal breve.
No vigésimo segundo capítulo observam-se as qualidades da elocução. A principal dessas qualidades é a
clareza, contudo sem constituir em algo trivial, que é obtida a partir do uso da linguagem corrente. Para
manter-se nobre, a elocução vale-se de metáforas, alongamentos e tudo o que se afasta da linguagem
corrente, mas sem exageros.
No vigésimo terceiro capítulo é abordada a unidade de ação na composição épica. Diz-se que é
necessário que a fábula seja dotada de tom dramático, e que encerrem uma só ação, com princípio, meio
e fim.
No vigésimo quarto capítulo trata das partes da epopéia, que deve ser simples ou complexa, ou de
caráter, ou patética. Assim, seus elementos essências são os mesmos da tragédia, salvo o canto e a
encenação, e também são necessários reconhecimentos, peripécias e catástrofes, devendo, além disso,
apresentar pensamentos e linguagem bela. A diferença entre epopéia e tragédia está na métrica. Assim,
a epopéia deve apresentar limite exato, ou seja, seu conjunto deve ser abarcado do início ao fim.
No vigésimo quinto capítulo apresenta a maneira pela qual deve se apresentar o que é falso. Diz-se que
o poeta deve dialogar o mínimo possível com o leitor. Nas tragédias, pode-se apresentar aquilo que é
maravilhoso, sendo que na epopéia pode-se avançar até o irracional, para obtenção de um maravilhoso
em grau mais elevado. Quanto à verossimilhança, defende-se a idéia de que é preferível o impossível
verossímil ao possível incrível. Além disso, os assuntos poéticos devem ser racionais.
O vigésimo sexto capítulo traz algumas respostas às críticas feitas à poesia. Defende-se a idéia de que é
erro do poeta a tentativa de imitação do impossível e o erro que provém de uma escolha mal feita não é
intrínseco à própria poesia. Contudo, o erro torna-se secundário se a finalidade da arte tiver sido
alcançada, a não ser que esse mesmo fim pudesse ter sido alcançado sem o uso de eventos
impossíveis. Pode-se justificar o erro, ainda, pelo argumento de que o autor representou as coisas como
elas deveriam ser, ou como a platéia acha que é, ou como elas eram em uma outra época. Critica-se
também o uso exagerado de palavras estrangeiras. Admite-se, ainda, que possam ocorrer eventos
aparente inverossímeis e que esse acontecimento seja verdadeiro.
O vigésimo sétimo capítulo trata da superioridade da tragédia sobre a epopéia. Argumenta-se que a
menor extensão da tragédia proporciona maior prazer do que a diluição da epopéia, sem, contudo, deixar
de atingir o seu objetivo, que é o de imitar. Além disso, a imitação da epopéia apresentaria menos
unidade, pois trata de muitas fábulas simultaneamente.
Por fim, fica entendido que esta obra constitui-se de importante e bastante esclarecedor manual para o
entendimento das tragédias, tornando-se base para a compreensão desse tipo de obra e, inclusive, para
o estudo da arte dramática e da História da Arte como um todo.
É preciso observar, ainda, que a poética no sentido aristotélico, segundo Massaud Moisés, advem de
talento poético, arte da versificação, designando, assim, o seu tratado e teoria da arte de criar poesia. E
para Daniel Delas e Jacques Filliolet é consagrada à essência e à origem da poesia.
Para Assis Brasil, a poética é entendida hoje como a ciência da literatura, o que levou Jean Cohen a dizer
que é a ciência cujo objeto é a poesia.
Afinal, para Aristóteles qual o significado para a poesia?
Para Aristóteles a poesia é imitação, um ato congênito ao homem, ao lado do ritmo e da harmonia.
Por isso, no sentido aristotélico, a poesia, segundo Jean Cohen, designava um gênero literário, por
transferência da causa para o efeito, do objeto para o sujeito, designando a impressão estética particular
normalmente produzida pelo poema. Tal condução levou-se a entender que a poesia, com base em
Ariano Suassuna, está entre as artes auditivas, e possui três espécies principais: a lírica, a épica e a
filosófica.
Como o nosso tema é a poética propomo-nos falar não só da poética em si, mas também das suas
espécies e das suas respectivas características: do mythos (da trama requerida) para compor um belo
poema; do número e da natureza das partes constitutivas de um poema, e também dos restantes
aspectos que dizem respeito a esta investigação.
Seguindo pois a ordem natural e começando pelas primeiras observações de base, verificamos que
[as técnicas das Musas] a epopeia e a poesia trágica, assim como a comédia, o ditirambo e, em grande
parte a técnica de tocar a flauta e a cítara, consideradas de um modo geral, são todas figurações da
realidade. Mas, ao mesmo tempo diferem entre si em três aspectos: seja pela diferente classe de meios,
seja pelos objectos, seja ainda pelo modo como realizam as suas figurações.
[Como a pintura e a escultura - seguindo Platão] Pois assim como a cor e a forma são usadas como
meios por quem - seja por uma técnica, seja pela experiência da sua prática, - figura e desenha diversos
objectos mediante a sua ajuda; e, como a voz é empregada por outros; assim também, para o grupo das
técnicas que mencionámos, os meios são, na sua generalidade, a linguagem, a harmonia e o ritmo,
empregues muito simplesmente em si mesmo, ou em determinadas combinações.

Nota: As Técnicas das Musas (as músicas, além da música e do canto, incluiam a poesia, o drama,
a dança e o espectáculo em geral), são aquelas susceptíveis de criar um espírito de corpo envolvendo o
seu público, criando aficionados, entusiasmando, dominando o público ligando-o entre si e com o espírito
da obra no espectáculo (numa cadeia de aneis magnetizados).
Aristóteles faz as seguintes observações sobre a tragédia, a comédia, a sátira e a epopeia (o poema
épico). Em geral, tragédia refere-se ao drama (inclui portanto a comédia) e, quando não as diferencia é
porque as considera semelhantes:

1) Quanto à métrica dos versos, a própria natureza se encarregou de encontrar o que é mais
adequado à tragédia, isto é, o jâmbico [na língua grega da época], segundo sabemos o mais flexível de
todos os metros.
No início de quinhentos, na língua portuguesa, - o mais flexível de todos os metros, o mais próximo
de uma linguagem natural e coloquial, - considerou-se ser a redondilha maior, com versos quebrados
quando necessário... (Não o será ainda hoje?)
2) Quanto ao modo como se diferencia da epopeia, a tragédia procura manter-se, sem que isso seja
prioritário ou vinculativo, mas tanto quanto possível, dentro de um ciclo solar ou nesta medida
aproximada.

3) Quanto à riqueza comparativa entre a epopeia e a tragédia, verifica-se ainda que, a tragédia
contém todos os elementos da epopeia, mas esta não comporta todos os da tragédia. E por isso a
tragédia é superior à epopeia.

O autor da Poética especifica ainda antes, que as diferenças entre as artes que investiga, no que
respeita aos processos de figuração (mimesis), se concretizam: pela definição dos seus objectos; pelos
meios que utilizam; e pelos modos como os figuram (narram, apresentam ou representam).

Assim:
1) Quanto aos modos, estabelece então:
(a) a diferença entre a comédia e a tragédia:
enquanto a tragédia figura o ser humano, o Homem no seu melhor, idealizado; a comédia figura no
seu pior, caricaturado; a sátira apresenta ou figura o Homem tal como é.
(b) nas artes da Poética a sua semelhança está no drama:
o elemento que constitui traço comum da tragédia e comédia, - a acção dramática - figura as
acções enquanto se desenvolvem; nas formas de arte onde se representam acções humanas, a actuação
das personagens tem por objectivo formular o mythos, não a realidade ou a história real.

2) Quanto aos meios, que são o ritmo, a melodia e o verso, são aparentemente os mesmos para a
tragédia e para a comédia (e sátira), verificando-se a diferença no tipo de verso utilizado, na sua métrica,
mas esta é uma diferença não vinculativa que pode ser explicada pelas suas diferentes origens.

3) Quanto à definição dos objectos, finalmente, não há diferença alguma, ou não se manifesta
qualquer diferença entre as obras dramáticas, sejam a tragédia, a comédia ou a sátira, o seu objecto é
sempre a acção dramática.

Conceitos fundamentais

...pela Poética, na arte dramática (no Teatro), nem a tragédia é uma tragédia real, nem o temor nem a
compaixão, são outros que não sejam os criados (figurados) na mente humana ao assistir a uma acção
dramática que desenvolve um drama trágico, numa figuração da realidade, e portanto, purgar resulta
numa figura de estilo, diríamos que de uma outra figura de estilo.

O temor e a compaixão trágicos, da arte dramática, são figurativos, não são causados pelas nossas
próprias ligações afectivas, são em cada momento, a possível figuração delas, serão sempre um
resultado do nosso Ver, pela nossa leitura, da nossa figurada entrada (imitada, vivida em pensamento) no
mundo figurativo da acção dramática da peça, da sua aceitação, vivência virtual e compreensão… E
assim será também a catarse que se deve produzir no nosso espírito. Esta catarse vai acontecer com a
tomada de consciência (clarividência) do nosso Ser quando alcançar Ver - perceber e compreender o
âmago (a hiponóia grega) da peça - numa leitura completa do seu mythos, com a resolução da situação
figurativa criada na acção dramática.

O sentir desta catarse (resolução emocional) realiza-se no pensamento do leitor (espectador) da


acção dramática, porquanto pensar e sentir são uma e mesma entidade. O seu sentido está na
continuidade da acção dramática e do seu desenlace, encontra-se no desfecho que o criador da obra,
através das peripécias, soube criar para fechar a peça, numa reviravolta capaz de resolver as situações
introduzidas durante as partes precedentes, de suposto (porque figurativos) temor e compaixão, que
decorrem da concepção do mythos da peça. Esta catarse está assim dependente da mestria colocada
nas formuladas peripécias, que culminam num conclusivo reconhecimento (por clarividência), - tal como o
recordar de algo, uma tomada de consciência de uma recordação vivida por parte do público - fornecido
pelas mudanças de rumo verificadas com o desenlace.

Destacamos ainda...

A mais importante das seis partes constituintes é a combinação dos incidentes: o mythos. A tragédia
é, na sua essência, uma figuração, não das pessoas, mas da acção e da vida, da felicidade e da desdita.
Toda a felicidade do Homem, ou a sua desgraça (a desdita), derivam do desenrolar de acontecimentos,
que assumem formas e dimensões que são consequência da sua prática como indivíduo actuante, pelo
que são sempre resultado de acções humanas: pois o fim para o qual nós vivemos é uma espécie de
actividade e não uma qualidade.

O protagonista pode incluir em si mesmo todas as qualidades, porém como é pelas acções - pelo
nosso comportamento ou actuação, pelo que nós fazemos - que somos felizes ou não, também, e por
consequência, num drama, uma personagem não actua para representar um carácter, cada personagem
inclui um carácter em função da acção. De modo que, é a acção em si mesma, o seu mythos, que
constitui o fim ou propósito da tragédia (ou da comédia), e este fim é o principal, é o que é essencial de
entre as suas partes constituintes. Além disso, uma tragedia é impossível sem acção, ainda que as possa
haver sem carácter.

Podemos encontrar e concordar com uma série de discursos característicos da mais alta e fina
expressão na técnica da tragédia, no que respeita à elocução e ao pensamento, e apesar disso
verificarmos ser frequente o seu fracasso na produção do verdadeiro efeito trágico. Não obstante,
verificamos muito maior êxito com uma tragédia que, por inferior que seja nestes aspectos, possua em si
mesma uma trama bem arquitectada - uma combinação de incidentes, agregando as mais poderosas
técnicas de provocação da atracção na tragédia, - incluindo as peripécias e os reconhecimentos, que são
as partes constituintes do mythos, dos incidentes e dos episódios na sua combinação.

ROUSSEAU (1712 – 1778) DISCURSO SOBRE A ORIGEM E OS FUNDAMENTOS DA


DESIGUALDADE ENTRE OS HOMENS

Tomando como base os primeiros homens, Rousseau iniciou um pensamento que o levaria a concluir
que toda desigualdade se baseia na noção de propriedade particular criado pelo homem e o sentimento
de insegurança com relação aos demais seres humanos.

Segundo Rousseau, os primitivos deviam viver em bandos mais ou menos organizados, que se ajudavam
esporadicamente, apenas enquanto a necessidade emergente exigisse, para fins de alimentação,
proteção e procriação. Findada tal necessidade, os primitivos seguiam suas vidas de forma isolada, até
que nova necessidade aparecesse.

Com o surgimento de novas exigências, as quais estes povos não estavam acostumados, surgiu,
também, a percepção de que poderiam ter, além do necessário, algo mais que pudesse fazê-lo melhor do
que os outros homens. Esta noção, ainda rudimentar nesses povos, foi-se aperfeiçoando, até alcançar
um nível de elaboração que fizesse surgir a idéia de propriedade, fosse ela um animal, terras, armas e,
até mesmo, outras pessoas.

Essa noção de propriedade criou nos primitivos a idéia de acumulação de bens e, conseqüentemente,
superioridade frente aos demais. Essa suposta superioridade foi o estopim para o início dos conflitos
entre os homens de uma mesma tribo e, posteriormente, entre cidades e nações.
Outra novidade nesse progresso mental foi a noção de família, que com o tempo, levou homens e
mulheres a deixarem de lado o comportamento selvagem que tinham. Essa moderação no
comportamento, fez emergir a fragilidade perante a natureza e os animais, mas trouxe como
compensação e noção de grupo, que transmitia maior poder de resistência do que o indivíduo
isoladamente. O amor conjugal e o fraternal surgem nesse momento, segundo Rousseau.

Entretanto, a facilidade da vida em grupo trouxe outro problema: a ociosidade e a busca por algo que
desse sentido a vida, além do trabalho. Assim, o lazer se instituiu, porém, com o passar do tempo, o que
era comodidade passou a ser visto como necessidade e novos conflitos surgiram, fazendo com que o
homem ficasse mais infeliz pela privação das comodidades, do que feliz de possuí-las.

Assim, segundo Rousseau, as desigualdades entre os homens têm como base a noção de propriedade
privada e a necessidade de um superar o outro, numa busca constante de poder e riquezas, para
subjugar os seus semelhantes.

No estado de natureza, afirma Rousseau, o homem tinha uma vida essencialmente animal. A rude
existência das florestas fez dele um ser robusto, ágil, com os sentidos aguçados, pouco sujeito às
doenças, das quais a maioria nasce da vida civilizada. Sua atividade intelectual nestes tempos era nula:
“o homem que medita é um animal depravado”. Assim vivendo, o homem era feliz e suas únicas paixões
eram os instintos naturais, facilmente satisfeitos (sede, fome, reprodução sexual, preservação).

É, com efeito, o ponto capital da argumentação de Rousseau: a natureza não destinaria o homem
primitivo à vida em sociedade. Durante milhares de séculos talvez, o homem viveu solitário e
independente, e este estado era o elemento essencial de sua felicidade ou bem-estar. Portanto, só se
distinguiria dos animais por sua maior inteligência, pela consciência de ser livre e não ser submetido a se
desenvolver.

Após ter condenado o espírito de civilização moderna, Rousseau ataca a própria organização da
sociedade. A propósito de um novo concurso na academia de Dijon em 1753, que tinha por tema “qual é
a origem da desigualdade entre os homens e se ela é autorizada pela lei natural”, Rousseau afirma: a
liberdade do homem está cada vez mais ameaçada porque a desigualdade social é crescente. E procurar
remediar esta situação será o objeto do Contrato Social, no qual o autor não se propõe a estudar o
desenvolvimento histórico da escravidão e sim os fundamentos da desigualdade.

Segundo Rousseau, como visto acima, os homens exercem naturalmente seus instintos, não sendo nem
bom nem mau, mas um ser amoral. Isto significa que na natureza os homens não se agridem
mutuamente sem uma motivação, mas apenas por legítima defesa. Além do mais, a desigualdade surge
quando alguém cerca um lote de terra e diz “isto é meu”. Em razão disso, outros homens são levados a
fazer a mesma coisa e se reúnem ou associam-se para poder usufruir daquilo que a terra pode lhes
oferecer. Mas com isso também se cria um modo de sobrevivência organizada que exclui grande parte
dos homens dos benefícios da natureza. Agora, desprovido do seu alimento e de sua liberdade, por
causa da instituição da propriedade privada, o homem torna-se subordinado daqueles que a detém. A
propriedade faz perder a liberdade natural.

Cabe, então, restaurar o mínimo de liberdade ao homem civilizado. Em sociedade, há vícios que o
distanciam de sua natureza e repensar o modelo natural é um modo de aproximá-los novamente. Com
isso, pensa-se no Contrato, não para voltar ao estado natural, o que Rousseau acredita ser impossível,
mas para tentar diminuir as desigualdades entre os homens após o arbítrio da instituição da propriedade.
A natureza fez o homem livre. Mas a sociedade existe, “o homem nasceu livre e por toda parte se vê
agrilhoado”. Ao injusto contrato em que o forte subjuga o fraco, é preciso substituir por um novo contrato
que assegure a cada cidadão a proteção da comunidade e lhe permita vantagens da liberdade e da
igualdade. Enquanto alguns filósofos estudaram as formas históricas de governo, Rousseau meditou
sobre o que deve ser uma sociedade justa e, ao colocar seus princípios absolutos (liberdade e igualdade
natural), tirou daí suas conclusões de valor universal, que inspiraram a Revolução Francesa.

Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade, passaram a ser explicadas em função da


problemática instituição da propriedade privada. A segunda é a antecipação do que viria a ser o
pensamento crítico sobre a própria idéia de civilização, cuja expressão mais clara só viria a se consolidar
bem mais tarde, quando já avançado o século XX, e que se consubstanciaria na idéia de que os
progressos alcançados pelos homens ao longo do tempo, a própria civilização, por assim dizer, em si
mesma e na sua dimensão mais íntima, é malignamente ambígua, portadora de uma dimensão
destrutiva, que a faz perigosa e sempre virtualmente perversa.
O reconhecimento do papel decisivo do Segundo discurso e, em geral, da obra rousseauniana, na
conformação do imaginário crítico da modernidade pode ser expresso mais diretamente se dissermos
que Rousseau é o fundador das duas principais linhagens do pensamento crítico, que caracterizam essa
época histórica. Com relação à primeira delas, basta notar a óbvia vinculação do igualitarismo moral do
Segundo discurso à tradição socialista, a Babeuf,7 a Proudhon8 e ao dito socialismo científico de Marx e
seus herdeiros. No segundo caso, é preciso ver que o elogio da natureza e a denúncia da queda moral
provocada pelo surgimento da civilização – feitas tanto no texto aqui comentado, quanto no Discurso
sobre as ciências e as artes – é a peça de abertura da tradição na qual se enquadram tanto a sombria
meditação heideggeriana sobre a técnica, quanto a crítica da Escola de Frankfurt ao Iluminismo e à idéia
de dominação que lhe seria inerente. Neste caso, a tese fundamental é a de que o desenvolvimento das
capacidades e dos poderes técnicos inerentes à civilização se encontra na origem de um irremediável
conflito entre o homem e a natureza, cujos resultados são profundamente danosos a ambos.
É claro que o reconhecimento desses antecedentes conceituais e doutrinários não implica que os
pensadores que, sucedendo a Rousseau, constituíram essas duas grandes tradições do pensamento
crítico se tenham limitado a repetir-lhe as análises, ou que sequer concordem com as posições de
Rousseau. Na verdade, não se pode dizer nem mesmo que suas respectivas obras tenham
expressamente reconhecido o legado rousseauniano, pois o que vemos no mais das vezes é antes a
simples continuidade de uma mesma ordem de preocupações e de uma inspiração crítica que se mantém
reconhecível a despeito das muitas modulações. No caso do marxismo, aliás, isto é bem típico, pois não
obstante Engels, depois de citar longamente o Segundo discurso, tenha podido dizer que ali
"encontramos não só uma linha de pensamento à que corresponde exatamente a desenvolvida em O
capital, mas também toda uma série de giros dialéticos de que se vale Marx: processos por natureza
antagônicos, prenhes de contradições, contendo a transmutação de um extremo em seu contrário e,
finalmente, o ponto nevrálgico de toda a questão, a negação da negação"9, a verdade é que as
manifestações expressas de Marx sobre Rousseau são, no mais das vezes, sarcásticos reproches ao
caráter abstrato de sua crítica à sociedade capitalista e ao que há de parcial e ilusório no programa de
emancipação simplesmente política apresentado no Contrato social10. Do mesmo modo, é quase
impossível encontrar entre os autores da Escola de Frankfurt, ou na obra heideggeriana, mais do que
escassíssimas menções ao nome de Rousseau.Todavia, a despeito da falta de reconhecimento, a
verdade é que Rousseau ocupa uma posição fundadora dentro da tradição de pensamento em que os
pensadores recém aludidos se enquadram, admitam e queiram eles isso ou não.11
*
Pode-se dizer que os atos instituidores do que viria a ser o pensamento socialista, Rousseau os perfaz
principalmente na segunda parte do Discurso, quando aprofunda a análise sobre as origens do que ali é
designado como desigualdade moral, expressão que manifestamente abrange aspectos econômico-
sociais, jurídicos e institucionais das diferenciações existentes entre os homens.
O procedimento analítico adotado no Discurso é então o de uma cuidadosa reconstituição genealógica,
feita, como diz Rousseau expressamente, à distância da série de fatos históricos positivos, mas atenta à
seqüência lógica das mudanças pelas quais, em tempos e lugares diversos, os homens necessariamente
passaram durante o período de progresso histórico e avanço civilizacional. O que mais ressalta no
desdobramento dessa operação reconstrutiva é que tais avanços e progressos estiveram sempre
inextricavelmente associados ao agravamento da monstruosa desfiguração da vida social que é a
desigualdade. E esta última – entendida, como já mencionado, como desigualdade econômica, social e
jurídica – é geneticamente explicada pela instituição da propriedade privada, a qual é atribuída, convém
repetir, o papel determinante na constituição da história humana como um processo ao mesmo tempo
materialmente exitoso e moralmente catastrófico. A frase de abertura da segunda parte do Discurso diz,
com efeito, o seguinte:
O primeiro que, ao cercar um terreno, teve a audácia de dizer isto é meu e encontrou gente bastante
simples para acreditar nele foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras e
assassinatos, quantas misérias e horrores teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as
estacas e cobrindo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: "Não escutem a esse impostor! Estarão
perdidos se esquecerem que os frutos são de todos e a terra é de ninguém". (p. 80)
As causas, pois, de incontáveis crimes, guerras, assassinatos, misérias e horrores que desfiguram a vida
em sociedade tal como a conhecemos, se encontra, diz-nos o texto, nessa instituição perigosa e letal.
Para bem avaliar o conteúdo e a importância dessa tese é preciso ter bem presente, no entanto, o estado
em que, segundo Rousseau, se encontrava o homem em suas origens, antes que o progresso da
civilização o tivesse precipitado nessa nova e perversa situação. A verdade, segundo a lição do Discurso,
é que originalmente os homens eram iguais e viviam em uma situação de independência recíproca e
ausência de conflitos, protegidos pela interação rara e escassa, que naturalmente os afastava dos
sentimentos de autoconsideração, de estima ou desprezo pelos outros, assim como da distinção entre o
meu e o teu. Em tal condição, nesse estado de natureza, explica-nos o Discurso, "não tendo (...)
nenhuma espécie de relação moral nem deveres conhecidos, não podiam ser bons nem maus e não
tinham nem vícios nem virtudes" (p. 68). Além disso, continua o texto, nesse estado primitivo o
sentimento natural da piedade nos leva a "socorrer aqueles que vemos sofrer" e, assim, concorre "para a
conservação mútua de toda a espécie", desse modo ocupando "o lugar das leis, dos costumes e da
virtude, com a vantagem de ninguém sentir-se tentado a desobedecer à sua doce voz." (p. 72).
É, pois, esse estágio de inocência original que será rompido pela instituição da propriedade privada e da
desigualdade moral, para usar a terminologia do Discurso, a qual fará com que a desigualdade natural de
capacidades e talentos, insignificante no primitivo estado de natureza, passe a ter enormes
conseqüências para a vida social dos homens. Convém notar, porém, que a análise de Rousseau é muito
menos simples do que o esquemático resumo que dela estamos a fazer pode sugerir, eis que o Discurso
enfatiza que "a idéia de propriedade (...) não se formou de repente no espírito humano" (p. 80), devendo
ser vista antes como o resultado de uma evolução histórica lenta, cuja estrutura geral a segunda parte do
Discurso cuidará justamente de pôr à luz.
Reconstituir pormenorizadamente as análises rousseaunianas nos levaria demasiado longe, mas
podemos pelo menos registrar que, provido da capacidade de aperfeiçoar-se – capacidade de resto única
dentre todas as espécies que constituem o reino animal –, o homem primeiro faz de paus e pedras as
primeiras armas, depois, conforme às diferenças de terras e climas, faz da coleta e da caça as supridoras
de alimentos, vestes e abrigos, assim como descobre o modo de dominar o fogo. Nesse período têm
lugar também os primeiros processos de colaboração que ensejaram a formação da linguagem, a
colaboração em empresas como a caça coletiva, a construção de casas e, ainda, no plano psicológico, o
surgimento de novos sentimentos como o amor, do qual decorrerá forçosamente a criação de novas
realidades sociais, como a constituição das famílias. No início dessas transformações tem-se o que
Rousseau denomina A juventude do mundo, época em que os inegáveis progressos e melhoras
alcançados com a superação do estágio animal da humanidade primitiva, lançam, por outro lado, os
germens das perversões sociais do futuro.
A entrada firme na rota de perdição só veio a ter lugar, porém, posteriormente, quando, diz Rousseau,
foram deixados para trás os "trabalhos que um só podia fazer e as artes que não precisavam do concurso
de várias mãos" (p. 88) e "se percebeu que era útil a um só ter provisões para dois". Este passo
desastroso e decisivo, do qual resultou a própria instituição da propriedade privada como condicionante e
base da divisão social do trabalho, a humanidade o deu, diz Rousseau, quando foram inventadas as artes
da agricultura e da metalurgia, uma vez que o desenvolvimento de ambas depende da interação e da
cooperação entre os homens. A calamitosa conseqüência, diz o Discurso, é que "o ferro e o trigo que
civilizaram os homens e (...) puseram a perder o gênero humano." (p. 89)
Com efeito, prossegue a análise, "do cultivo das terras, seguiu-se necessariamente a sua divisão; e da
propriedade, uma vez reconhecida, as primeiras regras de justiça. Para dar a cada um o que é seu, é
preciso que cada um possa ter alguma coisa." (p. 90-91) O verdadeiro desastre só veio a ocorrer, porém,
quando, neste novo contexto moral e institucional, as desigualdades naturais entre os homens – as
desigualdades de força, destreza, astúcia e inteligência – adquiriram conseqüências que no estágio
anterior da história humana elas não podiam ter. Foi somente nesse novo estágio e sob essas novas
condições que aqueles que a natureza melhor dotara passaram a tirar vantagem dessas diferenças até
então insignificantes e passaram a acumular maiores riquezas e poderes, passando a dominar aos que,
desprovidos desses acúmulos de bens, passaram a deles depender. Assinale-se que o resultado desse
movimento foi, contudo, algo paradoxal, pois formou-se, assim, uma dependência mútua, eis que o rico
passa então a ter necessidade do pobre, tanto quanto este encontra no rico o seu socorro. Em
conseqüência, diz ainda o Discurso, é preciso que o rico procure incessantemente interessar aos pobres
de modo a fazer com que estes "encontrem alguma vantagem, de fato ou aparentemente, em trabalhar
para si próprio." (p. 92)
Aflito e inseguro com os inevitáveis e constantes antagonismos e confrontos decorrentes dessa nova
situação, o rico, diz-nos Rousseau, concebeu então a argutíssima idéia de formação de um poder
comum, cuja lógica era a de "empregar a seu favor as forças daqueles mesmos que o atacavam" (p. 95),
de onde então surgiram as primeiras formações estatais, as quais embora alegadamente erguidas para
defesa do interesse de todos, de fato estavam a serviço dos mais ricos e poderosos.
Ora, não precisamos continuar com a resenha das teses principais do Discurso para percebermos quão
evidente é a continuidade que há entre essas análises rousseaunianas e o que viria a ser no futuro mais
ou menos imediato a cultura e a tradição do moderno pensamento socialista e libertário. Isto quer dizer
que não é preciso mais do que uma evocação curta de alguns dos principais motes e textos do Discurso
para comprovar nossa afirmação inicial de que Rousseau ocupa uma posição fundadora com relação a
primeira das vertentes críticas da cultura política moderna.
*
Resta-nos, porém, a tarefa de mostrar que também com relação à segunda das tradições críticas da
modernidade – a que insiste no caráter perverso do conflito entre homem e natureza trazido pela
civilização enquanto tal – também encontra suas raízes no pensamento de Rousseau.
Um primeiro modo de comprovar esta segunda tese pode estar simplesmente no registro, por um lado,
dos elogios que Rousseau faz ao estado de natureza, à sua concepção de que ele é um estado de auto-
suficiência e inocência. A mesma idéia se encontra em suas críticas aos malefícios trazidos pelos
avanços da civilização – seja os malefícios objetivos, como a competição entre os homens, a submissão
de uns a outros, a exploração que vicia os processos de divisão social do trabalho e cooperação entre
eles; seja os subjetivos, como os sentimentos do amor próprio, da inveja, do ciúme, da ânsia de poder, da
cupidez, da dissimulação e da falsidade.
No entanto, é preciso enfatizar que Rousseau não alimenta o anelo de uma volta idílica à feliz situação de
que partimos, parecendo-lhe vão todo desejo de retorno ao estado de natureza. É em uma passagem de
outro dos escritos autobiográficos, de Rousseau, juiz de Jean-Jacques, que se encontra a formulação
mais clara desse ponto:
Mas a natureza não retroage e não voltaremos aos tempos da inocência e da igualdade uma vez que
deles nos tivermos afastado[...] Assim seu [de Rousseau] propósito não era o de reconduzir nem a povos
populosos, nem aos grandes Estados à sua primitiva simplicidade, mas somente o de deter, se fosse
possível, os progressos daqueles cuja diminuta dimensão e circunstâncias havia preservado de uma
marcha igualmente rápida para a perfeição da sociedade e para a deterioração da espécie. Estas
distinções precisavam ter sido feitas e não o foram. Obstinam-se em acusá-lo de querer destruir as
ciências, as artes, os teatros, as academias e de novo mergulhar o universo na barbárie dos primeiros
tempos, embora ele tenha, ao contrário, insistido na conservação das instituições existentes, sustentando
que a destruição delas só faria retirar os paliativos, conservando os vícios, substituindo assim o
banditismo à corrupção.12
Vê-se, assim, que a crítica de Rousseau aos malefícios da civilização, não estando comprometida com
nenhum projeto de retorno ao estado de natureza, nada tem de utópica. Há nela, por certo, uma espécie
de lamento, conjugado, porém, com o reconhecimento do que Derrida chama a lógica da suplência, isto
é, a idéia de que a aceleração do mal encontra seu anteparo e sua compensação na própria história.13 O
que é dizer, conforme o mesmo autor, que:
A história precipita a história, a sociedade corrompe a sociedade, mas o mal que as estraga tem também
sua suplência natural: a história e a sociedade produzem sua própria resistência ao abismo.14
Não se tome, porém, a visão de que certos valores naturais são preservados por instrumentos
institucionais que, por assim dizer, os protegem nem como um automatismo histórico, nem como uma
renúncia a um ponto de vista normativo na apreciação dos negócios humanos. Muito ao contrário,
Rousseau tem a construção desses remédios não apenas como dependente da decisão e da resoluta
ação dos homens, mas, ademais, como constitutivamente instáveis, sujeitos a novas quedas e
perversões. Assim, para dar um único exemplo, o contrato social e as leis – se forem realizados segundo
as regras e exigências que os fazem rigorosamente um contrato verdadeiramente social e leis que
autenticamente o sejam, e não, nos dois casos, suas freqüentes contrafações – podem sim reconstituir
entre os homens um sucedâneo equivalente à igualdade natural. Mas o Estado que resulta do primeiro, e
que é fonte e condição das segundas, encontra-se, porém, sujeito e ameaçado pela destruição, como,
aliás, Rousseau expressamente adverte no capítulo XI do Livro III do Contrato social, intitulado,
justamente, "Da morte do corpo político".
É preciso entender, no entanto, que nem o reconhecimento da inelutabilidade da saída do estado de
inocência original, nem a irreversibilidade desse processo, retiram da natureza, segundo Rousseau, a
condição de referência permanente quer para a ação política dos homens, quer para o desdobramento de
sua vida individual e afetiva. Neste sentido, a natureza e o natural são para Rousseau, indubitavelmente,
o metro permanente com base no qual é sempre possível tomar a medida da correção e do extravio em
que coletiva ou individualmente vivemos.
*
Antes de terminar esta apresentação, convém ainda alertar ao leitor deste livro extraordinário que, como
diz Jean Starobinski, renomado intérprete do Discurso, Rousseau o preludia solenemente15, eis que o
apresenta precedido de uma dedicatória, de um prefácio e de um exórdio, cada qual provido de interesse
próprio, mas que retardam a entrada no coração apaixonado e apaixonante do livro. Com efeito, a
primeira faz o elogio à terra natal de Rousseau, a ali idealizada Genebra; o segundo apresenta a
estrutura do ensaio e o método que será seguido; e por fim o exórdio ou intróito apresentará formalmente
o enunciado do problema que será tratado. Este início, que parece ter sido tornado lento
intencionalmente – ainda que não seja assim expressamente reconhecido –, parece, todavia, uma
preparação bem adequada aos arrebatamentos que virão, às intensidades emocionais, literárias e
conceituais que fizeram, que fazem e que farão deste ensaio um dos monumentos da inteligência
humana em qualquer tempo.

SCHILLER (1759 – 1805) A EDUCAÇÃO ESTÉTICA DO HOMEM: numa série de cartas

As Cartas de Schiller sobre a Educação Estética

O autor das “Cartas sobre a Educação Estética da Humanidade”, transmite, nesta sua obra, um
depoimento da sua própria vivência e inteligência, dando forma à sua interpretação do mundo humano,
apontando o rumo para uma nova humanidade, através de um estado estético que ele designou por
“Terceiro Caráter”.
Schiller mostra inequivocamente o seu entusiasmo pelo belo e pela arte, que ele relaciona intimamente
com a felicidade e com a política, defendendo a posse da cultura pelo homem, já que só ela o pode
encher na sua totalidade e, assim, se enobrecendo, atingirá a liberdade plena, em êxtase de maravilha
estética. Schiller considera que a necessidade material é um mal social, que destrói, sistematicamente,
os povos e a sua liberdade, pelo que a sua ascensão ao mundo das ideias e à razão levá-los-ia a
abandonar a realidade objectiva.
Ele defende que é necessário conseguir-se a harmonia dos indistintos e das forças, que congregam a
totalidade do carácter, por isso, entende que a liberdade provém da cultura estética, que existe pela união
do impulso objectivo e do impulso formal, na unidade das ideias, que tem a sua base no impulso do jogo
do homem, que o leva assim a tornar-se homem completo pela união da razão e da sensibilidade.
Nas suas primeiras cartas é aglutinante o tratamento de uma certa filosofia de estado, o qual é para
Schiller aquele em que o homem é natureza, interessando o estado que insere o homem como um ser
moral. É pela mediação entre estes dois estados que surge o Estado Estético que provém da
transformação do homem físico em homem moral, através do “Terceiro Caráter”.
É interessante sublinhar que neste último estado, admitido por Schiller, o comportamento moral é
natureza e os impulsos naturais concordam com a razão. O autor pretende que o estado deve ter como
objectivo fundamental a unidade, não desprezando, no entanto, a multiplicidade, devendo procurar
estabelecer um reino de moral, sem marginalizar o reino sensível dos indivíduos singulares.
Nas suas Cartas Schiller critica fortemente a sociedade do seu tempo e, apesar de ter sido galardoado
pela posição assumida antes da Revolução Francesa, não acolheu com entusiasmo os factos políticos,
passados na altura.
É duro nas suas considerações relativamente aos antagonismos que geram conflitos. Enaltece o homem
grego e o seu ideal, encontrando nele um conjunto de virtudes perfeitamente contrastantes com o homem
da sua época, que está alienado e fragmentado na sua individualidade pessoal.
Todavia, considera esta fragmentação como o meio adequado para a evolução da espécie, sendo pelo
equilíbrio que a felicidade se obtém, propondo que não nos devemos considerar degraus para
aproveitamento de gerações futuras porque são de sacrifício.
Acredita que o estado que chama de atual não pode remediar os males que causou nem que o estado
ideal possa gerar uma humanidade de moralmente perfeita, pois é esta que deve criar o Estado Ideal. O
estado deve abandonar por completo o barbarismo, a conflituosidade, padrões de perda do valor
humano, procurando melhorá-lo pela sublimação do poder estético, pela Arte. O mesmo Estado deve
exaltar o artista, atribuindo-lhe o estatuto de guia de certo grau de espiritualidade, que atinja o Bem e a
Verdade, através da Beleza.
O idealista não pretende a comunhão do espírito e da matéria, mas sim a separação da ideia da
realidade. Na opinião do autor, são a brutalidade física do selvagem e a decadência do bárbaro culto, que
sufocam a beleza. Para Schiller, a pessoa e o Estado são conceitos formativos da natureza humana, aos
quais correspondem dois impulsos fundamentais: o impulso material ou objetivo e o formal ou subjetivo.
O impulso material vem dos sentidos que o converte em matéria, e é através dele que despertam as
atitudes da humanidade que não se completam; o impulso formal provém da natureza racional do
homem, e que o leva à liberdade, ajudando-o a afirmar-se como pessoa e a libertá-lo do quotidiano,
fazendo com que ele ascenda a uma vida superior.
No impulso do jogo, a Beleza completa o homem pela união da sensibilidade e da razão. No fenómeno, o
belo é a forma viva e a beleza transforma-se em liberdade. Para se obter o equilíbrio entre o impulso
sensível e o formal é necessário que atue o impulso lúdico, o qual dá ao homem a liberdade ao
emancipar-se do natural e da razão.
Se tal impulso se desfaz, resultam duas classes de beleza: se a preponderância é da matéria verifica-se
uma beleza melodiosa; se é a forma que predomina, há uma beleza enérgica. Com a perda do equilíbrio
o homem também perde a liberdade, pois de um impulso fundamental se torna imperativo, o homem
sente-se coagido, violentado, porque a sua liberdade só existe na atuação conjunta das suas duas
naturezas.
O estado estético é o intermédio a esse equilíbrio, porque nele atuam conjuntamente a sensibilidade e a
razão, ou seja, a Beleza. Para Schiller, não é possível atingir-se a liberdade sem se enveredar elo
estético, através da beleza, porque só a Estética nos conduz ao infinito, ao absoluto. É a Beleza que
estabelece a totalidade do humanismo e, nesse sentido, só a educação estética pode dar à humanidade,
qualquer que seja o tipo de sociedade, a harmonia de que precisa e da qual o indivíduo é o seu suporte.
É a Beleza que une a sociedade, porque ela diz respeito a todos. Sob o aspecto político a liberdade e a
igualdade não provem um estado, como o resultado da Revolução Francesa, acrescentando na última
carta que no estado estético cada um é um cidadão livre.
Parece existir na obra de Schiller uma convergência especulativa da poesia e da moral, na qual o seu
ideal estético pode ser considerado como estrutura necessária ao estabelecimento de uma sociedade
política, onde a natureza humana deveria conter no seu seio o “Homem Estético”, isto é, aquele que se
pode tornar, ele mesmo, numa obra de arte, em forma viva, em “bela alma”.
O homem deveria elevar-se do meio físico, que o procura escravizar, ao estado lúdico em que ele é
soberano e coincidente no seu todo. Ao desligar-se da realidade e ao não subjugar-se aos seus efeitos,
conquista a liberdade pela arte, subindo a um Olimpo de Virtudes.
Da obra de Schiller deduz-se que a arte possui um estatuto normativo ideal, que culmina as suas
manifestações espirituais numa oposição à matéria destruidora da liberdade. Para se ser livre, basta sê-lo
espiritualmente e, por isso, nem as cadeias que limitam a acção do homem físico, nem as regras de um
Estado organizado prejudicam a liberdade de que um homem pode constantemente usufruir.
O homem deverá inverter o seu sentido final, colocando-se ao seu próprio serviço e retirando-se toda a
carga negativa com que contamina qualquer comunidade, mais ou menos predisposta a uma idolatria e,
distanciando tal contexto, ao homem surge uma liberdade que não é só dele, mas também de todos
quantos inspirados pela natureza, desta conseguindo obter, por representação, uma obra de arte.
E não será só o artista que o consegue, pois o homem comum é, também, agente, embora quase
inconsciente da beleza que o toma, o seu próprio corpo é uma exteriorização da beleza, uma obra de
arte, conforme afirma Schiller, só que, quando mergulhado nas massas humildes e brutais perde o seu
valor estético. O prazer estético estará assim naufragado num mar revolto de consciências anormais, e
quanto seria benéfico para o homem conseguir energia de tal tempestade, dignificando o seu
comportamento pelo abraçar do “Terceiro Caráter”.
O Estado deve estar subordinado aos ditames da moral, criando-se através do estético uma civilização
ideal. É necessária uma maior humanidade, não resultante de guerras ou revoluções anárquicas, mas
conseguida pela força da Moral. Schiller indica o rumo para tal, pela “Educação Estética”, talvez utópica,
mas premente num mundo pleno de contradições e de desgraças, não obstante os progressos da
técnica, bastando que o homem seja capaz de pôr à prova e ao seu serviço todos os dons que Deus lhe
deu.
As “Cartas” de Schiller são uma obra filosófica e a arte foi a primeira exteriorização cultural do homem. A
Estética é um caminho que nos conduz a uma felicidade moral, a uma compreensão da humanidade, a
uma intersubjetividade tolerante.

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