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TOMO I
UNICAMP
202
Ou seja, embora os caracteres determinem as ações, é só a partir das ações que se pode
conhecer os caracteres. Sendo a ação o elemento primordial na tragédia, conclui Aristóteles o
seguinte:
., ARISTÓTELES, op.cit.:74.
6
' Id, ibid., p. 75.
203
Sem ação não poderia haver tragédia, mas poderia havê-la sem caracteres ( ... ).Se,
por conseguinte, alguém ordenar discursos em que se exprimam caracteres, por bem
executados que sejam os pensamentos e as elocuções, nem por isso haverá logrado efeito
trágico; muito melhor conseguirá a tragédia que mais parcimoniosamente usar desses
meios, tendo, no entanto, o mito ou a trama dos fatos (50a23). 77
Há que se ressaltar (embora para alguns isso possa parecer óbvio), que não se deve
confundir caráter com agente, personagem. Com a afirmação de que é possível haver tragédia
sem caracteres, Aristóteles quer dizer que é possível haver tragédias com investimentos
mínimos na caracterização de personagens, não que possa haver tragédias sem agentes.
Caráter, para Aristóteles, ethos, na Poética, tem um sentido estreitamente moral, como se
compreende a partir da passagem extraída do Capítulo VI, onde o autor enuncia:
Caráter é o que revela certa decisão ou, em caso de dúvida, o fim preferido ou
evitado; por isso não têm caráter os discursos do indivíduo, em que, de qualquer modo,
se não revel e o fim para que tende, ou o qual repele (SOb 7) 78
Character is that which reveals moral purpose, showing what kind of things a
man chooses or avoids. Speeches, therefore, which do not make this manifest, or in
which the speaker does not choose or avoid anything whatever, are not expressive of
79
character.
Ou seja, o caráter se revela apenas quando expressa decisões, escolhas morais. Isso
quer dizer que só quando as ações ou os discursos demonstram explicitamente escolhas morais
(livre-arbítrio?) o caráter se define. De outra forma, quando o personagem simplesmente age,
sem demonstrar ponderação sobre o seu ato, não se pode falar de ethos, já que este não se
revelou explicitamente.
Esse entendimento da tragédia enquanto "imitação de ações" toma-se ma1s
compreensível quando passamos a ver a formulação aristotélica como um desvio em relação à
concepção platônica da tragédia enquanto "imitação de agentes". Ao esboçar esse desvio,
Aristóteles dá à tragédia uma legitimidade mais estética do que ética, já que as ações passam a
ser analisadas a partir das leis da verosimilhança e da necessidade. Como diz Eudoro de
Souza,
Aristóteles não nos deixa esquecer a preeminência da ação, não apenas em relação ao
caráter, mas também em relação aos demais elementos constitutivos da tragédia. Essa ênfase
na tragédia enquanto "imitação de ações" será reiterada ao longo de todo o texto, em diversos
contextos. Por exemplo, quando Aristóteles enumera as partes constituintes da tragédia no
Capítulo VI. Observe-se como a ação, o mito, na tradução de Eudoro de Souza, aparece como
primeiro constituinte:
É portanto necessário que sejam seis as partes da tragédia, que constituam a sua
qualidade, designadamente: mito, caráter, eloquência, pensamento, espetáculo e
melopéia (50a8) 81
Na tentativa de investigarmos com mais profundidade essa relação entre ação e caráter,
comecemos por acompanhar a construção da ação, tal como Aristóteles a compreende, como
"alma" da tragédia.
80
SOUZA op.cit.:60-6J.
81
ARISTÓTELES, op.cit.: 74.
205
Como se estrutura a ação trágica numa "tragédia perfeita"? Ou, de outra forma, como
se constrói uma ação de maneira a provocar o "efeito trágico" idealizado por Aristóteles?
Já foi visto que a ação significa o arranjo dos incidentes, a mimesis de uma praxis
séria, grave, e que essa ação, para ser bela, deveria observar algumas recomendações
fundamentais, entre elas, extensão e unidade. Essa referência á extensão e á unidade pode ser
melhor entendida quando se leva em conta que Aristóteles, como os gregos do seu tempo,
considera a beleza em relação a dois parâmetros: magnitude e ordem Diz o estagirita:
Além disto, o belo, - ser vivente ou o que quer que se componha de partes -,
não só deve ter essas partes ordenadas, mas também uma grandeza que nâo seja
qualquer. Porque o belo consiste na grandeza e na ordem (50b34). 82
A ação trágica, portanto, deve ser completa, formando um todo, com "princípio, meio e
fim" ( 50b26)83 e com certa magnitude, considerando-se como limite a seguinte ponderação:
"que nas ações uma após outra sucedidas, conformemente à verossimilhança e à necessidade,
se dê o transe da infelicidade à felicidade ou da felicidade à infelicidade (51a10) 84
Essa passagem requer dois comentários distintos. Por um lado, ela estabelece a
extensão ideal da tragédia: a ação, como dito anteriormente, deve ser longa o suficiente para
que se dê a mudança de fortuna, mas suficientemente curta para ser apreendida como um todo
artístico. Por outro lado, refere-nos a duas possibilidades de orientação com relação à mudança
de fortuna: a experiência trágica pode ocorrer numa trajetória que evolui da felicidade para a
infelicidade, ou, vivenciada a experiência trágica, a ação pode desenvolver-se em direção à
felicidade, o que significa que Aristóteles reconhece em seu texto as tragédias com finais
felizes. O importante, nos parece, é que tanto as tragédias de finais infelizes quanto aquelas do
tipo happy-end, sejam construídas a partir de temas graves, exibindo cenas de sofrimento e
dor, incitando a compaixão e o medo. Mais ainda que sejam cumpridas essas exigências,
82
ARISTÓTELES, op.cit.: 76
83
Id, ibid., p. 76
84
Jd., ibid, p. 77
206
Aristóteles assinala no Capítulo XIII que são mais trágicas aquelas ações que terminam em
desgraça:
Por isso erram os que censuram Euripedes, por assim proceder nas suas tragédias,
as quais, a maior parte das vezes, terminam no infortúnio. Tal estrutura, já o dissemos, é
a correta. A melhor prova é a seguinte: nas cenas e nos concursos teatrais, as tragédias
desse gênero mostram-se como as mais trágicas, quando bem representadas, e
Euripedes, se bem que noutros pontos não respeite a economia da tragédia, revela-se-nos
cenamente como o mais trágico de todos os poetas (53a22) 85
Fica mais uma vez patente a preocupação de Aristóteles com relação á produção do
efeito trágico. E essa preocupação não se limita aos finais das tragédias. Considerando-se a
estrutura da ação, Aristóteles condena enredos episódicos, ou seja, aqueles nos quais não há
uma seqüência necessária ou provável. "Unidade de ação", tal como resultará a formulação da
idéia, parece essencial: em uma tragédia perfeita, uma multiplicidade de enredos há de ser
evitada e mesmo em uma só ação, os episódios devem ser todos relevantes para o seu
desenvolvimento. Nas palavras de F.L.Lucas, na construção da ação,"( ... ) its incidents should
jollow jrom one another by a clear chain of causation, without coincidence and without
. l evance,86
trre .
A noção aristotélica de unidade de ação, pelo papel que irá desempenhar na teorização
do gênero trágico ao longo dos séculos, merece ser melhor compreendida. Em primeiro lugar,
diz Aristóteles o seguinte:
Uno é o mito, mas não por se referir a uma só pessoa, como crêem alguns, pois
há muitos acontecimentos e infinitamente vários, respeitantes a um só indivíduo, entre
os quais não é possível estabelecer unidade alguma. Muitas são as ações que uma pessoa
pode praticar, mas nem por isso elas constituem uma ação una.
Assim parece que tenham errado todos os poetas que compuseram uma
Heracleida ou uma Teseida ou outros poemas que tais, por entenderem que, sendo
Héracles um só, todas as suas ações haviam de constituir uma unidade.
Também Homero, assim como se distingue em tudo o mais, também parece ter
visto bem, fosse por arte ou por engenho natural, pois ao compor a Odisséia, não poetou
todos os sucessos da vida de Ulisses (... ) mas compôs em torno de uma ação una a
85
ld., ibid., p. 82
86
LUCAS. F.L !965: 82
207
Odisséia, - una, no sentido que damos a esta palavra, e de modo semelhante a Ilíada
(Sla16) 87
89
ARISTÓTELES. op.cit. :88
90
Jd., ibíd., pp. 87-8
91
Id., ibíd., p. 80.
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quem se imolavam os forasteiros. Que Orestes seja salvo, também isso é verossímil - os
espectadores sabem que sua irmã havia igualmente sido liberta no momento do sacrificio. Ou
seja, é possível discernir nessa trama uma linha de desenvolvimento que ordena causalmente
os episódios, tornando-os logicamente aceitáveis. Deve-se salientar, contudo, que essa lógica
poética, embora construída em relação à lógica do "mundo real", utilizando-se de seus
artificios mais racionais, por exemplo, de demonstrações, de induções, de deduções, serve-se
dessa mesma lógica para esgarçar a "realidade", incluindo em seus domínios quaisquer
verdades sugeridas pela imaginação humana, apenas conferindo-lhes traços de plausibilidade.
Considere-se, nesse sentido, como exemplo, que no momento de ser sacrificada, Ifigênia
desaparece diante dos olhos dos sacrificadores, sendo esse fato não apenas tido como
verossímil, mas ainda servindo de espelho para tornar verossímil o fato de ser Orestes liberto
do seu destino fatídico. Como diria Aristóteles, temos aí uma evidência de paralogismo,
quando uma ação é utilizada para justificar a outra, sendo que a primeira, embora desprovida
de fundamento racional, empresta sentido racional à segunda. Segundo o filósofo, na tradução
de Jaíme Bruna,
Foi sobretudo Homero quem ensinou aos outros poetas a maneira certa de iludir,
isto é, de induzir ao paralogismo. Quando, havendo isto, há também aquilo, ou,
acontecendo uma coisa, outra acontece também, as pessoas imaginam que, existindo a
segunda, a primeira também existe ou acontece, mas é engano. Por isso, se um primeiro
fato é falso, mas, existindo ele, um segundo tem de existir ou produzir-se
necessariamente, cabe acrescentar este, porque, sabendo-o real, nossa mente, iludida,
deduz que o primeiro também o é. 92
O fato de reconhecer que Homero foi quem ensinou aos outros poetas a "maneira certa
de iludir" demonstra que a ênfase de Aristóteles com relação á verossimilhança não é, ao
contrário do que se poderia chegar a supor, uma sentença restritiva acerca do universo poético,
mas sim outra de suas atitudes flexíveis em relação à poesia, sobretudo quando a
consideramos sob o pano de fundo das criticas de Sócrates e Platão acerca das ilusões criadas
pelas artes imitativas. A Poética, tal como a entendemos, seja por fundamentar -se na
preponderância da ação sobre o caráter, seja veiculando uma noção estética de "realidade",
92
Essa passagem da Poética pareceu-nos bem mais clara e ordenada na tradução de Jaime Bruna, sendo que em
essência, nada há que contrarie a versão de Eudoro de Souza. Cf, op.cit.: 47.
210
concede uma significativa autonomia às leis do universo poético. Na poesia, não importa a
mentira, importa saber mentir poeticamente.
Quando faz restrições ao universo poético, por exemplo, ao colocar um interdito em
relação ao irracional, Aristóteles assim se posiciona por não perder de vista nem a dimensão
concreta da produção teatral nem o polo receptor da tragédia. É justamente por considerar as
dificuldades de se representar no teatro cenas absurdas (estamos falando de um teatro no qual
os "efeitos especiais" são rudimentares, minimamente possíveis), que o filósofo sugere a
exclusão do irracional da ação representada: "não deveriam os argumentos poéticos ser
constituídos de partes irracionais; preferível seria que nada houvesse de irracional, ou, pelo
93
menos, que o irracional apenas tivesse lugar fora da representação (60a27)"
Isso não significa absolutamente que Aristóteles desconheça a dimensão sedutora do
maravilhoso. Pelo contràrio, ele não apenas reconhece, mas aceita essa dimensão na tragédia,
ressaltando apenas que o irracional, a fonte de onde se origina o maravilhoso, adequa-se com
mais propriedade à epopéia, que, por ser um gênero narrativo, torna esse elemento irracional
mais facilmente verossímil. Na tragédia, por depender sua ação de uma representação
concreta, levada a cabo por personagens, o irracional ameaça a verossimilhança. Dois
exemplos de episódios absurdos nas epopéias homéricas são citados por Aristóteles para
ilustrar que embora facilmente aceitáveis nas narrativas, uma vez submetidos à representação
dramática, esses episódios tomar-se-iam cômicos: um dos exemplos citados é o desembarque
de Odisseu em sua terra natal, quando os feácios depõem o herói e sua bagagem na costa de
Ítaca, sem que ele desperte (Odisséia, Canto XIII). O outro é a perseguição de Heitor na
Jlíada, no Canto XXII, quando Aquiles acena para que os gregos permaneçam parados, sem
desferir armas e sem ir ao encalço do inimigo, a fim de que a sua glória seja maior por agir
sozinho.
Diz a Poética: "( ... ) de preferir às coisas possíveis mais incríveis são as impossíveis
mas criveis" (60a26) 94 Na tradução de Butcher: "The poet should prejer probable
impossibilities to improbable possibilities" 95 Apesar disso, conclui Aristóteles, sem perder de
93
Voltamos à citar a tradução de Eudoro de Souza. Cf, op.cit.: 98.
94
Jd.. ibid., p. 98.
95
Cf BUTCHER, op.cít.: 36
211
vista a verossimilhança, uma vez introduzido o irracional na tragédia, a ele deve ser dado certo
traço de probabilidade. Novamente percebe-se que, apesar da ênfase nas leis da causalidade e
da necessidade, a verossimilhança para Aristóteles não diz respeito a uma mimesis fiel à fatia
de vida que inspira ou que contextualiza a ação dramática, mas, sim, a uma mimesís coerente
com a ação representada, havendo nessa representação, como vimos, lugar, inclusive, para o
irracional, desde que a ele seja dado traços de probablidade. Conclui Aristóteles:
96
ARISTÓTELES, op.cít.: IOI
212
A preocupação com a dinâmica teatral, além de uma concepção estética que privilegia
o artefato poético como um todo coerente e unificado são os principais motivos que justificam
a ênfase aristotélica na concentração de efeitos na tragédia, preocupação que se concretiza em
diversas recomendações: já vimos como, na concepção de Aristóteles, a ação trágica deve ser
una, ordenada em uma seqüência lógica, longa o suficiente para conter uma mudança de
fortuna, mas compactada para ser apreendida como um todo artístico. Essa linha de raciocínio
o leva a fazer uma observação factual: "a tragédia procura, o mais que possível, caber dentro
de um período de sol, ou pouco excedê-lo", enquanto a epopéia, diz, "não tem limite de
tempo" (49bll) 99
97
Comparando a tragédia e a epopéia, diz Aristóteles que "a tragédia pode atiugir sua finalidade, como a epopéia,
sem recorrer a mo,imentos, pois uma tragédia, só pela leitura, pode revelar todas as suas qualidades" (62al0), op.
cit.: 102.
98
Id., ibid., p. 97.
99
Jd., ibid., p. 73.
213
demandariam uma variação espaço-temporal, ao que tudo indica, impraticável para o teatro
grego. O fato de ser esse mito efetivo em cena legitima a habilidade do tragediógrafo de
condensar a narrativa mítica, fazendo uso de estratégías dramáticas (por exemplo, do relato de
mensageiros), para revelar fatos que não se enquadram nos limites da representação,
procedimento, aliás, comum a várias tragédias, a ponto de ser classificado como uma
convenção do teatro grego por alguns autores. Dentro desses limites impostos pelo espetáculo
teatral, está dramatizada apenas, no caso de Édipo Rei, a trajetória que o protagonista vivencia
já na condição de tirano, esposo de Jocasta e pai dos seus filhos, iniciando-se a ação in medias
res, com o diálogo entre Édipo e o sacerdote de Zeus sobre a praga que está assolando Tebas,
encerrando-se a peça logo após à cena em que Édipo pede a Creonte a sua própria condenação
ao exílio, quando o coro apresenta seu último lamento. Esse é o tempo do mythos. O terceiro
tempo assinalado numa tragédia seria o tempo do próprio espetáculo, ou seja, o tempo
concedido aos tragediógrafos para a encenação de suas peças.
Obviamente, a observação de Aristóteles com relação ao fato de dever a tragédia
limitar-se a "uma única revolução do sol" não diz respeito ao tempo que classificamos como
tempo da narrativa mítica - colocadas em uma sequência cronológica, as ações que
convergem para moldar a tragédia de Édipo começam antes mesmo do seu nascimento,
quando Laío é advertido por um oráculo que lhe antecipa as desgraças que à sua vida causaria
a vinda de um filho.
Sabendo-se que no século V a.C., três tragédias eram apresentadas a cada dia na
Grande Dionísia, seguidas ainda por uma peça satírica, parece claro que, pelo menos naquele
século, o tempo concedido para cada apresentação não poderia sequer aproximar-se de um
"periodo de sol", muito menos ultrapassá-lo. Ainda que se considere hipoteticamente que no
século em que vive Aristóteles, cada poeta poderia ter um "periodo de sol" para a encenação
de sua tragédia, não faz sentido pensar que o filósofo se daria ao trabalho de enunciar o óbvio,
que a tragédia deveria se esforçar para não exceder o tempo que lhe é concedido para ser
encenada.
Pelo exposto, somos levados a concluir que Aristóteles parece mesmo referir-se ao
tempo do mythos, da ação dramatizada, sugerindo que os incidentes que se desenrolam diante
215
de nossos olhos dêem a impressão de terem ocorrido em um "período de sol" 100 Tal
interpretação não apenas se adequa às repetidas recomendações da Poética com relação às leis
da verossimilhança, mas também permite-nos concluir que a observância dessa compactação
temporal contribui expressivamente para a concentração de efeitos na tragédia. A ação
efetivamente dramatizada em Édipo parece mesmo se desemolar em um único dia, ou melhor,
nenhum indício nos leva a concluir que a ação dramatizada nessa peça tenha outro
desdobramento temporal minimamente significativo: assim, em "um único período de sol"
parece ter Édipo decidido combater a praga, consultado Tirésias, defrontado-se com Creonte,
ouvido as revelações de Jocasta sobre os fatos que sucederam o nascimento de seu primeiro
filho e também sobre o assassinato de Laio. Na seqüência, Édipo teria recebido a visita de um
mensageiro, ouvido o relato de um pastor, reconhecido a verdade sobre sua vida, desistido da
luz dos seus olhos, sofrido com o suicídio de sua mãe-esposa e finalmente solicitado a Creonte
o seu próprio exílio. Da mesma forma em que a ação é extremamente compactada no tempo,
assim acontece com a dimensão espacial dessa tragédia, o castelo do tirano sendo o centro da
representação_
O fato de terem sido habilmente tecidos os episódios em Édipo Rei facilita o seu
enquadramento nessa dimensão espaço-temporal altamente compacta - não foi por acaso que
Aristóteles elegeu Édipo como tragédia exemplar - nela, tudo converge para o que chamamos
de "concentração de efeitos"_ Mas a compactação dessa dimensão espaço-temporal da ação
trágica não é prerrogativa de Sófocles. Exemplo valioso, porque explícito dessa estratégia
dramática de aproveitamento temporal máximo da ação trágica efetivamente dramatizada é a
Medéia, de Euripedes, tragédia na qual a desesperada mulher que intitula a peça suplica a
Creonte que lhe conceda "Um dia sól (._.) apenas hoje" - tempo fatídico, porque suficiente
para a ação trágica como bem o parece saber Aristóteles. Nesse resto de dia que lhe concede
Creonte, Medéia perpetra sua vingança terríveL Na versão carioca do mito, composta por
100
Como vimos no capítulo anterior, as tragédias gregas eram encenadas em um teatro ao ar-livre, à luz do sol de
primavera, o que dificultava uma representação "verossínúl" de ações que se revelassem ter acontecido à noite
ou que sugerissem intervalos de tempo mais longos, indicativos da passagem de dias. Vale ressaltar que
entendemos, por "um período de sol", ou "uma revolução do sol", como é traduzida a ex1Jressão de Aristóteles.
não um período de 24 horas eqruvalente ao movimento de rotação da terra como o interpretam alguns críticos,
mas como um intervalo aproximado de 12 horas em que hà luz do sol, portanto, um intervalo suficiente para que
a ação representada não se revele contraditória em relação ao cenário natural do teatro.
216
Chico Buarque e Paulo Pontes, ela dirá: "Prá mim, basta um dia, não mais que um dia, um
101
meio-dia. (...)Toda a sangria, todo o veneno de um pequeno dia!"
Essas reflexões sobre a compactação do tempo da ação trágica sugerida pela Poética
não nos devem permitir esquecer que os episódios que convergem para tomar significativa
essa ação efetivamente dramatizada estendem-se ao longo de uma cadeia temporal extensa, no
caso de Édipo, ultrapassando os limites que antecedem seu próprio nascimento, no caso de
Medéia, remetendo-nos ao tempo em que virgem ainda, conhecera Jasão enquanto este
procurava o "velo de ouro" que ela o ajuda a roubar, tendo sido este o primeiro de seus crimes
que alega ter cometido por amor ao marido, fato altamente significativo para uma clara
compreensão dos motivos de suas ações em cena.
Quando se tem em mente, por um lado, a distensão temporal e espacial da narrativa
mitica, por outro, a compactação dessa dupla dimensão na ação efetivamente dramatizada, não
se pode deixar de reconhecer que a observação de Aristóteles quanto ao tempo da tragédia é
mesmo uma recomendação prática, factual, sugestiva de sua preocupação com a concentração
de efeitos e com a verossimilhança, absolutamente não prescritiva com relação à praxis,
apenas voltada para a dimensão teatralizada dessa praxis, para o mythos e, o que é mais
importante, para o mythos de uma tragédia que se pretenda "perfeita"_
Nossa conclusão é que os conceitos prescritivos de "unidade de tempo" e "unidade de
lugar" atribuídos a Aristóteles pelo critico italiano renascentista Ludovico Castelvetro, em sua
obra Poetica d'Aristotle vulgarizzata e esposta (1570), embora tenham sido engessados,
tomado regras do fazer artístico, enquanto idéias não nos parecem absolutamente absurdas ou
desprovidas de fundamento e muito menos de sentido dramático. Sob a perspectiva aristotélica
de concentração de efeitos, parece haver, sim, uma recomendação na Poética com relação aos
cuidados com os limites determinados pela realidade teatral, o que não significa nem que não
existam tragédias gregas que desafiem esses limites, nem que isso não possa ser feito, desde
que o poeta encontre os meios de burlar essa limitação espaço-temporal do teatro sem ferir as
regras da verossimilhança.
Por tudo o que já argumentamos neste trabalho, o autor da Poética já deu provas de ser
muito mais flexível do que nos fazem supor as interpretações que das suas concepções fizeram
101
EUARQUE, C. & PONTES, P. Gota D'Agua., !975: 151-152.
217
grande parte dos seus analistas. Com relação especificamente às questões de tempo e lugar
acima discutidas, a dimensão factual das preocupações de Aristóteles perdeu-se com a
formulação de Castelvetro. Tendo sido articulados em nome do filósofo esses conceitos, o
classicismo francês os transformou em uma doutrina prescritiva rígida, normativa - a doutrina
das três unidades (ação, tempo e lugar), parâmetros que virão a se tornar dogma com relação
ao gênero trágico entre os autores desse período. A doutrina das três unidades será retomada
no capítulo sobre a ação trágica na modernidade. Por ora, parece suficiente dizer que entre a
recomendação aristotélica e o enrijecimento dessas noções como regras do fazer trágico
estende-se a condescendência dos gestos de Aristóteles em relação à poesia, como dito por
John Jones, "gestos largos e fáceis, mais que didáticos". Talvez seja importante pensar que
Aristóteles foi considerado por Dante "o mestre daqueles que sabem", mas, como bem
complementa F.L.Lucas, "only for those who know also what "master" means, and that a
102
teacher is nota tyrant."
Voltando ao texto original da Poética, outras características precisam ser consideradas
na estruturação da ação. Uma delas é o seu grau de complexidade. Aristóteles diz que a ação
pode ser simples ou complexa. Simples seria uma ação em que apenas se acompanha as
conseqüências de uma mudança de fortuna acontecida fora do drama, antes do início da ação
representada. Exemplo de uma ação simples é o Prometeu Acorrentado de Ésquilo, tragédia
que tem início já com o próprio Prometeu sofrendo o castigo que lhe determina Zeus. Durante
toda a ação da peça, apenas se acompanha o sofrimento daquele que foi castigado por ter
roubado o fogo dos deuses para dá-lo aos homens. A nossa leitura dessa tragédia revela que
sua dimensão alegórica é muito mais densa e profunda do que poderia sugerir a simplicidade
de sua organização estrutural. Contudo, sob esse aspecto "formalista" da concepção
aristotélica, embora comovente, suscitando o pathos, essa ação não é considerada como sendo
dramaticamente elaborada, já que não apresenta em cena os episódios que descambam para o
. . !03
trag~co.
102
LUCAS. F.L., 1965:17
103 Pareceimportante levar em conta que essa tragédia corresponde à primeira parte de uma trilogia da qual o resto
se perdeu. Considerando-se que nas trilogias a ação se desenvolve ao longo das três peças, embora cada uma
delas seja independente do .ponto de vista formal, é possível que uas tragédias que completam o sentido da ação
do Prometeu Acorrentado Esquilo tenha revelado um investimento mais efetivo na fabulação do que no pathos.
218
Dos mitos, uns são simples, outros complexos, porque tal distinção existe, por
natureza, entre as ações que eles imitam.
Chamo ação "simples" aquela que, sendo una e coerente, do modo acima
determinado, efetua a mutação de fortuna, sem peripécia ou reconhecimento; ação
"complexa", denomino aquela em que a mudança se faz pelo reconhecimento ou pela
peripécia ou por ambos conjuntamente.
É porém necessàrio que a peripécia e o reconhecimento smjam da própria
estrutura interna do mito, de sorte que venham a resultar dos sucessos antecedentes, ou
necessària ou verossimilmente. Porque é muito diverso acontecer uma coisa por causa de
outra, ou acontecer meramente depois de outra (52a 11) 104
104
ARISTÓTELES, op.cit.: 79.
105 Embora as traduções em lingua portuguesa representem graficamente o termo grego peripeteia como
"peripécia". o Professor Carvalho, no Conspecto Geral (Capitulo X) de sua Interpretação da Poética de
Aristóteles, oferece convincentes razões de ordem etmológica para se crer que a prosódia da palavra em
português deveria ser "peripeda" (cf op.cit.: 57)
106 ARISTÓTELES, op.cit.: 80.
219
estamos tentando não perder de vista a ênfase que o próprio Aristóteles coloca na ação e não
no caráter. Associar a peripeteia a uma inversão da intenção é investir em uma dimensão
psicológica talvez impensada por Aristóteles em sua construção teórica que privilegia a ação
na arte trágica.
Preferimos considerar a peripeteia como o tratamento dramático da inversão da
situação, uma estratégia para surpreender a audiência e com isso amplificar o efeito trágico, já
que este surgirá inesperada e repentinamente. Isso significa que, além de comovente, uma ação
trágica desse tipo é também artisticamente elaborada do ponto de vista estrutural, servindo-se
de um princípio estético que tem subsistido aos diferentes momentos da criação artística: a
ruptura com a inércia da expectativa.
Uma comparação entre as tragédias As Troianas, de Euripedes, e As Traquínias, de
Sófocles, pode ilustrar melhor o que temos tentado enunciar, já que a primeira se oferece
como exemplo de uma "ação simples" e a segunda apresenta uma estrutura complexa, tal
como idealizada por Aristóteles. Assim vejamos: as troianas, antes nobres senhoras, aparecem
já ao início da peça como escravas, capturadas que foram pelos gregos vencedores da guerra
contra Tróia. Isso quer dizer que embora a dimensão trágica da peça de Euripedes só seja
alcançada quando se considera essa mudança de fortuna que transformou a vida de tais
senhoras, tal mudança, repetidamente evocada ao longo da peça como motivadora de suas
muitas desgraças, não se origina de uma peripeteia, mas representa a conseqüência da guerra
de Tróia, esta não encenada na peça, ou seja, não representada na ação efetivamente
dramatizada, não aproveitada como artificio dramático desencadeador das catástrofes,
elemento inversor da situação. Em As Traquínias, ao contrário, Sófocles lança mão da
peripeteia para surpreender o público. Djanira, esposa de Héracles, tendo recebido a notícia de
que seu marido está para retornar do seu último "trabalho", aguarda-o ansiosa, cheia de amor e
esperança em uma vida nova, já que um oráculo havia previsto que em sendo Héracles bem
sucedido naquela jornada, não mais teria desafios a enfrentar. Entretanto, tendo descoberto,
dentre as cativas que antecederam Héracles no retomo ao lar, uma jovem que o marido havia
tomado por amante e que haveria de compartilhar o seu próprio ambiente doméstico, Djanira
faz uso de um manto encantado, que teria recebido de um titã, enviando-o a Heracles como
220
presente. Ao se envolver no manto que haveria de fazê-lo recobrar a paixão por Djanira,
Héracles reconhece-se como vítima de um terrível amuleto que o envenena, causando a sua
morte. Sem dúvida, essa inversão é um poderoso ingrediente na tessitura da ação na tragédia
de Sófocles.
Claro que algumas vezes, a inversão da situação coincide com a inversão da intenção
do agente causador da catástrofe, como no caso de Djanira, mas isso só se aplica quando o
erro trágico for involuntário, ou seja, quando a ação tem efeitos contrários ao que o agente que
a praticou esperava, caso em que a inversão da situação coincide com a inversão de sua
intenção ou de sua expectativa. Compreendida como inversão da situação, ou seja,
considerada como estratégia dramática voltada para promover o elemento surpresa, portanto,
para reforçar o "efeito trágico", a peripeteia se adequa tanto à catástrofe desencadeada por erro
involuntário quanto àquela causada voluntariamente. Isso significa que o aproveitamento
crítico desse conceito se toma maior quando considerado em seu sentido situacional de ação e
não de intenção.
A anagnorisis, o "reconhecimento" de alguma verdade antes desconhecida, alcança
seu efeito máximo quando coincide com a peripeteia, diz Aristóteles, sendo importante que
ambos, peripeteia e anagnorisis, como ele acrescenta, resultem " (. .. ) da própria estrutura do
mito, e não do deus-ex-machina. (54a33)" 107 Assim define Aristóteles a anagnorisis:
107
Jd., ibid. p. 85
108
Jd. ibid, pp. 85-87.
221
1
'"'Parece interessante observar que Aristóteles insiste em oferecer exemplos de reconhecimento diretamente
extraídos das epopéias, juntamente eom exemplos oriundos de tragé<lias, o que mais uma vez corrobora o caráter
fllexível de seu pensamento no tocante à estrutura trágica.
no ARISTÓTELES. op.cit.: 86-87.
222
Pelo exposto nessa seção, é possível concluir que a Poética recomenda que a ação
trágica em uma tragédia perfeita deve ser una, portanto, estruturada em tomo de um eixo
centralizador, concentrada e verossímil, desenvolvendo-se de forma "complexa", através de
uma peripeteia, isto é, sofrendo um processo de inversão, de preferência coincidente com um
processo de reconhecimento, a anagnorisis, ambos favorecedores do elemento surpresa que
caracteriza uma situação inesperada.