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Introdução

O presente trabalho visa comparar o herói trágico em Hamlet de Shakespeare e


na tragédia grega clássica, à partir de suas características descritas e analisadas em “A
poética” de Aristóteles.
Para tanto, será apresentada inicialmente as características essenciais da tragédia grega
clássica, de acordo com Aristóteles, de forma a fornecer um pano de fundo a esta
análise.
A tragédia é, segundo o autor, uma imitação de uma ação, com determinada
duração, completa e de caráter elevado, executada por meio de atores e não apenas da
narrativa, sendo capaz de suscitar piedade e terror, com a purificação destas emoções.
(2003, pág.110) É fundamental perceber que, para ele, é a ação representada o centro da
tragédia, e não as personagens representadas, em seu caráter e pensamentos. Na tragédia
clássica, o caráter da personagem é dado e, neste gênero, o herói a ser representado é o
homem superior, tendo em vista que dos homens inferiores se ocuparia a comédia.
A composição da tragédia é dividida em seis partes, sendo elas mito, caráter,
elocução, pensamento, espetáculo e melopeia. Dentre estas, Aristóteles afirma ser a
mais importante o mito, que consiste na composição dos atos, uma vez que “(...) a
tragédia não é a imitação de homens, mas de ações e de vida, de felicidade (e
infelicidade; mas, felicidade) ou infelicidade reside na ação, não uma qualidade.” (2003,
pág. 111)
O caráter não determina a sorte do herói, visto que isto somente pode ser
determinado pelas ações. Por isso, as personagens tem por finalidade não imitar o
caráter mas sim para realizar ações. Afirma ainda o autor que “Sem ação não poderia
haver tragédia, mas poderia havê-la sem caracteres.” (2003, p. 111)
O mito pode ser classificado em mito simples (em que a mudança de sorte se dá
sem reconhecimento ou peripécia) e mito complexo (em que há a presença de um ou
ambos os elementos).
A peripécia consiste na “mutação dos sucessos no contrário(...)” (2003, p.118) e
o reconhecimento é “(...) a passagem do ignorar ao conhecer, que se faz para a amizade
ou inimizade das personagens que estão destinadas para a dita ou para a desdita.” (2003,
p.118)
Há ainda o elemento qualitativo catástrofe, que consiste em “(...) uma ação
perniciosa e dolorosa, como o são as mortes em cena, as dores veementes, os ferimentos
e mais casos semelhantes.” (2003, p. 119)

O herói trágico das tragédias clássicas e de Hamlet

“A Antiguidade via os acontecimentos


dramáticos da vida humana
preponderantemente na forma das
mudanças de fortuna que irrompiam de fora
e de cima por sobre o homem; ao passo que
na tragédia elisabetana, a primeira forma
peculiarmente moderna da tragédia, é muito
maior o papel desempenhado pelo caráter
singular do herói como fonte do seu
destino.” (AUERBACH, 1976, pág. 283)
De acordo com Aristóteles
Como a composição das tragédias mais belas não é simples, mas
complexa, e além disso deve imitar casos que suscitam o terror e a
piedade (porque tal é o próprio fim desta imitação), evidentemente se
segue que não devem ser representados nem homens muito bons que
passem da boa para a má fortuna – caso que não suscita terror nem
piedade, mas repugnância - , nem homens muito maus que passem da má
para a boa fortuna, pois não há coisa menos trágica, faltando-lhe todos os
requisitos para tal efeito; não é conforme aos sentimentos humanos, nem
desperta terror ou piedade. O mito também não deve representar um
malvado que que se precipite da felicidade para a infelicidade. Se é certo
que semelhante situação satisfaz os sentimentos de humanidade, também
é certo que não provoca terror nem piedade; porque a piedade tem lugar a
respeito do que é infeliz sem o merecer, e o terror, a respeito do nosso
semelhante desditoso, pelo que, neste caso, o que acontece não parecerá
terrível nem digno de compaixão.
Resta, portanto, a situação intermediária. É a do homem que não se
distingue muito pela virtude e pela justiça; se cai no infortúnio, tal
acontece, não porque seja vil e malvado, mas por força de algum erro; e
esse homem há-de ser algum daqueles que gozam de grande reputação e
fortuna, como Édipo e Tiestes ou outros insignes representantes de
famílias ilustres. ( 2003, P. 120)
Neste quesito, podemos afirmar que o herói trágico em Hamlet, assemelha-se ao
herói trágico, pois o mesmo é princípe, e portanto de origem nobre, e goza de grande
reputação, o que fica evidente nas preocupações do rei acerca da afinidade do povo para
com Hamlet.
“REI: (...) É grande o amor que a gente comum tem pelo príncipe.
O povo, mergulhando em afeição todas as faltas dele,
Como a fonte que transforma o lenho em pedra,
Converteria suas cadeias em relíquias; e minhas flechas
De hastes muito leves pra vento tão forte,
Não atingiriam o alvo onde eu mirasse
E voltariam todas sobre mim. (SHAKESPEARE, s/d, pá.90)
Entretanto, há que se ressaltar que, embora seu herói seja nobre, há uma mistura
entre o trágico e o cômico na composição da personagem. Não há uma separação rígida
entre tragédia e comédia, de sorte que na tragédia há elementos cômicos que se alternam
ou até mesmo se imbricam em cenas trágicas.
De acordo com Auerbach (1976, p.280-281)
O trágico e o cômico, o sublime e o baixo estão entrelaçados
estreitamente na maioria das peças que, pelo seu caráter de conjunto, são
trágicas, sendo que para tanto trabalham em conjunto diversos métodos.
Enredos trágicos, nos quais ocorrem ações capitais ou públicas ou outros
acontecimentos trágicos, alternam com cenas cômicas populares ou
gaiatas que estão ligadas, por vezes estreitamente, por vezes mais
frouxamente; ou, nas próprias cenas trágicas aparecem, ao lado dos
heróis, bufões ou outros tipos cômicos, que acompanham, interrompem e
comentam à sua maneira as ações, os sofrimentos e as falas das
personagens principais; ou, finalmente, muitas personagens trágicas têm
em si próprias a tendência para a quebra de estilo cômica, realista ou
amargamente grotesca.
Em Hamlet, por exemplo, há a alternância, em certos momentos, entre gracejos
indecentes e o lírico, conforme apontado por Auerbach e perceptível em cenas como a
que Hamlet e Ofélia assistem a peça dos atores encomendada por Hamlet
HAMLET: Senhora, posso me enfiar no seu colo? (Deita-se aos pés de
Ofélia)
OFÉLIA: Não, meu senhor.
HAMLET: Quero dizer, pôr minha cabeça no seu colo?
OFÉLIA: Sim, meu senhor.
HAMLET: Achou que eu estava dizendo coisa que não se reputa?
OFÉLIA: Não penso nada, meu senhor.
HAMLET: Boa coisa pra se meter entre as pernas de uma virgem.
(SHAKESPEARE, s/d, pág. 57)
Se na tragédia clássica o caráter da personagem é dado de antemão e não é o
foco da imitação, em Hamlet podemos perceber algumas cenas que concorrem não
diretamente para a ação ou para o mito, mas sim delineiam de forma mais clara o caráter
da personagem principal, do herói trágico. A presença de enredos secundários auxilia na
formação deste quadro, o que diferencia o herói trágico clássico do herói trágico em
Hamlet. Afirma Auerbach que
(...) o caráter do herói é muito mais exata e multiplamente formulado na
tragédia elisabetana, sobretudo em Shakespeare, do que nas tragédias
antigas, e tem uma parte mais ativa na formação do destino. A diferença
pode, porém, ser entendida de outra forma, dizendo que a concepção do
destino na tragédia elisabetana é, ao mesmo tempo, concebida com maior
amplidão e mais estreitamente ligada ao caráter da personagem do que na
tragédia antiga. Nesta última, o destino não significa nada além do
contexto trágico do enredo atual, a trama presente, dentro da qual a
personagem se encontra em cada caso. (...) Graças a multiplicidade dos
temas e à notável liberdade de movimentos do teatro elisabetano, são
mostrados nitidamente, em cada caso, a atmosfera toda especial, as
condições de vida, a pré-história das personagens; o curso dos
acontecimentos no palco não mais se limita rigorosamente ao desenrolar
do conflito trágico, mas há conversações, cenas e personagens que a ação
propriamente dita não requer necessariamente; averiguamos, assim,
muita coisa a mais acerca das personagens principais; forma-se um
conceito de sua vida normal e do seu caráter peculiar, independentemente
da trama na qual se encontram presos no momento. (AUERBACH, 1976,
pág. 284)
Em Hamlet, embora exista o projeto de vingança, incitado pela aparição do
fantasma do Rei Hamlet a seu filho Hamlet, este hesita por diversos momentos na
realização do ato, seja inicialmente em virtude de sua dúvida acerca da veracidade das
revelações feitas pelo fantasma do pai (que ele resolve com a peça de teatro e a reação
do rei), seja no momento em que, ao encontrar o rei ajoelhado, rezando, decide-se por
não cumprir seu destino naquele momento por julgar que a vingança não se cumpriria
pelas condições de morte impostas a seu pai e a que seria imposta ao atual rei.
O destino de Hamlet (a vingança do assassinato de seu pai) se cumpre apenas
devido a outras circunstâncias, que envolvem a vingança de Laertes contra ele pela
morte de Polônio, e em decorrência da articulação entre Laertes e o rei para a morte de
Hamlet. É justamente a falha do planejado nesta articulação (a mãe de Hamlet bebe o
veneno e as armas se trocam de forma que Hamlet usa uma envenenada contra Laertes e
por fim contra o rei) que possibilita a realização de sua vingança e também de seu fim
trágico. Desta forma, embora o destino de Hamlet se cumpra, a as ações se encaminhem
para tal, seu caráter, sua disposição real para o cumprimento de seu destino aparece
apenas ao fim da peça, modificado por força das circunstâncias, diferindo do herói
trágico clássico em que seu destino é, de certa forma, estabelecido de antemão, não
cabendo espaço ao caráter do herói na consecução de seu destino.

Referências Bibliográficas

ARISTÓTELES. Poética. Imprensa Nacional- Casa da Moeda, 2003.


AUERBACH, Erich. O príncipe cansado. In: Mimesis: a representação da realidade na
literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1976. p. 277-297
SHAKESPEARE, W. Hamlet. Tradução de Millôr Fernandes. s/d. Disponível em
http://www2.uol.com.br/millor/

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