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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


DEPARTAMENTO DE LETRAS
DISCIPLINA: Clássicos da Literatura Medieval e Moderna
ANO-PERÍODO: 2022.1 (Manhã)
Prof. Francisco Fábio Vieira Marcolino
Discente: Giovana Victoria Fernandes Mascarenhas

A PERSONAGEM HAMLET: EXISTENCIALISMO,


INTERPRETAÇÕES E RELEVÂNCIA PARA A
ATUALIDADE
A PERSONAGEM HAMLET: EXISTENCIALISMO, INTERPRETAÇÕES E
RELEVÂNCIA PARA A ATUALIDADE

Breve análise teórica

Este ensaio pretende traçar relações e interpretações para a atualidade em "Hamlet", peça
teatral e tragédia moderna do aclamado dramaturgo inglês William Shakespeare. Escrita
entre 1599 e 1601, a história se passa na Dinamarca, onde o príncipe Hamlet planeja vingar o
assassinato de seu pai, o rei, pelo seu tio Cláudio que o envenenou, tomou o trono e casou
com a rainha, mãe de Hamlet. Antes de partir para análise e discussão, cabe apresentar alguns
conceitos teóricos do gênero dramático, presentes na obra. Segundo ensaio de Décio de
Almeida Prado "A personagem no teatro", presente no livro "A personagem de ficção",
existem três formas de demonstrar o interior de uma personagem no teatro: o aparte, o
confidente e o monólogo. O aparte é identificado quando a personagem se dirige para o
público, ela está consciente da plateia e por vezes dialoga com ela, ocorrendo uma quebra da
quarta parede e tornando o público ciente de pensamentos não expostos a outras personagens.
Já o confidente, seria o relato íntimo para outra personagem, sendo esta sua confidente,
ocorrendo revelações indiretas para o público. Enquanto o monólogo, diferencia-se por ser
uma conversa da personagem consigo mesma em voz alta, não referindo-se ao público, visto
que não está consciente dele. Nesse sentido, na obra shakespeariana, destaca-se o uso dos
monólogos, muito recorrentes na personagem Hamlet para a externação de seus conflitos
interiores e dúvidas filosóficas-existenciais que serão aprofundadas posteriormente.
Trazendo outro ponto teórico importante, para Staiger, a tensão dramática é elemento
primordial para que o leitor atenha-se à trama. Entre suas formas de expressão estão o pathos,
distância entre o que é representado e o público com objetivo de intensificar a atenção e
emoção do leitor e o estilo problemático, que vai girar em torno de um problema ou ideia,
levantando uma questão que vai provocar expectativa de resposta no leitor, também
prendendo-o à trama. Essas estratégias podem ser utilizadas isoladamente em uma peça ou
podem ser combinadas, porém, em Hamlet, verifica-se de forma significativa o pathos por
meio da vingança de Hamlet, anunciada e inflamada após a personagem descobrir que seu pai
havia sido assassinado pelo irmão. Nesse sentido, essa vingança é prorrogada para o final da
peça, cumprindo o objetivo de criar ânsia e expectativa no leitor que deseja o desfecho desse
conflito. Tratando dos elementos fundamentais do texto dramático, expostos no livro "Teoria
literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas", são eles: ação, diálogo,
personagem, espaço/tempo, conflito dramático, fábula e intriga. Interessa citar os elementos
personagem e conflito dramático que me chamaram mais atenção na peça. Primeiramente, as
personagens são de extrema relevância e centralidade para qualquer texto dramático, mas a
personagem Hamlet na tragédia de Shakespeare cumpre um papel de intensidade nunca
observada por mim em nenhuma outra obra. Apesar de serem características do gênero
dramático a objetividade e foco nas ações, os monólogos do príncipe dinamarquês permitem
uma extraordinária conexão com a subjetividade da personagem, exatamente por tratarem-se
de temas tão universais e inerentes à condição humana, e por isso, para além do enredo e
ações dramáticas, a dor externalizada por Hamlet torna-se o mais encantador da obra, o que
justificaria a sua perpetuação como cânone da literatura, através de inúmeras gerações. Uma
análise da personagem pode ser feita com base nas questões: quais o seu objetivos? Quais os
seus obstáculos? O que ela está disposta a fazer para superá-los? Com o foco na personagem
principal, é possível dizer que seu objetivo é vingar a morte nefasta de seu pai. Seus
obstáculos são seus princípios éticos e morais, primeiramente demonstrados na dúvida em
relação à veracidade da revelação feita pelo espírito, por isso, ele precisaria de uma prova
para poder se vingar, pois não mataria um inocente. Porém, Hamlet monta um plano para
superar esses obstáculos: a apresentação de uma peça teatral, (interessante metalinguagem),
que encenaria o assassinato de um rei pelo seu irmão, e as reações do rei Cláudio fariam com
que ele próprio se denunciasse como assassino. Após observar essa reação, Hamlet poderia
legitimar seu desejo de assassinar o tio. Essa análise liga-se também ao conflito dramático na
peça, este caracterizado em geral pela divergência de vontades na história, gerando
manipulações para que se atinja determinado objetivo. Tomando Hamlet como exemplo, há
um príncipe que deseja punir seu tio pelo crime cometido, enquanto o tio pretende manter o
ato em segredo, manter-se no poder e continuar enganando a todos os seus súditos. Logo,
ocorrem manipulações por ambas as partes para atingirem seus objetivos, atiçando a
curiosidade daquele que lê ou assiste à peça. Percebe-se que o conflito em Hamlet é
principalmente um choque de interesses de uma personagem contra outra, mas também pode-
se notar um conflito de Hamlet com ele mesmo, ao questionar seus próprios desejos e colocar
em contraponto sua vingança e sua moralidade.
Monólogos e diálogos de Hamlet para o século XXI

Enfim, com esta breve análise da obra dentro de alguns conceitos teóricos, pode-se entrar, de
fato, numa discussão sobre as questões filosóficas-existenciais levantadas pela personagem
Hamlet, a partir de subjetividades e pontes para o século XXI. Seu primeiro monólogo
encontra-se no ato III cena I, após Hamlet ter a revelação do assassinato pelo espírito de seu
pai. Na cena, o príncipe anda pelo corredor do castelo e faz as seguintes reflexões:

HAMLET: Ser ou não ser, eis a questão.


Será mais nobre sofrer na alma
Pedradas e flechadas do destino feroz
Ou pegar em armas contra o mar de angústias,
E, combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer; dormir;
Só isso. E com o sono, dizem, extinguir
Dores do coração e as mil mazelas naturais
A que a carne é sujeita; eis uma consumação
Ardentemente desejável. Morrer, dormir,
Dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo!
Os sonhos que hão de vir no sono da morte
Quando tivermos escapado ao tumulto vital
Nos obrigam a hesitar: e é essa reflexão
Que dá à desventura uma vida tão longa.
Pois quem suportaria o açoite e os insultos do mundo,
A afronta do opressor, o desdém do orgulhoso,
As pontadas do amor humilhado, as delongas da lei,
A prepotência do mando, e o achincalhe
Que o mérito paciente recebe dos inúteis,
Podendo, ele próprio, encontrar seu repouso
Com um simples punhal? Quem agüentaria fardos,
Gemendo e suando numa vida servil,
Senão porque o terror de alguma coisa após a morte,
O país não descoberto, de cujos confins
Jamais voltou nenhum viajante, nos confunde a vontade,
Nos faz preferir e suportar os males que já temos,
A fugirmos pra outros que desconhecemos?
E assim a reflexão faz todos nós covardes.
E assim o matiz natural da decisão
Se transforma no doentio pálido do pensamento.
E empreitadas de vigor e coragem,
Refletidas demais, saem de seu caminho,
Perdem o nome de ação.

Primordialmente, vale lembrar o impacto cultural da frase "ser ou não ser, eis a questão",
extremamente referenciada em outras obras artísticas como representante de Hamlet ou até do
teatro por si só. Interessante como "ser ou não ser" é colocado como uma questão, mas será
que existe a opção do "não ser"? O suicídio é colocado como uma alternativa. Seria mais
nobre prosseguir no sofrimento terreno ou acabar de vez com as angústias? Por que
insistimos em viver? Por que há tanto medo da morte? A personagem transmite seu desejo de
simplesmente deixar de existir, de alcançar a paz do sono profundo, de ser nada. Trazendo
para a atualidade, em meio ao sistema capitalista, em meio às nossas vidas aceleradas e
robotizadas, é muito fácil se identificar com essas questões. Mas é exatamente a incerteza do
pós vida, o desconhecimento do que virá (se algo virá), que faz o ser humano persistir no
conforto de um sofrimento conhecido ao invés de arriscar um sofrimento desconhecido. E
assim, para Hamlet, o ser humano mostra o tamanho de sua covardia. Nota-se uma reflexão
atemporal e inerente a toda a humanidade pelos mais diversos motivos, mas fazendo uma
leitura subjetiva, após dias seguindo rotina sem descanso, é comum vir a mim o pensamento
de "afinal, o que estou fazendo nesse mundo?" seguido com a vontade de sumir, não no
sentido suicida, mas de parar tudo por um tempo, de me desligar da pressão de existir.
Mesmo sendo um contexto bastante diferente, o monólogo analisado revela o peso sentido
pela personagem por existir em um mundo tão cruel, crueldade manifestada dentro de sua
própria família, a dor da personagem que perdeu seu pai precocemente, morto de forma
nefasta, e ainda precisa conviver com o assassino, que casou-se com sua mãe. A vida de
Hamlet torna-se um caos, e por isso, ele não consegue enxergar mais nada além de caos no
mundo, ele não vê propósito. A seguir, seu diálogo com Ofélia revela um ponto a mais: a
culpa e o auto julgamento moral.

HAMLET: (...) Sou arrogante, vingativo, ambicioso; com mais crimes na consciência do que
pensamentos para concebê-los, imaginação para desenvolvê-los, tempo para executá-los. Que fazem
indivíduos como eu rastejando entre o céu e a terra? Somos todos rematados canalhas, todos! Não
acredite em nenhum de nós.

Infere-se nessa fala que Hamlet maquinava formas para matar seu tio, ele tinha "crimes na
consciência" grandiosos demais para concebê-los, desenvolvê-los ou executá-los, talvez até
por parte da personagem tentar bloquear esses pensamentos de acordo com seu julgamento
moral, resultando numa forte depreciação de si e de todos os homens que não merecem
confiança. De volta à questão da atualidade, os temas de despropósito, desejos, moralidade e
culpa relacionam-se intrinsecamente às nossas vidas, também em relação ao sistema
capitalista. Se um indivíduo não vê propósito em seu trabalho, ele não vai mais querer
trabalhar, entretanto, vivemos em um sistema que cobra constante produtividade, gerando
culpa. Se um indivíduo não vê propósito em sua vida ele também sentirá culpa e se
depreciará, pois o sistema cobra constante felicidade. O monólogo de Hamlet também dialoga
com o aclamado filme de ficção científica "Tudo em Todo Lugar ao mesmo Tempo", a partir
da personagem Jobu Tupaki, que após um experimento científico desastroso tem sua mente
fraturada e expandida, a ponto de tornar-se consciente de todas as dimensões e estar presente
em todos os lugares ao mesmo tempo. Após atingir esse conhecimento universal, a anti-
heroína não encontra sentido na existência e deseja se autodestruir para acabar com o
sofrimento desse despropósito. Considerando que trata-se de um filme de 2022, pode-se
observar como os temas discutidos em Hamlet perpetuam-se infinitamente, afinal, a tragédia
inevitável da vida levanta questões que nunca serão decodificadas pela humanidade, daí a
imortalidade da filosofia.
O segundo monólogo a ser analisado encontra–se no ato IV, cena IV:

HAMLET: Todos os acontecimentos parecem me acusar,


Me impelindo à vingança que retardo!
O que é um homem cujo principal uso e melhor aproveitamento
Do seu tempo é comer e dormir? Apenas um animal.
É evidente que esse que nos criou com tanto entendimento,
Capazes de olhar o passado e conceber o futuro, não nos deu
Essa capacidade e essa razão divina
Para mofar em nós, sem uso. Ora, a não ser por esquecimento animal,
Ou por indecisão pusilânime,
Nascida de pensar com excessiva precisão nas conseqüências,
Uma meditação que, dividida em quatro,
Daria apenas uma parte de sabedoria
E três de covardia, eu não sei
Por que ainda repito: - "isso deve ser feito"
Se tenho razão, e vontade, e força e meios
Pra fazê-lo. Exemplos grandes quanto a terra me incitam;
Testemunha é este exército, tão numeroso e tão custoso,
Guiado por um príncipe sereno e dedicado,
Cujo espírito, inflado por divina ambição,
É indiferente ao acaso invisível,
E expõe o que é mortal e precário
A tudo que a Fortuna, a morte e o perigo engendram,
Só por uma casca de ovo. Se verdadeiramente grande
É não se agitar sem uma causa maior,
Mas encontrar motivo de contenda numa palha
Quando a honra está em jogo. Como é que eu fico, então,
Eu que com um pai assassinado e uma mãe conspurcada,
Excitações do meu sangue e da minha razão,
Deixo tudo dormir? E, pra minha vergonha,
Vejo a morte iminente de vinte mil homens
Que, por um capricho, uma ilusão de glória,
Caminham para a cova como quem vai pro leito,
Combatendo por um terreno no qual não há espaço
Para lutarem todos; nem dá tumba suficiente
Para esconder os mortos? Oh, que de agora em diante
Meus pensamentos sejam só sangrentos; ou não sejam nada!

Já após a peça e confirmação da culpa do rei Cláudio, Hamlet tem uma conversa com um
capitão e Fortinbrás sobre a guerra contra a Polônia. Após a saída das outras personagens,
Hamlet reflete sozinho sobre a sua vingança, adiada mesmo com a certeza da culpa de seu tio,
pensamentos que denunciam um ódio contra si mesmo. Assunto bastante discutido entre os
estudiosos é o motivo pelo qual Hamlet adia tanto a sua vingança após diversas
oportunidades de matar o rei. Nesse monólogo fala-se sobre covardia e excessiva precisão nas
consequências, subentendendo que o príncipe julga o medo como principal motivo para adiar
seu objetivo. Mas seria puramente o medo das consequências que o impede? Toda sociedade
é regida por valores éticos e morais, valores estes que dominam o subconsciente dos
indivíduos. O horror sentido pelo protagonista ao saber do ato hediondo do tio, além do amor
e devoção que tinha a seu pai, está intrinsecamente ligado a valores éticos enraizados de
maneira muito forte na personagem, então como poderia ele praticar um ato equivalente,
como poderia assassinar o próprio tio? Evidencia-se muito em todos os diálogos e monólogos
esse conflito no espírito da personagem entre desejo e moral banhado em uma atmosfera de
culpa, tanto por querer cometer um ato monstruoso, quanto por "covardemente" não
conseguir realizar o pedido de seu falecido pai. Também neste monólogo, Hamlet tece uma
reflexão atemporal sobre a guerra e a condição dos soldados. O que faz um homem ir
passivamente para o leito de morte do campo de batalha, tal qual gado indo para o abate? Um
capricho da realeza, uma ilusão de glória vendida para os guerreiros que nada ganharão além
de um banho de sangue. Em 2022, ano em que escrevo esse ensaio, está acontecendo uma
guerra na Ucrânia, uma guerra que já matou milhares de civis e soldados por simples
interesse territorialista. Qual a diferença entre nossos "civilizados" presidentes republicanos
democratas e os sanguinários monarcas da época de Shakespeare? Apenas uma cortina de
fumaça. Quando a crise vem e quando lhes é conveniente, são capazes de derramar tanto
sangue quanto nas "guerras bárbaras" da Idade Moderna. Infelizmente, nem todos os
príncipes foram como Hamlet, que olha para essa situação e sente vergonha, vergonha de
deixar tudo dormir, de ser parte da escória humana que trata homens como peças baratas de
xadrez. Mas, apesar de certa nobreza nesses pensamentos, o dinamarquês é incapaz de agir
em relação ao que condena.
Por fim, no ato V, cena I, cabe analisar um diálogo importantíssimo e muito marcante para
a trama. Ofélia comete suicídio e seu velório está prestes a acontecer. Enquanto isso, Hamlet
e Horácio caminham pelo cemitério e encontram dois coveiros conversando e cantando ao
mesmo tempo em que, mecanicamente, cavam uma cova. Hamlet, instigado, conversa sobre
isso com Horácio:

HAMLET: Esse camarada não tem consciência do trabalho que faz, cantando enquanto abre uma
sepultura?
HORÁCIO: O costume transforma isso em coisa natural.
HAMLET: É mesmo. A mão que não trabalha tem o tato mais sensível.

A partir disso, o coveiro começa a descobrir crânios, gerando os seguintes questionamentos


em Hamlet:

HAMLET: Esse crânio já teve língua um dia, e podia cantar. E o crápula o atira aí
pelo chão, como se fosse a queixada de Caim, o que cometeu o primeiro assassinato. Pode ser a
cachola de um politiqueiro, isso que esse cretino chuta agora;
ou até o crânio de alguém que acreditou ser mais que Deus.(..)
HAMLET: Pode ser. E agora sua dona é Madame Verme; desqueixado e com o
quengo martelado pela pá de um coveiro. Uma bela revolução, se tivéssemos capacidade de entendê-
la. A educação desses ossos terá custado tão pouco que só
sirvam agora pra jogar a bocha? Os meus doem, só de pensar nisso. (...)
HAMLET: Não, por minha fé, nada disso! É apenas seguir o pensamento com naturalidade. Vê só:
Alexandre morreu; Alexandre foi enterrado; Alexandre voltou ao
pó; o pó é terra; da terra nós fazemos massa. Por que essa massa em que ele se
converteu não pode calafetar uma barrica?
Cesar Augusto é morto, virou terra;
Pôr o vento pra fora é sua guerra -
O mundo tremeu tanto ante esse pó
Que serve agora pra tapar buraco - só.

Nessas falas de Hamlet, focalizam-se as ideias mais fascinantes dessa obra. A morte, a vida e
o que fazemos com isso. De que serve acumular dinheiro em vida, de que serve os estudos, as
conquistas, se no final todos terão o mesmo destino cruel? Se estão todos destinados a voltar
para a terra, serem pisados e devorados por seres muito menores? Hamlet aponta nesses
trechos, que mesmo os maiores homens existentes poderão ter seus crânios chutados por
mendigos, seus corpos irão se decompor até reduzirem-se a barro, usado para tapar buraco. O
ponto aqui é que, tanto o rei como o mendigo, todos terão o corpo reduzido a partículas de
terra, adubo para planta. A vida é um sopro, um segundo diante do universo, e mesmo assim,
a humanidade gasta seu pouco tempo nas maiores futilidades. Mesmo a morte não sendo uma
novidade para ninguém nos dias atuais ou em sua época, Shakespeare ainda choca leitores
por meio de Hamlet, causando epifanias. Todos sabem que vão morrer, mas poucos param
para pensar que nesse exato momento, podem estar pisando nos restos mortais de alguém,
uma pessoa que sorriu, chorou, fez coisas muito boas ou muito más. E que esse será nosso
futuro. Daí, vale pontuar a importância de Hamlet nesse sentido de despertar consciências, de
seduzir, fazer refletir, gritar a urgência de saber viver, mesmo com tantas dúvidas. Dentro da
obra, cabe comentar também um certo ar de desdém e ironia sobre o destino dos "grandes
homens" que se julgavam deuses e ao mesmo tempo, um medo dessa fatalidade que também
o aguarda. Medo para alguns grupos humanos e esperança para outros, unanimemente a
morte fascina, de modo a provocar questionamentos que perdurarão enquanto existir a
humanidade. Nesse sentido, Hamlet é muito mais que um príncipe dinamarquês, ou o
protagonista de uma peça, mas ele representa a complexidade da raça humana em sua
essência, em seu assombro com a natureza e a própria existência, muito acima de sua
compreensão.

Considerações finais

Para concluir este ensaio, retomo a importância da obra apresentada de Shakespeare para a
atualidade, fora suas contribuições magníficas para a literatura. Hamlet é um livro forte,
incisivo, chocante e talvez até desesperador, mas acima de tudo, necessário. Ultrapassando
mais de quatro séculos, a chave de sua modernidade está em seus temas universais enlaçados
por um enredo envolvente e muito bem escrito, junto a um protagonista de complexidade
surpreendente. Hamlet nos representa e nos instiga, como humanos e como sociedade. No
âmbito individual, o livro nos desperta para a necessidade de viver e pensar a vida, atentar-
nos às nossas máculas e nossas virtudes, para a dialética de nossas mentes em contraste com
nossas ações. No âmbito coletivo, Hamlet nos conduz a pensar a sociedade como conjunto de
indivíduos feitos da mesma matéria, gerando empatia, e ao mesmo tempo a olhar para a
História com criticidade, de forma a alimentar o desejo de tomar as rédeas politicamente,
estar ciente da crueldade humana e se opor arduamente a ela.
Dentro da riqueza de sua obra, direto da Idade Moderna, Shakespeare dialoga com a
sociedade contemporânea do século XXI com uma peça teatral que se opõe de todas as
formas à liquidez, ao imediatismo e à mecanização dessa geração regida por um sistema ao
qual não interessa a emancipação ou desenvolvimento crítico dos indivíduos, pois há mais
lucro na alienação. Além das questões sociopolíticas, Hamlet é uma tragédia que abarca a
essência da filosofia com sinceridade, aborda o nosso desconhecimento do universo e propõe
uma convivência curiosa com os mistérios, necessária para a evolução da sapiência humana.
De fato, sobre as dúvidas que se perpetuarão pela eternidade, ainda concordamos: há mais
coisas no céu e na terra do que pode sonhar nossa filosofia.
REFERÊNCIAS

BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia. Teoria literária: abordagens históricas e tendências


contemporâneas. 3ª edição. Maringá: Editora da Universidade Estadual de Maringá, 2009.

CÂNDIDO, Antônio. et al. A personagem de ficção. 10ª edição. São Paulo: Editora
Perspectiva, 2009.

SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução Millor Fernandes. São Paulo: L&PM, 2019.

STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Tradução Celeste Aída Galeão. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.

TUDO EM TODO LUGAR AO MESMO TEMPO. Direção: Daniel Kwan, Daniel Scheinert.
Produção de AGBO, IAC, Ley Line Entertainment, IAC films. Estados Unidos: A24, 2022. 1
DVD.

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