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Dilúvio de Gerald Thomas: Um Palco de Sombras

Lúcio Emílio do E. S. Júnior

Introdução

A peça teatral Dilúvio (2018), de autoria de Gerald Thomas e encenada


por ele mesmo, é mais um momento em seu teatro de imagens. O contexto que
angustiava o encenador era a vitória de Trump contra Obama, bem como a
emergência das notícias falsas lá e aqui. Num momento histórico que ameaça
complicar-se mais e mais, diante da conjugação da crise econômica mundial
iniciada em 2008 e outras crises.

Esse cenário prossegue. A crise tem que ser batizada, por isso sugiro
um nome: Crack de 2009. Nesse contexto, ascendem ao poder, nos USA,
Brasil, Hungria e Itália, governos simpáticos ao fascismo. Gerald Thomas, que
paradoxalmente apoiava Obama no USA e combatia Lula aqui, escamoteando
as semelhanças entre ambos, depara-se com Bolsonaro e Trump, em muitos
aspectos, contrários ao gosto e às inclinações do autor. A sensação de fim do
mundo ganha força nesse contexto.

A canção inicial evoca os movimentos repetitivos dos quais o encenador


gosta e se alimenta, bem como o cenário apresenta uma paisagem desolada,
em que estilemas que aparecem na obra desse autor teatral surgem aqui e ali:
cortinas de fumaça, ambiente escuro, à meia luz, em geral ambiente noturno,
um teatro “germânico”, evocando muitas vezes um conto de Kafka ou um
pesadelo propriamente dito. Muitas das imagens evocam também o universo
melancólico e sombrio de Samuel Beckett. Marcado pelo lançamento recente
de um livro de obras de artes plásticas, Thomas parece também querer refazer
a obra do acaso total, trazendo também para o palco suas obras de artes
plásticas. E nessa peça ele praticamente encenou sua pintura com o guarda-
chuva, com o tubarão ferido, etc, tornando-se personagens.

Paradoxalmente autor de um teatro não-dramatúrgico e um dos poucos


dramaturgos brasileiros a conseguir elaborar uma obra, Gerald Thomas
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prossegue produzindo aqui e ali fiapos de narrativas que orquestram-se
esteticamente. A fala é tomada em si mesma, como musicalidade, fala-se em
inglês, português, alemão. A música é um motivo-guia importante. Nessa peça
temos Tina Turner (é citada What´s Love Got to do With It), Out of Control dos
Rolling Stones e Hurt, dos Nine Inch Nails, dentre outras, sendo que os Stones
são um motivo-guia importante. É também muito bela a cena da dança ao som
de These Stones Will Shout, dos Raconteurs, bem ao estilo Led Zeppelin
apreciado pelo diretor.

1. Símbolos e Sintomas: Sombras de Reis Barbudos

Thomas, como não apega-se ao texto, cria símbolos para poder solucionar
as questões que surgem num teatro não-dramatúrgico: num teatro onde os
personagens não são nomeados, onde não há narrativa propriamente, como
criar conflito?

Gerald resolve essa questão criando símbolos e imagens conflitivas em si


mesmas: uma mulher presa a algo invisível grita e tenta libertar-se. Essa
situação, como nas peças de Beckett em que alguém aparece só com a
cabeça e enterrado em algo, já cria, em si, o conflito.

Dilúvio passa-se em um cenário sombrio, esfumaçado, cheio de objetos


inúteis, tais como guardas-chuvas contorcidos e quebrados. O encenador
transmite um pensamento através de metáforas e símbolos: o guarda-chuva,
de protetor contra a tempestade, torna-se seu contrário, como explicou Jardel
Cavalcanti:

O cenário inicial (e final) da peça Dilúvio, de Gerald


Thomas, apresenta uma paisagem solitária, com um
amontoado de guarda-chuvas quebrados e contorcidos
num ambiente esfumaçado. Antes que qualquer ator
entre em cena, já estamos diante da imagem trágica do
resultado de um dilúvio: aqueles guarda-chuvas que

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figuram em nossa mente como símbolo da proteção
contra a tempestade, agora são apenas desolação e
destruição (CAVALCANTI, 2018).

E não só o símbolo do guarda-chuva que transcende a obra plástica de


Gerald Thomas para poder tornar-se um personagem de uma de suas peças,
há também outros quadros que aparecem em momentos-chave.

A imagem seguinte é a de duas atrizes nuas, todas banhadas de


sangue. A idéia é refigurar a humanidade depois da catástrofe. Novamente a
imagem do guarda-chuva volta nas mãos da atriz, lutando contra uma
tempestade terrível, mas essa luta será inglória. Thomas trata, aqui, do mundo
depois da catástrofe. A metáfora escolhida é o Dilúvio. E as cenas mostram o
que sobrou depois do desastre. Como explicou Flora Sussekind:

Não é difícil relacioná-lo também – enquanto corpo largado, extinto,


mas em posição vertical - às séries de carcaças animais penduradas,
como num açougue, que se repetem em sua obra gráfica. E cujo
diálogo com a pintura de Jean-Baptiste-Siméon Chardin e de Francis
Bacon parece ser intencionalmente evidente. As carcaças
penduradas estão presentes, por exemplo, no cartaz de MattoGrosso
(ópera composta em parceria com Philip Glass). E seriam evocadas
na reencenação por Gerald de Quartett (de Heiner Müller), em 1996,
com Ney Latorraca e Edi Botelho, espetáculo que era ambientado
numa espécie de abatedouro, com os atores em trajes
ensanguentados como os de açougueiros. A série de restos corporais
pendurados se veria refigurada cenicamente, ainda, tanto nos corpos
femininos que pendulam, suspensos, sobre o palco, em Dilúvio,
quanto no corpo banhado de vermelho, e sob tortura interminável, de
Marcelo Olinto em Bait Man (SUSSEKIND, 2008).

O rock, o samba e a música erudita ao estilo de Phillip Glass, repetitiva e


tensa, são, juntamente com os corpos tornados obra de arte plástica moldáveis
pelo diretor, os principais motivos-guia dessa peça, juntamente com as
performances dos atores. É um teatro que tem muito de musical e de circo, de
pantomima.

Diante das atrações que sucedem-se no palco de sombras, é muito


interessante o momento em que o diretor interfere diretamente em voz off,

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condenando as fake news. Gerald explicou a chegada da catástrofe, que não é
só uma grande catástrofe natural e sim provocada pela mão humana: “Ele
pegou o Ifone e tuitou: sad, bad, fire! E nesse fire, leia-se fake news e tudo
explodiu e nessa explosão, tudo era fake e o cavalo de Turim não era mais
uma ilusão, o cavalo de Turim não era falso e assim começou a terceira guerra
mundial, assim como essa frase, the likes of which you never seen before,
temos mais três anos”. Nesse trecho acima, Thomas está criticando a atuação
de Donald Trump na rede social twitter.

A atuação desse presidente era tão leviana que dava a impressão de


que essa situação absurda acima poderia acontecer. A hipótese é que
governantes como Trump e Jair Bolsonaro não governam, vivem numa eterna
campanha eleitoral, enquanto outros fazem a política por eles (THOMAS,
2020).

Mas há dinâmicas complexas nessas agonias. Daí, em seu


comentário sobre M.O.R.T.E, Haroldo de Campos contrapor não
apenas a sigla-título, mas também o réquiem elegíaco a Tadeusz
Kantor (que é realizado no espetáculo), à força da evocação de Hélio
Oiticica e ao ritmo de uma bateria de escola de samba “que irrompe,
estrepitosa, no palco”. Insinuando, Yves Alain Bois, assim, “um
princípio esperança” (E. Bloch), um princípio formal contrastivo, em
meio à intensa e irreverente pulsão de morte que conduz essa
retomada geraldiana de Hamlet (SUSSEKIND, 2008).

Sendo assim, pode-se dizer que, em Dilúvio, igualmente, a escola de


samba aparece tendo essa função, em meio à desolação e ao caos do mundo
depois da III Guerra Mundial.

A dublagem atorial (prevista na peça) funciona, com relação à voz em


off do diretor, como uma forma de obstrução da potência ex-machina
dessas intervenções, que se tornam deslocadas, estranhas, quando
apropriadas por esse corpo outro. Um espelhamento
propositadamente falho que sublinha, desse modo, uma teatralização
da voz autoral, cuja continuada autoexposição configura camada
discursiva peculiar no interior de textos diversos. Esse
desdobramento enunciativo complexifica a textualidade já meio em
abismo dessas peças –em meio a suas camadas diversas de
referências, a uma sucessão de jogos sonoros, construções e

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contrastes figurais. E sobretudo em meio a esse “escrever
encenando-se” a que se referia Haroldo de Campos. Processo
evidenciado, como já se observou, nas indicações cênicas
extremamente minuciosas ou na distribuição das falas usando-se o
nome dos atores. Mas não só aí. E seria sobretudo via
exposição/dublagem autoral que se criaria, regular regularmente,
nesses exercícios dramatúrgicos, um território verbal, uma dobra
discursiva na qual a escrita mesma se teatralizaria em voz. Não que
assim se produza propriamente um outro espaço, como assinala
Gerald Thomas, descrevendo o seu método dramatúrgico em Diário
de uma peça (1973) - para voltarmos a esse texto de juventude. Não
é de um outro espaço que se trata, mas sim de “outro território de
falas e de escritas”. Ou, procedimento-chave em sua experiência
artística, a produção de um espaço que se vê enfatizado, tensionado,
de um espaço com potencial “para a obstrução de outro”. No limiar da
negação, portanto (SUSSEKIND, 2008).

A passagem com Maria de Lima em que a voz da atriz torna-se a voz de


um outro, do diretor, ou seja, uma mulher fala com voz de homem, uma atriz
fala com voz de diretor, é um efeito no sentido proposto acima por Flora
Sussekind.

Se não é o fim do mundo, com certeza é o fim de um determinado


mundo, o mundo burguês que Gerald Thomas vivenciou entre Europa e
Estados Unidos. Na peça, esse mundo burguês guarda apenas a aparência de
uma existência humana. E a citação das notícias falsas indica, mais do que
nunca, um asco da imprensa:

É impossível percorrer uma qualquer gazeta, seja de que


dia for, ou de que mês, ou de que ano, sem aí encontrar,
em cada linha, os sinais da perversidade humana mais
espantosa, ao mesmo tempo que as presunções mais
surpreendentes de probidade, de bondade, de caridade,
a as afirmações mais descaradas, relativas ao progresso
e à civilização. Qualquer jornal, da primeira linha à última,
não passa de um tecido de horrores. Guerras, crimes,
roubos, impudicícias, torturas, crimes dos príncipes,
crimes das nações, crimes dos particulares, uma
embriaguez de atrocidade universal. E é com este
repugnante aperitivo que o homem civilizado acompanha
a sua refeição de todas as manhãs. Tudo, neste mundo,
transpira o crime: o jornal, a muralha e o rosto do homem.
Não compreendo que uma mão pura possa tocar num
jornal sem uma convulsão de asco (BAUDELAIRE,
2020).

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O mundo de Dilúvio é um mundo feminino onde as duas atrizes num
momento confrontam-se, o motivo da briga é o desejo de uma de divertir-se.
Elas lutam voando pelo palco e, logo em seguida, a que deseja diversão é
atendida e passa a ser beijada e abraçada. Julia Wirkins cita Tina Turner: “Oh,
o quê o amor tem a ver com isso? O quê é o amor, exceto uma emoção de
segunda mão?” Esse verso, tomado assim, sem dúvida parece-nos ser
representativo do pensamento do diretor. Não há amor nessa peça, apenas
envolvimento de corpos, que ora sangram pendurados, ora se enlaçam, etc.
Mas amor não há. Assume-se que amor é efeito, artifício, algo que chega de
fora, de segunda mão.

Uma terceira figura, clownesca, vestida de plumas e paetês, observa e


comenta que “agora virou orgia”, logo após ter delirado em inglês e alemão. Na
cena em que as mulheres assumem o vocabulário chulo de dois homens, a
iluminação é inspirada na roda de bicicleta de Duchamp, um verdadeiro objeto-
fetiche de Gerald Thomas.

Os homens estão quase ausentes na peça, exceto por uma curiosa


figura que fica observando o tempo todo comendo pipocas e que parece ser
um alter ego do diretor:

Dessas imagens o sempre enigmático tubarão ferido e


uma referência ao São Sebastião flechado – signos da
violência transformada em espetáculo. A peça se encerra
com uma fala em tom comovente da atriz Maria de Lima,
que está num cenário de desolação, dizendo algo como
“eu até poderia achar algo positivo nisso tudo”, que
ressoa a frase dita anteriormente invocando Beckett, um
dos mestres da consciência artística de Gerald Thomas –
“Você conhece o mundo maravilhoso e, claro, sombrio e,
ainda, melancólico e, porque não dizer, um tanto
cinzento, de Samuel Beckett?”Sobre sua condição de
criador, dentro desse universo aterrador, diz Gerald
Thomas: “Eu me vejo, como autor, numa terra perdida,
sozinho, depois de uma guerra nuclear, com um balde de
pipoca na mão. É o sinal da minha sobrevivência”
(CAVALCANTI, 2020).

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Nessa terra perdida, o personagem semelhante a Quasímodo está num
mundo pré-social, não existindo nada que dê coesão ou solidariedade social.
No mundo pós-catástrofe, o Cavalo de Turim, personagem imaginário do filme
de Bela Tarr, torna-se verdadeiro.

2. A Autópsia de um Drama

O teatro encenado por Thomas é pós-dramático, ou seja, o texto não


apresenta preocupações, ou apenas remotamente, de cumprir as exigências do
que era cobrado anteriormente de um drama. O drama é secundário, o
importante é a encenação, tanto que Thomas muda elementos de uma
encenação para outra. A contraposição dos personagens através do diálogo
acontece vez por outra, como quando as duas mulheres brigam nuas.
O texto é apenas mais um elemento junto da cenografia, música,
performance, etc. Cada imagem em Dilúvio é expressiva por si e não depende
do todo. A peça não apresenta destinos em movimento que a ação irá
corporificar. São como atrações circenses ou quadros colocados um ao lado do
outro (ANDRADE, 2020).
Gerald Thomas recusa-se a deixar de mostrar como a obra é composta,
ou seja, ele não “tira os andaimes”, desvia sempre o foco do material narrativo
para o trabalho de composição. Não há como abstrair o trabalho do diretor,
pois ele entra em cena tocando baixo, sua voz entra em off na boca de uma
personagem bufona, etc. Ele não apaga os rastros de sua presença, pelo
contrário. O encenador sai dos bastidores e torna-se, pela voz em off
principalmente, um comentador dos acontecimentos e um personagem. Não há
mais diferença entre comentário e ação.
Thomas apresenta a revolta contra as autoridades como a revolta contra
os discursos, bem como da arte como aparência. A composição da peça teatral
torna-se central na própria peça. Não há mais diferença entre o mundo
empírico e a arte fechada em si mesma. Como explicou Adorno a propósito de
Beckett:

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Qual é a razão de ser das formas quando desaparece
sua tensão com aquilo que não lhes é homogêneo sem
que por isso o progresso do domínio estético do material
possa ser freado? Fim de partida escapa dessa
dificuldade ao transformá-la em coisa sua, tornando-a
seu tema. […] Os constituintes do drama aparecem após
sua morte. Exposição, complicação (Knoten), ação,
peripécia e catástrofe retornam como elementos
decompostos de uma autópsia da forma dramática. […]
Aqueles elementos constituintes naufragam juntamente
com o sentido que outrora fazia parte do drama; Fim de
partida estuda, como num tubo de ensaio, o drama da
época atual, a qual não tolera mais o que constitui o
drama. (Adorno, GS 11, p. 303)

Parece-nos que Gerald Thomas desejou, em Dilúvio, fazer a autópsia de


um drama. O diálogo sobre um conflito com a mãe sinaliza para isso, para
diálogos com a mãe morta, tal como em Rainha Mentira (Queen Liar, peça
anterior de Thomas). Não só há elementos decompostos de um drama
expostos para mostrar a mentira da exposição, como os personagens parecem
ser sobreviventes da Terceira Guerra Mundial.

3.Conclusão

Em Dilúvio, o encenador Gerald Thomas voltou a um tema beckettiano


que é um de seus favoritos: a humanidade depois da catástrofe. Trata-se de
um teatro não-dramatúrgico, movimentado a partir das imagens simbólicas e da
música. Mais do que um drama, Dilúvio é uma autópsia de um drama. A ação,
por vezes, acontece graças à passagem de uma música para outra e os
personagens, sempre sem nome, criam cenas que dialogam com a obra
plástica do próprio encenador. O encenador retoma sua própria obra para criar
essa, reproduzindo seus conhecidos estilemas, tais como o palco esfumaçado,
os temas sombrios e kafkianos, a onipresente influência de Beckett em seus
personagens (que, como os dele, sempre estão presos ou pendurados) Sua
autobiografia, sua relação com a mãe e outras peças tais como Circo de Rins e
Fígados e Rainha Mentira apresentam personagens e diálogos semelhantes
aos de Dilúvio.

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Referências:

BAUDELAIRE, Charles. O Asco da Imprensa.<<https://www.citador.pt/textos/o-


asco-da-imprensa-charles-baudelaire>>

CAVALCANTI, Jardel. Dilúvio, de Gerald


Thomas.<<http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?
codigo=4452&titulo=Diluvio%2C_de_Gerald_Thomas>>

DAIE, Fábio Salem. Beckett entre o Realismo de Lukács e a estética adorniana


<<file:///C:/Users/Usuario/Downloads/98308-Texto%20do%20artigo-193640-1-
10-20151214.pdf>>. <<Acesso em 26/11/2020>>>.

IACONELLI, Vera. Enxurrada Político-Onírica. Folha de S. Paulo, 5 de


dezembro, 2017.

GATTI, L. Constelações: crítica e verdade em Benjamin e Adorno. São Paulo:


Loyola, 2009.

________. Exercícios do pensamento. Dialética negativa de Theodor W.


Adorno, Novos Estudos Cebrap, Nr. 85, 2009.

SUSSEKIND, Flora. No Limiar da Negação.


<file:///C:/Users/Usuario/Downloads/No_limiar_da_negacao_Nota_sobre_o_me
todo.pdf>>.

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