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PRESENÇA DA DESREALIZAÇÃO EM ESPERANDO GODOT, DE SAMUEL

BECKETT

Chiara Magá Moreira (UENP/CJ)


Coautora: Dra. Luciana Brito (UENP/CJ)

Resumo:
Este artigo tem por objetivo analisar os traços de desrealização, termo empregado por
Anatol Rosenfeld no artigo “Reflexões sobre o romance moderno”, presente na obra
Texto/Contexto, a fim de analisar os elementos estruturais da peça Esperando Godot, de
Samuel Beckett. Anatol Rosenfeld, em Texto/Contexto, define a palavra desrealização
como o ato de abandono da mimese na arte moderna, em especial na pintura, no teatro e no
romance. Nesse sentido, o realismo desaparece das criações artísticas modernas, visto que
estas, por sua vez, na tentativa de produzir uma arte nova, passam a representar,
influenciadas pelas novidades do momento e pela nova visão acerca do homem e do
mundo, uma nova forma de representação da realidade, que abandona a arte mimética.
Palavras-chave: Esperando Godot; Teatro do Absurdo; Desrealização.

O TEATRO DO ABSURDO

O Teatro do Absurdo foi uma expressão que surgiu em 1961 por Martin Esslin para
representar temas antes não esboçados na dramaturgia tradicional realista, a fim de
explorar a fragilidade humana pós-Segunda Guerra Mundial, elucidando a solidão e
retratando o ambiente exilado que o conflito favoreceu. Sua técnica foge do realismo que
dominava os palcos tradicionais anteriores, estes que, por sua vez, demonstravam o
cotidiano de forma simples e objetiva, sem entregarem-se às profundezas do homem.
Distintamente ocorre no Teatro do Absurdo, uma vez que procura manifestar suas obras
utilizando-se de abstrações linguísticas e traços descomunais. Os dramaturgos do Absurdo
tentam reproduzir a solidão e a fragilidade do homem moderno, recriando, muitas vezes,
um sentimento de desorientação e frustração.
O Teatro do Absurdo surge em um momento de crise do teatro, em que este procura
ressignificar a si mesmo, tornando-se um teatro antirrealista, trazendo para a sua trama
temas fora da realidade. De acordo com a obra História Mundial do Teatro, o drama
moderno parece não ter lógica, e assim o palco surge como um espelho deformante a ecoar
uma imagem em que o público não está preparado para acatar. O drama acentua um quadro
tragicômico da vida, em uma época em que não se pode mais evitar questões sobre a
existência em sociedade e o peso de estar nela.
Entendemos como Crise do Teatro, segundo Peter Szondi, em Teoria do Drama
Moderno (2001), o cenário final do século XIX. Para Szondi, a crise do drama é expressa
por autores como Ibsen, Tchekhov, Strindberg, Maeterlinck, Hauptmann, uma vez que cada
um deles interferiu, a seu modo, no modelo teatral vigente, colocando em xeque o conceito
de drama. Szondi examina as obras dos autores supracitados na tentativa de exemplificar
como ocorre a crise do drama na segunda metade do século XIX, na medida em que o
teatro abandona o modelo fixo e realista que vigora até então. Para Szondi, o drama entra
em crise em razão das transformações temáticas que substitui os membros da tríade
conceitual (fato, presente e intersubjetivo) por conceitos antitéticos correspondentes. Nas
peças de Ibsen, por exemplo, o passado da obra domina o lugar do presente, o que para o
drama não é um acontecimento temático, já que o presente da obra passa a ser relativizado
pelo passado. Essa situação da peça de Ibsen foge ao âmbito do drama, gênero em que
fatos passados não têm capacidade de provocar mudanças, mas, no caso das suas peça, são
eles que movem as ações dos personagens.
Por consequência da transição em que o estilo dramático puro levou para o estilo
contraditório, derivam-se, então, modificações temáticas suficientes para romper o modelo
antigo. Dessa forma, manifestam-se tentativas de salvar o gênero drama, já que este, por
sua vez, entra em crise por conta da intromissão dos gêneros lírico e épico no modelo do
drama, voltados para o diálogo e a representação do tempo presente. E um dos recursos
para salvar o drama analisados por Szondi se aplica ao emprego da peça de um só ato, a
peça de conversação e o uso do diálogo. Utilizando o diálogo, o dramaturgo trabalhará para
trazer um diálogo seguro da subjetividade cujas formas históricas o colocam em perigo.
Szondi (SZONDI, 2001, p.105) diz: “se no drama genuíno o diálogo é o espaço coletivo
onde a interioridade das dramatis personae se objetiva, aqui ele é alienado dos sujeitos e se
apresenta como autônomo. O diálogo se torna conversação.” Desse modo, a peça da
conversação constitui a nova dramaturgia. E neste instante tem-se a peça Esperando Godot
(1952), de Samuel Beckett, tal qual discorreremos mais adiante. Na obra, a conversação
torna-se temática, pois segundo Szondi “aos homens que esperam Godot, esse Deus não só
absconditus mas também dubitabilis, resta somente a conversa nula para confirmar sua
própria existência (SZONDI, 2001, p.108) . Do ponto de vista estético, Esperando Godot é
uma das principais obras que integra o Teatro do Absurdo. O crítico húngaro Martin Esslin
cunhou a expressão ao fim da década de 1950, com intuito de definir as peças produzidas
pós-Segunda Guerra Mundial, que que passam a tematizar a solidão humana, a desolação e
a insegurança do homem moderno frente à sociedade vigente, tratando o palco como se
fosse um espelho para o homem, que, por consequência da Guerra, tornou-se sofredor,
confuso, habitando em uma atmosfera estranha e desconfortável.
Excepcionalmente, o Teatro do Absurdo representa uma reação revolucionária contra a
corrente artística predominante, o realismo, que mantinha, no âmbito do teatro, a
encenação mais realista possível, e apoiava a sua construção no diálogo e no cenário
mimético. Diferentemente, o Teatro do Absurdo se utiliza de cenas apoiadas em
monólogos, com temáticas capazes de revelar o inesperado e o que não era considerado
tradicional ou cotidiano, em outros termos: “Essa nova forma de teatro apenas revela o
realismo presente, mas como se tal realismo fosse irreal (BUENO, 2013, n.p). As obras
não apresentam personagens reconhecíveis e colocavam diante do público quase que,
segundo como o escritor húngaro Martin Esslin (1918 – 2002) explicita em O Teatro do
Absurdo (2018), bonecos mecânicos. No Teatro do Absurdo, “O palco torna-se um espaço
sem nenhuma referência identificável, o pesadelo visível da vacuidade.” (BERTHOLD,
2014, p. 522). Incomumente do que presenciamos em peças realistas, já que o palco
mantém uma estrutura aberta, convidando o público à familiarização do processo artesanal
de cada cena, em vista do foco estar em agradar o público. Em Esperando Godot,
exemplificativamente, o palco é efêmero, indefinido, vazio, contendo somente uma árvore
desnuda, durante os dois únicos atos da peça. O Teatro do Absurdo é, segundo Berthold
(BERTHOLD, 2014, p. 523), “a Commediadell’ arte do niilismo, o grandguignol de um
mundo de paradoxos”.

SAMUEL BECKETT

Caracterizado como um dos precursores do Teatro do Absurdo, Samuel Beckett


consagrou-se na história antes mesmo de apresentar ao mundo sua obra mais aclamada,
Esperando Godot. Com uma escrita centrada nos problemas da existência e da identidade
do eu, Samuel possui uma alma extremamente simbólica.
Nascido em Dublin, em 1906, aos catorze anos, Beckett foi mandado para um dos
tradicionais internatos anglo-irlandeses, Portora Royal School. Como aponta Martin Esslin
(ESSLIN, 2018, p. 27), Beckett se revelou não só popular, como academicamente
brilhante, além de excepcional em esportes. Atingiu êxito tão grande academicamente que,
após encerrar o ciclo no internato, em 1923, e recebendo o grau de bacharelado em arte
pela universidade Trinity College, datado em 1927, foi indicado por ela para representá-la
na tradicional permuta de conferencistas com a famosa École Normale Supérieure de Paris.

E, dessa forma, iniciou sua imorredoura ligação com Paris. Pôde conhecer o grande
autor de Ulisses, James Joyce, que serviu de grande influência à vida de Beckett. Foi
durante os seus primeiros dias em Paris que o dramaturgo irlandês também se propôs a
marcar seu nome como poeta. Beckett fez história ao ganhar o prêmio literário pelo melhor
poema sobre o tempo, em um concurso idealizado pela escritora britânica Nancy Cunard,
julgado por ela e pelo escritor britânico Richard Aldington. Tal obra é intitulada como a
primeira obra individual do dramaturgo Samuel Beckett.

A primeira peça de Beckett como dramaturgo carrega o nome de Eleutheria. Nas


palavras de Esslin (ESSLIN, 2018, p. 35), tal obra, escrita em francês, relata a história de
um jovem que luta para se libertar de sua família e de toda obrigação social. Interessa frisar
que, durante os três atos da peça, o palco é dividido em dois: à direita, o herói jaz em sua
cama, apático e passivo; à esquerda, sua família e amigos discutem seu caso sem jamais
dirigir-se diretamente a ele. De maneira gradual, a ação se altera da esquerda para a direita,
e finalmente o herói consegue reunir energia suficiente para libertar-se de seus grilhões e
separar-se completamente da sociedade. A obra representa a preocupação de Beckett com a
busca da liberdade e do direito de viver sua própria vida.

Obras de Beckett carregam o poder de transcorrer as camadas mais profundas da


mente, o mais negro recesso da ansiedade e simetria imperfeita. Esperando Godot é um
excelente exemplo disso. O grande clássico homônimo data sua publicação no ano de
1952, estreando em 1953 em um pequeno teatro. Embora o dramaturgo possua origem
irlandesa, a peça, como muitos trabalhos do autor, teve sua escrita em francês. Tal fato
desencadeou questionamentos ao diretor americano Herbert Blau, quando sugeriu que o
dramaturgo pudesse estar fugindo de alguma parte de si mesmo ao escrever em francês, e
Beckett retrucou expondo que a língua francesa carregava um efeito "'enfraquecedor'''
desejado. Esperando Godot transporta muitos significados para o teatro do século XX.
ESPERANDO GODOT

Obra máxima pertencente ao Teatro do Absurdo, Esperando Godot retrata muito mais
do que uma estranha farsa trágica. A peça transmite uma espera infinita por alguém que
nunca chega, mas, além disso, narra humilhações e devastações que desumanizam o
homem moderno. Esperando Godot saudou um novo movimento teatral.

Encenada em um palco com cenários mínimos, no pequeno Théâtre de Babylone, em


Bouvelard Raspail, Em Attendant Godot não foi bem recebida pelo público. Risos não
ecoaram pelo salão conforme se desenrolava a peça. Como aponta a edição de 2015, de
Esperando Godot (BECKETT, 2015, p. 114): “Aqui e ali, podiam-se identificar núcleos de
aguda desaprovação e a cada pouco um espectador se levantava e saía do teatro, irritado e
aborrecido”. Isso porque, a obra apresenta grandes rupturas na tradição do teatro do século
XIX, que defendia, até então, o uso de herói, ação, enredo, conflito e desfecho.

A experiência expressa em Esperando Godot ocorre pela quebra de algemas do enredo.


Nas palavras de Carlson (CARLSON, 1997, p. 400), em Teorias do Teatro, o impacto
internacional de Esperando Godot fez com que as atenções se voltassem para um novo
estilo de drama antirrealista na França – o qual haveria de tornar-se o teatro de vanguarda
mais bem sucedido que o século já produzira. A obra detém uma natureza muito profunda
e fundamental. Segundo Hobson (BECKETT, 2015, p. 113), Esperando Godot “renovou o
teatro inglês numa única noite”. De acordo com Anouil (BECKETT, 2015, p. 103), a
produção de Beckett foi tão importante quanto a primeira apresentação de uma obra de
Luigi Pirandello, em Paris. Para interpretar a obra devidamente, Esslin define a maneira
para efetuá-la:

No entanto, se devemos ser cuidadosos em nossa atitude em relação às


peças de Beckett, para evitar as armadilhas das tentativas de fornecer uma
explicação simplista de seu significado, isso não quer dizer que não as
possamos submeter a cuidadoso escrutínio, isolando grupos de imagens e
temas e tentando discernir seus fundamentos estruturais. O resultado
desse exame deverá permitir que se siga com maior facilidade as
intenções do autor, e que se perceba, se não as respostas às suas
perguntas, ao menos quais as perguntas que ele fez. (ESSLIN, 2018, p.
45)

Esperando Godot é uma obra excêntrica, levando o leitor a confundir-se na


interpretação, justamente pelo número de leituras válidas. O sentimento de incerteza que é
criado, os altos e baixos dessa incerteza, o cenário quase nulo de elementos, as
características dos personagens da peça e o tempo relativamente circular, trabalham para
transmitir senso de mistério, perturbação, questionamentos e ansiedade por parte do
telespectador. Segundo aponta Martin Esslin (ESSLIN, 2018, p. 44), é natural que as peças
de Beckett possuam menos enredo que outras obras pertencentes ao Teatro do Absurdo.

Em vez de um desenvolvimento linear, apresentam a inquirição de seu


autor sobre a condição humana por um método que é essencialmente
polifônico; confrontam o público com uma estrutura organizada de
asseverações e imagens que se interpenetram e que devem ser
apreendidas em sua totalidade, à maneira dos diferentes temas uma
sinfonia, que ganham em significado por sua interação simultânea
(ESSLIN, 2018, p.44)

Peças como Esperando Godot sempre têm algo a mais a dizer. Isso, na verdade,
reflete, exclusivamente, em consequência às modificações em que o teatro precisou sofrer
defronte à sociedade pós-guerra. Tal calamidade trouxe ao mundo, e consequentemente ao
teatro, questões que abarcassem uma atmosfera inserida na desolação, solidão, incerteza do
futuro, e também a incomunicabilidade do homem moderno. A falta de esperança expressa
durante o ato dois da obra, quando Vladimir percebe que Godot poderá não retornar no dia
seguinte (BECKETT, 2015, p. 97), faz com que os personagens criem incertezas ainda
maiores sobre o futuro. Para Vladimir, não há mais nada a fazer, a não ser tornar a esperar,
assim como fez no decorrer dos dias passados. Vladimir e Estragon representam a
sociedade do século XX, resultante de longos períodos de guerras, regimes totalitários,
perseguições e das mudanças drásticas oriundas da corrida tecnológica e imperialista de
algumas nações desde a segunda metade do século XIX, bem como a nova visão acerca do
homem, que agora é visto como um ser múltiplo e confuso.

A DESREALIZAÇÃO NA OBRA

Nessa pesquisa, o intuito é analisar os traços de desrealização presentes na obra


Esperando Godot. O termo “desrealização”, empregado por Anatol Rosenfeld no artigo
“Reflexões sobre o romance moderno”, presente na obra Texto/Contexto, para caracterizar
a arte moderna, que deixou de ser mimética, “recusando a função de reproduzir ou copiar a
realidade empírica, sensível” (ROSENFELD, 1996, p. 76), o que, em linhas gerais,
significa o afastamento do realismo.
Para o crítico, as correntes figurativas, como o cubismo, o expressionismo ou o
surrealismo deixaram de visar à reprodução mais ou menos fiel da realidade empírica
(ROSENFELD, 1996, p. 76), o que, para o autor, caracteriza como caso de negação do
realismo. Merece atenção, inclusive, a presente negação do Iluminismo enraizado no
teatro. Rosenfeld pondera que este, ao abandonar as convenções tradicionais, o palco à
italiania, sendo este um palco tipicamente perspectivo, a imitação minuciosa da vida, tal
como abordada pelos naturalistas, gera um teatro reconstituído dos seus fenômenos
específicos, similarmente encontrados na peça de Beckett, de modo que mostraremos mais
adiante.

O que caracteriza Esperando Godot como uma obra sublinhada pela desrealização,
são todos os aspectos singulares e traços descontínuos que a organizam. A obra de Samuel
Beckett, assim como supracitado, atuou como um divisor de águas para o teatro do século
XX, isso devido à genialidade de sua história simples. Ocorre a desrealização na peça
então, justamente no tempo circular e não linear que ela carrega, pelo cenário minimalista,
quase desnudo, e pelos temas absurdos, filosóficos, questionáveis pelo público.

Rosenfeld alega que “o homem não vive apenas no tempo, mas que é o tempo,
tempo não cronológico” (ROSENFELD, 1996, p. 82). Por isso, a nossa consciência não
funciona por meio de momentos neutros, por minutos que antecedem o outro; cada
momento, na verdade, contém todos os anteriores. E assim ocorre na arte moderna.
Diferentemente do que ocorre na arte realista, especificamente o teatro, marcado por
acontecimentos em sequência, o teatro moderno é um teatro de situação, justamente pela
liberdade de pôr em cena o que, outrora houve, em um momento presente.

O tempo circular de Esperando Godot procura tematizar uma espera infinita.


Escrita em um cenário pós-Guerra (1946-1953), o teatro simboliza a utopia do homem
moderno frente à sociedade vigente, na qual os personagens permanecem esperando por
uma realidade salvadora, capaz de banir a falência do sujeito burguês.

Ao longo do primeiro ato, os dois personagens, Vladimir e Estragon, conhecidos


também como Didi e Gogo, permanecem em uma espera infindável por Godot. A peça
transcorre em uma tentativa de ocupar a mente enquanto Godot não aparece. Para tanto,
criam-se diálogos exaustivos, mesmo sem ter o que se dizer. Apesar da chegada de mais
uma dupla no cenário, Pozzo e Lucky, a peça retoma a ideia do vazio sentido nos primeiros
momentos da obra quando ambos abandonam o lugar, restando somente a dupla do início.
O contexto de espera infinda faz com que a fala de Vladimir torne-se característica de uma
utopia: “Pode ser que hoje à noite durmamos na casa dele, aquecidos, secos, de barriga
cheia, sobre a palha. Vale a pena esperar, não vale?” (BECKETT, 2015, p. 29) A falta de
esperança, o sentimento de conformação à situação exterioriza o pensamento de abandono,
infelicidade, esse mesmo carregado pelo ser humano pós-Guerra. A ideia de utopia é
confirmada ao fim da peça, quando, de fato, a dupla permanece esperando por Godot, que
jamais aparecerá. Pensando nisso, temos então uma peça com o tempo circular, não linear.
Durante o primeiro ato, os personagens Vladimir e Estragon permanecem esperando por
Godot, fato que ocorre durante toda a peça até o final.

ESTRAGON Lugar encantador. (Dá a volta, caminha em direção à boca de cena,


junto à plateia) Esplêndido espetáculo. (Volta-se para Vladimir) Vamos embora.

VLADIMIR A gente não pode.

ESTRAGON Por quê?

VLADIMIR Estamos esperando Godot. (BECKETT, 2015, p. 23)

Vejamos a seguir um fragmento do ato dois.

VLADIMIR (angustiado) Diga qualquer coisa!

ESTRAGON O que vamos fazer agora?

VLADIMIR Estamos esperando Godot.

ESTRAGON É mesmo. (BECKETT, 2015, p. 69)

Apesar da mudança corriqueira de um ato para o outro, percebe-se a permanência


dos personagens no que corresponde ao tempo. Houve a retomada dos elementos do
primeiro ato. Vladimir e Estragon demonstram buscar por algo no segundo ato já expresso
no primeiro. A peça é composta de repetidos desapontamentos. Assimilamos, assim, o
tempo da obra como desrealização, segundo Rosenfeld defende. Para Rosenfeld
(ROSENFELD, 1996, pg.76), a desrealização acontece na recusa de reproduzir a mimese,
isto significa, o abandono em tentar reproduzir a realidade empírica, sensível. O tempo é
uma desrealização porque não se detém em reproduzir o tempo passado, presente e futuro,
seguidamente, preso em uma linearidade, tampouco em demonstrar mudança de
comportamento. Na realidade da obra, o tempo é diluído na rotina, ainda que não seja
possível determinar quanto tempo tenha se passado de um ato para o outro. A repetição que
ocorre na peça faz com que o leitor possa idealizar a permanência infinita dos personagens
em um mesmo lugar. A desrealização do tempo é marcada por uma eternidade imóvel e
morta.

Associadamente à desrealização, o espaço também se configura dentro das


predominâncias. Ainda que o espaço seja destituído de detalhes, diferentemente de um
palco realista, que busca evidenciar as mazelas do ser humano da maneira como se revela
em textos teatrais, em Esperando Godot ele é uma abstração. O palco da obra mantém-se o
mesmo ao decorrer dos dois únicos atos, quase que sem elementos, vazio, a não ser pela
árvore pendida. Merece, aliás, ser salientado que a falta de cenário é integralmente uma
desrealização presente no teatro. Isso porque, para Rosenfeld (ROSENFELD, 2009, pg.79),
o palco à italiana, esse tipicamente abandonado na obra de Beckett, era especialmente
característico por ser perspectivo. A cena moderna, igualmente encontrada em Esperando
Godot, é “espacial”, sem caixa de palco (BECKETT, 2015, p. 79). Para ratificar o dito,
destaco os dizeres de Ruby Cohn, quando em Esperando Godot (2015), sentencia que a
presença dos elementos no palco não implica passado ou futuro. O que extraímos do palco
é o loop do tempo, ao mesmo tempo em que os elementos componentes remetem a ideia de
tempo transcorrido – embora não se sabendo quanto. Esperando Godot não conta uma
história, longe disso, explora uma situação estática.

No decurso do primeiro ato, o que assimilamos de cenário concentra-se somente em


uma árvore desnuda juntamente de uma pedra ocasional: “Estrada no campo. Árvore.
Entardecer. Sentado sobre uma pedra, Estragon tenta tirar a bota. Faz força com as duas
mãos, gemendo” (BECKETT, 2015, p. 19). Como mínimas mudanças, o segundo ato
compõe os mesmos componentes. O que é possível notar de irregular é a transformação
mínima da árvore e a ausência da pedra inicial: “Dia seguinte. Mesma hora. Mesmo lugar.
Botas de Estragon no centro, à frente, saltos colados, pontas separadas. Chapéu de Lucky
no mesmo lugar. Algumas folhas na árvore” (BECKETT, 2015, p. 63). A Espera de Godot
atua como único recurso capaz de haver qualquer apego mínimo ao cenário.

Dentre as principais especificidades do palco, é possível encontrar, além dos


mínimos detalhes e objetos constituintes, o recurso metateatral. Há uma exposição
voluntária quando, a fim de matar o tempo na espera de Godot, os personagens Vladimir e
Estragon decidem praticar conversação (BECKETT, 2015, p. 22), ou simplesmente quando
a dupla Pozzo e Lucky recriam uma peça, assim como é possível analisar pela seguinte
passagem: “LUCKY (exposição monótona) Dada a existência tal como se depreende dos
recentes trabalhos públicos de Poinçon e Wattmann de um Deus pessoal quaquaquaqua de
barba branca ...” (BECKETT, 2015, p. 49)

Esse procedimento metateatral na peça atua como um dos elementos essenciais em


sua construção, e por consequência, é elencado como uma desrealização. Isso porque, a
peça trabalha com o ficcional ao quebrar a quarta parede quando Lucky, trabalhando o
metateatro, fomenta a interação com a plateia, que neste momento assume sendo Vladimir
e Estragon (BECKETT, 2015, p. 51). Outro momento em que vemos o emprego do
metateatro, e consequentemente, a quebra da quarta parede, ocorre no segundo ato, com
atuação de Vladimir e Estragon:

VLADIMIR Podíamos nos fazer de Pozzo e Lucky.

ESTRAGON Não conheço.

VLADIMIR Eu sou o Lucky, você, o Pozzo. (Assume atitude de Lucky, vergado


sob o

peso da bagagem. Estragon observa-o, estupefato) Sua vez.

ESTRAGON O que é que eu tenho que fazer?

VLADIMIR Me xingue!

ESTRAGON Nojento!

VLADIMIR Melhore!

ESTRAGON Canalha! Escroto!

Vladimir avança, recua, sempre vergado.

VLADIMIR Me mande pensar.

ESTRAGON O quê?

VLADIMIR Diga: pense, porco!

ESTRAGON Pense, porco! (BECKETT, 2015, p. 79)

Esse fato de abstração quebra a tradição realista julgada por Rosenfeld, isso porque
o Realismo intenta retratar com exatidão o que o olho vê, ignorando cenas históricas,
literárias, mitológicas e religiosas. Rosenfeld, em trabalho supracitado, diz que a
desrealização na obra decorre quando a arte deixa de recriar a realidade como é
(ROSENFELD, 1996, p. 76).
A composição teatral de Esperando Godot, ora pelo espaço desnudo, característico
unicamente por uma árvore insípida e por uma pedra inerte, ora pelos elementos
constituintes do enredo e do tempo, bem como pela presença do metateatro e sua
magnitude, levam à desrealização em sua composição. A obra não se compromete com
regras estilísticas, “o mundo da peça é uma abstração” (BECKETT, 2015, p. 121), e sendo,
portanto, uma abstração, recai para a linguagem subjetiva. No palco, a linguagem subjetiva
está camuflada sobre o palco vazio e por seus elementos constituintes.

O palco quase sem elementos, o cenário repetido, sem muitas alterações, carente
em detalhes, demonstra a realidade mísera em que vive o ser humano pós-Segunda Guerra;
perdido, desiludido. Nesse ambiente, a obra abandona o uso do palco à italiana, isso porque
o cenário da peça não é perspectivo; não simula um espaço tridimensional. Os elementos
constituintes do palco provocam um riso desopilante e nada inocente. Beckett propôs cada
detalhe do palco propositalmente.

A interdição ao riso franco é assunto para Vladimir e Estragon, como


tudo mais na armadilha dramática que os apanha. As alusões ao caráter
ficcional da sua existência, o metateatro, estão no coração da peça, e vão
um passo além do experimentalismo pirandelliano. A opção modernista
pelo choque como procedimento, derrubando a quarta parede imaginária
do palco italiano, é muito mais sutil do que em Eleutheria, por exemplo.
(BECKETT, 2015, p. 10)

O abandono em retratar o problema como é, de forma nua e crua, sem o máximo de


fidelidade da realidade, traz à obra a imagem de desrealização. Samuel Beckett, tentando
retratar questões filosóficas sobre a condição humana, não apresenta ao público de forma
fiel, nutrido em detalhes. Antes, satiriza o problema diante do auditório, permitindo que a
interpretação da peça fique à mercê da plateia. Neste momento, a arte não mais copia a
realidade nos moldes tradicionais. Segundo defende a historiadora Linda Nochlin
(NOCHLIN, 1971, p.13), o intuito primordial da arte realista era “oferecer uma verdadeira,
objetiva e imparcial representação do mundo real baseada na observação da vida
contemporânea”. Infere-se o realismo como um movimento estético capaz de enfatizar
impecavelmente a conexão entre a representação artística e a realidade. Diferentemente do
que ocorre em Godot. Beckett cria uma história sem início, meio ou fim, com intuito de
manifestar o sentimento de sua geração confusa, o esvaziamento do conceito de
Humanidade, sem dar-se ao trabalho de trazer em pormenores. Ao decorrer de toda a peça,
Beckett retrata o peso existencial de existir numa perspectiva absurda de existência. Mas,
para isso, Beckett rejeita a razão, ausenta-se de detalhes e usufrui da irrealidade. Beckett
trouxe à peça a reflexão do indivíduo defronte à sociedade pós Segunda Guerra,
conformando-se com sua condição despicienda. Para ilustrar o dito, a cena é construída em
cima de um diálogo de Estragon e Vladimir enquanto dividem uma cenoura:

ESTRAGON Veja só! (Ergue pelo talo o que sobrou da cenoura e faz
girar o resto diante

dos olhos) Que engraçado, quanto mais vai, pior fica.

VLADIMIR Comigo é ao contrário.

ESTRAGON O que quer dizer isto?

VLADIMIR Vou me acostumando aos poucos.

ESTRAGON (depois de pensar bastante) E isso é o contrário?

VLADIMIR Questão de temperamento.

ESTRAGON De caráter.

VLADIMIR Não tem jeito.

ESTRAGON Não adianta se debater.

VLADIMIR Somos o que somos.

ESTRAGON Não adianta se contorcer.

VLADIMIR Pau que nasce torto…

ESTRAGON Nada a fazer. (BECKETT, 2015, p. 30-31)

O dramaturgo constrói o questionamento por meio de um diálogo decorrente do ato


de espera. A espera por um encontro que não se cumpre os coloca em questionamentos no
tocante à existência defronte ao cenário em que vivem. Conformados acerca de suas
condições miseráveis, estagnados, cansados pelo aguardo infinito, já nada esperam senão
frustração. E com a intenção de ilustrar a problemática, o autor recorre a diálogos sensíveis
durante a peça, como por exemplo, o suicídio (BECKETT, 2015, p.26), além de estampar a
angústia do homem em meio ao caos do ambiente (BECKETT, 2015, p. 33), quando
Estragon pedincha os ossos de galinha, antes roído por Lucky, que primeiramente eram
pedaços de frango em posse de Pozzo. Esse, por sua vez, ao terminar a refeição, declama:
“Ah! Assim está melhor” (BECKETT, 2015, p. 36), o mesmo declama Estragon, ao roer os
ossos, antes roído por Lucky. Nota-se que, novamente utilizando de repetição, dessa vez
repetindo as mesmas palavras, Beckett aborda uma das temáticas da obra reutilizando da
repetição, do tempo em círculo. A repetição da mesma frase, nesse momento, atua como
recurso irônico para ilustrar o egoísmo e o contraste de realidade entre indivíduos de uma
mesma sociedade. Recorrendo, então, aos estudos de Rosenfeld, observa-se uma mudança
na estrutura do teatro, no que diz respeito à exposição dos assuntos na peça. Essa mudança:

De um modo geral é com o grande sueco e com Pirandello que se inicia


no teatro a destruição do espaço cênico fechado, processo que acompanha
a superação da mecânica clássica e da matemática euclidiana. Com a
“teoria da relatividade cênica”, espaço e tempo fictícios começam a
oscilar e pelas paredes rotas do palco penetra o mito, a mística, o irreal,
enquanto a psicologia profunda faz estremecer os planos da consciência,
impregnando a realidade de elementos oníricos (ROSENFELD, 1996, p.
80-81)

A complexidade em exteriorizar o sentimento do indivíduo, sempre ridicularizando


em cenas grotescas, os diálogos circulares dos personagens em tratar os temas
significativos da peça, a técnica adotada em reproduzir o fluxo de consciência das
personagens, uma vez que permite a mistura de sentimentos em um mesmo momento, leva
a radicalização à forma de criar o teatro. Nas palavras de Rosenfeld (ROSENFELD, 1996,
p. 87), a perspectiva do realismo desaparece, pois não há mais nenhum mundo exterior a
projetar, já que o próprio fluxo psíquico se espraia sobre o plano da tela. O que se verifica
é a ruptura entre o homem e o mundo, sendo eliminada a maneira realista de retratar a
realidade do indivíduo, uma vez que a perspectiva desse mundo havia desaparecido.
“Assim, a perspectiva, de início recurso artístico para dominar o mundo terreno, torna-se
agora símbolo do abismo entre o homem e o mundo...” (ROSENFELD, 1996, p. 88).

Em uma sociedade que buscava direcionamento para a vida pós-Guerra, Beckett


constrói Esperando Godot transmitindo a figura de um homem horrorizado com as mazelas
da Guerra e perdido sobre o futuro que o espera. A figura do sujeito na obra é retratada por
duas almas solitárias que vivem senão a esperar. A repetição da fala profética de abertura
da peça “nada a fazer” (BECKETT, 2015, p. 19) ao decorrer da obra, reitera não só o
pensamento de solidão e abandono, como também a impotência dos personagens frente à
sociedade. “Não se trata de um teatro de lágrimas, mas de crueldade, de humanidade”
(BECKETT, 2015, p. 112).

Na peça de Beckett, os personagens são meros portadores abstratos – inválidos e


mutilados – da palavra, atuando como simples suportes não figurativos da língua. O
possível herói da peça, a título de exemplo, é revelado como ilusão quando, colocado em
forma de busca pelos personagens, esses inseridos em um cenário anafado pelo marasmo, é
tido como Salvador. O passar da peça é marcada pela busca infindável por Godot. Não se
tem conhecimento de quem seja Godot, nem ao menos os personagens possuem esse saber
(BECKETT, 2015, p. 32), no entanto, o que os vivificam nessa espera é a esperança de que
a vinda de Godot resulte na consolidação de seus desejos defronte às aflições da sociedade
em que vivem (BECKETT, 2015, p. 29).

Na peça, os personagens são apresentados sem controle vivos e físicos. Não há


conhecimento de que tenham família. A obra não apresenta informações precípuas sobre
quem estamos conhecendo. De onde vieram é um mistério carregado ao discorrer de toda a
peça. A única informação que a obra nos entrega é que são seres viajantes (BECKETT,
2015, p. 32). Vladimir e Estragon são indivíduos inseridos na obra equivalentes a animais,
isso graças ao desaparecimento do domínio de seus privilégios, posto que são seres
marginalizados no que concerne aos direitos humanos fundamentais. Ambos são retratados
como sujeitos ignorantes da vida. O único saber que portam é o dever de viver em um
tempo paralisado, já que permanecem todo o passar da obra esperando por Godot. Tudo
isso é colocado na tentativa de expor uma nova visão do homem moderno, uma vez que a
sua realidade havia se desconfigurado (ROSENFELD, 1996, p. 97), sendo que ele estava
posto diante de uma sociedade martirizada pela dúvida, doente devido à intervenção da
Guerra, portanto, o homem também se desconfigurou. O ser humano coagiu-se a se
reconstruir, desconfigurando os valores imbuídos por séculos anteriores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As modificações que a sociedade sofreu durante os anos de 1939 a 1945 refletiram


no íntimo do teatro, no tocante ao aparecimento de uma convenção dramática nova e que
antes não existia. Esperando Godot é uma obra-prima, isso devido à forma de retratar o
desconhecido, o isolamento da personagem em sua própria interioridade, sem a presença
do heroico, como também a maneira de abordar a espera por algo capaz de mudar a mísera
realidade dos indivíduos. Elementos encontrados em Godot eram pouquíssimos recorrentes
na história do teatro; a peça quebrou as algemas do enredo, varrendo-as para longe do
teatro, e dessa maneira chegou a despertar certo desprezo por aqueles que integravam o
Théâtre de Babylone, em 1953, porém, foi também muito aclamada pelos críticos
parisienses e professores de universidades, exatamente pela sua produção teatral
modernista e inovadora. Martin Esslin, crítico húngaro, cunhou o termo Teatro do Absurdo
durante o fim de 1950, justamente para caracterizar peças teatrais que, surgidas após o fim
da Segunda Guerra Mundial, retratassem a solidão do homem frente à nova sociedade,
além de expressar a atmosfera de desolação e dúvida do ser moderno. Esslin caracteriza,
em sua obra O Teatro do Absurdo, Esperando Godot como uma das obras teatrais que deu
origem ao teatro contemporâneo, e desse modo, a definição Teatro do Absurdo. Assim
como defende o crítico, a desconexão que existe nos diálogos das personagens de Beckett
ilumina a antítese sobre O Absurdo, isso porque, para Esslin, absurdo refere-se a uma
resposta filosófica e estética sobre a condição de inteligibilidade a que chegou o homem
moderno diante de suas pretensões humanistas e da realidade que o cercava.

A arte anterior ao teatro de Beckett carregava uma visão muito contemplativa,


extremamente representativa. Esperando Godot entrega ao público do século XX uma obra
destituída das correntes realistas, fornecendo um teatro que evidencia as complexidades do
ser humano, com personagens que vagam em um tempo circular, quebrando as algemas do
enredo, varrendo-as para longe de qualquer resquício do teatro realista, produzindo uma
grande obra-prima.

REFERÊNCIAS

BUENO, Thiago. A singularidade do Teatro do Absurdo: o real em forma de irreal. 2013.


BECKETT, Samuel. Esperando Godot. São Paulo: Le Livros, 2015.
BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2010.
CARLSON, Marvin. Teorias do Teatro: Estudo histórico-crítico, dos gregos à atualidade.
São Paulo: UNESP, 2002
ESSLIN, Martin. O Teatro do Absurdo. São Paulo: Zahar, 2018
FREIRE, Bernard. Uma ponte no teatro. 2017.
NOCHLIN, Linda. Realism, Nova York: Penguin Books, 1971.
PRADO, Décio de Almeida. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2000.
ROSENFELD, Anatol. Texto/Contexto. São Paulo: Perspectiva, 1996.
SZONDI, Peter. Teoria do Drama Moderno. São Paulo: Cosac Naify, 2001.

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