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LÚCIO EMÍLIO DO ESPÍRITO SANTO JÚNIOR

A JORNADA DO HERÓI: JOÃO LUCAS KLAG FORMOSO,


PROTAGONISTA DE MARCO ZERO?

CAMPINAS
2008

i
LÚCIO EMÍLIO DO ESPÍRITO SANTO JÚNIOR

A JORNADA DO HERÓI: JOÃO LUCAS KLAG FORMOSO,


PROTAGONISTA DE MARCO ZERO?

Tese apresentada ao Instituto de Estudos


da Linguagem, da Universidade Estadual
de Campinas, para obtenção do Título de
Doutor em Teoria e História Literária.

Orientadora: Profª. Drª. Maria Eugênia da


Gama Alves Boaventura Dias

CAMPINAS
2008
ii
Dedico esse trabalho à
professora Maria Eugênia
Boaventura, que bem soube me
ensinar os caminhos da
maturidade intelectual.

iii
Agradeço à minha esposa
Laurene e aos meus filhos Gabriel
e Isa, pela paciência nas horas
difíceis e pelo carinho e atenção
com que entenderam as minhas
ausências.
Aos meus pais,
especialmente, sou grato pela
leitura atenta dos meus textos e
pelas preciosas sugestões.
Ao meu avô Mário Morais
e à Lara, in memorian.
Ao Fernando Gonzaga e
demais colegas, funcionários e
professores (as) da UNICAMP,
junto de quem sempre é bom
estar.
iv
Grito para Roma

O amor está nos fossos onde lutam as serpentes da fome,


No triste mar que embala os cadáveres das gaivotas
E no escuríssimo beijo pungente embaixo das almofadas.
Mas o velho de mãos translúcidas
Dirá: Amor, amor, amor,
Aclamado por milhões de moribundos;
Dirá: amor, amor, amor,
Entre o tecido da seda estremecido da ternura;
Dirá: paz, paz, paz
Entre o ruído de facas e de dinamite;
Dirá: amor, amor, amor
Até que se tornem de prata os seus lábios.
Entretanto, entretanto, ai!, entretanto,
Os negros que tiram as escarradeiras,
Os rapazes que tremem sob o terror pálido dos diretores,
As mulheres afogadas em óleos minerais,
A multidão de martelo, de violino ou de nuvem,
Há de gritar ainda que lhe rebentem os miolos contra o muro,
Há de gritar ante as cúpulas,
Há de gritar louca de fogo,
Há de gritar louca de neve,
Há de gritar com a cabeça cheia de excremento,
Há de gritar como todas as noites juntas,
Há de gritar com voz tão despedaçada,
Até que as cidades tremam como meninas
E rompam as prisões do azeite e de música,
Porque queremos o pão nosso de cada dia,
Flor de amieiro e perene ternura debulhada,
Porque queremos que se cumpra a vontade da Terra
Que dá seus frutos para todos

Federico Garcia Lorca

v
RESUMO

Nossa leitura de Marco Zero foi construída para responder a seguinte pergunta:
quem é o herói ou protagonista em Marco Zero? A questão foi deixada de lado pela
crítica contemporânea ao livro e pela acadêmica. As pesquisas centradas nos
conceitos de romance ―documental‖, ―coletivo‖ e ―mural‖ esclarecem aspectos do
romance – e por isso foram levadas em conta nesse trabalho. A partir de uma
abordagem voltada para o leitor, chegamos ao questionamento acima, fundamental
para que o leitor possa encontrar um ponto de identificação e ordenar a narrativa,
gerando sentido. Para qualquer leitura mais abrangente que se queira fazer, é
preciso esse fio narrativo; por vias das dúvidas, fizemos um mapeamento em que
cada fragmento foi nomeado e numerado da mesma forma que Memórias
Sentimentais de João Miramar, ficou possibilitada a chamada leitura coerente do
romance. Nossa leitura, com base no mapeamento e pensando no leitor, definiu o
personagem Jango como o protagonista de Marco Zero. Na leitura feita a partir
dessa tese, desconstruímos as posições do autor empírico a respeito do Marco
Zero, assinalando que estavam empenhadas numa conquista de público e de
sedução de um leitor conservador com promessas às quais o Marco Zero não
atendeu completamente. Descartamos também as analogias com Plínio Salgado: os
romances de Plínio Salgado nem sequer possuem continuidade de personagens,
não perfazendo sequer uma trilogia. O conceito de analogia também foi substituído
pelo de homologia. No entanto, preferimos buscar passagens e características
homólogas a Marco Zero em Memórias Sentimentais de João Miramar; acentuamos,
através do método das passagens paralelas, as características que Marco Zero
possui em comum com Miramar e Serafim: humor, paródia, trocadilho. Finalmente,
buscou minorar as diferenças entre os diversos romances de Oswald de Andrade e
fazer com que os volumes do Marco Zero sejam vistos enquanto obra madura,
capaz de estilo engraçado e dinâmico, com uma especificidade própria: sem diminuí-
los em prol de obras anteriores, obras que deveriam iluminar Marco Zero, nunca
ofuscá-lo.

Palavras-chave: protagonista, focalização, romance, humor, paródia, teoria da


recepção.

vi
ABSTRACT

Our reading of the text Marco Zero was constructed to answer the following question:
who is the hero or protagonist in Marco Zero? The question was left of side by the
critic, academic or not. The last critical research was centered in the concepts of
documentary, collective and mural novel to clarify aspects of the novel - and
therefore they had been taken in account to this work. To ―reader-response theory‖,
we arrive at the questioning above: the reader needs to find an identification point
and command the narrative. For any reading more including, we need to find this
narrative focus. We made a mapping where each break up was nominated and
numbered as in the novel Memórias Sentimentais de João Miramar, a reading that
made possible a coherent reading of the novel. On the basis of the mapping and
thinking about the reader, we defined the personage Jango as Marco Zero´s
protagonist. In the reading made on this thesis, we deconstructed the positions of the
empirical author regarding Marco Zero, designating that they were pledged in a
conquest of public and seduction of a conservative reader with promises which
Marco Zero did not take care of completely. We also discard the analogies with Plínio
Salgado: the three novels of Plínio Salgado not even possess continuity of
personages, not making a trilogy at least. The analogy concept also was substituted
by the homology one. However, we prefer to search homologous characteristics of
Marco Zero in the novel Memórias Sentimentais de João Miramar; we accent,
through the method of the parallel fragments, that the characteristics Marco Zero
possesss in common with Miramar and Serafim: humor, parody, a lot puns an plays
on words. Finally, we searched to minimize the differences between the diverse
novels of Oswald de Andrade and make the volumes of Marco Zero seen more
mature, capable of funny and dynamic style, with a proper specificity: without
diminishing them in favor of previous Oswald´s novels, novels that would have to
illuminate Marco Zero, never to dim it.

Key words: protagonist, focalization, novel, humor, parody, reader-response theory.

vii
LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Modelo atuacional.......................................................................................43

Figura 2: Axiologia e transformações.........................................................................43

viii
LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Estruturação da fábula...............................................................................41

Tabela 2: Evolução do português...............................................................................82

Tabela 3: A posse contra a propriedade....................................................................98

Tabela 4: A escola do cavalo azul............................................................................100

Tabela 5: A namorada do céu..................................................................................102

Tabela 6: Vésperas paulistas...................................................................................104

Tabela 7: Latifundiários em armas...........................................................................107

Tabela 8: Pro Brasília Fiant Eximia..........................................................................108

Tabela 9: Reina paz no latifúndio.............................................................................110

Tabela 10: O solo das catacumbas..........................................................................110

Tabela 11: O decapitador.........................................................................................111

Tabela 12: O tapete dos terreiros.............................................................................113

Tabela 13: Somos um eldorado fracassado.............................................................114

ix
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

 FE – focalizador externo

 FP – focalizador personagem

 MZ – Marco Zero

 NE – narrador externo

 PNP – português não-padrão

 USP – Universidade de São Paulo

x
SUMÁRIO

I INTRODUÇÃO......................................................................................01

II TRILHAS E CAMINHOS METODOLÓGICOS...........................................04

2.1 Narratologia: abordagem estruturalista


renovada...................................................................................................04
2.2 A perspectiva narratológica....................................................07
2.3 Visão retrospectiva......................................................................11

1ª PARTE – A JORNADA DO HERÓI: ELEMENTOS DA FÁBULA

3. O HERÓI EM SEU
MUNDO....................................................................................................................14
3.1 O romance e linha lógica do texto narrativo...................................14
3.2 O herói entra em cena...............................................................................17

3.3 AVENTURAS E
RUPTURAS.........................................................................24
3.4 Ruptura com o mundo político..............................................................24
3.5 Ruptura com o mundo das convenções sociais....................................26
3.6 Ruptura com o mundo da intimidade familiar.........................................27

3.7.PROVAÇÃO
SUPREMA................................................................................29
3.8 A decisão de partir.....................................................................................30
3.9 Os revoltosos recebem adjuvantes.........................................................31
3.10 Imagens melancólicas da campanha
paulista........................................33

xi
3.11 MORTE E
RESSURREIÇÃO..........................................................................35

4 O HERÓI RETORNA A SEU MUNDO...........................................................38


4.1 A revolução de 32 e a piada do português..............................................38
4.2 Consciência da realidade..........................................................................39
4.3. VISÃO DE MUNDO EM MARCO
ZERO........................................................40
4.4. Estruturação da
fábula..............................................................................41
4.5 Modelo atuacional......................................................................................43
4.6 Axiologia e transformações......................................................................43

2ª PARTE – A JORNADA DO HERÓI: ASPECTOS DA FÁBULA

5 O NARRADOR EXTERNO E O HERÓI.........................................................45

5. 1 JANGO E A FOCALIZAÇÃO
INTERNA..................................................................52

5. 2 ENTRE JOÃO E QUINDIM: PARÓDIA, HUMOR,


TROCADILHO.................52

6 A ANTROPOFAGIA COMUNISTA EM MARCO ZERO................................63


6.1. Música, pintura, romance.........................................................................67
6.2. Antropofagia em MZ.................................................................................73
6.3. Major Dinamérico e a versão conservadora da antropofagia...............75

3ª PARTE – A JORNADA DO HERÓI: AS PALAVRAS

7.1 JANGO E O PNP (PORTUGUÊS NÃO


PADRÃO)........................................81

xii
7.2 Norma culta e norma padrão....................................................................81

III CONCLUSÃO....................................................................................................88

IV REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...........................................................90

4.1 Obras de Oswald de Andrade...................................................................90


4.2 Obras sobre Oswald de Andrade.............................................................90
4.3 Obras de Teoria Literária..........................................................................93
4.4 Geral............................................................................................................95

V ANEXOS..............................................................................................................98

xiii
I INTRODUÇÃO

Acho que o Marco Zero vai acabar com o meu afastamento do público que lê... Porque
procuro dar conta, em ordem direta, dos episódios que todos nós vivemos, neste grande
decênio que começa em 1932 e vem até 1942. É a ordem direta...
Oswald de Andrade

O escritor, jornalista e dramaturgo Oswald de Andrade (1890-1954) entrou para


a história da literatura brasileira por sua vasta obra: poesia, romance, teatro,
polêmicos manifestos, criação de jornais, participação na grande imprensa. No
entanto, nem toda sua obra costuma ser avaliada positivamente. Após ter vivido um
ostracismo no final da vida, valorizado somente por um pequeno grupo de escritores
amigos, dentre os quais os concretistas, Oswald de Andrade voltou a ser debatido a
partir dos anos 60 e 70 em diante. No entanto, determinados aspectos de sua ficção
permaneceram pouco estudados. Marco Zero I e II são dois bons exemplos de obras
oswaldianas que foram objeto de poucos estudos acadêmicos. Oswald de Andrade
tinha um projeto ambicioso quando começou a escrever o referido romance. O
projeto inicial compreendia cinco volumes, onde só os dois primeiros foram
publicados: A Revolução Melancólica (1943), Chão (1945). Ambos foram um
fracasso de crítica, contemporânea e posterior. Marco Zero ficou conhecida como
obra menor, sendo lido, mais recentemente, como uma espécie de ―desvio literário‖
resultante do engajamento do escritor ao comunismo.
A história da recepção crítica de MZ poderia ser resumida em poucas palavras:
ela consistiu na emissão de juízos negativos a respeito do livro e sua revisão
posterior. A ausência de uma análise psicológica profunda, exigida por Antonio
Candido, não seria conveniente nessa visão nova do romance, onde o centro de
interesse não se encontra mais no personagem isolado, mas no grupo social ao qual
ele pertence. Nessa dissolução do protagonista (ou dos protagonistas) residiu
grande parte da dificuldade da obra. Aparentemente sem um protagonista definido, o
romance priva o leitor de um ponto de vista com o qual identificar-se e estabelecer
empatia.

1
Tais juízos negativos produziram, supomos, até desinteresse pela reedição do
livro: até hoje ocorreram somente três reedições (1974, 1991 e 2008). Como temia
Oswald, a posteridade reproduziu as avaliações negativas de Candido e disseminou-
as na crítica posterior (Maria de Lourdes Eleutério, Lúcia Helena). Essa tese
representou um desenvolvimento dos pontos de vista dos críticos que enfocaram MZ
através de um ponto de vista mais compreensivo e favorável: Maria Eugênia
Boaventura e Antônio Celso Ferreira.
Nos anos 40, Oswald enredou-se num dilema: precisava sempre remeter ao
seu papel vanguardista na Semana de 22 para dar aos demais a medida da
valorização que deveria ser dada à sua obra. Ao mesmo tempo, para prosseguir
atualizado, buscou afirmar que já tinha superado o legado da Semana, já pensava
em outros projetos, outras experiências. Assim, para exigir reconhecimento,
retornava ao seu papel do passado; no entanto, para continuar vanguardista, era
preciso proclamar a superação de antigas posições. Supomos que Oswald, ao
produzir MZ, conseguiu as duas coisas: o romance consegue superar as antigas
posições sem perder o caráter vanguardista.
O fato é que a estrutura dos dois últimos romances de Oswald, dentre as
instigantes questões estéticas que coloca, presta-se a uma análise dos personagens
na obra de ficção. O pressuposto de todas as teorias existentes é o de que os
personagens envolvidos num enredo desempenham determinadas funções:
protagonistas, antagonistas, secundários, confidentes, de contraste, narrador, dentre
outras. A compreensão de qualquer narrativa de ficção depende da identificação
destas e da eficácia com que cada personagem as exerce. Trata-se de uma
convenção: todo leitor espera identificar não apenas os nomes dos personagens,
sua descrição física, suas aventuras, mas como aquele personagem funciona, como
ele age, qual seu comportamento.
O conjunto de questões que nos ocorrem ao ler esses dois últimos romances
de Oswald, obra de ficção em que o narrador opta por multiplicar os focos narrativos,
sem privilegiar esse ou aquele personagem, é o seguinte: como analisar um
romance que foge totalmente às convenções, considerando que a definição de
funções é essencial à interpretação do texto de ficção? Se os personagens não
desempenham as funções convencionalmente estabelecidas, exerceriam outras,
mas sendo estas ainda desconhecidas pela tradição? Qual a reação do leitor diante
da narrativa que lhe apresenta personagens sem funções claramente definidas?

2
Existir ou não um personagem principal é relevante para a interpretação do
romance, já que o próprio autor não deu importância a isso? Qual dos personagens
do romance poderia ser considerado o herói do romance, apesar da indefinição
estabelecida pelo autor? Jango? Miguelona? Examinando a bibliografia disponível a
respeito da obra, verificamos que os códigos necessários para sua melhor
compreensão inexistiam ao tempo de sua publicação (anos 40). São eles: o método
estruturalista, que possibilita organizar a estrutura romanesca e definir a função de
tantos personagens; outro é a estética da recepção, (a abordagem voltada para o
leitor), que nos fez refletir sobre a necessidade de um protagonista.
Podemos fazer uma leitura onde, apesar de quase desaparecer em alguns
momentos (como quando surge o personagem Lírio), o personagem João Lucas
Klag Formoso (Jango) seria o protagonista. Daí o propósito de fazer uma leitura que
privilegie os elementos que conformam a narrativa do MZ enquanto narrativa de
estrutura organizada a partir desse protagonista hipotético. A seguir, depois de
esclarecida a visão de mundo presente na obra, investigou-se também uma releitura
da antropofagia: outra de nossas hipóteses é que o romance contém uma
―antropofagia comunista‖.
A revisão das avaliações negativas a respeito de MZ ocorreu somente nos
anos 80. Como veremos mais adiante, com freqüência alguns críticos realizaram a
aproximação desse texto com os romances de Plínio Salgado (Antonio Candido,
Antonio Celso Ferreira), hipótese que descartamos. Preferimos aproximar os textos
do restante da obra de Oswald de Andrade: os seus laços com o restante da obra
oswaldiana não são reconhecidos. Nossa leitura buscou, após escolher um
protagonista para MZ, enfatizar a análise da narrativa através de alguns conceitos
narratológicos (narrador externo, NE, focalizador personagem, FP) e lingüísticos
(português não-padrão, PNP), seguindo a trilha indicada pelo protagonista Jango,
ora intitulada ―jornada do herói‖. Como resultado, pensamos que foi possível fazer
uma leitura coerente do romance, seguindo um fio narrativo.

3
II TRILHAS E CAMINHOS METODOLÓGICOS

A crítica a respeito de MZ obedeceu a algumas estratégias metodológicas que


é preciso inventariar aqui. Ao mesmo tempo, é necessário visualizar o conjunto do
instrumental teórico que foi utilizado na presente tese.

2.1 A narratologia: abordagem estruturalista renovada

A vasta gama de teorias e métodos surgidos nas décadas subseqüentes ao


falecimento de Oswald de Andrade deu novo rumo às análises literárias. No entanto,
por motivos que não cabe investigar, esse instrumental teórico não foi aplicado em
sua inteireza à análise da obra aqui estudada.
Nesse trabalho, o embasamento teórico foi dado principalmente pelos
conceitos oriundos do texto Narratology (Narratologia), de Mieke Bal. Tal texto
teórico de Bal, escrito em 1983, condensa e organiza o instrumental de análise
imanentista e formal da obra proposta por inúmeros teóricos que a precederam,
fixando-se principalmente, conforme pode-se notar por meio de uma simples
observação em seu referencial bibliográfico, nos chamados estruturalistas: Greimas,
Barthes, Propp, dentre outros.
No entanto, essa pesquisa não se ateve a analisar os aspectos formais da
narrativa, organizando tabelas com os capítulos e personagens. O método aplicado
aqui, portanto, aproxima-se da perspectiva do estruturalismo genético proposto por
Lucien Goldmann, ou seja, nos propomos, além de elucidar estruturas significativas,
mediante as quais possamos dar conta do conteúdo do romance e de seu caráter
formal, também buscamos encontrar relações significativas entre as estruturas do
universo literário e as estruturas sociais, econômicas, políticas e religiosas, dentre
outras. Pode-se dizer que: ―Lucien Goldmann, ao contrário de Lévi-Strauss, não
considera, pois, como incompatível a investigação das estruturas e a da gênese, e
abre assim uma outra via, menos fechada à história, ao destino estrutural‖ (DOSSE,
1993, p. 206).

4
O estruturalismo genético introduz o conceito de romance como sendo a
história de uma pesquisa de valores autênticos num mundo degradado. Fala ainda
de ruptura insuperável entre o herói e o mundo, conceito articulável, conforme se
verá mais adiante, com as teorias estruturalistas bem posteriores a respeito dos
conteúdos investidos na figura do herói ou protagonista e sua função na
estruturação da mensagem narrativa.
Um passo importante para elucidar a questão foi dado por Vladimir Propp, que,
ultrapassando os métodos de análise de conteúdo tradicionais, incapazes de isolar
os elementos constitutivos da mensagem, acaba por descrever com bastante
precisão a significação e as articulações possíveis das categorias atuacionais. Os
trabalhos de Propp, apesar de publicados em 1928, só irão despertar o interesse
dos estudiosos algumas décadas depois. A hipótese de que a metodologia criada
por Propp pudesse ser estendida a outros gêneros literários e artísticos orientou os
trabalhos de seus seguidores, tais como Lévi-Strauss, Greimas, Claude Bremmond,
Todorov.
Sem evidentemente sofrer qualquer influência de Propp, mas utilizando uma
metodologia muito semelhante, o americano Joseph Campbelli estudou as
semelhanças entre as narrativas da mitologia universal. O ponto fulcral de suas
análises é a constatação de que a maioria dos heróis mitológicos faz sempre a
mesma jornada e ela se organiza mediante esquemas muito semelhantes aos
estabelecidos por Propp. A matriz dessas histórias que se repetem sempre é o
inconsciente coletivo, tal como definido por Jung, ou seja, a camada mais profunda
do inconsciente, o substrato psíquico, idêntico em todos os seres humanos.
Diferentemente do inconsciente pessoal, cujos conteúdos são principalmente os
complexos de tonalidade emocional, os conteúdos do inconsciente coletivo são os
chamados arquétipos, isto é, representações coletivas, formas pré-existentes, que
só secundariamente podem se tornar conscientes, conferindo uma forma definida
aos conteúdos da consciência.
Igualmente úteis na análise do romance foram os estudos sobre a narrativa
teatral elaborados por Etienne Souriau, em sua obra 200 000 Situações dramáticas.
O próprio Souriau explica a gênese de suas análises, dizendo estarem elas
fundamentadas em trabalhos anteriores como o de Gozzi, conhecido por sua
importância como renovador, no século XVIII, da Commedia dell’arte, para o qual
existiam em tudo e para tudo, 36 situações dramáticas. Este número, corroborado

5
por Goethe, não foi ampliado nem reduzido por Geoges Polti, outro pesquisador,
autor de um livro bastante conhecido e frequentemente editado, intitulado Les XXXVI
situations dramatiques. Assim como Greimas promoveu o acasalamento das 31
funções inventariadas por Propp, Souriau também reduz as 36 funções de Gozzi, a
apenas 6: a força temática ; valor ou bem cobiçado; obtenedor do bem desejado; o
oponente; o atribuidor do bem e o auxílio ou adjuvantes. Através desse esquema
simples, Souriau consegue:

Distinguir através de análises as grandes ‗funções dramatúrgicas‘ nas


quais se apóia a dinâmica teatral; estudar morfologicamente suas principais
combinações; buscar as razões das propriedades estéticas, tão diversas e
variadas, dessas combinações (que são ‗situações‘) e observar como
essas situações se encadeiam ou por quais reviravoltas se modificam, e
como estas modificações dão vida e levam adiante a ação teatral
(SOURIAU, 2000, p. 45)

Muitos são, portanto, os caminhos e trilhas que se abrem quando se tem como
tarefa analisar um texto tão complexo quanto rico como é o romance oswaldiano de
que estamos tratando. Escolhemos a perspectiva narratológica, ou seja, a teorização
estruturalista renovada, ou seja, investigaremos quais as funções dos personagens
e formas que a narrativa assume. A essa teorização somaremos uma abordagem
voltada para o leitor, pensando em como o leitor pode resolver uma narrativa sem
protagonista (utilizamos como sinônimo o termo ―herói‖) claramente definido.

2.2 A perspectiva narratológica

No seu ensaio A Gramática do Decameron, Tzvetan Todorov afirma que, em


nossos dias, os estudos literários parecem ter encontrado, enfim, seu objeto próprio,
depois de ter errado através de campos distantes entre si, tais como a biografia do
autor e a sociedade contemporânea. Esse objeto, afirma, é a obra literária ela
mesma. A unidade dos estudos literários realiza-se nesse objeto único, qualquer que
seja o método utilizado. Mais adiante, reconhece que a narração é um fenômeno
que se encontra não somente na literatura, mas também em outros domínios que,
no momento, dependem, cada um, de uma disciplina diferente (como contos
populares, mitos, filmes, sonhos, etc). Explica que o seu esforço estaria voltado para

6
a constituição de uma teoria da narração de modo que possa ser aplicada a cada
um desses domínios. Essa ciência (que segundo ele ainda não existia) seria a
narratologia. O que se tem visto, nos últimos anos, é a aceitação cada vez maior da
possibilidade de uma narratologia e esforços que se juntam ao de Todorov para a
constituição dessa ciência. Aliás, a melhor demonstração de que, mais que possível,
essa ciência é inevitável está nos resultados semelhantes a que vários estudiosos
chegaram, ainda que partindo de métodos diferentes, material empírico oriundo de
culturas díspares.
Dentre os autores que adotam a perspectiva narratológica, isto é, tentam
incorporar os avanços mais significativos, numa visão sincrônica e atualizada, está
Mieke Bal, cuja orientação teórica será seguida nesse estudo. O espírito da
narratologia – que se depreende da perspectiva de Todorov – é elaborar um corpus
teórico, aplicável a todo e qualquer texto narrativo. A própria Bal, na segunda edição
de seu livro, fez uma importante inclusão, que revela muito bem essa tendênciaii.
Aqui também pretendemos buscar outras fontes, sobretudo a linha interpretativa de
Campbell, para uma compreensão da estrutura e significado de MZ. O problema do
herói é colocado na maioria das análises, sem, no entanto, atingir o aprofundamento
necessário. Conscientes da importância dessa questão, nossa análise se voltará
para a confrontação do texto narrativo com o referencial teórico proposto por Bal.
Assim, também o valor da teoria – não só as suas proposições – estará sendo
testado, já que MZ se afasta do padrão convencional da maioria das narrativas
romanescas.
Seguindo a linha proposta por Baliii, serão examinados separadamente os
aspectos da história, os elementos da fábula e as palavras. Para esclarecer quais
são os conceitos usados, citamos Bal:

Uma história é uma fábula apresentada de certa maneira. Uma fábula é


uma série de acontecimentos lógica e cronologicamente relacionados que
alguns atores provocam ou experimentam (BAL, 2001, p. 35).

Em MZ, a história é a série de acontecimentos em São Paulo que o romance


mostrou, situados entre 1932 e 1934. A fábula seria a vida de Jango, passada entre
a crise de seu núcleo familiar, a revolução de 32 e suas consequências. O
acontecimento central é: São Paulo rebela-se contra o governo federal, vai às armas
e é derrotado após alguns meses de luta, com amplas conseqüências sociais (BAL,

7
2 2001, p. 13). No primeiro capítulo, trataremos de determinados aspectos da fábula.
No segundo, trataremos de analisar alguns aspectos da fábula, assim como a forma
que foi escolhida para narrar a história. Finalmente, no terceiro capítulo, a terceira
parte da jornada do herói irá se chamar ―as palavras‖, pois aborda a linguagem
utilizada pela história e que compõe a ―maneira‖ com que ela foi contada.

8
2.3 Visão retrospectiva

Para analisar a obra em questão, buscamos compreender sua estrutura: ela


nos pareceu de difícil leitura sem a escolha de um protagonista: optamos por Jango,
devido a seu papel de articulador entre os vários grupos de personagens e seu
maior número de aparições na narrativa (conforme anexo). Dividimos essa análise
em três momentos, inspirados nas teorias expostas em Narratology (Narratologia),
de Mieke Bal: um estudo da fábula, da história e da linguagem (palavras). Utilizamos
também os conceitos de Bal: o termo narrador externo (NE) foi usado para o
narrador que vê tudo de fora, um narrador onisciente que não é personagem da
narrativa; o conceito de focalizador personagem (FP) foi usado no momento em que
o personagem ganha a palavra. Algumas vezes, utilizamos também os termos
focalização externa e interna para evitar repetições. Outro recurso, como veremos,
foi o método das passagens paralelas, que buscaremos em O Demônio da Teoria,
livro de Antoine Compagnon que busca discutir as inúmeras teorias, relacionando
teoria literária e senso comum. Optamos por esse método, utilizado pela
hermenêutica para interpretar a Bíblia Sagrada: para compreender uma passagem
obscura, toma-se uma passagem mais clara e faz-se um paralelo. Nesse trabalho, o
método foi utilizado para aproximar os romances finais de outras obras de Oswald
de Andrade.
Uma abordagem possível desse romance cíclico baseia-se na idéia de que o
romance aqui estudado possuiu analogias com a trilogia de Plínio Salgado e, sendo
assim, uma análise da obra precisaria necessariamente recorrer aos romances
desse autor:

Em grande parte do Marco Zero domina a descrição-julgamento da


sociedade paulista, diminuindo mais ainda a invenção estilística em
proveito de um aumento simétrico do debate ideológico (...). E como a
maneira se desfigura ou rotiniza, o nível só pode cair, em comparação com
os bons livros do autor. Ao contrário deles, Chão não ultrapassa o nível de
uma ‗crônica paulista‘, apresentando analogias, que o tempo acentuou,
com a trilogia de Plínio Salgado (CANDIDO, 1977, p. 85).

9
Não concordamos com a posição acima de Candido, repetida, com nuances,
até mesmo no texto Um Eldorado Errante (São Paulo na Ficção Histórica de Oswald
de Andrade), de Antônio Celso Ferreira, publicado em 1996, e que traz o seguinte
comentário, numa nota de fim:

Ironicamente, o romance mais parecido com MZ é O Estrangeiro, do


integralista P. Salgado (1948), publicado pela primeira vez em 1926 e
inspirado na técnica que Oswald vinha imprimindo aos seus primeiros
trabalhos. Neste caso, Plínio afasta-se de Oswald ao ver, de modo
maniqueísta, metrópoles degradadas contra o pano de fundo autêntico e
espiritual dos campos (FERREIRA, 1996, p. 77)

Como escrevemos, O Estrangeiro é um romance onde o narrador onisciente


acompanha, a todo momento, a trajetória do imigrante russo Ivã, situando-a no
Brasil entre 1914 e 1917. Portanto, o contexto social e político é bem diverso
daquele dos anos 30 onde foi ambientada a obra de que estamos tratando, além do
fato de O Estrangeiro possuir inequivocamente Ivã como seu protagonista, facilidade
não presente no texto em questão na presente tese. Diga-se de passagem, a própria
nota acima se contradiz, ao registrar que Plínio também afastava-se de Oswald.
Ocorreu que, ao investigarmos Revolução Melancólica e Chão, encontramos
raras partes descritivas, quase sempre associadas às raras aparições do NE. E esse
narrador não faz julgamentos, orientando a leitura. Ele com freqüência dá lugar a
uma focalização interna. Nossa opção decorreu do fato de que não existe
importância ou novidade em encontrar analogias entre dois romances escritos no
mesmo período: para a narratologia, existem estruturas que funcionam da mesma
maneira em outras narrativas: tanto os romances aqui estudados quanto os
romances de Plínio Salgado possuem, como muitas outras narrativas, uma estrutura
acessível à análiseiv. A narratologia seria o estudo das narrativas, incluindo não só o
âmbito literário, mas também as narrativas em outros sistemas semióticos: Bal
passou, nos anos 90, a incluir na nova edição de Narratology também análises e
exemplos tirados do cinema e das artes plásticas.
Para analisar melhor a narrativa em questão, alguns conceitos precisam ser
esclarecidos, tais como o de ―romance cíclico‖, termo com o qual o próprio autor
empírico nomeou esses dois textos. O que Oswald queria dizer com ―romance
cíclico‖? Esse seria ―um romance em que se desenvolvem, através de vários
volumes, aventuras das mesmas personagens, de uma família, ou de diferentes

10
tipos de uma mesma geração, grupo ou sociedade: um exemplo seria Os Rougon-
Macquart, de Zola‖ (BUENO, 2006, p. 12). Na literatura brasileira não existem muitos
exemplos de romances cíclicos. O mais famoso talvez seja O Tempo e o Vento, de
Érico Veríssimo. MZ é, portanto, um dos raros exemplos de romance cíclico em
nossa literatura, ou seja, os personagens completaram um ciclo de acontecimentos
(antes, durante e depois da guerra de 32). No final de Chão, inclusive, para facilitar a
leitura, existe um ―posfácio‖ com os personagens presentes em Chão e em
Revolução Melancólica: lá estão os personagens mais importantes do livro,
organizados em famílias. Trata-se de claro indício de que o autor sabia que a
multiplicação de personagens complicou o romance e acenou ao leitor com um
auxílio para uma leitura organizada. Postulamos que o verdadeiro auxílio está em
definir um herói hipotético para essa narrativa, assim como definimos Jango.
Por sua vez, os três romances de Plínio Salgado não possuem continuidade:
não são os mesmos personagens nos três romances. Descartamos, portanto, a idéia
de que O Estrangeiro, O Esperado e Cavaleiro de Itararé constituam de fato uma
trilogia: não existem personagens em comum nos três livros. Os assuntos também
variam: o primeiro tratou da imigração e a identidade brasileira entre 1914-18, I
guerra mundial, revolução russa e suas repercussões no Brasil (tendo como
protagonista o russo Ivã); o segundo enfocou a situação política do Brasil às
vésperas da revolução de 30, centrado na figura do intelectual Edmundo Milhomens;
finalmente, O Cavaleiro de Itararé é ambientado em São Paulo no começo da
década de 30, (mas não focou na revolução de 32), tendo por eixo a história de
Teodorico, um filho de pobres trocado na maternidade e entregue a uma família rica.
Não existem personagens em comum nos três livros.
Outro ponto importante: Plínio Salgado é citado em MZ (junto com os demais
integralistas, apresentado como um oponente de Jango). Será frutífera a
aproximação entre o texto e os romances de um escritor que é um personagem
histórico combatido na própria obra de que se está tratando? Trata-se de uma
situação, no mínimo, inusitada. Preferimos ler o romance cíclico e retirar dele
passagens paralelas a Memórias Sentimentais de João Miramar, com as quais
possuiu pontos de contato. Para nós, a obra aqui avaliada não representou, dentro
da obra de Oswald, uma ruptura com o modernismo e uma concessão a um gosto
mais tradicional. A propósito da avaliação do romance, concordamos com o
posicionamento de Ana Silva Formoso a respeito:

11
O interesse pelo estudo do romance a partir de suas próprias propostas foi
acentuado pela observação de que, em geral, nos poucos estudos mais
detidos sobre Marco Zero, a sua avaliação sofre pela sombra que lhe fazem
os romances mais conhecidos de Oswald, Memórias Sentimentais de João
Miramar e Serafim Ponte Grande (FORMOSO, 2003, p. 2)

MZ foi aproximado a Plínio Salgado, mas, como a seguir iremos demonstrar,


possuiu pontos de contato com Miramar e Serafim: esses pontos foram ressaltados
por Maria Eugênia Boaventura no artigo A Posse Contra a Propriedade. MZ possui
paródia, trocadilho, antropofagia na forma de sínteses dos mais variados materiais.
O motivo-guia foi o seguinte: para nós, Jango foi o protagonista de MZ. Essa obra
conciliou engajamento político com experimentalismo formal: terminou rejeitado e
criticado tanto por uma crítica formalista (que se manifestou mais simpática a
Miramar e Serafim, onde os experimentos formais foram mais intensos), quanto
pouco reconhecido por seu conteúdo de crítica social.
MZ é uma narrativa complexa e experimental no sentido em que, dentro dela,
existem outras narrativas simples (por exemplo, a trajetória de Xavier, entusiasta de
faroestes norte-americanos), inseridas fragmentariamente na estrutura de sua
narrativa complexa. A narrativa de estrutura simples faz da simetria seu esteio,
enquanto uma narrativa de estrutura complexa como MZ produz estranhamentos na
construção das frases, na articulação dos personagens e na disposição da massa
narrativa.
Num romance onde a narrativa é bastante fragmentária, assume importância
narrativa a divisão em seis capítulos: A Posse Contra a Propriedade, a Escola do
Cavalo Azul, Vésperas Paulistas, Latifundiários em Armas, a Vitória do Vilão, Pro
Brasilia Fiant Eximia (em Revolução Melancólica) e sete em Chão (Resta Húmus na
Terra, o Solo das Catacumbas, o Decapitador, Reina Paz no Latifúndio, Tapete dos
Terreiros, Oh! Guerreiros da Taba Sagrada, Somos um Eldorado fracassado).
Podemos supor que MZ manifesta um conteúdo de denúncia social mais claro que
nos romances anteriores de Oswald. Possui esse ponto de contato, portanto, com a
chamada geração de 30, ou seja, os romancistas que se consagraram entre 1930 e
1945 (José Lins do Rego, Jorge Amado, Rachel de Queiroz, Érico Veríssimo). Esse
ponto fica especialmente claro se compararmos Marco Zero com escritores que
valorizam mais a introspecção psicológica, tais como Clarice Lispector e Lúcio

12
Cardoso (e que também publicaram seus primeiros contos e romances nesse
período).
Concluindo, MZv é frequentemente lido conforme códigos e cobranças alheios
à proposta que ele faz: um romance que exige a participação do leitor (que pode
reler o romance utilizando diferentes códigos e exigiu a releitura, trazendo muitas
armadilhas e dificuldades para o leitor em uma primeira leitura).

I PARTE

A JORNADA DO HERÓI: ELEMENTOS DA FÁBULA

13
3 O HERÓI EM SEU MUNDO

3.1 O romance e a linha lógica do texto narrativo

São quatro os pressupostos de nossa análise: MZ narra uma história; essa


história tem um protagonista; a narração se estrutura a partir desse protagonista;
Jango pode funcionar, conforme nossa hipótese de leitura, como o protagonista do
romance em questão.
Em MZ, os múltiplos e díspares fragmentos que compõem o texto narrativo, a
falta de uma ordem cronológica e mudanças bruscas de cenário, o esforço em dar
aos personagens um tratamento igual, complicam a linha lógica, dificultando a
compreensão da história narrada. Na narrativa, essa situação se agrava por ser a
narrativa fortemente indicial, ou seja, o autor procede por elipses, deixando ao leitor
a dedução a respeito de muitos acontecimentos, caracteres físicos ou psicológicos,
situações ou ações dos personagens. No entanto, segundo Bal, é sempre possível
deduzir essa linha lógica, mesmo naqueles textos em que o autor deliberadamente
distorce ou nega a lógica da realidade.

O leitor, intencionalmente ou não, busca uma linha lógica do texto em si.


Põe um grande empenho nessa busca, e, se necessário, introduz ele
mesmo uma linha desse tipo. Não importa o absurdo, emaranhado ou irreal
que possa ser um texto, o leitor tenderá a considerar o que ele acredita ser
normal como critério com o qual dotar de significado o texto (BAL, 2001,
p. 20).

Assim, antes de indagar pelo protagonista em MZ, é preciso perguntar: qual é


a fábula que foi narrada? Pensamos que duas posições são igualmente sustentáveis
na tentativa de encontrar a resposta a este questionamento.
A primeira seria a afirmação de que não existe uma história em MZ, mas
micro-histórias; a outra posição será a que aqui adotamos, isto é, a de que existe
uma história virtual, dedutível, sugerida, que pode ser assim resumida.
Não seria possível resumir essa história, sem mencionar atores, pessoas, que
estiveram ligadas aos acontecimentos. Boa parte dos teóricos contemporâneos,

14
sobretudo os que nos servem de base nesse estudo, aventaram a hipótese de que
existe uma relação teleológica entre os elementos da história ou, como diz Bal:

Os atores têm uma intenção: aspiram a um objetivo. Esta intenção é a


consecução de algo agradável ou favorável, ou a eliminação de algo
desagradável ou desfavorável. Os verbos desejar ou obter indicam esta
relação teleológica e por isso se usam como abstrações das conexões
intencionais entre elementos (BAL, 2001, p.35)

A conseqüência dessa intencionalidade é a visão da narrativa como um


sistema ou processo em que os elementos se interligam, interagem, tendo em vista
aquele objetivo. Desde as pioneiras análises de Propp, passando por Campbell e
chegando aos estruturalistas franceses, a idéia é isolar as funções essenciais ao
desenvolvimento do processo narrativo. Greimas, inspirando-se nos atuantes em
lingüística, que são em número limitado, descreve e classifica os personagens de
acordo com o que fazem, segundo, portanto, o seu papel, a sua função. Para aquele
autor, os atuantes ou actantes podem ser classificados em três pares: sujeito x
objeto; destinador x destinatário; adjuvante x oponente.
Roland Barthes (citado por Bal), criticando essa classificação, observa que a
principal dificuldade é que nem sempre se pode identificar o sujeito numa matriz
actancial e questiona: quem é o sujeito (herói) de uma narrativa? Há ou não há uma
classe privilegiada de atores? (BAL, 2001, p. 35)
A resposta a esse questionamento implica uma reflexão sobre os critérios
comumente utilizados para a identificação do herói. Ao tratar dessa questão, Bal
admite como critério usual a intuição ou habilidade do próprio leitor, o que faz com
que, para uma mesma narrativa, surjam, entre os leitores, opiniões divergentes.
Sugere que, embora divergências possam surgir, maior objetividade pode ser obtida
se, na escolha do herói, for considerada a quantidade de aprovação moral que o
personagem recebe do leitor. Mais adiante, Bal estabelece alguns sinais que podem
ajudar a descobrir se determinado personagem é o herói:

─ Qualificação: informação externa sobre a aparência, a psicologia, a


motivação e o passado.
─ Distribuição: o herói aparece com freqüência na história, sua presença se
sente nos momentos importantes da fábula.
─ Independência: o herói pode aparecer só ou ter monólogos.
─ Função: certas ações só competem ao herói: chega a acordos, vence
oponentes, desmascara traidores, etc.

15
─ Relações: é o que mais relações mantém com outros personagens (BAL,
2001, p.101).

É preciso considerar duas situações. A primeira: é o herói resultante do


sentimento de simpatia que o leitor experimenta por uma personagem com que se
identifica ou que considera a priori como um porta-voz? Em se tratando de uma
simples valorização sociocultural ou moral, não diz respeito ao estudo semiótico do
texto propriamente dito. A segunda situação refere-se à existência de marcas, sinais,
convenções formais, que permitem identificar o herói de modo rigoroso. Essas
marcas seriam: a ocorrência do herói na narrativa; seu lugar no sistema de papéis,
bem como a quantidade e a escolha das marcas estilísticas que indicam a
personagem como a principal.
Se considerarmos as conclusões a que chegou Etienne Souriau, a respeito da
morfologia da fabulação dramática, iremos perceber que dificilmente outro
personagem do romance, além de Jango, poderia ser colocado sob a ―signatura‖ de
Leão, isto é, aquele personagem que ―em determinada situação, encarna,
representa e põe em jogo a força que gera toda a tensão dramática presente‖. Na
visão de Souriau:

Toda situação dramática é gerada por uma força orientada, força esta da
qual um dos personagens é sede ou presa, como quiserem. Ela reside nele.
Ele a encarna, ela o impele, ele arde nela, e através dele ela galvaniza e
orienta dinamicamente todo o microcosmo teatral. Sua presença no
macrocosmo, no universo da obra, é focal: é ela que esboça e situa nele
esse microcosmo, seu centro estelar (SOURIAU, 1993, p. 60).

Souriau, acima, tratou de ―força‖ e não de um herói ou indivíduo específico. O


herói não é necessário à história. A história como sistema de motivos pode
inteiramente dispensar o herói e seus traços característicos. Todorov contesta esta
afirmação dizendo que ela parece ―relacionar-se de preferência às histórias
anedóticas ou quando muito às novelas do Renascimento do que à literatura
ocidental clássica que se estende de D. Quixote ao Ulisses‖ (TODOROV, 1982, p.
78). Nesta literatura, o protagonista parece-nos representar um papel de primeira
ordem e é a partir dele que se organizam os outros elementos da narrativa.
Quem seria o protagonista da história narrada pelo romance? Jango é o
personagem que satisfaz um maior número desses requisitos. Essa figura articulou e
transitou entre a família de latifundiários e os personagens agregados a ela (os

16
Formoso, os constitucionalistas liberais) e aqueles que se opuseram a ela
(comunistas) e também por ter sido mais presente do que os demais personagens,
conforme mapeamento em anexo nessa dissertação.

3.2 O herói entra em cena

Varia bastante a maneira como o personagem principal de um romance é


apresentado ao leitor. Grande maioria já tem seu nome em evidência no título da
obra, como é o caso de Memórias Póstumas de Brás Cubas, O Crime do Padre
Amaro, Iracema, Memórias Sentimentais de João Miramar, Madame Bovary, Serafim
Ponte Grande, Macunaíma. O mais usual é a apresentação do cenário,
circunstâncias e as figuras principais do elenco, já no primeiro capítulo.vi
Para exemplificar, lembremos que a primeira cena do romance A Moreninha
introduz as figuras mais importantes da trama: Fabrício, Leopoldo, Augusto e Filipe.
Os jovens planejam passar a véspera e o dia de Sant‘Ana numa ilha, onde reside a
avó de Filipe. Gabam-se de não se deixarem prender pelas mulheres. Augusto
chega a afirmar que seu pensamento nunca se ocupou, não se ocupa, nem há de se
ocupar de uma mesma moça durante quinze dias. Filipe fala de suas primas Joana e
Joaquina e também de sua irmã, uma moreninha de quatorze anos, que estarão na
festa de Sant‘Ana. Aposta que Augusto voltará da ilha apaixonado por uma de suas
primas. O desafio lançado ao amigo tem um preço: o perdedor deverá escrever um
romance, confessando a fraqueza de haver amado uma mulher por mais de quinze
dias. A partir daí, a figura principal passa a ser Augusto, que tudo fará para não
ceder aos encantos da moreninha e ganhar a aposta.
Em alguns romances, convencionalmente, a focalização da personagem
principal faz com que seu nome apareça como primeira palavra do texto. Nas
narrativas feitas em primeira pessoa, o contato com o protagonista-narrador é
imediato.
Em MZ, ao contrário do que recomendam essas convenções, a narrativa
inicia-se com a atuação de Miguelona e Leonardo Mesa, aparentemente
desvinculados de João Lucas Klag Formoso (Jango). A abertura de MZ se fez
através do problema da luta dos posseiros contra os grandes proprietários. A

17
personagem que inicia o romance é Miguelona Senofim, uma velha imigrante
italiana, já perfeitamente integrada à vida brasileira, encabeçando um grupo em luta
contra a oligarquia rural, como podemos notar no primeiro diálogo do romance:

--Garra a terra, Pedrão!


--Não largo não!
--Tá arresorvido entrá pro nosso bando?
--Mecê é o Lampeão do Sur... (ANDRADE, 1991, p. 3)

Miguelona reproduz algumas frases ideologicamente afins a uma militância


comunista, mas a narrativa exibe toda a complexidade do personagem. Ela debate
com o militante Leonardo Mesa, o camarada Rioja. Foi a única camponesa a
enfrentá-lo. No entanto, Miguelona lutou justamente contra o pai de Jango, o Major;
Mesa, antes de entrar no partido comunista, foi secretário do Conde Alberto de Melo,
cunhado do Major Formoso: era de origem cearense e ex-colega de faculdade de
Jango. Em determinada altura do romance, o Conde o acusa de não ter berço e ter
se voltado para o comunismo. A narrativa falou tanto no capitão Jango da Força
Pública quanto em um Jango da Formosa (que são diferentes), apresentando o
protagonista apenas na página 30 do capítulo I. Vejamos como ocorreu a
apresentação de nosso suposto protagonista:

Ao seu lado, a boca voluntariosa e primitiva do marido, O Capitão Jango, da


Força Pública de São Paulo. Rosalina sorriu nos dentes alvos e grandes. –
Me falaram que você era filho do Major da Formosa. Vê se eu ia casá co´
outro Jango! Eu respondi que você é o Jango da Força e que não de famia
de louco (ANDRADE, 1991, p.30).

Assim sendo, a apresentação do protagonista deu-se com o anúncio de seu


duplo, um Jango casado e bem comportado, integrante da então Força Pública. O
protagonista não foi apresentado propriamente, foi apenas referido pela esposa de
um homônimo. No decorrer da narrativa, o leitor precisará ficar atento para não
confundir os dois ―Jangos‖. No final do primeiro capítulo, Jango também não
apareceu, mas foi citado por Leonardo Mesa em seu diálogo com Pancrácio Fortes:

—O senhor é primo de um amigo meu, Jango, João Lucas Klag Formoso...o


Jango da Formosa...—Não sou. Fui educado por eles, pelos Formoso. Meu
nome é Pancrácio Fortes. Mas eu não vou muito com aquela família. São
uns shakespearianos! (ANDRADE, 1991, p. 33).

18
Eis que falou-se em Jango novamente, mas sem que ele agisse nem fosse
apresentado. Tanto Leonardo Mesa quanto Pancrácio, embora não simpatizassem
com a família Formoso, estiveram ligados a ela de algum modo. Um exemplo de sua
movimentação: pouco depois de surgir em meios aos debates sobre a revolução de
32 nos salões da aristocracia paulista, Jango foi citado pela comunista Maria Parede
como uma figura de sua admiração, um rapaz com o qual ela teve um romance.
Existe claramente uma aura de herói sendo preparada em torno de Jango.
Como pudemos observar, primeiro Jango foi apresentado. Logo a seguir, foi
apresentada sua namorada, a professora Eufrásia Beato, com quem fez um
triângulo incestuoso do qual participou o próprio pai de Jango (o Major), ressaltando
sua ligação à zona rural e ao faroeste; Jango foi um caubói, um ―mocinho‖, um herói
positivo: ―João Lucas Klag Formoso caminhou sólido e lento nas perneiras, o
chapelão de cowboy, sentou-se na primeira fila ao lado da professora que o
esperava‖ (ANDRADE, 1991, p. 52). Miguelona, grande inimiga de seu pai, não
estabeleceu contato com Jango, embora presente no mesmo ambiente acima
referido (um circo no interior).
A seguir, na página 54, lê-se todo um fragmento centrado em Jango. O
conflito do personagem, nesse momento, estruturou-se da seguinte forma: ele sabe
da disputa entre a posse e a propriedade, entre seu pai e Miguelona, pois nas terras
devolutas é que ele desejava possuir sua amada Eufrásia:

Se o Major não estivesse nas devolutas, levá-la-ia para lá. Se resistisse,


ensacava-a à saída da escola e punha-a dentro do Forde. Mas o pai ocupava
as terras em luta com os posseiros (ANDRADE, 1991, p. 54).

O desejo de posse de Major Formoso conflitou com os desejos de Jango pela


primeira vez nesse romance. Posteriormente, esse conflito retornará ainda mais
intensamente, envolvendo primeiramente a própria Eufrásia e depois o desejo de
Jango de socializar a posse, apoiando os comunistas.
É também nessa altura do romance aqui estudado que surgiu um trecho
usado pelo autor empírico, em artigo de jornal, para tentar seduzir um leitor
conservador, Léo Vaz, para a leitura de seu livro, numa carta transformada em artigo
e publicada em Ponta de Lança. A carta foi a seguinte:

Meu caro Prof. Léo Vaz, enviando-lhe o volume aparecido de meu romance
Marco Zero, quero também tornar-me seu missivista (...). Confesso, meu

19
prezado companheiro de garçonnière de 19, que a revolução modernista eu
a fiz mais contra mim mesmo que contra você ou o prezado leitor Sr.
Zampeta. Pois eu temia escrever bonito demais (...). Se eu não destroçasse
todo o velho material lingüístico que utilizava, amassasse-o de novo nas
formas agressivas do modernismo, minha literatura aguava e eu ficava
parecido com D´ Annunzio ou com você. Não quero depreciar nenhuma
dessas altas expressões da mundial literatura. Mas sempre enfezei em ser
eu mesmo. Mau mas eu (ANDRADE, 1974, P. 11)

O artigo acima é uma tentativa de abrir um diálogo com um leitor conservador,


para que possamos entender melhor, vejamos as duas passagens que o autor
empírico citou em Ponta de Lança. No texto por nós estudado, foi contrastada com
uma descrição de um passeio no Rio de Janeiro, fragmento de número 66, intitulada
Botafogo etc., presente no romance Memórias Sentimentais de João Miramar
(iremos citá-la na íntegra):

Beiramarávamos em auto pelo espelho de aluguel arborizado das avenidas


marinhas sem sol. Losangos tênues de ouro bandeiranacionalizavam o
verde dos montes interiores. No outro lado da baía a Serra dos Órgãos
serrava. Rolah ia vinha derrapava entrava em túneis. Copacabana era um
veludo arrepiado na luminosa noite varada pelas frestas da cidade
(ANDRADE, 1999, p. 66).

A comparação desse fragmento acima com outro que iremos citar logo
adiante (a aparição de Jango) foi um recurso, uma busca de seduzir não só Léo Vaz,
mas os leitores conservadores e inimigos da arte moderna em geral para lerem o
romance. Foi um episódio na busca de aproximação do público leitor realizado pelo
autor empírico. A passagem em questão foi um amanhecer na fazenda onde Jango,
melancólico, pensava em sua amada Eufrásia Beato, parágrafo onde falou o
narrador externo onisciente:

João Lucas Klag Formoso olhou a noite opaca que pendia das estrelas por
sobre as terras cultivadas da fazenda. Poderia levá-la para a Jangada.
Alguma coisa de infantil germinava nos seus vinte e oito anos adultos.
Despejaria toda a carga do revólver Colt se não fosse sua. Estava como um
burro preso a um moinho. Nas noites de cigarro desenvolvia-se aquele
parafuso. Um galo cantou na colônia noturna. Outro respondeu ao longe,
outro mais longe. Cinco horas. A rede ficou balançando nos ganchos. O
sino ressoou de novo o extremo do terraço. Um trecho da mata contornava
o pomar. O céu por cima das árvores estava copado de estrelas. Elas
ligavam-se à alta folhagem dos jequitibás. Silhuetas de palmeiras
suspendiam fachos tropicais na noite. Uma canjarana estorcegava-se para
o alto. Jango escutou gemidos surdos, um e outro grito teimoso e o assovio
do Sem-Fim. Acendeu outro cigarro (ANDRADE, 1991, p. 55).

20
No artigo referido, o autor empírico selecionou justamente as descrições
acima apresentadas para comparar MZ e Miramar, deixando a conclusão em aberto
para o leitor. Nossa hipótese a respeito dessa passagem foi a seguinte: o autor
empírico tentou conquistar um tipo de leitor conservador, mostrando ter feito
concessões a seu gosto, mas omitindo que nos dois romances que acabava de
lançar aboliu outras convenções narrativas; trata-se de uma tentativa de seduzir um
leitor conservador, acenando com aparentes concessões. Depois de ter discutido a
posição reacionária de um escritor seu contemporâneo, Léo Vaz, frente à arte
moderna, Oswald escreveu:

Não pense, no entanto, meu caro professor, que teimo em fazer hoje
Semana de Arte Moderna. Deixo isso a alguns companheiros ilustres de
jornada (o Sr. Mário de Andrade, o Sr. Portinari). Marco Zero é um livro que
vai surpreender os que esperam os modismos e os cacoetes que tão
gostosa e justamente empregamos na fase polêmica da renovação literária.
Nesse tempo eu escrevia assim: ―Losangos tênues de ouro
bandeiranacionalizavam o verde dos montes interiores. No outro lado azul
da baía a Serra dos Órgãos serrava (Memórias Sentimentais de João
Miramar_1923)‖.
Hoje eu escrevo assim: ―O céu por cima das árvores estava copado de
estrelas. Elas ligavam-se à alta folhagem os jequitibás. Silhuetas de
palmeiras suspendiam fachos tropicais na noite. Uma canjarana
estorcegava-se para o alto. Jango escutou gemidos surdos, um e outro grito
teimoso e o assovio do Sem-Fim. Acendeu outro cigarro (Marco Zero_ A
Revolução Melancólica_1943)‖ (ANDRADE, 1972, p. 11)

Quando o autor empírico, em artigo de jornal, quis mostrar a diferença entre


Miramar e MZ, ele recorreu justamente às descrições: elas, conforme foi
subentendido acima e conforme a crítica de Barthes a respeito de Flaubert e
Michelet, dariam ―efeito do real‖.
Nos fragmentos acima, o autor empírico compara a descrição de uma viagem
de navio em Miramar com uma cena de amanhecer na fazenda Formosa.
Aparentemente, o autor empírico submete a prática da descrição, entre um romance
e outro, àquilo que Barthes chamou de ―restrições tirânicas do que realmente é
preciso chamar de verossímil estético‖ (BARTHES, 1972, p. 39). Se existem
concessões ao verossímil estético nesse sentido, por outro multiplicam-se os
personagens sem indicação de um protagonista e os fragmentos são apresentados
sem título ou numeração, ao contrário dos fragmentos herméticos, sim, porém
numerados e intitulados do romance-invenção Memórias Sentimentais de João
Miramar.

21
Se Miramar afastou-se dos imperativos realistas, no romance aqui focalizado
ocorre um outro direcionamento, ―como se a exatidão do referente, superior ou
indiferente a qualquer outra função, aparentemente comandasse e justificasse
apenas o fato de descrevê-lo ou – no caso das descrições reduzidas a uma palavra
– de derrotá-lo: as restrições estéticas se penetram aqui – pelo menos a título de
álibi – de restrições referenciais‖ (BARTHES, 1972, p. 200). Conforme o que
escreveu o autor empírico, bastaria que as descrições surgissem mais minuciosas e
mais ligadas ao referente em MZ para que existisse mais ―efeito do real‖. No
entanto, apesar desse efeito, existiu uma tônica experimental que torna MZ mais
complexo do que uma narrativa neonaturalista como São Bernardo, como veremos a
seguir.
O autor empírico aparentemente imaginou que a descrição neonaturalista
bastaria para trazer uma aura de narrativa tradicional ao romance por nós avaliado:
não concordamos nesse ponto. Em MZ, Miguelona Senofim é a paródia de uma
revolucionária; a revolução de 32 é a paródia de uma revolução: revolução
melancólica. A narração deu-se em discurso direto, na maioria das vezes. O tempo
da narração em MZ é o mesmo tempo do enunciado: o narrador externo não é
alguém que recorda acontecimentos passados, esclarecendo ao leitor o seu sentido.
O tempo do NE é 1932-34, como se a narrativa estivesse sendo escrita no calor das
batalhas da revolução de 32. Embora o romance tenha sido escrito, pelo autor
empírico, dez anos depois da revolução de 32, em momento algum esse narrador
nos deu uma visão global dos acontecimentos da revolução e analisou o todo, o que
ocorreu e suas conseqüências. O NE, embora aparentemente saiba tudo, não julga
e dá o resultado dos acontecimentos, pois simulou estar presenciando o desenrolar
da revolução junto aos personagens. Algumas vezes, esse narrador externo
transmite ao leitor os pensamentos de um personagem, como quando o integralista
Carlos Benjamin associado ao Major encontrou os camponeses pobres e tentou
convencê-los de suas posições políticas. Essa passagem, no entanto, foi uma
exceção. O narrador onisciente não comunica uma visão totalizante sobre os
acontecimentos pelo seguinte motivo: nessa narrativa, o tempo do enunciado é igual
ao tempo da narração (TE = TN). Esse narrador se coloca quase como um outro
espectador qualquer dos acontecimentos.
Conforme podemos notar, o autor comparou dois textos escritos com uma
separação de vinte anos (fragmento de MZ e de Miramar). Não são textos que

22
focalizaram o mesmo objeto, mas fizeram descrições da natureza de forma diversa
(vejamos, mais adiante, uma comparação entre uma descrição do circo em Miramar
e outra em MZ, seguindo o método das passagens paralelas). Verifiquemos a
supracitada descrição do circo, que teve uma nota lembrando da opressão social,
como se lembrasse que tal narrativa não permite entretenimento puro:

Quando o palhaço, de chapéu de padre, de cara de padre, de pijama, fez o


salameleque, o negrinho Jesué dos Santos despencou de emoção vindo da
galeria. A música era triste como um canto vindo do fundo da exploração
humana. A ginástica coleante dos artistas desenvolvia-se em câmera lenta.
Dois acrobatas deram algumas cambalhotas forçadas, fazendo as mulheres
gritarem pelo Bom Jesus de Jurema. Um atleta ergueu um peso enorme de
papelão. A função terminava. Apagaram-se as luzes para dar lugar a
número fantasmal. Num luar de artifício, surgiram maiôs brancos. A
criançada confraternizava num susto efusivo (ANDRADE, 1991, p. 53).

Tal passagem poderia ser comparada com melhor proveito a uma passagem
que se referiu ao circo em Memórias Sentimentais de João Miramar e intitulada
Gatunos de Crianças (fragmento número 4):

O circo era um balão aceso com música e pastéis na entrada. E funâmbulos


cavalos palhaços desfiaram desarticulações risadas para meu trono de pau
com gente em redor. Gostei muito da terra da Goiabada e tive inveja da
vontade de ter sido roubado pelos ciganos (ANDRADE, 1999, p. 46).

Na comparação acima, os fragmentos não pareceram tão dissonantes quanto


na comparação realizada pelo próprio autor empírico. MZ exibe um texto com uma
pontuação menos singular, realizando descrições mais atentas ao detalhe e menos
rápidas: diferente de reproduzir o olhar da criança, como fez o narrador externo em
Miramar, em MZ o NE foi desencantado. Tratava-se de um narrador que observou a
pobreza e a precariedade do pequeno circo do interior, desmistificando seus
artifícios: ele quer nos fazer ver o que existia por trás do espetáculo encenado.
Concluindo, o autor empírico quis fazer crer que a descrição, em MZ, seria mais
verossímil e mais referencial. No entanto, a narrativa trouxe outras complicações,
tais como a dubiedade quanto à função ―protagonista‖ e a multiplicação dos focos de
atenção e personagens advinda disso. O esforço do autor empírico junto ao leitor
conservador seria tentativa, apenas, de sedução, mas sem concessões
equivalentes.

23
3.3 AVENTURAS E RUPTURAS

Na trajetória do herói, é possível identificar momentos em que este toma


consciência de que os valores do mundo em que vive se opõem aos seus próprios
valores. A partir dessa consciência, dá-se o seu rompimento com o mundo.
Esse inconformismo do protagonista com o mundo que ele julga degradado nos
parece ponto crucial em toda narrativa. Os sinais dessa ruptura, num grande número
de textos, podem ser encontrados numa proibição imposta ao herói e a sua violação.
A proibição não é aceita como eticamente válida pelo protagonista, instaurando-se a
partir daí o conflito básico, a espinha dorsal, em torno da qual os personagens agem
e interagem. Pela importância que esses valores-objetos têm no desenvolvimento da
narrativa, verdadeiros motores da ação, não há como não admitir a plena
consciência deles por parte dos personagens, sobretudo o protagonista.
Discordamos de que os valores autênticos se apresentem na obra sob a forma de
personagens conscientes ou de realidades concretas, mas supomos que existam
apenas em forma abstrata e conceitual na consciência do romancista, onde se
revestem de um caráter ético. Na verdade, esses valores não estão expressos como
tais, mas são dedutíveis das ações e atitudes dos personagens.
No caso da obra em questão aqui, estas rupturas estão definidas, ainda que
muito sintéticas e diluídas ao longo da narrativa. Que tipo de rupturas são essas e
qual a sua significação para o conjunto da narrativa? Identificamos três níveis de
ruptura de Jango com o seu mundo: ruptura com o mundo político; com o mundo
das convenções sociais e com o mundo da intimidade familiar.

3.4 Ruptura com o mundo político

O romance que estamos estudando é um romance em que acontecimentos


reais, perfeitamente identificados no tempo e no espaço, incluindo em muitos casos
personagens históricos (Getúlio Vargas, Karl Marx, Prestes), pois imbricam-se em
meio ao mundo fictício. É fato bastante marcante na nossa história a crise da

24
economia cafeeira nos anos subseqüentes à queda da Bolsa de Nova Iorque, em
1929. Até então, dentro de um clima de otimismo, louvavam-se ―os horizontes
penteados de cafezais‖ (ANDRADE, 1991, p. 55), o progresso técnico na figura dos
―tratores, Fordes, caminhões‖. Ouvia-se, por todo lado, ―o barulho das máquinas de
beneficiar café‖, movidas pela eletricidade. Não se sabia ―se o que se levantava do
chão era ouro ou poeira‖. ―Toda essa aventura perecera no desastre mundial de
1929‖ (ANDRADE, 1991, p. 55).
Assumindo o governo revolucionário, Getúlio Vargas impôs várias mudanças
na economia brasileira, entre elas drásticas alterações na política da cultura do café.
Os preços desse produto, que outrora fizera a opulência das elites rurais paulistas,
estavam em queda livre no mercado internacional. Para evitar uma queda ainda
maior nos preços, Getúlio Vargas ordenou a destruição dos estoques de café.
No mundo ficcional focalizado na presente tese, este acontecimento é
registrado quando o suposto protagonista João Lucas, acompanhado do Índio Cristo,
percorriam as terras da fazenda Formosa, já sabedores que o governo tinha
ordenado a destruição dos cafezais:

Em 1930 homens armados tinham acorrido do Norte e do Sul, em exércitos,


com um lenço vermelho no pescoço. Mas, depois de tomar o poder, o novo
governo abandonava o produto capaz de sustentar a balança comercial no
exterior. E ordenava a destruição, a queima de dois bilhões de arbustos em
produção. Como a velha vestimenta florestal, como a antiga gente da
América, o café paulista tinha de desaparecer (ANDRADE, 1991, p.
55).

Dá-se aí a primeira indicação da ruptura do herói com o mundo. Jango


imagina os cafezais queimados, talhões opulentos transformados num dia em
desertos de varas queimadas. Pensa no seu avô, Coronel Bento Formoso, no seu
trabalho de cinqüenta anos, lavrando, plantando, cuidando da terra e que começara
a cuidar do café na adolescência. Não pode conter o seu ódio contra aquele governo
despótico que dera a ordem absurda de queimar os cafezais. Revoltando-se contra
a decisão do governo, grita para o índio Cristo: ―Que a broca coma essa merda! Mas
eu não ponho fogo no cafezal. A Formosa é o coração do mundo‖ (ANDRADE, 1991,
p. 56). Como se percebe, essa ruptura é do tipo proibição (no caso, um comando)
versus violação. Revoltado contra uma ordem que vai contra seus valores, seu
mundo onde a Formosa era o centro, Jango decide-se a combater o governo Getúlio
nos campos de batalha da revolução de 32.
25
3.5 Ruptura com o mundo das convenções sociais

Os Klag eram latifundiários e proprietários de terra, possuindo por isso


elevado status social. As famílias tradicionais procuravam manter determinados
costumes e evitar situações que fossem de encontro à sua nobreza. O casamento
com pessoas de classe social inferior, pedir dinheiro emprestado, empregos no
comércio ou na indústria, etc., eram situações que não combinavam com as
tradições dessas famílias ricas e preconceituosas.
É nesse campo – o das convenções sociais – que se dá outra ruptura do herói
com o mundo. Jango está apaixonado pela professora Eufrásia Beato Moncorvino,
mulher pobre, filha de um bêbado, uma espécie de ―gata borralheira‖. Jango estava
disposto a enfrentar o preconceito da ―casta‖ paulista, contando para isso com o
auxílio de sua avó Umbelina, a única que talvez compreendesse a sua paixão,
entendesse o seu ―amor de casar‖ e aquele seu desejo de ficar para sempre com
Eufrásia. Além de sua origem humilde, Eufrásia havia sido prostituta – era uma das
mulheres que freqüentavam a casa da cafetina Tia Licórnea. Jango, no entanto,
estava enganado. Umbelina não aprovaria seu casamento, a julgar pelo que disse
ao filho, Dinamérico, que também queria casar-se com Eufrásia. Num ―assomo de
energia‖, Umbelina foi taxativa: ―─ Você [Dinamérico] viveu sempre na lei dos sem
lei... Essa moça não pode entrar para a nossa família‖ (ANDRADE, 1991, p. 226).
Ainda no mundo das convenções sociais, o herói é obrigado a passar por
alguns constrangimentos em razão da degeneração da sociedade calcada na
economia cafeeira, que engendrou verdadeiros barões feudais. O avô, o Coronel
Bento Formoso, o encarregara de uma das mais humilhantes tarefas: buscar mais
crédito, enfrentar a voracidade dos credores, reformar títulos não pagos.

O avô o incumbira de ir aos bancos, cuidar dos negócios na derrocada. De


repente Jango encontrava-se com toda a boa-fé idílica da civilização agrária
em meio de homens gelados e duros como varas de ferro. Eram os
usurários que estraçalhavam a fortuna laboriosa do café. Chamou de lado o
conde.
─ Precisamos tratar daquela letra... reformar com os juros.
─ É impossível fazer qualquer desconto mais na Casa Comissária. Quero
avisar você. Não reformo (ANDRADE, 1991, p. 73).

26
Eram situações extremamente tensas, em que se trocavam insultos e
provocações, como nesta passagem em que Jango se vê na contingência de
conseguir mais dinheiro com seu principal financiador, o Conde Alberto de Melo:

─ É você, Leô? Dormindo ainda? Mon oiseau des îles! Me sobrinho esteve
aqui agora. Aquele bandido...É...Eu explico a você, querida! Quase que saía
uma carnificina... Trouxe a letra... Fiquei com dó da família! Mas xinguei ele
de tudo. Ele não reagiu, acovardou-se! Eu disse tudo... Ladrão! Parasita!
Ouviu calado!‖ (ANDRADE, 1991, p. 80)

Jango, anteriormente, afirma os valores de sua família, decidindo-se a lutar


diante da adversidade (o governo Vargas). Passada a batalha, Jango volta
transformado. Presencia a guerra e seus sofrimentos; adquire uma nova
consciência: Jango observou a miséria dos soldados no campo de batalha. Ele
passa a tentar reverter essa situação com uma simpatia pelos oprimidos: Jango
torna-se simpatizante do comunismo, gerando uma ruptura com os valores de sua
família. Antes, no plano político, existia harmonia entre o que pensava Jango e os
interesses da família Formoso; a única nota dissonante era o desejo de Jango de
casar-se com Eufrásia, filha de um pai bêbado e incestuoso, professora pobre em
escola rural. Não seria um bom casamento, conforme o julgamento da família
Formoso. Portanto, após 32, a ruptura entre Jango e a família aprofunda-se (a
família aventou a hipótese de denunciá-lo à polícia enquanto militante do partido
comunista) embora ele tivesse lutado por seus interesses.

3.6 Ruptura com o mundo da intimidade familiar

Uma terceira ruptura com o mundo se deu no ambiente familiar. Jango nutria
certa revolta contra o pai, Dinamérico Klag, o Major da Formosa, homem rude,
autoritário, ―que o tratara sempre como um cão‖ (ANDRADE, 1991, p. 34). Jango
não fumava perto do pai e ouvia-lhe ―a voz persuasiva e forte‖, mandando-o
desencostar-se da mesa, perfilar-se.
No entanto, tal como o descreve o personagem Pancrácio Fortes, Dinamérico
era um ―sujeito original‖, que ―estudou em Oxford, na Inglaterra, tirou o curso de

27
filosofia, matou a mulher e caiu na pinga‖. O Major estaria escrevendo um livro, ―quer
tirar o prêmio Nobel. O Graça Aranha, que era amigo dele, chamava-o de Iluminado‖
(ANDRADE, 1991, p. 34). O nome de Graça Aranha, nesse contexto, não está em
boa companhia, não é sinônimo de modernidade.
A imagem de um pai ―castrador‖ parece reforçar-se na passagem em que
Jango, ―depois dos longos anos de internato com as férias na casa de São Paulo‖,
vai encontrar o pai castrando os animais da fazenda:

Encontrara dois potros amarrados pelas pernas, deitados no chão. Sofriam


a operação que o Major, em mangas de camisa, executava acompanhado
por dois peões. Perto havia um ferro em brasa (ANDRADE, 1991, p.
56).

Mais tarde, enquanto Jango convalesce incógnito dos graves ferimentos que
sofreu em combate, seu pai mantêm um relacionamento amoroso com Eufrásia, com
quem decide se casar, conforme mostramos anteriormente.

─ Jango. Eu quero explicar a você... Vou ser franco... Eu vivia no limiar do


instinto... Hoje minha vida depende de uma mulher... Eu vou me casar com
ela. Ela consentiu. No dia seguinte, talvez seja o retraimento, o ciúme... a
corneação... ela não tem raízes mas eu a aceito... Você vai deixá-la!
(ANDRADE, 1991, p. 56)

Dito isso, Jango se atraca ao pai. Lembrou-se do ―perfile-se, menino‖,


expressão com que o pai o reprimiu durante toda sua infância, sentiu crescer
incontrolavelmente sua revolta e mataria o velho Major certamente, não fosse a
intermediação de Umbelina, sua avó: ― ─ Jango! Ele é seu pai. Pelo amor de Deus!‖
(ANDRADE, 1991, p. 227). A partir desse momento foi configurada, claramente, a
gravidade da ruptura entre Jango e sua unidade familiar.

28
3.7 PROVAÇÃO SUPREMA

A análise estruturalista e a linha mais voltada para o estudo dos mitos,


(representada pelos estudos de Campbell), identificam situações em que o herói
deve passar por provas ou lutas, enfrentar seus oponentes em busca da satisfação
de uma necessidade vital, para si ou para o grupo. O herói é aquele que aceita uma
missão perigosa, da qual poderá sair vivo ou morto. O mundo da ficção conheceu
todo tipo de heróis: o mítico, o épico, o trágico, o satírico, o picaresco, o cômico, o
tragicômico, o burguês, o proletário. Todos eles alcançaram seu status enfrentando
as adversidades. Nas narrativas clássicas, o protagonista era sempre um ser
elementar, primário, uma força da natureza. Hércules, protótipo do herói, detinha
privilégios divinos. Ulisses peregrina longo tempo em terras estranhas, sujeito a mil
perigos, até regressar à pátria, vitorioso após a luta contra todos os inimigos que
enfrentou. O herói romanesco, um homem como qualquer outro, perde em força
heróica, humaniza-se. Sua tarefa é vencer obstáculos criados pela sociedade de
fundo burguês. O protagonista está apenas tentando sobreviver nesse mundo banal.
Não tem como fazer coisas extraordinárias. Tal como o protagonista de Ulisses (de
James Joyce), heroísmo é cumprir as rotinas de um mundo normatizado, regular,
mecânico. Os tempos modernos criaram, de fato, o anti-herói ou o não-herói.
Na primeira metade do século XX, levantou-se a hipótese da morte do
romance. Parte da crítica via nele mera ―frivolidade‖; outra parte vaticinava que o
romance, expressão da burguesia ascendente, poderia ser levado a morrer com ela.
É bem verdade que o rádio, o cinema, a televisão contribuíram significativamente
para o declínio do romance, mas a crise enraizava-se mais ainda na condição
humana na sociedade industrial, urbanizada.
A construção do personagem principal, qualquer que seja o sistema
semiótico, passa a ser alvo de grande cuidado por parte dos escritores. Se nos
voltássemos para um outro lado, o lado das receitas ou estratégias que
freqüentemente especialistas indicam para se criar um bom texto narrativo, iríamos
verificar que o protagonista de uma história tem uma importância muito maior do que
aquela que lhe tem sido dada pela teoria literária. A recepção de uma obra é mais
favorável quando, na trama, está em jogo algo da mais alta importância para um

29
personagem, para uma família, às vezes uma nação inteira; o indivíduo em perigo
costuma representar não apenas ele próprio, mas uma comunidade, uma cidade,
todo um país. Outra característica dos grandes romances, apontada por aquele
autor, é encontrada nos ―personagens memoráveis‖, que fazem ―coisas
extraordinárias‖, com quem o leitor prontamente se identifica.
Jango não pertence a esse tipo de herói. O romance aqui estudado não é um
romance diretamente inspirado na linhagem da epopéia, que exigiria um
protagonista muito mais dinâmico, presente e atuante. Jango transita entre a alta
sociedade e os operários, articulando os vários ambientes do romance, além de
carregar em si o rompimento com o mundo e explícita decisão de ir à luta. Capaz de
grandes sacrifícios, Jango sente-se convocado para a missão irrecusável de livrar o
povo da sua maior desgraça – o minotauro da ditadura getulista. Deixa a amante
grávida (logo após ela teve um aborto), e, apesar dos apelos insistentes dessa, parte
para a aventura.

3.8 A decisão de partir

Nas falas dos revoltosos no romance que estamos estudando, como veremos
abaixo, a situação dos cafeicultores, que se agravava dia-a-dia, está vinculada ao
novo governo. A revolução de 32, como sugere o título do capítulo V, ―Latifundiários
em Armas‖, foi uma reação das elites paulistas contra o regime de Vargas, movida
pela esperança de reverter a derrocada da economia calcada na produção de café.
Sem uma consciência exata do que estava acontecendo em todo o mundo, após a
crise de 1929, essas elites escolheram como vilão o governo central, antipatizado
por ter combatido e deposto um presidente ligado a essas elites em 1930. É o que
se deduz da altercação entre o Conde Alberto de Melo e Jango, sobre as causas da
crise do café:

─ O erro foi sempre do governo. Onde já se viu – disse Jango – em menos


de um mês abandonar o produto e deixar o preço cair de cinqüenta por
cento? Um corpo que contrai violentamente rebenta... É claro. [...] Vocês
[financistas] se serviram da desgraça para fazer o movimento de 30. Iam
salvar o café... e agora? Só nós [fazendeiros] somos taxados em ouro!
(ANDRADE, 1991, p.70)

30
Os conflitos se multiplicavam. Agora eram os colonos que cobravam o que
lhes era devido. Jango enfrentava um grupo desses trabalhadores, ―espanhóis,
italianos, húngaros e pretos‖, explicando para eles a situação em que se encontrava
a fazenda Formosa:

─ Vocês sabem que a broca comeu metade dos cafezais. Tivemos que
fazer repasse e expurgo. Não dão mais financiamento para o café. Os
comissários de Santos não aceitam saques de ninguém. Os bancos, piorou.
Não podemos ter dias certos de pagamento como dantes. Tudo isso veio de
repente.
No silêncio geral, Jango continuou:
─ Dormimos ricos e acordamos pobres (ANDRADE, 1991, p.68).

Mais adiante, numa clara alusão (ou paródia) do episódio que marcou a
entrada triunfal de Vargas no Rio de Janeiro – o gesto simbólico dos gaúchos,
amarrando seus cavalos no obelisco existente na Avenida Rio Branco, Jango
promete vingança, não amarrando seu cavalo no obelisco, mas plantando um pé de
café na mesma Avenida, que havia se incorporado ao conjunto de símbolos da
Revolução de 30:

João Lucas esporeou a besta e gritou para o agregado:


─ Nós iremos juntos ao Rio, com cinqüenta mil paulistas, plantar um pé de
café na Avenida Rio Branco! (ANDRADE, 1991, p. 8)

Essa promessa confere à jornada do herói o caráter épico, universal. Sua


decisão promete produzir uma reviravolta na história, eliminando o demônio que
infelicita seu povo. Para isso, no entanto, ele terá que ir de fato à luta, adentrar o
mundo desconhecido e hostil dos vilões, inimigos implacáveis, as figuras detestáveis
da ditadura getulista. Trata-se de um momento crítico da jornada do herói: o destino
convocou o herói e transferiu-lhe o centro de gravidade do seio da sociedade para
uma região desconhecida. Essa fatídica região dos tesouros e dos perigos pode ser
representada de várias formas: como uma terra distante, uma floresta, um reino
subterrâneo, a parte inferior das ondas, a parte superior do céu, uma ilha secreta, o
topo de uma elevada montanha ou um profundo estado onírico. Mas sempre é um
lugar habitado por seres estranhamente fluidos e polimorfos, tormentos
inimagináveis, façanhas sobre-humanas e delícias impossíveis.

31
O ódio ao governo e aos seus comparsas chega a um ponto tal que não se
vislumbra outra solução senão a guerra. Agitam-se as massas. Discursos inflamados
pelo rádio levam multidões à rua. ―Viva São Paulo!‖, era o grito de guerra que
exacerbava o sentimento bandeirante, temperado com o desejo de vingança.
―Vamos plantar um pé de café no Obelisco... Um pé de café francano!‖ (ANDRADE,
1991, p. 8), repetiam os fazendeiros. Intensifica-se o recrutamento. Partem os
primeiros contingentes, ―a estação coloria-se de bandeiras paulistas‖. A ―guerra
santa do café‖ estava nas ruas (ANDRADE, 1991, p. 8).
Jango vagueia daqui e dali, em meio aos preparativos para a revolução. Tem o
seu último encontro com Eufrásia. Fica sabendo que ela está grávida. No entanto,
ele tem que partir, buscar soldados na fazenda e conduzi-los. Depois desse
episódio, temporariamente não se tem mais notícias de Jango, a narrativa muda de
foco e passa a focalizar as desventuras de Quindim, irmão de Jango.

3.9 Os revoltosos recebem adjuvantes

O mundo de MZ é povoado de fazendeiros, grandes cafeicultores, capatazes,


peões, agiotas, comissários do café, religiosos, operários. São brancos, negros,
japoneses, libaneses, portugueses, índios e mulatos, atormentados pela crise da
economia cafeeira. A revolta é capitaneada pelas elites, que dependem do apoio das
massas. Os comunistas sabem que ―é preciso separar a revolução dos
trabalhadores de toda parte do mundo dessa revolução de ricaços arruinados que
procuram seus próprios interesses‖ (ANDRADE, 1991, p. 44). Sabem que ―só uma
revolução interessa aos trabalhadores. É a revolução contra os patrões e o governo
dos patrões‖ (ANDRADE, 1991, p. 42). Numa reunião na casa do camarada Modília,
no bairro Gonzaga, da qual participam Rioja, Fabrício e Pacova, foi decidida a
posição do Partido Comunista frente à revolta paulista. A possibilidade de uma
revolução paralela foi descartada, sob o argumento de que o partido não tinha força,
―o proletariado brasileiro non está organizado. Non teng consciência de luta de
classe. Estamos muito atrasado. No campo, permanece regime feudal de
latifúndio...‖ (ANDRADE, 1991, p. 36). É decidido, então, um ―casamento‖ entre o
PRP e o PC, uma aliança espúria, mas que Karl Marx aprovaria, pois, ―as revoluções

32
são a locomotiva da história‖ (ANDRADE, 1991, p.36). A partir daí, os comunistas
passariam a agitar as massas, falando, pregando a revolução socialista em meio às
agitações de 32.
É pela boca de um comunista, Plaumburn, o eletricista bochechudo e calvo,
encarregado de analisar o contexto da guerra, que ficamos sabendo que outras
forças se somam aos revoltosos: ―─ Os paulistas contam com Força Pública e
alguns guarniçon de exército. Esperram auxílio de Minas Gerrais e Rio Grande do
Sul‖ (ANDRADE, 1991, p.36).
A adesão do governador de São Paulo deflagra definitivamente a revolução.
―A notícia corria, agitava a capital, o Estado, o Brasil. O Governador Pedro de Toledo
encabeçava a revolução‖ (ANDRADE, 1991, p.154). As rotinas se alteram. As aulas
são suspensas e as crianças, na plataforma da estação ferroviária, fazem algazarra
na despedida dos soldados. Agasalhos, cigarros, comida, ―copos de cerveja,
brilhantes de espuma‖, é o que vêm trazer as madrinhas, ―senhoras vistosas e
moças ágeis‖ (ANDRADE, 1991, p. 154), a seus afilhados de guerra. O clima tenso
dos iminentes combates contrastava com aquele ar eufórico e descontraído de
quermesse. Não faltavam cenas de ciúmes entre as madrinhas e as mães, esposas
e namoradas dos mancebos voluntários. ―Umbelina Formoso, trêmula, num vestido
claro, discutia com outra, baixa, borrada de pintura: ─ O Capitão é meu!‖
(ANDRADE, 1991, p. 154). Assim, podemos dizer que o herói do romance cíclico
atravessou a passagem do primeiro limiar.

3.10 Imagens melancólicas da campanha paulista

MZ deixa ver um cenário surpreendente: de um lado as elites entusiasmadas


tentando injetar ânimo, audácia, valentia, nos voluntários, que vão arrebanhando
aqui e ali; de outro, a apatia, a descrença, a alienação desses mesmos voluntários,
gente que nunca pegou em armas, sem nenhum entusiasmo guerreiro. São movidos
pela oportunidade de obter comida de graça, ―eu me alistei por causo da bóia‖
(ANDRADE, 1991, p. 157); comprar sem pagar, ―tá louco! Nóis temo em revolução.
Sordado não paga‖ (ANDRADE, 1991, p. 157); vaidade, como o caso do Tenente

33
Lírio, que sonhava retornar da guerra, num cavalo branco, entre palmas e flores,
ovacionado e louvado como um ´Napoleão negro´ ‖ (ANDRADE, 1991, p.161).
Os soldados paulistas eram ―homens murchos e amuados que se vestiam
com os mais desconexos resíduos de indumentária paisana. Desmoralizava-os uma
atitude de displicência, cinismo e miséria― (ANDRADE, 1991, p.162). O exército com
que as elites paulistas esperavam derrotar as forças do seu arquiinimigo Getúlio
Vargas não passava de um ―troço bisonho de recrutas‖ a marchar ―na poeira das
ruas de Santo Amaro. Entre mulatos empalamados, velhos emprestáveis, moços do
campo que se moviam duros e imprecisos com um cobertor enrolado a tiracolo‖
(ANDRADE, 1991, p. 161). Daí a grande desilusão e a ruptura de Jango também
com o pensamento dessas elites rurais paulistas, para aproximar-se posteriormente
do comunismo.

34
3.11 MORTE E RESSURREIÇÃO

Nos mitos estudados por Campbell, após as provações que o herói enfrenta
para alcançar o objeto-valor, ele deve retornar ao mundo de onde saiu. Mas não
retorna de mãos vazias. Volta glorificado por haver conseguido vencer o antagonista
e, assim, fazer triunfar os valores que considera vitais para si e para a sua
comunidade. A benção que ele traz consigo restaura o mundo. O aventureiro deve
retornar com o seu troféu transmutador da vida. O círculo completo requer que o
herói inicie agora o trabalho de trazer os símbolos da sabedoria, o velocino de ouro
ou a princesa adormecida, ao reino humano, onde a bênção alcançada pode servir à
renovação da comunidade, da nação, do planeta ou dos dez mil mundos.
Em seu fio narrativo, MZ omite muitas daquelas funções consideradas chave
para o desenvolvimento da narrativa. A ausência naturalmente pode se dar por
economia – em geral, sucessos num campo de batalha são muito semelhantes ou
podem ser facilmente deduzidos através de outros índices presentes no discurso
narrativo. A jornada de Jango na guerra não é descrita, podendo, contudo, ser
imaginada, em face do que aconteceu com o Batalhão Fantasma do Tenente Lírio.
A parte mais dolorosa de todo conflito armado são as baixas, os feridos e os
que simplesmente desaparecem. Quando esse outro lado surge, as pessoas
começam a ver a realidade com outros olhos. ―─ Todos falam que querem morrer,
mas quando chega a hora ninguém quer. A morte deve ser uma coisa pau...‖
(ANDRADE, 1991, p. 184). A enfermeira que assim se expressava tinha acabado de
ajudar na amputação da perna de um combatente, que acabara morrendo na
cirurgia. Mães que perderam filhos, desfile de parentes buscando notícias, a
angústia da espera pelo desfecho, a incerteza quanto ao futuro, é a rotina da guerra.
Não parece ter fim a dolorosa espera do ―trem fúnebre‖, transportando a leva
cada vez mais numerosa de mortos e feridos nos campos de batalha. Era uma
guerra ridícula, idealizada pelas elites arruinadas, que mal podiam liquidar seus
débitos. No entanto, era preciso mostrar força e poder. Imaginaram até um canhão
rolante, que dava um tiro frouxo aqui, indo dar outro lá longe, para simular baterias.
Matracas simulavam o ruído de metralhadoras.

35
A narrativa simulou que a vez de Jango havia chegado. ―Logo o Jango. Tão
forte, tão bonito, tão distinto, tão cavalheiro...‖ (ANDRADE, 1991, p. 184). As rádios
anunciaram sua morte, ―caído na frente Norte‖. Juntamente com outras vítimas, seu
caixão jazia num vagão qualquer do trem fúnebre que chegaria em breve. O Major
Dinamérico Klag e outras figuras da sociedade paulista, ―gente bem trajada‖, ―as
senhoras em preto, de véu‖ (ANDRADE, 1991, p. 184), acorreram à gare para
receber o corpo de Jango.
A família Moncorvino estranhou que os Formoso ali estivessem. Eufrásia foi a
primeira a perceber que eles estavam enganados. ―Quem morreu foi o Capitão
Jango, marido da Rosalina‖ (ANDRADE, 1991, p. 185). No entanto, o Major
Dinamérico, pensando que ―o queriam espoliar do herói da guerra paulista‖
(ANDRADE, 1991, p. 186), recusou-se a admitir que estava enganado. Esperou que
o trem chegasse e, quando abriram o caixão, percebeu que Eufrásia tinha razão.
―Não é o meu defunto!‖, exclamou ela, afastando-se.
O protagonista, no entanto, pouco depois dá entrada no hospital improvisado
no colégio das Irmãs. Fora alvejado na cabeça. Seu estado é grave, ―veio em estado
de coma‖:

A bala amassara o capacete e raspara os ossos da cabeça. Depois da


operação o ferimento fora considerado em evolução favorável. Jango não
podia andar, nem sequer mover nos travesseiros encastelados por detrás
de seus ombros. Uma dor de cabeça tenaz lembrava-lhe a trincheira
(ANDRADE, 1991, p. 186)

Conforme se vê, a tensão gerada pelas rupturas não se desfaz. A revolução


paulista foi esmagada em três meses. O sonho de plantar o pé de café no obelisco
se esvaiu diante da dura realidade do poder e força da ditadura. Jango volta ferido e,
com muito sofrimento, recupera lentamente sua saúde num leito de hospital.
Paciente anônimo numa enfermaria de campanha, seu rompimento com o pai
se agrava, pois, aproveitando-se de sua ausência, o Major Formoso aproxima-se
mais de Eufrásia, apaixona-se definitivamente por ela, mesmo sabendo que ela
carregava em seu ventre um filho de Jango. Depois da tentativa de matar o próprio
pai, Jango conforma-se com o fim de seu romance com Eufrásia, que morrera para
ele e passou a assombrá-lo enquanto ele se envolvia com outras mulheres (pois a
personagem prosseguiu na narrativa):

36
Uma serenidade divina encerrava a fase trágica do seu amor. Eufrásia
morrera. Não importava continuar a existir, andando, falando. Mas as
reações, rápidas e certas que seu sentimento provocara nela, tinham se
extinguido. Animara-a um instante nos seus braços fortes. Dera-lhe vida.
Agora não vivia mais. Estava tudo encerrado, ela, o apartamento, as tardes,
o futuro (ANDRADE, 1991, p. 227).

A vergonha da ruína econômica, cujo ápice é a perda das terras, se torna


também mais crítica. No entanto, o herói não está morto. Está consciente de que:

São Paulo tinha sido vencido. Ele não! Aqueles dias perdidos, face a face
com a morte, haviam revigorado seus direitos primordiais. Que importava...
Dera a contribuição de sua integração anônima na batalha, desde a primeira
hora [...]. Tinha ressuscitado (ANDRADE, 1991, p.203).

Assim, o herói foi à luta e voltou modificado. A mudança manifestar-se-á, em


Chão, com um ganho de consciência social. Jango, tomando consciência da
situação de penúria do País, volta-se para o comunismo, do qual passa a ser
simpatizante, dando apoio a comícios, contatando quadros (como Mikael, o
aristocrata russo) e enfrentando o reacionarismo da família.

37
4 O HERÓI RETORNA A SEU MUNDO

4 1. A revolução de 32 e a piada do português

O romance oswaldiano aqui avaliado reflete a visão que as pessoas comuns


tinham da guerra, de seu imaginário e suas reações num momento crítico. A idéia de
como as pessoas podem ser manipuladas, efetivamente encenando o papel
predeterminado pelas elites, pode ser auferida da auto-imagem expressa numa
conversa entre soldados na trincheira. Eles se sentiam como o português da piada vii.
Nada tinham a ver com aquela guerra, não sabiam o motivo de vestirem farda nem
contra quem disparavam suas armas. Um desses soldados resume muito bem o tipo
de empreitada em que se meteram; ―─ Corneta, tambor, rádio, discurso, madrinha,
depois tiro, carrapato, fome... É essa a passeata ao Rio de Janeiro‖. (ANDRADE,
1991, p.175).
A grande jornada das elites paulistas, ir ao Rio e depor o grande vilão, não
deu em nada. Acostumada a ver os filmes do cowboy Tom Mix, com quem se
identificavam, as elites superestimaram a sua capacidade bélica. São Paulo perdera
a guerra. O vaqueiro heróico do faroeste, ―que vingava os sofredores não mais
substituiria nos refolhos do coração os símbolos primitivos e vingadores das religiões
e das morais‖ (ANDRADE, 1991, p. 230). A tela do cinema ―processava o castigo
final dos brutos, dos tiranos e dos bandidos. O cowboy era uma transfiguração do
Anjo esmagando Satã‖ (ANDRADE, 1991, p. 230). Dessa vez, era o vilão o
vencedor. A vida não imitara a arte. É Satã que esmaga o Anjo. Assim como ―do alto
do seu cavalo o mocinho não mais criaria os horizontes necessários à certeza de
que o mundo era perfeito e a justiça intangível‖ (ANDRADE, 1991, p. 231), também
―do alto de seu cavalo, o plantador não mais criaria os horizontes dos cafezais,
necessários à certeza de que o mundo era perfeito e o Brasil intangível‖ (ANDRADE,
1991, p. 232). Assim, Jango, passa a ajudar o avô, Bento Formoso, a rolar a dívida
do café, enquanto espera a renegociação das dívidas, o ―reajustamento‖ prometido
por Vargas depois da revolução de 32.

38
4.2 Consciência da realidade

Diferentemente do mito, o herói retorna a seu mundo sem o elixir, sem a


poção mágica, com a qual poderia restaurar o universo dos valores que julgava
degradados. Esse elixir continuava nas mãos do seu oponente. No entanto, sem
poder transformar a realidade, o herói volta transformado. Está plenamente
consciente de que ―mitos novos e vitoriosos fluíam da vida política. O irracional
desembocado sem peias das malhas individualistas do capitalismo. O fascismo!‖
(ANDRADE, 1991, p. 260). Jango passou a combater o fascismo, que surgiu sob a
forma de partido integralista, no decorrer da narrativa de Chão.

39
4.3. VISÃO DE MUNDO EM MZ

Qual seria, portanto, a visão de mundo que fica de MZ, se o NE nunca a


forneceu clara e explicitamente, nem nosso suposto protagonista o fez? Pode-se
entender o sentido dessa jornada? Quais seriam os valores investidos em Jango
enquanto protagonista? O leitor pode ficar com a impressão de o romance aqui
estudado foi a epopéia da burguesia cafeeira, o epitáfio de um ciclo, se ele não
fosse paródico também. A epopéia de 32 não foi cantada na narrativa. Os discursos
nacionalistas do farmacêutico intelectualizado Lírio de Piratininga ao batalhão Olavo
Bilac eram cheios de retórica balofa, entulho art-nouveau, patriotada parnasiana,
mostrando-se alienados como o discurso patriótico de Eufrásia Beato em sua sala
de aula, composta por alunos muitas vezes miseráveis.
No final de MZ I, quem se afirmou foi Getúlio Vargas, até então tido como
vilão. Os revolucionários de 32 tiveram sua vitória negada, restando-lhes a tristeza.
Já no MZ II, com o episódio da vitória dos comunistas ao dispersarem um comício
integralista, há uma clara afirmação dos comunistas como vitoriosos se aliados aos
liberais contra o fascismo (do qual, no texto em questão, o integralismo é sinônimo).
Uma visão de mundo não é facilmente acessível nas falas de Jango e do NE.
Pode-se dizer que MZ teve como novidade a crítica à revolução de 32, como
assinalou Maria Eugênia Boaventura: ―outro elemento novo, na reflexão dos
modernistas na década de 30, foi a crítica explícita à Revolução Constitucionalista
de 32. [Oswald de Andrade] elogiou a atitude dos operários por não se ter deixado
levar pela histeria pequeno-burguesa dos paulistas...e por não (...) formar batalhões
patrióticos sob a direção dos sicários da ordem social e dos tubarões da ordem
feudal‖ (BOAVENTURA, 1985, p. 91). Essa posição do autor empírico não é tão
evidente no romance Marco Zero.
O fato de a publicação do romance cíclico coincidir com o período em que o
autor empírico estava associado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) serviu
muitas vezes para que se interpretasse esse texto como mero registro documental
da realidade e veículo de posições partidárias e dogmáticas: julgamos que essa
leitura foi equivocada.

40
Esse romance pode ser visto como um texto antropofágico alimentado pela
militância anarquista e marxista. Por antropofagia, entendemos a postura
nacionalista branda, aliás, mas que frisou a necessidade de uma apropriação
seletiva dos conteúdos estrangeiros em busca de novas sínteses. A narrativa de MZ,
portanto, buscou digerir e sintetizar as mais variadas idéias, opiniões, falares e
posições sócio-culturais num painel sincrético. Como vimos acima, as contradições
encontradas em MZ não comprometem os elementos que ficam e permaneceram ao
final de uma leitura. O texto estruturou-se em torno da trajetória de Jango e seus
ajudantes (Leonardo Mesa, Maria Parede, Mikael, Paco Alvaredo, Lírio de
Piratininga, tenente Jango da Formosa, Quindim) e o confronto com seus oponentes
(Major Formoso, Monsenhor Palude, Padre Beato, Nicolau Abramonte, Monsenhor
Arquelau, Plínio Salgado, Conde Alberto de Melo). Claro que se trata de uma
simplificação que nos possibilitou verificar a movimentação interna do romance.
Pode-se tratar de MZ buscando um dos inúmeros códigos ou possibilidades
interpretativas: a questão da terra, o muralismo mexicano, a revolução de 32, o
problema da educação, dos imigrantes e do imperialismo, da antropofagia e da
identidade nacional. Como veremos no tópico seguinte, existe uma estrutura
analisável que retiramos do romance cíclico.

4.4. Estruturação da fábula

Situação Provas Epílogo


Inicia/l Resultados
Contexto Derrota Vitória

Crise na zona Luta dos Derrota dos Vitória dos


urbana e rural paulistas contra paulistas liberais. varguistas
(pós crack de o governo contra os
29). federal Derrota de paulistas.
(Revolução 32→vitória dos
São Paulo, Melancólica). comunistas. Vitórias dos
1932. comunistas →
Luta dos derrota dos
comunistas integralistas
contra o (fascistas).
governo e o
integralismo
(Chão).
Tabela 1: Estruturação da fábula

41
Quais foram os principais conflitos? No primeiro capítulo, foi a posse da terra
como objeto de disputa (aparentemente esse seria o conflito principal do romance,
apresentado inicialmente). Miguelona (valoração positiva) teve como ajudantes o
seu bando e como oponentes a família Formoso (Major). No decorrer de MZ, o
conflito direcionou-se para um conflito principal: passou a ser entre o estado, o
governo federal que traiu São Paulo (valoração negativa) e os fazendeiros tais como
os Formoso (que ganham valoração positiva).
Jango lutou na revolução de 32 contra Vargas. O que motivou o conflito foram
vários fatores: a constituição que demorava (motivando os protestos na faculdade de
Direito), o poder de Vargas como ditador, a fazenda de café pendurada em dívidas
que o governo não ajudava a pagar. O Major foi uma figura negativa no confronto
com Miguelona, mas no conflito com Vargas, Jango tornou-se um herói positivo,
mesmo sendo filho do Major. Jango foi um elo de ligação entre a família de
cafeicultores, ditos ―feudais‖, decadente e os operários ligados ao comunismo. Como
Jango era filho do Major e simpatizante comunista, coube-lhe um papel de
protagonismo no tecido narrativo.
Em Revolução Melancólica, Jango teve Leonardo Mesa como ajudante
indireto: os comunistas não se opuseram à revolta de 32, simpatizaram com ela,
pois sabem que ela ajudará a mover a história. Voltemos à nossa questão inicial:
qual é a visão de mundo de MZ? A hipótese que esboçamos aqui é mais uma
provisória resposta às dúvidas do leitor e da crítica do que um esclarecimento do
sentido do texto. Acreditamos que ―na visão da arte moderna e da grande
diversidade das formas de recepção literária, o leitor não pode mais ser informado
pela interpretação do sentido do texto – o qual, de qualquer modo, não existe mais
fora do contexto‖ (ISER, 1976, p. 43).
Portanto, a narrativa não acenou para o tempo do enredo (1932-1934): a
visão de mundo que se pode depreender da narrativa seria uma resposta ao
contexto de 1943, época em que a frente das democracias liberais com a União
Soviética vencia o nazifascismo na II Guerra Mundial.
Assim, pode-se dizer que a visão defendida pela narrativa seria a defesa da
estratégia política dos comunistas em 1943, quando da aliança com as burguesias
liberais do Ocidente, possibilitando a derrota das forças autoritárias do fascismo.

42
4.5. Modelo atuacional

Figura 1: Modelo Atuacional

DESTINADOR OBJETO DESTINATÁRIO


(ELITES) (SALVAÇÃO DA (SOCIEDADE
ECONOMIA BRASILEIRA)
CAFEEIRA).

OPONENTES SUJEITO ADJUVANTES


(GOVERNO (JANGO) (CLASSES
GETÚLIO POPULARES)
VARGAS)

O esquema atuacional do romance aqui analisado foi ilustrado acima: Jango,


que consideramos sujeito e que de fato age em boa parte do romance, toma
iniciativa de fazer a guerra em 32; seu objeto é a salvação da economia cafeeira. Se
o sujeito alcançar seu objeto, são destinador e destinatário, inclusive, as elites às
quais ele pertence e a sociedade brasileira (em boa parte, dependente da economia
cafeeira). Jango tem como oponentes o governo Getúlio Vargas e tenta
arregimentar, como adjuvantes, pessoas das classes populares, muitas vezes
interessadas somente em receber algum dinheiro, tais como aquelas que compõem
o eclético ―batalhão Olavo Bilac‖ que o amigo de Jango, Lírio, montou.

43
4.6. Axiologia e transformações

Axiologia Atores Conteúdos Situação


Investidos Final
Valores Getúlio Vargas Tirania +Traição Afirmação
inautênticos
Valores Jango Liberdade + Condenação
autênticos Lealdade

Figura 2: Axiologia e transformações


A partir do estudo dos valores investidos (axiologia) acima apresentada, pode-
se aventar uma hipótese mais abrangente a respeito do que foi negado e do que foi
valorizado dentro do romance. Vargas não é valorizado senão como representante
de valores inautênticos (tirania, traição) e que terminam afirmados como aqueles
que vencem no final. O romance possui, portanto, um desfecho infeliz, a revolução
realmente termina em tristeza e melancolia, uma vez que os personagens nos quais
foi investida a liberdade e a lealdade terminaram condenados.
Concluindo, nossa leitura de MZ quis dizer que a visão de mundo
preponderante em MZ foi uma proposta singular de assimilação do anarquismo e do
comunismo, dentre outras opiniões e idéias, pela cultura brasileira: nesse ínterim, a
narrativa aproveitou, ocasionalmente, alguns direcionamentos do partido comunista,
tais como a aliança com os liberais acima citada. Se existem lugares-comuns, a
narrativa, ao retirá-los do contexto, fez com que adquirissem novo sentido e se
tornassem lugares incomuns.

44
2ª PARTE

A JORNADA DO HERÓI: ASPECTOS DA FÁBULA

5 O NARRADOR EXTERNO E O HERÓI

MZ é um romance de narrador externo onisciente, tendo acesso até aos


pensamentos mais íntimos dos personagens. Se procurarmos uma relação entre a
parte e o todo do romance, ou seja, entre uma frase da narrativa e a totalidade,
como sugeriu Bal, escolheríamos, provavelmente, um momento em que um
personagem recebeu o foco do narrador externo (NE), ou seja, uma fala de um
personagem, marcada no romance pelo uso do travessão. O romance que estamos
discutindo foi estruturado em diálogos, ou seja, conforme a narratologia, em
focalizações internas ou focalizações personagem (FP). No entanto, nosso ponto de
vista é que os comentários do NE aproximaram-se das focalizações internas de
Jango, fato raro em MZ e que colaborou para nossa hipótese de que o romance será
melhor entendido se considerarmos Jango enquanto protagonista.
Em MZ não dominaram as descrições do NE e as partes discursivas foram
pequenas em relação às partes narrativas. O narrador onisciente do romance não
realiza a narração autoral que geralmente se espera de um narrador como tal. Como
escreveu a respeito desse tipo de narrador o teórico Wayne Booth: ―obviamente,
essa técnica (de um romance de Beckett) não pode ser julgada pelos conceitos pré-
modernos da linha narrativa estabelecida, realização dramática, consistência de
ponto de vista, ou claridade postulada por um narrador onisciente‖ (BOOTH, 1983, p.
456). Predominaram os focalizadores internos com as mais variadas posições
políticas, sociais e existenciais. Os julgamentos do NE sobre a revolução de 30 e a
de 32, muito importantes para o desenrolar da narrativa, foram contrastados por

45
falas do personagem Leonardo Mesa e Pancrácio Fortes. No início de Revolução
Melancólica, a posição do NE mostrou-se bastante próxima da do personagem
Jango:

Em 1930, homens armados tinham acorrido do Norte e do Sul, em


exércitos, com um lenço vermelho no pescoço. Mas, depois de tomar o
poder, o novo governo abandonava o produto capaz de sustentar a balança
comercial exterior. E ordenava a destruição, a queima de dois bilhões de
arbustos em produção. Como a velha vestimenta florestal, como a antiga
gente da América, o café paulista tinha de desaparecer (ANDRADE,
1991, p. 58).

Essa foi a postura do narrador externo. Pouco depois, seguiu a focalização


interna de Jango: ―—Que a broca coma essa merda! Mas eu não ponho fogo no
cafezal. A Formosa é o coração do mundo!‖ (ANDRADE, 1991, p. 58). Das
passagens acima, colocadas em sequência, depreendemos que a postura do
governo de 30 foi injusta com os cafeicultores: Jango rebelou-se contra a injustiça.
Um levante contra o governo seria justo, portanto. O NE externo estaria próximo de
Jango.
Devido à multidão de personagens que atuaram nos dois volumes de MZ,
precisamos reparar não só no comportamento dos personagens, mas também no do
narrador. Ou seja, o NE foi uma figura que se depreendeu não só a partir de suas
descrições propriamente ditas, mas a partir da observação de como foram montadas
as partes de um texto, constituídas as personagens, selecionados os recursos
estéticos a serem empregados, enfim: o narrador organizou o conjunto dos
elementos da narrativa de modo que o leitor percebesse quais foram as noções que
serviram de balizas para a composição. Foi um dos elementos da narrativa e
colocou-se claramente no texto.
O narrador externo ocupou-se de descriçõesviii que iremos analisar para poder
entender melhor o tom das idéias e opiniões expressas nessas partes descritivas (ou
discursivas) de MZ. O NE, nesses romances cíclicos, nunca exprimiu uma visão
totalizante dos acontecimentos narrados, até porque sempre se situou no mesmo
tempo da narrativa. O tempo da narrativa, em MZ, foi, portanto, o mesmo tempo do
enredo.
O NE fez descrições, iniciou descrevendo um ambiente. O ambiente situou-se
entre rios e morros. Apresentou a personagem Miguelona, que não era a
protagonista; em seguida, descreveu Pedrão, sua camisa, braços e traçou seu perfil.

46
Em seguida, houve a focalização interna de Miguelona e logo a seguir a de Pedrão.
A primeira frase que resultou da fala de Miguelona foi uma elocução performativa:
[Por meio desta eu lhe ordeno que] ―garra (agarre) a terra, Pedrão‖ (ANDRADE,
1991, p. 19). Miguelona afirmou, perguntou, deu ordens. A descrição foi a tarefa do
NE novamente: ―o enterro de Pedrão fora marcado para as nove horas. Apareceu
primeiro o padre, de óculos, numa capa preta‖ (ANDRADE, 1991, p. 20).
O NE descreveu a cena do enterro, apresentou quem estava presente,
criando o clima para a aparição da viúva. Bal afirmou que nas partes discursivas é
mais fácil encontrar o tom das idéias de um romance, se as compararmos com as
narrativas. Quase todos os personagens, mesmo os mais humildes, tiveram acesso
a pelo menos uma focalização interna. No entanto, podemos notar que os discursos
dos revolucionários de 32 apareceram fragmentados quando foi citada a frase:
―sangue...sementeira...São Paulo‖. Igualmente, quando um estudante de Direito
enunciou um discurso constitucionalista, suas frases vieram entrecortadas pelo
tumulto reinante e o NE recusou-se a fornecer-lhe uma focalização interna. Os
discursos dos revolucionários de 32 possuíram em MZ uma função semelhante aos
atos de fala passadistas de Machado Penumbra em Miramar: estão lá para serem
parodiados, contrastados e desconstruídos.
O debate de idéias fez parte de uma abordagem neonaturalista do romance.
Ela se construiu, também, no interesse de trazer ao leitor informação e
esclarecimento. Ao contrário de um realismo fotográfico (interessado no aspecto
documental), o neonaturalismo de MZ ambicionou abrir uma discussão em um nível
em que geralmente ela não foi feita ou foi silenciada.
O narrador externo, a certa altura de MZ, colocou abaixo a hipótese de Mesa
sobre Miguelona (de que ela seria o protótipo da nova mulher paulista, nascida com
a industrialização), assim também traçou para Miguelona (personagem, em relação
aos demais personagens de origem popular, até intelectualizada) uma origem no
liberalismo clássico: suas idéias e atitudes teriam se originado de Bocaccio, Adam
Smith e Voltaire. E o NE, ao fim dessa apresentação, pontuou que Miguelona era
exceção e não poderia ser tomada como símbolo de que existiram mudanças na
situação da mulher do mundo rural paulista. Mesmo assim, ela possuiu uma função
no decorrer de Marco Zero: satirizar e caricaturar os ideais revolucionários do
camarada Rioja e de Maria Parede: eles seriam os revolucionários sérios, ligados
aos dirigentes, enquanto Miguelona seria ―a base‖: uma ítalo-caipira que os

47
militantes tentaram radicalizar. Tomemos o parágrafo inicial de A Revolução
Melancólica:

A aurora de um novo dia corava de roxo os rios e a orla dos morros escuros.
Miguelona Senofim parou na estrada junto a um homem que estaqueava a cerca
rebentada àquela noite (ANDRADE, 1991, p. 19).

Temos acima um ambiente situado apenas vagamente um local na zona rural,


devido aos substantivos ―rios‖ e ―morros‖. Uma personagem (Miguelona) foi
nomeada de pronto, ela marcou presença no romance, mas não foi protagonista. Foi
só graças ao título do capítulo que podemos esperar um conflito dessa
apresentação: ―A posse contra a propriedade‖. Ficou-se aguardando, portanto,
algum tipo de conflito rural. No entanto, o romance tratou também desses conflitos
do mundo rural, mas mais adiante também aconteceram muitas cenas em Jurema
(cidade pequena) e finalmente algumas ações tiveram lugar em São Paulo
(novamente o meio urbano, a capital do estado onde se passou boa parte de
Serafim e Miramar). Para contrastar, citemos o prefácio de São Bernardo, de
Graciliano Ramos:

Antes de iniciar esse livro, imaginei construí-lo pela divisão do trabalho.


Dirigi-me a alguns amigos, e quase todos consentiram de boa vontade em
contribuir para o desenvolvimento das letras nacionais. Padre Silvestre
ficaria com a parte moral e as citações latinas; João Nogueira aceitou a
pontuação, a ortografia e a sintaxe; prometi ao Arquimedes a composição
tipográfica; para a composição literária convidei Lúcio Gomes de Azevedo
Gondim, redator e diretor de O Cruzeiro. Eu traçaria o plano, introduziria na
história rudimentos de agricultura e pecuária, faria as despesas e poria o
meu nome na capa. (RAMOS, 1976, p. 7.)

Logo de início, o suposto autor apresentou uma temática que reaparecerá no


decorrer do romance (a divisão do trabalho), assim como vários personagens que
serão retomados no decorrer da narrativa, bem como suas ocupações e a relação
de proximidade que possuíram para com o protagonista, que deu a entender que,
além de planejar, teve rudimentos de história e agricultura e foi também alguém
capaz de contribuir com o capital, ou seja, com elementos decisivos na realização a
que está se propondo.
Para melhor compreendermos o funcionamento do NE, comparemos a
abertura de MZ com o do romance São Bernardo, de Graciliano Ramos. Esse
apresentou o protagonista (Paulo Honório) e a situação que gerou o enredo (a

48
escrita de um texto). Em MZ, o NE não nos ajudou desde a primeira cena: vemos
posseiros (Miguelona, Pedrão) lutando pela posse da terra, mas no decorrer do
primeiro capítulo e do capítulo seguinte, verificamos que Miguelona, embora tenha
sido apresentada primeiro, não é evidenciada como protagonista de MZ. Trata-se da
primeira dificuldade para o leitor: quem é o protagonista? Escolhemos Jango por ter
aparecido mais vezes no decorrer da narrativa (46 vezes), Leonardo Mesa/Fabrício
Rioja (24) e contra Miguelona (11 vezes). O leitor, a partir daí, poderia entender que
MZ foi o ―romance da revolução de 32‖, dos ―heróis paulistas‖. No entanto, mais
adiante, em Chão, depois de passado e derrotado o levante, um personagem
favorável a Vargas manifestou-se do seguinte modo:

Há pouco, a senhora dissertava sobre o idealismo do movimento armado


de dois anos atrás, onde não foi possível distinguir o sonho liberal
propriamente dito, e os interesses de uma classe que se viu arruinada pela
queda dos preços do café. Mas nós, que tínhamos nós a defender, senão
um ideal revolucionário de ontem e foi paga da sua quota de idealismo com
uma poltrona no parlamento paulista. Mas nós somos revolucionários
desde 22. Estamos em 34 (ANDRADE, 1991, p. 124).

A posição acima, que contestou o movimento de 32, além de possibilitar que


situemos o tempo que a própria narrativa delimitou para os acontecimentos nela
narrados (os anos entre 1932 e 1934), expressou uma forte oposição à rebeldia dos
cafeicultores paulistas: o personagem Pancrácio Fortes apresentou a hipótese de
que a revolução de 32 tenha sido defesa de interesses de classe e não foi
contestado pelo NE; o NE, a seguir, simplesmente intercalou frases para que
Pancrácio passasse a tratar da revolta do Forte de Copacabana (1922) e do
momento em que os revolucionários de Miguel Costa tomaram São Paulo (1924).
A desconfiança do NE perseguiu e contaminou o Conde Alberto de Melo
quando saiu de avião com Kana. A desconfiança do NE, supomos, foi baseada em
fatores históricos tais como a política externa agressiva do Japão nesse período.
Essa política não foi referida na conversa com o Dr. Sakura, esclarecedora da
situação externa e interna do Japão e que serviu, como focalizador externo, para
trazer a problemática exterior para o contexto brasileiro. Os japoneses estiveram
associados com Conde Alberto de Melo, com a revolução de 32 junto ao político
Pádua Lopes, o caboclo e a tomada de suas terras. O tema da posse contra a
propriedade também envolveu esse ataque ao Índio Cristo por parte do colono

49
japonês. O caboclo teria a posse das terras e o japonês interferiu enquanto
proprietário (―grileiro‖) imperialista de tradições feudais advindas do Oriente.
O NE observou várias contradições em Miguelona: ela era, ao mesmo tempo,
engajada na luta da terra e pequena proprietária exploradora de outros
trabalhadores (usurária). O próprio enfoque do NE foi bastante indicativo dessa
ausência de mudanças: para assumir um papel de mulher consciente e livre,
Miguelona foi referida como ―mulher homem‖, dando a entender que, se a mulher
assumir uma postura agressiva em defesa de seus direitos e quiser vivenciar sua
sexualidade, estará numa postura normalmente reservada somente aos homens.
Nossa pergunta, então, se transformou: se Miguelona não é símbolo das
mulheres paulistas em sua ascensão, por que ela foi tão diferente da militante Maria
Parede? Nossa hipótese é que a figura de Miguelona foi necessária para compor os
aspectos satíricos e paródicos da narrativa de MZ. Para melhor compreendermos o
caráter bufão de Miguelona, observemos seu vocabulário, pleno de expressões
vulgares e talvez obscenas:

_Eu tenho pressa. Estô ficando na merda. Banana! Meu dinheiro foi suado,
fio da puta! (...). _Ocê nunca comeu véia? _Véia feia que nem eu? (...). A
fia do careço é qui nem arçapão. Di manhã e di noite gosta de pigá
passarinho! (...) _Cagá no mato, bebê água no ribero, metê na bera do
caminho. Num tem vida melhor do mundo! _ Sua família parece porta de
tinturaria! Você é mulata, a Eufrásia é branca, inté índio tem! (...). _Sto uma
isqueleta! Peguei a doença de molher. É a venérica... (ANDRADE,
1991, p. 205-212-276)

A partir das expressões acima, podemos tirar as seguintes conclusões: o NE


considerou Miguelona uma mulher de papel masculino porque seus atos de fala
serão diferentes dos de Maria Parede, pois serão atos de fala acompanhados de
palavrões e gozações, atos reservados aos homens numa sociedade patriarcal.
Várias posturas acima, tomadas junto de seus atos de fala, caracterizaram
Miguelona como figura cômica, deslocada, de exceção: ao assumir em sua fala uma
expressão mais característica dos homens, Miguelona tornou-se cômica, pois a
comicidade em geral vem de um elemento deslocado propositalmente com
finalidades satíricas.
Em MZ não foi narrada sequer uma cena de heroísmo de Jango, para
decepção do leitor que esperava um bom tratamento aos guerreiros e
neobandeirantes paulistas. Em MZ, 32 foi a paródia de uma revolução: nesse

50
movimento atuou também Lírio de Piratininga, um intelectual negro caricaturalmente
preocupado em defender a pátria dos japoneses, mas que sonhava em ser um
―Napoleão Negro‖ e foi inimigo do movimento de 30 (era ligado ao Partido
Republicano Paulista). Não foi narrada a batalha que tirou do front e levou a uma
coma aquele que, dentre os personagens aqui estudados, dentro de nosso modo de
entender mais se aproximou de ser o herói positivo de MZ: Jango. Ele também teve
defeitos: excessivamente sensual, envolveu-se com Eufrásia, mas ao mesmo tempo
com criada ligada a ela, Armida Spin. Alguns personagens serviram de contraste ou
de duplo de Jango em MZ: um deles foi seu problemático irmão, Joaquim (Quindim)
que o NE acompanhou em suas peripécias quando do levante de 32. O NE, ao
apresentar Jango, falou de passagem em Quindim, ―menino de cheio de mimos‖,
com ―ar viciado‖, que roubou as jóias da avó, envolvendo-se com o criado Dráusio. E
foi Quindim, e não Jango, quem foi focalizado pelo NE no campo de batalha
propriamente dito em 32. O NE, em MZ, teve pontos de contato com os atos de fala
de Jango, o que foi um ponto que reforçou nossa hipótese de que Jango foi o
protagonista de MZ.

51
5.1. JANGO E A FOCALIZAÇÃO INTERNA

Em MZ, o focalizador externo (que também chamamos NE) cedeu com


freqüência a palavra a focalizadores internos: ―quando o foco corresponde a um
personagem que participa na fábula como ator, podemos nos referir a uma
focalização interna. Podemos indicar, então, que por meio do termo focalização
externa que um agente anônimo, situado fora da fábula, opera como focalizador‖
(BAL, 2001, p. 111).
O prólogo de MZ não antecipa nada a respeito do contexto da história. O
romance iniciou-se já com a técnica do focalizador personagem. O prólogo
(responderia) a perguntas como ―onde‖? (espaço); ―quando‖? (tempo); ―quem‖?
(apresentação dos personagens); ―que desejam‖? (objetivo de cada personagem).
A função de Jango, enquanto herói positivo, foi lutar em 32 a favor dos
fazendeiros, para depois desiludir-se, ganhando consciência social. No entanto, ele
não foi enfocado do começo ao fim do romance cíclico; ele está ausente em alguns
momentos, mas é muito mais presente do que qualquer outro personagem (conferir
anexo). O narrador o acompanhou e lhe deu a palavra, às vezes. Nele estão
investidos valores positivos: é corajoso e bem-intencionado. Seu principal adversário
foi a ditadura Vargas.
Em MZ, alguns personagens não são aprofundados psicologicamente, mas
logo se apresenta uma situação social através deles, no que parece consistir sua
função: são bem realizados e resolvidos, portanto. Por exemplo: Gottlieb Plaumburn
(alemão) possuiu a função de explicar o nazismo aos brasileiros engajados no
partido comunista. Os imigrantes japoneses (Kana, Muraoka, entre outros) explicam
a situação social e econômica do Japão na época (anos 30) e ilustram o processo
de colonização de algumas regiões, assim como o choque cultural entre imigrantes e
brasileiros.
Em MZ, os acontecimentos se organizaram em uma seqüência cronológica
entre os anos de 1932 e 1934, mas a narrativa não evidenciou um protagonista:
optamos por Jango. Nisso, ela diferiu bastante das narrativas anteriores, Memórias
Sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande. Nessas, inclusive, os
protagonistas já estão insinuados nos títulos das obras. O romance introduziu

52
basicamente três cenários: zona rural do sul de São Paulo, Jurema e Bartira
(pequenas cidades do interior) e São Paulo capital. O clímax dos conflitos ocupou
relativamente pouco espaço no decorrer dos romances: foi a narrativa propriamente
dita dos acontecimentos de 32 em A Revolução Melancólica. Depois de
apresentados os cenários, os conflitos foram crescendo de intensidade até esse
momento, episódio de guerra propriamente dita. Os personagens mudaram no
decorrer dos acontecimentos: Lírio de Piratininga, que depositou tantas esperanças
na revolução paulista, reapareceu no final de Chão como simpatizante dos
comunistas. Leonardo Mesa, o militante comunista, ao observar a força da
religiosidade popular em Bom Jesus do Iguape, descobriu a força do sincretismo e
do sentimento religioso, representadas, para um marxista como ele, por um contato
com ―Deus‖, ou o ―incognoscível‖. Isso representou uma mudança significativa: para
um marxista ortodoxo, Deus foi inventado pelo homem e aquela manifestação
religiosa seria simplesmente ilusão coletiva e falsa consciência sobre o mundo.
Embora exista um narrador a ordenar MZ num determinado tempo (o decorrer
dos anos entre 1932 e 34), ele raramente narrou continuamente. O narrador
transferiu com enorme freqüência sua função a um ou mais dos personagens. Pelas
cenas acima pudemos verificar claramente uma peculiaridade de MZ: o grande
número de personagens ora foi referido pelo narrador, ora interagiu entre si
dialogando em discurso direto. Porém, nos fragmentos acima, não existiu uma figura
que tivesse reaparecido com freqüência, nem interagido com os demais
personagens, configurando um protagonista ou um campo de protagonistas. Os
personagens que reapareceram (Nagib Abara, Major Formoso) não conseguiram
estabelecer um ponto de vista que o leitor possa perseguir, apenas misturam-se aos
demais personagens.
Em MZ existiu uma diferença notável entre o estilo do narrador e o dos
personagens: o narrador possuiu uma escrita mais próxima da norma culta e boa
parte dos personagens falava em dialeto caipira ou com uma fala que reproduziu,
em suas marcas de oralidade, seu sotaque de imigrantes.
Em Revolução Melancólica, Jango tem Leonardo Mesa como ajudante
indireto: os comunistas, como vimos ao tratar dos focalizadores imigrantes, não se
opõem à revolta de 32, simpatizaram com ela, pois sabem que ela ajudará a mover
a história. Aí, a narrativa acenou não para o contexto dos anos 30, em que os
comunistas serão presos e derrotados, mas para o contexto de 1943, em que a

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frente da URSS com as democracias liberais do Ocidente é vitoriosa; é ela quem
trouxe o progresso e possibilitou derrotar as forças autoritárias do fascismo.
Jango funcionou como um elo entre a família de cafeicultores decadente e os
operários ligados ao comunismo. No final do romance, Jango fundiu, em toda a
confusão misturada de dor e morte, as figuras da Eufrásia Beato e Maria Pedrão.
Ambas seriam vítimas do arbítrio do latifúndio. Como Jango é filho do Major e
simpatizante do PCB, assim como o romance pode ser lido tendo Jango enquanto
protagonista e elo de ligação entre os vários grupos abordados no romance.
Estudamos a função de Jango enquanto possível protagonista, articulador de vários
grupos de personagens. Mais adiante, iremos estudar como é sua linguagem em MZ
e como ela se relaciona com a dos demais personagens.

54
5.2. ENTRE JOÃO E QUINDIM: PARÓDIA, HUMOR, TROCADILHO

MZ já foi referido por Maria de Lourdes Eleutério como narrativa sombria em


contraste com os textos do período modernista: ―O humor que caracteriza Miramar e
Serafim é totalmente esquecido. Oswald imprime um tom lúgubre a Marco Zero‖
(ELEUTÉRIO, 1999, p. 114). Tal afirmação, que nos pareceu claramente
equivocada, não constituiu exceção na bibliografia sobre MZ, existindo também uma
afirmação de Antonio Candido que apontou nesse sentido e que parece ter dado
origem a esse julgamentoix. Descrições como a da morte de Pedrão no início de ―A
Revolução Melancólica” foram buscadas para fundamentar essa hipótese. Não
concordamos: podemos aproximar MZ dos outros livros do autor e nele
encontraremos os elementos acima referidos: paródias, trocadilhos, humor. O antigo
processo paródico e de dessacralização apareceu em MZ, mas de forma mais
madura, diversa da Antropofagia nos anos 1928-33.
No texto do Manifesto Antropófago e no de Serafim, a Antropofagia era uma
provocação para ser debatida publicamente, era um norte para o modernismo em
geral: respondia simultaneamente ao texto Os Canibais, de Montaigne,
prosseguindo em sua insinuação de que os índios americanos deveriam ser
associados à antiguidade grega e romana, avaliados como ―homens recém-saídos
da mão de Deus‖ e não escravizados e tratados como objetos; respondeu ao índio
de José de Alencar e Carlos Gomes (índio cavalheiresco) e também ao Jeca/Juca
Mulato de Lobato e Del Picchia, criando uma intervenção na questão da identidade
brasileira: os brasileiros não deveriam rejeitar as influências estrangeiras, mas sim
fazer delas uma apropriação seletiva. A conexão se fazia com a matriz da Semana
de 22, à qual soma-se o anarquismo e o marxismo. A antropofagia torna-se uma
motivação discursiva tanto interna (quando o romance misturou debates sobre
Proust, Nietzsche e Thomas Mann com o tango La Cumparsita e misticismo afro na
festa do Bom Jesus de Jurema), quanto externa (a referência à antropofagia nas
falas do desembargador Ciro de São Cristóvão).

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A antropofagia funcionou no sentido de produzir caricaturas e fazer falar o
outro reprimido pela história: caricaturou-se tanto a mulher associada aos
integralistas (a prostituta Léontine Bourrichon), quanto o negro intelectualizado que
participou do levante de 32 (Lírio de Piratininga). Os caipiras, imigrantes e até
mesmo os simples operários tomaram a palavra em focalizações internas, fazendo o
papel de ―outros‖ reprimidos pela história. Em MZ, a antropofagia funcionou
discretamente, sob a superfície do texto, articulando energias subterrâneas para
produzir misturas e sínteses, mais do que rupturas do discurso linear.
Nesse ponto, MZ foi influenciado por Ulisses, de James Joyce, pois pode-se
dizer que ambicionou dar um passo adiante: depois de Joyce ter levado a um
extremo o romance do individualismo burguês, a narrativa de MZ dissolve o sujeito,
abandonando a convenção segundo a qual o protagonista deve ser claro e
apresentado logo de início. Quando Oswald de Andrade anunciou que Serafim era o
fim do mundo burguês entre nós, não se vê fundamento na observação, pois o
capitalismo continua existindo até hoje no Brasil. Aplicada à sua ficção, verificamos
que ela explica algo e tem utilidade: Serafim Ponte Grande foi o último romance de
Oswald em que ele centrou a narrativa em um indivíduo (no caso, Serafim). Depois
disso, ele dissolveu ao máximo o protagonista dentro de um afresco social. Resta-
nos, como críticos, fazer o caminho inverso, encontrando e interpretando os traços
de protagonismo que podem fornecer uma hipótese de leitura.
Para melhor entendimento da narrativa, escolhemos Jango como
protagonista, mas não pretendemos afirmar nossa leitura como a única possível: foi
uma hipótese de leitura. A partir de nossa leitura, vemos que MZ desafiou uma
convenção literária que Joyce não afronta: oculta e minimiza o protagonista. Devido
ao caráter dialógico do mural, o leitor foi convidado a ser co-produtor do
engendramento do sentido e a reler o romance: os laços internos entre os
personagens, conforme notamos, não são visíveis senão numa segunda ou terceira
leitura. Assim sendo, embora o autor empírico desejasse se aproximar do público
que lia em seu tempo, por outro lado a narrativa efetivamente produzida exigiu um
leitor muito avançado.
Em MZ, a forma não foi subvertida com uma sintaxe cubista e sim com o
abandono do foco centrado em um protagonista, dando origem a um contraponto
entre as inúmeras vozes presentes: somente no primeiro capítulo, a Posse contra a
Propriedade, foram apresentados dois personagens de grande importância:

56
Miquelina Sefonim (mais conhecida como Miguelona) e Leonardo Mesa, sem que
nenhum dos dois fosse indicado claramente como herói da narrativa.
Assim sendo, a narrativa não se ocupou mais em estabelecer um capítulo
inteiriço e elaborar ligações explícitas entre os dois personagens. Depois de dar voz
à camponesa Miguelona, foi dada voz a Leonardo Mesa, sem maiores explicações.
Dessa forma, como a continuidade da narrativa fragmenta-se, o título a encimar
cada capítulo ganha importância: tanto Miguelona quanto Mesa e a própria narrativa
praticaram um desejo de tomada de posse: Miguelona quer terra, Mesa quer tomar a
propriedade privada dos ricos (socializando os meios de produção). A narrativa de
MZ tomou posse de uma tradição literária que foi de Dante a Balzac e da qual ela se
serviu de forma irreverente, antropofágica: criticou-a extensamente (Sthendal e
Balzac teriam lamúrias psicológicas), mas não furtou-se a criar personagens a partir
dela (como Ana Tolstói). Jogando com o significante, criou um personagem que
assinou artigos como Lírio do Vale e que negou ser romance de Balzac (Balzac de
fato possui um romance com esse nome: Lírio do Vale). No entanto, MZ possuiu
pontos de contato com A Comédia Humana: não teve um único protagonista, gerou
muitos personagens e, curiosamente, existiu dentro dela um romance chamado Lírio
do Vale. Pensamos que essa atitude foi a atitude típica dessa narrativa diante da
tradição literária ocidental: exibiu rebeldia diante dela, sem deixar de muito
incorporar e citar, direta ou indiretamente.
Como afirma Maria Eugênia Boaventura, o romance apresenta os seguintes
elementos: 1) citação. Dentre os muitos autores que tiveram seus nomes citados
(Nietzsche, Wilde, Proust, Thomas Mann e muitos outros, até mesmo o Barão de
Saher Masoch), algumas vezes também o texto exibiu fragmentos de outros autores.
Um exemplo foi o poema de Lorca que encerrou A Revolução Melancólica. O
poema, que inclusive forneceu também epígrafe para essa tese, chama-se Grito
para Roma (e contém os versos: ―Porque queremos que se cumpra a vontade da
Terra/Que dá seus frutos para todos‖). 2) Paródia. Em A Escola do Cavalo Azul, o
discurso ufanista, citando um poeta parnasiano inclusive, está lá para ser
contrastado com a dura realidade da escola rural:

Comemorar São Paulo é falar de São Paulo das Bandeiras! É cantar os


feitos heróicos desses homens que vararam os rios desconhecidos e
misteriosos. Eles avançavam numa terra onde só havia, como disse Bilac,
um tropel de índios e feras! (ANDRADE, 1991, p. 49).

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No entanto, em MZ não se cantam as bandeiras, nem existem feitos heróicos,
nem mesmo na revolução de 32, que é desmistificadax. Foi uma guerra onde os
guerreiros se desnortearam, batalhões fugiram. Não podemos nos esquecer que
Oswald criticou os estudantes da faculdade de Direito do Largo do São Francisco
em 1931, quando ela era a instituição que melhor representava o ―sentimento
paulista‖ que gerou o movimento constitucionalista. 3) Cômico e trocadilho. Diferente
da visão de Maria de Lourdes Eleutério, encontramos em MZ muitos episódios
cômicos; não faltou nem mesmo a piada de português e o trocadilho escatológico
com a palavra ―saco‖. Dois exemplos ilustrativos:

─ Um português estava passando o domingo em Niterói, quando um sujeito


nervoso o abordou e disse: ―Olhe, seu Manuel, eu estou chegando do Rio,
sua casa na Rua da Assembléia está pegando fogo e sua mulher morreu‖.
O português foi correndo para a estação marítima, saltou na primeira barca
que ia saindo. Quando ia no meio da baía, deu uma risada...‖Ora, iessa é
boa! Pois eu não me chamo Manuel, não sou casado e nem tenho casa.‖
Nós aqui somos que nem esse português (...). – Um cabelo no café. –É do
saco. – Do saco de quem? A copeira espirrou barulhentamente o líquido
que engolia.
─ Do saco do açúcar (ANDRADE, 1991, p. 174)

Uma outra dificuldade da análise é que o leitor teve contato com os


personagens sempre em ação: de uma forma geral, todo o romance se construiu a
partir da língua falada, aquela dos intelectuais, das famílias e ainda, a linguagem
não-padrão dos caipiras e dos estrangeiros.
Para aproximarmos MZ e Miramar, iremos utilizar aquele método a que se
referiu Compagnon: o método das passagens paralelas. Ele consistiu em tomar uma
passagem obscura de um texto para explicá-la com outra. Para isso, deve-se preferir
uma outra passagem do mesmo autor a uma passagem de um outro autor. Esse
método mais geral e menos controvertido, em suma, o procedimento essencial da
pesquisa e dos estudos literários. Compagnon afirmou:

Quando uma passagem de um texto apresenta problema por sua


dificuldade, sua obscuridade ou sua ambiguidade, procuramos uma
passagem paralela, no mesmo texto ou num outro texto, a fim de esclarecer
o sentido da passagem problemática. Compreender, interpretar um texto é
sempre, inevitavelmente, com a identidade, produzir a diferença, com o
mesmo, produzir o outro: descobrimos diferenças sobre um fundo de
repetições (COMPAGNON, 2001, p. 68).

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Utilizando nesse tópico e no decorrer desse trabalho tal abordagem,
apelamos para uma passagem do mesmo autor (Oswald) de preferência a uma
passagem de outro autor do mesmo período (Plínio Salgado).
O humor, por exemplo, pode ser encontrado em Miramar e também em MZ.
Ele manifestou-se, em MZ, sempre ligado a determinados personagens. Lírio foi um
personagem satírico, Jango não. Miguelona nos induziu ao riso, enquanto Maria
Parede foi referida sempre com seriedade. Outro traço é que o humor dessacralizou
a Igreja e os integralistas, num procedimento que podemos classificar como
antropofágico.
O humor acompanhou a Miguelona: pode-se dizer que ela é paródia de uma
revolucionária. Ela criticou os capitalistas e o espiritismo, enfrentou o subdelegado
Moscovão, mas afirmou para o militante Leonardo Mesa suas contradições: ela
também explorava trabalhadores pobres, dizendo não precisar do comunismo.
Praticou também atos de fala obscenos e burlescos por toda a narrativa, produzindo
um efeito desconcertante. Embora simpatizante do comunismo, nunca encontrou o
simpatizante Jango, filho de seu maior inimigo, o Major. Com isso, o leitor pode
entender que a narrativa quis poupar Jango da língua ferina de Miguelona.
Miguelona foi construída a partir de uma inversão dos códigos sexuais. Ela
jamais demonstrou preferência sexual por outras mulheres e sim explícita e
alegremente por homens, mas ela assumiu, diante dos homens, códigos sexuais
masculinos: agressividade, sexualidade explícita, ataques a uma mulher promíscua,
fala permeada por palavrões. O recurso de inverter os códigos sexuais foi utilizado
em MZ, não só no caso de Miguelona, mas no de Quindim, filho do Major a quem foi
atribuída feminilidade: ―Maria Parede excitava-o como um homem. Lembrava-lhe o
Dráusio‖ (ANDRADE, 1974, p. 185).
No primeiro capítulo, a Posse Contra a Propriedade, Miguelona esteve
envolvida numa luta de terras contra o Major, pois ela não tinha papéis formalizando
a posse da terra (a posse) e assim se opôs ao Major (propriedade). Ela criticou os
capitalistas e o espiritismo, enfrentando o subdelegado Moscovão, afirmando para
Leonardo Mesa suas contradições, pois explorava alguns trabalhadores: ―tenho
energia competente pra isfrutá os outro. Sô meio indiota mas inda dá prá indiotá os
otro‖ (ANDRADE, 1992, p. 41). Mesmo diante dessa atitude, Mesa previu que
Miguelona se tornaria comunista em breve: bastava que ela perdesse uma vila que
hipotecou em São Paulo e as terras que disputava com o Major.

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O romance MZ inicia-se com um diálogo que exprime a revolta de Miguelona
diante do assassinato de Pedrão e sua coragem quando afrontou o policial
representante dos ricos proprietários. Logo após essa sua primeira aparição, ela foi
definida nos seguintes termos pelo narrador externo:

Tomando o café quente que ela lhe oferecera numa caneca de lata,
Leonardo Mesa queria ver transformações na vida paulista. A Miguelona era
uma mulher homem. Quebrara-se para sempre o gineceu, nas cidades e
nas fazendas, suas restrições e encantos? Fora-se o tempo das rótulas, dos
pais que matavam, do casamento sacrificado ou continuava a existir ainda a
fêmea esquiva da família do planalto? O povo trabalhador na sua ascensão
produzia novas formas. Ele encontrava no meio do mato uma bandeirante.
A luta era a velha luta do pioneiro americano contra as leis da metrópole. A
Miguelona era libertina, usurária, irreligiosa. Vinha de Bocaccio, de Adam
Smith e de Voltaire. Uma exceção (ANDRADE, 1991, p. 39-40).

A passagem acima nos levou a pensar as várias contradições investigadas ao


mesmo tempo por um NE e pelo militante comunista. Tudo leva a crer que Leonardo
Mesa colocou uma hipótese: Miguelona poderia ser produto das transformações da
sociedade paulista, que estaria quebrando antigos paradigmas patriarcais. No
decorrer da exposição do NE, no entanto, Miguelona foi definida como uma
―bandeirante‖, ―pioneiro em luta contra as leis da metrópole‖. Novamente, o NE a
designou como mulher que ocupou um papel masculino ou internalizou a postura
masculina diante das mulheres e do mundo. Ela poderia ter sido referida como
―pioneira‖, mas não foi. A personagem de Maria Parede não é tão bem elaborada
como a de Miguelona. Ela surgiu no romance sempre ligada a Leonardo Mesa, até
mesmo no jogo de palavras de seus nomes: Mesa/Parede. Dentro de MZ, pode-se
dizer que uma constante foi a presença da duplicidade nos personagens, levada ao
extremo em alguns casos: Jango contracenou com um capitão da Força Pública que
tinha o mesmo nome; Maria Parede e Fabrício Rioja eram os nomes falsos (usados
na clandestinidade) de Linda Moscovão e Leonardo Mesa.
A paródia nos pareceu mais forte no capítulo A Escola do Cavalo Azul,
segundo capítulo de Revolução Melancólica. O NE apresentou um parágrafo que
destoou totalmente do tom geral de suas intervenções, lembrando certo tom oratório
parnasiano (dissonante em relação ao estilo sóbrio do NE nas demais passagens de
MZ):

Comemorar São Paulo é falar de São Paulo das bandeiras...É cantar os


feitos heróicos desses homens que vararam os rios desconhecidos e

60
misteriosos. Eles avançavam numa terra onde só havia, como disse Bilac,
um tropel de índios e feras (ANDRADE, 1991, p. 49).

A passagem em cima foi incluída para ser desconstruída e subvertida dentro


da narrativa. Uma palestra de Dr. Pilatos em Aradópolis mostrou-se bem
semelhante:

─ A plenitude cafeeira e pastoril de nosso Estado se distende nos assaltos


ao hinterland que foge num último galopar de índios e de feras! A cada
investida vitoriosa, os novos bandeirantes são a reencarnação estupenda
da luta, a magnífica, a eterna ressurreição simbólica da Força!
(ANDRADE, 1999, p. 76).

Para provar que o uso do nome Bilac em MZ é paródico, bastaria comparar


outra passagem que se referia a ele em outro momento de MZ: quando Lírio de
Piratininga, sonhando em ascender socialmente, batizou seu batalhão com o nome
do poeta parnasiano. As falas de Eufrásia Beato, assim como dos
constitucionalistas, foram como as de Machado Penumbra em Miramar: são falas ali
incluídas não porque reflitam o estilo preconizado pelo NE sim configuram um
arremedo de outro estilo, posto ali para ser criticado, contrastar e servir como crítica
de um determinado tipo de discurso. Em nossa leitura, o arranjo fornecido buscou
ressaltar o contraste entre o nacionalismo que se ufanava e se orgulhava da
natureza do Brasil e a dura realidade da exploração do povo.
Evocamos também o personagem Lírio, companheiro de luta de Jango em
32, podendo aproximá-lo da figura de João Miramar. Assim como Lírio, Miramar vivia
na dependência de sua mulher Célia, criticando sempre sua família e a sociedade
em geral. Lírio apareceu nas seqüências descontínuas de MZ como personagem
igualmente importante e satírico. Por exemplo, em ―os latifundiários em armas‖,
capítulo que narrou as peripécias revolucionárias, esse personagem tornou-se mais
e mais fanfarrão. Ele misturou seu ódio por Getúlio Vargas e sua raiva de Nicolau
Abramonte. Ele queria lutar para superar o estigma de ―negro‖, mas de fato era a
glória que ele buscava (queria ser reconhecido como um Napoleão negro). Para
comprovar seu patriotismo parnasiano, ele chamou seu batalhão de ―Olavo Bilac‖,
mas os recrutas que o compunham o decepcionaram: ―Duas dúzias de homens
murchos e amuados que se vestiam com os mais desconexos resíduos da
indumentária paisana‖ (ANDRADE, 1991, p. 166). Seus homens desertaram e ele
também abandonou o campo de batalha, para ir a São Paulo trabalhar na Cruz
61
Vermelha. Porém, a versão de sua fuga que ele contou a Jango no hospital foi muito
mais dramática e heróica:

Eu dei o estrilo com o Juventino. Ele me chamou de covarde. Eu disse que


ele havia vendido a negrada que estava morrendo na frente pros
fazendeiros. Berravam. É o dinheiro? O dinheiro? Eu gritei...Mas me
tapearam! Um bando exaltado me fechou num quarto e ameaçou de tirar a
minha vida. Virou tudo tempo de escravo. Parecia a senzala. Bota a faca na
barriga do nego! Foi preciso eu falar bonito. ‗Companheiros! Vocês estão
alcoolizados! Comecei a fazer versos‘... (...) Ficou taco a taco. Soltei um
decassílabo, depois um alexandrino, levei muito tapa e pontapé e fui saindo.
A humanidade é assim. Crucifica sempre os Cristos... (ANDRADE, 1991,
p. 196-197)

O capítulo Escola do Cavalo Azul possui como epígrafe uma passagem do


Hino Nacional. É sempre Eufrásia, amada de Jango, quem emite os discursos
parodiados e ridicularizados nesse capítulo com ajuda do contraste. Foram
dessacralizados em Escola do Cavalo Azul, simultaneamente: o patriotismo retórico
e um certo regionalismo paulista com discurso parnasiano. Mais adiante, em Chão,
figuras pertencentes à Igreja católica são fortemente dessacralizadas, ridicularizadas
e acusadas por sua proximidade com o integralismo. O NE assumiu uma postura
bem ativa nesse capítulo: pouco antes do Hino Nacional ser cantado, o NE
comentou: ―moscas voejavam sobre a cabeça de uma menina feridenta‖
(ANDRADE, 1991, p. 60). A frase foi repetida uma outra vez mais adiante,
claramente com a função de chocar e contrastar o discurso da professora Eufrásia
Beato com a realidade social de pobreza e miséria. Eufrásia acompanhou a
tendência do narrador externo e de Jango de, nessa altura da narrativa,
simpatizarem com o levante paulista de 32.
A figura da professora Eufrásia foi mostrada pelo NE como praticante do
preconceito lingüístico corrente à época: ela irritou-se com o sotaque japonês: ―—
Vocês, japoneses, têm mania de trocar o ´l´ por ´r´. Veja isto no seu caderno, Kioto...
(ANDRADE, 1991, p. 62). A seguir, ela chamou Zemkem de ―burro‖ por pronunciar
com sotaque. O fato do NE registrar o preconceito linguístico fez parte da denúncia
social avançada de MZ. Os caipiras e imigrantes pobres sofriam não só com o
preconceito social e também com esse outro tipo de preconceito, até hoje muito
disseminado em nossa sociedade.
Na fala de Eufrásia como professora, ela notou uma frase que Idalício
escreveu em seu ―caderno de linguagem‖: ―o cavalo é azul‖. Essa sinestesia foi

62
posta a encimar o título do capítulo, mas foi destituída de seu conteúdo de imagem
infantil e não-referencial para tornar-se metáfora de alienação:

O japonês tirava a terra do caboclo, cercava os núcleos agonizantes do


trabalho nacional e dizia: --aqui tudo cavalo azur, no? Menino já falou pra
porifessora...Governo cavalo azur. Justiça também cavalo azur, no?
(ANDRADE, 1991, p. 65).

Assim como existiu paródia (um procedimento usado em Miramar) nesse


capítulo de MZ, existiram também passagens que fazem lembrar o estilo utilizado
em Memórias Sentimentais: ―A gripe mal curada da diretora tossia de dentro da
porta, ladeada por duas bandeiras diferentes. Filas de meninas com grandes
laçarotes verdes nos cabelos e gravatas brancas de papel escuro escutavam
inteiriçadas e quietas‖ (ANDRADE, 1991, p. 49). Muito embora o estilo tenha se
tornado mais claro e menos hermético em relação a Miramar, vejamos uma
passagem com o mesmo tema (Colégio) descrita em Memórias Sentimentais:

Malta escabriavam salas brancas e corredores perfeitos com barulhento


fumoir na aula de desenho de seu Peixotinho. O diretor vermelho saía do
solo atrás da barriga e da batina. E com modos autoritários simpatizou
cínico comigo o ruivo José Chelinini (ANDRADE, 1999, p. 48).

Portanto, embora o estilo tivesse mudado para a busca do referencial e não


tivesse mais, em MZ, buscado criar estranheza cubista, a imagem do diretor e da
diretora guardou semelhanças em ambos os romances, pela inversão: a diretora
permaneceu atrás da porta tossindo e o diretor sobressaía em sua barriga e batina,
que davam a impressão de que ele estava ―saindo do solo‖.
A Igreja Católica em MZ foi especialmente alvo da sátira: trata-se de uma
Igreja apresentada como desejosa do poder, interessada nos ricos, ainda que
fascistas e integralistas. Vejamos algumas passagens a respeito do padre Basílio,
antecessor do padre Beato em Jurema:

Tendo namorado a mulher de um negociante, este peitou um sertanejo para


que abatesse o sacerdote gigantesco no próprio ato da missa. O tiro falhou
o alvo. E padre Basílio, voando para detrás do altar, voltou de carabina em
punho, ante a igreja alvoroçada na perseguição do bandido. Dizia para
quem quisesse ouvir:-- O meu Anjo de Guarda é este 38! (...). Tantas fez e
tantas arranjou, bebendo pinga no próprio cálice consagrado, tomando parte
em desafios, cateretês e sururus, que um dia veio da arquidiocese a sua
suspensão de ordens (....). O pastoreio das almas desanimadas de Jurema
ficara então entregue à agiotagem de Padre Palude. Em Porto Litoral, ele

63
oficiava às pressas, na hora da passagem do trem de Bartira, indagando do
sacristão, durante a missa, de seus negócios e afazeres (ANDRADE,
1991, p. 94).

Assim, os padres Palude e Basílio seriam bizarras caricaturas de membros da


Igreja Católica, desmentindo com seus gestos (lúbricos em um, gananciosos em
outro), tudo aquilo que estavam formalmente ensinando e praticando. Seriam,
também, paródias de padres.
A crítica de MZ aproximou o romance de Plínio Salgado e acusou uma queda
de invenção estilística em proveito do debate ideológico: fizemos uma leitura que foi
em sentido oposto. Embora nas partes do NE (predominantes) Miramar seja mais
experimental em seu estilo, MZ foi mais radical do que Miramar em um certo sentido:
retirou os títulos dos fragmentos e sua numeração, um traço que tornou o romance
menos ―direcional‖ e constituiu um traço estilístico novo em relação ao tempo do
modernismo. MZ não é compreensível como ―crônica paulista‖, pois teríamos que
definir o que é crônica. Se for algo escrito em estilo leve e tratando do cotidiano, MZ
não se encaixou: trata-se de um romance experimental que exige releitura.
Os trocadilhos, que pontuaram os textos do autor durante o modernismo,
também se fizeram presentes em MZ. O clube de arte foi chamado de ―mal-as-arte‖,
ou seja, seria um ―Clube de Malasartes‖, ou seja, de malandragem. O humor e o
trocadilho foram extensamente usados na descrição do conflito de 32. A narrativa
focalizou as desventuras de Quindim na frente de batalha e não as de Jango,
deixando claro que o humor e o trocadilho foram associados, em MZ, a alguns
personagens em especial: o irmão de Jango poderia participar de seqüências
satirizando a vida militar, mas Jango não.
O humor, a sátira e os trocadilhos foram direcionados a personagens tais
como Padre Beato (voz afeminada), Monsenhor Palude (integralista), Nicolau
Abramonte (explorador, novo-rico e mau educado), Major Dinamérico Klag (loucura).
Todos esses possuem um traço em comum: em algum momento se opuseram a
Jango. O padre Beato faz parte da família de Eufrásia. O Major chegou a envolver-
se com Eufrásia e seus atos de fala foram marcados por uma filosofia antropofágico-
decadentista que misturava os ensinamentos de São Paulo e Nietzsche; Nicolau
Abramonte, além de inimigo do amigo de Jango, Lírio, foi também extremamente
vingativo e cruel ao tentar arruinar a família Formoso. Abramonte também confundia
socialismo e fascismo, dizia-se entusiasta de Mussolini e da União Soviética,

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fazendo uma sincrética mistura, na qual MZ foi pródigo. Ela pode ser melhor
explicada, conforme veremos logo adiante.

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6. A ANTROPOFAGIA COMUNISTA EM MARCO ZERO

É um ultra-sensível (...). Colonial com Théatre Bresilien (1916), anarco-cristão com a


desgraça e a solução sentimental a que se acolhe o lúmpen de que fazia parte como boêmio
em (1922), anarco-feudal em Pau-Brasil e Primeiro Caderno – reflexo da alta vida a que subira
com fortuna herdada extremando-se em anarco-indígena com Serafim e a Antropofagia
comunista enfim (...).
Oswald de Andrade

A antropofagia propriamente dita e explicitamente comentada foi introduzida,


em MZ, pelos diálogos entre Jack de São Cristóvão e Carlos de Jaert, artistas da
alta sociedade paulista que participaram da revolução de 32. A primeira vez que
Carlos de Jaert surgiu em MZ foi numa conversação com Jack no momento da
revolução de 32. É possível observar a ironia de Carlos de Jaert que se riu das
teorias de Jack de São Cristóvão sobre o tempo psicológico (ANDRADE, 1991, pp.
175-178). Acreditamos que, embora a antropofagia tenha sido citada claramente
apenas nesse diálogo, ela esteve presente, de outra forma, perpassando todo o fio
narrativo. Os diálogos dos dois artistas fornecem uma ―digestão‖ da narrativa a
respeito do que estava em voga aquela época a respeito de vanguarda, pintura,
romance, artes em geral. O processo de colagem descolonizadora de elementos da
tradição européia e brasileira é o nosso conceito de antropofagia.
Assim a narrativa incorpora outros assuntos e até mesmo, como veremos,
canções, quadrinhas e ditos populares, além da estranha versão da antropofagia,
que diríamos decadentista, presente na entrevista do pai de Jango ao comunista e
jornalista Leonardo Mesa, que representou também a presença e a irrupção da
antropofagia dentro da narrativa de MZ. A própria narrativa, além de devorar e
incorporar o marxismo ao seu pensamento, incluiu muitos outros assuntos e
materiais, mesmo que considerados ―baixos‖: o dialeto caipira e as falas dos
imigrantes, canções e quadrinhas populares, a Montanha Mágica de Thomas Mann
e La Cumparsita.
Na narrativa diálogica de MZ, as origens mostram-se plurais: não existe uma
busca ou uma saga do caráter bandeirantista. Não se busca, em MZ, uma

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identidade para o Brasil: contra a mentalidade colonizada, diante do marxismo ou
dos romances e modismos europeus, preconiza-se uma postura de apropriação
seletiva, igualando alta e baixa cultura, altas e baixas classes sociais, uma atitude
antropofágico-comunista diante da realidade brasileira. Imagens de certo primarismo
e até mau gosto foram utilizadas conscientemente para contrastar e compor
personagens como o grotesco imigrante novo-rico (Nicolau Abramonte) quanto da
camponesa politizada, porém chegada a uma galhofa (Miguelona) e do desprezível
Monsenhor Palude que oferece um penico de prata ao Coronel Bento, como forma
ridícula de ajuda financeira.
O contraponto esteve presente na polifonia étnica (falas de brancos ricos,
pretos, alemães, japoneses, caipiras, dentre outros), na passagem de uma voz a
outra através da FP ou pelo discurso do NE no decorrer dos capítulos; por sua vez,
a simultaneidade está ―no trocadilho e na palavra-montagem na palavra escrita e
falada, correspondente ao acorde musical‖ (PIGNATARI, 2004, p. 162).
A forma da antropofagia, em MZ, foi a luta da posse contra a propriedade,
que a narrativa apresentou tendo tomado, ela mesma, partido da posse xi: da terra
contra o latifúndio, do dialeto caipira contra o floreio retórico, a rebeldia irreverente,
os achados desabusados contra a tradição literária e a erudição convencional e
acadêmica. Portanto, o tema explicitado em MZ está entranhado nos próprios
procedimentos da narrativa. Pode-se mesmo dizer que a relação posse-propriedade
foi um dos eixos de MZ, observado por Boaventura de forma notável. Afinal, em MZ
existiu não só a relação posse-propriedade, mas ela aparece em forma e conteúdo.
Por exemplo: ela se faz presente, esteticamente, quando a tradição literária e
intelectual do Brasil e do Ocidente não é levada em conta como um peso morto. Ela
é tomada, pilhada, usada em um enfoque lúdico de jogos de linguagem. Mesmo o
campo de batalha é marcado pela constante lúdica. Nele, Quindim, irmão de Jango,
relacionou-se com um soldado nordestino e conseguiu fugir ao aprisionamento por
ter consentido em ceder favores sexuais ao nordestino. Trata-se da subversão do
heroísmo da guerra de 32.

6.1. Música, pintura, romance

No decorrer dos embates entre inúmeras vozes em MZ, a pintura e o romance


foram revalorizados e a música foi colocada num pólo oposto por ser silêncio e

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recolhimento. Para criticar a música e afastar-se dela (diferente, portanto, de Mário
de Andrade), nos diálogos de Jack e Ciro foi citado o personagem Settembrini, que
afirmou sobre a música em A Montanha Mágica:

A música? Representa ela tudo o que existe de semi-articulado, de


duvidoso, de irresponsável, de indiferente(...). Aparentemente a música é
toda movimento, e contudo suspeito nela o quietismo. Permita que eu leve
a minha tese ao exemplo: tenho contra a música uma antipatia de caráter
político. A música é inestimável como meio supremo de produzir
entusiasmo, como força que faz avançar e subir, mas só para pessoas
cujos espíritos já estejam preparados para os seus efeitos. Porém, é
indispensável que a literatura a preceda. Sozinha, a música não é capaz de
levar o mundo avante. Para a sua pessoa, meu caro engenheiro, ela
representa indubitavelmente um perigo. Isto verifiquei ao chegar, na sua
fisionomia (MANN, 2000, p. 156-157).

Assim sendo, Thomas Mann é apenas um dos autores citados em MZ,


romance onde trata-se a tradição literária de forma anarquicamente lúdica. A
oposição entre concepções diversas de arte foi patente no embate entre Jack de
São Cristóvão e Carlos de Jaert; ao contrário do que pensou parte da crítica a
respeito de MZ, nenhum dos dois é ―porta-voz‖ do autor empírico. A narrativa possui
tanto engajamento social (Carlos de Jaert) quanto experimentação modernista (Jack
de São Cristóvão). Jack, engenheiro, defende a arte moderna, faz a apologia de
Cézanne e de Van Gogh, aos quais Carlos de Jaert opõe o Douanier Rousseau,
esclarecendo sua relação com a representação e apresentando um de seus temas:

Amanhã vou começar um quadro. Uma cena que vi na estrada quando


vinha para cá. Uma mulher enorme, opilada, levando no braço uma
criancinha de dois quilos. Ao lado o homem amarelo, em farrapos, com um
galo de briga. Sabe qual o título? Mudança. (ANDRADE, 1974, p.
140)

Na passagem acima, acreditamos que não se trata da narrativa falando dela


própria. Essa passagem não representa uma justificativa para os assuntos e as
linguagens do romance. Seriam um diálogo onde as duas posições estariam
buscando se chocar, para, produzindo tese e antítese, chegarem a novas síntesesxii:

_ (....) Mas as artes verdadeiramente políticas e sociais como a pintura e o


romance voltaram à sua normalidade que é ensinar. _Graças à Rússia
Soviética! _exclamou o engenheiro soltando uma gargalhada faustosa.
_ Não_interveio o pintor._ Mas graças a um grande livro, o maior livro do
século XIX, graças a O Capital, de Carlos Marx (...). O romance depois de
Marx deixou as lamúrias psicológicas de Sthendal, de Balzac, de Flaubert

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para tomar posição frente aos problemas do homem e resolvê-los. Como o
quadro! Há uma volta à parábola. O romance passa a moralizar...Como um
evangelho... (ANDRADE, 1974, pp. 234-235)

MZ, embora não tivesse lamúrias psicológicas, não é um romance que segue
a descrição acima. Ele não moraliza claramente (o NE é que deveria fazer esse
papel) e nem possui intertextualidade clara com o evangelho ou possui trechos que
possamos descrever ou analisar como parábolas. A narrativa como um todo abrange
as posições Carlos de Jaert e Ciro de São Cristóvão, tanto que elas aparecem
representadas por tais personagens. Por isso, podemos dizer que não se deve
procurar nesses personagens um ―porta-voz‖ autobiográfico nem uma voz do autor
empírico dentro da narrativa. São vozes que se somam a uma grande discussão que
não se submete a nenhum maestro autoritário. Carlos de Jaert, de um engajamento
social sensato, exibiu também um profetismo contra o capitalismo:

Veremos _exclamou Carlos de Jaert. _ É preciso não ver a guerra como


guerra, a que se prepara no plano militar. Será apenas a catarse da
técnica, a catarse do capitalismo. O mundo só assim se libertará das
paixões provocadas pela máquina. O homem não se engorgita de
materialismo sem conseqüências. Virá a catarse. O capitalismo terá o seu
apocalipse! (ANDRADE, 1974, p. 247)

MZ foi um romance em que vários elementos característicos da forma épica


se fizeram presentes: a universalidade e a amplitude do material envolvido; a
presença de vários planos; utilização do princípio da representação plástica, em que
homens e acontecimentos agem, na obra, quase por si mesmos. A contradição da
forma do romance reside precisamente no fato de que o romance, como epopéia da
sociedade burguesa, é a epopéia de uma sociedade que destrói as possibilidades da
criação épica. MZ resolveu essa questão dando sinais de que narraria a epopéia da
guerra de 32, para depois, quando deveria dar tratamento épico, partir para a sátira
e a paródia, o humor e o trocadilho, negando-se a fazer a criação épica com o
referido material e ambicionando surpreender o leitorxiii.
Tanto a épica quanto o romance devem revelar as peculiaridades essenciais
de uma dada sociedade por meio da representação de destinos individuais, das
ações e dos sofrimentos de seres humanos individualizados. O objetivo de MZ
parece ser o de acabar com o aparente impessoal e casual choque de interesses
para criar situações em que a luta recíproca seja concreta, clara e típica e não

69
apareça como um choque casual, a fim de que, da sucessão dessas situações
típicas, se construa uma ação épica realmente significativa: inventar caracteres
típicos em circunstâncias típicas, essa seria a essência do realismo no romance.
Em MZ, os diálogos de Jack de São Cristóvão e Carlos de Jaert percorreram
os principais temas que atormentavam as vanguardas das três primeiras décadas do
século e que desaguariam na concepção de arte participativa e social dos anos 30.
Referindo-se à crise de representação do pensamento e da arte, tais preocupações
decorriam da dissolução de formas culturais e valores mais estáveis, advinda da
velocidade do avanço capitalista nas sociedades ocidentais.
Neste trecho, Jack de São Cristóvão personifica a vanguarda modernista
brasileira e assume a defesa de suas tendências expressionistas e cubistas sem
conteúdo político explícito. Carlos de Jaert, ao contrário, busca outra inspiração
pictórica: a representacional, pedagógica, sustentada na idéia de povo e informada
pelo movimento muralista mexicanoxiv. Siqueiros foi então acusado por Jack de
produzir uma arte demagógica. A intenção da narrativa, podemos supor, é justapor
essas posições para sincretizá-las, fundi-las, buscou encontrar a síntese entre as
duas posições: as experiências modernistas e arte social engajada. Assim sendo,
Carlos de Jaert é um personagem, como muitos nesse romance, que representa um
determinado ponto de vista e introduz uma teoria. Embora possamos aproximar
Jango e Leonardo Mesa, por exemplo, a narrativa teria se identificado mais com a
ideologia dos dois se tivesse escrito um romance narrado do ponto de vista de
algum deles. No entanto, tal não ocorreu, o romance foi escrito de um ponto de vista
distanciado mesmo em relação a esses personagens. Mesmo eles, em sua opção
pelo comunismo, são lançados na obra para serem expostos, criticados, analisados.
Dizemos isso referindo-nos, sobretudo, às descrições de pequenas cenas da
revolução em os latifundiários em armas, a descrição da peregrinação em Pro
Brasilia Fiant Eximia (para o Brasil faça-se o melhor), de A Revolução Melancólica, e
os grandes debates do Clube de Arte em Chão onde se misturam todos os tipos de
opinião sobre a situação econômica do Brasil, sobre a arte engajada e a arte
burguesa, etc.
Se, por um lado, a técnica utilizada em MZ respondeu à intenção de criar um
romance com muitos focos de atenção, por outro ela complicou totalmente o
desenvolvimento da ação e terminou por comprometer a finalidade que perseguia o
escritor: escrever uma obra popular. O poema de Lorca simboliza a luta da posse

70
contra a propriedade, motivo-guia retomado algumas vezes nesse texto, subjacente
ao assunto da revolta de 32, que aos poucos foi tomando o primeiro plano da
narrativa. Grito para Roma é um poema que faz parte de Poeta em Nueva York
(1929-30), inspirado quando por sua estada naquela cidade norte-americana, mas
só publicado em livro postumamente, em 1940, no México. Nessa obra, o poeta
paga seu tributo ao surrealismo e ao estilo de Walt Whitman, além de exprimir o seu
horror aos crimes e absurdos da civilização moderna, que ele conheceu bem de
perto ao visitar os Estados Unidos na época mais difícil de sua história: a recessão
econômico-financeira do fim da década de 20.
Pensamos também que Lorca foi também escolhido por ter sido vítima do
fascismo espanhol. A necessidade de combater o fascismo e o integralismo sempre
foi ressaltada por Oswald; não foi à toa que o episódio escolhido como sinalizador
da revolução socialista que estava por vir foi a dissolução de um comício integralista
pelos militantes de esquerda que ocorreu em Chão. Outro motivo foi a evidente
associação entre a nova sensibilidade de Oswald e a de Lorca:

Não fora ele o fundador da Barraca, teatro ambulante destinado a educar as


massas, tanto nas cidades como nos campos, ele que, em plena ditadura Primo
de Rivera, escrevera e fizera representar a peça Mariana Pineda, que mais não
é senão um frenético apelo à liberdade? Pela sua formação, pelos seus ideais,
pelos vetores de sua vasta obra, na realidade Lorca tendia para os ideais
socialistas (MOTA, apud: LORCA, 1999, p. 14).

A antropofagia teria como local principal a boca, espaço próprio da


devoração. Talvez por isso, a devoração presente em MZ apresentou tendência a
incorporar a oralidade na fala. Os estudos que buscam investigar culturas orais e
não escritas emergiram, sistematicamente, no início dos anos 1960. Oswald de
Andrade esteve, ao escrever sua ficção, na vanguarda da valorização dos relatos
orais, buscando vestígios daquilo que se convencionou denominar oralidade
primária: MZ trouxe melodias, cantos, danças, festas religiosas e músicas, ainda
preservados oralmente e transmitidos de geração a geração. Alguns exemplos:

Mijares de famílias
Se van a Buenos Aires
Porque non tienen em su pátria
Quien los ampare!
(...) (ANDRADE, 1991, p. 87)

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Nesse caso, trata-se da transcrição de canções trazidas ou criadas pelos
imigrantes para narrarem seus infortúnios. É muito curiosa a incorporação da música
num romance em que existiu pelo menos um personagem, Carlos de Jaert, que
primou por criticar a música e citou outro crítico da música, o personagem
Settembrini em Montanha Mágica. Essa incorporação da oralidade primária também
nos fez lembrar o trabalho similar realizado por Mário de Andrade como musicólogo
e folclorista. Vejamos mais exemplos dessa oralidade primária colhidos em MZ:

Dinheiro e amizade
Pesando numa balancia
O dinheiro nunca chega
Onde amizade nunca alcança!

Inda hai gente que diga


Que amizade vale mais
Porque não considera
O bem que o dinheiro faiz.
(...) (ANDRADE, 1991, p. 241)

Num romance com clara influência do marxismo, essa canção acima serviu
para ilustrar uma discussão entre mendigos que surgiu na porta de uma igreja.
Apesar do absurdo do local e da total alienação a que os mendigos estavam
submetidos, a conclusão a respeito do poder do dinheiro e das distorções que ele
gera na vida social nos pareceram significativas: ―—Pode até não gostá da gente.
Mas, vendo dinhero na mão, dá comida, posada, tudo!‖ (ANDRADE, 1991, p. 241).

Depois que perdeu o Miranda


Oi a Lina como anda!
Não bebo pinga
Não bebo nada
Bebo sereno da noite
Orvaio da madrugada!
(...) Eu tinha confiança
Nos reis de França
(ANDRADE, 1991, 250, 254).

A partir da observação do tratamento dado ao folclore e à música, podemos


dizer que MZ é um romance onde a ordem é dissolver barreiras. Misturam-se
afirmações, negações e sínteses, não necessariamente nessa ordem. A música,
embora negada por um personagem, permeou toda a narrativa. Exemplifiquemos
com amostras recolhidas de Chão:

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Vamos todos beber
Enquanto temos ideal
Que embalar bebês
É muito banal
Ba-a-nal!...(É uma canção de estudantes do Koenigsberg que eu traduzi,
mamãe!) (ANDRADE, 1974, p. 121)

Num baile no barracão da tulha de café, ouve-se, ao som da ―sanfoninha


convidativa e do grave violão‖, vozes que cantam:

Salvai da morte
Curai o doente
Livrai da peste
Que vem de repente! (ANDRADE, 1974, p. 161)

Quando a música foi criticada, no entanto, não existiu lugar para a


―sanfoninha convidativa‖:

Chegaria mesmo a dizer que a música é espaço... Isto é, a música é a única


arte espacial e, portanto, a única arte objetiva. –A música e a arquitetura! –
aparteou Jack. – Ela toca dentro de nós o que temos de substantivo e
imutável, o que temos de estrela, de rocha, de mar... E por isso todos nós
deixamos de ser políticos diante da música. Por isso Lênin fugia da música
para não se perturbar, para não se comover... (ANDRADE, 1974, p.
232)

Curiosamente, em MZ, romance muito conhecido entre a crítica justamente


por ser político, a música se faz presente na narrativa, registrada nas festas, na
porta das igrejas, na boca de tipos populares. E assim, nesse ponto a narrativa fugiu
de Lênin e da política para aproximar-se da música.

6. 2. Antropofagia em Marco Zero

A obra foi atacada por conter imagens de mau gosto; sua presença
faria sentido na ambição eclética com que MZ foi realizado: o texto não nos pareceu
querer impor uma só visão, por anticonvencional e criativa que fosse, da sociedade;
o texto agregou opiniões e imagens contraditórias ou conflitantes. De fato, no texto
aqui avaliado existem elementos e coisas que ―hurlaient d´ être ensembles‖ (gritam
de estar juntas) e essa nos pareceu ser a originalidade da sua visão: ao mesmo
tempo em que apareceram as falas elegantes e precisas de Leonardo Mesa,
analisando a sociedade e o real através do prisma marxista, surgiu Paco Alvaredo

73
para denunciar o descaso dos comunistas com relação ao que dizia respeito ao
comportamento individual, forma e boas maneiras, marcando um contraponto.
Diferente de Salim Abara, os japoneses não se abrasileiraram. Essa questão foi
ilustrada pelo NE, crítico dos japoneses, quando o menino Idalício adoeceu de
tétano e morreu sem que os japoneses fornecessem o soro: os japoneses
fechavam-se numa colônia, não exercendo nenhuma forma de solidariedade com os
brasileiros pobres.
A antropofagia, em MZ, poderia estar nesse tipo de comentário: para o
imigrante, para o estrangeiro adaptar-se ao meio brasileiro seria preciso que ele se
abrasileirasse, se misturasse aos brasileiros, se adaptasse: nesse momento, Salim
Abara fez contraponto a Nicolau Abramonte. Salim defendeu o caboclo brasileiro dos
japoneses (quando Elesbão aproximou-se e foi privado de sua terra por eles);
Nicolau Abramonte rejeitou Lírio de Piratininga com imprecações racistas. A
narrativa mostrou, no entanto, outra face de Abramonte em Chão, ao mostrá-lo
como um banqueiro que se negou a financiar o integralismo para que ele
combatesse os comunistas. A presença da antropofagia, antes anarquista, agora
com componentes marxistas, fez com que o direcionamento do texto fosse contra o
fascismo integralista, tido como associado aos imperialismos italiano e alemão e
japonês. A narrativa também fez paródia da revolução de 32, criticando também o
comunismo através de uma personagem que é a paródia de uma revolucionária
(Miguelona), assim como os militantes comunistas foram expostos as críticas de um
anarquista (Paco Alvaredo).
Bem diverso é o tratamento dado a Miguelona Senofim: ela é uma ítalo-
brasileira, uma mistura entre caipiras e imigrantes, porém sua brasilidade jamais é
posta em questão. Sua origem só ficou evidente através de seus atos de fala
irreverentes e bufões. Outro personagem bufo é Lírio de Piratininga, caricatura de
intelectual (nacionalista à la Olavo Bilac) bastante ridicularizado em sua participação
em 32. Lírio se opôs aos Abramonte, para os quais era um elemento civilizador;
ensinava os imigrantes a tomar banho, escrevia contra os japoneses e a favor dos
negros, agia desvinculado do catolicismo retrógrado da pequena cidade. Salim
Abara, de origem sírio-libanesa, uma vez abrasileirado, reagiu contra os japoneses,
essa raça que trazia o ―dumping‖, ou seja, a concorrência desleal.
Kana representou um personagem japonês cúmplice nos atos do Conde
contra a esposa Felicidade Branca: ela o viu em trajes íntimos, invadindo seu

74
espaço de forma análoga à que faziam os japoneses com os colonos. Embora Kana
fosse educado no Ocidente, não se podendo atribuir a grosseria a fatores culturais,
tudo indica um grau de proximidade também política entre o copeiro japonês e o
conde integralista e fascista, tal como entre Hitler, Mussolini e Hiroito. Kana subiu na
sociedade, embora com maus modos; ele foi, de certo modo, premiado pelo Conde
pela ofensa a Felicidade Branca.
Em MZ, a antropofagia estaria na defesa dos caboclos realizada pelo NE.
Enquanto Miguelona desvinculou-se e denunciou Mussolini, os imigrantes japoneses
nunca desvincularam-se totalmente da política de seu país; existe inclusive uma
inspeção de uma autoridade japonesa nas colônias.

6.3. Major Dinamérico Klag e a versão conservadora da antropofagia

Tratamos aqui de um romance que agregou algo do marxismo e que trata de


política, mas atenta para as diferenças individuais: não reproduz clichês do partido
comunista, registra tanto a posição do jornalista Leonardo Mesa do papel dos
intelectuais (ou seja, de quem sabia ler e escrever) na luta contra o sectarismo de
militantes como Maria Parede, que vestia um lenço sujo para parecer operária.
Se MZxv registrou algum clichê, foi a propósito de fazer um discurso plural e
abrangente, neonaturalista no sentido de experimentar uma nova linguagem capaz
de transformar em síntese narrativa as contradições, complexidades e impurezas da
realidade.
Numa determinada altura de MZ, (uma reunião de figuras de alta sociedade
em Chão), Major Formoso e Jack de São Cristóvão debatem a respeito da
antropofagia. O Major da Formosa, latifundiário em decadência, grileiro, alcoólatra
na mocidade estudante de Oxford, onde viveu uma época em que praticou a filosofia
nietzschiana, em 1934 era espírita e integralista e registrou o deslocamento dos
antropófagos para a esquerda:

--A Antropofagia, sim, a Antropofagia só podia ter uma solução – Hitler! No


entanto os integralistas cristianizaram-se. Deus, Pátria e Família! E eles, os
antropófagos que tanto prometiam, foram para o marxismo. É ininteligível!
Eles cantavam o bárbaro tecnizado! E que é o bárbaro tecnizado senão
Hitler? (ANDRADE, 1974, p. 202).

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A narrativa, marcada ela mesma, internamente, por procedimentos
antropofágicos, explicita a possível leitura conservadora da antropofagia: ao cantar
uma regressão ao primitivo e o ancestral sem deixar de lado a técnica, o grupo
liderado por Oswald de Andrade teria profetizado Hitler. Por outro lado, fazendo uma
outra leitura dessa profecia, a antropofagia teve também uma releitura pelo
movimento tropicalista nos anos 60. A postura irreverente e agressiva diante das
tradições da música popular brasileira foi equacionada com aceitação dos avanços
tecnológicos. A possível leitura conservadora da antropofagia, descartada pelo
próprio Major Formoso (cujas falas em MZ o aproximaram dessa posição: uma
interpretação conservadora da antropofagia) foi, logo a seguir, contestada pelo
arquiteto Jack de São Cristóvão:

--Não é isso. O que há é confusão – continuou o arquiteto. – No meio do


movimento modernista apareceu alguma coisa tão rica e tão fecunda que
até hoje admite várias interpretações. Politicamente, a Antropofagia pode
ser considerada como a primeira reação consciente contra os imperialismos
que ameaçam até hoje a nossa independência. Basta dizer que ela
propunha uma reforma do calendário nacional. Nosso ano I seria o da
devoração do Bispo Sardinha pelos índios Caetés, na Bahia (ANDRADE,
1974, p. 202).

Assim, o personagem Jack de São Cristóvão inseriu externamente na


narrativa uma releitura da antropofagia dos anos 20xvi. A antropofagia seria, portanto,
uma filosofia passível de ser atualizada, em seus conceitos, segundo o contexto e o
momento histórico em que ela fosse aplicada. A partir de sua matriz nacionalista, a
ela poderiam ser agregados conteúdos anarquistas, marxistas, sempre de forma
orgânica, mas sua tônica seria a necessidade da evolução social do Brasil e da
humanidade.
Nessas reuniões sociais em Chão, focaliza-se Plínio Salgado e os
integralistas, e, ao lado deles, a ridícula figura de Léontine Bourrichon, cômico
estereótipo da prostituta francesa e amante do Conde Alberto de Melo, simpatizante
do integralismo, fazendo rir e desmoralizando os discursos ufanistas e o moralismo
católico dos camisas-verdes. A narrativa constrói belas imagens, mas também
agrega imagens de mau gosto porque presentes na realidade, ou seja, já agrega o
Kitsch, procedimento largamente praticado pelos tropicalistas, nos anos 60, ao
incluírem canções com imagens de mau gosto tais como Coração Materno ao seu
repertório.

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O tratamento dado à oralidade chamou-nos a atenção especialmente numa
passagem de Revolução Melancólica, que pode também ser destacada para
comentar a presença da estética muralista em MZ. Nessa passagem, os
personagens, militantes do partido comunista, escutaram ao longe um comício
constitucionalista:

De um alto-falante vinham palavras desligadas: --


escombros...poeira...glória...rigidez...civismo...tentacular...subreptícia......Isc
ariotes...A voz precisou-se: --Nesta arrancada de heroísmo, a luta se
prepara entre enxovais e liberdades, entre o Direito e o pundonor de um
lado, e do outro a força hiante da Ditadura...
Janelas e sacadas estavam repletas. Súbito, dos lados do Brás, unido em
torno de um dístico, um grupo de gente mal vestida surgiu. Fez um
redemoinho, lateralmente na direção das escadarias. O boxeur Venâncio
erguia o cartaz onde se lia a palavra: ―proletariado‖. Atrás dele ia uma figura
desajeitada e angulosa de homem do povo. Era o camarada Falcão. Junto
dele estava o operário Irmo Frelin numa camiseta colorida. O grupo estacou
de repente. Uma moça de cabelos revoltos foi guindada aos ombros de dois
companheiros. Suspendeu nos braços abertos uma bandeira vermelha,
aberta também. Envolveu-se nela.
Na praça continuou o comício em torno das cores regionais: --
Lágrimas...colheita...potência...anseio...bombardeio...maremoto...cratera...
sementeira...sangue...São Paulo! (ANDRADE, 1991. p. 130)

Na cena acima, o discurso constitucionalista ouve-se apenas ao longe. Ao


mesmo tempo em que se precisou, tornou-se reticente logo a seguir. E,
notadamente no texto acima, o discurso constitucionalista foi apenas mais uma das
vozes que falaram em MZ. E a narrativa agregou esse discurso de forma em que ele
tornou-se ―palavras em liberdade‖, à moda dos poemas modernistas. São palavras
ditas na rua, desligadas entre si; podemos entendê-las, no entanto. São um
chamado à revolta paulista e condenação do traidor Vargas, chamado de Judas
Iscariotes. Assim, da narrativa histórica da revolução de 32 ouve-se, em MZ,
algumas passagens aqui e ali, desligadas. De permeio, uma imagem heróica dos
militantes comunistas e uma palavra somente, mas destacada como extremamente
significativa: ―proletariado‖. Essa passagem nos forneceu uma forte imagem de MZ:
um primeiro plano com militantes comunistas levantando uma bandeira vermelha,
num gesto ao mesmo tempo político e estético; um segundo plano com a revolução
constitucionalista de 32, cujos discursos e personagens foram esmiuçados e
fragmentados, oralizados e estetizados no decorrer da narrativa.
Conforme vimos acima, se a antropofagia está presente, em MZ, na
incorporação de temas da pintura e da música e até mesmo do folclore e da canção

77
popular, um personagem formulou talvez a sua mais estranha versão, nada
comunista e sim decadentista: o pai de Jango, Major Dinamérico Klag Formoso, que
estudara Filosofia em Oxford. Leonardo Mesa o entrevistou e obtivemos o registro
dessa estranha filosofia em MZ. O NE assim iniciou essa passagem:

O camarada Rioja dispunha-se a conhecer o pai do Jango da Formosa. Do


último rancho da serra, ele lutava nos tribunais contra os posseiros das
terras devolutas, fechava as estradas, atacava os caminhões. Era filho do
senhor do feudo mais rico do oitocentos paulista, cuja decadência Leonardo
conhecia de perto. Diziam que era maluco (ANDRADE, 1991, p. 44).

A descrição da figura acima foi o perfil de um latifundiário em decadência, em


luta contra os pobres, adotando um comportamento de senhor feudal. A descrição
mostrou o grotesco e atrasado comportamento do pai de Jango:

Um cachorro latiu e ele percebeu assomar, à janela única de um casebre de


pau, uma figura grave de homem, o bigode ruivo e esbranquiçado caído
sobre a boca. Empunhava um mosquetão (ANDRADE, 1991, p. 45).

O Major é descrito como alguém excêntrico e curiosamente recluso num


casebre, quando poderia viver em uma casa grande com varandas. O Major, ao ser
entrevistado, silenciou sobre Jango, mas opinou sobre outros personagens. Sobre o
Conde Alberto de Melo, disse ser ―um mulato sabido‖; sobre seu pai, coronel Bento
Formoso, supostamente ainda atuante, ―acabará entregando as terras da Formosa
aos usurários. Ficará o coronel, a casa e o horizonte. Um brasão‖ (ANDRADE, 1991,
p. 45). O Major mostrou-se um aristocrata branco e racista que exibia sua origem na
Europa nórdica (um ―Klag‖). Mais adiante, o NE revelou que a mãe do Major era
também uma colona européia humilde. O NE descreveu o Major, a essa altura da
entrevista com Mesa, como realmente um louco que: ―falava num tom literário e
enfático, mas com uma gravidade impetuosa que seduzia, os olhos querendo pular
sobre o interlocutor, os dentes podres que o bigode procurava encobrir...‖
(ANDRADE, 1991, p. 45).
A essa altura, a focalização interna foi encaixada com as perguntas e
respostas de uma entrevista, alternando as falas de Leonardo Mesa e do Major
Formoso. O narrador externo limitou-se a fazer breves descrições, sempre exibindo
traços grotescos da figura e seu decadentismo. As misturas de seu pensamento,
uma bizarra variante de antropofagia, misturavam teosofia e filosofia, Nietzsche e

78
Allan Kardec. Para o Major, comer os animais seria como praticar uma forma de
antropofagia, um sucedâneo do canibalismo ritual:

O porco, o cachorro e a galinha foram anunciados por São Paulo e


compreendidos por Nietzsche. São hoje completamente humanos. O
homem está igualado com eles à entrada da ponte. São cristãos da Arca de
Noé motorizada (...). Possuo a terra e a lei. Quando tenho uma discussão
de tipo conjugal com uma galinha, como-a. Torturo os porcos. Ninguém
sabe gozar e sofrer humanamente como um porco. São personagens de
Balzac. As galinhas pertencem à literatura nacional (ANDRADE, 1991,
p. 47).

Assim sendo, a filosofia híbrida do Major humanizou os animais apenas para


canibalizá-los logo em seguida, atribuindo-lhes humanidade. Seu pensamento seria
produto da decadência do meio rural onde ele vivia, a lavoura de café e sua
persistência cruel no latifúndio. O Major seria um reacionário produzido por Lênin,
desejando regressar a um estado de natureza e viver dentre os bichos da mata, pois
vivemos na ―idade da pedrada‖ (trocadilho com a idade da pedra posteriormente
usado pelos concretistas numa palestra na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
da USP) (CALLADO, 1997, p. 201). O homem seria apenas mais um bicho dentre os
outros em seu quintal. O homem seria o mais desanimado e mais infeliz, pois ―sonha
em viver em estado tribal‖ (ANDRADE, 1991, p. 48).
O Major, além de estar vivendo uma decadência econômica efetiva, o
personagem remete, originariamente, para um significado histórico-político e para
uma atmosfera psicológica e moral (decorrente, em parte, de um particular contexto
socioeconômico e político da época onde confluem imagens e recordações da fase
crepuscular de antigas civilizações) que caracterizou a cultura européia (com
acentuados reflexos e prolongamentos na América Latina e Estados Unidos da
América, por exemplo) dos últimos vinte e cinco anos do século XIX. A sensação de
viver numa época terminal perpassa por todo o século XIX, desde o romântico ―mal
du siècle‖, a dolorosa consciência da vacuidade da vida (ennui) que é descrita
magistralmente por Alfred de Musset (1810-1857) em La confession d’un enfant du
siècle (1836), passando pelo baudelairiano spleen até ao decadente ―Fin-de-Siècle‖
(GUIMARAES, 1982, p. 44).
No sentido mais restrito, a ―decadência‖ é, no plano estético, uma corrente da
literatura francesa desde meados do século XIX com o seu apogeu nos anos 1880.
No quadro da reação irracionalista (o retorno ao onirismo, aos mitos, à imaginação,

79
ao fantástico), espiritualista (catolicismo estético, rosa-crucianismo, budismo, por
exemplo) e ocultista (magia, cabala, espiritismo, teosofia, quiromancia, astrologia) do
fim-de-século contra o positivismo e o cientificismo, o decadentismo integra uma
significativa e plural renovação estética, de teor antinaturalista e antiparnasiana,
distinguindo-se como arte de crise correspondente a uma paradoxal atitude, dúbia e
ambivalente, perante a sociedade urbano-industrial (miticamente percepcionada
como processo de declínio irreversível) e face aos efeitos da moderna racionalidade
científica e pragmática, em que o materialismo burguês despontava como algo de
abjeto. Daí a recusa do utilitário, de uma prática social unicamente orientada para os
valores mercantis e, como contraponto, a projeção para o ―culto do eu‖ que, tanto no
plano do estético como do vivencial, relevava a diferença entre a elite e as massas.
Daí, igualmente, o culto exarcebado do artifício, do anti-natural (na tradição
baudelairiana), do excesso, do decorativismo sensualista (a predominância dos
universos de simulacro, a sofisticação ritualística dos objectos, o fascínio pela flora
exótica ou artificial, o ludismo sinestésico, a sintaxe dos odores) e o culto do
individualismo (expressão dum egotismo absoluto, clara hipertrofia do eu), a
centripetação subjectiva (especularidade narcísica), a ficcionalização de um
narcisismo paroxístico. Sob o primado destas tendências temático-formais (a que
poderíamos acrescentar, entre outras, o amor ritualmente lascivo e inibitório, o
fascínio pela figura ambivalente de Salomé tal como surgia nos quadros do pintor
simbolista Gustave Moreau, o erotismo anômalo, a volúpia transgressiva do vício e
do sangue, o imaginário monstruoso e necrófilo) o decadentismo reclama o novo,
pretendendo os estetas libertar a literatura e as artes das convenções da moral
burguesa, conscientes que estavam da desilusão de um século que parecia ter
esgotado todas as potencialidades de um romantismo reduzido a cinzas. Estes
sentimentos encontraram fortíssima expressão literária na obra de J.-K Huysmans
(1848-1907), particularmente em A rebours (1884) que, sob a influência tardia do
pessimismo de Schopenhauer (1788-1860), empreende uma síntese intensificadora
da estética decadente na criação da personagem Des Esseintes, paradigma do
dândi finissecular (GUIMARAES, 1982, p. 45).
Filiado ao decadentismo conforme definido acima, o pensamento do Major
representou uma ―baixa antropofagia‖ presente dentro de MZ, um pensamento
reacionário provocado simultaneamente pela decadência econômica, uma mente
transtornada e uma leitura ou ―sobreinterpretação‖ de Nietzsche. Pensamentos

80
canibais e repletos de desprezo, opiniões desencontradas de um estranho
―Zaratustra‖, louco e solitário, ruminando uma filosofia do eterno retorno à
animalidade e do desprezo do humano. A própria narrativa descartou organicamente
essa leitura, demonstrando, por seu próprio movimento interno e pela fala acima
citada de Jack de São Cristóvão, um direcionamento do grupo que fez a Revista de
Antropofagia para uma síntese entre o experimentalismo de vanguarda e os
conteúdos marxistas e anarquistas.
Depois de analisar o pensamento do pai de Jango, verificamos suas
focalizações internas para melhor estudar seu discurso. Aparentemente, a filosofia
do pai influenciou muito pouco Jango, personagem mais ligado à prática do que às
especulações filosóficas, existenciais ou políticas.

81
3ª PARTE

A JORNADA DO HERÓI: AS PALAVRAS

82
8 JANGO E O PNP (PORTUGUÊS NÃO-PADRÃO)

8.1 Norma culta e dialeto caipira

O suposto protagonista Jango sempre apresentou suas falas na norma culta


ou padrão, mas deslocou-se pelos ambientes onde se falou português não-padrão: o
mundo rural de Bartira e Jurema, a região onde estava localizada a fazenda
Formosa, os bairros de São Paulo. Embora de origem aristocrática, nunca quis
interferir na fala dos imigrantes ou caipiras por se exprimirem de forma diferente do
padrão culto ou com sotaque (ao contrário de sua amante, a professora Eufrásia),
sempre esteve próximo ao mundo rural e quis salvar a fazenda Formosa, chamada
por ele de ―pátria‖.
MZ combateu o desprezo pela língua falada e a supervalorização da língua
escrita literária, além da estigmatização das variedades não-urbanas, não-letradas,
usadas por falantes excluídos das camadas sociais de prestígio; supomos que o
autor optou por descartar um modelo idealizado de língua, distante da fala real
contemporânea, baseado em opções já obsoletas (extraídas da literatura do
passado) e transmitido apenas a um grupo restrito de falantes, os que tinham
acesso à escolarização formal.
Afinal, a narrativa de MZ mostrou-se consciente de que passou a ser visto
como erro todo e qualquer uso que escapasse de um modelo idealizado, toda e
qualquer opção que estivesse distante da linguagem literária consagrada; toda
pronúncia, todo vocabulário e toda sintaxe que revelassem a origem social
desprestigiada do falante; tudo o que não constasse dos usos das classes sociais
letradas urbanas com acesso à escolarização formal e à cultura legitimada. Assim,
ficou excluída do "bem falar" a imensa maioria das pessoas, um tipo de exclusão
que se perpetua em boa medida até a atualidade.
MZ ficou sendo, portanto, um precursor dessa visão avançada da lingüística,
onde, em contraposição à noção de "erro", e à "tradição da queixa" derivada dela, a
ciência lingüística posteriormente ofereceu os conceitos de variação e mudança.
Enquanto a gramática tradicional tentou definir a "língua" como uma entidade

83
abstrata e homogênea, a Lingüística concebeu a língua como uma realidade
intrinsecamente heterogênea, variável, mutante, em estreito vínculo com a realidade
social e com os usos que dela fazem os seus falantes. Uma sociedade
extremamente dinâmica e multifacetada só pode apresentar uma língua igualmente
dinâmica e multifacetada.
Ao contrário da gramática tradicional, que afirma que existe apenas uma
forma certa de dizer as coisas, a Lingüística demonstra que todas as formas de
expressão verbal têm organização gramatical, seguem regras e têm uma lógica
lingüística perfeitamente demonstrável. Ou seja: nada na língua é por acaso.
Por exemplo: para os falantes urbanos escolarizados, pronúncias como
―broco‖, ―ingrês‖, ―chicrete‖, ―pranta‖, etc. são feias, erradas e toscas. Essa avaliação
se prende essencialmente ao fato dessas pronúncias caracterizarem falantes
socialmente desprestigiados (analfabetos, pobres, moradores da zona rural etc.). No
entanto, a transformação do ―L‖ em ―R‖ nos encontros consonantais ocorreu
amplamente na história da língua portuguesa. Muitas palavras que hoje têm um ―R‖
apresentavam um ―L‖ na origem:

LATIM PORTUGUÊS
Blandu Brando
Clavu Cravo
Duplu Dobro
Flaccu Fraco
Fluxu Frouxo
Obligare Obrigar
Placere Prazer
Plicare Pregar
Plumbu Prumo
Tabela 2: Evolução do Português

Assim, o suposto "erro" é na verdade perfeitamente explicável: trata-se do


prosseguimento de uma tendência muito antiga no português (e em outras línguas)
que os falantes rurais ou não-escolarizados levaram adiante. Esse fenômeno teve
até um nome técnico na lingüística histórica: rotacismo.

84
O exemplo apresentado acima (mudança de L para R em encontros
consonantais) não deve levar ninguém a supor que esses fenômenos variáveis e
mutantes só ocorreram na língua dos falantes rurais, sem escolarização, pobres etc.
Eles também ocorrem na língua dos falantes "cultos", urbanos, letrados etc., muito
embora esses mesmos falantes acreditem ser os legítimos representantes da língua
"certa". Ora, o rotacismo apareceu inúmeras vezes em MZ:

--Tô prantando. Ás veiz dô um tirro pra espantá argum ladron (...).


--Bão. Té logo! Vô sabê do risurtado da vistoria (...).
--O capitar empregado aqui não se perde. Prefiro saí aos pedaço...
(ANDRADE, 1991, p.19)

Como vimos acima, somente na primeira página de Revolução Melancólica


existem quatro exemplos de rotacismo: ―prantando‖, ―argum‖, ―risurtado‖, ―capitar‖.
Um dos objetivos de MZ seria, portanto, discutir criticamente os valores
sociais atribuídos a cada variante lingüística, chamando a atenção para a carga de
discriminação que pesa sobre determinados usos da língua, de modo a
conscientizar o leitor de que sua produção lingüística, oral ou escrita, estará sempre
sujeita a uma avaliação social, positiva ou negativa. Esse intento ligou-se com a
experimentação modernista e sua proposta de atualização da literatura com as
modificações sociais:

O modernismo ressuscitou o texto com a dicção do povo, abalando uma


sintaxe, incorporando e modulando um tipo de expressividade; vale dizer -
uma dicção que é a média global da língua geral brasileira. Esta fala-
comportamento, como resultante de um viver nacional em formação, é
dinâmica no sentido de estar mais voltada para a mensagem do que para o
código. Isto é, no modernismo, a mensagem pressiona o código no sentido
de reatualizá-lo constantemente em função das profundas transformações
da vida brasileira (SALLES, 1974, p. 50).

Assim sendo, MZ articulou-se perfeitamente na tradição modernista acima


entendida. No caso dos romances cíclicos, tanto o código foi escrito em português
não-padrão, com imagens neonaturalistas, quanto a mensagem, impregnada de
marxismo e anarquismo, articulou o desejo de transformação social com o
engajamento ideológico e o experimentalismo de linguagem.
Sempre próximo ao mundo rural e ao mundo proletário dos imigrantes, Jango
esteve, portanto, envolvido por atos de fala em português não-padrão. Um exemplo
nos foi dado quando ele recebeu Mikael, um russo imigrado que encontrou a velha

85
Rússia no campo brasileiro. MZ adiantou questões tais como a relação entre a
escrita e a fala.
Como vimos acima, a narrativa incorporou a oralidade no momento da
focalização interna, quando buscou transcrever na forma escrita os sotaques dos
imigrantes e o dialeto caipira. O NE praticou um português mais próximo da forma
culta, mas o uso da forma literária e retórica nos atos de fala de alguns
personagens, como as falas de Anastácia Pupper, indicou que, em MZ, as falas de
Miguelona eram em português não-padrão para compor a personagem e a paródia a
ela associada. No entanto, a narrativa não explorou somente o possível efeito
humorístico causado pelos atos de fala em dialeto caipira, sotaque e PNP: pode-se
ler MZ como uma narrativa onde a fala que imitou um padrão escrito foi
desmistificada e ridicularizada por passadista e ligada a uma retórica ultrapassada.
Os exemplos foram vários: o discurso de Eufrásia diante dos alunos, o discurso do
político constitucionalista Pádua Lopes, dos estudantes de Direito em 32, a palestra
de Alberto de Saxe.
Assim sendo, as questões da oralidade, escrita e fala no MZ foram pioneiras
e podem hoje ser discutidas à luz de teorias recentes. Embora os imigrantes, na
maioria das vezes, trouxessem a marca da oralidade em suas falas, trazidas à luz
pelo narrador externo em discurso direto, existem exceções, como o aristocrata
russo Mikael, antigo capitão de guarda do Czar. No diálogo, surgiu em dada altura
uma referência ao fato de que Mikael estudou com um professor. Ele deveria
também ter um sotaque; mas não foi por isso, supomos, que essas marcas não
apareceram. Elas não apareceram porque Mikael dominou o português padrão em
que foi transcrito seu diálogo:

Falava o inglês. Fui professor de Matemática para crianças. Não me senti


adaptado nos Estados Unidos. Desci num cargueiro. Tinha me engajado.
Um dia cheguei a Santos. E decidi ficar. Os russos brancos daqui me
receberam bem, talvez porque conhecessem de tradição a minha família.
Ajudaram-me. Tomei um professor. Aprendi a língua daqui como aprendi o
inglês. Os russos têm facilidade (ANDRADE, 1974, p. 81).

Assim, podemos subentender que as marcas da oralidade surgiram, entre os


personagens dos imigrantes, para registrar as variedades não-padrão: foram mais
do que mero registro de sotaques.

86
Outros dois personagens imigrantes e que possuíram a oralidade como
marca de suas falas foram: 1) Nicolau Abramonte, prefeito de Jurema e imigrante
italiano e 2) Léontine Bourrichon, a prostituta de origem francesa. Em ambos os
casos, os discursos dos dois compuseram personagens ridículos ou grotescos. No
caso de Abramonte, suas falas macarrônicas, lembrando as de Miguelona,
ilustraram de maneira cômica o imigrante em ascensão que passou a controlar seus
antigos patrões. Abramonte, ao receber Vitalino, novo gerente do banco do qual
Abramonte era dono, exibiu, além de seu português não-padrão, seus modos pouco
cultivados:

--Estudá é bestera! –gritou Abramonte. –Só serve para istragá o dinhero.


Agora o Luizinho qué muntá um consurtório de médico aqui em São
Paulo...Moderno, me disse ele...Io non dô! Que compre ele...Vá! Abra o
vinho, Fúlvia...(...).
--Protestar?
--Tudo o que a lei dexa. O que pude!
--Mas por quê?
--Uma idéia mi veio...
--Seu Abramonte nós demos a nossa palavra, temos um compromisso...
--Por scrito? Entó, de qui vale? Pro protesto!
--Sem avisar?
--De surpresa. É ansim que faiz na Europa o Mussolini. E ganha dos grosso!
Vitalino Borges olhava espantado o antigo colono da Formosa.
--São velhos clientes da casa...
--Tudo! Já te disse! –fez o outro, incisivo, confiante na operação.
(ANDRADE, 1974, p. 100)

Acima, portanto, tivemos contato com um imigrante que não estudou e não
dominou o português padrão, embora rico banqueiro; suas falas ajudaram a compor
a imagem de ignorância, simpatia pelo fascismo de Mussolini e crueldade com os
antigos patrões, os Formoso.
Na maior parte das vezes, o NE utilizou os verbos no passado, mas ele não é
alguém que está se recordando de um passado recente. Embora. Por outro lado, os
focalizadores personagens, por vezes, utilizaram os verbos no presente. Outra
personagem imigrante cujas falas foram marcadas negativamente foi a Condessa
Léontine Bourrichon, dona de uma casa no Jardim América:

--Vocês non viu minha camisa verde? Io mande fazerr...Vô vistir no dia da
posse do Plínio Salgado...(...). –O negoce non stá pra dá risade! Felizmente
a France tem o Laval qui vá fazere o aliance com o Mussolini...(...). Você
pigó a moele! Nom faça isso. A metade é do conde. Com licence. É do
regime do conde! O curranchi também...É o pedaço que os homes gosta de
chupá....(...). Os bolcheviste querr tirá os coisa da gente! Onde já se viu
isse? Qui façan iguarr eu! Ganhê com sacrifice. Eu já tinhe trezentos contos

87
quando fui co conde! Ele non me deu nada só a casa agorra...Trezentos
conto suado! (ANDRADE, 1974, p. 234)

Assim, as falas afrancesadas da condessa Léontine exprimiram sua adesão


ao integralismo e ao fascismo, ao mesmo tempo em que sua falta de educação à
mesa e alienação política. Foram falas transcritas com a intenção de exibir o ridículo
da personagem, cuja presença mesmo já desmascarava o suposto apego dos
integralistas à família. No tempo de MZ, era muito forte a imagem da prostituta de
luxo de origem francesa que os ricos brasileiros traziam da Europa. Fútil, alienada e
idiota, Léontine deu uma desencontrada opinião política: os bolchevistas deveriam
ganhar dinheiro como ela, ou seja, se prostituindo. O uso do português não-padrão
em seus textos ajudou a compor a paródia de uma amante francesa e prostituta de
luxo ―integralista‖.
As falas em português não-padrão foram utilizadas profusamente em MZ,
mas não eram novidade na obra, pois estiveram também presentes em Miramar
(mas em menor quantidade). As cartas de Minão da Silva foram utilizadas de forma
satírica em Miramar, como no exemplo abaixo:

Fiz contrato com os colonos espanhol que saiu da Fazenda Canadá assim
mesmo perciso de algumas familhas a porca pintada deu cria sendo tudo
por 9 leitão e o Migué Turco pediu demissão arrecolhi na ceva mais três
capadete que já estão no ponto a turbina não está foncionando bem esta
semana amanhã o Salim vem concertal. O descascador ficou muito bom por
aqui vão todos bom da mesma forma com a graça de Deus que com D.
Célia fique restabelecido da convalescença o que é que eu lhe desejo
(ANDRADE, 1999, p. 71)

Ainda que existam outras cartas como essa acima, em Miramar esse uso do
português não-padrão para compor os personagens ainda não tinha tomado a
extensão com que se destacou em MZ, mas foi presença marcante e fez parte da
sátira, constituindo mais um elemento de continuidade entre MZ e Miramar. Em
determinados momentos, a narrativa utilizou-se da paródia, fazendo um arremedo
parodístico de um linguajar rebuscado e falso, dirigido em MZ principalmente contra
os integralistas e os rebeldes de 32. A fala dos caipiras, japoneses e imigrantes, por
sua vez, foram transcritas de forma a manter as marcas da oralidade e das variantes
do português falado que divergiam do padrão culto, tendo quase sempre tomado as
tintas da paródia. Assim, quando apareciam as falas de Mikael ou de Jango,

88
personagens que dominavam o padrão culto, as falas não traziam as marcas de
oralidade presentes nas falas dos grupos acima citados.
Assim, podemos dizer que, em MZ, a caracterização satírica da retórica de
uma determinada faixa social urbana de letrados bacharelescos (a quem essa fala
servia de emblema e de jargão de casta) serviu de contraponto aos atos de fala de
outras classes sociais. Notamos, finalmente, que a emissão de falas em português
não-padrão aconteceram nos lugares por onde o suposto protagonista Jango
deslocava-se: as pequenas cidades (Jurema e Bartira), bairros diversos da capital
paulista, a fazenda Formosa. Finalizemos, portanto, nossa hipótese de leitura que se
utilizou de Jango enquanto protagonista.

89
IX CONCLUSÃO

Quando se lê a obra de que tratamos utilizando Jango como suposto


protagonista, esse dado serve como motivo-guia que organiza a leitura do romance.
Isso é apenas mais uma leitura, mas tendo em vista que, em suas características de
―coletivo‖ e ―mural‖, encontrar pontos de unidade constituiu um problema para
qualquer leitura que se queira fazer de seu conjunto. Acreditamos que, com esse fio
narrativo e o mapeamento que fizemos em anexo, em que cada fragmento foi
nomeado e numerado à maneira de Miramar, ficou possibilitada a chamada leitura
coerente do romance.
Buscamos, com nossa argumentação, afastar a hipótese de que MZ
aproxima-se dos textos de Plínio Salgado (sugestão que não foi levada a sério pela
crítica anterior). Como vimos acima, contrapor Miramar e MZ através das passagens
paralelas foi um caminho bem mais frutífero. Na leitura feita nessa tese,
desconstruímos as posições do autor empírico a respeito de MZ, assinalando que
estavam empenhadas na conquista de público e em seduzir de um leitor
conservador com promessas que o MZ não atendeu completamente.
Observamos, a seguir, a difícil posição do autor empírico em sua época,
dividido entre defender o legado modernista e não se repetir. Foi investigada
também a postura do narrador externo em relação a Jango, principalmente: em
determinados momentos ocorreu convergência entre a posição do NE e a linguagem
de Jango. As falas de Jango e do NE eram debatidas e contrapostas com as de
outros personagens, tais como Pancrácio Fortes e Leonardo Mesa, no decorrer do
romance.
Mais adiante, enfrentamos uma questão que permanecia em aberto: qual
seria a visão de mundo em MZ, considerando Jango como suposto protagonista?
MZ ambicionou conciliar experimentalismo formal com engajamento social. Dentro
do contexto, no final do romance cíclico restou a necessidade de fazer uma frente
entre os liberais e comunistas para combater os integralistas e a ditadura de Vargas.
E essa visão de mundo seria plana e rotineira? A resposta nos facultou escrever um
tópico para esclarecê-la: em MZ existiu algo que chamamos de ―antropofagia
comunista‖. Trata-se de um romance onde a antropofagia dos anos 20 foi revista,

90
relida e praticada tanto explicitamente (nos atos de fala de Jack de São Cristóvão e
de Major Formoso) quanto no nível interno (o texto agregou citações de outros
autores, desde Thomas Mann até Lorca, passando por Sacher-Masoch, utilizou a
paródia dessacralizadora contra a Igreja Católica e os bacharéis que apoiaram 32,
incorporou a oralidade do português não-padrão, além de canções folclóricas e
populares).
Estudamos também as focalizações internas em torno do nosso suposto
protagonista, considerando que elas formaram a estrutura mesma do romance,
tendo aparecido constantemente: quase todos os personagens tiveram direito a uma
focalização interna, na forma de um ou mais atos de fala. Registramos também o
deslocamento de Jango entre os vários lugares do romance (Bartira, Jurema, São
Paulo capital, fazenda dos Formoso), deslizamento que propiciou, nesse meio, os
atos de fala em português não-padrão em dialeto caipira, com sotaque de
imigrantes, de operários comunistas em reunião na capital, dentre outros falares.
Concluindo, essa tese buscou minorar as diferenças entre os diversos
romances de Oswald de Andrade, tendo em vista fazer com que os volumes do MZ
sejam vistos enquanto obra madura, capaz de estilo engraçado e dinâmico, com
uma especifidade própria: sem diminuí-los em prol de obras anteriores, obras que
precisariam iluminar MZ, nunca ofuscá-lo.

91
XXI REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

12.1 Obras de Oswald de Andrade

ANDRADE, Oswald. Marco Zero I – A Revolução Melancólica. São Paulo: Globo,


1991.

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Paulo: Globo, 1999.

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___________________. Telefonema. São Paulo: Globo, 1996.

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Propriedade‖. In: SCHWARZ, Roberto (org.) Os Pobres na Literatura Brasileira. São
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92
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São Paulo, 21 out. 1984. Cultura, pp. 1-2.

___________________________. O Salão e a Selva – Uma Biografia Ilustrada de


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_________________________ . A Vanguarda Antropofágica. São Paulo: Ática


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Folha de São Paulo. Suplemento Folhetim, São Paulo, p. 3 - 5, 03 nov. 1984.

___________________________A Trajetória de Oswald de Andrade. Estado de S.


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BRITO. Mário da Silva. Cartola de Mágico. 1ª edição, Rio de Janeiro: Civilização


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HELENA, Lúcia. A Propósito dos Romances Experimentais de Oswald de Andrade.


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99
XXIII ANEXOS

Roteiro de Marco Zero

Para analisar Revolução Melancólica e Chão, demos títulos aos fragmentos


(como ocorre em Memórias Póstumas de João Miramar) e listamos os personagens
citados em cada uma das cenas:

I A POSSE CONTRA A PROPRIEDADE

Cenas Personagens
1 Morte de Pedrão Pedrão, Miguelona Senofim
2. Sepultamento de Pedrão Pedrão
3. Protestos da Miguelona Miguelona, Moscovão, Major, Anjolete
4. Lírio e os colonos japoneses Lírio
5. Elesbão: como o Brasil Elesbão, Lírio, Salim e Muraoka
6. Elesbão e Muraoka Muraoka, Elesbão, Salim Abara, Zilé, Ercole
Fiorelo, Casacão, Merelão, Ciana, Antônio
Cristo, Chiba.
7. Salim e Muraoka Salim, Muraoka, Ditinha
8. Bartira, o fim do mundo Muraoka
9. Moscovão e o empório Muraoka, Idílio Moscovão
10. Diálogos no empório Moscovão, Anjo Leite, Major, Lírio, Ercole
11. O Expresso de Xangai Capitão Jango, Major, Roselina, Jango
12. Chegada a Santos Fabrício, Rioja, Mesa, Prestes
13. Reunião do Partido Comunista Mesa, Agripa, Gonzaga, Rioja, Pancrácio
14. O PRP e o PC Fabrício, Rioja, Pacova, Melo Araújo
15 O comício de mastros Leonardo Mesa
16. José Beato e Antônio Cristo Muraoka, Antônio Cristo, Lírio, Padre Beato
17 Miguelona, bandeirante mulher Miguelona, Leonardo Mesa
18. Miguelona e Rioja Rioja, Pedrão, Dona Europa, Miguelona
19. Foco comunista na mata Leonardo Mesa, Rioja, Muraoka, Mingo,
Fusiko, preto Tomé, Miguelona
20. Rioja e o Major Miguelona, Rioja, Tomé, Jango, Conde
Alberto de Melo, Pancrácio Fortes, Major
Formoso
Tabela 3: A posse contra a propriedade

100
II A ESCOLA DO CAVALO AZUL

Cenas Personagens
21. Escola rural onde leciona Eufrásia D. Anastácia Pupper, Dona Eufrásia,
Seu Barnabé.
22. Lírio é apresentado Nhá Tita
23. Brasileiros e japoneses na escola Eufrásia Beato, Kioto Nassura,
Sakueto Sakuragi, Jesué dos Santos,
Massau Muraoka, Adelino, Idalício
Deadermino, D. Anastácia Pupper,
Josefa Antunes.
24. Aula de alfabetização Idalício
25. Circo no Interior A assistência, Deadermino, Xerife
Idílio, Eufrásia Beato Moncorvino
Jango, Miguelona, Idalício, Veva
Licórnea
26. Jango João Lucas Klag Formoso, Armida
Spin, Jeremias Moncorvino, Eufrásia
Beato, Maria Aeroplano, Idílio
Moscovão, Major, Monsenhor Luna,
Sempre Viva, Umbelina Formoso
27. Jango e Arminda Spin Armida Spin, Ferrúcio Spin, Jango,
Ciana
28. Jango e Cristo Jango, Índio Cristo

29. ―Lição de Coisas‖, da professora Haru, Eufrásia, Zemken, Filomena


Eufrásia Felisbino, Kioto
30. Eufrásia lembra-se de ter passado Eufrásia, Dona Idalina
fome
31. Grupo familiar de Jeremias Jeremias Moncorvino, Veva, Josefa
Moncorvino Beato, Licórnea, Mateus, Jango
Agripa Junquilho, José, Alfredo,
Zezinho.

32. O Mundo do Cavalo Azul Eufrásia, Genuca, Geralda, Jango,


Jeremias, Dona Idalina, Armida, Índio
Cristo, Coronel Bento Formoso
33. Idalício Deadermino e o Vigário de Jurema, Idalício, Tita, Deadermino
Jurema Vigário de Jurema (Mateus Beato),
Pai de Idalício, Dr. Abramonte
34. Dr. Abramonte Dr. Abramonte, filho de Nicolau
Abramonte
Dr. Abramonte, Idalício
35. Senhora de Formosa e o Preto Preto Velho, Roque, Umbelina
Velho Roque
36. Jango, Eufrásia, Ferrúcio Spin e a Jango, Eufrásia, Negro Rocha
Crise Ferrúcio
37. Crise do Café e os Bailes de 30 Conde Alberto de Melo, Felicidade
101
Branca, Jango, Antonio Carlos de
Minas, Leonardo Mesa, Higino, Nhô
Idílio, Anastácia Pupper, Maria
Aeroplano

38. Jango e a Derrocada Conde Alberto de Melo, Jango,


Pavuna
39. Formosa vista de avião Conde Alberto de Melo, Kana
40. O Papa e Lírio Napoleão, Lírio, Prefeito Abramonte,
Luizinho, Coronel Merelão
41. Cowboys e japoneses Índios, Professora Eufrásia, Grupo de
colonos japoneses
42. Orient-Express Um negociante, Coronel Merelão
43. Jango e Alberto de Melo Léontine,Titã, Mateus Beato, Ferrol
Seu Agripa, Felicidade Branca, Conde
Alberto de Melo, Ubaldo Junquilho,
Jango, Coronel Bento Formoso
44. Jango no Guarujá Preto, Xodó, Roque, Miguelona,
Governanta alemã
45. Mapa de Litoral Santista Anjo Leite, Pedrão, Jango, Dona
Tadéia, Ciana
46. Idalício Morto Idalício e a cidade de Jurema
Tabela 4: A escola do cavalo azul

III – A NAMORADA DO CÉU

Cenas Personagens
47. Jurema, cidade interiorana Lírio do Vale e a família Abramonte
Nicolau
Ludovica
48. País do Cavalo Azul Monsenhor Palude
Caiçara
Salim Abara
Padre Beato
49. Perfil dos Abramonte Nicolauzinho
Nicolau Abramonte
50. Os imigrantes e o Brasil Nicolau Abramonte
Salim Abara
Dona Filomena
Idílio Moscovão
51. José Beato, Anchieta dos Muraoka
Japoneses José Beato
52. Procissão em Jurema Padre Beato
Lírio de Piratininga
Ludovica
53. Prefeito Abramonte e Lírio Prefeito
Lírio
Dona Filomena

102
54. Mulher do Lírio e a Neurastenia Ludovica
Esmeralda
Dona Fúlvia
55. Catolicismo de Abramonte e Lírio Ludovica Abramonte
Dona Filomena

56. Intelectuais de Jurema Lírio


Alemão
Godói
Gottlieb Plaumburn
57. Meu Anjo da Guarda é um 38 Basílio
Dona Luna
Padre Palude
58. O Novo Vigário e os Abramonte Merelão
Prefeito Abramonte
Ludovica
59. Padre Beato Vem Aí José Beato
Os Abramonte
Padre Beato
Lírio
Major
60. Lírio e a Esposa Nicolau Abramonte
Ludovica
Lírio
61. Voz de Jurema Lírio
Seu Nenê
62. Medíocre Jurema Nicolau Abramonte
63. Lírio de Hipócrates ou de Lírio
Hipocrisia? Godói
64. Metralhadora das Comadres Lírio
Professor de veterinária, irmão de
Gottlieb Plaumburn
Ludovica
Nicolau
65. Dona Filomena Abramonte Dona Filomena
Nico do cartório
66. Ludovica e o Céu Fúlvia
Ludovica
67. Bom Jesus de Jurema Padre Beato
Ludovica
68. Da Podridão Divina Ludovica
69. O Padre e a Aleijada Ludovica
Padre Beato
Tita Deadermino
70. A Relíquia Lírio
Minervina
Fúlvia
71. Nicolau sem Paletó Dona Filomena
Padre Beato
Dona Ludovica
103
Filha de Maria
72. Padre Beato e Ludovica José Beato
73. Padre Beato e a Beata Padre José Beato, Dona Ludovica
Deadermino
74. Lírio e a Luta dos Negros Godói, Lírio
75. Manhã em Jurema Lírio, Ludovica, Nicolau Abramonte
76. Sabotagem de Lírio Nicolau, Dona Filomena, Ludovica
77. O Cinema e Ludovica Ludovica, Padre Beato, Abramonte
Lírio
78. O Sogro, O Padre e o Japonês Lírio, José Beato
Padre Beato e a Beata
79. Abramonte, Ludovica e Lírio Nicolau, Dona Filomena
80. Aula de Catecismo Dona Filomena
Esmeralda
81. Lírio e o Turco Latife Joaninha, Lírio, Filha de Salim Abara
82. Casado na Idade Média Lírio, Ludovica
Godói, Professor de veterinária (irmão
de Gottlieb Plaumburn)
83. Separação de Lírio Preta da cozinha, Dona Filomena
Padre Beato, Ludovica
84. O Drama Continua Lírio, Ludovica, Padre Beato
Nicolau Abramonte
Tabela 5: A namorada do céu

IV—Vésperas Paulistas

Cenas Personagens
85. Tramando 32 Padre Beato, Dr. Sakura, Leonardo
Mesa, Lírio
86. Raça na Guerra Paulista Dra. Marialva Guimarães, Lírio
87. O Preto do Botequim, da Fúlvia Abramonte, Dona Filomena
Liberdade e da Cachaça Ludovica, Boiadeiro Rocha, Miquelina,
Dra. Marialva Guimarães
88. Cruz do Bom Jesus Rafael Stronzo, Ladislau, Leonardo
Mesa, Lírio, Monsenhor Palude
89. Babilônia do Capital Dona Ludovica
90. As Chaminés no Azul Zico Venâncio, Linda Moscovão

91. Jardim América Jango, Linda Moscovão, Maria da


Graça
92. Felicidade Branca, Guiomar Dona Guiomar, Felicidade Branca,
Viúva Junquilho
93. Preparando 32 Seu Carmo, Seu Nunes, Xavier,
Cozinheira, Dona Guiomar, Maria da
Graça, Mary de Barros Ferguson
Ubaldo Junquilho, Xodó, Jango

104
Felicidade Branca, Condessa Tolstoi
(Madame da Silva Calheiros), Lina
Machado
94. O Pessoal do Brás Administradora Junquilho, Dona Paula
Moço magro, demitido do Matarazzo
95. Os Boxeadores Severão Júnior, Mário Ferguson,
Ubaldo Junquilho, Zico Venâncio
96. O Bairro Proletário O Brás
97. Rua dos Pobres Linda Moscovão, Maria Parede, Jamil
(dentista), Dr. Torres, Ricardo
Bartelmes, Doardo, filho de Zico
98. O Coronel Viajou Bélica, Afonsina, Dona Vitória,
Pancrácio Fortes, Pavão, Afonsina,
Duviges
99. Enquanto a Revolução Não Vem Jango

100. Entre o Direito e a Ditadura Jango, Maria Parede, Leonardo Mesa


Camarada Rioja, Dona Felicidade
Branca, Tia Anastácia, Idílio, Sarita
101. Lírio e a Revolução Relâmpago Veloso, Dr. Marialva Guimarães
102. Babilônia Maria Parede (Linda Moscovão)
103. Jácopo Frelin Jácopo Frelin, Leonardo Mesa
Incoronata e Valquíria, Dona Idalina
104. Babilônia do Capital Padre Beato, ―Boa Morte‖
105. Quindim e Cláudio Manoel Mendão, Quindim, Cláudio Manoel
Grupo de modernistas
106. Antes da Revolução Quindim, Cláudio Manoel
107. Cinema e Selva Selvaggia Zico Venâncio, Linda Moscovão
Leonardo Mesa
108. O Craque de 29 Os Moncorvino, Veva, Padre Beato
Eugênio, Zefa, Lindáurea, Eufrásia
Beato, Rosalina, Jango, John Gilbert,
Genuca, Jeremias, Timóteo, Aurora
Boreal, Licórnea, Lourdes
109. Jango e Eufrásia Carlos de Jaert, Jango, Eufrásia
110. Tradições dos Formoso Felicidade Branca, Robério Spin,
família Ferguson, Kana, Mary
Ferguson, Henrique Ferguson, Conde
Alberto de Melo, o professor e
advogado, Kana, Bonifácio.

111. A Revolução na Rua Jango, Eufrásia

112. Frelin e Rioja Camarada Rioja e Jácopo Frelin


113. Doardo e a Dor Professor Robério Spin, Carmo
Agripa, Zico Venâncio
114. Estandarte de Guerra Ciro, Dr. Lobo, Banqueiro, Robério
Spin, Pádua Lopes, Professor
Albornós

105
115. Prisão de Parede & Mesa Idalina e Os Frelin
116. O partido convocou Gottlieb Plaumburn, Pacova,
Companheiro Ortiz, tenente Odilon da
Força.
117. O Homem do Boné Eduardinho, Vizinho do casal
Venâncio
118. Carmela Venâncio Carmela Venâncio
Tenente Magro
Zico Venâncio
119. Segredado de Tudo Mário Ferguson, Zico Vemâncio
Tabela 6: Vésperas paulistas

V- Latifundiários em Armas

Cenas Personagens
120. Os Latifundiários Pedro de Toledo, Afonsina, Idílio,
Anastácia
121. Lanche Eufrásia, Jesué, Anastácia Pupper,
Barnabé
122. Guerra de São Paulo Um negro sorrindo, Idílio, Índio Cristo,
velho de olhos vidrados, um sargente
gordo
123. Nós Estamos em Revolução Índio Cristo, Tenente Chiba
124. Filhos no Front Xavier, soldados revoltosos, D.
Rosalina, Capitão Jango, D. Guiomar
Junquilho, D. Sinhá, Umbelina
Formoso, Tenente Lírio de Piratininga
125. É a Guerra Lírio, Quindim, Cláudio Manoel,
Afonsina, Bélica, Umbelina, Tenente
Lírio de Piratininga e Sargento
Epaminondas
126. A Barata Azul Moço oficial
―grilo‖
127. O Troço Bisonho Tenente Lírio, Epaminondas
128. São Paulo Sozinho Jango, Afonsina
129. Mãe e Filho Fúlvia Junquilho e Ubaldo
130. Ruído de Corneta Um menino
131. Guerra é Guerra Quindim
132. Para Combater Getúlio Tenente Lírio de Piratininga
133. Primeira Vítima da Revolução Oficial, chofer, Barnabé
134. Batalhão de Jurema Índio Cristo, Chiba, Nhô Idílio
135. Batalhão Fantasma Idílio Moscovão, Lírio
136. O Canhão e a Mulata Soldados
137. Junquilho Administradora Junquilho, Xavier,
Paula
138. Tiros soldados

106
139. Carlos de Jaert e Jack Afonsina, Quindim, Pichorra, Carlos
de Jaert, Jack de São Cristóvão, Idílio
Moscovão
140. Revolução de 32 e a Piada de Quindim
Português
141. Fila de Soldados Jack de São Cristóvão
142. Os Atacantes Soldados varguistas, Mateus Beato,
Quindim
143. Prisioneiros Oficiais da ditadura, soldados
constitucionalistas, Quindim
144. Quindim e um Rapazinho Quindim, Soldado Nordestino
145. Você me Libertou Quindim, Soldado
146. Coração em Fogo Quindim, Reduzino
147. Tenente Piratininga Chiba, Lírio
148. Jango Caiu Jeremias Moncorvino, Eufrásia,
Geralda, Genuca, Rosalina, Capitão
Jango
149. O Corpo de Jango Major Dinamérico Klag, seu Jango,
Afonsina, Vitória e Belica, Jango
150. Dois Jangos Major, Jeremias Moncorvino, Eufrásia,
Noralda, Veva, D. Anastácia Pupper,
Dona Umbelina, Jango da Formosa,
Rosalina
151. Os Féretros Desembarcados D. Anastácia, cabo gordo
152. Soldado da Guerra Paulista Major, Jeremias Moncorvino,
Rosalina, família Moncorvino
153. O Outro Jango Tenente Jango da Formosa, Guiomar
Junquilho, Alexandrina
154. João Lucas Melhorou João Lucas, Argelin Junquilho,
Alexandrina, Tenente Jango
155. Na Hora Ninguém Quer: Morte Argelin, enfermeira-chefe, Alexandria
156. Um Grupo Histérico Cláudio Manoel
157. Mulher de Soldado Eufrásia Beato, tenente Jango,
Capitão Rego Diniz
158. Eufrásia e Minervina Eufrásia, Minervina
159. Os Sofrimentos de Jango Lírio, Major, Eufrásia, Tia Licórnea, a
criadinha
160. Caleidoscópio da Retaguarda Lírio de Piratininga
161. Junquilho no hospital A Junquilho
162. Major Formoso e Eufrásia Beato Major, Licórnea, um amigo, Eufrásia
Beato
163. O Batalhão Pirou Lírio Rebouças, Jango, Moscovão,
Juventino
164. Necrotério da Garagem Moça de preto, cadáver de rapaz
165. Diálogo nas Enfermarias Um fraturado, enfermarias
166. Uma Freira na Copa Freira
167. O Grupo vê os heróis paulistas Um médico barbado
Enfermeira Um curativo
168. Os Paulistas Avançam Jango, Lírio de Piratininga

107
169. Argelin e Jango Anjo Leite, Argelin, Jango e Lírio
170. Entre Tapas e Risos O médico e a enfermeira
171. Um Cabelo no Café Anjo Leite, Argelin
172. Faltam Remédios Enfermeira, Junquilho
173. O Português que Ficou Major, Eufrásia Beato
174. A Retirada Sensível Eufrásia Beato, Jango, Argelin
175. Apóstrofes com Cheiro de Pinga O Major, Eufrásia Beato
176. Entre o Chumbo e o Ouro Irmã, Argelin
177. A Guerra Continua: Jango e João Lucas Klag Formoso, Eufrásia
Eufrásia
178. A Volta da Miguelona Miguelona, Antônio Cristo, Tenente
Chiba
179. Miguelona e o sexo Miguelona e um homem
180. Enquanto não Acaba a Índio Cristo, Miguelona, Cadela
Revolução
181. O Índio e a Cachorra O índio, Cachorra
182. Capitão Kana Jango, Kana
183. Diálogos com Kana Um médico, Kana
184. Major e Eufrásia: Éxtase Major, Eufrásia
185. Sem Notícia de Eufrásia Jango, Kana, Anjo Leite, Lírio
186. Os Soldados e a Onça Jango
187. Ele e Você O homem
188. As Terras do Major Índio, tenente Jango, Miguelona
189. Grávida de Jango Major, Muraoka, Jango
190. São Paulo perdeu, ele não Tenente Jango, Kana, Ciana
191. A Vitória do Vilão Moscovão Arregaçado, Idílio
Moscovão
192. Moscovão Anti-Paulista Moscovão, os soldados, tenente
Mulato
193. Ainda Moscovão Idílio Moscovão
194. Vacas com Casas Lazo, Idílio
195. Vamos Fazer Fogo O soldado robusto
196. O Melhor da Guerra: Hotel Os soldados, Moscovão
197. Suinofagia Lazo, o preto, Furmino
198. Destroços de um Batalhão Moscovão, Lazo
Paulista
199. Ocupando uma Fazendola Um voluntário, um soldado
200. Os Diretores Estavam Próximos Sentinelas
201. Brincadeiras de Soldado O chofer e o Tico
202. Na Estação O conjunto da tropa
203. Tropa na Charneca O combate, o conjunto da tropa
204. A Tropa Reconstituída A tropa
205. Ainda o Canhão Os soldados
206. Moscovão e Lazo Moscovão, Lazo
207. Idílio e os Companheiros O inimigo, Idílio
208. Moscovão na Revolução Moscovão
209. Sumidouro Glacial Um cavalo, os soldados
210. Cuidado na Retaguarda O morfético, Moscovão
211. O Barro Imemorial O barro

108
212. O Último Moscovão Moscovão e seu batalhão
213. Restos da Bandeira Paulista A tropa
214. O Barbado era Leproso Um capitão, moço voluntário
215. Anastácia Pupper e o seu pai Anastácia Pupper, o babá, Linda,
Sarita
216. Lucinda, Moscovão, Anastácia Anastácia, Lucinda, Moscovão
217. Pirei e Fiz Bem Um moço elegante
218. É o Fim Tenente Magnólia, Capitão Rego
Diniz
219. Derrota de São Paulo Engenheiro Máximo Fortes
220. São Paulo Foi Traído Joanito, Chico Oliveira, Bernardino
221. A Força é que Traiu? Os soldados, Lírio, Jácopo Frelin
222. Belinda e Marocas Cozinheira, Belinha e Marocas
223. Lírio e as três meninas Nega da cozinha, Belinha, Lírio
224. Estão Pegando Paulista Maria da Graça, Ubaldo Junquilho
eTotó Agripa
225. Robério Spin em Kana Robério Spin, Kana
226. Carlúcio Spin Berito, Carlúcio
227. Pistola Contra os Paulistas Máximo Fontes, a guarda, Conde
Alberto de Melo, Ciro de São
Cristóvão, Pádua Lopes, Marialva
Guimarães
228. O Tenente e o Comunista Leonardo Mesa, Pancrácio Fortes,
Tenente Odilon, do Antimil, Maria
Parede
229. Ruína de um Cafeicultor Pichorrinha, Pancrácio Fortes
230. Major, Felicidade Branca e Jango, Major, Umbelina, Felicidade
Umbelina Branca
231. Afonsina e Eufrásia Afonsina, Jango, Cláudio Manoel,
Eufrásia
232. Belica e Afonsina Afonsina, Belica, Jeremias
Moncorvino, Zefa, Umbelina, Quindim,
Felicidade Branca, LIndáurea,
Bentinho, Duviges
233. Tom Mix pós-32 Xavier
234. São Paulo Não Pode Parar Melancolia pós-32
Tabela 7: Latifundiários em armas

VI Pro Brasília Fiant Eximia

Cenas Personagens
235. O Arraial Imagens do arraial
236. Romaria Belarmino, os romeiros, o chofer
237. Sirra Mendigos, romeiros, a cabocla, tarde
238. Jogos Caipiras Serraçumanos, o estropiado, caipiras,
beira-corgos, camelôs, ciganos,
fotógrafos

109
239. Maromba Multidão, mulato gordo, Dona
Filomena
240. A Cantiga do Cego Esmoleiro O bêbado, pau d´água, cego
241. Kana na Buick Vermelha Ubaldo, Kana, Conde Alberto de
Melo, Felicidade Branca, D. Candinha
Agripa, Totó Agripa
242. Umbelina Formoso e o Coronel Umbelina Formoso, coronel e
Pichorra
243. Aguinaldo & Palude Padre Aguinaldo, Monsenhor Palude,
Dom Luna
244. Serraçumanos Serraçumanos, sujeito alto, pessoal
na porta do hotel
245. A Missa em Jurema O cego, magricela, Totó, Ubaldo
Junquilho, Seu Ferrol, Dom Luna,
Antônio Agripa, Conde Alberto de
Melo, Zeca, Maria da Graça, Viúva
Junquilho, Ubaldo Junquilho, Seu
Albano, Dom Luna
246. Canaã e Cananéia Monsenhor Palude, Beira-Corgos
247. Anjo Leite, Monsenhor Anjo Leite, Rosalina
248. Salim Abara, Miguelona Salim, Roslaina, Anjo Leite
249. Igreja Perdeu o Operário Anjo Leite, Rosalina, Dom Luna,
Monsenhor Palude
250. Uma Festa Pagã Umbelina, Dona Guiomar Junquilho,
Monsenhor Palude, Conde Alberto de
Melo, Viúva Junquilho, Felicidade
Branca, velhos reverentes
251. Deixe o Samba Serenar Padre Aguinaldo, Dona Josefina
Abramonte, Senhora prefeita, Dona
Conceição, Coronel Merelão,
Venâncio, Nicolau Abramonte
252. Miguelona Senofim e a família de Miguelona Senofim, Miranda, John
porta de tinturaria Gilbert, Major, Idílio, Pedrão,
Miguelona
253. Congada Carlos Magno, mulato violeiro
254. Dom Luna Monsenhor Palude, Padre Beato,
Vigário, mulata dengosa, Conde
Alberto de Melo, Maria da Graça,
Xodó, Pichorra, médico sanitarista,
senhora do juiz, um japonês
255. Agora é um Bom Jesus Pichorra, Xodó, Umbelina
256. Bom Jesus Flagelado Os pobres, Tita Deadermino
257. Kana Parecia Buda Conde Alberto de Melo, Condessa,
Felicidade Branca, Dom Luna,
Umbelina, coronel Formoso
258. Ludovica e seu Canto D. Ludovica, Lírio de Piratininga, Dom
Luna, Dona Filomena Abramonte,
Padre José Beato, Moço de capa
(Mesa), homens do campo
Tabela 8: Pro Brasília Fiant Eximia

110
Chão, Marco Zero II

I – Reina Paz no Latifúndio

Cenas Personagens
259. Uma Cena de Moscovão Idílio Moscovão, Jorge Abara,
Brandão, Diogo, José Teodósio,
Xavier, Paco Alvaredo, tio pobre dos
Junquilho, Dona Guiomar, Dona
Paula, Hortênsia, Filho de Salim,
Ciana, Major Formoso, Pedrão,
Lucinda e Anastácia
260. Trincheiras Paulistas Nagib Abara, Jorge Abara, Lírio, Dona
Guiomar Junquilho, Robério Spin,
Rosalina, Maria Aeroplano, Conde
Alberto de Melo, Juca, Coronel Diogo
Leitão
261. Alberto de Saxe e Dinamérico Major da Formosa, Alberto de Saxe,
Klag Dinamérico Klag, Ciro de São
Cristóvão, Miss Helen de Fialho
Almeida, Eufrásia Beato, Maria
Moncorvino
262. O Beco do Escarro Major, Anjo Leite, Pedrão, Miguelona
Senofim, Velosa, Seu Ferrol, Os
Agripa, Minervina Veloso, Lírio, Dona
Filomena, Conde Alberto, Felícia
Benjamin, Afonsina
263. Felícia Benjamin, Jango e Carlos Benjamin, Dona Felicidade
Afonsina Branca, Minervina Veloso, Afonsina,
Dona Vitória, Belica, Dinamérico Klag,
Veloso (noiva de Lírio)
264. Major, Eufrásia, Jango Major, Afonsina, Felícia Benjamin
265. Tudo Hipotecado: Aguarda-se Jango, fazendeiro, velho Nunes, Ciro,
Reajustamento de Vargas Nicolau Abramonte
266. Dona Guiomar e o Tio Bento Maria da Graça, Tio Bento, Guiomar
Junquilho, Rosalina
267. Alberto de Saxe Pagou Umbelina, o Major, Bento Formoso
268. Reina Paz no Latifúndio D. Anastácia Pupper, Capitão
Cordeiro
269. Kana na Fazenda Felicidade Branca, Maria Luíza,
Conde Alberto de Melo, Capitão
Bruno Cordeiro, Abílio Mourão, Carlos
de Jaert, Kana, Xodó
270. Kana é Elogiado Barão do Cerrado, Nhonhô Gaita,
Jango, Carlos de Jaert
271. Cláudio Manoel, Quindim Cláudio Manoel, Quindim

111
272. Anastácia Pupper na Anica Anastácia Pupper, Conde Alberto de
Melo, Idílio Moscovão, Babá
273. Jaert e São Cristovão Jack de São Cristóvão, Carlos de
Jaert, Barão do Cerrado, Nhonhô
Gaita
274. As Nádegas de Anastácia Conde, Anastácia Pupper
275. Ela Dorme de Touca Miguelona, Jango, Leonardo Mesa,
Salim Abara, Índio Cristo, Maria
Pedrão
276. O Rancho de Miguelona e o Antônio Cristo
Eldorado Miguelona
Vesguinha
Armida Spin
277. O Drama de Formosa Jango, os Agripa, Os Saxe,
Abramonte, Salim Abara
278. O Sertão, o Mar, o Trem, a O médico de Bartira, sertanejo negro,
Cidade criança moribunda
Tabela 9: Reina paz no latifúndio

II- O Solo das Catacumbas

Cenas Personagens
279. O Capital e o Trabalho Maria Parede, Felícia Benjamin
280. Que governo é esse? Olivério Rusco, Maria Parede, Felícia
Benjamin
281. O Brasil Cheio de Comunismo e Leonardo Mesa
Espiritismo Jácopo Frelin

282. Crianças Proletárias Felícia Benjamin


283. A História Entrando Pelas Jácopo Frelin, Dona Idalina, Gottlieb
Paredes Plaumburn
284. O Homem de Capa & A Felícia Benjamin, Frelin, Leonardo
Repressão Mesa, Zico Venâncio, Gottlieb, Irmo
Frelin, Maria Parede, Felícia
285. Mesa na Prisão Leonardo, Frelin, Felícia
286. O Operário Ventura e Lírio Ventura, mulher de Ventura e Lírio
287. Paco Alvaredo e Mesa Leonardo Mesa, Paco Alvaredo,
Pancrácio Fortes
288. O Major e a Umbelina Major Dinamérico Klag, Umbelina,
Amadeu Argelin, Maria Gomes, Preto
Polidoro
289. A Hidra-Povo Sirra, Major, Umbelina, Eufrásia
290. Os Maiores Advogados do Brasil Eufrásia e Major
291. Eufrásia, Jango Totó Agripa, Benzedeira
292. Jango & Mikael Jango, Mikael
293. Coronel Bento Formoso e Pancrácio Fortes, Coronel Bento
Pancrácio Formoso, Dulcina, Edwiges, Belica
Tabela 10: O solo das catacumbas

112
III- O Decapitador

Cenas Personagens
294. Jango é Comunista O Major, Umbelina, Dom Luna
295. Bordel em São Paulo Lírio, Marialva, Coronel Laraxa
296. Lírio na Capital Marialva, Lírio, Lindáurea
297. Boate do Partido Marialva, Pádua Lopes
Constitucionalista
298. Os Abramonte D. Filomena, Vitalino, Ludovica,
Fúlvia, Esmeralda
299. Vitalino Fúlvia, Felicidade Branca, D.
Filomena
300. Decapitando os Formoso Felicidade Branca
301. A Voz do Deus Dinheiro Vitalino, Felicidade Branca, Totó
Agripa
302. A Morte Econômica Coronel Bento Formoso, Umbelina,
Pancrácio Fortes, Felicidade Branca
303. Vitalino e Felicidade Branca Vitalino, Felicidade
304. Morto de Fome Nicolau Abramonte, Bento Formoso
305. Na Penitenciária ou no Araçá Jango, Vitalino, Nicolauzinho
306. Se Não Fosse 32 Dinamérico Klag, Abramonte, Major,
Vitalino
307. Com Cristo e Contra Jango Major, Vitalino, Nicolauzinho
308. Jango e a Prostituta Jango, Leonardo
309. Major & Monsenhor Coronel Bento Formoso, Umbelina,
Monsenhor Palude
310. Razões do Comunismo Bento Formoso, Vitalino, Jango
311. Umbelina e o Velho Umbelina, Bentinho
312. Jogando no Bicho Umbelina, Jango, Felicidade Branca,
senhor comissário, Maria Aeroplano,
Conde Alberto de Melo
313. Maria Aeroplano Maria Aeroplano, Negra Velha
314. Xodó e Pichorra Pichorra, Maria Luiza, Dulcina, Babá,
Xodó
315. Tiros & Estrelas Jango, Capitão Cordeiro
316. Kana e o Babá Kana, Conde Alberto
Tabela 11: O decapitador

IV O Tapete dos Terreiros

Cenas Personagens
317. Brejal desde 30 Totó Agripa
Totó Agripa, Dona Cândida Calheiros

113
da Graça, Dr. Carlos Furquim,
Monsenhor Arquelau
318. Xodó e Cláudio Manoel Xodó, Cláudio Manoel
319. Entre a Lavoura e a Política Anastácia Pupper, Totó Agripa,
Nhonhô Gaita, Luiz Pereira Barreto,
Os Pádua
320. Queixas para Vargas Totó
321. Cozinhando na Formosa Maria Aeroplano
322. O Baile Joanico
323. Sexo para Sexo Cidinha Agripa, Dona Candinha,
Xodó, Latife Abara, Mary Ferguson,
Henrique de Barros Ferguson, Ubaldo
Junquilho
324. Música no Brejal Major Dinamérico Klag, Totó Agripa,
Robério Spin, Ana Tolstói, Dona
Candinha, Otávio, Carlito, Tolosa
325. Jango e Maria Aeroplano Jango, Quindim, Dulcina, Edwiges,
Afonsina, Felícia Frelin.
326. Jango e Eufrásia João Lucas, Eufrásia Beato, Vitalino,
Leonardo Mesa, Camarada Rioja,
Nazareno
327. Belica, Marocas e Tudinha Coronel Bento Formoso, Tudinha,
Umbelina, Marocas, Monsenhor
Arquelau, Doutor Celestino, Dulcina,
Lírio, Miss Pichorra, Dulcina Formoso,
Pancrácio, Xodó
328. Catacumbas Líricas Jango, Quindim, Anastácia Pupper,
Cláudio Manoel, Carlos de Jaert,
Pedro de Saxe, Sabóia do Carmo.
329. Xodó e Nazareno Xodó, Nazareno, Maria Luíza
330. Muraoka e o Perigo Amarelo Lírio, Maria Aeroplano, Dr. Marialva
331. Quindim Quindim, Dráusio, Cláudio Manoel,
Dulcina, Maria Parede
332. Brasil com Japonês Jango, Calheiros da Graça, Carmo,
Agripa
333. Jango, Pancrácio e Abara Jango, condessa Léontine Bourrichon,
Jack de São Cristóvão, Major da
Formosa, Monsenhor Arquelau,
Monsenhor Moreira
334. Sobre a Antropofagia Jaert e Jack
335. O Conde Conde Alberto de Melo, Léontine
Bourrichon, Leiras, Licórnea, Aurora
336. Os Caboclos Descerão Sobre a Jack, Plínio Salgado, Léontine,
Cidade Monsenhor Arquelau
337. Antropofagia rediscutida Major, Monsenhor Moreira, Jack,
Chiquito, Henrique Ferguson, Ciro,
Pádua Lopes, Monsenhor Arquelau,
Cláudio Manoel, Sabóia do Carmo,
Maria Parede, Rioja, Pedro de Saxe,

114
Professor Mosteiro, Quindim, Carlos
de Jaert
338. Diálogos Católicos Sílvio Lapa, Vitalino, Nicolau
Abramonte, Nicolauzinho, Monsenhor
Arquelau Moreira, José Beato, Vigário
de Jurema
339. José Beato José Beato, Maria da Graça, Ubaldo,
Dona Guiomar
340. Maria da Graça Dona Guiomar, Maria da Graça,
Custódia
341. Ubaldo, Xodó, Sílvio Lapa Ubaldo, Chiquinho Fedegoso, Sílvio
Lapa, Dona Guiomar Junquilho, Mário
Ferguson
342. Kana e os integralistas Kana, Carlos Benjamin, Miguel
Riskalá, Jack, Dr. Sabóia, Calheiros
da Graça, Ana Tolstoi, Carlos de
Jaert, Guano, o pintor, Aurora Boreal,
Maria Parede
343. A Luta Hoje Ubaldo, Lírio, Ventura, Ferroviário,
Babá, Zico Venâncio, Sílvio Lapa,
Jango e Mesa
Tabela 12: O tapete dos terreiros

V—Somos um Eldorado Fracassado

Cenas Personagens
344. Somos um Eldorado Fracassado Tina Paixão, Marialva Guimarães,
Joaquim Leiras do Nascimento
345. Debates Mundiais Jango, Aurora Boreal, Eufrásia,
Ladislau, Jack, Guano, Ana Tolstói,
Dr. Sabóia, Carlos de Jaert
346. Picasso de Jack Jack, Ana
347. O Tiro de Ana Tolstói Jack, Ana Tolstoi, Calheiros
348. Vida Sexual de Jango Jango, Eufrásia, Aurora Boreal
349. Jango Eufrásia no Rio, Rosalina, Genuca,
Neco, Zefa
350. Cidade Mais Bela Rodrigues, Genuca, Os Frelin, Dr.
Patrocínio, Felícia Benjamin, Dona
Idalina, Primo Carnera
351. Felícia e Leonardo Paco Alvaredo, Felícia, Leonardo
Mesa, velho Frelin, Pedro de Saxe,
Jango
352. Zico, Boxeador Carmela, Zico, Leonardo Mesa, Dona
Idalina
353. Pedro de Saxe e a Palestra Pancrácio Fortes, Atílio Rusco, Maria
Parede, Leonardo Mesa, Carmo

115
Agripa, Ana Tolstói, Silva Calheiros,
Dona Paula, Xavier, Pedro de Saxe
354.Partido de 1930 a 34 Mikael, Lírio, Maria Parede, Leonardo
Mesa, Jeremias Moncorvino, Mateus
Beato, Lindáurea
355. Mikael e Outros Um negro doente, Mikael, Tio Luzio
356. Mikael de Novo Mikael, Lucinda, Zefa, John Gilbert,
Gigiba, Miss Pichorra, Pancrácio
Fortes, Dulcina, Xodó, Nazareno
357. Pancrácio e Maria Aeroplano Pancrácio, Maria, Jango, Índio Cristo,
Miguelona, Mulato Silvestre, Maria
Pedrão, Nhá Tuca
Tabela 13: Somos um eldorado fracassado

i
O propósito deste livro é desvelar algumas verdades que nos são apresentadas sob o disfarce de
figuras religiosas e mitológicas, mediante a reunião de uma multiplicidade de exemplos não muito
difíceis, permitindo que o sentido antigo se torne patente por si mesmo. Os velhos mestres sabiam do
que falavam. Uma vez que tenhamos reaprendido sua linguagem simbólica, basta apenas o talento
de um organizador de antologias para permitir que o seu ensinamento seja ouvido. Mas é preciso,
antes de tudo, aprender a gramática dos símbolos e, como chave para esse mistério, não conheço
um instrumento moderno que supere a psicanálise (CAMPBELL, 2007, p. 11).
ii
―I have moved on to other things since I wrote this book (…). Even more decisively, my recent work
has been less oriented towards literary narrative than to narrative in such diverse domains as
anthropology, visual art, and the critique of scholarship. And then, of course, there was the problem of
all the newer work on narratology I had not know when I first wrote it‖. ―Eu me envolvi com outras
coisas desde que escrevi esse livro (...). Ainda mais decisivamente, meu trabalho recente tem sido
menos orientado para as narrativas literárias do que para outros domínios diversos tais como a
antropologia, artes visuais e a crítica das leituras acadêmicas. E então, claro que existe o problema
de todos os novos trabalhos em narratologia que eu não conhecia quando escrevi meu livro.
(Tradução de Lúcio do E. E. S. Júnior). (BAL, 1997, p. 12).
iii
Na segunda edição do seu livro, Bal alterou a ordem dessas categorias. Na primeira edição, a
seqüência é: elementos da fábula, aspectos da história e palavras. Na segunda edição, a
pesquisadora optou pelo seguinte ordenamento: palavras, história e elementos da fábula (BAL,
1997, pp. 16, 75, 178).
iv
Concordamos nesse ponto com a análise de Marco Zero realizada por Antônio Celso Ferreira:
―Nesta interpretação de Marco Zero, o balanço de seu significado literário não segue as mesmas
trilhas apontadas pelos estudiosos que o julgam como trabalho de menor importância no conjunto da
obra de Oswald. (FERREIRA, 1996, p. 16).
v
Haroldo deu a tônica em que Marco Zero seria tratado pelos concretistas: ―o esforço para o mural
social...o corte simultaneísta e o ouvido pronto a captar as nuances do colóquio mais arrevesado (...).
Um retrocesso qualitativo, sem dúvida‖ (CAMPOS, 1984, p. 55-59).

vi
Cf. Vitor Manuel de Aguiar e Silva, A estrutura do romance, Coimbra, Almedina, 1974, p.30. V. M.
Aguiar e Silva observa a este respeito: ―Algumas vezes, o herói é facilmente identificável logo pelo
título da obra: Werther, Lucien Leuven, Ana Paula. Com freqüência, o narrador apresenta o herói nas

116
primeiras páginas do romance, designando-o explicitamente, por vezes, como o herói de sua obra.
Assim, nas Aventuras de Camilo Fernandes Enxertado, Camilo apresenta e retrata o protagonista
logo na abertura da narrativa, dando ao capítulo I o seguinte título: Nasce o herói. A cabeça e as
espertezas do mesmo.‖ (AGUIAR e SILVA, 1974, p. 30).
vii
A piada é a seguinte: um português estava passando o domingo em Niterói, quando um sujeito
nervoso o abordou e disse: ―Olhe, seu Manuel, eu estou chegando do Rio, sua casa na Rua da
Assembléia está pegando fogo e sua mulher morreu‖. O português foi correndo para a estação
marítima, saltou na primeira barca que ia saindo. Quando ia em meio da baía, deu uma risada... ―Ora,
iessa é boa! Pois eu não me chamo Manuel, não sou casado e nem tenho casa.‖ (ANDRADE,
1991, p. 173).
viii
Cf. Mieke Bal: ―Nem toda oração em um texto narrativo pode ser chamada 'narrativa' (...). Em
alguns casos vale a pena analisar a alternância entre narrativa e comentários não-narrativos.
Freqüentemente, são em tais comentários que são feitas declarações ideológicas. Isso não quer dizer
que o resto da narrativa é 'inocente' de ideologia, pelo contrário. A razão por examinar estas
alternações é precisamente medir a diferença entre a ideologia evidente no texto, como declarado
neste comentário, e sua mais escondia ou naturalizada ideologia, como encarnada nas
representações narrativas‖ (BAL, 2001, p. 31).
ix
―Aí está o segredo provável dos seus êxitos e a explicação dos seus desfalecimentos no terreno da
ficção: sempre que acertava o tom na craveira do sarcasmo, da ironia ou da sátira, é como se ligasse
a corrente salvadora que comunica à sua escrita um frêmito diferente; quando desafina naquele tom,
ou escreve a sério, a tensão baixa e, a despeito dele usar os mesmos processos de composição, o
texto parece sufocado pela herança retórica decadentista (trilogia) ou naturalista (Marco Zero)‖.
(CANDIDO, 1977, p. 53).
x
De 1937 para cá rumou o País para os moldes necessários às suas íntimas transformações. O
Estado Novo colocou o Brasil na marcha da história contemporânea (ANDRADE, 1984, p.4).
xi
A referência direta aos pobres na obra de Oswald de Andrade aflorou com maior evidência na
discussão da relação posse-propriedade. Assim acontecera na Revista de Antropofagia, quando se
falou dos elementos marginais da sociedade, e em Revolução Melancólica de forma ampliada,
sobretudo no primeiro capítulo (...). No primeiro capítulo _ ―A posse contra a propriedade‖ _ de A
Revolução Melancólica a narrativa foi montada a partir da idéia estrutural do pensamento de Oswald:
a eliminação da propriedade e a instituição da posse. A camada da sociedade economicamente
menos afortunada foi manuseada para articular os fios da matéria ficcional e ajudar a descrever as
peculiaridades do Capitalismo transplantado para o Brasil. Estava em jogo, na passagem em
questão, a disputa entre aqueles que falsificaram o título de propriedade (―essas terras que o Majó diz
que é dele mas non é‖) e os posseiros e colonos que queriam a terra para produzir (―os disputadores
da terra contra os senhores que tinham o papel selado com o selo do império‖) (BOAVENTURA,
1983, p. 133).
xii
Citamos novamente Boaventura a respeito: [Oswald continuou] na trilha das manifestações da
Vanguarda estética, de renovação da linguagem e os processos de transgressão da dinâmica
constitutiva da obra de arte. O trabalho com a linguagem (por exemplo, a prática da colagem, da
citação, o recurso à paródia, ao cômico e ao trocadilho) particularmente desmistificou o conceito de
propriedade da tradição cultural, ao tratá-la como uma brincadeira, melhor dizendo, como um jogo. A
anarquia brincalhona do lúdico serviu de meio de divulgação por excelência de suas novas idéias e
de instrumento de discussão da relação posse-propriedade. Na fase histórica do Modernismo essa
crítica emergiu no plano conceitual, muito de passagem em trechos da Revista de Antropofagia (―O
Brasil é um grilo de seis milhões de km quadrados talhados.../A posse contra a propriedade‖);
informalmente, no corpo da revista o assunto voltou à baila por meio de aforismas ou através de
citações do tipo: ―A nossa teoria da posse contra a propriedade. O contato com o título morto. O
grilo.‖ (BOAVENTURA, 1983, p. 130).

117
xiii
Ao lado do pobre do interior do ‗fim de linha e fim de mundo‘, Oswald utilizou-se de um elenco
diversificado na galeria menos beneficiada da sociedade _ o colono imigrante, o índio em decadência,
o velho abandonado, a mulher, o operário urbano _ a fim de engrossar o enredo. O posseiro,
propositadamente abandonado, sem condições de administrar sequer a sua colheita (Elesbão) foi
também pinçado por Oswald de Andrade com o objetivo de exemplificar as consequências da
exploração organizada da burguesia (―Tudo às ordens do imperialismo estrangeiro‖). Por sinal, foi
novidade na sua obra de ficção o interesse pelo mundo rural, Marco Zero, fundamentalmente o
primeiro volume, supriu essa lacuna alternando uma panorâmica dos costumes e ambientes daquele
universo com o mundo urbano; trouxe a curiosidade pelo interior, o que, aliás, foi a tônica dominante
nos ensaios da década de 40. Apesar do capítulo em questão servir de pretexto para introduzir o
tema do livro_a burguesia paulista e suas insurreições_nos meandros da narrativa maior armou-se
uma outra estória: a da relação de dominação mantida pelo sistema patriarcal e pelo seu sustentáculo
mor _ a propriedade (―O Majó tem chão demais e não aproveita. E inda qué tira tudo dos possero‖).
Enriqueceu portanto a trama da narrativa abordando assunto considerado detonador de todas as
animosidades e desajustes sociais (BOAVENTURA, 1983, p. 132-133).
xiv
Além da fusão palavra-imagem cinematográfica, em Marco Zero, Oswald tencionou realizar mais
uma experiência: a exploração da plástica na literatura para compor um mural, mosaico ou afresco.
As ligações do escritor com o mundo da pintura e da escultura já eram antigas, e acentuaram-se na
década de 30 e início da seguinte. Nos romances dessa fase, Oswald interessou-se pela pintura
mural, um pouco de Portinari, e muito dos mexicanos David A. Siqueiros e Diego Rivera. As
referências ao muralismo são explícitas nas temáticas, no colorido das cenas pintadas, na
justaposição e no enquadramento das figuras, no próprio debate estético sobre as escolas e o papel
político dos artistas, empreendido por dois personagens – Jack de São Cristóvão e Carlos de Jaert.
Pensava o escritor que a pintura monumental, coletivista e herdeira do mosaico estava em compasso
com a subida das massas ao palco da história. Ao sair dos museus e dos ateliês em direção à rua,
essa arte social recuperaria a dinâmica dos povos, das classes e das culturas. Simultânea, assim
como o cinema, ela poderia contrapor signos e imagens, construir e demolir, criar conceitos. A
experiência do muralismo mexicano relacionou-se intimamente com a vaga revolucionária que, ao
irromper naquele país no início do século, abriu espaço para os artistas defenderem a proposta de
uma arte a serviço da criação do homem novo, livre e responsável por seu destino. (...) No Brasil,
Marco Zero significou uma de suas eloqüentes expressões (FERREIRA, 1991, p. 6).
xv
Marco Zero pretendia desenhar um mural sobre a decadência da burguesia paulista. Esse primeiro
volume reconstituiu a queda do latifúndio agrário que produziu como última conseqüência a Guerra
Santa do Café – a revolução de 32 e o nascimento dos elementos novos da sociedade. O autor
explicou a escolha do título como decorrente da imensa melancolia surgida depois da derrota dos
latifundiários. E sustentou a tese de que, a partir de 32, despontou a possibilidade de um mundo
novo, embora à custa de muita luta (BOAVENTURA, 1995, p. 209).
xvi
Além disso (debates sobre o papel do Estado) colocou em quarentena o vigor das teorias estéticas
renovadoras da década de 20 e as reivindicações mais ousadas de caráter geral. Mesmo pensando
no seu teatro, já que o romance Serafim Ponte Grande, embora publicado em 1933, foi inteiramente
concebido quase dez anos antes. Inclusive a proposta, esboçada na Antropofagia, de reivindicação
da posse contra a propriedade foi suspensa até os anos 40, quando a retomou nos ensaios de
Filosofia, nas famosas teses universitárias e, de modo muito irreverente, no volume de A Revolução
Melancólica do Marco Zero (BOAVENTURA, 1984, p. 4).

118

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