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Um barco é a btfu'rcaçâo
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que o mar inventa
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Luiza Neto Iorge
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Sim. Conheço as palavras. Tenho um vocabulário próprio. O
que sofri, o que vim a saber com muito esforço, fez inchar, rolar
umas sobre as outras as palavras. As palavras são seixos que rolo
na boca antes de as soltar. São pesadas e caem. São o contrário dos
pássaros, embora “pássaro” seja uma das palavras. A minha vida
passou para o dicionário que sou. A vida não interessa. Alguém
que me procure tem de começar - e de se ñcar - pelas palavras.
Através das várias relações de vizinhança, entre elas estabelecidas
no poema, talvez venha a saber alguma coisa. Até não saber nada,
como eu não sei. [Belo, 1984: 18o]
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dita" e no ensaio, sendo que este último auto-limita o seu peso. a
sua obscuridade. em função de um tipo de destinação que não
se liberta completamente da contemporaneidade, isto é, que
intlecte as palavras para uma maior leveza, que é também uma
maior legibilidade.
Tal como a poesia, o ensaio é pois questão de assinatura e
de contra-assinatura. Há no entanto uma diferença essencial no
modo de estas se darem em cada um dos tipos de escrita: à voz
múltipla do poeta no poema e do poema no poeta, corresponde
no ensaio aquilo a que habitualmente se chama uma “voz pessoalÍ
e que é uma voz em que a descentração se torna visível sem nunca
se chegar à perda de um efeito de centro, sem nunca se chegar ao
ponto em que as relações de vizinhança das palavras se estabelecem
de tal modo que o seu “ordenador” desaparece, de1x'a de ser ele
a saber. É esta característica que define o estatuto mediador do
ensaio, e o situa, como “subjectividade de um não-sujeito”, no
campo das relações intersubjectivas, precisamente como impulso
de desñxação das relações sujeito-objecto, força anti~identitária
ou combate à opinião.
Desde Montaigne que se deu o nome de ensaio a um tipo
de composição discursiva construída sobretudo pela justaposição
ou coordenação de elementos em vez da sua subordinação. Isso
signiñca que nele os conceitos não têm valor em si mas, como
diz Adorno, “segundo a sua conñguração em relação a outrosÍ
segundo a sua articulação que determina um “campo de forças”
[Ad0rn0, 1984: 5-31]. Este privilegiar das relações de vizinhança
corresponde a uma disponibilidade e uma atenção ao outro que
não é limitada pela ordem temporaL mas, pelo contrário, tende
mesmo a ignorá~la e a percorrer a história sem métod0, em função
de añnidades e movimentos de deriva. Por isso o ensaio parece ser
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o genero por excelenaa da herança,da aproprlaçao 1ntelectual.
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O nascimento do ensaio corresponde precisamente a uma
organização de vízinhanças, uma vez que Les Essais de Montaigne
procede a uma longa digressão pelo passado, transcrevendo frases e
reflexões que são examinadas e integradas no corpo do novo texto.
As citações são deslocadas de um contexto para outro, alterando~
se nesse movimento quer 0 ponto de partida quer o de chegada,
uma vez que citar é sempre assinalar uma perda de contexto, uma
ausência do passado como um todo disponíveL e interromper
aquilo que seria o contexto actual. Sendo esse o processo da
herança no campo do pensament0, no qual a acumulação não tem
a mesma importância que no campo do conhecimento, o modo
de citar não deixou de levantar problemas.
No ensaio O Amigo, vol.I, Ensaio VII, Coleridge constata
que “sería prova da cegueira da parcialidade negar que os nossos
escritores, até Jeremy Taylor, citavam em excessdl e que, se isso
teria conduzido no passado a uma “pedanteria aforísticãí na sua
época o evitar das citações estava a tornar-se no inverso [Coleridge,
2002]. Daí que tenha feito preceder cada ensaio por uma epígrafe
bastante ampla na qual se tratava da questão príncípal daquele,
sendo a escolha dessas epígrafes feita com base na preferência
dada, em caso de igual pertinência, a obras que o leitor teria menos
probabilidades de conhecer. É não só a ideia de transposição de
um contexto para outro que aqui toma importância, mas também
a da necessidade de retirar do esquecimento aquelas obras que
a própría orientação da história vai deixando soterradas sob as
ruínas do progresso.
A questão que o referido ensaío de Coleridge trata é a da
relação entre escrita e leitura. Procura responder à pergunta que
vem do “Ensaio VI”: será possível que aquilo que se escreve não
seja completamente deturpado? Que a seriedade espiritual não
seja convertida em pretexto de diversão? Ou, ao contrário, que esta
passe por aquela, uma vez que os diseurs-de-vérité estão por todo
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o lado, desde a bisbilhotice doméstica aos fazedores de opinião
de revistas e jornais? As epígrafes seleccionadas mostram como o
problema é antigo, e como, de fact0, tudo pode ser tomado num
sentido ou noutro, não sendo isso justiñcação para uma atitude
niilista. Elas apresentam o discurso como um Pharmakon: se é
através dele que de forma invisível se envenenam os espíritos,
também de forma invisível se podem curar. Se se escreve é porque
se admite que a escrita tem efeitos (sejam eles quais forem), se se
escreve e publica é porque se deseja que esses efeitos ultrapassem
o círculo individual. A questão do direito que cada um tem a
escrever, e da possibilidade que tem de ser compreendido, está
então na sua motivação. Esta deve conter o grau de conñança
suñciente para lhe permitir desenvolver o esforço, afrontar os
perigos, as errâncias e as agressões que o acto de pensar implica
ou a que pode dar lugar.
Para Coleridge, o ensaio exige tenacidade e coragem, quer
se trate de um tipo de ensaio em que se exige o desenvolvimento
rigoroso de um problema, quer do ensaio em que o fundamental
é a avaliação do que circula com uma certa autoridade, quer do
ensaio em que aquílo que se expõe está ainda em ajuizamento
(adhuc sub lite). Se assím se proceder, em qualquer dos casos,
a possibilidade do efeito positivo prevalece, porque a própria
linguagem do ensaio selecciona os seus leitores. A sua vocação
mediadora nunca se medirá, como é óbvi0, pela estatística das
recepções, pois ela não se confunde com divulgação ou diversão,
e nada tem a ver com as leis dos grandes nu'meros: não tem outra
medida senão a da experiência que é e ao ser desencadeia. É uma
experiência sempre secreta, que não pode ser avaliada do exteri0r,
ou melhor, que em rigor não é avaliáveL pois os seus efeitos, como
os da literatura e de todo o pensamento, nào são visíveis naquilo
que parece assinalá-los - as escolas ou correntes, os discípulos, a
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mmñwm das origens c dos acabamcntos: obra da irrupçào da
wuagem c da sua génesc. donde que náo haja doravante
sua üwofar que nâu seja tkito da atenção extrema ao carácter
úmpton da linguagem na estabilidade do sujeito"
ídex 199+- 291]. Q ensmo putilha assim com outros tipos de
ànmo um lugu dc rasgào da ideologia, através do qual se abre
a pmbúmd"'ade de reconcnl'iaça'o do mundo consigo mesmo. com
o Sül mnn'“ito, com a natureza, que não é 0 outro da aparência,
lnn a torça' da ap'an'ção.
A d1mcnsa"o de negatividade, que Adomo atribui ao ensaio,
e que o lcva a considerar que a sua lei formal mais profunda é a
hnesxa,' dá-o a ver como um jogo que ilumina a cegueira que há
ms obyecms' a que se refere, e que toma manifesto o não~idêntico,
abalando dessc modo a pretensão da cultura à unidade. Ora,
cnnosamen'te, Adomo considera que há uma “astúcia do ensaio,
pc cons¡stz' em apoiar-se nos textos como se eles estivessem
W muito sun'plesmente, com a sua auton'dade. Assim. sem
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