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A CATÁSTROFE EM ―NÃO PASSARÁS O JORDÃO‖,

DE LUIZ FERNANDO EMEDIATO

Tânia Sarmento-Pantoja – UFPA 1

Resumo: Pretendo apresentar algumas reflexões acerca das características do


testemunho, em particular, as noções de colapso e irrepresentabilidade nele
implicados, que costumam estar presentes na chamada narrativa da catástrofe,
considerando alguns efeitos estéticos muito presentes nessa forma narrativa,
como o insólito, o abjeto, o grotesco e o sublime. A análise contempla mais
especialmente as manifestações do insólito associado ao abjeto em ―Não passarás
o Jordão‖ de Luiz Fernando Emediato.
Palavras-Chave: Testemunho. Catástrofe. Luiz Fernando Emediato.

I
Não passarás o Jordão
O livro Verdes Anos de Luiz Fernando Emediato é uma obra que
quebra regras no que concerne às formas literárias, uma vez que enquanto
narrativa se funda no intervalo entre o romance e a antologia de contos.
Trata-se de uma produção constituída em duas partes: Parte I - O LADO
DE DENTRO, consiste em ser formado pelos seguintes contos – que
também podem ser tranquilamente entendidos como capítulos de um
romance: O outro lado do paraíso, Cândida, Also Sprach Zarathustro, O
Deserto da Primavera e Verdes Anos. E compondo a parte II, O LADO
DE FORA, estão respectivamente A data Magna do Nosso Calendário
Cívico e Não Passarás o Jordão. Cada uma dessas sequências pode ser
lida individualmente, sem provocar nenhuma perturbação ao todo
romanesco, mas também se lermos o conjunto delas como romance,
podemos vislumbrar as correlações entre as duas partes. Assim, em
primeiro contato com o livro, o leitor irá se deparar com uma sensação de

1
UFPA – Universidade Federal do Pará. Programa de Pós-Graduação em
Letras/Instituto de Letras e Comunicação. Belém, Pará, Brasil, CEP 66075-
110. nicama@ufpa.br

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estranhamento, devido às oscilações entre conto e romance ou a mistura
de ambos.
Para os limites da análise que aqui proponho foi escolhido o
capítulo-conto (opto por tratar as sequências como capítulos-contos) Não
passarás o Jordão, cuja narrativa contém o relato das torturas sofridas em
cativeiro pela personagem Claudia, uma jovem estudante de vinte e dois
anos, que ao final da narrativa sabemos ter sido sequestrada, interrogada,
humilhada, torturada e violentada (não exatamente nesta ordem). A
narração alterna entre o discurso de Claudia (a vítima), o dos
sequestradores, na verdade policiais a serviço do governo, e mais o de um
narrador em terceira pessoa. Todos assumindo a função de narradores, em
distintos trechos da narrativa. Assim, podemos acompanhar o nojo, o
desespero e o sofrimento de Claudia a partir da perspectiva contada por
ela e também o deleite dos policiais, a partir da perspectiva deles, na
medida em que a torturam e a violentam sexualmente. Bem como os
comentários do narrador em terceira pessoa.
O diálogo entre ficção e historia é bem urdido e não deixa
dúvidas quanto ao fato de que o sequestro de Claudia se dá no contexto
da repressão imposta pela ditadura civil-militar instaurada no Brasil, em
1964. Na narrativa, Claudia é sequestrada e os policiais esperam extrair
dela informações. E como forma de conseguirem respostas, aplicam
variadas torturas físicas na jovem, entremeadas por ações que envolvem
abuso sexual.
Em termos de composição estética é possível observar nesse
conto a fruição de vários efeitos que podem ser reconhecidos como sendo
próprios do insólito, do abjeto, do sublime etc, cujas evoluções e
mediações se constituem no relato com vistas não apenas à tematização
da violência, mas para igualmente estabelecer uma série de
problematizações voltadas às estratégias de estruturação do testemunho.
Como se trata de um conto cabe ressaltar que nesse processo a
reelaboração ficcional já é por si mesma uma estratégia vibrante no que
concerne à provocação especulativa acerca desse assunto.
II
A catástrofe em cena

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Ao pensarmos nos traços etimológicos apontados por Seligmann-
Silva (2008, p.8) para o termo catástrofe, observamos a ligação que o
mesmo apresenta com as noções de trauma, choque e violentação.
Vejamos:
―A palavra ―catástrofe‖ vem do grego e significa, literalmente,
―virada para baixo‖ (kata + strophé). Outra tradução possível é o
―desabamento‖, ou ―desastre‖; ou mesmo o hebraico Shoah,
especialmente apto no contexto. A catástrofe é, por definição, um
evento que provoca um trauma, outra palavra grega que quer dizer
―ferimento‖. ―Trauma‖ deriva de uma raiz indo-européia com dois
sentidos: ―friccionar, triturar, perfurar‖; mas também ―suplantar‖,
―passar através‖. Nesta contradição – uma coisa que tritura, que
perfura, mas que, ao mesmo tempo, é o que nos faz suplantá-la, já se
revela, mais uma vez, o paradoxo da experiência catastrófica, que
por isso mesmo não se deixa apanhar por formas mais simples de
narrativa‖.
Catástrofe é ainda ―o que separa um estado de necessidade ou
emergência de uma condição normal (...) o não-lugar da indeterminação
entre anomia e direito‖ (TELES, 2007, p. 103). Trata-se de uma narrativa
que se caracteriza ainda pelo ―caráter indecidível do lugar da exceção,
expresso pela indistinção entre a exceção e a norma‖ que ―coloca-nos a
questão sobre o momento em que a exceção torna-se a própria norma‖
(TELES, 2007, p. 103). De acordo com Oliveira (2008, p.14) o percurso
etimológico do termo catástrofe sinaliza positivamente para a reflexão
acerca do horror e sua representabilidade, pois consegue capturar a
ambiguidade que por essência habita a arte pós-traumática, na medida em
que ―perfura e, simultaneamente, suplanta, mostrando as duas vertentes
presentes em qualquer esforço de articulação daquilo que, sem cessar,
produz furos na malha simbólica‖. Essa representabilidade, por sua vez,
resiste às soluções formais fáceis ou convencionais – lineares e
totalizantes.
No ensaio ―Vozes de crianças‖, Netrosvski (2008), estabelece
que após os primeiros anos da Segunda Guerra Mundial eclodiu uma
nova abordagem da produção literária artística na Europa, em especial na
Alemanha, a chamada literatura de testemunho. Essa produção apreendeu

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os horrores da Shoah e aponta enfaticamente, entre outros aspectos, para
os problemas inerentes à representação da catástrofe.
A partir dessas posições é possível observar que o processo de
apreensão do testemunho ou do teor testemunhal pela ficção se dá nessa
relação entre testemunho e catástrofe. E muito particularmente se faz
pontual naquilo que chamaremos aqui de cena dolorosa, ou seja, os
movimentos narrativos traçados em direção à construção do relato – ou
pelo menos a tentativa de – em que o narrador intenta capturar os
momentos cruciais do estabelecimento da ferida traumática. Essa
tentativa, porém, tem como efeito o estabelecimento de um conjunto de
apreensões voltadas à demanda por mostrar a dor sofrida, tentativa
sempre parcial, porque não consegue dar representabilidade plena a essa
dor, a partir da ferida traumática, aspecto que converge mesmo para as
soluções formais percebidas em narrativas que se voltam a tais
problemáticas. Essas configurações são passíveis de nota no capítulo-
conto de Verdes Anos selecionado para estudo, em que destaco a
narração-focalização fragmentada e distribuída por diferentes narradores,
a estranha inserção no interior da forma romanesca, a apreensão da
articulação fragmentária da linguagem testemunhal em alguns momentos
do relato da protagonista, como nesse que destaco a seguir: ―A porta.
Luz. Dormir. Mesa. Estou sobre a mesa. Comer. Náuseas, vômito. Carne.
Minha carne. Quente, carne, dormir. Comer. Sede. Água, rio. Chuva.‖
(Emediato, 1994, p.202).
Sendo uma das categorias estéticas mais presentes no relato o
abjeto entra na fabulação de Não Passarás o Jordão justamente para dar
conta do esmagamento a que o corpo está sujeito. As ações movidas
contra o corpo são em plenitude abjetas. Pois, como se as dores físicas
não fossem suficientes, a vítima é obrigada a experimentar o horror e o
nojo de si mesma – especialmente pelo contato com excrementos e outras
substâncias que causam algum tipo de repulsa. Alguns fragmentos do
capítulo-conto demonstram bem essa configuração:
―Dentre as beberagens que me obrigavam a ingerir,
espontaneamente ou à força - o que conseguiam entornando-me o
caldo pela boca enquanto me impediam de respirar -, lembrar-me de

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misturas de algo parecido com óleo diesel ou gasolina, fezes urina,
água de esgoto, sangue coagulado, esperma e carne deteriorada.
[...] o qual faziam sorrindo toda vez que eu gritava [...]
[...] como eram eles capazes de sentir desejo quando me
violentavam, agarrando-me o corpo magro e nele penetrando com
toda a brutalidade animal de um desejo nojento e imundo‖
(EMEDIATO, 1984, p.128.)
De qualquer maneira a entrada da cena dolorosa na cadeia
narrativa, marcada pelo agônico e pelo abjeto, impõe ao relato outros
efeitos determinantes da reelaboração do testemunho pela ficção, dentre
os quais destacamos os efeitos de insólito. Segundo Nogueira (2007,
p.69):
―O termo ―insólito‖, numa classificação bem ampla, expressa tudo o
que é desusado, incomum, infrequente, sobrenatural, incerto, raro,
extraordinário, terrível, excepcional, inusitado, extravagante,
excêntrico, não-habitual, esdrúxulo, etc., enfim, o que rompe com ou
frustra as expectativas do senso comum vigente‖.
Ora, se a base do insólito é o inesperado, é o surgimento de um
estado de esgarçamento entre a norma e o tabu. Entre o esperado e um
universo em que todas essas condições são rompidas, suspensas,
invertidas e, portanto, torna-se o território do inesperado. Se o insólito se
faz, enfim, na fronteira entre o sólito e o in-sólito, nesse limite, o que
move esta análise é o papel do insólito quando manifesto em narrativas
ficcionais em que o teor testemunhal está duramente associado à
construção daquilo que chamamos de cena dolorosa em narrativas da
catástrofe, pois em geral, a cena dolorosa, pela presença do abjeto, pelo
rompimento do tabu, pela quebra da norma, pela violentação sofrida pelo
cotidiano e pelo corpo, geram efeitos de insólito.
Se do ponto de vista linguístico essa emergência se dá a partir da
inserção dos signos demarcadores da experiência, como pode ser visto
mais adiante, esteticamente é possível afirmar que a assunção da
destruição física e psíquica, se realiza no plano de movimentos estéticos a
partir da presença do abjeto, do insólito e do sublime. É o que pretendo
demonstrar, a partir de uma análise que envolve considerações a respeito

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dessas categorias e o estudo da narrativa Não Passarás o Jordão, que
avalio como paradigmática em relação às hipóteses aqui apresentadas.

III
A narrativa da catástrofe no intervalo entre testemunho e ficção
Narrativas de testemunho ou com teor testemunhal pautadas no
relato da dor e do sofrimento, ao fazerem isso, constituem a cena
dolorosa como esse território em que a ferida traumática tenta se mostrar
em toda sua reverberação, em toda sua náusea, ainda que mesmo
alcançada pelas reverberações do sublime – prementes na ferida exposta,
nos dejetos mostrados, no sangue derramado, na laceração da carne em
ato na palavra escrita – mas a exatidão das palavras é sempre alcançada
pela falta, por uma espécie de censura, pois por mais objetivo que seja o
relato há sempre algo que escapa à nominação, há sempre uma dor para a
qual nenhuma apalavração é suficiente ou são palavras envergonhadas,
prenhes de gagueira, de curto-circuitos, de desarticulações. É nisso que
reside o inominável do trauma, a sua irrepresentabilidade. Agamben
(2008, p. 43) realça essa falta que há no testemunho, pois avalia ser a
falta a sua marca mais essencial.
Há ainda nessas narrativas a presença de um assombro diante do
horror, do ato inaceitável, da violência desmedida, da dor imensurável, da
sobrevivência julgada injusta. Enfim, de uma série de tabus rompidos.
Assombro que se identifica como uma paralisia – e temos aqui o signo da
suspensão que, palpitante, se faz notar.
Elaborar a cena traumática, inscrita no testemunho, implica trazer
para a narrativa, metarreflexivamente, as indecibilidades sobre como
dizer o trauma. Ginzburg (2001, p.140) assevera que a representação da
cena traumática se faz marcada por processos históricos, na medida em
que recusa a ―possibilidade de volta, a resistência ao reencontro com a
cena traumática‖. Tem-se aí a recusa ao reencontro com o momento de
instauração da ferida, mas não a negação das consequências do trauma.
Porém, ainda que essa característica seja premente no testemunho,
quando se trata da ficção ela pode ser configurada no interior de um
intenso jogo de rememoração-reelaboração. Nesse processo, envolto pelo

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território da ficção o testemunho tende a confrontar a natureza dessa
forma de lidar com a ferida traumática, apostando justamente nesse
reencontro entre a vítima e seu corpo no momento da vitimização. E os
manuseios escriturais podem, contrariamente ou suplementar à
constituição do trauma, tornar narrável de maneira radical e exasperada a
ferida traumática, que comparece parasitária da memória daquele que a
experimentou.
Dessa forma, narrativas como Não Passarás o Jordão, insistem
em elaborar o trauma justamente trazendo a lume essa não-negação
implicada na recusa. Por isso a cena dolorosa. Por isso, o relato que tenta
se constituir como uma rememoração do momento crucial e excruciante
de imposição da ferida traumática à vítima. Mais ainda: por se tratar de
uma narrativa que segue a estrutura do conto, a nucleação da cena
dolorosa torna-se ainda mais favorecida: é o momento de construção do
ferimento físico e psíquico imposto à vítima, é a imolação do corpo e a
trituração da integridade do Ser, experimentadas por Claudia em Não
Passarás o Jordão, que são realmente os grandes protagonistas aqui.
Desse modo, mais do que a dor é o delito dos algozes, prefigurado nas
torturas que machucam e humilham a vítima, o que se coloca em
evidência. Adiante, um fragmento da narrativa ilustra essa percepção:
(...) depositaram-me nua sobre a mesa, fui espancada a socos e
pontapés, chicoteada com uma espécie de chibata de cordas com
glóbulos de meta nas pontas, espezinhada com uma espécie de urtiga
ardente, que me introduziram na boca, no ânus, e na vagina,
atormentada com choques elétricos em todas as partes do corpo,
inclusive as sexuais e excretoras, e ainda estuprada, embora quase
inconsciente, por três homens consecutivamente (Emediato, 1994,
p.228)
Em ensaio sobre a função reparadora e transmissora da narrativa
de testemunho, particularmente as do Leger, Fransiska Louwagie (2006)
observa a reunião de características linguísticas provenientes ora de
espaços públicos, ora dos campos de concentração e essa comunhão entre
diferentes comunidades linguísticas formaria um idioleto próprio.
Segundo Louwagie, além dessa característica outro aspecto que chama
bastante a atenção é a presença de signos de detonação do sofrimento,

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estratégia discursiva que consiste em empregar figuras de substituição
tais como o eufemismo ou a metáfora animalizante, ambos implicados
nos processos de desumanização dos prisioneiros. Segundo Louwagie
(2006, p.57) a emergência desses signos ―revela a existência de uma
concepção de realidade própria dos campos‖. Os termos que vão compor
esse idioleto surgem ―por crença em usos e menções‖ (BIKIALO Apud
LOUWAGIE, 2006, p. 60).
De um lado os prisioneiros utilizam ―termos concentracionistas‖
para descrever os sofrimentos e o lastro agônico deixados pela estadia no
campo de concentração. Por outro lado, ―marcam‖ tais termos a fim de
denunciar como a ideologia nazista está subjacente, o que inclui no uso
destes termos um eco crítico. Nesse sentido, diz Louwagie que a
linguagem testemunhal se aproxima da ironia, pois assim como esta
combina o uso à menção crítica. Nisso reside a instauração de uma
estratégia de resistência ou do ―poder‖ da experiência, no espaço da
linguagem. Sobre essa condição, diz ainda Louwagie: ―La revendication
de sa propre langue par le témoin correspond bien à la doublemission du
témoignage, la réaffirmation du « je » et la défense de la mémoire‖2.
Nesse caso, a recomposição de si serve para constituir os efeitos da
destruição física e psíquica sofridos pelo prisioneiro, possíveis, como já
observei em outro momento do presente trabalho, a partir de uma
formulação estética baseada em sólidos diálogos entre efeitos, dentre os
quais destaco os do insólito e os do abjeto.
Particularmente em relação ao insólito ressalto que,
convencionalmente, sempre esteve associado à definição de alguns
gêneros bastante conhecidos da teoria e da crítica de textos literários. Cito
Flávio Garcia (2008, p.13): ―o Maravilhoso – clássico ou medieval –, o
Fantástico – e seus coetâneos, o Sobrenatural e o Estranho –, o Realismo
Maravilhoso – nomenclatura mais apropriada para o Realismo Mágico ou
Realismo Fantástico – e, mesmo, o Absurdo‖. Nesse sentido, a primeira
fronteira a ser atravessada em direção ao entendimento do insólito

2
Em tradução livre: ―A reivindicação de uma linguagem própria por parte do
testemunho corresponde a sua dupla missão: reafirmar um eu e a defesa da
memória‖.

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perpassa pelo problema da representação objetiva. De acordo ainda com
Batista (2007, p.45):
―Percebem-se na História da Literatura duas orientações
narratológicas bem nítidas: as comumente chamadas narrativas
realista-naturalistas e as não realista-naturalistas. Grosso modo, as
narrativas realista-naturalistas teriam maior comprometimento com a
realidade cotidiana exterior, rejeitando tudo o que possa ferir a
expectativa do leitor. Seria uma ―representação objetiva‖ do já
conhecido. Já as não realistanaturalistas teriam em sua estrutura
elementos cuja função seria romper com o que se acredita ser a
realidade cotidiana exterior, estremecendo as leis do universo
vivenciável pelos leitores reais‖.
Ou por outro lado:
―O insólito representar-se-ia por um conjunto de elementos da
construção da narrativa que marcariam os textos com sua presença
enquanto representação de uma concepção diversa do sólido,
formando um mundo em que as verdades do universo familiar e
previsível dos leitores reais, seres do cotidiano, estariam alteradas‖
(BATISTA, 2007, p.45-46).
A ausência ou omissão do sólido se faz nessa perda das
referências das coisas – elementos identitários, limites do real,
substancialidades, demarcações da experiência, valores.... Estar diante do
insólito pode significar que a existência natural foi invadida por algo
extranatural, por algo que, enfim, transcende, esgarça, desacomoda de
algum modo o universo conhecido, a realidade conhecida, para inserir
aquilo que é objeto do insólito no limite de uma zona de fronteira, que
nem sempre se restringe ao real-irreal. Por isso, o insólito sempre carrega
consigo ―o levantamento de uma questão, de uma premissa nova até
então proibida ou ao menos não considerada, que a toma como hipótese
de trabalho e a desenvolve até as últimas consequências, sejam estas
quais forem, e que fez a fama da obra de Kafka ou Döblin‖ (CORAL,
2008, p. 72).
Ao pensar em Não Passarás o Jordão observo que mesmo se
tratando de uma ficção, a elaboração da cena dolorosa se vale
seguramente de alguns dos artifícios verificados por Louwagie,

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especialmente no que concerne ao manuseio dos signos demarcadores do
sofrimento e aqui ressaltamos, como primeiro aspecto observado, que há
um paralelo entre o uso da metáfora animalizante, muito encontrada nos
testemunhos analisados por Louwagie, e a deflagração de termos e
expressões que recuperam o locus da tortura, tal como ocorre em Não
Passarás o Jordão. Nessa narrativa as inscrições do sofrimento estão
fadadas a envolverem apreensões que se expressam na virulência do
próprio uso da língua. Essa deflagração se realiza fundamentalmente pela
palavra abjeta.
E aqui cabe dizer que um segundo aspecto que observo é
justamente essa associação entre o abjeto e o insólito. Conforme Júlia
Kristeva (1982, Apud MORAES, 2011) o abjeto é o que se conhece como
o rejeitado, aquilo que traz repulsa, que produz asco, que se manifesta de
forma ameaçadora, inquietante, que desperta fascínio e desejo. É o que
fragiliza nossas fronteiras, problematizando tanto a individualização dos
seres quanto os significados estabelecidos por sua cultura, por isso, não é
estranho que os artistas sintam certo deleite em representar em sua arte o
mau desempenho e desequilíbrio dos sujeitos e da sociedade, a partir do
abjeto.
Outro aspecto que destaco é a ausência de eufemismo, ligada
tanto a presença da palavra abjeta quanto a assunção dos efeitos de
insólito. Ainda no território do abjeto, a deseufemização se evidencia
pelo tom de linguagem crua, das coisas ditas a nu, como se não houvesse
preocupação em refinar e selecionar termos que fossem menos chocantes
e que provocassem menos asco a quem lê o relato, mesmo porque na
demanda por dizer cruamente subjaz a tentativa de dizer a crueldade.
Observa-se consequentemente um léxico carregado de teor obsceno e
abjetal e bastante calcado no hiperbolismo, como modo de impregnar a
experiência da tortura com as ideias de exagero e de extenuação. Além de
fazer a narrativa apontar também para o território do sublime essa
linguagem faz irromper uma erotização que se mostra bastante eficaz não
somente ao mostrar o corpo sob processo de tortura, mas, sobretudo, por
estabelecer a modo de problematizar a perversão.
Essa linguagem abjeta também me parece apresentar outra
função, essa ligada de maneira singular ao laboratório escritural realizado

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na fronteira testemunho-ficção: suspeito que ela de certo modo atenua a
gagueira, a falta, tão peculiares do testemunho. No anseio de recuperar a
cena dolorosa a vítima rememora – mas também reelabora o que
experimentou e ao realizar a rememoração ganha a possibilidade de
avaliar o vivido e colocar para fora, mais do que a dor, a revolta, cujos
contornos se fazem a partir da vibração da língua em favor de um
vocabulário bruto, que explode a partir de um léxico que se ocupa de
partes do corpo consideradas tabus. Ressalto a propósito que a etimologia
do termo ―abjeto‖ – abjicìo,is,abjéci,abjectum,abjicère: ―atirar para longe
de si, lançar, atirar, despedir; derribar, deitar abaixo, matar; recusar,
rejeitar, desprezar, enjeitar' (donde abjectus,a,um 'derribado, atirado por
terra; abjeto, vil, desprezível; rasteiro, baixo, sem elevação; abatido,
prostrado, desanimado, desesperado'), abjectìo,ónis 'abjeção, baixeza;
diminuição, supressão; abatimento, prostração, desespero', adjicìo,is
'atirar, lançar, arremessar para‖3 – está calcado em diversas ideias que
favorecem a movimentação de uma linguagem que busca nas palavras
consideradas vulgares um mecanismo para dizer do modo mais direto a
brutalidade sofrida.
No limite do insólito essa condição perdura como possibilidade
de expressar o inominável diante da perda de referências em relação ao
que é humano, aos deslimites que sempre configura o Mal, à crise dos
valores éticos implicados no gesto de quem levanta o braço armado para
espancar, violentar e deleitar-se com a dor do outro. E nesse sentido o
inominável torna-se nominável e por isso mesmo se configura como
insólito. O insólito está nessa permanência do colapso que, por um lado
se manifesta no cotidiano usurpado da vítima, por outro está no
desmascaramento do colapso que envolve sempre a quebra radical de
determinado conjunto de valores humanos no interior de um regime
autoritário. Nesse processo, o sofrimento da vítima e o gozo dos
torturadores funcionam como um dispositivo de infantilização, se
pensarmos com George Bataille (1989, p.19-20), que a infância pode ser
a metáfora da suspensão primeva entre os limites do Bem e do Mal, a
diluição dos interditos vinculados ao mundo racional e nessas condições

3
Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa.

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podem representar também a supressão do humano4. Desse modo, deleite
e vivissecção, destruição e gozo, caminham juntos na constituição do
comportamento dos torturadores.
Para concluir, a etimologia da palavra crise – do grego krisis –
ato ou faculdade de distinguir, escolher, dividir ou resolver é marcada
pela noção de ruptura. A crise é assim um espaço de desajuste. No caso
das narrativas como a que aqui é objeto de reflexão, a crise comparece
como signo da dessimetria entre dois sistemas de valores: o de uma
determinada comunidade social e aquele que rege o comportamento dos
torturadores e por simbiose o regime autoritário por eles representado.
Envolvido na teia do insólito, a cena dolorosa de Não Passarás o
Jordão repercute um estado de crise, e como tal repercute o choque tão
próprio da catástrofe, e essa condição evoca o rompimento com as coisas
(supostamente) sólidas, fazendo com que o sólido se desvaneça, com que
o previsível seja rompido ao ponto de detonar um desencantamento e uma
paralisia que parece incessante: duas marcas essenciais da crise.
Para a protagonista do conto, contra os efeitos destruidores da
experiência do encarceramento e tortura, resta a elaboração da memória.
E a partir dessa elaboração ocorre a possibilidade da resiliência, o
confronto e enfrentamento do trauma, ainda que isso signifique voltar
atrás no passado extraindo dele o momento crucial da cena dolorosa. A
resiliência permite não apenas o reencontro com o trauma, mas sua
reelaboração, com possibilidade de, a partir de então, elaborar uma
identidade nova (CYRULNIK, 2005, p. 46), identidade de sobrevivente,
não denegadora da cena dolorosa, mas capaz de permitir o retorno do
momento da crise, aqui muito marcada pelo rebaixamento do humano.
Estabelecer o nexo com a crise é uma forma de inscrever a busca pela
integridade perdida no decorrer da experiência-limite vivenciada. É em
todo caso uma busca pela reparação.
Cabe ainda observar que o Jordão, sempre grande signo da
passagem para a felicidade, para a utopia, comparece aqui invertido,
denegando a demanda, a busca por outro lugar em que o Mal esteja pelo
menos restrito ao lícito dos tabus que o acompanha. Quanto a esse

4
Ver aqui todo o capítulo que Bataille dedica a Emily Brontë.

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aspecto, vale lembrar que o Jordão está intimamente associado à
travessia, condição suspensa no conto. Não há passagem possível, aqui
interposta como possibilidade de transcendência, para a jovem. Isso
significa que mesmo perante a resiliência a reelaboração não a livra da
convivência com a dor. Essa condição por sua vez realça o
desencantamento e a paralisia anteriormente referidos. Vale lembrar que
os efeitos de insólito também se fazem presentes na narrativa da
catástrofe pelo que é provocativo em relação ao desencanto. Em um belo
trecho de um ensaio escrito por Batista (2007, p.63) lê-se que ao fluir o
insólito as instâncias de normalidade e anormalidade deixam de existir, e
o extranatural se revela naquilo em que é mais avassalador: é maior que o
indivíduo, derrotado frente a essas forças usurpadoras da humanidade.
Nesse sentido, para concluir, avalio que o cruzamento entre
efeitos de insólito e abjeto são esteticamente muito interessantes para a
constituição da narrativa da catástrofe, pois é certo que esta se
fundamenta no choque, na tentativa de revelar o desastre, o aviltamento
ou, para recuperar um termo utilizado por Seligmann-Silva, o
desabamento – da história, do real, do cotidiano, da norma, dos valores,
da mesma forma que expressa a dimensão da crise que alcança a
experiência humana nesses termos. Justamente em função de haver no
interior da catástrofe os signos da suspensão e do horror em ritmos
diferentes de oscilação, é que o insólito se torna possível.
THE CATASTROPHE IN ―NÃO PASSARÁS O
JORDÃO‖ BY LUÍS FERNANDO EMEDIATO
Abstract: I want to present some reflections on the characteristics of the
testimony, in particular, the notions of collapse and it unrepresentability
involved, which are usually present in the call narrative of the catastrophe
, considering some very aesthetic effects present in this narrative form,
like the unusual, the abject , the grotesque and the sublime. The analysis
covers more particularly the unusual manifestations associated with the
abject in "Não passarás o Jordão" by Luiz Fernando Emediato.
Key-words: Testimony. Catastrophe. Luiz Fernando Emediato.

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REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Georgio.A testemunha. In: ______. O que resta de Auschwitz: o


arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). Tradução de Selvio J. Assman. São
Paulo: Boitempo, 2008.
BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Tradução de Suely Bastos. Porto
Alegre: L&PM, 1989.
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