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I
Não passarás o Jordão
O livro Verdes Anos de Luiz Fernando Emediato é uma obra que
quebra regras no que concerne às formas literárias, uma vez que enquanto
narrativa se funda no intervalo entre o romance e a antologia de contos.
Trata-se de uma produção constituída em duas partes: Parte I - O LADO
DE DENTRO, consiste em ser formado pelos seguintes contos – que
também podem ser tranquilamente entendidos como capítulos de um
romance: O outro lado do paraíso, Cândida, Also Sprach Zarathustro, O
Deserto da Primavera e Verdes Anos. E compondo a parte II, O LADO
DE FORA, estão respectivamente A data Magna do Nosso Calendário
Cívico e Não Passarás o Jordão. Cada uma dessas sequências pode ser
lida individualmente, sem provocar nenhuma perturbação ao todo
romanesco, mas também se lermos o conjunto delas como romance,
podemos vislumbrar as correlações entre as duas partes. Assim, em
primeiro contato com o livro, o leitor irá se deparar com uma sensação de
1
UFPA – Universidade Federal do Pará. Programa de Pós-Graduação em
Letras/Instituto de Letras e Comunicação. Belém, Pará, Brasil, CEP 66075-
110. nicama@ufpa.br
III
A narrativa da catástrofe no intervalo entre testemunho e ficção
Narrativas de testemunho ou com teor testemunhal pautadas no
relato da dor e do sofrimento, ao fazerem isso, constituem a cena
dolorosa como esse território em que a ferida traumática tenta se mostrar
em toda sua reverberação, em toda sua náusea, ainda que mesmo
alcançada pelas reverberações do sublime – prementes na ferida exposta,
nos dejetos mostrados, no sangue derramado, na laceração da carne em
ato na palavra escrita – mas a exatidão das palavras é sempre alcançada
pela falta, por uma espécie de censura, pois por mais objetivo que seja o
relato há sempre algo que escapa à nominação, há sempre uma dor para a
qual nenhuma apalavração é suficiente ou são palavras envergonhadas,
prenhes de gagueira, de curto-circuitos, de desarticulações. É nisso que
reside o inominável do trauma, a sua irrepresentabilidade. Agamben
(2008, p. 43) realça essa falta que há no testemunho, pois avalia ser a
falta a sua marca mais essencial.
Há ainda nessas narrativas a presença de um assombro diante do
horror, do ato inaceitável, da violência desmedida, da dor imensurável, da
sobrevivência julgada injusta. Enfim, de uma série de tabus rompidos.
Assombro que se identifica como uma paralisia – e temos aqui o signo da
suspensão que, palpitante, se faz notar.
Elaborar a cena traumática, inscrita no testemunho, implica trazer
para a narrativa, metarreflexivamente, as indecibilidades sobre como
dizer o trauma. Ginzburg (2001, p.140) assevera que a representação da
cena traumática se faz marcada por processos históricos, na medida em
que recusa a ―possibilidade de volta, a resistência ao reencontro com a
cena traumática‖. Tem-se aí a recusa ao reencontro com o momento de
instauração da ferida, mas não a negação das consequências do trauma.
Porém, ainda que essa característica seja premente no testemunho,
quando se trata da ficção ela pode ser configurada no interior de um
intenso jogo de rememoração-reelaboração. Nesse processo, envolto pelo
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Em tradução livre: ―A reivindicação de uma linguagem própria por parte do
testemunho corresponde a sua dupla missão: reafirmar um eu e a defesa da
memória‖.
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Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa.
4
Ver aqui todo o capítulo que Bataille dedica a Emily Brontë.