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Da imagem à palavras: os limites da arte no

conto A fronteira da arte, de Eduardo


Galeano
Estêvão Belarmino Ribeiro dos Anjos,
no Pet Letras desde janeiro de 2011
Gustavo Félix Bezerra,
no Pet Letras desde 2012
Marília Dantas Tenório Leite,
no Pet Letras desde 2012
Marcus Vinícius Matias (Orientador)

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo é resultado do debate ocorrido no


Grupo de Discussão realizado no dia 20 de outubro de 2012
como parte da programação do I Fórum Interdisciplinar sobre
Desastres, promovido pelo Pet Psicologia da Universidade
Federal de Alagoas (UFAL). O evento tinha por objetivo trazer
diversos olhares das várias áreas do conhecimento para um
fenômeno: os desastres. Na ocasião, foi discutido o tema
“Violência e desastres na literatura”, observando como, em
alguns contos, a violências e os desastres eram representados
literariamente.
Nesse debate, foi estabelecido um diálogo entre o ato de
registrar a guerra, presente no conto “A fronteira da arte” de
Eduardo Galeano, encontrado na obra O livro dos abraços
(2009), e as discussões que Susan Sontag propõe em sua obra
Diante da dor dos outros (2003), que debate a relação entre o
eu e o outro nos registros de conflitos bélicos. Esse diálogo
também foi feito com outros contos buscando trazer, ao fim,
uma compreensão – ou várias compreensões – de como a
violência se configurava nos textos literários contemporâneos.
Delimitando um pouco mais esse objetivo, busca-se, com
o artigo que se segue, situar a discussão apenas em torno do
mencionado conto de Galeano, objetivando trazer outras
reflexões sobre sua composição, mas, sempre mantendo como
ponto de chegada, a imagem que é feita da guerra nesse conto do
escritor uruguaio e como a partir dela o autor reflete sobre a
representação artística.
Para tal fim, será feito um diálogo com a obra “Pietá”, de
Michelangelo, observando como a referência a essa escultura
causa na personagem uma transformação que a colocará em um
conflito sobre o registro do real, culminando com
questionamentos acerca da problemática em torno da existência
das fronteiras do fazer artístico.
Para situar teoricamente esse olhar sobre o conto,
apoiaremos nosso trabalho na já mencionada obra de Sontag
(2003), que contribui para as reflexões sobre os registros de
guerra.
Como também traremos a contribuição de Ângela Dias
(2005) que, em seu artigo “Cenas da crueldade”, reflete sobre
como a crueldade, que a autora dividirá em algumas categorias,
emerge nas relações humanas.
Além de Elizabeth Rondelli (2000) e sua contribuição
para compreendermos o modo como as imagens contribuem
para o sentido que se constrói sobre a violência coletivamente.

2. SOBRE O AUTOR

Uruguaio de Montevidéu, Eduardo Galeano é jornalista e


escritor. Apesar dessas duas profissões, seu trabalho mais
conhecido, As veias abertas da América Latina (1971), é uma
análise histórica da América Latina, apresentando-a desde sua
colonização até os tempos mais modernos, fazendo de Galeano,
também, uma espécie de historiador.
A preocupação com a formação histórica da América
Latina será um tema presente em outras obras suas, literárias ou
não. Inclusive na obra da qual retiramos o conto que
analisaremos no presente trabalho.
Porém, O livro dos abraços (1940) trata-se de uma obra
com textos mais próximos de um lirismo, que lança um olhar
para temas diversos, quase como uma espécie de diário, em que
não se há restrições a temas e formas de contar.
Entre esses textos, “A fronteira da arte” é um conto que,
a partir de um acontecimento histórico – a guerra civil em El
Salvador -, discute os limites éticos da representação artística,
buscando refletir sobre as possíveis fronteiras da arte.

3. A REPRESENTAÇÃO DE PIETÀ

El Salvador carrega no nome um elemento católico, que


com a colonização espanhola foi inserido no território, e ocupa,
então, importante papel na estrutura da sociedade local. A cena
construída no texto será o ponto mais elevado da presença de
elementos religiosos na obra, esse fator contribui com a presente
análise de forma dual, pois o cristianismo ao mesmo tempo em
que traz à composição os elementos ideológicos cristãos (de
fraternidade e amor ao próximo) aponta também para o "estupro
cultural" feito pelos espanhóis como mais uma forma de
violência ao povo colonizado. A disparidade ideológica nas
imagens criadas pelo autor é uma constante na composição do
texto, que sempre aponta para questionamentos, desvios em
discursos recorrentes, sendo esses prenúncios talvez a própria
realização estética do momento conflituoso em que a
protagonista irá se encontrar.
À medida que procura os gêmeos, Julio vai se
aproximando da igreja e inicia-se a construção do ponto central
da história, “Um dos gêmeos estava sentado no chão, de costas
contra um muro. Sobre os seus joelhos jazia o outro, banhado de
sangue; e aos pés, em cruz, estavam os dois fuzis”. Na cena, um
irmão segura o outro nos joelhos, tendo uma cruz de fuzis aos
pés. O sofrimento atônito do irmão vivo, profundamente tocado
pela morte do gêmeo morto, o sacrifício, o crucificado pelos
fuzis é descrita:
O gêmeo que vivia não disse nada, nem se moveu:
estava lá, mas não estava. Seus olhos, que não
pestanejavam, olhavam sem ver, perdidos em
algum lugar, em nenhum lugar; e naquela cara sem
lágrimas estavam a guerra inteira e a dor inteira.
(GALEANO,2009, p.27)

É partindo desses elementos que abrimos a possibilidade da


releitura de Pietá, (que trata inicialmente da mater dolorosa) no
conto.
O tema Pietà se origina no pathos da mãe tendo no colo
o filho, morto após ter sofrido as penas de ser crucificado pelo
próprio povo. A feição das Pietà é de sofrimento resignado.
Sobre a Pietà de Michelangelo, lê-se em um artigo encontrado
no site Web Gallery of art, de autor desconhecido:

[...]é uma imagem, como nunca antes


tentada, de Nossa Senhora com o corpo de
Cristo, sua face é jovem e ainda assim, além
do tempo; sua cabeça se inclina levemente
sobre o corpo sem vida de seu filho deitado
no colo. (Tradução nossa)

No site All about arts encontramos a seguinte descrição com


autor também não especificado:
Pietà é uma palavra italiana que significa
piedade. Mesmo com a aparência jovem, o
sentimento que Maria demonstra em seu
rosto, nessa magnífica obra, passa para o
apreciador toda a tragédia da cena. Os olhos
estão virados para baixo, quase fechados. A
expressão como um todo é de calma ou
resignação, como que aceitando
pacificamente a morte do filho.

Esta formação presente no imaginário coletivo será


atravessada por um novo elemento, sofrerá um deslocamento
que dará origem a uma nova leitura, já que no lugar da figura
materna, coloca-se a figura fraterna, representada pelos irmãos
gêmeos, os iguais, sendo a fraternidade um dos mais importantes
elementos cristãos, o de ver a si mesmo no próximo.
O encontro com os gêmeos através da meticulosa e
trabalhada cena que remete a possibilidade de releitura da Pietà
como representação da própria arte, é capaz de finalmente
causar o estranhamento perdido na guerra. Julio (à procura dos
gêmeos) “não os via entre os vivos ou entre os mortos”, sem
qualquer comoção diante da morte ou da vida, colocando-as,
mais uma vez lançando mão do paralelismo, no mesmo patamar
de trivialidade.
Nesse ponto encontramos aquilo que Ângela Dias
chamou de crueldade exótica, ou seja:
[...] aquela que atualiza o ‘dandy’, aplicando
seu empenho estetizante na compreensão da
diferença. [...] É quando o cinismo, ou a
ironia, diante da alteridade dá lugar à atual
culturalização bem pensante da miséria e do
desenraizamento. A estetização da penúria e
da privação é, hoje em dia, moeda corrente
em muitos eventos artísticos-midiáticos bem
sucedidos (Grifo nosso).

Julio Ama, até o encontro com os gêmeos mortos realizava essa


estetização, fazendo de seus registros e das pessoas registradas
um produto artístico, vendável e massivo.
Esse olhar estetizado da dor do outro é resultado de uma
constante exposição ?pelos (meios ou pessoas) de comunicação?
dessas catástrofes, fazendo com que se perca a identificação do
outro naquele sofrimento e o fato apague-se diante da
exuberância do registro. Como nos diz Sontag (2003):

Essa nova insistência no bom gosto em uma


cultura saturada de estímulos comerciais em
favor de padrões de gosto mais baixos pode
ser algo intrigante. Mas faz sentido se
entendida como um ocultamento de uma
infinidade de preocupações e de anseios a
respeito da ordem pública e da moral pública
que não podem ser explicitados, e também
como uma indicação da incapacidade de
apresentar ou defender de outra maneira as
convenções tradicionais relativas ao modo
de prantear os mortos. O que se pode
mostrar, o que não se deveria mostrar –
poucas questões suscitam um clamor público
mais forte. (p. 60)
Esse conflito entre o que registrar e o que não se pode
registrar se instala em Julio Ama quando, na cena dos irmãos,
seus conhecidos, é capaz não só de comovê-lo, como também de
representar a guerra inteira, expondo a exploração que os
combatentes sofriam. É nesse momento que acontece a virada,
Júlio empunha a câmera e enquadra a imagem. “Os irmãos
estavam no centro do visor, imóveis, perfeitamente recortados
contra o muro recém-mordido de balas.” Aqui o valor da câmera
e da arma mais uma vez se confundem, mas Júlio não dispara,
pois não consegue.
Essa incapacidade de fazer o registro se dá pelo fato de
Julio identificar-se com os mortos – até então todos que
fotografava eram-lhe estranhos. Sontag (2003) pontua bem os
motivos dessa incapacidade quando afirma que: “Com relação
aos nossos mortos, sempre vigorou uma proibição enérgica
contra mostrar o rosto descoberto”.
Ou seja, o “rosto descoberto” é a exposição da dor dos
amigos de Julio Ama, de seu próprio povo, expô-los era expor
suas próprias fraquezas diante do invasor. Para Julio é
necessário dignidade, ocultando essas fraquezas. Afinal:
“Quando se trato dos outros, essa dignidade não é tida como
necessária” (SONTAG,2003).
Portanto, a imagem sugerida de Pietá funciona como
elemento de identificação de Julio Ama em relação aos irmãos,
modificando sua postura em relação aos registros bélicos, pois
ao se levar em consideração a temática da Pietà também em
relação ao nome do país (El Salvador) repara-se na identificação
titular do cristo, porém a imagem deste cristo no conto está
duplicada pelos irmãos gêmeos, representantes de um povo em
luta contra seus próprios semelhantes. Essa constatação levanta
um questionamento acerca de um limite para a arte.

4. O PARADOXO DO DIREITO DIANTE DA DOR DOS


OUTROS

O conto “A Fronteira da arte”, de Eduardo Galeano, já


em seu título estabelece uma limitação, uma barreira existente
no mundo da arte e, por consequência, da linguagem. Esta
barreira é uma limitação ética que na narrativa é evidenciada
pelo conflito de direito interno da protagonista, Julio Ama, que
acontece no ápice da história.
É pelo conflito, com base na memória da protagonista,
entre quando esta barreira deveria ser rompida ou preservada
(disparar ou não a câmera/arma) e pela distinção entre o bem
individual e o bem coletivo (o respeito à dor do garoto ou a
denúncia e proclamação da guerra) que, diante da imagem do
menino tristemente resignado com o irmão alvejado no colo,
Julio Ama, entre seus objetivos (tirar a foto de toda a guerra e de
toda a sua vida e registrar a dor do menino para proclamar a
guerra a favor dos guerrilheiros) e sua subjetividade (violentar o
luto do menino e além de registrar sua dor, registrar a dor de um
povo aplacado pela guerra), muda em função da autoavaliação
dos meios e dos fins de direito que pretende seguir. A barreira
levantada na narrativa de Galeano é o próprio sentido de
alteridade.
A limitação levantada por Galeano pode ser ultrapassada
e é, pois no início do conto a protagonista “lutava e
fotografava”. Era um dos agentes da dor que se desvencilhava
da culpa de infligir dor àqueles homens e matava seus inimigos.
No segundo parágrafo do conto, o autor põe a câmera e o fuzil
em um mesmo patamar e ao pôr os dois em equiparação de
forma simbiótica, o conto desafia o leitor a perceber o próprio
uso da linguagem e como esta pode ser de extrema violência.
Esta violência, conforme visto em Elizabeth Rondelli
(2000), é encontrada não só como agressão física, mas como
linguagem, ato de comunicação “[...] por ser a expressão-limite
de conflitos para cuja solução não se pode contar com formas
institucionalizadas de negociação política ou jurídica legítimas”
(RONDELLI, 2000, p.147), pois esta violência da linguagem
está presente em grande parte da interação social, mesmo as
consideradas mais delicadas, e, consequentemente, tem uma
relação indissociável com o discurso de poder que, em si
mesmo, possui imbricada a violência, ponto esse tratado por
Roland Barthes(1996) quando afirma que:
“[...] poder é o parasita de um organismo
trans-social, ligado à história inteira do
homem, e não somente à sua história
política, histórica. Esse objeto em que se
inscreve o poder, desde toda eternidade
humana, é: a linguagem” (BARTHES, 1996,
p. 12).

A conquista do poder por meio da violência mediada por


uma implicação histórica é exatamente onde o protagonista e
seus companheiros de guerrilha se posicionam, pois eles se
sentem no direito do uso desta violência. Entretanto, o
protagonista ao se deparar com uma situação contrária à
anterior, da violência pelo poder, passa por uma disputa interna
a respeito de seus princípios ideológicos. De um lado o desejo
de vencer a guerra e estabelecer o direito novo, de outro a dor de
um ente afetivo. A câmera não irá só retratar o menino, mas
alvejá-lo. Alvejar também com isso a história de sua luta,
empobrecendo-a. A ideologia luta contra a sensibilidade de Julio
e por isso o dedo vacila em puxar o gatilho da câmera.
5. CONCLUSÃO

Como se pode notar, o conto de Galeano é todo construído em


polaridades (arma/máquina, guerrilheiro/fotógrafo, irmão gêmeos e a
existência de um muro apontando para o limite a ser ultrapassado ou
não) que põem em conflito Julio Ama e a própria representação
artística. Pois, entre o disparar e não disparar a máquina há uma
escolha ideológica que pode afastar Julio Ama dos colonizadores ou
aproximá-lo deles, trazendo, além do fator ideológico, um
questionamento sobre os limites da arte.

Longe de querer dar respostas definitivas sobre essas


questões, o conto nos leva a refletir sobre elas e sobre o papel da arte
dentro da sociedade, apresentando um olhar crítico sobre seus fins. Ao
voltar nossos olhares para as possibilidades de posicionamento que o
fazer artístico pode proporcionar.

Dessa forma, ao focar no conflito de Julio Ama, Galeano


busca universalizá-lo, estendendo-o além dos limites do conto, pois o
conflito em torno da personagem é o que move a história da arte: o
conflito do como representar e do quê representar.
6. REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. Aula, São Paulo: Cultrix, 1996.

BENJAMIN, Walter. IN: “Para uma crítica da violência”,


Escritos sobre mito e linguagem, São Paulo: Duas Cidades; Ed.
34, 2011.

DIAS, Angela Maria. “As cenas da crueldade: ficção brasileira


contemporânea e experiência urbana”. Estudos de Literatura
Brasileira Contemporânea, Universidade de Brasília, v. 1, p. 87-
96, 2005.

GALEANO, Eduardo. IN: “A fronteira da arte”, O livro dos


abraços. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2009.
RONDELLI, Elizabeth. IN: “Imagens da violência e práticas
discursivas”, Linguagens da violência. Rio de Janeiro: Rocco, p, 144 -
161, 2000.

SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia


das Letras, 2003.

TODOROV, Tzvetan. IN: “Analise Estrutural da Narrativa”, As


Categorias da Narrativa Literária. Tradução: Maria Zélia Barbosa
Pinto. Petrópolis: Editora Vozes, p. 209-254, 1973.

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