O presente artigo é resultado do debate ocorrido no Grupo de Discussão realizado no dia 20 de outubro de 2012 como parte da programação do I Fórum Interdisciplinar sobre Desastres, promovido pelo Pet Psicologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). O evento tinha por objetivo trazer diversos olhares das várias áreas do conhecimento para um fenômeno: os desastres. Na ocasião, foi discutido o tema “Violência e desastres na literatura”, observando como, em alguns contos, a violências e os desa
O presente artigo é resultado do debate ocorrido no Grupo de Discussão realizado no dia 20 de outubro de 2012 como parte da programação do I Fórum Interdisciplinar sobre Desastres, promovido pelo Pet Psicologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). O evento tinha por objetivo trazer diversos olhares das várias áreas do conhecimento para um fenômeno: os desastres. Na ocasião, foi discutido o tema “Violência e desastres na literatura”, observando como, em alguns contos, a violências e os desa
O presente artigo é resultado do debate ocorrido no Grupo de Discussão realizado no dia 20 de outubro de 2012 como parte da programação do I Fórum Interdisciplinar sobre Desastres, promovido pelo Pet Psicologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). O evento tinha por objetivo trazer diversos olhares das várias áreas do conhecimento para um fenômeno: os desastres. Na ocasião, foi discutido o tema “Violência e desastres na literatura”, observando como, em alguns contos, a violências e os desa
Galeano Estêvão Belarmino Ribeiro dos Anjos, no Pet Letras desde janeiro de 2011 Gustavo Félix Bezerra, no Pet Letras desde 2012 Marília Dantas Tenório Leite, no Pet Letras desde 2012 Marcus Vinícius Matias (Orientador)
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo é resultado do debate ocorrido no
Grupo de Discussão realizado no dia 20 de outubro de 2012 como parte da programação do I Fórum Interdisciplinar sobre Desastres, promovido pelo Pet Psicologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). O evento tinha por objetivo trazer diversos olhares das várias áreas do conhecimento para um fenômeno: os desastres. Na ocasião, foi discutido o tema “Violência e desastres na literatura”, observando como, em alguns contos, a violências e os desastres eram representados literariamente. Nesse debate, foi estabelecido um diálogo entre o ato de registrar a guerra, presente no conto “A fronteira da arte” de Eduardo Galeano, encontrado na obra O livro dos abraços (2009), e as discussões que Susan Sontag propõe em sua obra Diante da dor dos outros (2003), que debate a relação entre o eu e o outro nos registros de conflitos bélicos. Esse diálogo também foi feito com outros contos buscando trazer, ao fim, uma compreensão – ou várias compreensões – de como a violência se configurava nos textos literários contemporâneos. Delimitando um pouco mais esse objetivo, busca-se, com o artigo que se segue, situar a discussão apenas em torno do mencionado conto de Galeano, objetivando trazer outras reflexões sobre sua composição, mas, sempre mantendo como ponto de chegada, a imagem que é feita da guerra nesse conto do escritor uruguaio e como a partir dela o autor reflete sobre a representação artística. Para tal fim, será feito um diálogo com a obra “Pietá”, de Michelangelo, observando como a referência a essa escultura causa na personagem uma transformação que a colocará em um conflito sobre o registro do real, culminando com questionamentos acerca da problemática em torno da existência das fronteiras do fazer artístico. Para situar teoricamente esse olhar sobre o conto, apoiaremos nosso trabalho na já mencionada obra de Sontag (2003), que contribui para as reflexões sobre os registros de guerra. Como também traremos a contribuição de Ângela Dias (2005) que, em seu artigo “Cenas da crueldade”, reflete sobre como a crueldade, que a autora dividirá em algumas categorias, emerge nas relações humanas. Além de Elizabeth Rondelli (2000) e sua contribuição para compreendermos o modo como as imagens contribuem para o sentido que se constrói sobre a violência coletivamente.
2. SOBRE O AUTOR
Uruguaio de Montevidéu, Eduardo Galeano é jornalista e
escritor. Apesar dessas duas profissões, seu trabalho mais conhecido, As veias abertas da América Latina (1971), é uma análise histórica da América Latina, apresentando-a desde sua colonização até os tempos mais modernos, fazendo de Galeano, também, uma espécie de historiador. A preocupação com a formação histórica da América Latina será um tema presente em outras obras suas, literárias ou não. Inclusive na obra da qual retiramos o conto que analisaremos no presente trabalho. Porém, O livro dos abraços (1940) trata-se de uma obra com textos mais próximos de um lirismo, que lança um olhar para temas diversos, quase como uma espécie de diário, em que não se há restrições a temas e formas de contar. Entre esses textos, “A fronteira da arte” é um conto que, a partir de um acontecimento histórico – a guerra civil em El Salvador -, discute os limites éticos da representação artística, buscando refletir sobre as possíveis fronteiras da arte.
3. A REPRESENTAÇÃO DE PIETÀ
El Salvador carrega no nome um elemento católico, que
com a colonização espanhola foi inserido no território, e ocupa, então, importante papel na estrutura da sociedade local. A cena construída no texto será o ponto mais elevado da presença de elementos religiosos na obra, esse fator contribui com a presente análise de forma dual, pois o cristianismo ao mesmo tempo em que traz à composição os elementos ideológicos cristãos (de fraternidade e amor ao próximo) aponta também para o "estupro cultural" feito pelos espanhóis como mais uma forma de violência ao povo colonizado. A disparidade ideológica nas imagens criadas pelo autor é uma constante na composição do texto, que sempre aponta para questionamentos, desvios em discursos recorrentes, sendo esses prenúncios talvez a própria realização estética do momento conflituoso em que a protagonista irá se encontrar. À medida que procura os gêmeos, Julio vai se aproximando da igreja e inicia-se a construção do ponto central da história, “Um dos gêmeos estava sentado no chão, de costas contra um muro. Sobre os seus joelhos jazia o outro, banhado de sangue; e aos pés, em cruz, estavam os dois fuzis”. Na cena, um irmão segura o outro nos joelhos, tendo uma cruz de fuzis aos pés. O sofrimento atônito do irmão vivo, profundamente tocado pela morte do gêmeo morto, o sacrifício, o crucificado pelos fuzis é descrita: O gêmeo que vivia não disse nada, nem se moveu: estava lá, mas não estava. Seus olhos, que não pestanejavam, olhavam sem ver, perdidos em algum lugar, em nenhum lugar; e naquela cara sem lágrimas estavam a guerra inteira e a dor inteira. (GALEANO,2009, p.27)
É partindo desses elementos que abrimos a possibilidade da
releitura de Pietá, (que trata inicialmente da mater dolorosa) no conto. O tema Pietà se origina no pathos da mãe tendo no colo o filho, morto após ter sofrido as penas de ser crucificado pelo próprio povo. A feição das Pietà é de sofrimento resignado. Sobre a Pietà de Michelangelo, lê-se em um artigo encontrado no site Web Gallery of art, de autor desconhecido:
[...]é uma imagem, como nunca antes
tentada, de Nossa Senhora com o corpo de Cristo, sua face é jovem e ainda assim, além do tempo; sua cabeça se inclina levemente sobre o corpo sem vida de seu filho deitado no colo. (Tradução nossa)
No site All about arts encontramos a seguinte descrição com
autor também não especificado: Pietà é uma palavra italiana que significa piedade. Mesmo com a aparência jovem, o sentimento que Maria demonstra em seu rosto, nessa magnífica obra, passa para o apreciador toda a tragédia da cena. Os olhos estão virados para baixo, quase fechados. A expressão como um todo é de calma ou resignação, como que aceitando pacificamente a morte do filho.
Esta formação presente no imaginário coletivo será
atravessada por um novo elemento, sofrerá um deslocamento que dará origem a uma nova leitura, já que no lugar da figura materna, coloca-se a figura fraterna, representada pelos irmãos gêmeos, os iguais, sendo a fraternidade um dos mais importantes elementos cristãos, o de ver a si mesmo no próximo. O encontro com os gêmeos através da meticulosa e trabalhada cena que remete a possibilidade de releitura da Pietà como representação da própria arte, é capaz de finalmente causar o estranhamento perdido na guerra. Julio (à procura dos gêmeos) “não os via entre os vivos ou entre os mortos”, sem qualquer comoção diante da morte ou da vida, colocando-as, mais uma vez lançando mão do paralelismo, no mesmo patamar de trivialidade. Nesse ponto encontramos aquilo que Ângela Dias chamou de crueldade exótica, ou seja: [...] aquela que atualiza o ‘dandy’, aplicando seu empenho estetizante na compreensão da diferença. [...] É quando o cinismo, ou a ironia, diante da alteridade dá lugar à atual culturalização bem pensante da miséria e do desenraizamento. A estetização da penúria e da privação é, hoje em dia, moeda corrente em muitos eventos artísticos-midiáticos bem sucedidos (Grifo nosso).
Julio Ama, até o encontro com os gêmeos mortos realizava essa
estetização, fazendo de seus registros e das pessoas registradas um produto artístico, vendável e massivo. Esse olhar estetizado da dor do outro é resultado de uma constante exposição ?pelos (meios ou pessoas) de comunicação? dessas catástrofes, fazendo com que se perca a identificação do outro naquele sofrimento e o fato apague-se diante da exuberância do registro. Como nos diz Sontag (2003):
Essa nova insistência no bom gosto em uma
cultura saturada de estímulos comerciais em favor de padrões de gosto mais baixos pode ser algo intrigante. Mas faz sentido se entendida como um ocultamento de uma infinidade de preocupações e de anseios a respeito da ordem pública e da moral pública que não podem ser explicitados, e também como uma indicação da incapacidade de apresentar ou defender de outra maneira as convenções tradicionais relativas ao modo de prantear os mortos. O que se pode mostrar, o que não se deveria mostrar – poucas questões suscitam um clamor público mais forte. (p. 60) Esse conflito entre o que registrar e o que não se pode registrar se instala em Julio Ama quando, na cena dos irmãos, seus conhecidos, é capaz não só de comovê-lo, como também de representar a guerra inteira, expondo a exploração que os combatentes sofriam. É nesse momento que acontece a virada, Júlio empunha a câmera e enquadra a imagem. “Os irmãos estavam no centro do visor, imóveis, perfeitamente recortados contra o muro recém-mordido de balas.” Aqui o valor da câmera e da arma mais uma vez se confundem, mas Júlio não dispara, pois não consegue. Essa incapacidade de fazer o registro se dá pelo fato de Julio identificar-se com os mortos – até então todos que fotografava eram-lhe estranhos. Sontag (2003) pontua bem os motivos dessa incapacidade quando afirma que: “Com relação aos nossos mortos, sempre vigorou uma proibição enérgica contra mostrar o rosto descoberto”. Ou seja, o “rosto descoberto” é a exposição da dor dos amigos de Julio Ama, de seu próprio povo, expô-los era expor suas próprias fraquezas diante do invasor. Para Julio é necessário dignidade, ocultando essas fraquezas. Afinal: “Quando se trato dos outros, essa dignidade não é tida como necessária” (SONTAG,2003). Portanto, a imagem sugerida de Pietá funciona como elemento de identificação de Julio Ama em relação aos irmãos, modificando sua postura em relação aos registros bélicos, pois ao se levar em consideração a temática da Pietà também em relação ao nome do país (El Salvador) repara-se na identificação titular do cristo, porém a imagem deste cristo no conto está duplicada pelos irmãos gêmeos, representantes de um povo em luta contra seus próprios semelhantes. Essa constatação levanta um questionamento acerca de um limite para a arte.
4. O PARADOXO DO DIREITO DIANTE DA DOR DOS
OUTROS
O conto “A Fronteira da arte”, de Eduardo Galeano, já
em seu título estabelece uma limitação, uma barreira existente no mundo da arte e, por consequência, da linguagem. Esta barreira é uma limitação ética que na narrativa é evidenciada pelo conflito de direito interno da protagonista, Julio Ama, que acontece no ápice da história. É pelo conflito, com base na memória da protagonista, entre quando esta barreira deveria ser rompida ou preservada (disparar ou não a câmera/arma) e pela distinção entre o bem individual e o bem coletivo (o respeito à dor do garoto ou a denúncia e proclamação da guerra) que, diante da imagem do menino tristemente resignado com o irmão alvejado no colo, Julio Ama, entre seus objetivos (tirar a foto de toda a guerra e de toda a sua vida e registrar a dor do menino para proclamar a guerra a favor dos guerrilheiros) e sua subjetividade (violentar o luto do menino e além de registrar sua dor, registrar a dor de um povo aplacado pela guerra), muda em função da autoavaliação dos meios e dos fins de direito que pretende seguir. A barreira levantada na narrativa de Galeano é o próprio sentido de alteridade. A limitação levantada por Galeano pode ser ultrapassada e é, pois no início do conto a protagonista “lutava e fotografava”. Era um dos agentes da dor que se desvencilhava da culpa de infligir dor àqueles homens e matava seus inimigos. No segundo parágrafo do conto, o autor põe a câmera e o fuzil em um mesmo patamar e ao pôr os dois em equiparação de forma simbiótica, o conto desafia o leitor a perceber o próprio uso da linguagem e como esta pode ser de extrema violência. Esta violência, conforme visto em Elizabeth Rondelli (2000), é encontrada não só como agressão física, mas como linguagem, ato de comunicação “[...] por ser a expressão-limite de conflitos para cuja solução não se pode contar com formas institucionalizadas de negociação política ou jurídica legítimas” (RONDELLI, 2000, p.147), pois esta violência da linguagem está presente em grande parte da interação social, mesmo as consideradas mais delicadas, e, consequentemente, tem uma relação indissociável com o discurso de poder que, em si mesmo, possui imbricada a violência, ponto esse tratado por Roland Barthes(1996) quando afirma que: “[...] poder é o parasita de um organismo trans-social, ligado à história inteira do homem, e não somente à sua história política, histórica. Esse objeto em que se inscreve o poder, desde toda eternidade humana, é: a linguagem” (BARTHES, 1996, p. 12).
A conquista do poder por meio da violência mediada por
uma implicação histórica é exatamente onde o protagonista e seus companheiros de guerrilha se posicionam, pois eles se sentem no direito do uso desta violência. Entretanto, o protagonista ao se deparar com uma situação contrária à anterior, da violência pelo poder, passa por uma disputa interna a respeito de seus princípios ideológicos. De um lado o desejo de vencer a guerra e estabelecer o direito novo, de outro a dor de um ente afetivo. A câmera não irá só retratar o menino, mas alvejá-lo. Alvejar também com isso a história de sua luta, empobrecendo-a. A ideologia luta contra a sensibilidade de Julio e por isso o dedo vacila em puxar o gatilho da câmera. 5. CONCLUSÃO
Como se pode notar, o conto de Galeano é todo construído em
polaridades (arma/máquina, guerrilheiro/fotógrafo, irmão gêmeos e a existência de um muro apontando para o limite a ser ultrapassado ou não) que põem em conflito Julio Ama e a própria representação artística. Pois, entre o disparar e não disparar a máquina há uma escolha ideológica que pode afastar Julio Ama dos colonizadores ou aproximá-lo deles, trazendo, além do fator ideológico, um questionamento sobre os limites da arte.
Longe de querer dar respostas definitivas sobre essas
questões, o conto nos leva a refletir sobre elas e sobre o papel da arte dentro da sociedade, apresentando um olhar crítico sobre seus fins. Ao voltar nossos olhares para as possibilidades de posicionamento que o fazer artístico pode proporcionar.
Dessa forma, ao focar no conflito de Julio Ama, Galeano
busca universalizá-lo, estendendo-o além dos limites do conto, pois o conflito em torno da personagem é o que move a história da arte: o conflito do como representar e do quê representar. 6. REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. Aula, São Paulo: Cultrix, 1996.
BENJAMIN, Walter. IN: “Para uma crítica da violência”,
Escritos sobre mito e linguagem, São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2011.
DIAS, Angela Maria. “As cenas da crueldade: ficção brasileira
contemporânea e experiência urbana”. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Universidade de Brasília, v. 1, p. 87- 96, 2005.
GALEANO, Eduardo. IN: “A fronteira da arte”, O livro dos
abraços. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2009. RONDELLI, Elizabeth. IN: “Imagens da violência e práticas discursivas”, Linguagens da violência. Rio de Janeiro: Rocco, p, 144 - 161, 2000.
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia
das Letras, 2003.
TODOROV, Tzvetan. IN: “Analise Estrutural da Narrativa”, As
Categorias da Narrativa Literária. Tradução: Maria Zélia Barbosa Pinto. Petrópolis: Editora Vozes, p. 209-254, 1973.