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A poesia de Cecília Meireles e a Segunda Guerra Mundial.

Leitura conjunta de “Joguinho na varanda” e “Jornal, longe”.

Alfredo Bosi, “Em torno da poesia de Cecília Meireles”, em Céu, inferno. Principal linha
mestra da poesia de CM: sentimento de distância do eu lírico em relação ao mundo (mundo
significa experiências vividas).

Murilo Marcondes Moura, “Cecília Meireles”, em O mundo sitiado: a poesia brasileira e a


Segunda Guerra Mundial. A poesia de Cecília sobre a guerra seria composta a partir de “um
princípio do contraponto, pelo qual a violência da guerra é incorporada para melhor enfatizar
o valor da naturalidade perdida ou da intimidade arruinada” (p. 272).

Contraponto fica muito nítido nos poemas lidos.

Intimidade arruinada: ambos os poemas, mas sobretudo também “Balada do soldado Batista”
em que “[o]s jornais já trazem, o rádio já grita:/ só eles não sabem! - Morreu no mar o
soldado Batista” (MA, p. 497). Note-se a fotografia e a imprensa (jornais) como tema de
guerra. Distancia quem já está distante, não chega a quem mais interessa.

Ainda Bosi: a História tece fios de continuidade, esquemas e sentidos. A poesia considera o
descontínuo, o acaso, o aleatório, o mistério. Como, diante disso, refletir sobre “o novo ciclo
de colonização” que veio com a descoberta dos veios de ouro em Minas? Ou sobre a segunda
guerra mundial?

No que se refere ao Romanceiro, Cecília afirma que ele lida com um acontecimento que, para
os coevos, foi vivido como “traumatismo”. A Segunda Guerra Mundial não teria algo de
parecido? Quais relações podemos estabelecer entre o trauma cuja herança nos chega intacta
ao longo das vozes de fantasmas de 200 anos e o trauma que está acontecendo, está por
acontecer - e, em certo sentido, foi vivido mas não foi experenciado?

“Como escrevi o Romanceiro da Inconfidência”, 20/04/1955, Cecília Meireles.


Muitas vezes me perguntei por que não teria existido um escritor do século 18 - e houve
tantos, em Minas! - que pusesse por escrito essa grandiosa e comovente história. Mas a
duzentos anos de distância, pode-se entender porque isso não aconteceu, principalmente se
levarmos em conta a importância do traumatismo provocado por um episódio desses, em
tempos de duros castigos, severas perseguições, lutas sangrentas pela transformação do
mundo, em grande parte estruturada por instituições secretas, de invioláveis arquivos.

Também muitas vezes me perguntei se devia obedecer a esse apelo dos meus fantasmas, e
tomar o encargo de narrar a estranha história de que haviam participado e de que me
obrigaram a participar também, tantos anos depois, de modo tão diferente, porém, com a
mesma, ou talvez maior, intensidade.

Sem sombra de positivismo, posso, no entanto, confirmar por experiência a verdade de que
“somos sempre e cada vez mais governados pelos mortos”. Porque nesse mundo emocional
que o tempo acumula todos os dias nem o mais breve suspiro se perde, se ele foi dedicado ao
aperfeiçoamento da vida. Muitas coisas se desprendem e perdem - ou parecem desprendidas e
perdidas - ilimitado tempo; mas outros vêm, como heranças intactas, de geração em geração,
caminhando conosco, vivas para sempre, vivas e atuantes, e não lhes podemos escapar, e
sentimos que não lhes podemos resistir.

[...]

Nesse ponto descobrem-se as distâncias que separam o registro histórico da invenção poética:
o primeiro fixa determinadas verdades que servem à explicação dos fatos; a segunda, porém,
anima essas verdades de uma força emocional que não apenas comunica fatos, mas obriga o
leitor a participar intensamente deles, arrastado no seu mecanismo de símbolos, com as mais
inesperadas repercussões.

Ainda que se soubessem todas as palavras de cada figura da Inconfidência, nem assim se
poderia fazer o seu simples registro numa composição de arte. A obra de arte não é feita de
tudo - mas apenas de algumas coisas essenciais. A busca desse essencial expressivo é que
constitui o trabalho do artista. Ele poderá dizer a mesma verdade do historiador, porém de
outra maneira. Seus caminhos são outros, para atingir a comunicação. Há um problema de
palavras. Um problema de ritmos. Um problema de composição.

Notar os diversos ecos entre a formulação de Cecília e a formulação, feita uns anos antes,
ainda no início da guerra, por Walter Benjamin (em “Sobre o conceito de História”).
Hipótese de leitura: o modo como Cecília reflete sobre a relação entre história e poesia ao
longo de O romanceiro da Inconfidência, que trata da presença fantasmática de um passado
de duzentos anos, pode ajudar a pensar a maneira como ela se apropria da história presente,
que igualmente tem uma presença fantasmática, uma estranha presença (no sentido que Freud
dá à expressão).

Escrever o trauma exige em Cecília “uma certa ausência do mundo”, que a própria poeta
considerava seu maior defeito - supondo-se que seja, para ela, o maior defeito de sua poesia.
Já Alfredo Bosi tinha sublinhado que talvez fosse melhor inverter a autocrítica negativa em
chave positiva: “uma certa ausência do mundo” era a chave para um distanciamento que
permitia o poema, nas palavras de Cecília, “humanizar o homem”.

Anélia Montechiari Pietrani, em “A palavra ecopoética de Cecília Meireles”: notar que


Cecília expressou “uma certa ausência do mundo”. Ou seja, há uma modulação. Não se trata
de uma ausência pura e simples. Para pensar: possível interpretação à luz dos poemas de Mar
absoluto, da expressão “uma certa ausência do mundo”.

A chave de aproximação a vincular os traumatismos da colonização e da guerra poderia ser


imagens comuns entre os dois livros MA e RI: os cavalos, por exemplo, em “Dos cavalos da
Inconfidência” (p. 273, RI) e em “Lamento do oficial por seu cavalo morto” (p. 540, MA).

Mais uma vez Pietrani: a tensão entre humanidade e natureza seria uma constante na poesia
de Cecília. Ao violentar a natureza (os cavalos) a humanidade se afasta de si mesma.

Um poema-chave: “Compromisso” (p. 461 e ss., MA): “secular compromisso”: os


antepassados, e os homens, e as mulheres, crianças, velhinhos, gente de mar, gente de terra, o
povo, as coisas sofredoras vivem por meio do eu poético com ecos de Whitman: “Esta sou eu
- a inúmera”, que tem o entendimento de ser pagã “como as árvores” ou “como um druida”
ou “das raízes, das nuvens, dos bichos e dos arroios caminheiros”. O fechamento de grande
beleza: “E somos um bando sonâmbulo/ passeando com felicidade/ por lugares sem sol nem
lua”.

A relação de seres como raízes, nuvens e arroios, bem como dos bichos, com o eu lírico ajuda
a interpretar “Jornal, longe”, no qual flores, abelhas, sol, folhas etc., podem ter papel
compositivo semelhante. Note-se que, enquanto “Jornal, longe” apresenta um sol que
aparece, em “Compromisso” sol e lua não existem.

Há muitos modos de pensar MA como livro (como um todo composto por formas e sentidos
entrelaçados): Laura Beatriz Fonseca de Almeida, “Pelo mar absoluto, navegam os versos de
Cecília Meireles”: um eu rememora sua história e se vê sobrevivente de naufrágios, chegando
à consciência da viagem pelo mar absoluto. O mar, neste caso, é refúgio do ser exilado, do
estrangeiro, e também espaço simbólico (até mesmo subjetivo) da tensão entre o fugaz e o
eterno, o efêmero e o perene.

Circularidade entre efemeridade e perenidade. Efêmero: parte dos poemas de MA saiu


primeiramente publicada em A Manhã. Servia para “embrulhar”? Perene: depois, os poemas
são compostos da forma do livro.

Bosi, no artigo já referido, fala do mar em Cecília como instância que permite pensar
“estados mutáveis da subjetividade”. Ou seja, a perenidade do mar e a efemeridade subjetiva
se comungam expressando-se mutuamente.

Neste sentido, digamos que para Almeida e para Bosi, as viagens em Cecília, especialmente
em MA são viagens interiores, subjetivas, ainda que devamos considerar a importância das
viagens “objetivas” pela Índia, pela Itália e mesmo por Ouro Preto como linhas mestras da
poesia de Cecília.

Almeida ainda: um eu que rememora. Rememoração, memória. De acordo com Murilo


Marcondes Moura, Cecília constrói eus poéticos que se afastam do mundo e da guerra por
meio de uma perspectiva civil, feminina e pacifista. A masculinidade seria neutralizada pelo
deslocamento dela em direção ao infantil e “o monumental é sistematicamente confiscado”.
Cecília: “eu quero a memória acesa/ depois da angústia apagada” (p. 472, MA).

Ainda Murilo Marcondes Moura: atenção ao detalhe, ao “mínimo”, o apego carinhoso com
seres que não importam caracterizam a perspectiva de Cecília sobre a guerra.

É curioso, aponta Moura, como o lirismo delicado de Cecília foi, entre todos, “um dos mais
permeáveis aos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial” (p. 238).
A crítica poética à guerra e à violência colonial como fundamento da definição do lirismo de
Cecília. Ver “Evidência”: “Nunca mais cantaremos/ com o antigo vigor/ o entusiasmo era
inútil/ e desnecessário, o amor” (MA, p. 550 e ss.).

O que significa ter sido a poeta brasileira mais permeável aos acontecimentos da grande
guerra? Poemas sobre a guerra em MA: “Sugestão” (463), “Museu” (464), “Lamento da
noiva do soldado” (481), “Os presentes dos mortos” (484), “Balada do soldado Batista”
(495), “Cavalgada” (499), “Lamento da mãe órfã” (509), “Desenho” (523), “Lamento do
oficial por seu cavalo morto” (540), “Guerra” (541), “Os homens gloriosos” (545),
“Evidência” (550), “As formigas” (573), “Jornal, longe” (581).

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