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Originária do grupo individualista do Rio de Janeiro que se destacou pela edição da revista
modernista Festa, Cecília Meireles é a melhor representante da moderna poesia intimista brasileira. A
poesia de Cecília Meireles tem marcas singulares dentre os poetas de sua geração: seus versos são, do
ponto de vista lingüístico, os que mais se utilizam do virtuosismo das palavras. A poesia, sem medo do
belo, cultiva um lirismo de acentuado tom reflexivo. Cecília revela-se uma poetisa que, através da evasão
pelo sonho, pelo mar, pelo vento, pelas coisas abstratas e sensitivas, enfim, alcança o tom essencialmente
intimista. Em Cecília serão raros, quase nulos, os momentos que a poesia se afasta do tema do Eu. Esse
é o caso de O Romanceiro da Inconfidência. Ainda assim, seus traços líricos demonstram as fortes
heranças simbolistas (daí a denominação de neo-simbolista). Resta evidente, sobretudo, a preferência
pelas sensações, noções – uma espécie de filtragem, via subjetividade, do tema histórico, buscando a
essência dos fatos, suas significações. Os versos de O romanceiro também pouco perdem em termos de
musicalidade, sendo recorrentes as aliterações e assonâncias, além das mudanças rítmicas.
Apesar de ser essencialmente lírica e subjetiva, Cecília Meireles não deixou de realizar a chamada
poesia histórico-social. O Romanceiro da Inconfidência permanece até hoje como uma das melhores
obras sobre a Inconfidência Mineira, narrando desde a fundação de Vila Rica até a exploração do ouro e a
prisão e morte de Tiradentes e de outros inconfidentes.
“Etimologicamente, o termo “romance” significa língua popular, opondo-se à língua literária, que
era ainda o latim nos primeiros tempos da época medieval nas civilizações dos povos ocidentais,
integrantes do antigo império romano. Ficou, em conseqüência, como sinônimo de vernáculo, e como os
poemas narrativos eram escritos em romance, a palavra passou a especificar essas composições...
Formalmente, os romances são poemas narrativos populares, de forma estrófica e de extensão
indeterminada. Quanto à estrutura rítmica, podem apresentar rimas assoantes ou consoantes, aparecendo
também versos soltos; quanto à métrica, os versos de redondilha maior são os mais freqüentes, seguidos
dos decassílabos e dos de redondilha menor.” (Hênio Tavares, in Teoria Literária)
A própria Cecília, em Conferência proferida na Casa dos Contos, em Ouro Preto, no ano de 1955,
traduz a escolha da forma:
“O “Romanceiro” foi construído tão sem normas preestabelecidas, tão à mercê de sua expressão
natural que cada poema procurou a forma condizente com sua mensagem. Há metros curtos e longos;
poemas rimados e sem rima, ou com rima assonante – o que permite mais fluidez à narrativa. Há poemas
em que a rima aflora em intervalos regulares, outros em que ela aparece, desaparece, reaparece, apenas
quando sua presença é ardentemente necessária. Trata-se, em todo caso, de um “Romanceiro”, isto é, de
uma narrativa rimada, um romance: não é um cancioneiro – o que implicaria o sentido mais lírico da
composição cantada.” (Cecília Meireles)
Além dos romances, ocorrem ainda os cenários e as falas. Quantos aos primeiros, os cenários
são responsáveis pelas mudanças de ambiente e de atmosfera; já as falas permitem intervenções do
poeta-narrador, comentários e reflexões.
2. Características
a) Fidelidade histórica – Cecília revela que, para a construção do poema, foram necessárias
pesquisas, não apenas relativas à “história oficial”, como também à popular, com seus mitos.
b2) O tom evocativo: o mergulho no passado, no atroz labirinto do tempo, nas ressonâncias
incansáveis de Vila Rica revela a ânsia da procura de um significado para os fatos:
“Ó meio-dia confuso
ó vinte-e-um de abril sinistro,
que intrigas de ouro e de sonho
houve em tua formação?
Quem condena, julga e pune?
Quem é culpado e inocente?”
b4) O tom deprecativo: destacado por AlfredoBosi, a deprecação surge no poema como uma
tentativa de evocação de uma “justiça histórica”, com tons de revisão:
“Ó soberbos titulares,
tão desdenhosos e altivos!
Por fictícia austeridade,
vãs razões, falsos motivos,
inutilmente matastes:
– vossos mortos são mais vivos;
e, sobre vós, de longe, abrem
grandes olhos pensativos.”
(Romance LXXXI ou dos ilustres assassinos)
c) Painel amplo – o objetivo de Cecília parece ser o de contar uma versão da história pela “via
humana”, dos indivíduos envolvidos na revolução. Composto por 85 romances, 5 falas, 4 cenários e
2 poemas avulsos (Imaginária serenata e Retrato de Marília em Antônio Dias ), o Romanceiro da
Inconfidência oferece um amplo painel não somente da Inconfidência Mineira em si, mas também dos
fatos que a precederam, desde a descoberta do ouro em Minas Gerais até a destruição do movimento
depois da traição de Joaquim Silvério dos Reis, que o delatou.
d) Nacionalismo – o Romanceiro pode ser considerado uma obra nacionalista à medida em que
exalta a liberdade, a independência e os brasileiros que tiveram coragem de se opor à dominação que os
portugueses queriam impor ao Brasil através da cobrança do quinto, o imposto sobre o ouro retirado da
terra.
f) Uma visão da própria autora - segundo Cecília Meireles, anos depois da publicação do
Romanceiro, em Ouro Preto, no I Festival da cidade onde se deu a Inconfidência:
“Muitas vezes me perguntei por que não teria existido um escritor do século XVIII – e houve
tantos, em Minas! que pudesse por escrito essa grandiosa e comovente história. Mas há duzentos anos de
distância pode-se entender por que isso não aconteceu, principalmente se levarmos em conta o
traumatismo provocado por um episódio desses, em tempos de duros castigos, severas perseguições,
lutas sangrentas pela transformação do mundo, em grande parte estruturada por instituições secretas, de
invioláveis arquivos.
Também muitas vezes me perguntei se devia obedecer a esse apelo dos meus fantasmas, e
tomar o encargo de narrar a estranha história de que haviam participado e de que me obrigaram a
participar também, tantos anos depois, de modo tão diferente, porém, com a mesma, ou talvez maior,
intensidade.
Sem sombra de pessimismo, posso, no entanto, confirmar por experiência a verdade de que
somos sempre e cada vez mais governados pelos mortos.
No decorrer das minhas incertezas e dos meus escrúpulos em aproximar-me de tema tão grave,
os fantasmas começaram a repetir suas próprias palavras de outrora: as palavras registradas no
depoimento do processo, ou na memória tradicional, vinham muitas vezes e inesperadamente, já
metrificadas.(...) Até os nomes de alguns personagens foram versos perfeitos:
“To/más/An/tô/nio/Gon/za/ga”
1234567
“Do/na/Bár/ba/ra E/lio/do/ra”
1234567
“Joa/quim/Jo/sé/da/Sil/va/Xa/vi/er”
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Assim, a primeira tentação diante do tema insigne, e conhecendo-se, tanto quanto possível,
através dos documentos do tempo, seus pensamentos e sua fala, seria reconstituir a tragédia na forma
dramática em que foi vivida, redistribuindo a cada figura o seu verdadeiro papel. Mas se isso bastasse, os
documentos oficiais com seus interrogatórios e respostas, suas cartas, sentenças e defesas realizariam a
obra de arte ambicionada, e os fantasmas sossegariam, satisfeitos.”
g) O tom crítico – apesar de toda a importância simbólica e histórica, surpreendeu a Cecília que
a Inconfidência nunca tivesse sido abordada em poesia ou romance com a intensidade que o merecesse. A
idéia de Cecília, assim, pretendia, mais que preencher uma lacuna, interpretar os fatos ocorridos pela
perspectiva humana, preferindo, pois, enfatizar os personagens da história. Na “Fala Inicial”, Cecília
revela que o Romanceiro não julga, nem pretende julgar o ocorrido ou os seus responsáveis; trata-se
antes de um jogo de reflexões, resgatando os indivíduos até seus últimos dias:
Fala Inicial
Não posso mover meus passos
Por esse atroz labirinto
De esquecimento e cegueira
Em que amores e ódios vão:
– pois sinto bater os sinos,
percebo o roçar das rezas,
vejo o arrepio da morte,
à voz da condenação;
– avisto a negra masmorra
e a sombra do carcereiro
que transita sobre angústias,
com chaves no coração;
– descubro as altas madeiras
do excessivo cadafalso
e, por muros e janelas,
o pasmo da multidão.
...
Ó meio-dia confuso,
ó vinte-e-um de abril sinistro,
que intrigas de ouro e de sonho
houve em tua formação?
Quem condena, julga e pune?
Quem é culpado e inocente?
Na mesma cova do tempo
Cai o castigo e o perdão.
Morre a tinta das sentenças
e o sangue dos enforcados ...
– liras, espadas e cruzes
pura cinza agora são.
Na mesma cova, as palavras,
e o secreto pensamento,
as coroas e os machados,
mentiras e verdade estão.
...
Não choraremos o que houve,
nem os que chorar queremos:
contra rocas de ignorância
rebenta nossa aflição.
Choraremos esse mistério,
esse esquema sobre-humano,
a força, o jogo, o acidente
da indizível conjunção
que ordena vidas e mundos
em pólos inexoráveis
de ruína e de exaltação.
Ó silenciosas vertentes
por onde se precipitam
inexplicáveis torrentes,
por eterna escuridão!
3. Ciclos
Podemos dividir o Romanceiro em quatro ciclos, demarcados pelos quatro cenários:
Mas o lugar foi aquele que, também, serviu de berço a uma revolução:
“Ladrões e contrabandistas
estão cercando os caminhos;
cada família disputa
privilégios mais antigos;
os impostos vão crescendo
e as cadeias vão subindo.”
Chega às suas terras, com o fim secreto de prendê-lo, o Conde de Valadares, homem enganoso e
fingido. Hospeda-se nas terras de João, que lhe abre a casa e o coração das mulatas, menos o de Chica
da Silva. A riqueza de Fernandes é imensa, e o fingido conde suspira de cobiça:
O romance XIV apresenta Chica da Silva no seu império de luxo, resplandecente de ouro e
diamante. Comparada à rainha de Sabá, ela tinha mais brilho que Santa Ifigênia, a princesa núbia, em
dias de festa:
“Que andor se atavia
naquela varanda?
É a Chica da Silva:
é a Chica – que – manda!”
No Romance XV ou das Cismas da Chica da Silva, Chica, desconfiada do Conde, aconselha João
Fernandes a se prevenir, pois julga o nobre um homem arruinado, mas ambicioso. As impressões de Chica
dão conta de que serão traídos:
E o contratador responde
(imagino o que dizia) :
– O Conde de Valadares
de mágoa e pesar definha,
por ter a família ausente
e a nobre Casa em ruínas.
Aqueles folhetos de ouro
iluminaram – lhe a vista.
Se é de pobreza que sofre,
que custa, dar – lhe alegria?
Não se há de dizer que a um nobre
não deram socorro as Minas...”
(...)
“E diz a Chica da Silva
ao ricaço do Tejuco:
– Eu neste Conde não creio;
com seus modos não me iludo;
detrás de suas palavras,
anda algum sentido oculto.
Os homens, à luz do dia,
olham bem, mas não vêem muito
dentro de quatro paredes,
as mulheres sabem tudo.
Deus me perdoe, mas o conde
vem cá por outros assuntos.”
Romance XIX ou dos Maus Presságios: traçando-se um retrato do tempo, nota-se que, longe
da Coroa, nobres e aristocratas faziam suas leis e enriqueciam através de desmandos:
B) Cenário de Vila Rica e seus inconfidentes – originando-se através do cenário de Vila Rica,
cidade onde os fatos irão se desenrolar, a poesia passa a analisar a justiça junto ao movimento de
liberdade.
“O país da Arcádia
jaz dentro de um leque:
existe ou se acaba
conforme o decrete
a Dona que o entreabra,
a Sorte que o feche.”
“Nomes aparecem
nas fitas que esvoaçam:
Marília, Glauceste,
Dirceu, Nise, Anarda ...
__ O bosque estremece:
nos arroios, claras
ovelhinhas bebem.
Sanfonas e flautas
suspiros repetem.”
Havia toda uma sociedade, uma heterogeneidade de espíritos. A mocidade trazia da Europa
novas idéias. Dos EUA vinha a “nova da Independência” (Romance XXI ou das idéias):
Com a morte do príncipe, filho de D. Maria I, a rainha louca, em 1788, perde-se a oportunidade
de um governo novo. Nas exéquias do príncipe, muita agitação. Alguma coisa começa a ser tramada:
“A palavra Liberdade
vive na boca de todos:
quem não a proclama aos gritos,
murmura – a em tímido sopro.”
Avisos anônimos de que ocorreria uma revolução não esfriam o ânimo do alferes Tiradentes, que
grita por liberdade até mesmo em público (Romance XXVII ou do animoso alferes):
Mas haveria quem enriquecesse entregando o levante: Joaquim Silvério (Romance XXVIII).
“Ai, que traiçoeiro invejoso
junta às ambições a astúcia.”
A imagem de Tiradentes é plena de contradição: é herói, pois queria mudar Vila Rica; é louco,
pois era apenas um alferes. (Romance XXXI ou de mais tropeiros):
É o Alferes Tiradentes.”
Testemunhas falsas são armadas. Eles justificam o castigo da lama no inferno com os alívios das
dores na terra. (Romance XLIV):
Presos e exilados, os inconfidentes são motivo para poemas de alta carga lírica. Cláudio Manuel
da Costa (Romance XLIX) tem uma morte misteriosa: suicídio? punhal? atilho (forca)? Talvez até tivesse
escapado, e outro corpo tivesse sido posto em seu lugar:
Inácio Pamplona (Romance L), um dos inconfidentes que “salvou a pele” entregando
companheiros, talvez tivesse levado consigo alguém encoberto (julgavam que era Cláudio Manuel e, nesse
caso, Pamplona poderia ser o embuçado).
As sentenças (Romance LI) são dadas conforme a posição social (financeira) de cada acusado:
Até o carcereiro sabe que a forca sobrará para o mais pobre, no caso Tiradentes. As palavras de
condenação são evasivas, já que têm mais poder que os fatos: transformam pessoas em degredos ou
enforcados.
Tomás Antônio Gonzaga também é preso e exilado na África, separando-se de sua Marília.
Os bens de Tiradentes são arrebatados. Ocorre ainda uma tentativa de amenizar-lhe a pena,
afirmando-se que o alferes teria insanidade mental. Um culpado, contudo, se fazia necessário. Escolheu-se
aquele que fazia pregações públicas (Romance LVII ou dos vãos embargos):
Só por indiscrição,
quiméricas idéias
proferiu – sem escolha
de tempo ou de lugar
– e pela condição de temerário insano
que se deve perdoar.”
Romance LVIII ou da grande madrugada
Episódio de grande força lírica que apresenta uma imaginária fala de Capitania, o carrasco de
Tiradentes, emocionado pelo fato de ter de executar aquele que lhe daria a liberdade:
Juliana de Mascarenhas,
distante rosa oriental,
estende os teus negros olhos
por essas praias do mar:
Vê se já não via baixando,
vê se já não via baixar,
dentre as velas, dentre as cordas,
dentre as escadas da nau,
aquele que vem de longe,
aquele que a sorte traz
– quem sabe, para teu bem,
– quem sabe, para seu mal...
Ai, terras de Moçambique,
ilha de fino coral,
prestai atenção às falas
que vão correndo pelo ar:
“Aquele é o que vem de longe,
que se mandou degredar?
Por três anos as masmorras
o viram, triste, a pensar.
Os amigos que não tem mais,
foram para outros degredos;
– Deus sabe quem voltará!
A donzela que ele amava,
entre lavras de ouro jaz;
na grande arca do impossível
deixou dobrado o enxoval,
uma parte, já bordada
outra parte, por bordar.
Muito longe é Moçambique...
– Que saudade a alcançará?”
Juliana de Mascarenhas,
Deus sempre sabe o que faz:
põe teu vestido de tisso,
bracelete, anel, colar.
Mais do que Marília, a bela,
poderás aqui brilhar.
Vem ver este homem tranqüilo
que mandaram degredar.
Romance LXXVIII ou de um tal Alvarenga
Separado da mulher, Bárbara Eliodora, e da filha, Maria Ifigênia, Alvarenga Peixoto foi morrer na
África:
A morte foi muito longe,
numa negra terra brava.
Tinha tido tal nobreza,
tanto orgulho, tantas lavras!
E agora, do que tivera,
a vida, só, lhe restava.
(...)
Era ele o tal Alvarenga,
que, apagada a glória antiga,
rolava em chãos de masmorra
sua sorte perseguida.
Fechou de saudade os olhos.
Deu tudo o que tinha: a vida.
ajoelhada no pavimento
que vai ser sua sepultura.)
Ó personagens solenes
que arrastais os apelidos
como pavões auriverdes
seus rutilantes vestidos,
– todo esse poder que tendes
confunde os vossos sentidos:
a glória, que amais, é desses
que por vós são perseguidos.
Considerai no mistério
dos humanos desatinos,
e no pólo sempre incerto
dos homens e dos destinos!
Por sentenças, por decretos,
pareceríeis divinos:
e hoje sois, no tempo eterno,
como ilustres assassinos
Ó soberbos titulares,
tão desdenhosos e altivos!
Por fictícia austeridade,
vãs razões, falsos motivos,
inutilmente matastes:
– vossos mortos são mais vivos;
e, sobre vós, de longe, abrem
grandes olhos pensativos.