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Karine Ramaldes
Resumo: A partir da pesquisa bibliográfica relacionada com a prática pedagógica dos jogos
teatrais, este artigo estabelece uma reflexão entre o sistema de Viola Spolin e o conceito
de experiência, em algumas de suas abordagens, principalmente as reflexões a partir de
William James e John Dewey. O estudo ocorre dentro do marco investigativo do mestrado
e doutorado em Performances Culturais da Universidade Federal de Goiás.
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Muitas destas questões são desenvolvidas com mais detalhes e propriedade pelo texto de Viesenteiner
(2013) O conceito de vivencia (Erlebnis) em Nietzche.
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23 anos. James fez parte da Expedição Thayer, onde elaborou até um pequeno
dicionário tupi-inglês, de uso privado, enquanto criticava a preguiça dos povos aqui
nativos. Como um dos fundadores da psicologia experimental, James é
responsável pelo conhecido paradigma que as emoções tem causas físicas
primeiras, e não o contrário, a chamada teoria James-Lange3 que afirmava em seu
conhecido exemplo que, se vemos um urso, corremos e consequentemente
sentimos medo. As batidas de coração, o nível de adrenalina seriam as nossas
emoções ou o provocar delas. A discussão é complexa e mereceria um maior
detalhamento, impossível aqui neste curto espaço, mas ajuda ao entendimento do
ponto de vista da experiência como um processo de sentir pensado ou, pelo menos,
que se questione aqui o senso comum da relação pensar/sentir/agir numa ordem
sequencial e isoladas.
Dewey, de certa forma seu discípulo, muito influenciado pelo pensamento de
James, se doutora com uma tese sobre Kant em 1884, na Johns Hopkins
University, o que evidencia seu profundo conhecimento da filosofia alemã ao lado
de sua paixão pelo pensamento grego antigo. Dewey, em texto de 1930, refletindo
sobre sua formação, afirmava ter sido uma das primeiras pessoas nos EUA a se
“aventurar no especulativo, dúbio e ortodoxo pensamento alemão” (WARDE, 2013,
p. 171). Estipuladas as relações intensas entre o pensamento alemão e os
trabalhos de James e Dewey podemos nos deter agora em algumas questões
levantadas pelos dois pragmatistas para se entender de forma densa um pouco
mais profundamente o sentido em que se construiu o termo experiência.
O psicólogo e filósofo William James acreditava que seriam muitos os “reinos
da realidade” que podemos experienciar. Neles o encontro do ser humano com a
realidade não era apenas o de um simples encontro entre o eu e o externo a ser
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A teoria de James-Lange é uma hipótese sobre a origem e a natureza das emoções e é uma das primeiras
teorias da emoção na psicologia moderna. Foi desenvolvido de forma independente por dois estudiosos do
século XIX, William James e Carl Lange. A premissa básica da teoria é que a excitação fisiológica instiga a
experiência da emoção. Em vez de sentir uma emoção e subsequente resposta fisiológica (corporal), a
teoria propõe que a mudança fisiológica é primária, e a emoção é experimentada quando o cérebro reage
às informações recebidas pelo sistema nervoso do corpo. Ele propõe que cada emoção específica esteja
ligada a um padrão único e diferente de excitação fisiológica e comportamento emocional em reação devido
a um estímulo emocionante.
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atravessado por determinado fenômeno. Há, para James, o mundo dos objetos
físicos e da experiência sensorial; mas também o mundo da ciência; existe ainda a
filosofia e a matemática e suas verdades abstratas e relações ideais; existem as
distorções das ilusões e preceitos que nos acompanham e determinam nossos
caminhos; há a mitologia e a ficção que compõe a nossa cultura; há a religião; e
não podemos ignorar as opiniões subjetivas; e como não reconhecer o mundo da
loucura que pode nos desconectar da realidade em que outros podem acreditar
prontamente. Certamente habitamos e experienciamos ao mesmo tempo e durante
nossa vida mais do que um destes mundos em que estamos e que nos determinam
(JAMES, 1890, p. 292-299). Não somos sujeitos passivos, mas sim vivemos em
uma realidade múltipla, com a qual interferimos e somos influenciados por ela, da
mesma maneira que, ao ver uma igreja muitos fazem automaticamente o sinal da
cruz.
Até cerca de 1870 a experiência não tinha ainda um status conceitual,
Erlebniz era assim compreendida apenas como o estar presente na vida quando
algo acontece, era a constatação de um estado. O surgimento deste conceito em
sua forma ainda difusa tem relação com a busca por uma linguagem, um termo ou
compreensão que se referisse aos sentimentos do homem ou da mulher e
apresentasse a importância do conhecimento pelo e no viver em oposição ao
simples pensar, a procura de um entendimento da vida que se fundasse nas
“vivências” e não apenas no pensamento, naquilo que era vivido ou experienciado,
em oposição a consciência. Vários pensadores procuravam elaborar outra forma
de conhecimento que não fosse apenas o de pensar e sim o de existir, que se
desenvolvia de forma avassaladora no reino do conhecimento humano
impulsionado pelas chamadas ciências humanas.
Será o filósofo alemão Wilhelm Dilthey (1833-1911) o primeiro que irá
aproximar a consciência e a vivência, ou a reconhecer os elementos de consciência
do fenômeno da “pura” experiência: Afirmava Dilthey (apud BAND, 1922, p. 63)
que: objetos e ideias, assim como sentimentos, são primeiramente vivências em
minha consciência, onde experiência (Erlebnis) representaria o rigoroso instante
em que “sentimos” algo, mas não um sentir sem pensar, ao contrário, um sentir
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pensado. Para dizer de outro modo, a relação teórica em Dilthey deriva de uma
relação experimental que é primeiramente tanto prática quanto teórica. O mundo
da experiência vivida não é apenas uma representação teórica, são valores
incorporados, existimos em um mundo onde não há um simples encontro entre o
eu e o externo, existem vários mundos onde experienciamos e construímos nossas
sensações, a linguagem preexiste, a cultura preexiste, as distorções das ilusões,
as mitologias e a ficção, as opiniões subjetivas preexistem.
Assim temos que o conteúdo da existência não é apenas sensação e/ou
representação, e também não existe apenas um eu e um acontecimento exterior a
mim. A experiência está correlacionada às diversas maneiras como
experimentamos as coisas, e os significados que as coisas adquirem a partir de
nossa experiência, ou seja, a experiência reflexiva é primordial na formação do
conhecimento humano, uma relação dinâmica do agir e do pensar, um pensar
agindo ou um agir pensando.
Hans-Georg Gadamer (1900-2002), outro filósofo alemão que se dedicou ao
entendimento da experiência mais recentemente, a partir de 1960, em seu Verdade
e Método, desenvolve o conceito de experiência em duas vertentes, incorporando
a experiência com a reflexão, estabelecendo o que ele chama de Erlebnis, que
seria experiência de vida e Erfahrung, que designaria a experiência científica. Neste
contexto desenvolve um processo de formação do conhecimento que se apresenta
como “o modo de perceber que vem do conhecimento e do sentimento...”. Neste
sentido, formação significa mais do que cultura, é um aperfeiçoamento de
faculdades e talentos.” (GADAMER, 2012 [1960], p. 45, 46). Para Gadamer “Na
formação... é possível apropriar-se totalmente daquilo em que e através do que
alguém é instruído. Nesse sentido, tudo que ele assimila, integra-se nele... Na
formação adquirida nada desaparece tudo é preservado.” (GADAMER, 2012
[1960], p. 47). Se Gadamer compreende que, na “formação adquirida nada
desaparece tudo é preservado”, percebe-se aqui uma estreita conexão com o
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pensamento em ato, pois não haverá possibilidade de arranjo prévio. São utilizados
todos os elementos que cercam os jogadores no momento do jogo (aqui/agora),
elementos imaginários, sensitivos e corporais que surgem da relação entre os
jogadores e da relação dos jogadores com o ambiente. Não sabemos o que irá
acontecer, pois as alternativas são incontáveis, dependem de onde o grupo as está
levando. No momento do jogo as experiências passadas, combinadas com as
experiências presentes, transformam-se em uma nova experiência, ou seja, ocorre
o processo de recriação, consequentemente levando os jogadores ao aprendizado
dentro de uma perspectiva de ação no aqui e agora, e cabe aos jogadores se
entregarem à experiência de jogar e aprender jogando, vivenciando ou melhor
experienciando. É uma forma de aprendizado do jogo da vida, muito além do viver
uma determinada regra de interpretação. Arte e vida se confundem.
Os jogos improvisacionais, ao jogar o caminho para a cena, impulsionam o
intuitivo, o viver em ato, ao estar em grupo no momento presente, o focar na solução
do problema e não no indivíduo. Estes elementos são partes constitutivas da vida,
não apenas do teatro. Ao impulsionar o processo, em oposição ao resultado; nada
de invenção ou predeterminação ou “originalidade” ou “idealização”, aprende-se a
viver na vida, e não na elaboração dela. Assim os jogos teatrais iniciam um
processo de pensamento em ato fundamental para a experiência humana.
É evidente a ligação dos jogos teatrais com as técnicas teatrais. Ingrid
Koudela (1991, p. 130) ressalta a influência do ator, diretor, pedagogo e escritor
russo Constantin Stanislavski (1863-1938) no trabalho de estruturação dos jogos
de Spolin. A própria definição de “improvisação” de Spolin está próxima à definição
de Stanislavski. O ator russo, aprofundando os aspectos pedagógicos do fazer
teatral e, em seu tempo criticando as formas tradicionais de ensino de teatro, nos
dizia:
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do agir coletivamente, o que nos prepara para a vivência dos muitos mundos que
se apresentam. Vamos jogar o jogo na vida.
Recebido em 10/03/2019
Aceito em 20/05/2019
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