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1.4. Comunicação indireta no teatro para crianças

Segundo Stanislávski, a comunicação indireta com o público está


diretamente ligada com todas as outras formas de comunicação, pois é
através da comunicação direta em cena que a comunicação indireta (com o
público) ocorre integralmente. A diferença é que nas formas de
comunicação direta, o contato do ator é “direto e consciente” e, na
comunicação indireta o contato é “indireto e inconsciente”, mas ambos são
recíprocos, ou seja, a comunicação com a plateia é fundamental para o ator,
mesmo acontecendo de forma indireta. (STANISL ÁVSKI, 2017, pp. 251-
252). Diz Stanislávski:

– Se você quer uma ideia melhor daquilo que recebe do público,


tente se livrar dele e atuar para uma casa completamente vazia. É
isso que você quer?
Por um momento, eu mesmo me coloquei no lugar de algum pobre
ator atuando para uma casa vazia... e senti que não poderia fazer
isso até o fim.
– E por que é assim? – perguntou Tortsov depois que eu admiti
isso. – Porque, então, não há nenhuma conexão entre o ator e a
plateia, e, sem isso, não pode haver atuação. Atuar sem público é
como cantar em um espaço com uma acústica ruim, cheios
estofados e de tapetes. Atuar para uma sala lotada e receptiva é
como cantar em uma sala com uma boa acústica. O público cria,
por assim dizer, uma acústica psicológica. Ele registra aquilo que
nós fazemos e devolve sua própria vida, os sentimentos humanos
de volta para nós. (STANISLÁVSKI, 2017, pp. 251-252).

Cito aqui quatro exemplos de comunicação indireta: 1) o que o


ator, diretor e teatrólogo russo Konstantín Stanisl ávski denomina de
“comunicação indireta” (com o público) ou “comunicação com um grupo de
objetos” (STANISLÁVSKI, 2017, p. 251); 2) o que, a partir das pesquisas do
diretor e pesquisador russo de teatro e cinema Serguei Eisenstein , pode ser
chamado de “movimento expressivo atrativo” (OLIVEIRA, 2 008, p. 105); 3) o
que o professor e pesquisador teatral italiano Gabriele Sofia e a
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pesquisadora brasileira Ana Paula Zanandréa relacionam com a reação dos


“neurônios-espelho” (SOFIA, 2012, p. 99; ZANANDRÉA, 2013, pp. 4 -5); 4) e
a comunicação como função dos níveis de dramaturgia (narrativa, orgânica
ou dinâmica e evocativa), como configura o diretor e teatrólogo italiano
Eugenio Barba (BARBA, 2014, p. 38-40).
O multiartista Serguei Eisenstein, antes de se tornar cineasta, foi
aluno do ator e diretor russo Vsevolod Meyerhold, tendo sido um encenador
teatral muito interessado na linguagem circense, na estética expressionista
e, assim como Meyerhold, pouco afeito ao naturalismo. Segundo a
professora e pesquisadora teatral Vanessa Teixeira de Oliveira, em seu livro
Eisenstein Ultrateatral: movimento expressivo e montagem de atrações na
teoria do espetáculo de Serguei Eisenstein, o encenador e cineasta russo,
influenciado por Meyerhold, começara a estruturar, juntamente com Serguei
Tretiakóv, o conceito de movimento expressivo no teatro e, mais tarde, o
que ele define como montagem de atrações, ambos os conceitos com ideias
sobre as formas de “atração” que a obra de arte em cena – no teatro e
também no cinema – tem sobre o espectador. (OLIVEIRA, 2008, pp. 104 -
105). Diz Oliveira:

Eisenstein e Tretiakóv reinterpretam a teoria da expressão de


William James, segundo a qual, grosso modo, um estado
psicológico deriva de uma expressão fisiológica. “Não choramos
porque estamos tristes, estamos tristes porque choramos” – é a
famosa frase que resume sua teoria. Conforme Bulgakowa, a teoria
de James é, por eles, combinada com a hipótese do médico inglês
Carpenter de que “a observação de um movimento (mesmo de uma
imagem imaginada de um movimento) produz sobre os músculos d o
observador condições semelhantes, mas enfraquecidas”. Carpenter
foi o primeiro que descreveu esse fenômeno ideomotriz,
comprovado mais tarde pelo método eletrofisiológico. “Você já
pôde observar esse efeito sobre o seu corpo: quando você vê um
filme com perseguições muito energéticas ou um combate violento,
você sente uma tensão física sobre seus próprios músculos”. É
nessa perspectiva que o espectador, ao ver a execução de um
movimento expressivo atrativo, reproduziria reflexivamente e de
maneira mais fraca, o movimento executado pelo ator. (OLIVEIRA,
2008, p. 105).
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Mesmo sendo algo já percebido desde o começo do século,


Gabriele Sofia apresenta em seu artigo Teatro e neurociência: da intenção
dilatada à experiência performativa do espectador, a ideia de “neurônios-
espelho”, a partir de pesquisas em neurociência, iniciadas recentemente,
nos anos 1990, que buscam confirmar as reações físicas daqueles que
veem uma ação sendo realizada, ou seja, um espectador. Diz Sofia:

(...) a relação entre intenção e eficácia da ação também tem


correspondências em alguns estudos de âmbito neurobiológico:
refiro-me às pesquisas sobre o mecanismo dos neurônios -espelho,
iniciadas nos anos 1990 por Giacomo Rizzolatti e sua equipe da
Universidade de Parma. Os neurônios -espelho foram inicialmente
identificados como neurônios visomotores que se ativam tanto
quando um macaco executa uma ação, quanto quando o mesmo
macaco vê um outro macaco ou um ser humano fazer a mesma
ação (Gallese et al., 1996). A revolução que essa descoberta
representou reside no fato de que pela primeira vez foi encontrado
um mecanismo de ligação direta (isso é, não filtrada por um
mecanismo cognitivo explícito) entre a descrição sensorial e a
ativação motora nos processos de percepção e compreensão de
uma ação (...). (SOFIA, 2012, p. 99).

A partir das questões levantadas tanto sobre o “movimento


expressivo atrativo”, sobre a “reflexologia” e, principalmente, sobre os
“neurônios-espelho”, Ana Paula Zanandréa apresenta em seu artigo O sexto
sentido do ator: a importância da percepção cinestésica no teatro , a noção
de que essas questões já eram percebidas artisticamente desde Platão, na
Grécia Antiga. Diz Zanandréa:

Tratando-se de uma das grandes descobertas da neurologia no


século passado, os neurônios espel ho vêm ao encontro do que é
sabido há muito tempo no domínio das artes. Desde Platão se
discute sobre os efeitos morais e físicos da mimese no espectador.
A confirmação científica que os atos cênicos agem no mais íntimo
do espectador legitimam a ideia de q ue o teatro contagia o público.
(...) Atualmente, as pesquisas sobre os neurônios espelho
complementam os estudos anteriores, avançando a discussão. Eles
são ativados quando o observador olha uma ação, a representação
de uma ação ou apenas a sua imagem, pr ovocando uma comoção
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em diferentes intensidades para cada caso citado. Desta forma,


além de decifrar ao cérebro o movimento dos demais seres,
esses neurônios impelem à ação. (ZANANDRÉA, 2013, pp. 4-5,
grifo meu).

Já Eugenio Barba considera vários níveis de organização das


formas de dramaturgia, que são a “dramaturgia narrativa”, a “dramaturgia
orgânica ou dinâmica” e a “dramaturgia evocativa”. Barba atribui a todos
esses níveis importantes funções comunicativas, mas destaco a
“dramaturgia orgânica ou dinâmica” como uma forma possível de
comunicação indireta. Diz Barba:

No nível da dramaturgia orgânica ou dinâmica, eu trabalhava com


ações físicas e vocais, figurinos, objetos, músicas, sons, luzes,
características espaciais. (...) A dramaturgia orgânica é o
sistema nervoso do espetáculo, a dramaturgia narrativa é seu
córtex, a dramaturgia evocativa é aquela parte de nós que, em nós,
vive no exílio. A dramaturgia orgânica faz com que o espectador
dance cinestesicamente em seu lugar ; a dramaturgia narrativa
movimenta conjecturas, pensamentos, avaliações, perguntas; a
dramaturgia evocativa permite que ele viva uma mudança de
estado. (BARBA, 2014, p. 40, grifo meu).

No teatro para crianças, essa comunicação ator-plateia – que se


estabelece como um contato “indireto e inconsciente” (como dizia
Stanislávski), com as “contrações involuntárias” do público (como observou
Eisenstein) ou uma “dança cinestésica” na cadeira por parte dos
espectadores (como aponta Barba) – é extremamente importante e pode
definir reconstruções cênicas e dramatúrgicas a partir da observação dessa
relação.
Por fim, o professor e pesquisador teatral Gilberto Icle, em seu
livro O ator como xamã, trata de uma questão fundamental para a
construção do processo de comunicação cênica – direta ou indireta: a
consciência no trabalho do ator. Com isso, Icle considera duas concepções
do que significaria “consciência”: a consciência de si (enquanto
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autoconhecimento) e a consciência do outro (enquanto julgamento moral).


(ICLE, 2009, pp. XIV-XV). No entanto, ele também considera que a
consciência de si leva a uma “relação mais profunda com o outro ou com os
outros” (ICLE, 2009, p. XV). Diz Icle:

Na história do trabalho do ator, o conhecimento de si foi o foco


central das preocupações de artistas e pesqui sadores dos
comportamentos cênicos, o que não significa que a compreensão
do outro ou da criação coletiva esteja afastada desse universo de
preocupações; ao contrário, o conhecimento de si no trabalho do
ator sempre conduziu para uma relação mais profunda com o
outro ou com os outros, tanto colegas de cena e/ou grupo,
quanto com o público. (ICLE, 2009, p. XV, grifo meu).

Com isso, este projeto busca, em cada um dos processos, a partir


das entrevistas realizadas, questões que apontem o direcionamento para o
público específico de crianças, tanto no processo dos ensaios, quanto nas
apresentações em si.

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