Você está na página 1de 67

FUNDAÇÃO DAS ARTES DE SÃO CAETANO DO SUL

ESCOLA DE TEATRO

RICARDO ALVES DO NASCIMENTO

DRAMATURGIA DO ATOR
O CORPO QUE CRIA

SÃO CAETANO DO SUL


2017
1

RICARDO ALVES DO NASCIMENTO

DRAMATURGIA DO ATOR
O CORPO QUE CRIA
Trabalho de Pesquisa Teatral do curso
Técnico em Teatro da Fundação das Artes de
São Caetano do Sul.
Orientação: Profª. Alessandra Fioravanti

SÃO CAETANO DO SUL


2017
2
3

AGRADECIMENTOS:

À minha orientadora por acreditar no potencial dessa pesquisa, me dando


direcionamento e apoio. E por fazer com que eu olhasse para esse
trabalho com orgulho.

À Melissa Aguiar, por me introduzir no mundo da gestualidade corporal,


por seus apontamentos e observações; por suas dicas e pelo olhar
minucioso lançado sobre esse processo de montagem de formatura.
4

RESUMO

Esse trabalho aborda aspectos sobre a dramaturgia do ator, apontando a


importância da preparação corporal e vocal nessa construção dramatúrgica e
fazendo com que o ator se torne “sujeito” do seu personagem e não apenas
“objeto” reprodutor de um texto.

Palavras-chave: dramaturgia, ator, Biomecânica, Meyerhold, corpo


5

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO
COMO CHEGUEI ATÉ AQUI ----------------------------------------------------------------------------------- p. 07

CAPÍTULO 1
O QUE É DRAMATURGIA DO ATOR? --------------------------------------------------------------------- p. 09

CAPÍTULO 2
O ESTUDO DO CORPO DO ATOR -------------------------------------------------------------------------- p. 12
A GESTUALIDADE VOCAL ------------------------------------------------------------------------------------ p. 13
A GESTUALIDADE CORPORAL------------------------------------------------------------------------------ p. 15

CAPÍTULO 3
BIOMECÂNICA: UM ESTUDO PARA O ATOR------------------------------------------------------ p. 17

CAPITULO 4
DIÁRIO DE BORDO I – RELATOS ATÉ A ESTREIA ---------------------------------------------------- p. 22
DIÁRIO DE BORDO II – RELATOS APÓS A ESTREIA ------------------------------------------------ p. 37

CONSIDERAÇÕES FINAIS -------------------------------------------------------------------------------------------- p. 63

REFERÊNCIAS -------------------------------------------------------------------------------------------------------------- p. 65
6
7

INTRODUÇÃO

COMO CHEGUEI ATÉ AQUI?

Desde o segundo período do curso, quando ouvi na aula de estética teatral, o


professor Warde Max dizer que existiam outros tipos de dramaturgia: a da
iluminação, da cenografia, do ator etc. que fiquei inquieto com esse assunto.
Durante a aula ele explicou que cada uma dessas dramaturgias influenciava no
resultado final de um espetáculo, lhe dando características estéticas únicas.

Até aquele momento eu só tinha ouvido falar em dramaturgia do autor/ escritor.


Fiquei matutando aquilo na minha cabeça e tentando entender. Foi aí que
nasceu a vontade de pesquisar sobre o tema. Minha ideia inicial foi muito
maluca, eu queria pesquisar todas as dramaturgias existentes, e quem sabe
descobrir novas. E o mais maluco ainda é que eu queria escrever uma cena para
cada dramaturgia. É claro que isso não ia dar certo.

Do quarto período para frente foi que me decidi por pesquisar a Dramaturgia do
Ator. Mas o que é a dramaturgia do ator? O ator precisa mesmo de uma
dramaturgia? Como isso funciona?

Nos últimos dois anos eu tive experiências que me deram direcionamento e me


levaram a responder esses questionamentos: Participar durante um ano e meio
do núcleo de investigação corporal, ter uma experiência pratica em performance,
onde o gesto corporal criava e era mais potente do que a palavra em si – essa
experiência foi no espetáculo Neverland ou as (in)existentes faixas de Gaza da
Cia Atehúmus – e mais recentemente a participação no núcleo de dança
contemporânea da Fundação das Artes e o meu ingresso na escola de Ballet
Clássico foi fundamental para que eu tomasse um rumo na minha pesquisa.

O corpo como objeto de criação do ator, o entendimento desse corpo, o


conhecimento do potencial criativo desse corpo. O corpo como um todo desde o
gesto corporal ao gesto vocal. Assim cheguei ao meu tema.

Minha pesquisa tem a intenção de esclarecer a importância da expressividade


corporal em cena; da construção dessa expressividade e a importância de se
incluir características corporais à construção de um personagem, descobrindo o
gesto corporal e vocal que dá identidade ao mesmo.

Vou defender em minha pesquisa a importância que tem para o ator a


descoberta de um corpo expressivo e do potencial que esse corpo pode vir a ter.

 O corpo do ator é o instrumento mais importante para ele criar, mas se


não souber usar isso com potência, sua criatividade não ganha forma.
8

 O gesto vocal também é um instrumento de criação que o ator dispõe


para compor sua dramaturgia. Voz é corpo e essa expressividade vocal
muitas vezes surge a partir do gesto corporal ou vice versa.

Enfim, quero compartilhar as descobertas que farei a cerca desse assunto e


mostrar a importância desse mecanismo de criação que é o corpo do ator.
9

CAPITULO 1

O QUE É DRAMATURGIA DO ATOR?

Vamos primeiro entender basicamente, o que é a dramaturgia em si.

Dramaturgia s.f – Arte dramática ou de compor peças teatrais. (Mini dicionário


prático da língua portuguesa – editora DCL)

“A dramaturgia começa com a história da


humanidade. É uma das mais antigas
expressões da capacidade artística do ser
humano. Arte de representar emoções por meio
de personagens vivenciadas por atores.” Doc
Comparato – Da Criação ao Roteiro, [2009] pg
13.

Peguemos aqui a definição de Doc Comparato, mais especificamente o trecho


onde ele diz que a dramaturgia escrita é a “Arte de representar emoções por
meio de personagens vivenciadas por atores”. A partir dessa definição posso
dizer que o ator tem a capacidade de potencializar o texto dramatúrgico por meio
de sua própria dramaturgia, se utilizando dela para criar, a partir de informações
contidas no texto ou não. O ator tem o poder de representar essas emoções que
o texto lhe trás, não somente com a palavra simplesmente dita – acho que isso é
muito pouco e vazio. Mas também com uma expressividade corporal e vocal.
Contando a história do personagem, indo além da narrativa. Dando ação a voz e
também ao corpo dessa personagem.

Mas o que é de fato essa dramaturgia do ator?

“Cabe ao ator buscar não o passado e a


psicologia da personagem, como uma
representação, mas ações concretas no presente
e sua relação com o figurino, mascara, musica,
gestualidade e outros.” Trecho da tese de
doutorado de Andréa Stelzer – A dramaturgia do
ator e processo de composição cênica [2010].

Levando em consideração o trecho da tese de doutorado de Andréa Stelzer,


defino essa dramaturgia como: a capacidade que o ator tem de criar a partir de
um texto dramatúrgico, ou não, fazendo uso de seus mecanismos de criação:
criatividade, imaginação e os que eu acho mais relevantes, a expressividade
corporal e vocal. Tudo isso no presente, sem a necessidade da criação de uma
história para o entendimento do texto ou de um personagem especificamente. Se
partimos para esse estudo estaremos tendo a visão do ator-autor que põe em
prática a sua capacidade de escrita e nesse aspecto em nada executa sua
10

dramaturgia propriamente dita. Marco de Marins escreveu algo sobre isso em


uma conferência no ano de 1998:

“Ao falar em dramaturgia do ator, não me refiro


aquele fenômeno ator-autor, do ator que escreve
(desde Moliére e Shakespeare a Eduardo de
Felippo e Dario Fo); quero considerar o trabalho
do ator como um trabalho dramatúrgico, isto é,
de invenção e composição, que tem por objetivo
as ações físicas e vocais.” Marco de Marins
[1998].

Creio que os mecanismos mais relevantes e que compõe e definem de fato essa
dramaturgia do ator são: a expressividade corporal e vocal. Apenas o ator é
detentor da arte da expressividade, da criação em cena. Ainda que o encenador
lhe dê indicações de movimentação, intenções e gestos, tanto físicos quanto
vocais etc. Porém para que o ator possa, de fato, ter esse poder de criação ele
deve conhecer, e muito bem, o seu próprio corpo, suas habilidades, seus limites
e potencialidades expressivas e deve buscar sempre um aperfeiçoamento dessa
expressividade. Podendo assim, com propriedade e segurança, se apossar de
sua dramaturgia e exercê-la com excelência.

Dentro dessa perspectiva quero falar um pouco da importância da preparação


corporal para o ator.

Podemos constatar essa importância de forma muito fácil. Posso dar como
exemplo o curso profissionalizante em teatro da própria Fundação das Artes.
Temos no decorrer do curso, que tem duração de 7 semestres, 6 semestres
onde trabalhamos o preparo corporal de forma intensa e muito eficiente. No
primeiro período (primeiro semestre do curso), temos uma introdução à
expressão corporal com movimentações que visam levar o aluno ao
entendimento e descoberta do próprio corpo. E no decorrer do curso vamos
adentrando ainda mais nesse universo da linguagem corporal: conhecendo as
dinâmicas dos movimentos, aprendendo a explorar os níveis (alto, médio e
baixo), as velocidades, as qualidades de movimentos através do Sistema Laban,
as técnicas dos movimentos etc. Todo esse processo nos leva – ou deveria nos
levar – ao entendimento do nosso corpo e do potencial expressivo que temos.

Posso dar ainda outro exemplo que irá confirmar a importância da preparação
corporal, assim como o estudo da movimentação expressiva – da expressividade
extra-cotidiana – que é: grandes companhias de teatro buscam, em seu
processo de criação ou de preparação artística, apoio na preparação corporal
visando manter os atores com um corpo atento à cena. Isso quando não se
utilizam da expressão corporal para criarem. Posso citar duas companhias de
teatro que trabalham dessa forma e que tem em seu processo de criação espaço
garantindo para a preparação corporal: A Cia Artehúmus de Teatro e a Cia de
Teatro do Heliópolis.
11

Trabalhos maravilhosos nascem ou tem sua importância artística potencializada


por meio da expressão corporal e dramaturgia do ator. E a partir disso, posso
dizer que a dramaturgia do ator está contida em seu corpo, que é objeto de sua
própria criação, e que a dramaturgia escrita será contada por esse corpo como
um todo.

Por fim. Volto a dizer que o ator só exerce a totalidade da sua dramaturgia,
quando passa a conhecer e utilizar de forma madura os mecanismos dos quais
dispõe para criar.
12

CAPÍTULO 2

O ESTUDO DO CORPO DO ATOR

Desde o começo do século XX – no teatro ocidental, pois no oriente o teatro é


muito mais corporal – até os dias de hoje, muitos artistas-pesquisadores e
grupos de pesquisa teatral se dedicaram ao estudo do corpo do ator acreditando
na expressividade corporal como elemento principal da criação cênica.

Visando encontrar uma nova forma de criação cênica e de construção de


personagem que fosse diferente da criação proposta por Stanislávski, método
que conhecemos e que é comumente usado até hoje, foi que esses artistas-
pesquisadores encontraram na expressividade do ator um potente mecanismo
de criação cênica. Muitos dedicaram a vida toda em suas pesquisas – fossem
elas de voz ou de corpo – e estabeleceram estudos e formas de criação que
merecem nossa atenção.

O teatro ocidental há anos dá um alto valor ao diálogo em cena. O que é


exaltado no palco é a genialidade do autor, que se utiliza de belas palavras e de
textos bem estruturados e o que se exige dos atores é que simplesmente falem
claramente esses textos para que sejam entendidos.

“[...] como é que o teatro ocidental não enxerga o


teatro sob um outro aspecto que não o do
diálogo?
O diálogo – coisa escrita e falada – não pertence
especificamente à cena, pertence ao livro; [...].
Antonin Artaud – O teatro e seu duplo [1987] pg.
51

O teatro é a arte do ator e não do texto. Meyerhold dizia que “a palavra não é
mais do que um bordado sobre o tecido do movimento”. Grotowski disse algo
parecido com isso, porém relacionado à gestualidade vocal:
“Sabemos que o texto em si não é teatro, que só
se torna teatro quando usado pelo ator, isto é,
graças às inflexões, à associação de sons, à
musicalidade da linguagem.” Jerzy Grotowski –
Em busca de um teatro pobre – [1992] pg. 19

Ou seja, o que rege a ação dramática é a expressividade do ator e sua


capacidade de traduzir, em signos corporais tudo o que o texto quer transmitir e
assim, levar para a cena algo mais concreto, que expresse a poesia do texto não
somente por meio da linguagem articulada, não somente pelo diálogo. Mas
também pela expressividade corporal e vocal que vai conversar e ser atingida
pelos demais elementos que compõem a cena.
13

Dentre esses estudiosos, os que mais me influenciaram nessa pesquisa e


tiveram mais relevância, foram: Antonin Artaud, Jerzy Grotowski, Eugênio Barba
e Meyerhold.

A GESTUALIDADE VOCAL.

ANTONIN ARTAUD1
Artaud foi um dos importantes pesquisadores sobre a gestualidade vocal no
teatro. Em seu “teatro da crueldade” ele defendia o resgate de uma linguagem
teatral única que rompesse com a sujeição do teatro ao texto. Esse resgate se
daria por meio do gesto tanto corporal, mas principalmente vocal; da
expressividade dinâmica da palavra opondo-se à simples expressão do diálogo.
Artaud condena o fazer teatral simplesmente narrativo, que dá ao diálogo (sem
expressividade) a maior importância, ignorando todas as expressividades que
não estão contidas nos diálogos (considerando os diálogos por suas
possibilidades de sonorização em cena).
Em seus espetáculos ele buscou envolver o espectador com signos expressivos.
O espetáculo acontece em volta do espectador. Nesses espetáculos a
sonorização: os sons, ruídos e gritos são buscados por sua qualidade vibratória
e são constantes.
“É a fim de apanhar a sensibilidade do
espectador por todos os lados que preconizamos
um espetáculo giratório e que, ao invés de fazer
da cena e da sala dois mundos fechados, sem
comunicação possível, difunde seus relâmpagos
visuais e sonoros sobre toda a massa dos
espectadores”. – Antonin Artaud – O teatro e seu
duplo [1987] pg. 110

Artaud objetivava em seus espetáculos levar o espectador à vivencia da cena


em si e assim tornar essa experiência a mais viva possível. Para conseguir isso
ele se utilizava de todos os signos possíveis, mas principalmente a vocalização,
explorando ritmos, sons, ressonâncias e tessituras, visando assim acionar a
sensibilidade de quem assiste ao espetáculo levando-os a sensações que eles
não experimentariam assistindo a um teatro puramente narrativo e descritivo.
Portanto, há uma necessidade muito grande de uma gestualidade específica que
leve ao espectador sensações que vão além do que está sendo narrado; que o
faça sentir e não somente entender o que a cena quer comunicar.

1
Antoine Marie Joseph Artaud, conhecido como Antonin Artaud nasceu em Marselha, no dia 4
de setembro de 1896 foi um poeta, ator, escritor, dramaturgo, roteirista e diretor de
teatro francês de aspirações anarquistas. Ligado fortemente ao surrealismo, foi expulso do
movimento por ser contrário a filiação ao partido comunista. Sua obra O Teatro e seu Duplo é um
dos principais escritos sobre a arte do teatro no século XX, referência de grandes diretores
como Peter Brook, Jerzy Grotowski e Eugenio Barba.
14

Entendo a pesquisa vocal dele como a busca para dar representatividade


expressiva ao que se fala. E a aplico em minha própria pesquisa com a vontade
de dar expressividade vocal a um personagem, fugindo assim do gesto vocal
cotidiano.
Jerzy Grotowski2
Outro importante nome, no que diz respeito ao estudo da arte do ator, é o diretor
Polonês Jerzy Grotowisk. Sua pesquisa sobre a gestualidade do ator e
treinamento do corpo são muito importantes. Porém, me interesso mais pelos
seus estudos sobre a voz.
Para Grotowski, o ator devia pesquisar e entender muito bem as possibilidades
do seu próprio organismo e conhecendo-o, descobriria que o número de
amplificadores vocais dos quais possui é quase ilimitado. E assim, não exploraria
apenas a cabeça e o tórax como ressonador, mas também a parte de trás da
cabeça, o nariz, os dentes, a laringe, a barriga, a espinha, enfim, todo o corpo.
“Se levarmos em consideração, por exemplo, o
problema do som, a plasticidade do aparelho
vocal e respiratório do ator deve ser intimamente
mais desenvolvida do que a do homem na rua.
Mais ainda desse aparelho deve ser capaz de
produzir reflexos tão rapidamente, que o
pensamento – que remove toda espontaneidade
– não tenha tempo de intervir.” – Jerzy
Grotowski, Em busca de um teatro pobre – [1992]
pg. 30.

Essa citação ressalta a importância que o encenador dava para o estudo da


gestualidade vocal, do aperfeiçoamento e da prática desse estudo, tão intensa
que a sua execução venha a ser orgânica, sem tempo para o pensamento
racional intervir.
A prática leva o ator a adquirir um vasto repertório, um verdadeiro arsenal
expressivo, podendo assim, escolher e fazer combinações para a construção de
seus personagens.
Refletindo sobre tudo isso; sobre o ponto de vista dos dois artistas-
pesquisadores, citados acima, entendo que há uma necessidade de dar
representatividade expressiva ao que se fala em cena. Há a necessidade de
uma gestualidade vocal para o texto falado pelo personagem.
Dando tal expressividade ao texto; ao diálogo; à obra literária e buscando
explorar todo o potencial vocal que se tem, o ator estará exercendo sua
dramaturgia, criando em cena.

2
Jerzy Grotowski nasceu em Rzeszów, na Polônia em 11 de agosto de 1933. Ele foi diretor de
teatro e figura central no teatro do século XX, principalmente no teatro experimental ou
de vanguarda. Seu trabalho mais conhecido em português é "Em Busca de um Teatro Pobre",
onde postula um teatro praticamente sem vestimentas, baseado no trabalho psicofísico do ator. A
melhor tradução de "teatro pobre" seria teatro santo ou teatro ritual. Nele Grotowski leva às
últimas consequências as ações físicas elaboradas por Constantin Stanislavski, buscando um
teatro mais ritualístico, para poucas pessoas.
15

A GESTUALIDADE CORPORAL

“Toda arte é organização de um material. Para


organizar seu material, o ator deve ter uma
reserva colossal de meios técnicos. A dificuldade
e a especificidade da arte do ator residem no fato
do ator ser ao mesmo tempo material e
organizador. A arte do ator é coisa sutil. O ator é
a cada instante compositor”. – (Texto
estabelecido por M. Koreniev, TSGALI tradução
de Béatrice Picon-Vallin – CNRS).

Dentre os estudos que vi sobre a movimentação do ator, seu corpo e sua


gestualidade, o que mais me interessou foi o do diretor russo, Vsevolod
Emilevich Meyerhold 3 – um dos mais importantes. Ele empenhou-se em
elaborar, a partir de sua pesquisa com atores, músicos, pintores e arquitetos um
estudo prático das diferentes atuações tradicionais, do Teatro Kabuki ao Teatro
Chinês Tradicional, da Comédia de Arte ao Ballet Clássico, do Circo e o Teatro
da Feira ao Teatro Barroco Espanhol; uma técnica de treinamento do ator que
pudesse ser disseminada por toda a nova União Soviética. A Biomecânica
(1921), disciplina da medicina que estuda as forças externas ao corpo humano,
conjugadas com as ações das forças internas do sistema locomotor – foi
desenvolvida por Meyerhold para o trabalho corporal do ator, por meio de três
inspirações: Taylorismo, Reflexologia e Construtivismo.

Dissecando o movimento em gestos exatos, o encenador russo consegue


aplicar, ao trabalho do ator, os princípios tayloristas de economia dos
movimentos e a teoria da reflexologia de James, fazendo com que por meio
desses movimentos selecionados, o ator experimente uma variedade de
emoções geradas a partir de um conjunto de organizações de sua musculatura.
Isso atribui ao ator uma capacidade de estabelecer precisamente a relação entre
sua organização física e as sensações nervosas mais íntimas.

Este sistema não só dá ao ator a base técnica, mas também o ensina a


considerar a forma como uma base para a arte teatral.
Em sua pesquisa, Meyerhold propõe um trabalho plástico e rítmico em oposição
às técnicas de construção propostas por Stanislavski, afirma a necessidade do
aperfeiçoamento do corpo do ator e reflete sobre uma formação para o ator na
qual o gestual e o movimento seriam a matriz da atuação: “o papel do
movimento cênico é mais importante do que o de qualquer outro elemento do
teatro”. Essa fala ressalta essa importância.
3
Vsevolod Emilevich Meyerhold nasceu em Penza, Rússia no dia 28 de janeiro de 1874 - mais
conhecido apenas por Meyerhold foi um grande ator de teatro e um dos mais
importantes diretores e teóricos de teatro da primeira metade do século XX. Fez parte do Teatro
de Arte de Moscou. Durante sua vida artística experimenta várias formas de teatro, sendo mais
conhecido pelos exercícios de intepretação da sua biomecânica e por seu trabalho de
experimentação teatral, influenciando os principais encenadores do século XX.
16

Os princípios da Biomecânica de Meyerhold influenciaram a minha dramaturgia e


me inspiraram na criação do personagem. Seus exercícios servem tanto para
preparo do ator, pois o leva ao entendimento da sua capacidade física e ao
conceito de eficácia e economia de movimentos com o menor dispêndio de
energia; faz com que o mesmo crie repertório corporal por meio dos registros
físicos que os exercícios lhe trazem.
17

CAPITULO 3

BIOMECÂNICA: UM ESTUDO PARA O ATOR

O trabalho de pesquisa de Meyerhold e a Biomecânica Teatral foi o ponto de


partida para a pesquisa artística de alguns dos artistas-pesquisadores já citados
nesse trabalho, entre outros: Jerzy Grotowski, Eugenio Barba, Julian Beck,
Thaddeus Cantor, Peter Brook e Carmello Bene.
Mas o que é a Biomecânica?
A Biomecânica de Meyerhold consiste em um sistema com 44 princípios
pedagógicos criados para direcionar e levar o ator a compreenção da ação dos
movimentos em cena. O sistema sugere uma serie de exercícios, chamados de
“Études” (estudos), que visam o treinamento corporal para o ator.
No decorrer de sua pesquisa Meyerhold elabora uma série de “Études” para
seus alunos, a quem diga que foram mais de 150, porem o que se tem registro
são apenas de 13, os quais citarei mais adiante.
Apos a sua morte, em 1915, seu alunos/ seguidores, sistematizaram os 44
principios da Biomecânica e os resumiram em apenas 7.
A base do sistema consiste em 7 princípios da construção da ação:
1. Movimentos suaves, curvos e contínuos das mãos são preferíveis a
movimentos diretos, envolvendo mudanças de rumo abruptas e cortantes.
2. As duas mãos devem começar e completar suas ações simultaneamente.
3. As duas mãos não devem nunca estar inativas ao mesmo tempo, exceto
durante as pausas no trabalho.
4. Os movimentos dos braços devem ser feitos em direções opostas e
simétricas, e simultaneamente.
5. Os movimentos de mão e corpo devem ser limitados àqueles músculos
que requerem a menor quantidade de esforço (geralmente os dedos,
antebraço e ombro).
6. Os movimentos que envolvem uma só contração de um certo grupo de
músculos são mais rápidos, mais fáceis e mais precisos do que
movimentos causados por grupos de músculos antagônicos.
7. Movimentos rítmicos são, em geral, os mais eficientes.
Estes 7 princípios se concentram em um momento específico do “bios” de um
ator e dão-lhe as coordenadas certas para a gestão consciente da atuação.
É por isso que o ator, que estudou os 7 princípios da construção da ação (as
técnicas), deve exercitar a prática dos “Études”, para desenvolver a
expressividade corporal adequada.
A partir desse ponto de vista, podemos perceber que a pedagogia da
Biomecânica possibilita ao ator não apenas um aprimoramento do seu corpo e
de sua expressividade, mas a atualização prática do princípio gerador desse
18

sistema: a necessidade de um corpo versátil e livre para expressar e se


expressar, de maneira consciente e em diferentes linguagens, na vida e na arte.
Os “Études”:
São exercícios criados com base em ações dramáticas croncretas, retiradas de
motivos simples, cotidianos. Cada exercício é dissecado e cria-se um ciclo de
interpretação que compreende: Intenção; Realização; Reação; Recusa ou Ponto
de Repetição, inspirado no “ciclo de trabalho”, proposto por Taylor.
Antes de iniciar cada “Étude”, é proposto pelo sistema que se faça uma
preparação para o exercício; uma espécie de “afinação corporal”, chamada de
Dáctilo, realizado antes de quase todos os estudos. É um exercício símbolo, que
marca o momento preciso do início, e às vezes o fim de cada estudo.
Os “Études” levam o nome da ação a qual se propõe o treinar. Cito abaixo a lista
completa com os 13 estudos:
1. DISPARANDO O ARCO
2. ATIRANDO A PEDRA
3. A BOFETADA NO ROSTO
4. GOLPE COM A ADAGA
5. CONSTRUINDO A PIRÂMIDE
6. GOLPE COM OS PÉS
7. O SALTO SOBRE O PEITO
8. SOLTANDO O PESO
9. O CAVALO E O CAVALEIRO
10. PASSANDO UMA RASTEIRA
11. CARREGANDO O SACO
12. O SALTO PELAS COSTAS
13. O CÍRCULO
Cada exercício tem um numero de ações específicas e sequências de
movimentos diferentes. A unica sequência comum entre eles é o Dáctilo.
Descreverei a sequência de um dos “Études” e da preparação para eles:
Dáctilo completo:

1. Em pé, parado, com todos os músculos relaxados.


2. O ator, subitamente, abaixa o tronco e levanta os braços em um
movimento para trás. Com o impulso do movimento anterior, em um
movimento curto e ascendente levanta os braços para frente, seu corpo
acompanha os braços.
3. Descendo, ele dobra os joelhos, e desce os braços, batendo palmas duas
vezes, em um movimento rápido e descendente e bate duas palmas na
sequência.
4. Joga os braços para trás, ao se separarem depois da última palma.
19

5. O ator retoma a posição inicial, porém o estado não é de relaxamento,


mas de prontidão física: é um corpo atento, pronto para começar o
estudo.
“Étude”: Atirando a pedra

1. O ator executa o dáctilo;


2. Em seguida, ele salta, vira-se para a esquerda, e volta ao chão, com o pé
esquerdo para a frente. Seus joelhos estão curvados, com sua mão
direita à frente e a esquerda para trás;
3. O ator endireita-se nessa posição, ou seja, mantendo a perna esquerda à
frente da direita, porém com os pés paralelos (como uma imagem
egípcia);
4. O ator executa um impulso de otkas (recusa) para trás, com o braço
direito, para depois projetá-lo para frente, enquanto o braço esquerdo vai
para trás. Os dois braços executam o movimento ao mesmo tempo, e se
posicionam em forma de semicírculo. As pernas do ator também
flexionam-se na mesma posição em que estavam. O ator olha para frente;
5. O ator executa, mantendo o desenho corporal, um otkas (movimento de
recusa), e depois começa a correr, mantendo o desenho geral do corpo,
com os joelhos e braços em forma de arco;
6. O ator salta e para. A posição de parar é igual à posição antes da corrida,
porém o olhar é para trás e para o chão, como se ele estivesse vendo
uma pedra;
7. O ator se levanta na ponta dos pés, e então cai sobre o joelho direito.
Seu corpo oscila para trás e pega uma pedra com a mão direita, que
também serve de apoio;
8. Tomando impulso com o braço esquerdo, o ator oscila para trás, e
pegando uma pedra imaginária com sua mão direita, o ator levanta-se,
volteia seu braço direito num amplo arco para a esquerda, para a frente e
para trás, no sentido transversal, atrás de seu corpo, que cai. Seu ombro
esquerdo está elevado, o direito abaixado, com a mão direita no nível do
joelho. Os joelhos estão levemente flexionados;
9. Ele dá um passo para trás;
10. Com a pedra imaginária ainda presa em sua mão direita, atrás do corpo, o
ator começa a correr. Seu ombro esquerdo está levantado;
11. Ele para com um leve pulo, voltando ao chão com seu pé esquerdo à
frente;
12. Depois de seu braço direito estar inclinado transversalmente sobre o
peito, sua mão esquerda agarra o cotovelo e o braço esquerdo gira,
fazendo círculos a partir do cotovelo;
20

13. O peso do corpo é transferido para o pé direito. Ainda agarrado pela mão
esquerda, o braço direito é puxado abruptamente para trás, e é balançado
em um arco, cuja base é o ombro. O ator solta a mão esquerda,
permitindo que o braço direito forme um círculo amplo e completo;
14. Interrompendo o movimento circular, o braço direito é mantido à frente,
enquanto o ator procura por um alvo imaginário;

15. Ele corre alguns passos adiante e pula;


16. Preparando o arremesso, ele balança seu braço e perna direitos para trás;
17. Ele joga a pedra imaginária, torcendo seu lado direito para a frente e o
esquerdo para trás;
18. Ajoelhando-se sobre o joelho direito, o ator bate palmas, e então coloca a
mão em concha, atrás da orelha direita, como se esperasse ouvir algum
resultado;
19. (O alvo imaginário é atingido) Ele aponta com seu braço esquerdo e
inclina-se para trás, com braço direito no quadril direito;
20. Elevando-se, ele executa um dáctilo.
Esses movimentos são formas codificadas e são treinamento mais difícil para o
ator porque, ao mesmo tempo, o ajudam a manter técnicas vivas e a forma
apropriada no espaço.
Desde os primeiros anos, Meyerhold não escreveu nos livros os resultados de
seu trabalho de pesquisa, como fez Stanislavski, para evitar possíveis
interpretações erradas das pessoas que nunca participaram de seu trabalho.
Admirou as tradições pedagógicas dos teatros orientais onde a experiência foi
oralmente transmitida de geração em geração, mantendo-a viva e renovando o
caminho do ensino, mas sempre protegida da multiplicidade de interpretações e
forçando.
No final de sua vida, Meyerhold deixou sua enorme herança pedagógica para a
pessoa única que estava perto dele por 20 anos, seu colaborador e professor
inteligente Nikolai Kustov.
A biomecânica teatral assim salvada da destruição do stalinismo foi durante mais
de 30 anos mantida e escondida do mundo, desenvolvida dentro de laboratórios
de teatro fechados nas províncias da União Soviética e entrou no momento
certo. Em 1972, sempre graças a Nikolai Kustov, aparece em Moscou, como um
assunto não obrigatório para jovens atores da companhia do Teatro da Sátira. O
herdeiro do mestre Kustov, Mestre Bogdanov, entendeu a fragilidade desta nova
disciplina pedagógica teatral. Ele fez o seu melhor para tornar este assunto em
vivo e protegê-lo da influência de outros institutos mais importantes. No primeiro
de 1980, a Biomecânica Teatral entrou nos assuntos de estudo em GITIS
(Academia Estadual de Moscou) e se tornou famosa em 1990 nos países
ocidentais graças a um enorme trabalho de divulgação e ensino do Mestre
Bogdanov. Neste novo século, a Biomecânica Teatral de Meyerhold leva a
consciência adequada de si mesma e de ser uma nova tradição, dando
21

continuidade ao sistema pedagógico desconhecido e ainda frágil. Mas já não


corre o risco de extinção, graças ao glamour que criou sua história e a um
pequeno número de estruturas públicas e privadas de diferentes partes do
mundo que estão atuando de forma coordenada para protegê-lo. Ao mesmo
tempo, exatamente por causa do seu charme, atrai o interesse de alguns
indivíduos, que sem saber o que é, tentam ensinar outras pessoas baseando-se
em hipóteses, assonances e erros, arriscando no presente, a deteriorar-se.
Dessas experiências, nasceram terríveis e grandes mal-entendidos que fizeram
da Biomecânica Teatral de Meyerhold um treinamento corporal simples ou algum
tipo de acrobacia teatral. Alguém tendo em conta os estudos e as performances
de Meyerhold criou o estilo, algo entre o movimento grotesco e marionette.
Essas interpretações infelizmente já criaram e ainda estão criando erros
perigosos e dão diferentes significados ao verdadeiro sentido dessa tradição.
O processo contínuo do trabalho dos atores é dar ao instrumento e à forma as
idéias adequadas. E a biomecânica teatral orienta esse trabalho do ator em
todas as fases da sua vida de atuação: do treinamento cotidiano à compreensão
de tornar vivas as técnicas de drama e composição. Ela não diz “o que” o ator
deve fazer, mas faz com que o ator se pergunte “como” fazê-lo.
22

CAPITULO 4

DIÁRIO DE BORDO I – RELATOS ATÉ A ESTREIA

Diário de bordo sobre a construção do meu personagem: Dom Jean.

Iniciei a minha construção de personagem com base no conhecimento que já


tinha sobre a expressividade corporal e vocal e sobre os conceitos que eu
acredito serem necessários para uma construção de personagem mais
completa.

Escrevi nesse diário tudo o que eu fui descobrindo sobre o meu personagem de
acordo com a minha pesquisa de construção.

Depois de pesquisar e ler bastante sobre o treinamento do corpo e da voz do


ator, obtive referências que passei a aplicar no meu aquecimento corporal e na
minha construção de personagem propriamente dita.

Começo agora os relatos diários da minha pesquisa.

19 de junho

Meu primeiro dia de anotações vem repleto de experiências atrasadas. Já devia


ter começado a escrever a muito tempo. Mas antes tarde do que nunca não é?
Então vamos lá.

Confesso que no início do processo de montagem da formatura eu não queria


aplicar essas idéias na minha própria construção de personagem. Talvez por
ainda não ter um foco de pesquisa. Porém quando surgiu a oportunidade de
trabalhar descobertas em meu próprio processo, não pensei duas vezes.

No começo foi um pouco confuso, eu não sabia muito bem por onde começar.
Tinha em minhas mãos dois personagens a serem descobertos: O Doutor
Diaforus (um velho muito agitado, fanho e gago, de corpo levemente arqueado
para trás, com uma barriga saliente e pernas curvadas), e o expansivo Dom
Jean (Dom Juan no texto original. Mulherengo, conquistador, sedutor,
persuasivo, inescrupuloso, um homem que não pensa nas consequências de
seus atos e que só quer tirar vantagem de tudo e de todos). A construção desse
personagem particularmente está dando mais trabalho. Talvez seja natural, por
ele ter mais aparições na peça e por se responsável pelos maiores conflitos em
cena.

As aulas de preparação corporal e obviamente as de interpretação estão sendo


muito importantes para a pesquisa e descoberta dessas personagens. Porém,
acho que o que mais está me ajudando, tanto na pesquisa quanto na
compreensão deles, são as improvisações que estamos fazendo para a
23

construção do texto dramatúrgico. Essas improvisações estão elucidando as


dúvidas que tínhamos referente às relações e ligações que os personagens têm
entre si, pois eles são de peças diferentes de Molière.

Estou buscando para os meus personagens, mais para o Dom Jean do que para
o Doutor Diaforus (pois acho que para esse eu já encontrei os gestos corporais e
vocais que o identificam), características que se distanciam de mim: uma voz
mais grossa e empostada, um corpo mais aberto que aparenta estar sempre em
expansão, um caminhar mais languido, suave e sustentado que lembra bastante
um deslizar.

O que está “me pegando” bastante é uma característica extremamente presente


em Dom Jean: a sedução. Tenho que trabalhar isso de forma profunda, pois
essa condição de sedução não faz parte do meu “jeito de ser”. Então procuro
trazer essa sedução para a expressividade do corpo e da voz desse
personagem.

Como disse, as aulas de expressão corporal estão sendo muito importante e tem
me ajudando nessa descoberta.

Hoje, para ser mais preciso, senti esse personagem tomar o espaço com sua
expressividade corporal, descobri que ele carrega essa sensualidade para os
outros sentimentos e sensações, pois essa sensualidade esse poder de
conquista, lhe servirá em muitas situações e não somente para conquistar
mulheres.

Mesmo com tudo o que já sei sobre Dom Jean, há muito mais a ser descoberto
sobre ele. Acredito que essas descobertas surgirão quando estiver trabalhando
essas intenções dentro do texto dramatúrgico, pois até agora não temos.

Mas isso é um problema? É motivo para desespero? Definitivamente não!

23 de junho

Hoje o dia foi dedicado à leitura de mesa. Temos parte do texto escrito
finalmente.

Enquanto líamos, pude pensar mais no gesto vocal de Dom Jean – que é a
personagem que mais estou trabalhando. Pensei em entonações e intenções
diferentes e na impostação da voz para diferenciar a gestualidade vocal do
personagem da minha.

O engraçado é que toda vez que pensava na voz do personagem, vinha à mente
a expressividade do corpo dele na situação da cena que estávamos lendo. Um
corpo que em nada lembra o meu, diga-se de passagem.
24

Dom Jean é expansivo, caminha de corpo aberto querendo que todos o vejam,
querendo ocupar todo o espaço a sua volta. Eu sou mais retraído corporalmente
e trabalhar essa diferença de corpos será um desafio muito prazeroso.

Com certeza eu levarei para a vida muitas das descobertas corporais que farei
sobre esse personagem.

23 de junho

Hoje trabalhamos os personagens ainda no improviso.

Pude explorar ainda mais a expressividade corporal e vocal, trazendo novos


registros para Dom Jean.

Tive que pensar na idade do personagem e me veio à mente que talvez ele
tenha uns 40 ou 45 anos. A partir disso, novas gestualidades corporais e vocais
surgiram: mais maduro e mais experiente, Dom Jean tem uma voz mais mansa,
cheia de malandragem, onde cada palavra soa com segundas intenções; o corpo
ainda é vigoroso e com uma gestualidade mais sustentada.

Eu o imagino com um corpo muito dilatado, um personagem que tem esse


caminhar languido como que buscando um lugar seguro para pisar, mas que
caminha firme e com segurança quando encontra esse lugar. Dom Jean é
astuto, um trapaceiro nato. Tenho que levar todas essas características para a
gestualidade dele.

28 de junho

Foquei minha pesquisa gestual na primeira cena do 1º ato. Procurei


experimentar novas movimentações e gestos expressivos para o personagem.
Sempre exagerando nessas gestualidades, visando a desconstrução do meu
próprio corpo.

Busquei exercitar a gestualidade dos movimentos de Dom Jean em atividades


comuns: como se sentaria, como atravessaria a rua, como cumprimentaria um
conhecido, como tomaria chá etc.

Fiz uma pequena caracterização de acordo com o que já havíamos pesquisado


sobre a forma de se vestir da época e do local em que a peça se passa – a
França de 1617 – visando entrar mais no universo do personagem.

Me firmei na idéia de que ele tem um andar pomposo, galante e charme de


quem é frequentador da alta sociedade. Ao mesmo tempo esse andar é
25

languido, meio que gingado, um andar de quem busca tatear o chão com os pés
para saber onde pisa.

No trabalho corporal busquei explorar a base (pernas, glúteos e abdome) e as


extremidades (pés, braços e cabeça), visando o exagero da gestualidade
corporal do personagem.

Até aqui estou gostando muito do que estou descobrindo desse corpo e isso me
faz querer explorá-lo ainda mais.

Tentei aplicar um pouco do que entendi sobre a Biomecânica de Meyerhold, pois


me identifiquei muito com a pesquisa corporal dele.

Sinto uma certa ansiedade por descobrir mais coisas sobre esse personagem e
isso é bom, pois me fará estudar e pesquisar muito mais.

29 de junho

Hoje finalmente recebemos o 1º ato da peça completo. Tenho agora novas


cenas para trabalhar a expressividade do personagem e tudo o que já criei até
aqui.

Enquanto líamos aproveitei para trabalhar a gestualidade vocal do personagem


explorando essa voz que criei para ele. Tentei impor novas intenções às falas
que já tinha trabalhado e tentei brincar ao máximo com o texto novo.

Estou descobrindo formas de fazer essa voz me divertindo e brincando com a


impostação e colocação das palavras em regiões diferentes da caixa de
ressonância. Com isso estou descobrindo uma forma mais confortável de fazer
essa voz, cuidando para que eu não machuque minhas pregas vocais.

Mais uma vez, enquanto líamos, fiquei imaginando a execução da cena em


minha cabeça, fazendo marcações e pensando em gestualidades corporais
possíveis para a mesma.

03 de julho

O ensaio de hoje foi muito proveitoso. Pude colocar em prática as intenções


textuais apontadas na última leitura que fizemos e explorar essas intenções
também na gestualidade corporal.

Ainda sinto a necessidade de deixar a expressividade do personagem muito


mais orgânica e natural no meu corpo. Mas não me desespero com isso, pois o
26

estudo e a pesquisa que estou fazendo a respeito do corpo desse personagem


irá me levar a esse estado de naturalidade. Há muito que se descobrir ainda.

Acredito que outros elementos irão influenciar nesse corpo e nessa gestualidade:
os elementos que compõem o cenário, o figurino, a iluminação, a sonoplastia, o
jogo com os demais personagens etc.

Posso afirmar que estou muito satisfeito com o que descobri até aqui. Mas não
me contento e quero descobrir muito mais.

Acho que poderia ter descoberto muito mais coisas se, no ensaio de hoje,
tivéssemos passado as cenas em sequência. Mas como o elenco não estava
completo trabalhamos o que deu.

Não me importo muito com isso, mas talvez esteja na hora de passar o texto que
temos na sequência.

04 de julho

Eu estou gostando muito desse processo. Nunca compreendi tanto um


personagem como estou compreendendo o Dom Jean. Porém acho que
estagnei. Não estou conseguindo avançar e nem descobrir coisas novas na
construção desse personagem – agora estou definitivamente trabalhando só ele
pois o Doutor Diaforus foi tirado do texto.

Sinto a necessidade de começar a aplicar ao texto todas essas descobertas,


dentro de uma partitura corporal mais concisa, no espaço cênico que será
usado, com todos os elementos cênicos ou algo semelhante.

Creio que só depois disso voltarei a descobrir coisas novas.

21 de julho

Depois de um tempo afastado do processo de criação do personagem, pude


nessa sexta-feira, a partir do ensaio no teatro (espaço cênico composto por
prováveis elementos, colaborando para que esse espaço se aproximasse do que
de fato será), percebi que coisas novas surgiram.

Entendendo o espaço e os elementos, cheguei a um novo entendimento da


gestualidade do personagem. Entendi que no teatro o corpo de Dom Jean
precisa ser ainda maior, mais expandido e dilatado – agora há um espaço a ser
preenchido.

Algumas coisas da personalidade de Dom Jean também vieram à tona muito


mais fortes.
27

Dom Jean é um dominador e seu corpo deve demonstrar isso. Seu corpo deve
revelar o homem inescrupuloso, canalha, canastrão, malandro, safado, sedutor e
enganador que não se importa com as pessoas que ele possa prejudicar com
seus atos.

Creio que a sua expressividade física eu já encontrei: sei jeito de andar, de se


portar, de parar, sentar etc, assim como o seu gesto vocal que deve estar
carregado de todas as suas características psicológicas.

Sei que avançarei ainda mais nas descobertas quando todo o cenário estiver
disposto e quando o figurino estiver pronto, pois a gestualidade se alimentará de
todos esses elementos.

24 de julho

Estou muito feliz com o avanço de tudo em relação a nossa montagem. Mais
feliz ainda, pois estou sentindo o personagem cada vez mais vivo em mim. Estou
me dedicando, me desconstruindo para poder deixar esse personagem viver
através de mim.

Hoje as indicações de Celia Lucca me ajudaram a firmar a personalidade desse


personagem. A professora Melissa Aguiar também me apontou coisas muito
importantes referente a minha expressividade vocal e corporal. Disse que devo
trazer ainda mais para o corpo todas as características psicológicas que já foram
apontadas.

25 de julho

Hoje o trabalho foi divido entre leitura de alguns trechos do texto que foram
alterados e a encenação de algumas cenas específicas, para que a diretora
musical, Samanta Okuyama, pudesse encaixar algumas intervenções musicais
no meio.

Passei uma cena muito importante, dinâmica e engraçada. O jogo expressivo


dessa cena requer ainda mais atenção, pois Jean está narrando ao público tudo
o que fez na casa para ganhar a confiança de todos.

A música apareceu como elemento importante a ser agregado. Deu ritmo a cena
deixando-a mais divertida e mexeu com a expressividade de Jean. Sinto que
nessa cena devo ter um corpo ainda maior, muito mais expressivo e a voz deve
ser mais potente para que a música não a sobreponha.

Enfim, estou animado com as novas descobertas. Querendo fazer outras e firmar
a importância desse personagem na peça.
28

26 de julho

Cada dia que passa fico mais satisfeito com a construção do meu personagem.

Hoje avançamos na marcação do texto e começamos a passar o 2º ato da peça.


O texto trás um Jean ainda maior, com um corpo mais centrado, porém muito
mais expansivo, demonstrando agora a sua superioridade com relação aos
demais personagens, pois ele toma o poder da casa.

Sinto falta de fazer marcações corporais, de chegar mais cedo à escola e


estudar o personagem, explorando o que já construí e descobrindo coisas novas
como estava fazendo antes. Vou voltar a fazer isso e a trabalhar mais a
preparação corporal e vocal para que assim possa ampliar meu repertório
expressivo, a fim de aplicar tudo no personagem.

27 de julho

Finalmente conseguimos ensaiar com as portas que irão compor o cenário.


Como já disse, creio que a interpretação sofrerá forte influencia desses
elementos, pois conversará com todos eles.

Ainda não consegui trabalhar a movimentação de uma forma mais técnica,


fazendo marcações dos movimentos e aplicando exercícios de expressão
corporal e Biomecânica como eu queria fazer. Sinto muita falta disso.

E quanto à construção do personagem, acredito estar no caminho certo. Ouço


algumas orientações referentes à interpretação e aplico na construção. E o
apontamento mais frequente é que preciso deixar claro para o público o quanto
Dom Jean é malandro e dissimulado com os demais personagens para não
revelar suas reais intenções.

Preciso voltar ao texto do 1º ato, fazer novas marcações, pegar o 2º ato e


trabalhar nele a gestualidade mais imponente de Jean.

Preciso também reler os textos sobre a Biomecânica de Meyerhold e incorporar


seus conceitos a gestualidade do personagem. Eis aqui uma pesquisa corporal
que me interessa.

28 de julho

No começo, quando comecei a construir meu personagem baseado na minha


pesquisa, confesso que estava com certo medo de não chegar a lugar nenhum.
Ou perceber que tudo foi inútil e que o ator não necessita de uma dramaturgia
29

própria e que uma boa construção de personagem pode ser feita sob a visão do
ator-autor – aquele que cria uma história, um perfil psicológico para o
personagem – e só. Porem eu vejo totalmente o contrário. Vejo personagens
sem corpo, sem voz, sem gestualidade, ou melhor dizendo, vejo o ator em cena
se valendo apenas da palavra; dizendo seus textos bem decorados. Já dizia
Artaud:

“O diálogo – coisa escrita e falada – não pertence especificamente à cena,


pertence ao livro; [...]” (Antonin Artaud – O Teatro e seu Duplo. Pg. 51.)

Assim sendo, como podemos dar ênfase apenas a palavra e por de lado o que é
especificamente teatral? A gestualidade corporal e vocal.

Vejo personagens com muito potencial expressivo, porém sem nenhuma vida.
Pois não se pensou em um corpo para ele

Fico feliz por constatar que não estou perdendo tempo e que estou progredindo
com minha pesquisa.

O ensaio de hoje evidenciou a importância de tudo que acredito ser necessária


para uma boa construção de personagem: A dramaturgia do ator; o
conhecimento do ator sobre seu corpo aplicado ao personagem.

Estou muito feliz com tudo até aqui.

31 de julho

Estamos a duas semanas da estréia e se tratando de produção, ainda tem muito


que ser feito. Porem estou tranquilo em relação a tudo isso principalmente à
construção do meu personagem.

Hoje passamos a primeira cena do 2º ato da peça onde Dom Jean revela para
todos que encontrou a certificação de propriedade da casa. Para essa cena,
recebi uma indicação de Célia Lucca: devo trazer um Jean mais firme, com um
andar e uma postura mais imponente, menos languido. Acredito que deva fazer
isso o 2º ato todo. Achei essa indicação muito importante, pois esse é o
momento que Jean está acima de todos na casa.

Ainda estou sentindo falta de uma preparação corporal e vocal mais efetiva.
Preciso voltar ao texto, fazer minhas marcações de movimentos, explorar
entonações de voz diferentes etc. Vou tentar retomar isso essa semana.

03 de agosto
30

Hoje finalmente consegui tirar um horário antes da aula para estudar e pôr em
prática tudo o que estou pesquisando.

Tentei aplicar alguns exercícios de Biomecânica no aquecimento corporal e para


aquecer a voz fiz alguns exercícios propostos no livro “O Gesto Vocal – A
comunicação vocal e sua gestualidade no teatro físico” de Mônica Andréa
Grando. Fiz cada aquecimento separadamente depois os dois ao mesmo tempo.
Propus uma dinâmica para esse aquecimento: fiz os exercícios corporais
tentando manter o controle vocal e depois deixando que a voz se desconstruísse
de acordo com os movimentos. Em seguida fui para o texto com o corpo e a voz
aquecidos e busquei explorar novas possibilidades expressivas.

Esse tempo extra para estudo foi muito importante, pois os dois dias anteriores
foram dedicados à produção. Algumas coisas ainda estavam pendentes e
tínhamos que tomar decisões importantes. Por conta disso não trabalhamos o
texto.

Hoje enfim o meu figurino ficou pronto. Porém não o coloquei no ensaio de hoje.

O foco do ensaio hoje foi a última cena do 1º ato e a primeira do 2º ato. A


primeira cena do 2º ato é muito dinâmica. É uma narrativa que o personagem
Alceste (Douglas Duprat) faz para contar tudo o que aconteceu na casa depois
que Jean achou a certificação de propriedade da casa.

Essa cena será um pouco mais complicada de fazer, pois terei que sincronizar a
movimentação, que deverá ser bem marcada, para que os gestos de Alceste e
Jean sejam o mais parecido possível.

Essa é uma cena que deverá ser cheia de energia. O Dom Jean cresce na cena,
pois ele agora se torna o todo poderoso da casa, o dono de tudo e de todos. É o
momento em que ele se sente acima dos irmãos. Tudo isso deve aparecer na
voz e no corpo dele.

Repetimos a cena algumas vezes. Hoje especialmente eu estava me sentindo


muito cansado, com um desgaste físico extremo, mesmo assim fui para a cena
disposto a dar o meu melhor.

Me irritei um pouco com a cobrança de Célia Lucca e Melissa Aguiar, que eu


deveria ter mais energia, que deveria trazer o personagem com mais imponência
etc. Não pela cobrança em si. Mas pela forma como estava sendo cobrado:
como se eu estivesse fazendo corpo mole e não estivesse me esforçando cada
vez que passávamos a cena. Logo eu fazendo corpo mole? Encarei a cobrança
como uma vontade delas de que eu fosse além do que posso ir, pois eu posso
melhorar muito mais. Mesmo irritado, cansado e estressado tentei dar mais de
mim e vou continuar tentando. Nos próximos ensaios espero estar menos
cansado, para poder melhorar sempre mais.
31

Enfim, definitivamente hoje foi um dia atípico: eu estressado e cansado ainda por
cima. Mas creio que meu mal era sono e fome. A partir de amanhã tudo melhora.

05 de agosto

O ensaio hoje foi dedicado às marcações musicais, com a Samanta Okuyama, a


diretora musical.

Passamos as cenas que tinham o apoio da musicalização. A professora Melissa


Aguiar estava presente no ensaio e aproveitou para dar indicações para o
elenco. Para mim ela disse que devo ter mais ritmo, ter um tempo de reação
mais rápido, um tempo de resposta mais ágil na cena. Preciso mesmo pensar
nisso, pois como ela mesma disse: eu tenho muitas cenas e o meu personagem
interfere muito na trama da peça, portanto tenho que tomar esse cuidado para
não “afundar” a peça.

Com toda certeza irei prestar mais atenção a isso e buscar essa dinâmica de
reação mais rápida.

Esse ensaio não foi importante apenas para marcar as intervenções musicais na
peça. Todo ensaio é o que é: um ensaio. Temos que ir para a cena sempre
dando o nosso melhor. Pena que alguns colegas não pensam assim. Eu
particularmente aproveitei o ensaio para estudar o personagem em cena.
Experimentei novas gestualidades que pensei para ele e novas intenções para
algumas falas trazendo um duplo sentido, uma espécie de segunda intenção
para o que o personagem quer dizer naquele momento.

Aproveitei bem esse ensaio e continuo contente com o estudo que estou
fazendo, com a pesquisa e as descobertas sobre esse personagem.

07 de agosto

Consegui chegar duas horas mais cedo no dia de hoje. Estou sentindo falta de
preparo corporal e vou trabalhar isso para manter o corpo atento.

Estruturei essas duas horas de estudo da seguinte maneira: elaborei um roteiro


de aquecimento e preparo tanto vocal quanto corporal.

O roteiro foi o seguinte:

Roteiro de preparação corporal.

Aquecimento vocal:

 Exercícios de relaxamento e aquecimento da musculatura da face, língua


e pescoço. (fazer caretas para alongar os músculos da face, massagear o
rosto, fazer círculo com o pescoço de forma leve, fazer círculos com a
língua em volta dos dentes, para um lado e depois para o outro);
32

 Aquecimento das pregas vocais e lábios (vibração de lábio fazendo som


de B e de língua fazendo som de R, fazer vibrar as pregas vocais fazendo
som de G, V ou Z);
 Exercícios para acordar o diafragma (emitir som de S curto forçando o
diafragma, contar de 0 até o maior número possível com o mesmo ar);
 Exercícios de projeção vocal (emitir um som em boca chiusa e em
seguida abrir a boca emitindo o som de alguma vogal).

Aquecimento corporal:

 Alongamento ginástico (alongar pernas, braços, tronco);


 Aquecimento dos membros (corrida, polichinelos, flexões);
 Trabalho físico por meio de movimentações controladas (saltar por cima
de uma cadeira e aterrissar controlando o movimento, pular para a frente
como que em um mergulho e aterrissar fazendo uma parada de mão,
controlando a decida até o corpo encostar no chão);
 Trabalho do equilíbrio precário;
 Alongamento expressivo (saudação ao espaço e relação com a
arquitetura – tudo muito grande);
 Estudo da movimentação do personagem.

Tentei seguir esse roteiro, mas o último item não pude fazer dentro dessas duas
horas. Preciso dispor mais tempo para esse estudo.

Fazer esse preparo me ajudou a ir para o ensaio de hoje com um corpo alerta e
pronto para a cena.

Falando nisso o ensaio de hoje foi muito importante. Recebemos a última cena
do 2º ato, que ficou simplesmente fantástica. Fizemos a leitura deste ato e
depois fomos para o palco tentar passar o máximo de cenas possível.
Conseguimos nos adiantar bastante.

Em relação a mim, tentei pôr em prática todas as orientações que já me foram


passadas: mais energia, mais ritmo, um Jean mais poderoso que desfruta do
poder que tem até então. Acho que consegui aplicar tudo o que me foi dito.

11 de agosto

Os últimos três dias foram muito puxados. Os trabalhos em produção tomaram


bastante tempo. Porem os esforços não foram em vão. Finalmente temos o
nosso cenário pronto conforme pensamos.

Não consegui estudar o personagem nem fazer os exercícios que propus no


meu Roteiro de preparação corporal. Porém os trabalhos em produção exigiram
muito esforço físico e considerei isso um preparo também.
33

Durante os ensaios, de noite, eu tentei trabalhar tudo o que já criei e tudo que já
me foi apontado sobre o personagem. Nesses dias nos concentramos na
marcação da peça, nas entradas e saídas de cada cena, nas movimentações de
cenário etc.

Hoje foi a primeira vez que passamos a peça por “inteira” (começamos pelo 2º
ato e depois fizemos algumas cenas do 1º ato). Percebemos que perdemos o
ritmo no 1º ato, pois já fazia um bom tempo que não o passávamos.

E quanto ao meu personagem, creio que já o descobri por inteiro, já estou com a
sua construção completa. Agora o que resta é ver se essa construção sofrerá
alguma alteração durante a temporada.

Estou bem satisfeito com a minha construção e acredito que alcancei o resultado
desejado. Mas não quero parar por aqui. Quero descobrir muito mais.
Continuarei com o meu preparo corporal, aplicando os princípios da Biomecânica
nesse preparo corporal e os exercícios de voz.

Quero chegar ainda mais longe na construção desse personagem.

12 de agosto

Hoje, oficialmente fizemos nosso primeiro ensaio geral, passando a peça do


começo ao fim. O ensaio foi aberto à técnica para que eles conhecessem o
trabalho e as atividades que terão que executar.

Eu particularmente terminei o dia frustrado com a minha construção de


personagem. Ao fim do ensaio a professora Melissa Aguiar me chamou de canto
e me passou algumas observações dela sobre o meu personagem. Disse que
ele ainda está sem dinâmica, que eu ainda não encontrei a sensualidade e a
malandragem que o personagem tem. Falou que gestualmente estou “dançando”
muito em cena e estou sem ritmo na gestualidade vocal.

Diferente de ontem – que estava feliz e satisfeito com o meu personagem – meu
pensamento hoje ante a tais apontamentos é que não evolui em nada na minha
construção. Devo voltar ao texto, ao estudo do corpo desse personagem, estudo
do seu perfil e fazer ajustes na construção corporal e vocal dele. Tenho a
impressão que construí um personagem fraco e chato. Definitivamente não
quero estrear a peça com o personagem assim.

Sinto um retrocesso na construção do personagem. A segurança que tinha em


relação a ele, agora se transforma em medo e insegurança de não chegar a
lugar nenhum. Isso redobra o sentimento de frustração com essa pesquisa e
com essa construção de personagem. Porem tenho uma semana para mudar
isso e tornar esse personagem interessante em cena. Devo acreditar na minha
pesquisa em primeiro lugar.
34

Durante a semana, vou mapear as suas movimentações, criar um gesto corporal


e vocal novos. Ou seja, vou voltar ao inicio dessa construção para chegar a um
resultado que agrade. Tudo isso sem abandonar a minha pesquisa, é claro.

14 de agosto

Hoje não consegui fazer o meu preparo individual, tão pouco o estudo do
personagem que me dispus a fazer.

Diante dos apontamentos feitos pelos orientadores do processo (de que o


personagem está fraco, que eu não o entendi etc.) estou começando a acreditar
que pautei a construção desse personagem em algo falho. Pensar que posso
não chegar ao resultado desejado na minha pesquisa me deixa um tanto quanto
triste, pois estou estudando muito esse personagem. Porém os apontamentos
vêm como se eu não estivesse fazendo nada para melhorar.

Estou trabalhando o personagem baseado no presente dele, em tudo que


descobri sobre sua personalidade por meio de informações que o texto trás. Não
quero trabalhar em cima de um método que não me satisfaz, não quero ter que
criar uma historinha para esse personagem quando o que importa para a minha
pesquisa é o que ele irá viver no presente da peça. Quero descobrir seu corpo a
partir do texto já escrito e não escrever um novo texto para chegar a esse
resultado.

O que me interessa é descobrir uma gestualidade corporal que leve ao


sentimento pretendido em cada cena e na peça como um todo. Sendo assim vou
com minha pesquisa até o fim, sem abrir mão dela.

Me propus ir na “contramão” do que é convencional e continuarei nessa proposta


mesmo que o resultado de tudo isso seja o fracasso. Mas tenho certeza que isso
não irá acontecer. Vou intensificar o estudo do personagem – levando em
consideração todos os apontamentos que me foram feitos, pois são muito
importantes – externalizar e trazer para a expressão corporal essa sensualidade
que ainda falta e assim obter resultados satisfatórios.

Não vou abandonar minha pesquisa.

15 de agosto

Cheguei mais cedo hoje, umas três horas mais cedo, para fazer meu trabalho
corporal e estudar meu personagem. Falando em trabalho corporal eu estou
deixando de considerar as duas horas de caminhada por dia que venho fazendo
(para ir e para voltar da escola) talvez por estar fazendo por obrigação, pois na
falta de dinheiro para a condução, faço o percurso a pé mesmo. Mas o fato é
que, assim como o roteiro de preparação corporal que elaborei, essa caminhada
diária também está me ajudando a obter uma estrutura corporal favorável à
cena.
35

Hoje eu trabalhei os exercícios do meu roteiro de preparação corporal e em


seguida para o estudo do personagem: explorei um novo registro vocal com uma
voz um pouco mais aberta, menos empostada. Isso me deu mais potência vocal.

Estou estudando a sensualidade de Dom Jean, pois ainda não a encontrei. Mas
creio estar no caminho certo.

Fiz marcações novas de intenções dentro do texto e vou propor essas intenções
no ensaio de hoje. Modifiquei a postura do personagem o balanço que ele tinha
no andar, a languidez. Estudei uma nova expressividade corporal um pouco mais
contida. Dom Jean agora tem um andar mais firme, menos gingado e mais
pontuado.

De noite, no ensaio, eu coloquei em prática o que estudei mais cedo. Aos olhos
dos orientadores, ainda não alcancei um resultado interessante sobre o
personagem. Dom Jean ainda está com uma voz arrastada e isso está deixando
o texto lento. Preciso de mais dinâmica de cena e reações mais rápidas.

Esses apontamentos não serão ignorados. Eu trabalharei mais intensamente e


chegarei a um resultado que agrade.

O estudo continua e isso é uma coisa boa. Até o fim da temporada terei
construído um personagem muito bom.

18 de agosto

Os últimos dois dias foram dedicados aos trabalhos finais de produção. Fizemos
uma força tarefa para terminarmos de fazer todo o cenário e arrumar tudo sobre
os adereços.

Estamos a dois dias da estreia. Me sinto um pouco inseguro sobre a construção


do personagem. Não o estou construindo baseado em seu passado, traçando
um perfil psicológico de toda a sua vida etc. Não me propus a isso e não irei me
propor agora. Estou trabalhando com o seu presente e quero atingir os
resultados desejáveis com base na minha pesquisa corporal. Pensar no corpo
desse homem sedutor, malandro, conquistador, sem escrúpulos entre outros
adjetivos atribuídos a ele, já me leva ao seu estado psicológico. Tenho isso
como certo.

Hoje o ensaio foi para passarmos as intervenções musicais do espetáculo.


Tentei durante o ensaio trabalhar tudo que já estudei e modifiquei até aqui. Tudo
de forma muito sutil, pois estávamos passando apenas as transições de cena.

Me firmei na ideia de modificar seu gesto vocal, trazendo uma voz menos
empostada, com uma sonoridade mais aberta, para que assim eu ganhe mais
projeção vocal e seu gesto corporal mais centrado, mais firme, sem muita
languidez e sem muita ginga na hora de andar. Vou estudar isso um pouco mais
36

e propor no próximo ensaio que será amanhã pela manhã, pois de noite temos
nossa pré-estreia.

19 de agosto – A pré-estreia

Hoje fizemos a nossa pré-estreia.

Chegamos cedo ao teatro, por volta de onze e trinta da manhã. As primeiras


atividades desse dia foram de montagem do cenário e a colocação dos
elementos cênicos em seus devidos lugares. Logo em seguida fomos ao ensaio.

Passei a semana estudando o personagem e pensando nos apontamentos que


me foram feitos; até sonhei com o personagem.

Antes do ensaio eu confesso que estava muito inseguro pensando no que os


orientadores iriam dizer sobre o personagem. Mesmo assim, tentei esquecer o
nervosismo e me apoiei nos estudos que fiz. Refleti um pouco e percebi que me
faltava confiança, faltava acreditar no meu trabalho de ator, faltava crer na
dramaturgia do ator que defendo na minha pesquisa. Assim sendo iniciei o
ensaio pensando unicamente em tudo que construí e estudei.

Ao fim desse ensaio fomos ouvir os apontamentos da Celia Luca. Nesse


momento eu estava tenso e ansioso para ouvir o que ela tinha a dizer sobre meu
personagem. Para minha felicidade, seus apontamentos foram pontuais,
referente a volume de voz e movimentação de cenário.

Por conta do tempo ela não conseguiu falar tudo o que havia anotado sobre todo
o ensaio, pois precisávamos jantar. Por isso não consegui ouvir o que ela
possivelmente teria a dizer sobre as demais cenas.

Na minha mente fiz um bom trabalho no ensaio e consegui concertar as falhas


que Dom Jean ainda tinha. Bastava agora fazer ainda melhor na apresentação
de pré-estreia.

Fui jantar pensando em toda a trajetória de concepção dessa pesquisa, de


elaboração desse trabalho e construção desse personagem; em todo o estudo,
todo o esforço que tive que fazer e que tudo enfim poderia ter chegado ao
resultado que eu almejava.

Comi um pouco apressado, pois queria voltar logo ao teatro para vestir o figurino
e me preparar. Após vestir o figurino, fui para o palco, fiquei andando pelo
espaço cênico enquanto fiz aquecimento corporal e vocal. Fiquei repassando as
intenções do personagem e os seus gestos corporais e vocais.

Quando chegou o momento da apresentação, o elenco todo fez um círculo no


centro do palco e fizemos o clássico grito de guerra do teatro. Nos posicionamos
para iniciarmos a peça e eu estranhamente não estava nervoso, muito pelo
contrário estava ansioso para entrar em cena, sentindo o corpo inteiro vibrar
37

querendo pôr em prática tudo o que estudei e pesquisei. As portas do teatro se


abrem para o público e eu fui para a cena como um animal faminto em cima da
presa.

Enfim o “Blackout”, aplausos, agradecimentos e o público se vai. Em minha


cabeça a sensação de dever cumprido, de trabalho bem feito.

Assim que o espetáculo acabou fomos ouvir os apontamentos dos orientadores.


A Celia terminou de falar sobre suas anotações do ensaio da tarde e falou sobre
a apresentação. Mais uma vez, sobre mim, ela só fez observações técnicas, e
me deu uma bronca por eu ter perdido o tempo de uma transição de cena. Sobre
o personagem, ela nada disse. Isso é um bom sinal. Enfim consegui melhorar o
personagem.

Finalizo esse primeiro diário dando ênfase e exaltando todo o trabalho que tive
nesse processo de construção de personagem. Trabalho esse que,
pessoalmente, foi muito satisfatório e que definitivamente não tem aqui a sua
conclusão, pois a pesquisa, o estudo, o trabalho corporal e vocal assim como as
descobertas acerca disso tudo continuam até além desse processo.

DIÁRIO DE BORDO II – RELATOS APÓS A ESTREIA

Passo agora a relatar as atividades realizadas após a estreia.

Os trabalhos de pesquisa e estudo do personagem não terminarão com a


estreia, muito pelo contrário, eles se intensificarão. Continuarei com os
exercícios de preparação corporal, com a pesquisa de gestualidade vocal
visando melhorar o personagem a cada dia até o fim da temporada.

20 de agosto – A estreia

Hoje enfim fizemos a nossa estreia. Chegamos cedo ao teatro. Ensaiamos a


peça inteira uma vez e depois passamos algumas cenas específicas.

Estava muito ansioso para apresentar. Sinto uma gana, uma vontade muito
grande de estar em cena.

Quando estava próximo do horário de começar a peça, eu já estava de figurino


no palco fazendo meu ritual de preparação: aquecendo a voz e corpo,
repassando mentalmente as intenções e expressividades do personagem e
38

depois trazendo tudo isso para o meu corpo. Repassei algumas falas explorando
outras sonoridades, ritmos e intenções diferentes (mais para aquecer).

Chegando o momento de iniciarmos, fomos todos ao centro do palco. O Celso,


nosso diretor, nos disse algumas palavras de incentivo que, pelo menos no meu
caso, me incendiaram e fizeram aumentar a vontade de começar a peça.

Eu não estava nervoso. Olhava os demais colegas e os via inquietos,


preocupados, reclamando de dor de barriga e de nervoso, mas eu estava
tranquilo e confiante. Porém não estava relaxado. Sentia o corpo muito vivo, em
alerta, pronto para a cena e querendo muito estar nela.

Entendo que a falta de nervosismo está associada ao fato de eu estar estudando


muito esse personagem, de tê-lo construído de acordo com o que pesquisei e
por tudo isso 38 lateia-lo muito bem. Acho também que a autoconfiança do
personagem e o fato de, no início da peça eu já estar completamente
mergulhado nele, fazem com que eu tenha muita confiança no que construí e
muita vontade de mostrar ao público os resultados dessa construção.

Enfim, fizemos nossa estreia. Ao fim do espetáculo, eu estava me sentindo muito


satisfeito com tudo o que fiz em cena. Um largo sorriso surgiu no rosto e uma
sensação de dever cumprido tomou conta de mim.

Depois de nos trocarmos, fomos ouvir os apontamentos da Célia. Para mim ela
disse simplesmente: “É isso aí mesmo” Isso foi o bastante para multiplicar por
mil a minha satisfação com o meu trabalho de ator.

É engraçado que eu sinto uma necessidade e uma vontade muito grande de


continuar estudando esse personagem, explorando e experimentando novas
possibilidades para ele. Não quero e nem vou relaxar nesse processo e nessa
construção. Vou continuar estudando o Dom Jean.

Já estou ansioso para a próxima semana de apresentação.

26 de agosto

No meio da semana nós nos encontramos, especificamente na quinta-feira, para


ensaiarmos, pois alguns cortes foram feitos em algumas cenas.

Esse dia tive alguns problemas e cheguei uma hora e meia atrasado no ensaio.
Mas consegui pegar as partes cortadas e ensaiar um pouco. A peça vai ficar
mais dinâmica e divertida com esses cortes, sem falar que ficará menos
cansativa.

Enfim, segunda semana de apresentações. Já percebemos que os sábados


serão mais puxados, pois temos que montar todo o cenário. Precisamos escalar
algumas pessoas da técnica para nos ajudar.
39

Hoje chegamos às 13h30. Com toda a montagem do cenário sobrou pouco


tempo para ensaiar. Por isso a direção decidiu passar algumas cenas
específicas, como eu não aparecia em nenhuma dessas cenas, fui jantar.

Voltei para o teatro bem antes do horário marcado. Não conseguia relaxar, então
coloquei o figurino e fui para o palco. Aqueci bastante a voz e fiz uns
movimentos corporais para acordar a musculatura. Já próximo do horário de
apresentar o espetáculo nos reunimos para fazer um aquecimento corporal
coletivo. A Melissa (preparadora corporal e codiretora do espetáculo) fez um
pega-pega entre o elenco. Corremos bastante e essa atividade deixou o corpo
cheio de energia. Mais uma vez me senti ansioso para entrar em cena e o corpo
estava com dez vezes mais energia.

Enquanto o público entrava aproveitei para repassar as intenções do


personagem e suas gestualidades.

Mais uma vez o nervosismo passou bem longe de mim. Queria entrar em cena,
Dom Jean queria estar em cena, queria viver.

Apresentamos o espetáculo à um público muito receptivo. Ao fim do espetáculo


eu não cabia em mim de tanta felicidade e satisfação.

Hoje não ficamos para ouvir os apontamentos dos orientadores, pois já era muito
tarde quando terminamos. Fomos dispensados e os apontamentos ficaram para
o dia seguinte.

Em minha caminhada de volta para casa, fui pensando no personagem e o que


eu poderia melhorar nele. Toda vez que penso nisso descubro que o trabalho
apenas começou e acho isso ótimo.

27 de agosto

Hoje chegamos ao teatro no mesmo horário de ontem. Não ensaiamos nenhuma


cena. Ficamos um pouco mais relaxados e descontraídos. Aproveitei para
organizar o camarim e lavei os banheiros do teatro, pois estavam com mal
cheiro. Enquanto limpava pensei mais uma vez em toda a minha trajetória nesse
processo, em toda a pesquisa e no estudo ao qual me empenhei e no quão
estava satisfeito com os resultados. Porém quero continuar descobrindo coisas.
Ao fim da faxina, fui comer (ainda pensando no personagem). Após jantar voltei
ao teatro e fui para o camarim, peguei o texto e fui estudar algumas intenções do
personagem. Penso nele um pouco mais engraçado, meio desvairado, com uma
loucura controlada.

Antes de começarmos a nos arrumar, o Celso nos chamou para falar sobre a
apresentação de ontem; para fazer seus apontamentos e falar os da Celia que
40

enviou para ele por email. Ela elogiou a melhora que tive no personagem e disse
que o caminho é esse mesmo. Isso me deixou muito feliz, pois finalmente os
resultados dos meus estudos estavam sendo vistos.

Depois disso fomos liberados, eu fui me vestir e ao terminar fui para o palco me
aquecer. Hoje, especialmente e em caráter extraordinário, eu estava me
sentindo um pouco sem energia. Os colegas do elenco também estavam se
queixando de estarem se sentindo assim. Pensando em elevar a energia,
resolvemos fazer um pega-pega, igual ontem.

Enfim, já aquecidos e tendo feito o nosso “grito de guerra” iniciamos a


apresentação de hoje ainda com essa sensação de energia baixa e passamos a
peça inteira achando isso. Ao fim da peça fomos ouvir o Celso e o único
apontamento que ele fez foi que todos perderam volume de voz, mas que a
energia estava boa. Talvez essa sensação de energia baixa estivesse apenas no
nosso corpo, porém internamente conseguimos manter essa energia alta e
passar isso aos espectadores. Outra coisa que o Celso disse é que faria mais
alguns cortes no texto.

Estou me encontrando, a cada apresentação, cada vez mais nesse processo e


muito feliz com os resultados obtidos com o meu personagem.

Quero estar em cena e me deliciar com cada apresentação. Esse é meu


sentimento.

02 de setembro

Nessa quinta-feira 31 de agosto, nos encontramos em horário de aula para


ensaiarmos os novos cortes que foram feitos em algumas cenas. Eu estava um
pouco rouco no ensaio por isso poupei a voz para não 40lateia40a-la mais.
Aproveitei para explorar mais a gestualidade corporal no ensaio.

Fizemos novas marcações em algumas cenas que as deixaram mais dinâmicas


e divertidas. O ensaio foi bem proveitoso.

Hoje eu acordei um pouco pior do que estava na quinta-feira. De lá para cá eu


tomei os cuidados necessários para a voz não piorar, mas o tempo seco não
ajudou.

Até a hora do ensaio eu trabalhei a recuperação da voz com exercícios vocais


que são ótimos para tratar esses problemas. Os exercícios foram: vibração de
lábio e língua; a emissão das letras G, V, Z e a emissão de sons de diferentes
alturas, em boca chiusa (boca fechada). Todos esses exercícios fazem vibrar
toda a musculatura da laringe e as pregas vocais. Me utilizei também de uma
técnica finlandesa chamada “Lax vox” que é uma técnica de fisioterapia
desenvolvida para recuperação e tratamento da musculatura da laringe pregas
41

vocais. Os exercícios amenizaram as dores e ajudaram para que eu descobrisse


as possibilidades da minha voz.

Fizemos um ensaio geral para pegarmos mais confiança nas cenas que
sofreram cortes e nas novas marcações. Aproveitei o ensaio para buscar uma
forma de colocar a voz de modo a não perder a potência vocal, me poupando
para não prejudicar ainda mais. Percebi que teria que trabalhar mais o apoio
diafragmático e a projeção com a laringe baixa. Por conta da ronquidão na voz
perdi o registro agudo da voz, por isso devia explorar mais os sons graves.
Percebi também que deveria abusar e me apoiar na expressividade corporal.
Pela falta da voz eu senti que essa gestualidade corporal foi naturalmente
maximizada. O ensaio foi bom para que eu pudesse encontrar recursos que não
me deixassem perder o personagem.

Fui jantar pensando em tudo que descobri durante o ensaio, referente aos
apoios e as técnicas para não perder a potência e projeção vocal. Eu estava
preocupado, mas não nervoso. Sabia que iria conseguir transmitir ao público
todas as intenções do personagem e que não iria perder a emissão de voz.

Enfim chegou a hora de testar tudo o que estudei no ensaio e nos aquecimentos.
As portas do teatro se abriram e eu estava ansioso para entrar em cena e pôr
em prática às técnicas desenvolvidas e experimentadas no ensaio.

Meu registro vocal estava tendendo para o grave e foi nesse registro que me
apoiei. Consegui emitir a voz com uma potência boa e interessante e com a
gestualidade corporal extremamente maximizada, creio que consegui passar
todas as intenções do personagem.

Ao fim da apresentação eu estava me sentindo feliz com o trabalho feito. Em


nenhum momento deixei o personagem “escapar” e posso dizer que a
dificuldade com a voz me ajudou a buscar outras características do Dom Jean,
nas quais eu pudesse me apoiar.

Termino o dia de hoje com o sentimento de orgulho de mim mesmo.

03 de setembro

Hoje eu acordei muito preocupado. Minha garganta estava doendo mais que
ontem e minha voz estava ainda pior. Pela manhã fui ao posto de saúde e o
médico me disse que eu estou com faringite. Ele me receitou um antibiótico e um
xarope para tomar. Tinha a esperança de tomar uma injeção para ver se ficava
melhor logo, mas no posto eles só estavam dando injeção em grávidas, idosos e
crianças. Peguei meus remédios na farmácia do posto e fui para casa.
Intensifiquei o repouso vocal, procurei não falar de jeito nenhum, fiz alguns
exercícios vocais – tudo bem leve para não forçar a voz – para entender a minha
voz no dia de hoje. Percebi que minha voz ficou ainda mais grave. Tomei os
42

cuidados básicos para não ficar ainda pior: ingeri bastante água e continuei a
fazer os exercícios vocais até a hora de ir para o teatro.

Como o tempo está muito seco, dei um jeito de ir de ônibus, pois se fosse
andando eu iria forçar mais a respiração inalando mais poluição e prejudicando
ainda mais a minha garganta e o trato vocal.

Chegando ao teatro, fui direto para o camarim continuar com os aquecimentos e


com os exercícios para tentar melhorar minha voz: fiz bastante “Lax vox”, os
exercícios de vibração e projeção em boca chiusa e continuei me poupando ao
máximo, tentando falar apenas o necessário. Eu procurei me isolar e ficar
sozinho, pois sou muito tagarela e basta alguém puxar um assunto qualquer
para eu sair falando.

Segui a tarde toda assim, me poupando e exercitando a voz – era a minha maior
preocupação no momento. Porém eu havia, por um momento, me esquecido de
todo o resto da minha construção e do “fenômeno” que ocorreu na apresentação
de ontem e que poderia ocorrer hoje também (a expressividade de Dom Jean ser
maximizada). O bom é que passar todo esse tempo exercitando a voz, na busca
de tentar recuperá-la me levou a compreender as limitações e potencialidades
desta voz no dia de hoje. Então eu pensei: se é no registro grave que a minha
voz está hoje, então é ai que irei jogar a gestualidade vocal do personagem. A
partir daí comecei a testar as intenções das falas de Dom Jean com esse
registro vocal. Os resultados foram muito bons e me tranquilizaram.

Percebi aqui o quão importante é a minha pesquisa de construção de


personagem e o quão eficaz ela é. E isso tudo, creio eu, não é só porque
entendo a psicologia do personagem, mas porque entendo seu corpo, suas
expressividades e gestualidades tanto corporais quanto vocais e entendendo e
conhecendo as minhas potencialidades vocais, posso explorar o gesto vocal do
personagem em qualquer registro.

Assim, quando chegou a hora de começar o espetáculo, o Celso e alguns


colegas me perguntaram se eu estava me sentindo bem e a minha resposta foi
que estava me sentindo ótimo. Queria entrar em cena logo e experimentar tudo o
que estudei e exercitei durante o dia. Mais uma vez eu não estava me sentindo
nervoso. Estava confiante e certo de que iria fazer um bom trabalho. Dom Jean
queria entrar em cena.

O espetáculo se inicia e já na primeira cena comecei a experimentar algumas


coisas e ter algumas noções: percebi que para projetar a voz com boa altura e
com uma potência favorável eu teria que usar ainda mais o apoio do diafragma e
baixar bem a laringe, abrindo mais espaço dentro da boca para o som ressoar e
para não machucar as pregas vocais. Nessa primeira cena pude ter essas
noções, daí para frente foi só aplicar tudo isso nas demais cenas.
43

O engraçado de tudo isso é que todos esses pensamentos técnicos, sobre o


corpo e a voz que tenho durante as cenas, não fazem com que eu me desligue
do personagem, pois enquanto estudo essas possibilidades eu penso sempre
em como ele resolveria esse problema. E acredito que a prática desses estudos
e exercícios tornam orgânicos esses pensamentos. Ou seja, entro em cena
preparado para enfrentar aquela situação. Isso mostra mais uma vez, a
importância de se construir um personagem pensando também em seu corpo e
em sua voz.

Enfim terminamos mais um espetáculo. Eu estava me sentindo muito cansado


pelo esforço físico que fiz e o dispêndio de energia que tive para manter a
gestualidade vocal do personagem, afinal movimentei bastante os músculos
abdominais e o diafragma, assim como a musculatura da laringe. Mesmo assim,
o sentimento de hoje só foi diferente do de ontem e dos demais dias, porque foi
maior: um orgulho e uma felicidade maior pelo trabalho apresentado.

Ficar sem voz essa semana foi um grande teste. Colocou a prova a eficácia da
minha construção, dos meus estudos e pesquisas e exigiu de mim colocar em
prática todas as técnicas que conheço. E o melhor de tudo é que eu passei no
teste.

Já estou ansioso pelo próximo fim de semana.

09 de setembro

Semana preguiçosa para o elenco: feriado bem no dia em que teríamos ensaio
(quinta-feira). Mas isso foi um problema? Claro que não. Um descanso de vez
em quando é bom.

Eu particularmente estou sentindo falta de uma preparação corporal mais efetiva,


como estava fazendo antes, seguindo meu roteiro e tudo mais. Nas duas últimas
semanas eu não consegui fazer esse preparo. Porém passei a observar a
maioria das atividades físicas que faço durante o dia e 43 lateia-las como
preparação corporal também, pois creio que adquirir repertório corporal e ter
noção das movimentações cotidianas, por mais simples que sejam, também
fazem parte da preparação corporal do ator. Fico pensando muito no princípio da
Biomecânica, que estuda a movimentação do corpo. Partindo disso fico
observando cada movimento meu. Por exemplo: ao subir no ônibus, observo
qual musculatura do corpo eu aciono para isso, se algum músculo trabalha mais
que os outros, quais músculos poderiam participar dessa ação e em como dividir
o trabalho entre eles – visando o mínimo de esforço. Pensando nisso tudo, tento
aplicar esses conceitos na próxima vez que for subir em um ônibus. Estou
fazendo isso também no emprego que arrumei: onde tenho que fazer um esforço
físico muito grande, carregando baldes, sacos pesados, subindo e descendo
44

escadas e fazendo muitos movimentos repetitivos. Nessas movimentações


também tentei aplicar o princípio da Biomecânica e vejo tudo isso como
preparação corporal, pois registro as sensações e experiências corporais que
estou vivenciando e crio repertório expressivo. Sem falar que, aplicar esse
estudo biomecânico no dia a dia facilita na hora de aplicar no trabalho de ator e
na construção e manutenção do personagem. Assim sendo, para o ator, toda e
qualquer atividade pode ser preparação corporal, isto é, se ele tiver consciência
disso.

No começo dessa semana a minha voz ainda me preocupava. Eu ainda estava


rouco e com dor de garganta. Estava tomando antibiótico e xarope, porém o
local que comecei a trabalhar tem muito pó e o tempo também está muito seco e
o ar poluído. Pensei que iria piorar por conta disso. Procurei me prevenir de uma
possível piora, tomando muita água e poupando a voz e acho que esses
cuidados, juntamente com os medicamentos, ajudaram a amenizar os
problemas.

Hoje estou um pouco rouco e com a voz falhando de vez em quando, isso
acontece mais quando tento emitir notas agudas, porém não preciso me esforçar
tanto para projetar a voz como na semana passada e a garganta não dói mais.
Mesmo assim procurei me poupar, fazendo repouso vocal e continuando,
intensamente com os exercícios. Tínhamos programado um ensaio para hoje
antes da apresentação e aproveitei esse ensaio para ver como estava a minha
expressividade vocal no dia de hoje. Passamos a peça toda, do começo ao fim,
sem paradas. Mesmo me poupando, no ensaio, pude ver que minha voz estava
totalmente recuperada. Usei alguns dos recursos que utilizei semana passada
para projeção da voz, como por exemplo, trabalhar com um apoio maior do
diafragma e utilizando bastante a cabeça como caixa de ressonância, abrindo
mais a boca, levantando o palato e baixando a laringe para que os sons
tivessem maior espaço para ressoar, para que assim as falas mais exaltadas de
Dom Jean tivessem potência e força e não saíssem gritadas. No ensaio eu
sentia meu corpo muito vivo e bastante presente.

Mais uma vez eu estava ansioso para entrar em cena. Eu tinha um outro corpo,
outra voz, outras gestualidades, tinha um Dom Jean melhor que eu queria
mostrar.

Jantei pensando no personagem e um pouco rápido para poder voltar logo para
o teatro. Quando terminei, fui me arrumar, tínhamos bastante tempo para isso.
Mesmo assim me arrumei rapidamente e fui para o palco fazer minha
preparação corporal e vocal que sempre faço. Hoje eu senti minha voz com uma
potência incrível, como se tivesse um amplificador nela. Eu fazia os exercícios
de projeção e sentia a voz tomar todo o teatro. Hoje se apresentaria um Jean
com uma gestualidade vocal mais forte e potente. Eu estava me sentindo com
um corpo presente e com a expressividade corporal do personagem bem viva
45

em mim. Porém essa expressividade foi ainda mais potencializada pelo exercício
de aquecimento corporal que o Celso aplicou. O exercício consistia em andar
pelo espaço fazendo as gestualidades do personagem, imaginando que sua
sombra vinha logo atrás, fazendo os mesmos gestos, porém um pouco atrasada;
depois tínhamos que parar em uma imagem e manter essa imagem até que a
sombra chegasse e parasse na mesma imagem, assim, quando sentisse que a
sombra havia chegado, continuávamos a movimentação.

Achei esse exercício sensacional. Trouxe um estado de alerta e de presença


cênica incrível. Senti o personagem ainda mais vivo e senti a energia dos outros
atores muito alta também.

Apresentamos o espetáculo com a plateia cheia, lugares extra foram colocados.


A energia que veio da plateia foi incrível. Ao fim do espetáculo eu estava com um
sorriso enorme no rosto, feliz pelo trabalho e pelos meus colegas. Hoje foi um
dia muito bom, ao meu ver, e isso se confirmou nos apontamentos da Celia Luca
que me elogiou e elogiou a turma como um todo. Disse que fica feliz ao ver que
o espetáculo está crescendo em qualidade a cada apresentação e não podemos
deixar isso se perder.

Individualmente eu fico muito feliz de saber que todo o trabalho que tive com a
construção do meu personagem, que todo meu estudo e pesquisa estão dando
seus frutos e sendo reconhecidos. Enquanto integrante desse grupo, fico ainda
mais feliz de ver que esse trabalho, que é tão nosso e por isso é tão bonito, está
crescendo e ficando melhor.

O dia de hoje foi muito bom. Que venha amanhã pois Jean sente a necessidade
de viver.

10 de setembro

Hoje eu cheguei no teatro ainda preocupado com a minha voz. Acordei com a
garganta seca e raspando ao engolir. Com esse tempo o cuidado com a voz
deve ser redobrado.

Assim que cheguei ao teatro, fui para o camarim e comecei com os trabalhos
vocais, procurei me hidratar da melhor forma possível e continuei poupando da
voz.

Antes de começarmos com o ensaio, o Celso conversou com a gente sobre o


espetáculo de ontem. Disse que achou bom, porém estranho. Não conseguiu
explicar direito o que achou estranho. Disse que sentiu que estava uma
apresentação muito técnica. Parte do elenco concordou com esse apontamento.
Eu achei que estávamos mais ligados uns aos outros – talvez isso é que tenha
causado estranhamento. Porém ele disse que o espetáculo funcionou, que o
público estava com a gente e isso era o que importava. Ele aproveitou para nos
46

avisar que não estaria conosco hoje, que ficaríamos com a Melissa. E assim que
ela chegou, partimos para o ensaio. A intenção era fazermos um ensaio
acelerado e conseguimos. Passamos a peça toda em uma hora e meia.

Gosto de fazer o ensaio assim, acho muito bom para trabalhar a articulação e o
apoio diafragmático e também porque é muito engraçado passar a peça
acelerado.

No ensaio, senti a voz melhor que ontem, inclusive com mais potência e
projeção. Estava mais fácil projetá-la com uma altura boa. Uma coisa difícil do
ensaio acelerado é fazer os gestos acelerados também. Passei a observar isso e
percebi que a gestualidade corporal de Dom Jean precisa ser mais pontuada,
pois fica mais interessante.

Chegou a hora da apresentação, as portas do teatro se abriram para um púbico


bem volumoso também, tivemos a casa quase cheia. Fiquei ainda mais ansioso
para entrar em cena, mas não sei ao certo se era eu ou o Dom Jean que estava
ansioso. Nervoso eu nunca fico. Sempre vou para a cena muito confiante – eu
ou Dom Jean?

Sou afetado diretamente pela confiança que Dom Jean tem de si mesmo. Porém
sei que isso é mérito meu, pois fiz uma excelente construção desse personagem.

Hoje, especialmente, eu achei que foi a melhor apresentação de Dom Jean.


Levei para cena um personagem mais dinâmico e divertido sem deixar de ser
sedutor. Nas falas que ele compartilha com o público, eu olhava no rosto dos
espectadores e via olhos brilhando e sorrisos de expectativa, o carisma de Dom
Jean os conquistava, fazendo com que concordassem com falas como está:
“Quando se quer algo que não é seu e se encontra uma brecha para isso, o mais
correto é rasgar a brecha, fazer uma fresta e atravessar destruindo tudo a sua
volta [...]”. Isso é muito gratificante, pois evidencia a eficácia de uma boa
construção de personagem.

Nem preciso dizer que terminei o dia de hoje muito feliz com o trabalho
realizado. Apresentei o melhor Dom Jean até agora e o melhorarei ainda mais.

Para a próxima semana vale continuar os cuidados com a voz e o estudo da


movimentação cotidiana, a fim de expandir o repertório corporal e fazer novas
descobertas. Porém quero fazer uma preparação corporal mais efetiva e direta
seguindo o meu roteiro. Espero conseguir.

16 de setembro

O ensaio de quinta-feira não foi muito proveitoso. Conseguimos passar a peça


toda, porém foi uma passada sem energia e sem foco, estávamos dispersos.
Fora de cena não conseguíamos nos concentrar na cena do outro, chegando até
47

a atrapalhar. Nada novo foi criado nesse ensaio. Poderíamos tê-lo aproveitado
mais.

Eu me incluo em tudo que falei. Poderia ter trabalhado melhor o personagem,


buscado explorar novas gestualidades e expressividades, mas entrei na onda do
resto da turma e não fiz nada pelo personagem.

Durante os demais dias da semana, continuei observando a minha


movimentação cotidiana e estudando-a. Porém tenho que aplicar esse estudo no
personagem. Sinto a necessidade de retomar a minha preparação corporal
seguindo o meu roteiro e arriscando fazer alguns exercícios propostos por
Meyerhold em sua Biomecânica. Preciso encontrar tempo para isso.

Hoje nos encontramos no horário de sempre (13h30min). Logo que chegamos,


fomos montar o cenário (esse trabalho me cansou mais do que o normal). Fiz o
percurso da minha casa até o teatro andando, cerca de 5 km aproximadamente,
ou seja, cheguei muito cansado. Não dormi direito durante a semana e minha
alimentação também não foi muito boa. Meu corpo pesava e estava me sentindo
menos ágil do que o normal.

Tentei fazer os aquecimentos e exercícios vocais que venho fazendo, mas a


montagem do cenário levou muito tempo para ser concluída. Aqueci o máximo
que pude antes do ensaio e fui para a cena. Fizemos um bom ensaio, porém eu
não consegui criar nem explorar nada novo no personagem, me senti de certa
forma distante dele hoje e isso não me agradou em nada.

Ao fim do ensaio fomos comer. Pela primeira vez não estava pensando no
personagem. Estava pensando em outras mil coisas da minha vida menos no
personagem. Sentia-me desconcentrado e tinha que reverter essa situação.

Comi o mais rápido possível e fui para o teatro. Precisava recuperar a


concentração e buscar reconectar-me com o personagem. Antes de iniciar a
minha rotina de aquecimentos, fui tomar um banho para ver se conseguia relaxar
e amenizar o cansaço corporal que estava sentindo. Em seguida fui para o
camarim, vesti meu figurino e dei inicio aos aquecimentos. Fiz todos os
exercícios vocais que já vinha fazendo, dando ênfase ao Lax Vox, pois sempre
que eu faço esse exercício sinto minha voz amplificada e ressoando com
facilidade. Para aquecer o corpo e tentar trazer a minha atenção para o
personagem, eu fiz o exercício da sombra que o Celso aplicou semana passada.
Fiz todo o trajeto que Dom Jean faz na peça valorizando alguns gestos e,
quando parava em alguma imagem, procurava expandir e dilatar o corpo para
tornar a imagem ainda maior. Logo depois desse exercício, passei algumas
falas, as que exigem uma técnica vocal mais apurada: com apoio diafragmático
mais intenso e a laringe mais baixa. São falas que devem ser ditas com potência
e força para que não saiam gritadas.
48

Fiz todo o preparo necessário para me reconectar com o personagem e acho


que consegui. Era hora de começar mais um espetáculo, mas estava sentindo a
minha energia muito baixa, sentia a musculatura do corpo dura, travada. Na
coxia, antes de entrar em cena, fiz alguns alongamentos dos membros, pescoço
e coluna, procurando relaxar essa musculatura travada.

Enfim a peça começou e já na primeira cena percebi que ainda estava


desconcentrado e desconectado do personagem e que se não resolvesse isso
naquele momento, teria sérios problemas no decorrer da peça. Busquei eliminar
rapidamente os meus pensamentos e me ligar aos dele. Foi interessante, pois
senti que me distanciava do meu corpo e Dom Jean assumia. O que não deu
para mudar foi a energia do corpo que ele assumiu. Eu estava excessivamente
cansado. Mesmo assim, fiz o melhor que pude no dia de hoje. Achei a
gestualidade vocal boa, porém passei na voz o cansaço que sentia. Eu não me
poupei por conta do cansaço, tanto que estava exausto ao fim da peça.

Depois da peça, fomos ouvir os apontamentos dos orientadores. Estava pronto


para ouvir bastante sobre o que apresentei hoje. Porém a Celia e a Melissa nada
disseram sobre mim e muito menos sobre Dom Jean. O professor Pedro
Alcântara nos assistiu hoje e no final veio nos dar algumas orientações. Falou
com todos um por um. Na minha vez ele me disse que meu personagem
precisava de mais presença e energia, pois é um homem imponente e que era
preciso trabalhar para conseguir isso. Ouvi atentamente e respeitei tudo o que
ele disse. Mas não concordei com o que “tenho que trabalhar para conseguir”
essa presença e energia. Eu já a tenho. Hoje foi um caso excepcional e que irei
“trabalhar” para não deixar essa energia cair mais.

Depois de tudo o Celso veio até mim e me perguntou se eu estava muito


cansado. Eu respondi que sim e ele me disse que eu passei isso na voz e que
era para eu me resguardar durante a semana e descansar o máximo possível.
Acho que a questão não é essa. Em minha opinião, tenho que buscar dentro de
mim uma forma de romper os limites e explorar mais os pontos geradores de
energia: abdômen e glúteos. Tenho que tentar separar corpo e mente. Assim
quando a mente disser que cheguei no limite, devo romper essa ligação e
explorar os pontos energéticos. Levando ao personagem uma energia
maximizada.

Hoje aos olhos dos orientadores eu apresentei um bom trabalho, mas não posso
dizer que estou feliz como o que fiz. Fui medíocre, apresentei “o que deu para
apresentar hoje” e não gosto disso. Gosto de ultrapassar meus limites sempre.

Vou avaliar todas as impressões que tive, trabalhar e estudar possíveis formas
de resolver o problema da energia baixa e tentar aplicar na apresentação de
amanhã.
49

Apesar de estar chateado, achei muito bom o que me aconteceu hoje. Novos
questionamentos surgiram, novos desafios, mais trabalho, mais pesquisa, mais
estudos deverão ser feitos e eu acho isso ótimo.

Amanhã é um novo dia e buscarei não cometer os mesmos erros e encontrar


soluções que me favoreçam em cena.

17 de setembro

Chegamos ao teatro hoje no horário de sempre. Ficamos tranquilos e a vontade


– até demais para o meu gosto. Na minha opinião deveríamos chegar contra
regrar tudo no cenário e começar a ensaiar.

Aproveitei o tempo para aquecer a voz. Ficar quase sem voz, como fiquei
algumas semanas atrás me deixou com certo trauma. Por isso continuo com os
exercícios de forma intensa.

Começamos o ensaio faltando três horas para começar o espetáculo. Eu sugeri


que fizéssemos um ensaio acelerado, pois acho um bom exercício para a
articulação e para acordar a expressividade corporal. Teria sido um ensaio bem
proveitoso se tivéssemos levado a sério. As varias brincadeiras e piadinhas
colocadas no meio dos textos desviaram o foco e o exercício que era para dar
dinâmica e energia, acabou cansando parte da turma, fazendo com que o ensaio
ficasse lento e chato.

A turma não soube aproveitar a oportunidade de trabalhar as possibilidades que


o exercício de fazer a peça acelerado nos propicia: trabalhar a articulação,
explorar a expressividade corporal e vocal, ganhar ritmo e dinâmica de cena. O
ensaio foi tão mal aproveitado que não conseguimos nem ao menos passar a
peça inteira.

Fomos liberados para jantar. Fui comer e ainda estava me sentindo distante,
com a cabeça perdida, pensando em muitas coisas ao mesmo tempo. Tentava
me focar e pensar no personagem, mas não conseguia; eu precisava resolver
isso logo, antes de entrar em cena. Terminei de comer e fui para o teatro, tomei
um banho para relaxar, me troquei e fui imediatamente para o palco me
concentrar.

Enquanto fazia meus exercícios vocais, buscava mergulhar nas intenções de


Dom Jean, precisava me concentrar para não cometer os mesmos erros de
ontem. Repassei falas importantes exagerando na gestualidade vocal. Ainda
estava me sentindo desconcentrado com relação ao personagem. Buscando
essa concentração, fui para trás da coxia fazer uma espécie de meditação.
Fiquei pensando no personagem, nos seus objetivos dentro da peça. Ainda
sentia o corpo muito cansado, estava me sentindo ligado ao personagem, porém
com um desgaste físico exacerbado.
50

A questão agora era: como manter a energia do personagem, mesmo com todo
o meu cansaço? Me vi perdido por alguns instantes, por não ter resposta para
isso. De repente pensei no meu corpo. Parei um momento para senti-lo e percebi
que eu conseguiria (e deveria) tentar explorar os pontos geradores de energia
(glúteos e abdômen), pois não sentia esses músculos cansados.

Com essa ideia na cabeça, fui para o palco testar esse apoio com esses
músculos. Passei algumas falas com o abdômen e glúteos contraídos, tentei,
apesar do cansaço físico, expandir e dilatar ainda mais a minha expressividade
corporal, sempre buscando apoio nos geradores de energia. Percebi um
resultado interessante e queria 50latei-lo em prática o quanto antes.

Agora eu já me sentia mais concentrado e ávido pela nova descoberta. Teria eu


resolvido o problema da energia? Com essa pergunta, fui para a cena. Me sentia
mais ligado ao personagem, pensava em suas ações, no seu corpo e só. Estava
plenamente concentrado, porém não podia deixar a energia que adquiri diminuir.
Logo acionei a musculatura para elevar essa energia. Creio que consegui fazer
isso e passar ao público todas as intenções do personagem.

Ao fim da peça eu estava exausto, estafado, as pernas tremiam. Mas esse


desgaste físico me causou uma satisfação imensa, pois eu me doei em cena,
não neguei nada ao público ou ao personagem.

Cabe agora, para a próxima semana um estudo mais aprofundado nessa


questão dos pontos geradores de energia.

Termino o dia de hoje satisfeito com a apresentação e com as descobertas feitas


a cerca do meu corpo.

A preparação do corpo do ator é isso: conhecer-se, chegar ao seu limite e


ultrapassá-lo. Mais importante ainda que isso é registrar as sensações corporais,
50latei-las, criar repertório e assim aperfeiçoar a sua dramaturgia.

23 de setembro

Durante essa semana, fiquei pensando nos problemas de energia que tive nas
apresentações do fim de semana passado. Cheguei a uma conclusão óbvia, mas
que ainda não havia mencionado: faz parte da preparação do ator se alimentar e
dormir bem. Negligenciar esses cuidados é correr o risco de se perder do
personagem (por conta do cansaço), e de deixar sua energia corporal cair.
Pensando nisso, procurei o máximo que pude me alimentar e dormir o melhor
possível.

Na quinta-feira nos encontramos para ensaiar. O elenco não estava completo


(faltavam duas pessoas). Busquei me concentrar e não dispersar, passar as
cenas com as intenções do personagem, com suas expressividades e
51

gestualidades exatamente como são e não somente falando o texto. Para mim,
particularmente, esse ensaio foi muito bom, muito proveitoso.

Hoje a montagem do cenário foi um pouco mais rápida. Estamos pegando


prática e desenvolvemos formas mais dinâmicas para a montagem, tanto que
sobrou um tempo grande para ensaiarmos.

Entre a montagem e o ensaio, tivemos alguns minutos. Aproveitei-os para fazer


exercícios vocais.

Eu estava me sentindo um pouco cansado. Fui a pé para o teatro. Porém isso


não me preocupava. Como passei a semana pensando nessa relação entre
cansaço e energia, cheguei a conclusão de que uma não depende da outra e
não estão ligadas; estar cansado fisicamente não significa que minha energia vai
estar baixa. Cheguei a pensar que poderia acumular energia por meio da
exaustão, pois tive essa sensação nos músculos no fim de semana passado.
Eles estavam rígidos e doloridos, porém estavam alerta; os sentia fortes.
Pensando nisso, coloquei em prática essa teoria. Essa semana fiz exercícios em
dois dias (fora o esforço físico que faço no trabalho): corri dez quilômetros, fiz
abdominais, flexões, exercícios em barra fixa. Hoje, sinto o corpo dolorido, mas
sinto os músculos bem fortes, me sinto fisicamente forte; sinto uma vibração
corporal intensa. Estou cansado, porém não me sinto sem energia, muito pelo
contrário, sinto que estou com energia acumulada.

No ensaio aproveitei para me apoiar bastante no abdômen. Com ele contraído


para não perder a postura do personagem e gerar ainda mais energia. Poupei a
voz nesse ensaio.

Achei o ensaio ótimo. Gostei das descobertas que fiz e queria por em prática.
Estava ansioso para entrar em cena, porém muito tranquilo e confiante no meu
trabalho.

Ao fim do espetáculo, estava sentindo o dobro de cansaço, as pernas tremiam


(eu estava morrendo de fome). Fora isso eu sentia o corpo muito atento ainda.
Depois fomos ouvir os apontamentos da Celia. Sobre mim ela nada disse (isso é
bom). No geral ela disse que gostou muito do espetáculo e que estamos
evoluindo a cada dia.

A apresentação de hoje me causou uma felicidade imensa: pelo trabalho que fiz,
pelas descobertas, pela pesquisa, estudo e pelos resultados.

Que venham novos desafios.

24 de setembro
52

Hoje chegamos no horário de sempre. Fui a pé para o teatro, de novo. Os


músculos das pernas estavam latejando, porém eu gostei dessa sensação
corporal. O fato de estar cansado já não me desequilibra mais.

Assim que chegamos o Celso nos chamou para conversar, falou sobre o
espetáculo de ontem. Disse que gostou, que foi muito bom, mas que não
podemos perder o pique e nem entrar no automático; que devemos ativar a
nossa escuta em cena para a peça fluir ainda melhor. Logo depois da conversa
ele nos deu alguns minutos antes do ensaio. Eu fui para o camarim, fiz alguns
aquecimentos vocais e voltei para o palco. Estava pronto para começar o ensaio.
Procurei me poupar corporal e vocalmente para não me desgastar.

Nessas últimas apresentações sinto um Dom Jean mais malandro, mais


inescrupuloso chegando a ser até meio “louco”, ensandecido pelo poder (isso
mais no segundo ato). Eu gosto desse perfil novo para ele, acho que ele fica
mais interessante. Trabalhei isso no ensaio e gostei dos resultados. Senti o
corpo mais expandido no segundo ato, depois que ele toma o controle de tudo.
Junto com esse corpo novo, um novo registro vocal surgiu. Esse registro acentua
esse traço alucinado de Dom Jean. Precisava agora maximizar essa
expressividade corporal e vocal que surgiram.

Acabamos o ensaio e fomos nos trocar. Enquanto me vestia repassava as ações


e intenções do personagem e pensei nos seus objetivos na peça. Comecei a
pensar em seu corpo e já fui incorporando a sua gestualidade corporal: o corpo
mais ereto, o queixo mais reto, sem olhar para baixo, o peito estufado e um olhar
profundo. Quando terminei de me vestir me sentia alimentado de tudo sobre o
personagem. O corpo do ator estava cansado, mas o do personagem não.

Fui para o palco aquecer minha voz e meu corpo. Procurei me concentrar
apenas no personagem colocando de lado pensamentos que me distanciasse
dele; caminhava pelo espaço (já com a gestualidade dele) repassando
mentalmente todas as suas intenções e transferindo para o corpo. Como
exercício para a voz eu passei suas falas mais expressivas brincando um pouco
com a gestualidade vocal (sempre com a laringe baixa e o diafragma apoiando).
Fizemos um pega-pega como aquecimento coletivo.

Quando enfim estava na hora de começarmos mais uma apresentação, fizemos


um circulo no centro do palco e demos nosso grito de guerra tradicional.
Estávamos prontos para deixar nossos personagens viverem.

Hoje eu estava me sentindo tranquilo e confiante a respeito do meu corpo, da


minha voz, da minha mente e, consequentemente, do personagem. A ansiedade
de entrar em cena voltou e isso é muito bom.

Mais uma vez, fui para a cena como um animal feroz ataca sua presa. Coloquei
em prática tudo o que descobri, estudei e exercitei. Durante a apresentação eu
53

me senti muito ligado, atento e concentrado. Para manter essa concentração no


nível máximo, estou evitando entrar no camarim quando não estou em cena,
assim não fico disperso. Fico na coxia, repassando tudo sobre o personagem.
Quando entro em cena me sinto mais bem preparado, ávido, com o corpo e a
mente mais presentes. Dessa forma cometo menos erros.

Quando enfim o blackout encerrou a peça, fui para frente da 53lateia com um
sorriso no rosto, muito satisfeito com o trabalho de hoje.

Todos os dias de apresentação são bons, até mesmo os dias que temos
dificuldades e que obstáculos, físicos ou mentais aparecem, pois estou disposto
a aprender com essas dificuldades, melhorar e evoluir para que elas não me
atinjam mais.

Estou muito feliz com os resultados da minha pesquisa. Quero descobrir muito
mais coisas. Parar por tanto tempo para observar e pensar no meu corpo e em
minha gestualidade, tanto expressiva quanto cotidiana, está me levando a um
entendimento, a um auto conhecimento maravilhoso.

30 de setembro

Essa semana não nos encontramos para ensaiar.

Passei essa semana pensando na questão da energia corporal, da exaustão


física. Acredito ter resolvido esse problema.

Já faz um bom tempo que não faço minha preparação corporal seguindo o meu
roteiro. Talvez não consiga mais segui-lo. Os dias estão corridos, e mesmo com
a ideia de exaustão para acumular energia, eu estou tentando descansar o
máximo que posso.

Hoje a montagem do cenário foi ainda mais rápida. Eu particularmente, gosto


muito de fazer essa montagem. Acredito que, enquanto montamos estamos nos
conectando com a história da peça, com os personagens em si. É um exercício
de concentração muito interessante.

Terminamos a montagem e fomos nos preparar para o pré-bate (um bate-papo


com os espectadores, que acontece antes da peça). O bate-papo foi bem
interessante, as respostas que demos diante as perguntas do público,
demonstraram o quão estamos apropriados do trabalho.

Logo após o pré-bate fomos liberados para comer e nos prepararmos. Hoje não
tivemos tempo para ensaiar, então a proposta do Celso e da Célia foi que
fizéssemos o exercício de repassar as ações do personagem, individualmente,
fazendo todo seu trajeto na peça, dando as nossas falas e explorando
gestualidades, expressividades etc. Gostei muito desse exercício, o achei
54

eficiente e menos desgastante do que o ensaio em si. Talvez até mais


proveitoso, se tratando de tempo.

O exercício me levou a um estado de alerta muito bom. Hoje não me sentia tão
cansado, tão pouco desgastado como nos outros finais de semana.

Consegui fazer o exercício de passar todas as ações e falas do personagem e


seu trajeto na peça, duas vezes. Ao final da segunda vez, já iniciei uma série de
aquecimentos vocais e físicos: fiz algumas flexões, agachamentos e corri de um
lado para o outro na coxia; Sentia a energia corporal subir.

Quando já estava perto do espetáculo começar, fomos para o centro do palco,


fazer o nosso grito de guerra. Eu puxei o grito, e senti a minha voz ecoando por
todo o teatro, preenchendo o espaço. Fui tomado por uma euforia e a ansiedade
de entrar em cena surgiu mais uma vez.

Enquanto o público entrava, fiquei pensando em trabalhar um Don Jean ainda


mais ensandecido com o poder adquirido no segundo ato. Queria testar também
uma intenção que a Célia pediu para eu fazer em uma fala específica do
segundo ato, onde Jean diz a Leporelo (Carolina Scaldelai): “Não me questione!
Eu sou um homem de posses agora. E um homem de posses não pode ser
questionado ”. Ela pediu para que eu falasse essa frase com mais firmeza, me
impondo mais.

Assim que a peça começou, já na primeira cena, comecei a trabalhar essa


loucura de Don Jean, essa sede que ele estava pelo poder.

Enquanto não estava em cena, ficava na coxia trabalhando as intenções do


personagem. Assim como na semana passada evitei entrar nos camarins para
não dispersar e não me perder do personagem. Isso funciona muito bem.
Sempre que estava em cena, estava alerta e com o corpo pronto para o jogo.

Durante o espetáculo continuei buscando apoio nos geradores de energia.


Trabalhar com o abdômen e os glúteos contraídos me ajudam, além de tudo a
manter a postura do personagem e a ganhar potência vocal.

Gostei muito da apresentação de hoje. Teve ritmo, energia e dinâmica. O Celso


e a Célia também gostaram. Ao final da peça, fomos ouvir os apontamentos da
Célia, e suas indicações foram bem pontuais e técnicas. Para mim e sobre o Don
Jean, nada foi dito, a não ser que a nova intenção na fala ficou boa.

Me sinto novamente empolgado com tudo, igual estava no início do processo.


Isso se dá por conta dos desafios que surgem e das descobertas que faço
tentando transpô-los.

01 de outubro
55

Hoje chegamos mais tarde ao teatro (ás 15h), e só fomos dar início as nossas
atividades uma hora depois. Como o espetáculo começaria ás 18h, ficamos com
pouco tempo para ensaiar. Então fomos nos arrumar para que pudéssemos
voltar a tempo de fazermos o exercício de ontem. Fui o primeiro a retornar ao
palco, achei esse exercício muito bom e queria repeti-lo o máximo possível.

Antes, fiz alguns exercícios vocais e logo em seguida fui realizar a trajetória do
personagem. Passei uma única vez inteiro e depois me foquei em algumas
cenas e falas específicas, por exemplo, aquela que dei uma nova intenção
ontem, orientado pela Célia. Depois disso fui para coxia fazer um aquecimento
físico, com flexões e agachamentos.

Hoje me sentia totalmente pleno e presente, tanto corporalmente como


mentalmente. Estava ligado ao personagem e suas intenções, pronto para deixa-
lo viver.

Enquanto o público entrava, fiquei passando as intenções e objetivos de Dom


Jean, e isso ia me ligando ainda mais a ele. Quando enfim entrei em cena, nada
sobre mim passava em minha cabeça, apenas pensamentos do personagem.
Não me desconcentrei e muito menos me desconectei de Dom Jean um
segundo se quer. Permaneci exercitando a concentração na coxia, sem entrar
nos camarins, e isso fez com que não me dispersasse.

Hoje foi um dia que tudo deu certo, tanto para mim, como para o resto do elenco.
Estávamos ligados e atentos ao jogo tanto do grupo como o da 55 lateia.
Estávamos ainda mais dinâmicos e com a energia elevada, como nunca havia
visto. Definitivamente o melhor dia de apresentação de todos do elenco, mas
principalmente foi o meu melhor dia; foi o melhor Dom Jean de todos.

Posso dizer que hoje foi um dia glorioso. Um daqueles dias que faz com que a
gente sinta orgulho de todo trabalho que teve para realizar aquilo.

Estou feliz, porem ainda quero descobrir muito mais (sobre mim e sobre o
personagem). Esse processo e essa pesquisa estão sendo reveladores para
mim, estou descobrindo muito sobre a minha capacidade criativa e física-
corporal- expressiva.

Se a cada desafio vem uma nova descoberta, então que venham muitos outros
desafios.

07 de outubro

A rotina desse sábado não foi diferente dos demais. Chegamos e fomos montar
o cenário. Terminamos bem rápido a montagem.

Após terminarmos a montagem do cenário, antes de começar a ensaiar, tivemos


um tempo para descansar e comer alguma coisa.
56

Hoje eu estava me sentindo muito bem fisicamente. Não sentia dor no corpo,
muito menos cansaço e não estava com nenhum problema na voz. Estava me
sentindo muito cheio de energia. Mesmo assim, durante o ensaio, procurei me
poupar tanto vocal quanto corporalmente. Procurei trabalhar as novas intenções
nas falas que Dom Jean diz no segundo ato e acho que ficaram muito boas, de
acordo com o que a Célia havia pedido. Durante o ensaio, nada de novo foi
pensado para o personagem. Tenho a impressão de que cheguei onde tinha que
chegar nessa construção e que agora só tenho que administrar tudo o que criei.

Quando terminamos o ensaio, fomos liberados para comer. Fui jantar e fiquei
pensando nessa situação: de já ter chegado onde deveria chegar; de não ter, no
dia de hoje, nenhum desafio para transpor, ou coisa do tipo. Seguido desse
pensamento, me veio a cabeça que essa situação, essa certeza de já ter
chegado ao ponto final da minha construção e a segurança que isso me trazia,
era o meu desafio de hoje: como não deixar que essas circunstâncias me
levassem à um estado de relaxamento. Com esse pensamento na cabeça,
terminei de jantar e fui direto para o camarim fazer toda minha rotina de
aquecimentos. Fiz meus exercícios vocais, alguns exercícios físicos e logo em
seguida comecei a me vestir. Enquanto me vestia tentava emergir no
personagem, pensando em seus estados corporais e suas sensações físicas em
cada cena; repassando na cabeça seu trajeto na peça. Depois que terminei de
me vestir, fui para o palco e fiz o exercício de fazer todo o trajeto do
personagem, buscando dilatar e exagerar nos gestos corporais (procurei me
poupar vocalmente). Em seguida fui para a coxia e comecei a fazer algumas
flexões. Me sentia fisicamente estranho. Não sei explicar essa sensação, mas
não estava acostumado a apresentar com o estado físico no qual me encontrava
hoje. Eu queria sentir meus músculos vibrando, alertas. Não sei explicar, mas
acho que estava me sentindo descansado demais e isso me trouxe uma
sensação de falta de energia. Assim busquei elevar essa energia com
exercícios. Fiz também um breve alongamento expressivo, pois sentia como se
minha musculatura estivesse retraída e queria, com esse alongamento, expandir
minha expressividade corporal. Depois retomei o aquecimento vocal, explorando
varias gestualidades; os registros vocais (grave, médio e agudo), dando as falas
de Dom Jean, fazendo uso desses registros.

A hora de entrar em cena se aproximava e eu ainda não estava com a sensação


corporal que eu gostaria de estar. Mas agora não tinha mais o que fazer. Teria
que tentar trabalhar isso em cena e fazer o meu melhor. Hoje não me senti
ansioso. Estava em um estado de passividade muito estranho e não estava
gostando nada disso.

Enquanto o publico entrava, tentei ativar a musculatura, dando tapas no peito,


coxas e glúteos (como fazem alguns atletas de natação). Depois de fazer isso,
senti a musculatura mais alerta e fiquei um pouco menos preocupado. Voltei,
rapidamente, a minha atenção aos conflitos e objetivos do personagem, pois
57

essas preocupações eram minhas e Dom Jean não tinha nada a ver com isso.
Consegui me concentrar no personagem e fui para a cena com uma energia
corporal que, para mim, estava muito baixa hoje.

Na primeira cena pude me avaliar e me perceber no espaço. Busquei jogar


bastante com o público, tentando jogar toda a minha energia para eles e tive
como resposta, sorrisos e olhares que antes eu não havia recebido. Então
pensei que, a falta de energia estivesse apenas na minha impressão a respeito
do meu estado corporal hoje. Assim que saí de cena, fui para a coxia me
concentrar e refletir sobre esse estado corporal.

Hoje eu aproveitei a segurança que estava sentindo e joguei bastante com o


publico e acredito que os conquistei. Mais uma vez, pude ver pessoas
concordando com as falas de Dom Jean e prestando grande atenção a tudo que
ele fazia e dizia.

Fizemos uma boa apresentação. No geral, tivemos dinâmica, energia e um bom


tempo de comédia. Mas pessoalmente eu digo que ainda estava me sentindo
estranho. Creio que fiz um bom trabalho, mas ainda assim achei estranho. Acho
que me acostumei, nas ultimas semanas, a lidar com desafios físicos, tais como
a falta de energia por conta de um alto desgaste físico, perda de voz etc., muito
diferentes desse de hoje.

Termino o dia de hoje feliz com o trabalho apresentado, porém pensativo sobre o
que ocorreu comigo. Vou pensar nessa questão para a apresentação de
amanhã.

08 de outubro

Hoje estávamos bem tranquilos. Chegamos ao teatro as 15h, sentamos na


plateia junto com o Celso e conversamos sobre o espetáculo de ontem. Ele disse
que gostou muito do espetáculo, só achou um pouco estranho (daquele jeito que
ele não sabe explicar). Talvez estivéssemos muito técnicos, como já aconteceu
em outras apresentações. Eu me encontrava no mesmo estado físico de ontem:
me sentia bem descansado e com a musculatura relaxada. Ontem e hoje eu
consegui vir para o teatro de ônibus.

Após a conversa com o Celso, fomos liberados para ir comer, nos preparar,
relaxar etc. e teríamos que estar prontos, no palco, às 17h. Eu fui para o
camarim, comi um lanchinho que levei, enquanto pensava no que me aconteceu
ontem. Naquele estado físico estranho, o qual eu não estava acostumado.
Pensando nisso, lembrei do registro corporal que o estado de fadiga me
causava; da sensação de corpo carregado de energia que esse estado me
trazia. Ativei essa lembrança corporal e, de repente, dessa forma tão óbvia,
surgiu à resposta para o meu conflito desse dia.
58

Fiquei empolgado com a possibilidade de resolver essa questão e comecei a me


vestir imediatamente. Quando terminei, fui para o palco tentar ativar essa
lembrança corporal. Não consegui ativá-la apenas pensando nela, então procurei
trazer essa lembrança por meio dos exercícios físicos. Assim, fui para a coxia e
comecei a fazer, flexões, abdominais, agachamentos, e corri um pouco. Claro
que isso não foi o bastante para me levar ao estado de fadiga, mas serviu para
ativar a musculatura e me ajudar a lembrar do registro corporal que precisava.

Fui para o palco e me sentia com uma energia diferente de ontem. Com essa
nova energia, fiz o exercício de passar as ações do personagem. Quando
terminei, fiz exercícios vocais e voltei para a coxia para mais exercícios físicos e
alongamento expressivo.

Achei bem favoráveis os resultados que obtive e, diferente de ontem, estava me


sentindo bem com meu estado corporal.

Sobre o personagem, acho que alcancei os resultados os objetivos da sua


construção. O processo agora é mais de descoberta pessoal, do meu próprio
corpo e das possibilidades expressivas que tenho e que posso emprestar ao
personagem.

Antes do espetáculo começar, fomos para o centro do palco. O Celso disse


algumas palavras que nos emocionou. Relembramos de todo o processo de
criação e todo o trabalho que tivemos até aqui. Ele pediu para que nos
divertíssemos e aproveitássemos ao máximo, pois nossa temporada estava
acabando (no próximo final de semana, subiremos ao palco pela última vez, para
dar vida à esses personagens). Isso me deixou eufórico. Fiquei ansioso para
entrar em cena. Me sentia feliz com tudo o que apresentei até aqui.

Com essa euforia, fui para a cena e não poupei energia, não neguei nada ao
público. Durante a peça, mantive a rotina de concentração que adotei nas
últimas semanas, ficando na coxia e pensando nas intenções do personagem.

Ao fim do espetáculo eu estava me sentindo muito feliz e cansado. Hoje fomos


ainda melhores que ontem, na minha opinião. Estávamos com uma energia boa,
com um bom tempo de comédia, dinâmicos e muito presentes em cena, com o
corpo atento ao jogo.

Semana que vem darei vida a Dom Jean, pela última vez nesse processo.

14 de outubro

Enfim chegamos ao último sábado da temporada.

A rotina foi a mesma: chegamos, começamos a montar o cenário e quando


terminamos, fomos ensaiar.
59

A turma parecia muito bem quanto ao fato de ser o último fim de semana.
Ninguém parecia estar triste, nem nervoso ou coisa parecida. Durante a semana
eu não pensei muito nessa questão do fim da temporada. Mas hoje eu acordei
com isso martelando na minha cabeça. Fiquei me questionando se, de fato, eu
consegui chegar onde eu queria com a minha pesquisa e consequentemente
com a construção do meu personagem. A resposta foi imediata: um sim que
ecoou em minha cabeça. Descobri muitas coisas sobre mim mesmo, tentando
entender esse personagem. Muitas descobertas sobre o meu potencial criativo e
sobre a minha dramaturgia (sobre a dramaturgia do ator) foram feitas. Sendo
assim eu posso afirmar, que os resultados da minha pesquisa e dos meus
estudos foram muito satisfatórios.

Quando terminamos o ensaio, fomos liberados para jantar e enquanto eu comia,


ficava relembrando toda a minha trajetória nesse processo de montagem. Foram
anos duros de dedicação, de aprendizagem, de descobertas, de sacrifícios e
tudo estava prestes a acabar.

Hoje eu iria me divertir como nunca me diverti em cena. Meu personagem já


estava estabelecido, bem construído, bem estruturado: com suas gestualidades
vocal e corporal bem definidos e suas intenções e objetivos estavam orgânicos
em mim. Então deveria aproveitar e me deliciar com tudo o que construí, muito
mais do que em todas as apresentações.

Com todos esses pensamentos na cabeça, comi (tranquilo dessa vez) e logo em
seguida fui para o teatro, me troquei, organizei tudo o que eu uso em cena e
depois fui me aquecer. Fiz toda a minha rotina de aquecimentos: exercícios
físicos, alongamento expressivo, aquecimento vocal e posteriormente fiz toda a
trajetória do personagem, passando suas ações na peça. Me sentia muito bem,
tranquilo e ansioso para entrar em cena.

Quando enfim chegou o momento de começarmos o espetáculo, fomos para o


centro, o Celso tomou a palavra e a primeira coisa que disse foi “estamos com a
casa lotada”. Nossa 59lateia, em dias normais, contava com 94 lugares. No dia
de hoje mais de 50 lugares extras foram colocados!. Todos nós ficamos muito
felizes com isso. Retomando a fala, o Celso voltou a comentar sobre a nossa
trajetória na fundação, desde o P1 (primeiro semestre) até agora, falou dos
tempos difíceis que estamos vivendo, com pouca verba etc. e que nós demos a
melhor resposta que podíamos que foi fazendo com que nosso espetáculo
acontecesse, fazendo com que fosse lindo e grandioso do jeito que concebemos:
dramaturgia, cenário, figurinos e interpretação. Essas palavras mexeram com
todos do elenco. Fizemos nosso grito de guerra com uma vibração e força que
nunca havia visto antes. Saí vibrando e gritando, fui para trás do cenário
aguardar a hora de entrar em cena. Dei alguns tapas nos músculos (como fazem
os nadadores) e fiquei pensando em tudo que foi dito. Em seguida busquei me
concentrar no personagem enquanto o público entrava.
60

Pela primeira vez em toda a temporada, eu fiquei nervoso. Tentei a todo custo
afastar esse nervosismo, mas ver a 60lateia cheia, lembrar de tudo o que passei
na Fundação pra chegar até aqui, lembrar de todo o processo, o trabalho que
tivemos para executar tudo, lembrar dos meus estudos e da minha construção;
tudo isso mexeu comigo. Ficar desse jeito me trouxe uma sensação corporal que
ainda não havia experimentado nessa temporada e eu procurei usar tudo isso a
meu favor, usar a adrenalina que o nervosismo traz, para ativar a musculatura e
criar tônus muscular, para ficar mais alerta e atento. Ficar assim me fez
intensificar os tapas nos músculos. Me sentia ansioso para entrar em cena e
fazer valer, mais do que nunca, tudo o que trabalhei até aqui.

Enfim começamos o espetáculo e já na primeira cena busquei extravasar o


nervosismo, triangulando muito com a 60lateia e dilatando minha expressividade.
Em determinado momento da cena, quando Dom Jean congela se fingindo de
estatua, eu percebi que a minha mão tremia (era o nervosismo) tentei fazer parar
mas naquela cena eu não consegui. Quando sai de cena e fui para a coxia, me
concentrei para fazer com que parasse essa tremedeira, pois isso era o
nervosismo que poderia se tornar ruim e prejudicial para o personagem. Ainda ali
na coxia, antes de entrar para a próxima cena de Dom Jean, eu fiquei repetindo
seus gestos expressivos; não abandonei o personagem em nenhum instante,
visando acalmar meus nervos e parar de tremer. Finalmente consegui. Acredito
que entrar em cena para fazer as transições de cena (tirar e por cenário),
também foi um bom exercício para trabalhar as intenções e os gestos do
personagem.

Com o nervosismo sobre controle, passei a saborear cada momento em cena.


Engraçado é que, me peguei fazendo comparações entre o eu de agora: o
Ricardo do P7 que se delicia e aproveita cada segundo em cena, querendo fazer
durar o maior tempo possível e o Ricardo do P1, que entrava em cena, nos
exercícios da aula de improvisação, desejando que os minutos passassem o
quanto antes para que pudesse sair de cena logo.

Hoje eu joguei bastante com o público, abri ainda mais a minha escuta, para
estar mais presente no jogo cênico com os meus colegas de elenco e procurei
me divertir ao máximo.

Assim, ao fim do espetáculo o sentimento não poderia ter sido outro, se não o de
satisfação, de dever cumprido, de felicidade.

Ainda tem amanhã e espero me divertir e aproveitar cada segundo como fiz hoje.

Dom Jean terá mais um dia para se mostrar, para encantar e revoltar o público.

15 de outubro

Enfim, chegou o último dia da temporada do meu espetáculo de formatura.


61

Hoje eu acordei tranquilo. Sempre achei que quando esse dia chegasse, seria
pesado, seria um dia triste, nebuloso etc. Mas por incrível que pareça, não
acordei sentindo nada disso. Me sentia, de certa forma, até bem feliz, pois o ciclo
estava se encerrando e, na minha opinião, tinha que se encerrar mesmo, tinha
que ter o seu final para ser marcante.

Assim que chegamos ao teatro, nos reunimos na 61lateia, com a Melissa e a


Celia, para conversarmos sobre a apresentação de ontem. As observações que
fizeram, foram a respeito de volume de voz. Disseram que todos nós, em algum
momento da peça, deixamos o volume da voz cair. Explicaram que como o
teatro estava cheio, nossa voz ficou abafada e que pra apresentação de hoje,
teríamos que colocar mais potência vocal, caso tivéssemos lotação total de
novo. Disseram que todas as cenas do Hargan (André Ferreira), no primeiro ato,
tinham ficado muito lentas ontem e que tínhamos que ensaiar todas. E assim o
fizemos.

Quando terminamos a cena que eu aparecia junto com o André, fui comer
alguma coisa, fiz apenas um lanche. Logo em seguida voltei para o teatro e fui
me arrumar. Vesti meu figurino e fui para o palco fazer meus aquecimentos,
como faço sempre. Hoje, estava me sentindo com muita energia. Estava ansioso
para entrar em cena; ansioso para emprestar meu corpo às gestualidades de
Dom Jean pela última vez.

Diferente de todos os outros dias, que sempre tiveram um conflito, um desafio a


ser vencido, hoje eu estava muito bem; relaxado e querendo me divertir e
saborear cada segundo desses últimos momentos como Dom Jean.

Nos reunimos no centro do palco, instantes antes de abrir a porta para o público
entrar e fizemos nosso grito de guerra pela última vez nesse processo. Foi
vibrante, cheio de energia. Fomos para nossos lugares desejando boa sorte uns
para os outros e quando me coloquei no meu lugar, onde sempre fico antes de
entrar em cena, me veio a sensação de nervosismo. Porém não me abalei com
isso, já sabia como lidar com esse estado físico (que é um estado físico do ator e
não do personagem). Me utilizei do nervosismo para acumular ainda mais
energia, estimulei a musculatura com tapas e fiquei me sacudindo até o
momento de entrar em cena.

Hoje não tivemos lotação total. As cadeiras extra foram retiradas. Mas a
quantidade de público nunca foi fator influenciador para a minha interpretação.
Ter um público pequeno não significava que a atuação, a energia ou seja lá o
que for, seria menor, pior etc. Sempre me doei e busquei jogar toda a minha
energia. E assim o fiz. Me diverti muito mais que ontem, joguei com o público e
com meus colegas com muito mais prazer. Quando estava fora de cena, mantive
minha concentração na coxia, pois não queria me desligar do personagem nem
um instante se quer.
62

Quando o blackout marcou o fim da nossa última apresentação, os aplausos do


público trouxeram a certeza de um trabalho bem realizado e a sensação de
dever cumprido. No momento de agradecer a esse público tão receptível e
agradável, não nos contivemos e choramos. Eu desabei internamente, e a
tormenta dentro de mim fizeram meus olhos transbordar. O Celso fez os
agradecimentos, falou da nossa trajetória até aquele momento, das dificuldades
e das felicidades que tivemos com aquele trabalho. Ouvindo tudo o que ele dizia,
não foi possível conter a emoção e muito menos o choro. Seria contraditório e
egoísta da minha parte, disfarçar e esconder do público essa emoção. Assim
sendo partilhei com eles esse momento.

Naquele momento se encerrava mais um pedacinho desse ciclo de três anos e


seis meses, que é a duração do curso. Me sentia muito feliz naquele momento.
Muito satisfeito com tudo o que estudei, pesquisei, descobri, construí e coloquei
em prática durante esse processo maravilhoso, que nos proporcionou
experiências que vão muito além do trabalho de ator, que é o mais importante é
claro. Mas que nos possibilitou um pequeno mergulho em cada área da
produção e da criação teatral. Saímos desse processo, profissionais de teatro.

Meus relatos sobre esse processo também chegam ao fim. Estou satisfeito com
os resultados dos meus estudos e feliz com todas as descobertas que fiz sobre o
personagem e sobre mim mesmo.
63

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O QUE MUDA DEPOIS DESSE TRABALHO DE PESQUISA TEATRAL?

No principio, havia um nevoeiro sobre meus olhos. Me sentia como um alpinista


cheio de vontade de atingir o cume da montanha mais alta do mundo, porém
sem experiência nenhuma.

Mesmo assim fui escalando e encontrando pessoas importantes na subida.


Pessoas que foram me dando direcionamento e me explicando como e onde
deveria pisar para atingir o ponto mais alto dessa montanha.

Foi uma subida árdua e muitas vezes dolorosa. Mas foi muito prazerosa
também...

Chegar até esse exato momento, escrevendo essas considerações finais, desse
trabalho de pesquisa maravilhoso e gratificante não é o cume da montanha, mas
é um ponto bem alto nessa minha subida. Sendo assim, posso afirmar que o
resultado obtido com essa pesquisa foi muito mais satisfatório do que eu
esperava.

Atingi os meus objetivos com esse trabalho. Respondendo às perguntas que me


inquietavam e me descobrindo como ator; descobrindo a minha dramaturgia.

Esse Trabalho de Pesquisa Teatral me revelou uma forma de construção de


personagem e de interpretação que sempre me interessei, mas que por falta de
experiência, de orientação ou seja lá o que for, nunca me aprofundei ou me
arrisquei a experimentar.

O que muda depois desse trabalho é a minha postura com relação à minha
capacidade criativa, ao meu intelecto. O que vou levar dele são as inúmeras
descobertas que fiz sobre meu corpo, sobre o meu potencial expressivo e tudo o
que ainda poderei descobrir a cerca da minha dramaturgia, do meu poder de
criação e do fazer teatral que é só meu, o fazer teatral em si: que é regido pelas
minhas ações, intenções, expressividades e gestualidades; não somente por um
texto bem articulado.

Essa pesquisa é, em suma, o resumo de todo o conteúdo que consegui


apreender ao longo desses três anos e seis meses de curso; é o resumo de tudo
que, no meu entendimento, venha a ser a arte do ator.

Se eu iniciei essa pesquisa me perguntando se o ator necessitava de uma


dramaturgia própria, concluo tendo a plena certeza de que a resposta para tal
pergunta é sim. Pois, na minha opinião, o indivíduo que diz ser ator, mas que
não tem conhecimento, ou tem um conhecimento limitado dos seus mecanismos
64

de criação, estará sempre sofrendo influência de outras dramaturgias, de outras


visões criativas, para uma arte que é dele.

Essa é, com toda a certeza, uma pesquisa que vou levar para a minha vida.
Usarei os conceitos aqui adquiridos por muito tempo em meus trabalhos de ator.
E posteriormente quem sabe, buscarei passar adiante esses conceitos de uma
forma didática.

O que muda depois dessa pesquisa é que agora eu sou um ator que conhece
sua dramaturgia, sabe como exercê-la e que continuará buscando evoluir em
sua arte.
65

REFERÊNCIAS

ARTUD, Antonin, O teatro e seu duplo. São Paulo: Editora Max Limonad
LTDA, 1987.

BARBA, Eugenio. A arte secreta do ator: dicionário de antropologia teatral.


São Paulo: Editora da Unicamp, 1995.

CAVALIERE, Arlete Orlando. Meyerhold e a biomecânica: uma poética do


corpo. Artigo extraído da revista “Literatura e Sociedade”, da USP – São
Paulo, 1997.

COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro: teoria e prático. – São Paulo:


Editora Summus, 2009

GRANDO, Mônica Andréa. O gesto vocal: a comunicação vocal e sua


gestualidade no teatro físico. – 1ª ed. – São Paulo: Editora Perspectiva:
Teatro escola Macunaíma, 2015.

GROTOWISKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. – 4ª ed. – Rio de


Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1992

PALLLOTTINI, Renata. O que é dramaturgia. – São Paulo: Editora


Brasiliense, 2005.

PICON-VALLIN, Béatrice. A arte do teatro entre tradição e vanguarda:


Meyerhold e a cena contemporânea. – 2ª ed. – Rio de Janeiro: Editora 7
letras, 2006.

ROUBINE, Jean-Jacques. A arte do ator; tradução Yan Michalski e Rosyane


Trotta. – 2ª ed. – Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2011.

STELZER, Andréa. VI Congresso de Pesquisa e Pós-graduação em Artes


Cênicas. Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas- UNIRIO, 2010.

CARBONARI, Marília. A Biomecânica de Meyerhold como recurso artístico-


pedagógico de treinamento e criação corporal do ator: Publicação do
caderno cientifico da UNICENTRO, Campus Guarapuava – Paraná.

Você também pode gostar