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Da Antropologia Teatral à

Etnocenologia: pré-expressividade e
comportamento espetacular1
Gilberto Icle* chama de antropologia e as artes do espetáculo,
mais especificamente o teatro. Assim, as
empreitadas em prol da Teoria da Performance nos
RESUMO: Os conceitos de pré-expressividade da Antropologia
Estados Unidos, com Schechner e Turner ou a
Teatral e de comportamentos espetaculares da Etnocenologia
são descritos e analisados, por intermédio da discussão de seus Antropologia do teatro do italiano Piergiorgio
contextos de origem e de alguns problemas de ordem teórica Giacché são alguns exemplos. Entretanto, neste
com os quais se confrontam. Tais conceitos e seus trabalho vou discutir duas vertentes dessa ligação
desdobramentos são problematizados a partir de duas
problemáticas distintas e solidárias: o universalismo e o inatismo. que, na falta de um termo melhor, vou designar
São apresentadas argumentações em favor do esclarecimento de como antropologias do teatro. Ainda que radicalmente
pontos fundamentais para afastá-los de tais perspectivas. Por distintas – e não caberia aqui desenvolver seus
fim, são circunscritos espaços discursivos nos quais se inserem
pontos de aproximação e distanciamento – elas
possibilidades para repensar os perigos apresentados.
constituem aportes usuais na pesquisa em teatro
PALAVRAS-CHAVE: Antropologia Teatral; Etnocenologia;
pré-expressividade. no Brasil. Assim, pretendo discorrer um pouco
sobre alguns usos, funções e, sobretudo,
ABSTRACT: The concepts of pre-expressiveness – from
Theatre Anthropology – and spectacular behavior – from articulações teóricas que são possíveis (e um tanto
Ethnoscenology – are described and analyzed from the point perigosas) tanto na Antropologia Teatral de
of view of their original contexts and theoretical problems. Eugenio Barba, quanto na Etnocenologia, tal qual
The axes of this discussion are the ideas of universalism and
inatism. The analysis also intends to make clear the following Pradier a defende.
proposition: it is not possible to consider these concepts – pre- Foucault (1999) nos ensinou que as palavras
expressiveness and spectacular behavior – from the perspective comportam perigos ao formarem, elas próprias, na
of inatism and universalism. It also inserts a few possibilities
superfície da linguagem, os objetos que designam,
to rethink the discursive space of Theatre Antrhopology and
Ethnoscenology. sem, contudo, estarem necessariamente coladas de
KEYWORDS: Theatre Anthropology; Ethnoscenology; pre- forma positiva às coisas que evocam. Assim,
expressiveness. quaisquer dessas antropologias do teatro configuram
RÉSUMÉ: Les concepts de pré-expressivité de l’Anthropologie modos específicos de discurso nos quais
Théâtrale et de comportement spectaculaire de l’Ehtnocénologie encontramos coisas ditas e coisas não ditas, mas
sont décrits et analysés par le biais de leur contexte d’origine et
de certains problèmes dans la théorie avec laquelle ils font face. que, com efeito, ditam maneiras de pensar e agir.
Ces concepts et leurs développements d’ordre théorique sont Ao pensar assim, tais proposições – numa
traités dans le carde des problématiques distinctes et solidaire: posição diagnóstica e um tanto crítica – estão
l’universalisme et l’innatism. Des arguments en faveur de la
clarification des points fondamentaux sont présentés pour les eivadas de enunciados (FOUCAULT, 2005) ao
éloigner de ces perspectives. Enfin, des espaces discursifs sont formarem conjuntos dispersos e nem sempre
limités pour qu’on puisse repenser les dangers indiqés.
coerentes de saberes sobre o teatro.
MOTS CLÉS: Anthropologie Théâtrale; Ethnoscénologie; pré-
expressivité.
* Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
1
Esforços bastante grandes têm sido realizados Este texto é uma versão ampliada e revisada da comunicação intitulada
Pré-expressividade, inatismo e universalidade, apresentada no V° Colóquio
no âmbito de vincular o que normalmente se Internacional de Etnocenologia, em Salvador-Bahia, em 2007.

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Vejamos, por exemplo, que a própria palavra cotidiano significa, com efeito, trabalhar a energia
teatro é substituída em ambos os casos por termos numa qualidade que se distingue da cotidiana. Ao
considerados mais adequados: os contrário do que se poderia pensar num primeiro
“comportamentos cênicos” (BARBA, 1993, p.23) momento, Barba define a dimensão cotidiana, na
são o alvo certeiro dos estudos chamados qual nos constituímos como sujeitos de uma
Antropologia Teatral, enquanto que os deter minada cultura, como a dimensão
“comportamentos humanos espetaculares automatizada, domesticada e banalizada. Não
organizados” (PRADIER, 1996, p.16) são, por sua necessitamos nenhum tipo de consciência mais
vez, o foco de estudo e o objeto de investigação rebuscada para vivermos e agirmos na
da Etnocenologia. inconsciência dos automatismos cotidianos. Por
outro lado, no teatro – e nas artes do corpo que lhe
Antropologia Teatral
são similares – o uso distinto do corpo, com bases
Para situar o leitor menos avisado, de forma e princípios pouco comuns para a vida cotidiana,
rápida e esquemática, bastaria dizer que a constituem uma utilização intencional a produzir
Antropologia Teatral é um estudo empírico, sem tensões que fazem atrair a atenção do espectador.
pretensões de cientificidade, levado a cabo por um Essa qualidade intencional de dar-se a ver,
artista da cena que convoca a cada período não circunscrita como “presença”, supõe “a utilização
regular um conjunto de artistas de diferentes estilos extra cotidiana do corpo-mente [e] é isso que se
e tradições de teatro e dança, de diversas partes do chama ‘técnica’” (BARBA,1993, p.23).
mundo. Para Barba, promotor de tal estudo, ele não A abordagem pragmática do diretor italiano
passa de “um conjunto de bons conselhos” (1995, supõe uma pesquisa, uma experimentação e uma
p.08) para o artista da cena, a partir do olhar sobre conseqüente reflexão sobre os dados extraídos.
a própria cena. Apesar das lacunas ou, segundo De Marinis (s/d),
Tanto para a teoria, quanto para a prática do “parcialidades” que a Antropologia Teatral
trabalho do ator, nenhum outro termo parece mais contém, suas explorações parecem render um sem
consistente, dinâmico e imanente à Antropologia número de questões e desdobramentos, em
Teatral do que o conceito de pré-expressividade, a particular, às pedagogias do ator que se
ponto de tornar-se a teoria, proposição ou beneficiaram sobremaneira dos princípios
princípio definidor do que Barba denominou descritos e desenvolvidos pela Antropologia
como “o estudo do comportamento cênico pré- Teatral, tais como o princípio da oposição, do
expressivo que está na base de diferentes gêneros, desequilíbrio, da equivalência entre outros. Esses
estilos, papéis e das tradições pessoais ou princípios podem ser considerados verdadeiros
coletivas” (1993, p.23). A hipótese de que subjaz instrumentos, pois organizam o bios cênico,
ao trabalho do perfor mer uma dimensão permitindo um cor po dilatado, capaz de atrair a
intrínseca, a qual seja detentora do poder de atenção do espectador, quase a margem de seu
organização de um bios cênico, configura a caráter semântico. Eles circunscrevem uma idéia,
centralidade da questão que a Antropologia tomada de Decroux, na qual as artes “[...] ‘se
Teatral se coloca desde suas origens. assemelham nos seus princípios, não em suas
Barba delimita na teoria da pré-expressividade obras’. Poderíamos acrescentar: também os atores
duas instâncias distintas, embora solidárias, o não se assemelham nas técnicas, mas nos
cotidiano e o extra cotidiano, esse último, princípios” (BARBA, 1993, p.29-30).
constituindo a dimensão que caracteriza o que A semelhança atribuída por Barba – tomada
chamamos no mundo euro-americano de teatro. de empréstimo de Decroux – aos princípios, refere-
Mover-se, respirar, falar, agir sob a égide do extra se, tão somente, ao nível pré-expressivo. É nele e

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não no nível expressivo – semanticamente isso, interessar, encantar, atrair a atenção do Outro.
articulado, culturalmente deter minado e Abusando um pouco dessa exploração, não
individualmente singular – que os princípios seria incorreto dizer que a Antropologia Teatral é
encontram modos de operação similares. Esses a teoria, por excelência, da pré-expressividade, essa
modos similares que recorrem em distintas culturas, última, por sua vez, circunscrevendo um campo
articulando o nível pré-expressivo para lhe conferir novo de investigação e abrindo um sem número
a possibilidade de organicidade e eficiência, não de problemas a serem explorados, tal qual tem sido
existem separados da expressão, tampouco podem feito em diversos espaços, nos últimos anos.
ser cientificamente identificados, delimitados,
rastreados. Eles estão, com efeito, articulados na Etnocenologia
própria ação, no próprio comportamento. Podem
Bem mais recente, talvez a versão ulterior das
ser mais ou menos conscientes; gradualmente
antropologias do teatro, a Etnocenologia é mais uma
explícitos ou implícitos na ação. Mas nunca
perspectiva de pesquisa que um conjunto
configuram o objeto do ator, senão seu instrumento
organizado de objetos bem conformados. Segundo
de trabalho.
É preciso também afastar as interpretações seu idealizador, Jean-Marie Pradier, o prefixo etno
equivocadas sobre o nível pré-expressivo, as quais indica a necessidade de marcar a devida distância
compreendem ou fazem relações entre conteúdo e das posturas etnocêntricas que comumente os
forma; preparação e atuação; dentro e fora; técnica Estudos Teatrais aduzem. Da complexidade do
e emoção. Nenhum desses pares traduz a diferença termo scéno, em sua origem grega, ele retém a idéia
– que só existe virtualmente – entre os planos de que o corpo é o lócus dos comportamentos e
expressivos e pré-expressivos. práticas espetaculares.
Se o nível pré-expressivo constitui um Numa definição, segundo Pradier, provisória,
instrumental para o ator ele seria, em conseqüência, a Etnocenologia é “o estudo nas diferentes culturas
uma técnica? Não se poderia, a essa altura, tomar das práticas e dos comportamentos humanos
a palavra técnica no sentido restrito, mas, perceber espetaculares organizados” (1996, p.16). Ainda que
que por detrás, por baixo (a posição na qual o autor francês se esforce em sublinhar a não
localizamos não é essencial) do modo expressivo conformidade do termo comportamento com as
do ator trabalhar, existe um conjunto de princípios, posturas comportamentalistas, o termo remete em
mais ou menos objetivos, nos quais a superfície muitos casos a um tipo de compreensão,
semântica se apóia. Como toda técnica é sempre proveniente em muito das psicologias
um segredo, pois não deve estar à frente do que o comportamentais ou behavioristas, que há muito
espectador vê, mas sim, sub-repticiamente foram colocadas na berlinda da validação. Assim,
entranhada, mascarada, escondida, o nível pré- prefiro pensar na ampliação do termo práticas, com
expressivo é, com efeito, a organização dinâmica e o qual poderíamos tratar tais experiências em
culturalmente variada, senão de todos, ao menos diferentes culturas. Por Práticas espetaculares dir-
de muitos dos modos espetaculares que se-ia a necessária relação de comunicação entre os
conhecemos. O nível-expressivo se ocupa do como, seres humanos mediada pela presença física de ao
antes de se ocupar do significado. Funciona à parte, menos dois indivíduos se dando a ver em tal
mas não independentemente, do nível semântico experiência.
que expressa e ao qual confere apoio. Esse como A palavra espetacular – opção primeira de
não é a forma de tradução cultural, a técnica, os Pradier, novamente para enfatizar a distância
códigos, o tema, tampouco, as idéias intencionais, segura do etnocentrismo que palavras como
os não do artista cênico; mas, um mundo de modos teatro, cena, dança, e tantas outras implicam –
liminarmente corporais de se fazer presente e, com circunscreve o foco dos estudos da Etnocenologia

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ao pretender não se reduzir ao puramente visual, história sinuosa e múltipla do corpo, portadora e
mas, também, a um conjunto de modalidades criadora das representações e das técnicas, dos
perceptivas humanas. No âmbito do estudo do códigos, dos modos e do modelos que geram e
espetacular estão implicados os aspectos globais regulam as atitudes e os comportamentos do
das manifestações emergentes, incluindo as indivíduo em sociedade (PRADIER, 1996, p.18).
dimensões somáticas, psíquicas, cognitivas, Se a multidisciplinaridade é a condição
emocionais e espirituais. É preciso lembrar que a necessária para a pesquisa nessa área, a
palavra emergentes (do francês émergentes) carrega interdisciplinaridade seria a escolha justa. Pradier
não apenas o sentido de algo que vem de dentro, propõe, nesse sentido, estudos cruzados entre análises
que emerge, como também, que aparece aos interiores com critérios próprios da cultura estudada e
sentidos, que se dá a ver, que se mostra, que se análises exteriores, fundadas em noções e métodos
torna aparente, ou seja, “a dimensão espetacular científicos em uso. (1996, p.20). Tais análises
de um evento corresponde à aparição de sistêmicas, como já mencionadas, abandonam as
elementos perceptíveis” (PRADIER, 1996, p.17). estratégias unidimensionais e sublinham o caráter
O termo espetacular se adequa aos propósitos intercultural das práticas espetaculares, em razão de
de Pradier para reforçar a idéia de que tais práticas, sua imediatez para o espectador.
as espetaculares, espraiam-se para além daquilo A Etnocenologia, portanto, circunscreve uma
que o mundo euro-americano convencionou nova dimensão de estudo, procurando analisar as
chamar de teatro ou espetáculo. práticas espetaculares a partir de diferentes culturas.
Da mesma forma, o termo espetacular envolve
uma dupla relação, ou seja, ele indica a Dos perigos, das verdades
impossibilidade de distinção entre as dimensões do
Uma das questões que os estudos de Barba, e
atuante e do público. Uma abordagem sistêmica
requerida por Pradier aduz, portanto, não só a seus colaboradores – por intermédio da ISTA –
necessidade de um estudo que envolva essas duas International School of Theatre Antropology –
dimensões, mas, também, e de forma mais apresenta é justamente a condição de imanência
acentuada, uma abordagem que não reduza as da pré-expressividade. Assim sendo, para se pensar
práticas espetaculares e seus fenômenos à simples a pré-expressividade como condição ou, melhor
descrição linear. ainda, pré-condição do trabalho do ator, algumas
Na visão da Etnocenologia, o estudo das problematizações são necessárias. Os problemas
práticas espetaculares, envolve, principalmente, que gostaria de levantar no momento dizem
colocar em evidência a diversidade e a unidade das respeito a duas ordens distintas: a primeira de
práticas espetaculares humanas; desenvolver o natureza antropológica, na qual questiona-se a
estudo sistêmico dos elementos (psíquicos e não universalidade da proposição e, a segunda, de
psíquicos) e das organizações que lhes funda; caráter epistemológico, que aborda possíveis laivos
realizar uma abordagem das estratégias cognitivas de inatismo.
que sustentam a emergência/aparição dos A pretensão universalista de Barba representa
comportamentos e das práticas; analisar as um ponto atenuado na demonstração de seu
estratégias relacionais que caracterizam os eventos pensamento, re-discutido em La canoa di carta
estudados; empreender uma descrição das (1993). Dizer que existiria um nível universal no
modalidades nas quais as práticas e os trabalho do ator, significaria reconhecer uma
comportamentos humanos espetaculares unidade – lingüística, discursiva, prática – que seria
organizados se inserem dentro do seu quadro capaz de englobar e dar um sentido único à palavra
sociocultural; e, por fim, tomar em consideração a teatro. Barba não se arrisca de forma tão ingênua.

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Quando Barba define a pré-expressividade impregnada, advinda e constituída de e numa
como condição de possibilidade do trabalho do determinada cultura. Fala-se sempre de um lugar
ator, de que ator ele estaria falando? Essa parece preciso, logo, nos manifestamos dentro de uma
ser uma questão basilar para se problematizar o cultura, ainda quando falamos do Outro.
sentido universalista da pré-expressividade. Os laivos dessa dificuldade de se afastar de si
Suporíamos que ele fala de todos os atores ou uma mesmo já impregnam o próprio conceito de pré-
parte deles? Ao procurar uma condição universal, expressivo. O prefixo pré possui tão somente um
Barba estaria imerso numa posição etnocêntrica, caráter lógico e não cronológico, dessa forma, não
na qual a verdade teatral estaria, do seu ponto de há uma anterioridade à expressão. É nela que os
vista, na dimensão pré-expressiva. Esse olhar indícios, os sinais, as inferências do pré-expressivo
centrado, reduzido, trataria as diferentes formas se assinalam. É no plano da expressão que vivemos
espetaculares como o teatro, como um fenômeno – nós os atores – nossas vidas espetaculares. Trata-
generalizado. Entretanto, chamar teatro se da dimensão na qual nos reconhecemos como
determinadas manifestações e práticas culturais herdeiros de uma tradição, como possuidores de
individuais e/ou coletivas é alocar no discurso uma técnica, como artesãos de nós mesmos, mas
hegemônico euro-americano e somente por efeito representantes autorizados de nossa comunidade
de uma operação artificial o rico e infinito modus – ainda que ela não seja apenas o nosso entorno.
operandis de dar-se a ver, de chamar a atenção, de Essa posição é, então, dada a partir do ponto
se fazer humano por intermédio da ação de vista – profundamente cultural – do espectador.
espetacular. Isso – essa posição de quem fala sobre São os efeitos de atenção, a eficiência da presença
– plasmaria outras formas espetaculares, do ator que Barba normatiza como o princípio dos
circunscrevendo-as nos limites daquilo que uma princípios. Ele pré-supõe que todo teatro estaria
determinada cultura – a qual pertence o autor – preocupado, interessado e se apoiaria na premissa
convencionou chamar de teatro. de chamar a atenção do espectador, antes mesmo
A saída para tal armadilha pode ser pensada de querer significar. Há, portanto, um sentido quase
com a Etnocenologia de Pradier (2002) e, do biológico e, senão biológico, limiar entre o biológico
mesmo modo, no próprio plano imanente, o qual a e o cultural. É nessa função de espectador que
teoria de Barba supõe. Barba, ainda nos primórdios da Antropologia
Os modelos caóticos propostos por Pradier Teatral, reconhece os princípios recorrentes e deles
(2002), para compreender os comportamentos extrai, abstrai, considerações. No entanto, nas
humanos espetaculares, borram as fronteiras entre palavras de De Marinis, “afirmar que todo teatro
o biológico e o cultural. A idéia de comportamento, [...] tem a ver com a atenção do espectador significa
para ele, não se reduz a um padrão de respostas de que todo teatro, indubitavelmente, tem que ver com
ação a partir de um estímulo (como ao gosto de o mesmo problema, mas não exatamente com a
Skinner), e tampouco a biologia se reduz ao mesma coisa e, muito menos, com as mesmas
funcionamento da substância viva. Ao contrário, soluções (1997, p.104).
comportamento e biologia se emaranham de tal Um possível universalismo da Antropologia
sorte que as fronteiras entre o que é inato e o que é
Teatral se desfaz, dessa forma, na medida em que
adquirido se tornam cada vez mais obnubiladas pela
o olhar que Barba lança sobre os fenômenos
visão não linear de sua investigação.
estudados, ainda que de seu próprio ponto de vista
Assim, se o olhar de quem pensa tais práticas
cultural, faz reconhecer que para essa cultura, da
do ator é uma posição sempre comprometida com
qual ele fala, chamar a atenção do espectador pareça
sua própria cultura é, com efeito, uma condição de
ser uma verdade profundamente legitimada
qualquer teorização, pois toda manifestação carrega
culturalmente. Trata-se, também, de uma operação
em si o prefixo etno, uma vez que sempre estará

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lingüística que faz unir o que reconhecemos como interação é um processo limiar – está já dado
teatro com um modo específico de se dar a ver, de biologicamente como potência, como
se comportar de forma espetacular e, sobretudo, possibilidade, mas forma, também, e na mesma
de ter êxito em chamar a atenção do Outro nessa direção, o processo de culturalização, de ingresso
tarefa. É desse ator que Barba fala e somente dele. em uma cultura, pois permite ao sujeito se tornar
Do ator que apoiado em um comportamento o que é, ou o que virá a ser. Esse caráter de
espetacular, culturalmente constituído e dinamismo das relações de interação entre o
intencional, é eficiente em chamar a atenção do biológico e o cultural – presentes em teorias tão
espectador além do que narra, conta, expressa e distintas quanto a Epistemologia Genética de
significa. Além, mas não independentemente. Piaget, as ciências cognitivas de Maturana, a
Se Barba não está falando de qualquer ator, Etnocenologia de Pradier – que se manifesta nas
de um modelo universal, resta ainda pensarmos: fronteiras de idéias, que nossa tradição insistiu em
seria a pré-expressividade uma condição inata do delimitar como separadas, articula suposições para
ser humano? Haveria um a priori definitivo nessa o pré-expressivo e para os comportamentos
dimensão pré-expressiva? Barba suporia um antes espetaculares que vão além de um mero inatismo.
como condição suficiente e necessária para as artes Quando Barba fala sobre uma dimensão pré-
de dar-se a ver? Da mesma forma, Pradier na expressiva do trabalho do ator como um nível de
discussão nomeada como Etnocenologia, não organização do bios cênico, não está a defender um
atinge um estatuto universalista ao propor um a priori, pois não há uma separação entre o plano
estudo sobre os comportamentos humanos pré-expressivo e o plano expressivo. Somente por
espetaculares e ao propor que a espetacularidade uma operação racional de investigação inferimos
humana cumpre um dispositivo biológico? que a eficiência – também ela culturalmente
A questão é complexa e sugiro aqui uma constituída – em chamar a atenção, é constituída
primeira aproximação. Dificilmente poderíamos no amálgama que forma a constituição da dimensão
sustentar – depois de tudo o que, no século XX, expressiva.
foi desenvolvido nessa área – um discurso sobre Eis dois usos duvidosos que poderíamos fazer
um a priori como condição, na qual se apoiariam e dos conceitos de pré-expressividade e
se sustentariam os desdobramentos do pré- comportamentos espetaculares, e que constituem
expressivo ou o vínculo biológico dos perigos preementes para a pesquisa: tomá-los como
comportamentos espetaculares. A esse respeito se universais e como inatos. Poderíamos,
pode lembrar dos trabalhos desde Piaget (1990) entrementes, pensar que o trabalho do ator na
até Maturana (2002), para citar alguns. dimensão pré-expressiva é um lugar limiar entre a
O comportamento de chamar a atenção - que ficção e a vida (RUFFINI, 2001), local descontínuo
Bião (1996) já localiza nas reações do bebê como no qual o ator se dá a ver, explorando e articulando
gênese do que virá a ser ulterior mente informações culturalmente construídas a partir de
comportamento espetacular – poderia ser até uma pequeninas – mas fundamentais – possibilidades
espécie de instinto, uma informação genética que biológicas. Não se é ator, portanto, desde sempre,
se manifesta em nosso comportamento, mas, as torna-se ator. Tampouco, não existe um único modo
estr uturas de pensamento e ação que essa de ser ator, senão uma diversidade de
informação pode engendrar pressupõem, em possibilidades.
grande medida, a interação. E não devemos Barba não está, portanto, falando de qualquer
subestimar o poder desse conceito. Interagir ator. Não poderá fazê-lo. Não haverá de ser o seu,
possibilita, sobretudo, tomar as informações um ator transcendental, ideal, legítimo. Sua
biológicas e refazê-las na ação. O processo de pesquisa se baseia, ainda que parcialmente, em

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experimentos artísticos que, sem um controle _____. Compreender el teatro. Buenos Aires: Galerna, 1997.
científico no senso tradicional (De Marinis, s/d), _____. Contra la distancia: hacia nuevos paradigmas para la
estão inseridos numa cultura, ao mesmo tempo experiencia teatral. In: PELLETTIERI, Osvaldo (Org.).
Imagen del teatro. Buenos Aires: Galerna, 2002, p.35-52.
pessoal e histórica. Disso, sobressai o caráter
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins
pessoalizado de sua proposição. E cabe a nós,
Fontes, 1999.
sabendo de todas as parcialidades e limites da
_____. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Univer-
Antropologia Teatral, aceitá-la ou não, usá-la como sitária, 2005.
pedagogia ou não, pensar com ela, a favor dela, a
MATURANA, Humberto. A ontologia da realidade. Belo
partir dela, mas conscientes que estamos falando Horizonte: Ed.UFMG, 2002.
de um lugar determinado e, portanto, o que dizemos
PIAGET, Jean. Epistemologia Genética. São Paulo: Martins
serve aos interesses teatrais não como uma verdade Fontes, 1990.
única e normativa, mas como um conjunto de PRADIER, Jean-Marie. El bios y la cultura en el arte de lo
explorações titubeantes, provisórias e parciais. viviente. In: PELLETTIERI, Osvaldo (Org.). Imagen del teatro.
Num caminho muito similar, a Buenos Aires: Galerna, 2002, p.19-34.
Etnocenologia pode inferir justamente à _____. La scène et la fabrique des corps : Ethnoscénologie du
diversidade cultural. O prefixo etno já indica essa spetacle civant en Occident (Ve siècle av. J.C. – XVIIIe siècle).
Bordeaux : Presses Universitaires Bordeaux, 2000.
vocação. E a compreensão de sua dinâmica pode
ser bem estabelecida quando Pradier (2000) _____. Ethnosceénologie: la profondeur des émergences. La
scène et la terre : questions d’ethnoscénologie. Internationale de
demonstra, por inter médio de inúmeros l’imaginaire. Maison des cultures du monde. n.05, 1996, p.13-41.
exemplos e dados, a correlação das idéias do
RUFFINI, Franco. Per piacere: itinerari intorno al valore del
corpo representado na cena e do corpo teatro. Roma: Bulkzoni, 2001.
interpretado e descrito pelas ciências.
Falamos, portanto, de dentro dos
comportamentos espetaculares, pois eles não são
objetos separados de nós, eles não constituem uma
positividade a ser alcançada. Eles são construídos
histórica e culturalmente nas nossas práticas.
Precisamos entendê-los, portanto, a partir de sua
condição efêmera e mutável.
E não seria essa a postura de qualquer ciência
das artes do espetáculo contemporânea?

Referências:
BARBA, Eugenio. La canoa di carta: Trattato di Antropologia
Teatrale. Bologna: Il Mulino, 1993.
_____. A arte secreta do ator: dicionário de Antropologia
Teatral. São Paulo/Campinas: Hucitec/Unicamp, 1995.
BIÃO, Armindo. Estética performática e cotidiano. In:
Performáticos, performance e sociedade. Brasília: Editora Universi-
dade de Brasília, 1996.
DE MARINIS, Marco. Dal pre-expressivo alla drammaturgia
dell’attore. Saggio sulla “canoa di carta”. In: _____ (Org.).
Drammaturgia dell’attore. Porreta Terme: I Quaderni Del
Battello Ebro, s/d, p.225-293.

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