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PERFORMANCE EM SALA DE AULA

I - EM BUSCA DE UMA DEFINIÇÃO

Performance – palavra inglesa com sentido geral de ação (ou processo de agir)
executada com determinado fim. Verbo to perform significa “realizar, empreender,
agir de modo a levar uma conclusão”.

Origem etimológica: do francês antigo “parfounir”(realizar, consumar), combinando o


prefixo latino per (indicativo de intensidade: completamente) e fournir (provável
origem germânica) significando “prover, fornecer, providenciar” (em inglês, fournish).

O que é interessante guardar dessa origem é a idéia de movimento, de ação ou processo


combinada, ao mesmo tempo com a de resultado, algo que se completa.

Em português, a palavra é usada no dicionário Aurélio, como palavra estrangeira, desde


1975, com o sentido de atuação, desempenho (especialmente em público).

NOS EUA, a palavra performance passou a circular na área artística para indicar um
ato mais ou menos teatral, com um certo grau de improvisação e de uso do acaso. Nos
EUA tornou-se área de estudos acadêmicos. Nesta perspectiva, a performance realiza-se
diante de uma audiência e identifica-se com uma relação presente.

Área de estudos no limite entre ciência e arte.

Na língua inglesa passou a ter significados mais específicos nas ciências humanas e nas
artes a partir dos anos 50. Era uma idéia-força capaz de saltar o fosso entre arte-vida 1.
Movendo-se nos interstícios de diversas áreas, o termo foi se definindo mediante certas
práticas. Dos experimentos artísticos da vanguarda, destaque-se alguns princípios:

Influência do acaso, dissolução dos gêneros estanques e integração artista/obra/público.

Definição de um dos teóricos Richard Schechner2:

“Atividade feita por um indivíduo ou grupo na presença de e para outro indivíduo ou


grupo”. No entanto, como o autor se interessa pelas performances em outras atividades
em que todos seriam performers, do tipo atividades esportivas e rituais, o autor
selecionou atributos que caracterizariam uma atividade performática:

-Ordenação especial do tempo


-Valor especial atribuído a objetos, materialidades
-Não produtividade em termos de mercadoria
-Regras
-Locais não ordinários.
1
Como uma inspiração nas performances do cotidiano. Ex: um advogado em tribunal, um professor em
uma sala de aula, um político diante de uma audiência. In. LOPES, Antônio Herculano. Performance e
História. Fundação Casa de Rui Barbosa. Disponível em www.casaruibarbosa.gov.br
2
SCHECHNER, R. Performance Theory. Nova York, Routledge, 1988.
2

Nas artes plásticas, na música, no teatro, na dança, a performance surgiu como um


gênero intersticial, jogando freqüentemente com o acaso, com a quebra da distância com
o espectador, artista e obra de arte, com o corpo do artista como local privilegiado da
experiência estética.

III. LIGAÇÃO COM A ANTROPOLOGIA, AS CIÊNCIAS HUMANAS/SOCIAIS

Tendo buscado inspiração com outras áreas, houve um movimento de aproximação das
artes com as áreas de conhecimento que tratam dos ritos, das atividades esportivas, das
práticas cotidianas.
Ex: Antropologia (estudos dramas rituais)
Linguística (poder performático da palavra)
Estudos Culturais (significados culturais das performances)

Na antropologia, Jean Langdon3, identifica dois movimentos que auxiliaram a


desenvolver o conceito de performance como evento, como elemento da vida social
como vida dramatúrgica, como drama social:

1. Da Antropologia Simbólica (Victor Turner, Clifford Geertz)


2. Da Etnografia da Fala (cruzamento de interesses entre lingüistas, folcloristas,
antropólogos, filósofos, sociólogos, etc).

Na Antropologia Simbólica, a performance é encarada como drama social. Nesta


perspectiva, a cultura não é um conjunto de normas, valores, hábitos homogêneos.
Nesta acepção, advinda da antropologia interpretativa, a cultura emerge da interpretação
e o foco é nos atores sociais como agentes. Desenvolvem-se estudos sobre os ritos, por
exemplo, e neles, aparece um conceito importante, o de liminaridade. O limite entre a
vida cotidiana e a entrada em um campo simulado, ou mesmo um transe. Ao final,
volta-se à vida cotidiana. Nesta ação simbólica da vida liminal, a estrutura normal é
invertida, pois nela podem estar ausentes as regras que ordenam as interações sociais.
Assim, cria-se um momento de reflexividade, quando os participantes refletem sobre si
mesmos e sobre o grupo, permitindo-lhes pensar a sociedae. A liminaridade possibilita a
expressão, a criatividade e a transformação.

A vida é como um drama. Os atores tentam demonstrar o que têm feito, o que estão
fazendo e impor suas soluções ou idéias aos outros. Assim, a interação social é uma
contínua negociação entre atores (isto está de acordo com o modelo dramatúrgico de
Erwing Goffman/1983).

IV - NA HISTÓRIA

Qual a importância para a história? Em cada situação histórica concreta, indivíduos e


grupos projetam anseios, marcam posições e constroem imagens de si e de seus
“outros”e da sociedade envolvente através de formas pelas quais se apresentam e atuam

3
LANGDON, E. Jean. Performance e Preocupações Pós-Modernas na Antropologia. In. TEIXEIRA. Op.
Cit. P.23-28.
3

publicamente, dentro de estruturas mais ou menos ritualizadas. Elementos performáticos


possibilitam ler culturas: uso de linguagens corporais, técnicas retóricas, expressões
faciais, manipulação de emoções, regras de procedimento coletivos, decoração visual do
corpo e do espaço em manifestações públicas, contribuem para a construção de
identidades coletivas que ao mesmo tempo refletem e influenciam o curso dos eventos.

A dificuldade para se fazer uma história da performance é a de como captar a força


do momento único que caracteriza a relação ao vivo. (LOPES, Op.Cit. p. 8).

Performance Cultural é um ato cênico, estético-formal, da natureza do drama-


ritual e/ou do espetáculo, que se dá a ler (a um público). Expressa-se, geralmente, por
meio da forma (performance, “por meio da forma”), em materialidades cenográficas,
corporais e gestuais e envolve relações em ato (experiência). A performance tem
natureza simbólica e experiencial.

V - O JOGO NA PERFORMANCE

A arte e, por decorrência, a performance tem como aspecto essencial o jogo,


característica central da arte. É um movimento de-e-para que não está condicionado a
qualquer objetivo que leve a um final. Assim, o jogo artístico comporta elementos do
acaso, da imprevisibilidade, da alteração de expectativas. A natureza da arte é
incompleta. O significado do trabalho de arte é aquilo que é revelado e exposto na
oscilação constante entre o trabalho de arte e o intérprete4. Existem dois aspectos em
funcionamento no jogo artístico:

- a dinâmica entre os jogadores e o jogo.


-o relacionamento entre os jogadores e o espectadores (recepção5).

O jogo é sempre mais extensivo do que a ação dos jogadores, daí os limites da
subjetividade (existe uma cultura que joga com os jogadores, uma cultura escolar, no
caso). O jogo é jogado por sua dinâmica cultural.

Outro aspecto que toca ao jogo e está presente nas performances artísticas: o jogar
junto, o colocar-se em play, espaço simulativo e pactual entre as partes.

Portanto, os artistas, estão entre aqueles que criam seus próprios problemas, não para
resolvê-los, mas para produzir instantes de uma mobilização coletiva altamente
carregada, intensa (Ricardo Bausbaum – Performance – A questão da Autoria).

VI - TRÊS PILARES DA PERFORMANCE SEGUNDO PAUL ZUMTHOR


(Suíço 1915-1995)

Primeiro pilar: a voz


4

O significado do trabalho de arte nunca é final, assim como o jogo nunca atinge sua verdadeira
finalidade; o jogo pode sempre ser jogado novamente e os jogadores sempre serão atraídos pelos seus
horizontes.
5
A performance tem co-autoria com o público que a recepciona.
4

Comunicar é uma atividade inerente ao ser humano, e a voz é um instrumento


mediadora dessa atividade. As mais varias profissões é exigida uma habilidade vocal ,
professores, cantores , locutores , atores, padres . A esse profissionais é exigido
qualidades em seus aspectos físicos altura, intensidade, timbre, pois a eles é apregoado a
responsabilidade sobre a mensagem transmitida , a professor o conteúdo, ao cantor a
poesia, locutor o brilho da mensagem e ao ator o sentimento e ao padre a escrituras
sagradas . A voz em seu cotidiano também transmissora de sentimentos, afetos,porém,
de forma espontânea sem intencionalidade que na situação performance exige. Zumthor
coloca a distinção de oralidade e de voz. “A oralidade é uma abstração; somente a voz é
concreta, apenas sua escuta nos faz tocar as coisas” (ZUMTHOR, 2001, p.9).
é pelo corpo que nós somos tempo e lugar: a voz o proclama emanação do
nosso ser. A escrita também, comporta, é verdade, medidas de tempo e
espaço: mas seu objetivo último é delas se liberar. A voz aceita
beneficamente sua servidão. A partir desse sim primordial, tudo se colore na
língua, nada mais nela é neutro, as palavras escorrem,carregadas de
intenções. ( Zumthor 1997,p.157)

A voz é o lugar simbólico que não pode ser definido de outra forma que por uma
relação, uma distância, uma articulação entre o sujeito e o objeto, entre o objeto e o outro. A voz
é, pois, inobjetivável. A voz estabelece ou restabelece uma relação de alteridade, a que funda a
palavra do sujeito” (2000, p. 83);

Segundo pilar: o corpo


“A voz emana do corpo, mas sem o corpo, a voz não é nada”. (ZUMTHOR, 2005,
p.89).
[...]o discurso que alguém me faz sobre o mundo (qualquer que seja o aspecto
do mundo de que me fala) constitui para mim um corpo-a-corpo com o
mundo [...] o corpo é ao mesmo tempo o ponto de partida, o ponto de origem
e o referente do discurso (ZUMTHOR, 2000, p. 77)

Referente é um elemento do mundo extralinguístico, real ou imaginário, ao qual


remete o signo linguístico, num determinado contexto sociocultural e de discurso.O
autor trata a relação corpo-discurso para nos demonstrar o corpo como mediador de
performance , pois o gesto contribui com a voz para criar um espaço de significação, o
corpo completa o texto oralizado durante o evento. Portanto, nosso corpo comporta
significados em ato performático em sala de aula.
É fundamental compreender a relação entre corpo/gesto/voz , onde o corpo é o referente
do discurso , parte da enunciação do presente. O corpo materializa o texto narrado
determinando a relação de todos os indivíduos envolvidos na experiência performática.

Terceiro pilar : A Presença.

Segundo Zumthor, por meio da vocalidade que é a materialização e concretização


do corpo que fala , a narrativa oral promove um estado de presença , que é a relação de
todos envolvidos na performance: o texto, leitor-narrador (professor), ouvintes
(alunos).
5

A transmissão de um texto pela voz, a performance, supunha a presença


física simultânea daquele que falava e daquele que escutava, o que implicava
uma ligação concreta, uma imediaticidade, uma troca corporal: olhares,
gestos. (ZUMTHOR, 2005, op. cit., p. 109. )

Essa presença é quando algum evento envolvendo a oralidade consegue


despertar sensação, sentimentos, valores, despertar memórias com intensidade.
Rompendo o tempo cronológico criando um estado se suspensão da realidade,
levando os ouvintes uma outra realidade onde tempo presente passa ser o tempo do
texto narrado.

VII - EM SALA DE AULA

Os corpos individuais de professores e alunos são ideologicamente inscritos e o


espaço compartilhado na sala de aula, faz com que ideologias conflitantes se
confrontem. Segundo Elyse Pineau, “o reconhecimento que o ensino é performance é
menos uma observação sobre o estilo didático do que uma metáfora gerativa para a
pesquisa educacional”. A performance gera a perspectiva de reflexividade, o que faz
com que comunidades escolares voltem-se para si mesmas para observar a si mesmas e
provocar insights frente à natureza de sua própria prática performativa e como estes
elementos estão implicados nos efeitos de seu próprio trabalho.

Há performatividade cênica na atividade cotidiana da sala de aula? Como ler os sentidos


de uma teatralidade identitária do professor em cena? Estas questões definem os eixos
sob os quais construímos a reflexão sobre as práticas escolares como práticas
performáticas, a sala de aula como espaço cênico. A definição de espaço cênico é uma
noção complexa e, segundo os manuais de teatro, envolve o espaço dramático, o espaço
real do palco no qual evoluem atores, o espaço cenográfico na medida em que realiza a
relação teatral público-atores, o espaço gestual e textual, além do espaço interior,
enquanto representação ficcional.

A opção pela definição de espaço justifica-se, no nosso caso, pela materialidade que
evoca. A aula não é um artifício subjetivo da aprendizagem, mas está subordinada a um
roteiro prévio em que estão definidas, por diversas questões, um arcabouço de
indicações objetivas de sequências, convenções, conteúdos e atos. Materialidades
expressas em um repertório gestual, corporal e vocal que nos levam a à noção de
performance, ou melhor de espaço performático. Mas, o que definiria a performance
em sua relação com o espaço cênico em sala de aula? A performance implica em um
jogo em ato, um jogo cênico.

A performance, desenvolvida sob a perspectiva da sociologia do cotidiano, inspirada


nos estudos antropológicos de Victor Turner6, ou mesmo na perspectiva teatral de
Richard Schechner7, tem sido usada, desde a década de 70, como um ato cultural, algo
6
TURNER, Victor. Dramas, Campos e Metáforas. Ação Simbólica na Sociedade Humana. Niterói:
Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008.
7
“Em 1965 publiquei Aproaches, ensaio no qual disse que performance era uma categoria inclusiva que
incluía representações, jogos, esportes, performance no quotidiano e ritual”. SCHECHNER, Richard.
What is performance studies anyway? In. PHELAN, Peggy; LANE, Jill (Ed.). The Ends of Performance.
New York: University Press, 1997, p.357.
6

que precisa ser lido de maneira interdisciplinar, para além de suas exterioridades 8. Por
relacionar-se com uma experiência em ato, uma performance também não escapa da
definição de acordo, de jogo entre aquele que cria de um lado e, por outro, aquele que
assiste, consome e interage com a criação. Materialidades no corpo e na voz e o jogo
cênico: estes seriam os ingredientes da performance de uma aula.

Ao explicar sua adesão aos estudos de performance, o historiador medievalista,


poeta e romancista suíço Paul Zumthor evoca uma lembrança de infância, memória que,
revela, esteve subjacente a toda ação de ensino praticada por ele nos anos que
antecederam à publicação de seu livro sobre performance e leitura (Zumthor, 2007).
Segundo o autor, a lembrança remontava suas idas e vindas entre o subúrbio em que
vivia e o colégio no qual, no início dos anos 1930, realizava estudos secundários em
Paris. Neste trajeto, Zumthor era interpelado pelos cantores de rua, em especial, os que
se instalavam em Saint-Denis de Faubourg Montmartre. Estes cantores executavam
árias simples, completadas pela participação do público que os assistia e os
acompanhava por meio de um texto volante, adquirido por alguns trocados. O autor nos
ambienta: havia o homem, o camelô e sua parlapatice para vender as canções e passar o
chapéu, havia as folhas-volantes deitadas em um guarda-chuva na beira da calçada, o
riso das meninas, os barulhos da rua e o céu violeta de Paris no início do inverno. Havia
um espetáculo em torno das canções, um espetáculo em jogo. Mais ou menos tudo isso
fazia parte da canção. Era a canção, conclui Zumthor (2007, p.28/29).
Zumthor reteve esta experiência de infância por muitos anos e não raro, tentou
evocá-la por meio da memória, ou mesmo da releitura das canções nos textos volantes
antigos. Se estas experiências criavam certa ilusão do que havia vivido em ato, não
traziam, do mesmo modo, a experiência performática do espetáculo da infância. Isso o
intrigou: havia algo naquela forma só possível de ser percebida pelo instante, algo que
estabelecia significados só apreendidos em cena. Algo que se submetia a regras, como
em um jogo, mas que não se restringia às regras, experiência da natureza do espetáculo,
que atualizava tradições e possuía uma forma-força, mas que só poderia ser captada de
forma dinâmica, na fugacidade de um instante que se reconfigurava e se movia
continuamente. Zumthor passou, então, a investigar experiências performáticas,
elementos a partir dos quais o conhecimento em jogo evoca traços reiteráveis e que
possuem grande potencial de conhecimento. Ao ler suas reflexões sobre a performance
oral e os elementos que constituem sua tomada analítica sobre o tema, imaginamos
poder aplicá-las à pesquisa sobre as maneiras como aprendemos e ensinamos.
Como professores, somos aqueles que lidam com “canções volantes” do passado
e tentam reviver ambientes para conferir-lhes significados. Nossas materialidades são
animadas por repertórios anteriormente ensaiados, por cenografias e ambientes pré-
determinados pelas culturas escolares em acepção ampla. E os atores possuem script de
ação e recepção, professores e alunos, atores e audiência conformam traços de um
espetáculo cênico, performático..
Antes de realizar sua análise de performances orais, Zumthor faz um exercício.
Ele propõe entreabrir o conceito de performance, permitindo ampliar seu campo de
referência para além do campo da arte. Neste esforço, o autor acentua traços que podem

8
A este respeito, ver TEIXEIRA, João Gabriel L.C. História, Teatro e Performance. Encontro Anual da
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em História na Universidade do Rio dos Sinos, São
Leopoldo, RS, 2007.
7

nos servir para pensar o campo do ensino. De saída, reitera que entra nessa matéria pela
evocação de lembranças, portanto, pelo trato com a memória. Explica, ainda, que essa
lembrança se conforma em algo material que em conjunto, seria da natureza do
espetáculo, do jogo e da experiência. Esse algo material, Zumthor chama de forma-
força, uma forma que só existiria em performance. Decompor, analisar a melodia ou a
mímica do intérprete para buscar a sensação da experiência vivida em sua experiência
de infância seria um trabalho pedagógico que o autor considerava útil, mas que só
poderia ser vivido na performance e em sua forma, uma materialidade em ato. A forma
está associada ao tempo, ao lugar, à ação do locutor e à resposta do público, ou seja à
materialidade global da obra performatizada (Zumthor, 2007, p.29).
Avalia, então, que a performance implica uma presença e uma conduta, uma
conjunção comportando coordenadas espaço-temporais e fisiopsíquicas concretas, uma
ordem de valores encarnada em um corpo vivo (Idem, p.31). E o autor convoca esta
explicação para defender o ato performático no jogo da aprendizagem. Jogos que
possuem materialidades, formas–força mediadas pela experiência de aprendizagem.
Esta forma-força é de uma reiterabilidade dinâmica, uma repetição que envolve
repertórios não redundantes. A forma-força é da natureza do instante em ato de
percepção e é reiterável sem ser repetitiva. O performático, para o autor, é um sentir que
pode ser originário, subjacente ao cognitivo.
Examinemos, ainda, os traços que caracterizam essa forma-força: a presença de
um corpo que se movimenta em um espaço, laço que os une em teatralidade, traços de
uma intencionalidade em lugares cênicos em que interagem atores e espectadores, a sala
de aula.
A definição de espaço justifica-se pela materialidade que evoca. A aula não é um
artifício subjetivo da aprendizagem, mas está subordinada a um roteiro prévio em que
estão definidas, por diversas questões, um arcabouço de indicações objetivas de
sequências, convenções, conteúdos e atos. Elementos de reiterabilidade que se
(re)atualizam. Materialidades expressas em um repertório gestual, corporal e vocal que
nos levam a à noção de espaço performático. Para além do jogo historiográfico que
interpela a tradição, o ambiente da sala de aula de história reúne ingredientes
performáticos: corpo, voz e jogo cênico. Sabe-se que o corpo e a voz são mais do que
recursos técnicos da teatralidade. Carregam em si, significados que os vinculam a
determinadas tradições, visões de mundo e de representação. O corpo, segundo Alain
Corbain, é uma ficção, um jogo de representações mentais, uma imagem inconsciente
que se elabora, se dissolve, se reconstrói através da história do sujeito, com a mediação
dos discursos sociais e dos sistemas simbólicos (Corbain, 2008, p.8-9).
Assim, para as aulas-conferência , as conhecidas aulas expositivas em que se
pressupõe que o aluno é um mero receptáculo do conhecimento, é comum encontrar,
por exemplo, um corpo alerta, rígido, um corpo autoritário e peripatético. As aulas-
conferência se opõem às aulas-colóquio e às aulas-oficina, experiências de
conhecimento partilhado mais dinâmico entre professor e aluno. São bastante
conhecidas as recomendações para o professor de manter-se sempre ereto e em pé, de
movimentar-se equilibradamente entre um lado e outro da lousa para não cansar o
espectador e de manter comunicação visual com o aluno para não distrair sua atenção. O
corpo autoritário é um corpo tenso, em que não se reconhece a interação do público sob
qualquer reação ao repertório e sequência de conteúdos previamente preparados. O
8

corpo autoritário é um corpo rígido/ discipllinado e se contrapõe ao corpo subjugado


dos alunos, sentados em fila, e, preferencialmente, silentes.
“Disciplina-se conteúdos”, faz-se “controle de sala”, cria-se a cultura do copiar
conteúdos fragmentados, em uma alternância de recomendações unilaterais. O espaço
performático da aula-conferência é um ato da cultura escolar autoritária e bancária em
suas diversas nuances e manifestações.
Estudar o corpo como objeto cênico, bem como o próprio corpo como um
equilíbrio entre o que está dentro e fora de sua materialidade, parece-nos importante
para compreender a ação performativa do professor em cena, do educador em sala de
aula. Para alguns autores, a desvalorização do corpo como elemento educativo, vem da
tradição clássica de separação corpo-alma que remonta Platão, a que concebe o corpo
como prisão da alma. Dessa forma, o corpo, este organismo mutável e efêmero
necessitava de regulação e disciplina. Em Foucault conhecemos os “corpos dóceis”
modelados, treinados em estratégias de poder (Foucault, 2004, p.126). Aula conferência
é a que promove o corpo autoritário do professor e os desejados corpos dóceis dos
alunos. Poder disciplinar supremo que regula os corpos e é influenciado por coações da
performance autoritária.
Indissociado do ato da aula, encontramos, também, o corpo ausente. Em
gestos, fala e voz é um corpo sem vontade de potência no sentido nietzcheano, um
corpo que dorme para o ato, um corpo mecânico. Como o próprio nome diz, o corpo
subjugado é, também, um corpo distante, não no sentido da inconsistência, mas no da
subserviência. Está nos corpos dóceis daqueles que dormem, de olhos abertos ou
fechados, para a experiência do ensinar e aprender em ato, está nos conteúdos
reprodutivos e roteirizados em que não há jogo, nem diálogo. Falta o elan vital nos
corpos dóceis. O corpo subjugado é um corpo contido e refreado que finge estar, um
corpo que mente.
Se o corpo ausente é um corpo contido, o corpo autoritário, por sua vez, é o
corpo armado. Há nele uma intencionalidade e uma estética que informa sobre o perigo
iminente, a necessidade de (auto)proteção. O corpo autoritário é o corpo normativo,
repetitivo, previsível. É um corpo que necessita silêncio para ser focalizado, imitado.
Por meio destes corpos, diversas sensibilidades podem ser evocadas, ritualizadas.
Performances com sensibilidades de raiva e repressão, estímulos à fraude, à subversão
do instituído.
Na atividade cênica, o professor joga com lúdico como abstração simulada
quando lida com os autores, interlocutores de conteúdos, com o espectador, com os
conteúdos e consigo mesmo. Isso não se faz sem as regras e convenções próprias da
profissão, ou mesmo da cultura escolar em que o professor-ator está inserido. O jogo do
espaço performático realiza-se no diálogo do jogo e esse diálogo, concretizado sob
múltiplas formas, é fundamental no processo de interpretação e aprendizagem. É
Gadamer que nos auxilia nos aspectos dinâmicos do jogo que implicarão no diálogo:
Na busca pela ampliação do conceito de performance e suas relações com a
cultura, Richard Schechner (1985) dá ênfase aos aspectos simbólicos, seu potencial de
leitura polissêmica e o conceito de liminaridade trabalhado por autores da
antropologia, como Victor Turner (1982). O espaço liminar de uma performance, com
suas variantes em diversos tipos de sociedade, implicam a entrada em um entrelugar,
um espaço ficcional, compreendido aqui como um sítio no qual há uma suspensão das
9

forças de oposição em função do ato de jogar em cena. Ao analisar as categorias de rito


e de teatro, Schechner também apontou o movimento dos processos performáticos que
ele considerou como transporte e transformação. Com isso queria dizer que ao
participar de um jogo performático, os envolvidos são levados a algum lugar da qual se
retorna transformado. Perspectiva bastante adequada à experiência educativa.
As materialidades evocadas em uma aula, por sua vez, precisam ser
reconhecidas em suas reiterabilidades não redundantes, em seus repertórios recriados,
nos corpos que circulam entre performers interpretados por professores e alunos. Corpos
que se movimentam no palco cênico do edifício escolar, teatralidades que podem ser
interpretadas a partir de determinados movimentos e marcações cênicas. O espaço
tempo liminar de uma aula pode se dar a ler pelas suas materialidades performáticas. A
efemeridade própria da performance em ato pode nos falar sobre autonomia e
resistências, pode nos informar sobre identidades profissionais e posturas
libertárias/autoritárias de ensino.. Para nos estimular a reflexividade, o jogo no processo
de aprendizagem faz com que a performance possa ser apreendida em suas
materialidades, nos atos performáticos de ensinar e aprender .

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Qualidade. Atas da Quarta Jornada de Educação Histórica. Braga, Centro de
Investigação em Educação/ Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho,
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RJ: Vozes, 2008.
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SCHECHNER, Richard. Between Theather and Antropology. Philadelpia: The
University of Pennsylvania Press, 1985.
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TURNER, Victor. From Ritual to Theatre: the human seriousness of play. New York:
PAJ Publications, 1982
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Sueli Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

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