O contexto de
François Rabelais. 3ª edição, Ed. Hucitec/Edunb. São Paulo – Brasília: 1996.
Ele faz uma análise do que foi publicado sobre o tema até o momento, dando seu argumento
contrário ou favorável.
Introdução: A apresentação do problema
• A principal qualidade de Rabelais é estar ligado as fontes populares e delas retirar sua
concepção artística e seu sistema de imagens, resistindo as regras da arte literária a partir do
XVI.
• Rabelais se diferencia dos outros escritores (de sua época e posterior) e suas fontes
populares são a chave para entender suas imagens: “[…] as imagens de Rabelais estão
perfeitamente posicionadas dentro da evolução milenar da cultura popular.” (p.3 – itálico
do autor). Para Bakhtin entendê-lo requer uma reformulação de concepções artísticas e
ideológicas e uma investigação sobre a literatura cômica popular.
• O problema da cultura cômica popular na IM e no Renascimento, suas dimensões e
características.
Problema: o riso popular é pouco estudado e por isso permeado de ideias que lhe
foram atribuídas pela estética burguesa da modernidade.
A importância do riso popular (na IM e Renascimento) é considerável apesar do
certo esquecimento que os estudiosos fazem dele. Suas manifestações se opunham à
cultura oficial da época (religiosa e feudal).
As manifestações da cultura cômica popular se dividem em três: (1) formas do
riso e espetáculos; (2) obras cômicas verbais; (3) diversas formas e gêneros do
vocabulário familiar e grosseiro.
● (1) festejos de carnaval, obras cômicas representadas nas praças: festa do tolo
e festa do asno, as festas religiosas possuíam também um aspecto cômico
popular e público. Se diferenciavam em princípio dos cultos e atos sérios da
Igreja e do Estado feudal e ofereciam outra visão de mundo não-oficial.
✗ Dualidade do mundo: a visão série e oficial x a visão cômica.
✗ “Ignorar ou subestimar o riso popular na Idade Média deforma
também o quadro evolutivo histórico da cultua europeia nos séculos
seguintes.” (p.5)
✗ A dualidade de mundo (sério e cômico) já existia na antiguidade, nos
mitos e lendas, porém era considerado sagrado e portanto oficial. Isso
se perde com o regime de classes e de Estado.
✗ “Mas quando se estabelece o regime de classes e de Estado, torna-se
impossível outorgar direitos iguais a ambos os aspectos, de modo que
as formas cômicas – algumas mais cedo, outras mais tarde – adquirem
um caráter não-oficial, seu sentido modifica-se, elas complicam-se e
aprofundam-se, para transformarem-se finalmente nas formas
fundamentais de expressão da sensação popular do mundo, da cultura
popular.” (p.5)
✗ Os ritos e espetáculos mostram a vida apresentada com elementos da
representação. No caso do carnaval, por exemplo, os indivíduos não
assistem mas vivem a festa.
✗ Os bufões e os bobos encarnavam uma vida real e ideal ao mesmo
tempo, na fronteira entre a vida e a arte.
✗ “O carnaval é a segunda vida do povo, baseada no princípio do riso. É
a sua vida festiva. A festa é a propriedade fundamental de todas as
formas de ritos e espetáculos cômicos da Idade Média.” (p.7)
✗ Essas formas têm uma ligação com as festas religiosas.
✗ As festividades exprimem uma visão de mundo e têm uma relação
com o tempo (vida, morte e tempos de crise).
✗ Na IM as festas populares e públicas davam essa segunda vida aos
indivíduos, com maior liberdade e igualdade, o que não ocorria com
as festas de caráter oficial que apenas reforçava a ordem vigente.
✗ Formação de uma linguagem carnavalesca típica que só era usada
nesse momento, onde se aboliam as hierarquias e as normas de
etiqueta, e que transmitia a percepção carnavalesca de mundo do
povo.
✗ “A segunda vida, o segundo mundo da cultura popular constrói-se de
certa forma como paródia da vida ordinária, como um “mundo ao
revés”.” (p.10)
✗ O riso carnavalesco é festivo, do povo, universal e ambivalente
(alegre e sarcástico).
✗ “[…]o riso popular ambivalente expressa uma opinião sobre um
mundo em plena evolução no qual estão incluídos os que riem.”
(p.11)
● (2) orais, escritas, parodísticas em latim ou língua vulgar: ligada à concepção
de mundo e linguagem carnavalesca. Literatura festiva e recreativa típica da
IM.
✗ A literatura cômica medieval permanece a expressão da visão de
mundo popular e carnavalesca, empregando suas formas e símbolos.
✗ Os ritos e a ideologia da Igreja são descritos de forma cômica pelos
diferentes níveis eclesiásticos.
✗ A literatura cômica medieval em latim se inicia com duas obras do
período de passagem da antiguidade ao medievo: A Ceia de Ciprião e
Vergilius Maro Grammaticus.
✗ Paródias Sacras: das liturgias, evangelhos, hinos, litanias, etc.
✗ Disputas paródicas feitas por intelectuais letrados, ecos do riso
carnavalesco público nas universidades, mosteiros e colégios.
✗ Literatura cômica em língua vulgar também rica e variada, exemplos
são os fabliaux e as peças líricas dos “vagantes” (goliardos creio eu).
● (3) vocabulário familiar e público: nova forma de comunicação produz novas
formas linguísticas como gêneros inéditos, mudança de sentidos, etc.
✗ Linguagem da praça pública: expressões grosseiras e injuriosas,
blasfêmias criam a sensação de liberdade e o aspecto cômico do
mundo.
✗ “A linguagem familiar converteu-se de uma certa forma, em um
reservatório onde se acumulam as expressões verbais proibidas e
eliminadas da comunicação oficial.” (p.15)
• O autor acredita em uma unidade da cultura cômica popular na IM.
• Princípio da vida material e corporal em Rabelais (é positivo, popular e universal): para o autor
é uma herança da cultura cômica popular e da concepção estética chamada de realismo grotesco
(sistema de imagens da cultura cômica popular).
Rebaixamento: transfere para o plano material tudo que é espiritual, corporifica, materializa.
Entende o baixo como a terra e o corpo, a eu alto como o céu, o divino. Mas esse princípio é
ambivalente (positivo e negativo), pois o baixo também gera vida e simboliza o começo.
A diferença do princípio material e corporal na IM e no Renascimento está em que neste
último“[…] o corpo e as coisas são subtraídos à unidade da terra geradora e separados do
corpo universal, que cresce e se renova sem cessar, aos quais estavam unidos na cultura
popular.” (p.21)
“A visão carnavalesca do mundo é a base profunda da literatura do Renascimento.” (p.21)
O autor trabalha com a noção de oposição entre a cultura cômica popular e a cultura
burguesa e a alternância delas gera o realismo renascentista.
A imagem grotesca é caracterizada pela transformação e evolução, além da ambivalência.
A gravidez, o coito, o parto, a velhice, etc. são elementos do sistema de imagens grotescas
que se opõem as imagens clássicas do corpo humano perfeito.
“No domínio literário, a paródia medieval baseia-se completamente na concepção grotesca
do corpo.” (p.24)
“Denominamos convencionalmente “realismo grotesco” ao tipo específico de imagens da
cultura cômica popular em todas as suas manifestações.” (p.27)
O termo grotesco foi dado em fins do XV quando se descobriu uma série de pinturas
ornamentais em escavações nos subterrâneos de Roma, daí o nome que vem de gruta (grotta
no italiano).
Segundo Bakhtin o autor Flogel (cujo objeto de estudo é o grotesco medieval) em 1788, em
sua obra História do cômico grotesco, “Qualifica de grotesco tudo o que se aparta
sensivelmente das regras estéticas correntes, tudo que contém um elemento corporal e
material nitidamente marcado e exagerado.” (p.31)
O autor faz uma cronologia do desenvolvimento do grotesco desde a antiguidade até o XX e
diferencia o grotesco medieval/renascentista do romântico, este último tomando um caráter
mais sombrio.
O grotesco medieval está relacionado com a cultura popular e têm caráter universal e
público. Representa o terrível como vencido pelo riso, adquire um tom de bobagem alegre.
“Nas diabruras dos mistérios da Idade Média, nas visões cômicas de além-túmulo, mas
lendas paródicas e nos fabliaux, etc., o diabo é um alegre porta-voz ambivalente de opiniões
não-oficiais, da santidade ao avesso, o representante do inferior material, etc.” (p.36)
O grotesco popular é primaveril e matinal.
Cultura cômica popular: os objetivos do autor são teóricos e consistem em revelar seu
sentido e sua natureza ideológica, ou seja, seu valor como concepção de mundo e seu valor
estético.