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Aristóteles
O filósofo grego Aristóteles propôs uma resposta para essa questão em seu livro
Metafísica. Para ele, se desejamos conhecer de maneira séria, científica, um
determinado fenômeno ou ser, precisamos investigar as suas causas.
A idéia de quatro causas de Aristóteles é uma teoria filosófica que explica como os
fenômenos ocorrem a partir de quatro tipos de causas: material, formal, eficiente e final.
Essas quatro causas trabalham juntas para produzir o fenômeno em questão. Na teoria
de Aristóteles, o conhecimento dessas causas é fundamental para compreender o que
ocorre no mundo.
A idéia das quatro causas de Aristóteles é usada como uma ferramenta para entender e
explicar os fenômenos do mundo. Ela é aplicada em diversas áreas, como filosofia,
ciência, arte e outras, para identificar e analisar as causas que levam a determinados
fenômenos.
Por exemplo, na ciência, a teoria das quatro causas pode ser utilizada para investigar o
funcionamento de um motor ou o processo de crescimento de uma planta. Isso permite
identificar a causa material (como o metal ou o combustível do motor ou o solo e a água
da planta), a causa formal (a estrutura do motor ou a forma das folhas da planta), a
causa eficiente (a força que move o motor ou a luz solar que faz a planta crescer) e a
causa final (o propósito do motor ou a função da planta).
Além disso, a teoria das quatro causas é também utilizada em outras áreas, como a arte,
para analisar a criação de uma obra de arte e identificar suas causas materiais (como a
tinta ou o bronze utilizados), formais (como a composição ou a cor da obra), eficientes
(como o artista que a criou) e finais (como o objetivo ou o significado da obra).
Em resumo, a idéia das quatro causas de Aristóteles é usada como uma ferramenta para
entender e explicar os fenômenos do mundo, sejam eles científicos, artísticos ou outros.
Ela permite identificar e analisar as causas que levam a determinados fenômenos, o que
pode contribuir para o progresso e o conhecimento em diversas áreas.
Um exemplo dessa diferença é o modo como ambas abordam o movimento dos corpos.
Para Aristóteles, o movimento era visto como uma combinação das quatro causas — a
causa material seria o corpo que está se movendo, a causa formal seria a forma que o
corpo assume ao se mover, a causa final seria o objetivo do movimento e a causa
eficiente seria a força que está causando o movimento. Já para a ciência moderna, o
movimento é entendido como sendo causado pelas forças que agem sobre os corpos,
como a gravidade ou a força resultante de uma aceleração.
O que é a arte? O que ela pode fazer conosco? Que efeitos pode provocar? Esses
efeitos são bons ou ruins?
Platão refletiu muito sobre o que seria uma cidade ideal, quais leis ela deveria adotar
e o que deveria ser permitido ou proibido. E a arte era uma das coisas que ele
julgava prejudicial e que deveria ser proibida.
Ele entendia que a arte era imitação. Uma pintura, por exemplo, é a imitação, usando
cores, de objetos que observamos. O mesmo vale para esculturas, que imitam a
forma do que vemos, ou filmes que imitam determinadas ações.
O problema disso é que, para Platão, conhecer significa conhecer as idéias das
coisas, por exemplo, a idéia de cachorro, não um cachorro em particular. Cachorros
não passam de imitações da idéia de cachorro.
Portanto, a arte, nas palavras de Platão, é “imitação da imitação” e está “três vezes
distante da verdade”, pois ela imita coisas particulares, não as idéias das coisas.
Como, para ele, a verdade é o valor fundamental, a arte, na medida em que não se
preocupa com a verdade, não tem valor.
“O ofício do poeta não é descrever coisas realmente acontecidas, mas as que podem,
em dadas circunstâncias, acontecer, isto é, coisas que são possíveis segundo as leis
da verossimilhança e da necessidade.”
Ou seja, o poeta não imita acontecimentos reais, mas o que poderia acontecer, de
acordo com as leis da verossimilhança e da necessidade.
Assim, ao vermos um filme não estamos apenas nos divertindo com imitações de
imitações como pensava Platão, mas aprendendo sobre a natureza das ações
humanas.
Há vários elementos nessa definição que poderíamos analisar com mais calma. No
entanto, o que mais nos interessa nesse momento é a parte final. A tragédia “se serve
da ação para, por meio da compaixão e do temor, provocar a catarse de tais
paixões.”
Édipo Rei é uma tragédia grega escrita em 427 a. C. por Sófocles. Aristóteles a
considerou em sua Poética o exemplo mais perfeito de uma tragédia.
A história começa com Édipo, rei de Tebas, enviando seu cunhado ao oráculo de
Delfos para pedir conselhos sobre uma praga que assola a cidade. E assim descobre
que a praga é uma punição divina porque o assassino do antigo rei da cidade, Laios,
nunca foi pego.
Para tentar descobrir quem é o assassino, Édipo pede ajuda para o poeta cego
Tirésias, mas ele se recusa a dizer quem é o responsável pela morte de Laios. Ao
invés disso, sugere que Édipo abandone a busca pelo assassino.
Mas Édipo reage mal ao pedido e acusa Tirésias de ter provocado a morte de Laios.
E assim o poeta se vê obrigado a revelar que o assassino na verdade é o próprio
Édipo.
Para reconfortar Édipo, Jocasta, sua esposa e ex-mulher do rei assassinado, diz para
não se preocupar com oráculos. Como prova, conta de uma profecia segundo a qual
Laios seria morto pelo seu próprio filho. Mas o que aconteceu foi que ele foi morto
por bandidos em uma encruzilhada a caminho de Delfos.
A menção desta encruzilhada faz com que Édipo peça mais detalhes. Ele pergunta a
Jocasta como Laios era, e de repente fica preocupado que as acusações de Tirésias
sejam verdadeiras.
Intrigada, Jocasta quis saber porque a preocupação. E aí ele explica que muitos anos
atrás, em um banquete em Corinto, um homem embriagado o acusou de não ser filho
de seu pai. Édipo foi a Delfos e perguntou ao oráculo sobre sua paternidade. Em vez
de respostas, ele recebeu uma profecia de que um dia mataria seu pai e dormiria com
sua mãe. Ao ouvir isso, ele resolveu deixar Corinto e nunca mais voltar. Enquanto
viajava, ele veio para a mesma encruzilhada onde Laios foi morto, e encontrou uma
carruagem que tentou expulsá-lo da estrada. Uma discussão se seguiu e Édipo matou
os viajantes, incluindo um homem que bate com a descrição de Jocasta de Laios.
Édipo tem esperança, no entanto, porque a história é que Laios foi assassinado por
vários ladrões. Se o pastor confirmar que Laios foi atacado por muitos homens,
então Édipo está livre.
É essa aflição que sentimos desde o início da história de Édipo. Logo que a trama
começa a se desenrolar, suspeitamos que Édipo matou Laios e casou com a própria
mãe. Conforme novos fatos surgem, essa suspeita vai se confirmando, mas
permanece a possibilidade de que haja outra explicação.
Quando finalmente toda a verdade se revela, já não sentimos temor, mas compaixão
de Édipo.
Aristóteles escreve
“daqueles que são atingidos pela desgraça sem o merecer devemos compartilhar a
pena e ter compaixão.”
“Catarse” é uma palavra grega traduzida por “purificação” ou “purgação”. Ela era
usada em diferentes contextos.
Na medicina antiga, por exemplo, essa purificação era feita pelos médicos através de
vômito, suor, sangria e outros métodos. Através disso o organismo era desintoxicado
para recuperar a saúde.
Então a tragédia e outras formas de arte, para Aristóteles, também fazem essa
purificação ou limpeza. Mas ao contrário do corpo, elas limpam as emoções. Depois
de experimentar o temor e a compaixão no teatro, o espectador é libertado de seu
peso. Sai aliviado.
Por analogia com a medicina, podemos pensar que na alma ou mente humana
também existem emoções que são prejudiciais, seja por sua presença ou quantidade.
“Se há um fim das nossas ações que queremos por ele mesmo, quanto os outros os
queremos só em vista daquele, e não desejamos nada em vista de outra coisa
particular (assim, de fato, iríamos ao infinito, de modo que nossa tendência seria
vazia e inútil), é claro que esse deve ser o bem e o bem supremo.”
Aristóteles era grego então ele não falava em felicidade, mas eudaimonia. E essa
palavra pode ser traduzida de formas diferentes. Podemos chamar ela de felicidade,
uma vida bem sucedida ou simplesmente de sucesso.
Ele disse
Mas já adianto que vida de sucesso ou feliz para o Aristóteles não tem nada a ver
com sucesso ou felicidade no sentido atual.
Ele dizia que uma andorinha só não faz verão. Com isso, queria dizer que, para
provar que o verão chegou é necessário mais do que uma andorinha ou um dia
quente. Da mesma forma, para uma vida feliz não bastam alguns momentos
prazerosos.
Surpreendentemente, ele acreditava que as crianças não podiam ser felizes, o que
parece ser um absurdo. Se as crianças não podem ser felizes, quem pode? Isso revela
o quanto sua concepção de felicidade era diferente da nossa. As crianças estão
apenas começando a viver, por isso não tiveram uma vida plena, completa. A
verdadeira felicidade, argumentava Aristóteles, exigia uma vida longa.
Quando o assunto é direção, temos diferentes tipos de motoristas. Tem aqueles que
são extremamente medrosos e que sequer conseguem dirigir um veículo. Uma
pessoa assim, diria Aristóteles, pode estar se privando de coisas importantes na vida
por falta de coragem e poderia ter uma vida melhor se não fosse tão medrosa.
No outro extremo, há pessoas que são imprudentes no trânsito. São motoristas que
colocam em risco a própria vida, a vida da família e outros desnecessariamente.
Talvez isso resulte em mortes ou pessoas feridas. Esse também é um caso extremo
em que a pessoa não está agindo de maneira virtuosa no trânsito, talvez por excesso
de coragem.
Por fim, há aquela pessoa que tem a coragem necessária para dirigir em qualquer
situação, mas conhece todos os riscos envolvidos e dirige de forma prudente. Essa
pessoa, não erra por falta nem por excesso, é alguém que Aristóteles chamaria de
virtuoso no trânsito.
No outro extremo, podemos pensar em uma pessoa que quase sempre diz não. Se
trata de uma pessoa que não presta atenção nos desejos alheios e é incapaz de dizer
sim para o outro. Apenas seus desejos importam.
Enfim, para Aristóteles, uma vida boa deve ser longa, deve ter sido vivida com
virtude, ou seja, a pessoa deve ter sido capaz de encontrar o equilíbrio entre os
extremos nas mais diferentes situações. Apenas ao conseguir isso uma pessoa poderá
dizer que foi bem sucedida e conquistou a chamada eudaimonia.
Aristóteles, Política
“A relação de macho para fêmea é por natureza uma relação de superior a inferior e de
governante a governado”.
Aristóteles, Política
Platão, República
Platão, República
“A relação de homem para mulher é, por natureza, uma relação de superior para inferior
e de governante para governado.”
“Portanto, as mulheres são mais compassivas e prontas a chorar, mais invejosas e mais
sentimentais e mais contenciosas. A fêmea também está mais sujeita à depressão do
espírito e ao desespero do que os homens. Ela é também mais desavergonhada e falsa,
mais prontamente enganada, e mais atenta às injúrias, mais ociosa e, em geral, menos
excitável que o macho. Pelo contrário, o macho está mais disposto a ajudar e, como já
foi dito, mais valente do que a fêmea.”
Aceitando que é necessário um governo, a questão que surge em seguida é como esse
governo deve ser organizado. Aristóteles foi um filósofo que criou uma distinção
conceitual sobre tipos de governo que perdurou, sendo repetida por inúmeros outros
filósofos, até o século XIX.
Um Poucos Muitos
Forma Pura Monarquia Aristocracia Democracia
Forma Corrompida Tirania Oligarquia Demagogia
Assim, forma de governo, para Aristóteles, é o modo como o poder político é
distribuído entre as pessoas que fazem parte de uma sociedade. E os diferentes tipos de
formas de governo são classificados de acordo com dois critérios: o número de pessoas
que possuem poder político e a finalidade para a qual usam esse poder.
Trecho da Retórica
Emoções são os movimentos da alma, sempre acompanhados por [graus variados de]
sofrimento ou prazer, que afetam os homens, alterando seus julgamentos. Assim
acontece quando eles estão zangados, com pena de alguém, ou com medo.
Texto 2
Por paixões quero significar os apetites, a cólera, o medo, a audácia, a inveja, a alegria,
a amizade, o ódio, o desejo, a emulação, a compaixão, e de um modo geral os
sentimentos que são acompanhados de prazer ou sofrimento; por faculdades quero
significar aquelas coisas em razão das quais dizemos que somos capazes de sentir as
paixões — a saber a faculdade de nos encolerizarmos, magoar-nos ou compadecer-nos
—; por disposições, as coisas em razão das quais nossa posição em relação às paixões é
boa ou má. Por exemplo, em relação à cólera, nossa posição é má se a sentimos de
modo violento ou de modo muito fraco, e boa se a sentimos moderadamente; e da
mesma maneira no que se relaciona com as outras paixões.
Ora, nem as virtudes nem as deficiências morais são paixões, pois não somos chamados
bons ou maus por causa de nossas paixões e sim por causa das nossas virtudes ou vícios;
e não somos louvados ou censurados por causa de nossas paixões (um homem não é
louvado por sentir medo ou cólera, nem é censurado por simplesmente estar
encolerizado, mas sim por estar encolerizado de certa maneira); mas somos louvados ou
censurados por nossas virtudes ou vícios.
Além disso, sentimos cólera e medo sem nenhuma escolha de nossa parte, mas as
virtudes são certos modos de escolha ou envolvem escolha. E mais, com respeito às
paixões se diz que somos movidos, mas com relação às virtudes e aos vícios não se diz
que somos movidos, e sim que temos esta ou aquela disposição.
Todos os homens tendem por natureza ao saber: sinal disto é o prazer produzido
neles pelas sensações, já que estas, independentemente da sua utilidade, são amadas
por si mesmas, e, mais do que todos, aquela que é produzida pelo olhar.
Pode-se dizer, de fato, que preferimos a visão a todas as outras sensações, não só
quando temos um objetivo prático, mas também quando não pretendemos realizar
qualquer ação. E o motivo é que essa sensação, mais do que qualquer outra, nos
permite adquirir conhecimento e nos revela de imediato uma grande quantidade de
diferenças…
Epicuro
Biografia
Epicuro nasceu na ilha de Samos, em 341 a.C., pouco tempo depois da morte de
Platão. Começou a se interessar pela filosofia ainda muito jovem. Estudou com
seguidores de Platão e Demócrito, dois dos filósofos mais importantes da
antiguidade. Em 306 a. C. fundou em Atenas uma escola própria e se dedicou a
elaborar uma nova filosofia.
Epicuro é conhecido como o filósofo do jardim, por ter fundado uma escola que era
um misto de escola e comunidade, em uma propriedade particular nos arredores de
Atenas. No jardim, Epicuro vivia em conjunto com seus amigos e seguidores
praticando a filosofia. O local se tornou um símbolo do desapego e do modo de vida
dedicado ao prazer defendido pelos epicuristas.
Epicuro era conhecido e seu modo de vida atraia curiosos. Há uma história sobre um
rei veio lhe visitar uma vez.
E ele estava pensando que esse homem devia estar vivendo no luxo porque seu lema
era: comer, beber e ser feliz. “Se esta é a mensagem”, pensou o rei, “verei pessoas
vivendo em luxo, em condescendência.” Mas quando ele chegou, viu pessoas muito
simples trabalhando num jardim, regando árvores. O dia inteiro eles estavam
trabalhando. Elas tinham muito poucos pertences, apenas o suficiente para viver. E à
noite, quando estavam jantando, não havia nem manteiga; apenas pão seco e um
pouco de leite – mas elas vivenciavam aquilo como se fosse uma festa. Depois do
jantar, dançaram. O dia acabou e eles ofereceram um agradecimento à existência. E
o rei chorou – porque sempre pensara em condenar Epicuro em sua mente.
Ele perguntou: “O que você quer dizer com ‘comer, beber e ser feliz?’”
Epicuro disse: “você viu. Por vinte e quatro horas estamos felizes aqui. E se você
quer ser feliz, você tem que ser simples – porque quanto mais complexo você é,
mais infeliz você se torna. Quanto mais complexa a vida, mais miséria ela cria.
Somos simples, não porque estamos buscando a Deus, somos simples, porque ser
simples é ser feliz.”
E o rei disse: “eu gostaria de enviar alguns presentes para você. O que você gostaria
para o jardim e sua comunidade?”
E Epicuro estava perplexo. Ele pensou e pensou e disse: “não achamos que mais
alguma coisa seja necessária. Não se ofenda; você é um grande rei, você pode dar
tudo – mas nós não precisamos. Se você insistir, pode mandar um pouco de sal e
manteiga.” Ele era um homem austero.
Apesar das associações que falar de prazer geralmente desperta, o que Epicuro
propunha como uma vida feliz era sobretudo o cultivo de prazeres modestos, o
cultivo da amizade e da reflexão, para que a vida não seja assombrada pelo medo
dos deuses ou da morte.
Ainda assim, sua influência na antiguidade foi duradoura. Cerca de 400 anos depois
da morte de Epicuro, Diógenes, um homem rico de Enoanda, pagou pela construção
de um muro no mercado da cidade com mensagens baseadas na filosofia de Epicuro.
Ele explica que pouco antes de morrer quis “compor um belo hino para celebrar a
plenitude do prazer e, dessa forma, ajudar aqueles que estão saudáveis”. Era uma
lembrança aos seus conterrâneos do que realmente tem valor na vida. No muro, se
encontram frases como
Filosofia de Epicuro
Epicuro via a filosofia como uma medicina da alma. Se a medicina procura livrar o
ser humano de doenças e proporcionar uma vida saudável, a filosofia procura curar
os males da alma e proporcionar uma vida feliz.
Epicuro procurou oferecer uma cura para a alma humana a partir de suas reflexões
sobre a natureza e sobre a ética. A primeira, procura oferecer uma imagem adequada
da natureza, para que o ser humano não tema a morte nem aos deuses. A segunda,
mostrar o que é realmente importante para a felicidade.
Para Epicuro, não é possível levar uma vida feliz sentindo medo a todo momento de
punições dos deuses. Para livrar os homens dessa doença da alma, defendia que
todos os fenômenos naturais, incluindo as catástrofes, eram o resultado do
movimento dos átomos. Não havia por trás disso qualquer intenção ou propósito,
apenas manifestações de uma natureza alheia aos interesses humanos.
Os deuses
Epicuro era acusado de ateu, embora não negasse a existência dos deuses. Porém
pensava que os deuses eram completamente diferentes daquilo que pensavam as
pessoas da época (e ainda hoje pensam). Pensava nos deuses como um tipo de ser
especial, extremamente feliz e tranquilo, totalmente alheio aos seres humanos. Ele
escreveu sobre os Deuses que
“Aquele que é plenamente feliz e imortal não tem preocupações, nem perturba os
outros; não é afetado pela cólera ou pelo favor, já que tudo isso é próprio à
fraqueza.”
A morte
O segundo maior medo dos seres humanos, depois dos deuses, é da morte. Nesse
caso, Epicuro também tinha um remédio baseado no atomismo. Muitos filósofos,
como Platão, por exemplo, e pessoas comuns, acreditam no chamado dualismo de
corpo e alma. Trata-se da crença de que o ser humano é composto por um corpo
material, mortal, e uma alma não material e imortal.
Por essa razão, não há porque temer a morte. Na Carta a Meneceu, Epicuro escreve
que
“o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós, justamente
porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando
a morte está presente, nós é que não estamos.”
Como a morte é o fim de qualquer consciência, não tem como ser dolorosa. Como a
morte não resulta em dor nem sofrimento, não há porque temê-la.
É importante notar que que para Epicuro uma vida de prazeres é bem diferente do
que geralmente pensamos ser um prazer. Na carta a Meneceu, o filósofo escreveu o
seguinte:
Não são bebidas nem banquetes contínuos, nem a posse de mulheres e rapazes, nem
o sabor dos peixes ou das outras iguarias de uma mesa farta que tornam doce uma
vida
Todos esses desejos, assim como o medo da morte ou dos deuses, estão presentes
nos seres humanos e geram uma série de sofrimentos e perturbações. Se tenho
desejo de comer, por exemplo, mas não tenho acesso a alimentos de qualquer
natureza, sofrerei com a sensação de fome. Da mesma forma, se tenho desejo de ser
muito rico, mas não encontro os meios para isso, o resultado será frustração e
tristeza.
Porém, Epicuro pensa que a satisfação dos desejos naturais é fácil, de modo que daí
não surgirá sofrimento. Os demais desejos, por outro lado, podem ser evitados desde
que a pessoa se dedique à reflexão.
Citações de Epicuro
A filosofia
Assim como a medicina não traz benefícios se não liberta dos males do corpo, o
mesmo sucede com a filosofia, se não liberta dos sofrimentos da alma.
O homem que alega não estar ainda preparado para a filosofia ou afirma que a hora
de filosofar ainda não chegou ou já passou assemelha-se ao que diz que é jovem ou
velho demais para ser feliz.
A amizade
De todas as coisas que nos oferece a sabedoria para a felicidade de toda a vida, a
maior é a aquisição da amizade.
Antes de comer ou beber qualquer coisa, pondere com mais atenção sobre com
quem comer e beber do que sobre a comida ou a bebida, pois alimentar-se sem a
companhia de um amigo é o mesmo que viver como um leão ou um lobo.
A morte
Livros de Epicuro
A Carta a Meneceu é um dos principais documentos sobre as ideias de Epicuro. É
uma carta escrita a uma amigo que aborda os principais tópicos de sua filosofia. É
um texto curto que vale muito a leitura, se você tem interesse em conhecer melhor o
filósofo do prazer.
Filosofia helenística
A filosofia helenística tem início com as grandes expedições de Alexandre (322
a.C.) e termina no início da era cristã. Nesse período, há uma verdadeira reviravolta
no pensamento filosófico por causa de mudanças políticas provocadas pelas
conquistas de Alexandre. Entre as mudanças, a filosofia se torna mais preocupada
com o indivíduo e menos com a cidade e a política; a busca de um modo de vida
feliz se torna o centro das atenções dos filósofos; a filosofia passa a adotar um ideal
cosmopolita e os filósofos passam a se ver como “cidadãos do mundo” ao invés de
cidadãos de uma cidade particular.
A vida feliz
Epicuro, um importante filósofo do período helenístico, afirmou que “é vão o
discurso daquele filósofo que não cure algum mal do espírito”. Ou seja, é inútil fazer
filosofia se ela não trazer felicidade e reduzir o sofrimento. Nesse aspecto, Epicuro
está dizendo algo sobre o qual todos os filósofos desse período concordam.
A escola cínica teve continuidade com Diógenes (400 – 325 a. C.), um dos seus
representantes mais conhecidos. O filósofo abriu mão completamente das
comodidades da civilização e procurou viver de acordo com a natureza. Deixou de
se tomar banho e vivia num barril. Não respeitava convenções sociais, de modo que
fazia tudo em público, inclusive se masturbar. Seu comportamento rendeu-lhe o
apelido de “cínico” que em grego significa “como um cão”.
Estoicismo
A escola estóica surgiu com Zenão (333 – 263 a. C.) e teve uma longa existência,
sendo muito influente no Império Romano e inclusive na formação do cristianismo.
Grandes pensadores de Roma, como Sêneca, Epiteto e Marco Aurélio pertenceram a
essa escola.
O estoicismo partiu de uma idéia do universo como algo governado por princípios
racionais (algo como o que chamamos hoje de leis científicas) que é possível aos
seres humanos conhecer. Os estóicos não acreditavam nos deuses mitológicos e,
sendo assim, viam a natureza de forma determinista. De nada adianta rezar para os
deuses pedindo que uma tempestade, por exemplo, não aconteça. Ela acontecerá de
qualquer forma e não há nada que os seres humanos possam fazer para evitá-la.
Diante dessa realidade, sem um deus salvador, só resta uma saída para levar uma
vida feliz: se adaptar às circunstâncias, aceitar o que acontece ao invés de resistir. É
por isso que hoje usamos a palavra “estóico” para se referir àquelas pessoas capazes
de enfrentar as situações mais difíceis, como a morte, de forma calma e sem
desespero.
Epicurismo
Essa escola da filosofia helenística teve origem com Epicuro (341 – 270 a. C.). Por
volta de 300 a. C. ele passou a viver com alguns amigos em um jardim nos arredores
de Atenas. Nessa comunidade, levavam uma vida simples dedicada ao prazer, o
grande ideal de vida epicurista.
Nada melhor do que uma história para ilustrar o que os epicuristas consideravam
uma vida feliz.
Epicuro era conhecido e seu modo de vida atraia curiosos. Dizem que o rei veio
visitar uma vez. Ele pensava que esse homem devia estar vivendo no luxo porque
seu lema era: comer, beber e ser feliz. “Se esta é a mensagem”, pensou o rei, “verei
pessoas vivendo em luxo, em condescendência.” Mas quando ele chegou, viu
pessoas muito simples trabalhando no jardim, regando as árvores. O dia inteiro eles
estavam trabalhando. Eles tinham muito poucos pertences, apenas o suficiente para
viver. E à noite, quando estavam jantando, não havia nem manteiga; apenas pão seco
e um pouco de leite — mas eles apreciavam a vida como se fosse uma festa. Depois
do jantar, eles dançaram. O dia acabou e eles ofereceram um agradecimento à
existência. E o rei chorou — porque sempre pensara em condenar Epicuro em sua
mente.
Ele perguntou: “O que você quer dizer com comer, beber e ser feliz?”
Epicuro disse: “Você viu. Por vinte e quatro horas estamos felizes aqui. E se você
quer ser feliz, você tem que ser simples — porque quanto mais complexo você é,
mais infeliz você se torna. Quanto mais complexa a vida, mais miséria ela cria.
Somos simples, não porque estamos buscando a Deus, somos simples, porque ser
simples é ser feliz.”
E o rei disse: “Eu gostaria de enviar alguns presentes para você. O que você gostaria
para o jardim e sua comunidade?”
E Epicuro estava perplexo. Ele pensou e pensou e disse: “Não achamos que mais
alguma coisa seja necessária. Não se ofenda; você é um grande rei, você pode dar
tudo — mas nós não precisamos. Se você insistir, pode mandar um pouco de sal e
manteiga.”
Ceticismo
O ceticismo teve início com Pirro (360 – 272 a. C.), que defendia que devemos
suspender o juízo sobre todas as coisas e não adotar crença alguma. O cético é
aquele que não acredita em nada, nem mesmo naquilo que vê com os próprios olhos.
O objetivo dos céticos era atingir um estado de tranquilidade absoluta no qual nada
afeta. O caminho para isso é justamente evitar manter uma opinião sobre qualquer
assunto. Há uma história segundo a qual durante uma tempestade em alto mar o
barco que Pirro era balançado por ventos violentos e jogado de um lado para o outro
pelas ondas enormes. Toda a tripulação estava apavorada com o risco da morte e
ainda assim o filósofo permanecia indiferente ao perigo. Olhando para um porco que
comia calmamente na tempestade, apontava no animal um exemplo de
comportamento sábio. Pirro conseguia se manter nesse estado porque evitava
acreditar em coisas como “o barco vai afundar”, “irei morrer”, “a vida é melhor que
a morte”. Ao contrário, suspendia seu julgamento e assim evitava preocupações
desnecessárias.
Antístenes
Antístenes foi um filósofo grego que viveu entre 445 a.C. e 365 a.C. Ele foi um dos
seguidores de Sócrates, um dos muitos que tentaram dar continuidade à sua filosofia.
É considerado o fundador de uma escola filosófica muito influente na antiguidade,
a escola cínica.
Antístenes era filho de um pai ateniense e mãe da Trácia — região próxima à Grécia
— o que lhe rendeu uma série de preconceitos. Os atenienses não viam com bons
olhos qualquer pessoa que não fosse grega. De fato, chamavam todos de bárbaros,
com um sentido totalmente depreciativo. O fato de Antístenes ser meio sangue
ateniense e meio sangue bárbaro lhe rendeu certa discriminação, porém parece ter
sido muito inteligente nas respostas àqueles que insistiam fazer piadas com isso. A
quem o ridicularizava, respondia “a mãe dos deuses também é da Frígia” ou os
insultava afirmando que os atenienses “não eram mais nobres que caracóis e
gafanhotos”.
Seus livros somaram dez volumes sobre os mais diversos assuntos, a ponto de ser
chamado de “tagarela prolífico”, mas todos se perderam na antiguidade.
Conhecemos um pouco de seu pensamento por intermédio de fontes secundárias.
As convenções sociais
Os cínicos eram diretos e não faziam nenhum esforço para respeitar as convenções
sociais. Diziam o que viam e pensavam, sem restrições. A língua afiada de
Antístenes fez inúmeras vítimas, entre elas Platão. Certa vez disseram que Platão
falava mal sobre ele, ao que respondeu: “é um privilégio dos reis agir bem e ouvir
falar mal.”
Durante uma procissão viu um cavalo que trotava de maneira solene, se virou para
Platão e, ridicularizando o orgulho desse, disse “parece-me que também poderias
marchar como aquele vistoso cavalo”. Outra vez, foi visitar Platão doente, e vendo
uma bacia na qual havia vomitado, disse “vejo a bile aqui, mas não consigo ver o
orgulho.”
Presente em uma espécie de culto religioso e ouvindo do sacerdote que aqueles que
adotavam sua religião tinham muitas vantagens na vida após da morte, respondeu
“então, por que não morres?”
Antístenes também não fazia questão de levar a sério as leis da cidade. O homem
sábio, pensava, não é aquele que faz tudo o que as leis ordenam, mas aquele que é
capaz de avaliar, através do uso de sua própria razão, o que é correto e o que é
incorreto. As leis não passam de convenções sociais adotadas em uma cidade. São
apenas os costumes de um povo particular. O homem sábio procurará viver de
acordo com sua razão, não de acordo com a vontade da cidade.
Simplicidade voluntária
Outra característica marcante da escola cínica que inicia com Antístenes é a escolha
por uma vida simples sem a necessidade de grande riqueza. É importante não
confundir isso com pobreza, já que essa é uma privação involuntária de bens
necessários para uma vida digna.
O que Antístenes e outros cínicos faziam era abrir mão de coisas supérfluas para
viver de forma autossuficiente. O sábio é aquele que se basta a si mesmo e cuja
felicidade não depende de fatores externos, sejam pessoas ou coisas. Esse ideal de
independência era conhecido pela palavra grega autarquia.
Em relação a isso, Antístenes dizia, por exemplo, que a bagagem necessária em uma
viagem é aquela que fica boiando quando o navio afunda.
A ética de Antístenes
O ideal de vida de Antístenes era de total independência, liberdade e
autossuficiência. O sábio é aquele que se basta a si mesmo. E isso exige muito
trabalho e esforço, para se desligar da riqueza, não sofrer com a dor, abrir mão dos
prazeres, da fama, tudo que seja exterior. O ideal do filósofo é construir uma espécie
de fortaleza psicológica de modo que não dependa de ninguém nem de nada para
uma existência plena.
Embora todos os livros escritos por Antístenes tenham sido perdidos, restaram
muitas máximas do filósofo que expressam seu pensamento sobre ações humanas
em diversas ocasiões.
Alguém que lhe perguntou com que mulher se casar, respondeu: “se escolheres uma
mulher bela não a terás somente para ti; se for feia, penará por isso.”
Dizia que era melhor cair entre os corvos do que os aduladores, porque “os
primeiros devoram os mortos, e os outros devoram os vivos” e que devemos dar
atenção aos inimigos, porque “são os primeiros a notar nossos erros.”
Hipárquia
Hipárquia é notável por ser uma das poucas mulheres filósofas da Grécia Antiga.
Atraída pelas doutrinas e dificuldades auto-impostas pelo estilo de vida cínico,
Hipárquia viveu na pobreza com o marido, Crates. Embora nenhum texto dos cínicos
existente seja diretamente atribuído à Hipárquia, os relatos anedóticos registrados
enfatizam tanto sua retórica direta quanto sua não-conformidade aos papéis tradicionais
de gênero.
Se casar é um papel social tradicional que os cínicos normalmente rejeitariam. Mas com
seu casamento com Crates, Hipárquia elevou as expectativas culturais gregas em relação
ao papel das mulheres no casamento, assim como a própria doutrina cínica. Com o
marido, Hipárquia incorporou publicamente os princípios cínicos fundamentais.
Especificamente, que o caminho para a virtude era viver de acordo com a natureza,
evitar o materialismo convencional e abraçar a auto-suficiência. Relatos sobre a vida de
Hipárquia referiam-se em particular à sua falta de vergonha ou anaideia, e a sua
acuidade retórica nos simpósios gregos tradicionalmente frequentados apenas por
homens. Com Crates, Hipárquia é considerada uma influência direta na filosofia estoica.
Hipárquia nasceu em Maroneia na Trácia. Ficou famosa por seu casamento com Crates,
o cínico, e infame por supostamente consumar o casamento em público. Provavelmente
nasceu entre 340 e 330 a.C., e estava em sua adolescência quando decidiu adotar o
manto cínico. Ela pode ter sido apresentada à filosofia por seu irmão, Metrocles, que foi
aluno no Liceu de Aristóteles e depois começou a seguir Crates. A maior parte de nosso
conhecimento sobre Hiparquia vem de anedotas e ditos repetidos por autores
posteriores.
Uma dessas anedotas afirma que Hipárquia estava tão ansiosa para se casar com Crates
que ameaçou se matar se ele não aceitasse. Embora Crates já fosse um homem idoso,
ela rejeitou seus pretendentes jovens porque se apaixonou pelos discursos e pela vida de
Crates.
Seus pais imploraram a Crates que a convencesse a mudar de idéia e ele recorreu a todo
que pode para isso. Vendo que não era bem-sucedido, tirou toda a roupa diante dela e
disse: “eis o futuro esposo e aqui estão seus bens; decide, portanto, pois não poderás ser
minha consorte se não se adaptares ao meu modo de viver”. Não é possível saber até
que ponto essa história é verdadeira. De qualquer forma, sabemos que Hipárquia
escolheu se casar com Crates e compartilhar suas atividades filosóficas.
Alguns autores relatam que Hipárquia e Crates fizeram sexo em um pórtico público. Se
o conto é exato ou não, eles eram conhecidos por se comportarem em todos os aspectos
de acordo com o valor cínico de anaideia, ou falta de vergonha. A história do
casamento cínico de Hipárquia rapidamente se tornou o primeiro exemplo dessa virtude,
que é baseada na crença cínica de que quaisquer ações virtuosas o suficiente para serem
feitas em particular não são menos virtuosas quando realizadas em público.
Segundo alguns relatos, Hipárquia e Crates tiveram um filho, Hipárquia, gerado e criado
de acordo com seus valores cínicos. Quaisquer que fossem os detalhes reais de suas
práticas, seu exemplo influenciou as atitudes cínicas posteriores em relação à gravidez e
à educação dos filhos. Por exemplo, uma das cartas atribuídas a Crates sugere que
Hipárquia deu à luz “sem problemas” porque ela acreditava que o “trabalho de parto é a
causa de não trabalhar”. O parto foi mais fácil porque ela continuou a trabalhar “como
um atleta” durante a gravidez, o que o autor nota que é incomum. As cartas também
mencionam o uso de um berço de casco de tartaruga por Hipárquia e água fria para o
banho do bebê.
Hipárquia também é famoso por uma discussão com Teodoro, o Ateu, um filósofo
cirenaico que havia desafiado a legitimidade de sua presença em um simpósio. Ele
questionou sua presença citando um verso de Eurípides,
E Hipárquia respondeu:
“fui eu, Teodoro, mas acreditas que tomei uma decisão errada se dediquei à minha
educação o tempo que teria dedicado ao tear?”
Hipárquia é a primeira filósofa sobre a qual temos alguns registros históricos além do
nome. Já na antiguidade seu valor e contribuição foram reconhecidos. Segundo
relatados, sua cidade natal teve o nome alterado em sua homenagem.
Pirro de elida
Pirro nasceu na cidade de Élida em torno de 360 a.C. e inicialmente se dedicou à
pintura, no que não foi bem-sucedido. Parece ter se voltado para a filosofia depois que
fez uma viagem ao Oriente em uma expedição de Alexandre. Na Índia, conheceu os
gimnosofistas, sábios indianos. Numa demonstração de coerência inacreditável, um
desses sábios se jogou voluntariamente em uma fogueira e suportou impassível a dor
enquanto as chamas devoravam seu corpo.
Ao retornar para sua cidade natal, passou a se dedicar à filosofia com a qual atraiu
bastante atenção. O respeito que conquistou por seu modo de vida e comportamento fez
com que fosse apontado como sacerdote e que os filósofos não precisassem pagar
impostos. Nesse aspecto, Pirro se destacava pela sua tranquilidade e capacidade de não
se deixar afetar pelo que ocorria a sua volta. De fato, sua capacidade de se manter calmo
nas situações mais adversas era extraordinária.
Há uma história segundo a qual durante uma tempestade em alto mar o barco que Pirro
era balançado por ventos violentos e era jogado de um lado para o outro pelas ondas
enormes. Toda a tripulação estava apavorada com o risco da morte e ainda assim o
filósofo permanecia indiferente ao perigo. Olhando para um porco que comia
calmamente na tempestade, apontava no animal um exemplo de comportamento sábio.
As histórias sobre Pirro são abundantes. Algumas servem para compreendermos alguns
conceitos de sua filosofia, outras foram criadas por críticos para ridicularizar suas
ideias. De qualquer forma, é importante sempre manter um certo ceticismo em relação
às duas.
Diante de uma pessoa tão pitoresca, é natural se perguntar o que pensava para viver
dessa forma. E a resposta é: Pirro era um cético.
O ceticismo de Pirro
Pirro é o pai de uma filosofia chamada de ceticismo. A questão central desse filósofo é
o que podemos conhecer com certeza? Algumas pessoas estão certas de possuírem uma
alma, enquanto outras alimentam dúvidas sobre sua existência. No entanto,
praticamente ninguém duvidaria que em inúmeras situações podemos ter certeza. Por
exemplo, imagine que você está a poucos metros de um cão que se mostra numa posição
de ataque. Ele mostra os dentes e começa a correr em sua direção. Numa situação como
essa, você certamente não ficaria parado, calmo, pensando que a existência do cão é
incerta, pois pode ser uma ilusão criada pelos seus olhos.
Pirro ao contrário, acreditava que não podemos ter certeza de absolutamente nada. Nem
mesmo de que existe um cão feroz na sua frente.
O filósofo pensava que existiam três perguntas fundamentais:
A primeira dessas questões, Pirro respondia que não como podemos saber como as
coisas realmente, apenas como elas nos parecem. A mesma coisa parece diferente para
pessoas diferentes, e, portanto, é impossível saber qual opinião é correta. A diversidade
de opinião entre os sábios, bem como entre as pessoas comuns, prova isso. Para cada
afirmação, a afirmação contraditória pode ser oposta com igualmente bons
fundamentos, e qualquer que seja a minha opinião, a opinião contrária é acreditada por
alguém que é tão inteligente e competente para julgar como eu. Opinião podemos ter,
mas certeza e conhecimento são impossíveis.
Com relação à segunda questão, o filósofo acreditava que deveríamos suspender o juízo
em relação a tudo. Normalmente, pensamos que uma ação é boa ou ruim, justa ou
injusta, prejudicial ou benéfica. Pense no episódio da tempestade: quantos julgamentos
faríamos numa situação assim? Mesmo sem querer, pensamos que o barco irá afundar,
que se afundar iremos morrer, que a morte é pior que a vida, por isso é melhor continuar
vivendo etc. Todos esses julgamentos, pensava Pirro, são precipitados, pois não
podemos saber realmente tudo isso. O mais correto, então, seria evitar julgar.
Por fim, aqueles que adotam a atitude adequada em relação à todas as coisas, ou seja, a
suspensão do juízo, terão como recompensa uma grande tranquilidade que surge da
indiferença, do não-julgamento. Era esse o segredo da tranquilidade de Pirro. Era capaz
de se manter calmo em qualquer situação porque evitava fazer julgamento sobre tudo.
Heráclito
Heráclito não era uma pessoa muito sociável. Pelo contrário, era desdenhoso e
aparentemente desprezava as pessoas. Tanto que não quis participar da política –
algo bastante valorizado entre os gregos – e mesmo quando foi convidado a redigir
leis para a cidade, recusou.
Idéias de Heráclito
Tudo flui
Dos fragmentos que restaram do livro de Heráclito certamente o mais conhecido é o
seguinte:
“Não se pode descer duas vezes o mesmo rio, e não se pode tocar duas vezes uma
substância mortal no mesmo estado, pois por causa da impetuosidade e da
velocidade da mudança, ela se dispersa e se reúne, vem e vai. (…) Nós descemos e
não descemos pelo mesmo rio, nós próprios somos e não somos.”
Também é em razão dessa mudança constante que Heráclito diz que “somos e não
somos”. Nós somos algo num instante e não somos mais aquilo que éramos antes de
ser o que somos agora. Se somos uma pessoa molhada em um rio, não somos mais a
pessoa que estava com calor e gostaria de se refrescar.
O filósofo pensa que o fluir constante não é apenas uma característica da vida de
seres humanos e de rios, mas da realidade como um todo. Isso vale para as rochas,
os planetas, as plantas, animais, estações e até mesmo para materiais quase
indestrutíveis como diamantes. Tudo flui.
O filósofo descreve esse processo como uma “guerra” e entende que é a guerra a
força por trás do movimento constante da natureza. E o resultado final dessa guerra
não é a desunião, mas uma “harmonia dos contrários”, porque no fundo “tudo é
um”. O jovem e o velho são a mesma coisa, porque esse será aquele quando mudar e
aquele serão esse. O mesmo ocorre com o calor e o frio e os demais contrários.
“a doença torna doce a saúde, a fome torna doce a saciedade, o cansaço torna doce o
repouso. Não se conheceria sequer o nome da justiça se ela não fosse ofendida.”
Ou seja, se não existissem doenças, não teria valor a saúde, se não existissem
injustiças, sequer saberíamos o que é a justiça. Se não houvesse a morte, o que
pensaríamos da vida?
Política
Em um dos fragmentos que restaram do livro Sobre a Natureza, Heráclito
recomenda que seus concidadãos se enforquem por terem banido seu líder mais
destacado. Provavelmente, era totalmente contrário ao governo democrático, por
pensar que o povo não passa de um bando de ignorantes. Defendia que o melhor era
um governo aristocrático de sábios, onde os mais capacitados tomam as decisões.
Filosofia moderna
René Descartes
No restante de sua vida, nunca mais teve qualquer compromisso formal com trabalho ou
estudo. Levou uma vida de ócio proporcionada por uma renda que conseguiu através de
sua herança.
O filósofo foi um viajante solitário ao longo de sua vida. Sem qualquer responsabilidade
e ocupação, viajou constantemente por vários países da Europa sem jamais se
estabelecer definitivamente em nenhum. Seus amigos eram poucos e possuíam um
vínculo derivado apenas do interesse comum pelas grandes questões filosóficas da
época.
Descartes não se dedicou à elaboração de uma filosofia desde cedo. Curiosamente, isso
tem a ver com uma visão que teve em 1619. Conta-se que em uma de suas viagens
estava sentado em seu quarto aquecido e teve a visão de um universo que poderia ser
decifrado através do uso da matemática. Isso parece ter feito com que desejasse elaborar
toda uma nova forma de compreender o mundo que seria muito influente na ciência
moderna. Embora seus hábitos preguiçosos fizessem com esse projeto fosse adiado
ainda por vários anos.
Com o intuito de criar uma nova filosofia, escreveu um livro chamado Tratado sobre o
universo, que abrangia questões filosóficas, científicas e matemáticas. No entanto, o
livro não seria publicado. Nesse período, em Roma, Galileu era obrigado a negar o
resultado de suas pesquisas para evitar a morte. Descartes preferiu evitar correr esse
risco e deixou o livro engavetado.
Descartes recusou o convite algumas vezes, mas diante da insistência da rainha não teve
outra escolha. Esse seria sua última viagem. O filósofo disse que a Suécia era tão fria
que “até os pensamentos dos homens congelavam”. Não resistiu ao clima e à nova
rotina. Morreu em 1650.
A filosofia, por outro lado, o que tinha de sólido para oferecer? Todas as suas teorias
eram questionadas e pareciam realmente duvidosas.
Para tentar dar um jeito nessa situação, Descartes pensa que o primeiro passo é adotar
um novo método. Assim, ele estabelece uma série de regras que deveriam ser
cuidadosamente observadas. Seu propósito com isso era oferecer uma forma de
proceder nas investigações filosóficas que pudesse levar a uma compreensão clara e
resultar em teorias sólidas, que possuíssem uma boa comprovação e fossem aceitas por
qualquer pessoa.
Nas palavras do autor, seu propósito era oferecer “regras certas e fáceis que, sendo
observadas exatamente por quem quer que seja, tornem impossível tomar o falso por
verdadeiro e, sem qualquer esforço mental inútil, mas aumentando sempre gradualmente
a ciência, levem ao conhecimento verdadeiro de tudo o que se é capaz de conhecer.”
O método cartesiano
Então, como devemos proceder para chegar ao conhecimento verdadeiro e evitar o erro,
de acordo com Descartes?
O método cartesiano é constituído por quatro regras. Ele mesmo seguiu essas regras ao
desenvolver sua filosofia e pensa que podem ser úteis para os filósofos em geral.
Em seguida, depois da análise, se usa as ideias simples, claras e distintas, para construir
teorias complexas através do raciocínio dedutivo. Essa é a terceira regra do método,
conhecida como síntese. Ao desenvolver sua filosofia, Descartes demonstra o uso dessa
estratégia ao partir da afirmação simples e evidente “penso, logo existo”, para
conhecimentos mais complexos, como o que nosso corpo e alma são distintos ou que
existe Deus.
Descartes acreditava que seguindo esses passos simples, a filosofia poderia chegar a
conclusões indubitáveis sobre o mundo. Foi isso que fez ao desenvolver suas ideias e
ele mesmo pensou ter chegado a uma série de conclusões indubitáveis.
A dúvida radical
O primeiro passo de uma nova filosofia, sujeita o mínimo possível ao erro, é aceitar
apenas crenças que se mostrem claras e distintas. Por isso Descartes começa seu livro
chamado Meditações Metafísicas verificando suas crenças e disposto a colocar no lixo,
por assim dizer, todas aquelas que não se mostrarem claras e distintas.
O primeiro desses argumentos apela ao erro dos sentidos. Esse argumento era muito
usado pelos céticos gregos na antiguidade. Observa que algumas ideias que formamos
sobre o mundo ao nosso redor podem estar erradas porque nossos sentidos nos
enganam. E como não é sensato confiar em quem já nos enganou uma vez, é melhor não
aceitar totalmente o que nos mostram os sentidos. É prudente, portanto, não confiar no
que conhecemos através deles, sobretudo naqueles casos em que mais falham, quando
os objetos estão longe ou a luminosidade não favorece a visão.
No entanto, há crenças que estão totalmente imunes a qualquer erro dessa natureza.
Descartes observa que uma pessoa não poderia ser enganada pelos sentidos sobre o fato
de estar em um determinado lugar, vestida de uma determinada maneira, que tem mãos
e pernas etc. Esse é um conhecimento evidente do qual apenas um louco poderia
duvidar.
Diante disso, Descartes parte para um novo argumento cético: o argumento dos sonhos.
Escreve Descartes
“Quantas vezes ocorreu-me sonhar, durante a noite, que estava [em outro] lugar, que
estava vestido, que estava junto ao fogo, embora estivesse inteiramente nu dentro de
meu leito?”
Sono e vigília são diferentes, mas não raro confundimos as duas coisas. E como
Descartes está disposto a aceitar apenas aquelas verdades claras e distintas, rejeita
também o conhecimento imediato de si como possível ilusão.
Descartes pensa ser possível que tudo o que percebe enquanto escreve seu livro, assim
como toda sua vida, seja uma ilusão criada por um deus enganador.
Por fim, Descartes considera a possível existência de um Deus enganador que chama de
gênio maligno. E se, argumenta o filósofo, existisse um Deus todo-poderoso e malvado
que nos enganasse sistematicamente sobre tudo. Pensamos que dois mais dois é quatro,
essa parece uma verdade clara e distinta. Porém, e se esse gênio maligno estivesse nos
enganando nesse ponto? O mesmo poderia fazer em relação a tudo: o que sabemos
sobre nosso corpo, o lugar onde estamos, as pessoas a nossa volta. Tudo isso poderia ser
uma ilusão criada por esse deus enganador.
E assim chegamos à dúvida radical de Descartes. De fato, seu raciocínio parece não
deixar lugar para qualquer certeza sobre o mundo que nos cerca. De modo que a única
atitude correta é suspender o julgamento sobre todas as coisas.
O método de Descartes o levou a rejeitar inicialmente todas as suas crenças. Depois de
destruir tudo que sabia até então, Descartes faz uma análise cuidadosa para verificar se
não há pelo menos uma crença que se salve. É assim que chega a sua primeira verdade
clara e distinta: penso, logo existo.
Depois de pôr todas as suas crenças em dúvida, Descartes conclui que é um ser que
pensa. Um gênio maligno seria capaz de lhe enganar sobre todo, mas para que o engane
ele deve ser algo. Como esse gênio poderia enganar alguém que não existe? Assim, é
evidente que a ideia “penso, logo existo” é verdadeira.
Descartes afirma, então, que é um ser que pensa, que reflete, que duvida. Essas são
verdades evidentes, inquestionáveis, capazes de resistir até mesmo ao gênio maligno.
Essa é uma verdade fundamental que Descartes usa como o alicerce de toda sua
filosofia. Mas ainda assim é muito pouco o que oferece. Afinal, nesse ponto, o filósofo
tem certeza apenas de que existe. Nada mais. Dado que é possível que exista um gênio
maligno, não pode ter certeza sobre existência de uma mundo exterior, de que existem
pessoas nele. Na verdade, não tem como saber nem como é seu corpo ou mesmo se tem
um corpo. A única coisa que pode afirmar com evidência clara e distinta é que é um ser
que pensa.
Para dar um passo além e sair de si, Descartes terá que de alguma forma mostrar que o
gênio maligno não existe e que podemos confiar em nossa percepção.
Para fazer isso, o filósofo tenta provar que Deus existe e, como Deus é bom, não
permitiria que nossa vida não passasse de uma ilusão.
A existência de Deus
Descartes parte de uma série de ideias simples para mostrar que existe um Deus. Ele
observa, em primeiro lugar, que nada vem do nada, que tudo possui uma causa. Se
chover, houve uma causa que levou à chuva, se uma planta nasceu, isso também teve
uma causa. Além disso, essa causa deve adequada, deve ter tanta realidade quanto o
efeito.
Vamos considerar um exemplo simples desse princípio básico usado por Descartes.
Quando fervemos uma panela de água, ela deve ter recebido esse calor de alguma causa
que tivesse pelo menos tanto calor. Assim, algo que não é quente o suficiente não pode
fazer a água ferver, porque não tem a realidade necessária para produzir esse efeito. Em
outras palavras, algo não pode dar o que não tem. Essa parece ser uma ideia clara e
distinta difícil de questionar.
O próximo passo dado por Descartes é analisar as ideias que traz em sua mente e
verificar se há alguma aí cuja causa não tenha sido ele mesmo. Nesse ponto o filósofo
argumenta que como é uma substância finita, pode ter criado as ideias que possui de
outras substâncias finitas. Então, ele pode ter sido a causa da ideia de sol, de pessoas,
animais etc. Não é necessário que nada disso exista como causa de suas ideias.
Porém, entre essas idéias existe a idéia de Deus. Essa é a idéia de um ser infinito.
Poderia, pergunta o filósofo, ter sido ele a causa dessa idéia? Tirando as consequências
do princípio que a causa deve ter tanta realidade quanto o efeito, Descartes conclui que,
como ser finito, não poderia ter criado a idéia de um ser infinito. A única explicação é,
portanto, que um Deus tenha colocado tais idéias em sua mente. Portanto, Deus tem que
existir.
Descartes precisa mostrar que Deus não é um enganador e tampouco criou o homem
naturalmente propenso ao erro.
Descartes parte novamente nesse caso de idéias que considera claras e distintas. Deus,
para ser Deus, deve ser um ser perfeito. Das mesmas formas que um quadrado, para ser
um quadrado, deve ter quatro lados iguais, Deus, para ser Deus, deve ser um ser
perfeito.
Um ser perfeito poderia ser um gênio maligno? Descartes argumenta que a intenção de
enganar revela malícia e fraqueza, duas características que são claramente
incompatíveis com a perfeição divina. Portanto, Deus não é um ser enganador e
tampouco poderia permitir que um ser dessa natureza existisse. Um deus enganador
seria como um quadrado sem lados iguais ou com apenas três lados.
Deus também não criou o ser humano propenso ao erro. Realmente, ele seria um ser
malvado se tivesse criado os seres humanos de tal forma que estivessem constantemente
sujeitos ao erro. Ao contrário, o erro surge não de um defeito natural, mas do mal uso de
nossa capacidade de raciocinar. Ou seja, surge do fato de não seguirmos o método
proposto por Descartes, por sermos precipitados e adotarmos crenças que não são claras
e distintas.
Descartes, por fim, usa a perfeição divina para garantir que as idéias que intuímos como
claras e distintas são verdadeiras. O raciocínio é o seguinte. Como já vimos, Descartes
pensa que há verdades como “eu existo” que são evidentes, de modo que ser humano
algum seria capaz de negá-las. Ora, se fomos criados por Deus e ele nos fez de forma
que somos incapazes de não acreditar em algo que é falso, então ele é um ser maldoso.
Porém, Deus não é malvado. Por isso, deve ter criado o homem de forma que seja capaz
de reconhecer a verdade e o erro. O fato de uma idéia ser clara e distinta é justamente
um sinal, que Deus colocou na mente humana, de que uma idéia é verdadeira. De modo
que todas as idéias claras e distintas são verdadeiras.
E assim Descartes se afasta do ceticismo a que foi levado pela hipótese do gênio
maligno. Ele conclui, depois de demonstrar que ele próprio existe e que Deus existe,
que o ser humano pode conhecer a realidade porque foi criado por um ser bondoso.
Embora também esteja sujeito ao erro, isso só acontece naquelas situações em que se
aceita como verdadeiras idéias que não são claras e distintas.
Corpo e alma
Descartes é um dos principais representantes do chamado dualismo de corpo e alma.
Isso significa que acreditava que os ser humano são compostos de duas substâncias
diferentes, o corpo e a alma, e que essas substâncias eram independentes, podendo a
alma existir sem o corpo.
O corpo é algo material, faz parte do mundo físico, ocupa lugar no espaço. A alma, por
outro lado, não é material, não faz parte do mundo físico e não ocupa um lugar no
espaço.
Para mostrar que alma e corpo são diferentes, Descartes apresenta uma série de
argumentos. Um desses argumentos afirma que a mente ou a alma é consciente,
enquanto o corpo e tudo que é constituído de matéria não.
Alguns críticos apontaram para o chamado problema mente e corpo. Uma vez que corpo
e alma (ou mente) são substâncias tão diferentes, como é possível interagiram de
alguma forma. Considere um exemplo simples. Se tenho vontade de mover meu braço,
ele se move. Há aqui um processo no qual a vontade, que é um desejo da alma, pode
mover uma parte do corpo. Ora, como algo que é imaterial poderia interagir com uma
coisa que é não é material?
Esse problema foi apontado pela Princesa Elizabeth da Boêmia em uma carta escrita a
Descartes. O filósofo procurou resolvê-lo afirmando que a interação ocorria na glândula
pineal. Era aí que ocorria a junção entre corpo e alma. O problema da resposta é que, na
verdade, não responde a pergunta. A questão não é onde ocorre a interação entre mente
e corpo, mas como.
Muitos críticos acreditam que essa é uma falha séria na filosofia de Descartes e qualquer
perspectiva que defenda a existência de substâncias separadas constituindo o ser
humano.
E quanto aos animais? Também possuem alma? O que os diferencia de seres humanos?
Para Descartes, animais possuem apenas um corpo, não possuem mente ou alma. Por
isso, seria possível fazer uma máquina que, se tivesse aparência externa de um animal,
seria idêntica ao animal real.
A conclusão de que animais não possuem alma levou Descartes a duas conclusões
adicionais. Animais são incapazes de falar e raciocinar. Até é possível que falem, como
um papagaio faz ao repetir o que ouve, porém esse e nenhum outro animal é capaz de
atribuir significado ao que está dizendo.
Em segundo lugar, animais não sentem dor ou qualquer outra sensação. É verdade que
eles aparentam sentir dor quando são agredidos. Porém, isso não passa de uma reação
mecânica a um estímulo externo. Embora um cachorro possa se contorcer enquanto
sobre uma violência, é uma reação de seu corpo que não é acompanhada de uma
sensação interior de dor.
Assim, raciocinar e ter sensações são privilégios de seres humanos, que possuem uma
alma. Os animais, ao contrário, por não possuírem alma, são incapazes de uma coisa e
outra.
Moral provisória
Descartes não tem uma filosofia moral desenvolvida como a de Aristóteles, Kant ou o
utilitarismo de Stuart Mill. Suas ideias sobre o tema se reduzem algumas regras que
adota de maneira provisória enquanto trabalha em suas investigações.
A dúvida metódica não deve levar a uma paralisia da ação. Enquanto reflete sobre uma
série de questões, o filósofo deve continuar vivendo, se relacionando com outras
pessoas.
É para isso que Descartes adota aquilo que chama de moral provisória. Essa moral
possui “três ou quatro regras”:
Livros de Descartes
Discurso sobre o método (1637)
Discurso do Método foi o primeiro livro publicado de Descartes. O autor acreditava no
potencial que o uso da razão nos mais variados assuntos tinha de melhor a vida humana.
Começa o livro dizendo que, embora todos os seres humanos possuam a capacidade de
raciocinar e chegar por si mesmo à verdade, essa não é bem usada. Propõe então seu
“Discurso” como uma espécie de manual de uso da razão. O livro apresenta seu método
da dúvida e uma série de conclusões a que chegou através do uso desse método.
Assim como os demais livros de Descartes, o texto em primeira pessoa torna a leitura
bastante agradável. Nos vemos, como leitores, na condição de um amigo íntimo ao qual
o autor revela seus pensamentos mais valiosos.
Além disso, por ter sido escrito para um público amplo, não apenas para filósofos, o
leitor atento não encontrará grandes dificuldades na leitura.
A primeira era obedecer às leis e costumes do meu país, respeitando sempre a religião
na qual Deus me deu a graça de ser educado desde a infância e me conduzindo em todas
as outras coisas segundo as opiniões mais moderadas e mais afastadas do excesso que
fossem comumente aceitas na prática pelos mais sensatos dentre aqueles com quem teria
que viver. Pois, começando desde então por não considerar minhas próprias opiniões
como coisa alguma, pois queria recolocá-las todas em questão, estava seguro de não
poder seguir outras melhores que as dos mais sensatos. E ainda que haja talvez gente tão
sensata entre os persas ou chineses como entre nós, parecia-me que o mais útil era me
comportar segundo aqueles com os quais teria que viver; e que, para saber quais eram
verdadeiramente suas opiniões, eu deveria antes prestar atenção no que praticavam do
que no que diziam; não apenas porque, com a corrupção dos nossos costumes, haja
pouca gente disposta a dizer tudo aquilo em que acredita, mas também porque vários
inclusive o ignoram; pois como a ação do pensamento pela qual se acredita numa coisa
é diferente daquela pela qual se sabe que se acredita nessa coisa, uma existe com
frequência sem a outra. E entre várias opiniões igualmente aceitas eu só escolhia as
mais moderadas; tanto porque são sempre as mais cômodas na prática e possivelmente
as melhores, costumando todo excesso ser ruim, como também para me desviar menos
do verdadeiro caminho, caso falhasse, do que se, escolhendo um dos extremos, devesse
ter seguido o outro. E, particularmente, colocava entre os excessos todas as promessas
pelas quais se cerceia a liberdade de alguma coisa. Não que desaprovasse as leis que
para remediar a inconstância dos espíritos fracos permitem, quando se tem um bom
propósito ou mesmo, para garantia do comércio, um propósito apenas indiferente, que
se façam votos ou contratos que obrigam a perseverar nele; mas por não ver no mundo
coisa alguma que permanecesse sempre no mesmo estado e, no meu caso particular,
prometer aperfeiçoar cada vez mais meus juízos e não em absoluto piorá-los, pensaria
estar cometendo uma grande falta contra o bom senso se, pelo fato de antes aprovar
alguma coisa, fosse obrigado a tomá-la como boa mesmo depois que talvez tivesse
deixado de sê-lo ou quando não mais a considerasse assim.
Minha segunda máxima era a de ser o mais firme e o mais decidido possível em minhas
ações e de seguir as opiniões as mais duvidosas, uma vez me tivesse resolvido por elas,
com a mesma constância que o faria se fossem muito seguras, imitando nisso os
viajantes que, vendo-se perdidos numa floresta, não devem ficar dando voltas, a errar de
um lado para o outro, e muito menos parar num lugar, mas caminhar sempre o mais reto
possível numa mesma direção e não mudá-la de modo algum por motivos frágeis,
mesmo que talvez de início apenas o acaso os tenha levado a escolhê-la: porque assim,
se não vão exatamente aonde desejam, chegarão pelo menos afinal a algum lugar onde
provavelmente estarão melhor que no meio de uma floresta. De forma que, não
aceitando comumente as ações da vida nenhuma demora, é verdade bem certa que, se
não estiver em nosso poder discernir as opiniões mais verdadeiras, devemos seguir as
mais prováveis; e mesmo, ainda que não notemos mais probabilidade numas do que
noutras, devemos contudo nos decidir por algumas e considerá-las depois não mais
como duvidosas, uma vez que dizem respeito à prática, mas como muito verdadeiras e
certas, pois assim se considera a razão que nos fez optar por elas. E isso foi desde então
capaz de me livrar de todos os remorsos e arrependimentos que costumam agitar as
consciências desses espíritos fracos e vacilantes que se deixam levar com inconstância a
praticar, como boas, coisas que julgam mais tarde serem más.
Minha terceira máxima era tratar sempre de vencer a mim mesmo e não ao destino,
mudando antes meus desejos que a ordem do mundo, e no geral me acostumar a crer
que nada está inteiramente em nosso poder além dos nossos pensamentos; de modo que
depois de ter dado o melhor de nós em coisas que nos são exteriores, tudo o que
deixamos de conseguir é, no que nos diz respeito, absolutamente impossível. E isso já
me parecia suficiente para impedir que desejasse no futuro nada que não conseguisse e
para ficar dessa forma contente. Pois não se aplicando naturalmente nossa vontade a
desejar senão as coisas que nosso entendimento lhe apresenta de alguma forma como
possíveis, é certo que, se consideramos todos os bens exteriores a nós como igualmente
distantes do nosso poder, não lamentaremos a falta daqueles que parecem devidos ao
nosso nascimento, quando formos privados deles sem culpa nossa, mais do que
lamentamos não possuir os reinos da China ou do México; e fazendo da necessidade
virtude, como se diz, não desejaremos ter saúde estando doentes ou ser livres estando
presos, mais do que desejamos atualmente ter corpos de uma matéria tão pouco
corruptível quanto o diamante ou asas para voar como os pássaros. Mas admito que é
necessário um longo exercício e uma meditação persistente para se acostumar a encarar
todas as coisas sob esse ângulo; e creio que era principalmente nisso que consistia o
segredo desses filósofos que puderam outrora abstrair-se do império da fortuna e, apesar
das dores e da pobreza, disputar felicidade aos seus deuses. Pois, ocupando-se
incessantemente em considerar os limites que lhes eram prescritos pela natureza,
persuadiam-se de modo tão perfeito que nada estava em seu poder além dos próprios
pensamentos que só isso era suficiente para impedi-los de ter qualquer afeição por
outras coisas; e dispunham deles de forma tão absoluta que tinham nisso alguma razão
de se considerar mais ricos, mais poderosos, mais livres e mais felizes que quaisquer
dos outros homens que, não tendo essa filosofia, por mais favorecidos que sejam pela
natureza e a fortuna, jamais dispõem assim de tudo o que querem.
Por fim, para conclusão dessa moral, decidi fazer um exame das diversas ocupações que
têm os homens nesta vida e tentar escolher a melhor; e sem pretender dizer nada das
ocupações dos outros, pensei que não podia fazer melhor que continuar naquela mesma
em que estava, isto é, empregar toda a minha vida a cultivar a razão e avançar o máximo
que pudesse no conhecimento da verdade, seguindo o método que me havia prescrito.
Mas, como um homem que caminha sozinho e nas trevas, decidi avançar tão lentamente
e ser tão circunspecto em tudo que, se progredia muito pouco, evitava pelo menos cair.
Não quis sequer começar rejeitando completamente qualquer das opiniões que se
infiltraram outrora em minha crença sem terem sido aí introduzidas pela razão antes de
empregar bastante tempo no projeto da obra que empreendia e na busca do verdadeiro
método para chegar ao conhecimento de todas as coisas de que o meu espírito fosse
capaz.
[…] E como a multiplicidade de leis fornece muitas vezes desculpas aos vícios, de
modo que um Estado é bem mais regrado se, tendo bem poucas, elas são estritamente
observadas, assim eu julguei que, em vez do grande número de preceitos de que se
compõe a lógica, me bastariam os quatro seguintes, contanto que tomasse a firme e
constante resolução de não deixar de observá-los uma vez sequer.
O primeiro era não tomar jamais coisa alguma por verdadeira a não ser que a
conhecesse evidentemente como tal: quer dizer, evitar cautelosamente a precipitação e a
prevenção; e só incluir em meus juízos o que se me apresentasse ao espírito de modo tão
claro e nítido que não tivesse como colocá-lo em dúvida.
A Meditação que fiz ontem encheu-me o espírito de tantas dúvidas, que doravante não
está mais em meu alcance esquecê-las. E, no entanto, não vejo de que maneira poderia
resolvê-las; e, como se de súbito tivesse caído em águas muito profundas, estou de tal
modo surpreso que não posso nem firmar meus pés no fundo, nem nadar para me
manter à tona. Esforçar-me-ei, não obstante, e seguirei novamente a mesma via que
trilhei ontem, afastando-me de tudo em que poderia imaginar a menor dúvida, da
mesma maneira como se eu soubesse que isto fosse absolutamente falso; e continuarei
sempre nesse caminho até que tenha encontrado algo de certo, ou, pelo menos, se outra
coisa não me for possível, até que tenha aprendido certamente que não há nada no
mundo de certo.
Arquimedes, para tirar o globo terrestre de seu lugar e transportá-lo para outra parte, não
pedia nada mais exceto um ponto que fosse fixo e seguro. Assim, terei o direito de
conceber altas esperanças, se for bastante feliz para encontrar somente uma coisa que
seja certa e indubitável.
Suponho, portanto, que todas as coisas que vejo são falsas; persuado-me de que nada
jamais existiu de tudo quanto minha memória repleta de mentiras me representa; penso
não possuir nenhum sentido; creio que o corpo, a figura, a extensão, o movimento e o
lugar são apenas ficções de meu espírito. O que poderá, pois, ser considerado
verdadeiro? Talvez nenhuma outra coisa a não ser que nada há no mundo de certo.
Mas que sei eu, se não há nenhuma outra coisa diferente das que acabo de julgar
incertas, da qual não se possa ter a menor dúvida? Não haverá algum Deus, ou alguma
outra potência, que me ponha no espírito tais pensamentos? Isso não é necessário; pois
talvez seja eu capaz de produzi-los por mim mesmo. Eu então, pelo menos, não serei
alguma coisa? Mas já neguei que tivesse qualquer sentido ou qualquer corpo. Hesito no
entanto, pois que se segue daí? Serei de tal modo dependente do corpo e dos sentidos
que não possa existir sem eles? Mas eu me persuadi de que nada existia no mundo, que
não havia nenhum céu, nenhuma terra, espíritos alguns, nem corpos alguns; não me
persuadi também, portanto, de que eu não existia? Certamente não, eu existia sem
dúvida, se é que eu me persuadi, ou, apenas, pensei alguma coisa. Mas há algum, não
sei qual, enganador mui poderoso e mui ardiloso que emprega toda a sua indústria em
enganar-me sempre. Não há pois dúvida alguma de que sou, se ele me engana; e, por
mais que me engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar
ser alguma coisa. De sorte que, após ter pensado bastante nisto e de ter examinado
cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que esta
proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira, todas as vezes que a
enuncio ou que a concebo em meu espírito.
Descartes, René. Meditações metafísicas. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2016.
Agora, pois, que meu espírito está livre de todos os cuidados, e que consegui um
repouso assegurado numa pacífica solidão, aplicar-me-ei seriamente e com liberdade em
destruir em geral todas as minhas antigas opiniões. Ora, não será necessário, para
alcançar esse desígnio, provar que todas elas são falsas, o que talvez nunca levasse a
cabo; mas, uma vez que a razão já me persuade de que não devo menos cuidadosamente
impedir-me de dar crédito às coisas que não são inteiramente certas e indubitáveis do
que às que nos parecem manifestamente ser falsas, o menor motivo de dúvida que eu
nelas encontrar bastará para me levar a rejeitar todas. E, para isso, não é necessário que
examine cada uma em particular, o que seria um trabalho infinito; mas, visto que a ruína
dos alicerces carrega necessariamente consigo todo o resto do edifício, dedicar-me-ei
inicialmente aos princípios sobre os quais todas as minhas antigas opiniões estavam
apoiadas.
Tudo o que recebi, até presentemente, como o mais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos
sentidos ou pelos sentidos: ora, experimentei algumas vezes que esses sentidos eram
enganosos, e é de prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma
vez.
Mas, ainda que os sentidos nos enganem às vezes, no que se refere às coisas pouco
sensíveis e muito distantes, encontramos talvez muitas outras, das quais não se pode
razoavelmente duvidar, embora as conhecêssemos por intermédio deles: por exemplo,
que eu esteja aqui, sentado junto ao fogo, vestido com um chambre, tendo este papel
entre as mãos e outras coisas desta natureza. E como poderia eu negar que estas mãos e
este corpo sejam meus? A não ser talvez que eu me compare a esses insensatos, cujo
cérebro está de tal modo perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bile que
constantemente asseguram que são reis quando são muito pobres; que estão vestidos de
ouro e de púrpura quando estão inteiramente nus; ou imaginam ser cântaros ou ter um
corpo de vidro. Mas quê? São loucos e eu não seria menos extravagante se me guiasse
por seus exemplos.
Todavia, devo aqui considerar que sou homem e, por conseguinte, que tenho o costume
de dormir e de representar, em meus sonhos, as mesmas coisas, ou algumas vezes
menos verossímeis, que esses insensatos em vigília. Quantas vezes ocorreu-me sonhar,
durante a noite, que estava neste lugar, que estava vestido, que estava junto ao fogo,
embora estivesse inteiramente nu dentro de meu leito? Parece-me agora que não é com
olhos adormecidos que contemplo este papel; que esta cabeça que eu mexo não está
dormente; que é com desígnio e propósito deliberado que estendo esta mão e que a
sinto: o que ocorre no sono não parece ser tão claro nem tão distinto quanto tudo isso.
Mas, pensando cuidadosamente nisso, lembro-me de ter sido muitas vezes enganado,
quando dormia, por semelhantes ilusões. E, detendo-me neste pensamento, vejo tão
manifestamente que não há quaisquer indícios concludentes, nem marcas assaz certas,
por onde se possa distinguir nitidamente a vigília do sono, que me sinto inteiramente
pasmado: e meu pasmo é tal que é quase capaz de me persuadir de que estou dormindo.
Suponhamos, pois, agora, que estamos adormecidos e que todas essas particularidades,
a saber, que abrimos os olhos, que mexemos a cabeça, que estendemos as mãos, e coisas
semelhantes, não passam de falsas ilusões; e pensemos que talvez nossas mãos, assim
como todo o nosso corpo, não são tais como os vemos. Todavia, é preciso ao menos
confessar que as coisas que nos são representadas durante o sono são como quadros e
pinturas, que não podem ser formados senão à semelhança de algo real e verdadeiro; e
que assim, pelo menos, essas coisas gerais, a saber, olhos, cabeça, mãos e todo o resto
do corpo, não são coisas imaginárias, mas verdadeiras e existentes.
Todavia, há muito que tenho no meu espírito certa opinião de que há um Deus que tudo
pode e por quem fui criado e produzido tal como sou. Ora, quem me poderá assegurar
que esse Deus não tenha feito com que não haja nenhuma terra, nenhum céu, nenhum
corpo extenso, nenhuma figura, nenhuma grandeza, nenhum lugar e que, não obstante,
eu tenha os sentimentos de todas essas coisas e que tudo isso não me pareça existir de
maneira diferente daquela que eu vejo? E, mesmo, como julgo que algumas vezes os
outros se enganam até nas coisas que eles acreditam saber com maior certeza, pode
ocorrer que Deus tenha desejado que eu me engane todas as vezes em que faço a adição
de dois mais três, ou em que enumero os lados de um quadrado, ou em que julgo
alguma coisa ainda mais fácil, se é que se pode imaginar algo mais fácil do que isso.
Mas pode ser que Deus não tenha querido que eu seja decepcionado desta maneira, pois
ele é considerado soberanamente bom. Todavia, se repugnasse à sua bondade fazer-me
de tal modo que eu me enganasse sempre, pareceria também ser-lhe contrário permitir
que eu me engane algumas vezes e, no entanto, não posso duvidar de que ele me
permita.
Haverá talvez aqui pessoas que preferirão negar a existência de um Deus tão poderoso a
acreditar que todas as outras coisas são incertas. Mas não lhes resistamos no momento e
suponhamos, em favor delas, que tudo quanto aqui é dito de um Deus seja uma fábula.
Todavia, de qualquer maneira que suponham ter eu chegado ao estado e ao ser que
possuo, quer o atribuam a algum destino ou fatalidade, quer o refiram ao acaso, quer
queiram que isto ocorra por uma contínua série e conexão das coisas, é certo que, já que
falhar e enganar-se é uma espécie de imperfeição, quanto menos poderoso for o autor a
que atribuírem minha origem, tanto mais será provável que eu seja de tal modo
imperfeito que me engane sempre. Razões às quais nada tenho a responder, mas sou
obrigado a confessar que, de todas as opiniões que recebi outrora em minha crença
como verdadeiras, não há nenhuma da qual não possa duvidar atualmente, não por
alguma inconsideração ou leviandade, mas por razões muito fortes e maduramente
consideradas: de sorte que é necessário que interrompa e suspenda doravante meu juízo
sobre tais pensamentos, e que não mais lhes dê crédito, como faria com as coisas que
me parecem evidentemente falsas, se desejo encontrar algo de constante e de seguro nas
ciências. […]
Suporei, pois, que há não um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte da verdade, mas
certo gênio maligno, não menos ardiloso e enganador do que poderoso, que empregou
toda a sua indústria em enganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as
figuras, os sons e todas as coisas exteriores que vemos são apenas ilusões e enganos de
que ele se serve para surpreender minha credulidade. Considerar-me-ei a mim mesmo
absolutamente desprovido de mãos, de olhos, de carne, de sangue, desprovido de
quaisquer sentidos, mas dotado da falsa crença de ter todas essas coisas. Permanecerei
obstinadamente apegado a esse pensamento; e se, por esse meio, não está em meu poder
chegar ao conhecimento de qualquer verdade, ao menos está ao meu alcance suspender
meu juízo. Eis por que cuidarei zelosamente de não receber em minha crença nenhuma
falsidade, e prepararei tão bem meu espírito a todos os ardis desse grande enganador
que, por poderoso e ardiloso que seja, nunca poderá impor-me algo.
(…) embora [a ciência das paixões] seja uma matéria cujo conhecimento foi sempre
muito procurado, e ainda que não pareça ser das mais difíceis, porquanto cada qual,
sentindo-as em si próprio, não necessita tomar alhures qualquer observação para lhes
descobrir a natureza, todavia o que os antigos delas ensinaram é tão pouco, e na maior
parte tão pouco crível, que não posso alimentar qualquer esperança de me aproximar da
verdade, senão distanciando-me dos caminhos que eles trilharam. (. ..) e, para começar,
considero que tudo quanto se faz ou acontece de novo é geralmente chamado pelos
filósofos uma paixão em relação ao sujeito a quem acontece, e uma ação com respeito
àquele que faz com que aconteça; de sorte que, embora o agente e o paciente sejam
amiúde muito diferentes, a ação e a paixão não deixam de ser sempre uma mesma coisa
com dois nomes, devido aos dois sujeitos diversos aos quais podemos relacioná-la.
Textos 2
Trecho de As paixões da alma
Observo (.. .) que os objetos que movem os nossos sentidos não provocam em nós
diversas paixões devido a todas as diversidades que existem neles, mas somente devido
às diversas formas pelas quais nos podem prejudicar ou beneficiar, ou então, em geral,
ser importantes; e que o emprego de todas as paixões consiste apenas no fato de
disporem a alma a querer coisas que a natureza dita serem úteis a nós, e a persistir nessa
vontade afim de enumerá-las Ias paixões], cumpre apenas examinar, por ordem, de
quantas maneiras diferentes que nos importam podem os nossos sentidos ser movidos
por seus objetos (…).
Quando o primeiro contato com algum objeto nos surpreende, e quando nós o julgamos
novo, ou muito diferente do que até então conhecíamos ou do que supúnhamos devia
ser, isso nos leva a admirá-lo e a nos espantarmos com ele; e como isso pode acontecer
antes de sabermos de algum modo se esse objeto nos é conveniente ou não, parece-me
que a admiração é a primeira de todas as paixões; e ela não tem contrário, porquanto, se
o objeto que se apresenta nada tem em si que nos surpreenda, não somos de maneira
nenhuma afetados por ele e nós o consideramos sem paixão.
Ora, todas as paixões precedentes podem ser excitadas em nós sem que percebamos de
modo algum se o objeto que nos provoca é bom ou mau. Mas, quando uma coisa se nos
apresenta como boa em relação a nós, isto é, como nos sendo conveniente, isso nos leva
a ter amor por ela; e quando se nos apresenta como má ou nociva, isso nos incita ao
ódio.
Da mesma consideração do bem e do mal nascem todas as outras paixões; mas, a fim de
colocá-las por ordem, distingo os tempos e, considerando que elas nos levam a olhar o
futuro muito mais do que o presente ou o passado, começo pelo desejo. Pois não
somente quando se deseja adquirir um bem que ainda não se possui, ou evitar um mal
que se julga passível de sobrevir, mas também quando se deseja apenas a conservação
de um bem ou a ausência de um mal, que é tudo aquilo a que essa paixão pode estender-
se, é evidente que ela encara sempre o futuro.
Fonte: DESCARTES, Renè. As paixões da alma, Parte segunda, Arts. 52-7, 61.
Textos 3
Trecho de As paixões da alma
E agora que as conhecemos todas as paixões, temos muito menos motivo de as temer do
que tínhamos antes; pois verificamos que são todas boas por natureza e só devemos
evitar o seu mau uso ou os seus excessos (…).
Mas o que sempre se pode fazer em tal ocasião, e que eu julgo poder apresentar aqui
como o remédio mais geral e o mais fácil de praticar contra todos os excessos paixões,
é, sempre que se sinta o sangue assim agitado, advertir e lembrar-se de que tudo quanto
se apresenta à imaginação tende a enganar a alma e a fazer com que as razões
empregadas em persuadir o objeto de sua paixão lhe pareçam muito mais fortes do que
são, e as que servem para dissuadir muito mais fracas. (…)
Art. 212. Que é somente delas que depende todo bem e todo mal desta vida.
De resto, a alma pode ter seus prazeres à parte; mas, quanto aos que lhe são comuns
com o corpo, dependem inteiramente das paixões: de modo que os homens que elas
podem mais emocionar são capazes de apreciar mais doçura nesta vida. É verdade que
também podem encontrar nela mais amargura, quando não sabem bem empregá-las, e
quando a fortuna lhes é contrária; mas a sabedoria é principalmente útil neste ponto,
porque ensina a gente a tornar-se de tal forma seu senhor e a manejá-las com tal
destreza que os males que causam são muito suportáveis, tirando-se mesmo certa alegria
de todos.
Os seres humanos, no entanto, são os únicos que, além de corpos, também possuem
mentes. De acordo com Descartes, a mente (que é idêntica à alma) é o seu eu “real”. Se
você perder um braço ou uma perna, seu mecanismo corporal estará comprometido, mas
você ainda é uma pessoa tão completa quanto antes. Porém, se perder sua mente, não
será mais você, deixará de existir.
Se duas coisas não possuem propriedades exatamente idênticas, elas não podem ser
idênticas.
Descartes ofereceu esse argumento como uma prova lógica de que a mente e o corpo
não poderiam ser a mesma coisa.
Este argumento tem problemas, no entanto. A propriedade de estar sujeito a dúvida não
é o mesmo tipo de propriedade que ter 1,80 metros de altura ou ser careca. O fato de eu
poder duvidar de algo é tanto uma propriedade psicológica minha quanto é o objeto da
minha dúvida. Para ver as dificuldades com esse argumento, considere o seguinte
argumento que tem essencialmente a mesma forma:
Se duas coisas não possuem propriedades exatamente idênticas, elas não podem ser
idênticas.
Portanto, o café que não tenho certeza se está quente não é idêntico ao café que é
escuro.
Assim, é possível que Descartes tenha mais certeza sobre sua mente do que sobre seu
corpo, simplesmente porque ele não entende a natureza de cada um completamente o
suficiente para ver que eles são idênticos.
O argumento da divisibilidade
O argumento a seguir faz uso da mesma forma argumentativa de antes, mas evita a
dificuldade de lidar com nossas atitudes psicológicas.
O corpo é divisível.
A mente é indivisível.
Se duas coisas não possuem propriedades exatamente idênticas, elas não podem ser
idênticas.
Sem fazer essa suposição, podemos simplesmente olhar para nossa experiência mental e
descobrir que, qualquer que seja a natureza da mente, não é o tipo de coisa que tem
partes ou pode ser dividida? Ou a segunda premissa de Descartes é questionável? É
possível que a mente tenha divisões ou partes distinguíveis em algum sentido?
Ainda outro argumento pode ser encontrado nos escritos de Descartes, que é baseado no
fato de que sua mente é uma coisa pensante enquanto seu corpo não é. Pensar para
Descartes não significa simplesmente raciocínio. Descartes usa a palavra “pensamento”
para se referir a toda a gama de estados conscientes como conhecer, duvidar, desejar,
querer, imaginar, sentir e assim por diante.
Portanto, seu ponto é que a mente é diferente de qualquer coisa no mundo natural,
porque ela é consciente. Em contraste, Descartes diz que “quando eu examino a
natureza do corpo, não encontro absolutamente nada nele que tenha sabor de
pensamento.”
Descartes estava bem ciente desse problema; no entanto, suas tentativas de responder a
essa pergunta foram a parte menos satisfatória de sua filosofia. Em seus dias, os
cientistas estavam cientes da existência da glândula pineal, mas não sabiam o que a
glândula fazia.
Então, Descartes tinha um órgão (a glândula pineal) cuja função era desconhecida. Ele
tinha uma função (interação corpo-mente) cuja localização era desconhecida. Ele
concluiu que poderia resolver ambos os problemas com uma hipótese: a glândula pineal
é onde a mente e o corpo interagem. Descartes achava que a glândula pineal era afetada
por “espíritos vitais” e, por meio desse intermediário, a alma podia alterar os
movimentos do cérebro, que então afetavam o corpo e vice-versa.
Francis bacon
Francis Bacon
Introdução
Sir Francis Bacon (1561-1626) foi um Inglês filósofo, estadista, ensaísta e cientista do
período final da Renascença. Ele era um político astuto e ambicioso no clima político
turbulento da Inglaterra do período. Mas, apesar de suas negociações nefastas e
constantes batalhas contra dívidas, também era possuidor de uma mente brilhante.
Vida
Francis Bacon nasceu em Londres, Inglaterra, em 22 de janeiro de 1561. Seu pai era Sir
Nicholas Bacon, Lorde Guardião do Grande Selo sob a Rainha Elizabeth I. Sua mãe era
Ann Cooke, segunda esposa de Sir Nicholas, filha de Sir Anthony Cooke e cunhada de
William Cecil (conselheiro-chefe da rainha Elizabeth). Ele foi criado como um
cavalheiro inglês e teve muitos contatos na corte. Era o mais novo dos cinco filhos e três
filhas de seu pai.
A educação inicial de Bacon foi realizada em casa devido à má saúde, que o atormentou
durante toda a sua vida. Entrou no Trinity College, em Cambridge, aos 12 anos e foi lá
que conheceu a rainha, que ficou impressionada com seu intelecto precoce. Em 1576, e
entrou brevemente na classe alta da Grey’s Inn, mas logo teve a oportunidade de viajar
(com Sir Amias Paulet, o embaixador inglês em Paris) pela França, Itália e Espanha,
incluindo algum tempo na Universidade de Poitiers na França. Houve rumores
infundados de que ele se envolveu romanticamente durante esse período com
Marguerite de Valois, irmã do rei francês).
Em fevereiro de 1579 ele retornou à Inglaterra com a morte súbita de seu pai. Embora
sua herança fosse muito menor do que o previsto, ele retornou à Grey’s Inn para estudar
direito a fim de se sustentar. Ele foi admitido como um advogado em 1582, mas suas
ambições (que ele descreveu como descobrir a verdade, servir seu país e a sua igreja) o
levaram à política . Ele serviu como membro do Parlamento para o Melcome Regis em
1584, e depois Taunton (1586), Southampton e Ipswich (1597), Liverpool (1589),
Middlesex (1593) e St Albans e Ipswich (1604).
Sua oposição inicial ao programa tributário de Elizabeth retardou seu avanço político,
mas, com a ajuda de seu poderoso tio, lorde Burghley, subiu rapidamente na profissão
de advogado. Nesse período, ele também se familiarizou com o favorito da rainha
Elizabeth, Robert Devereux, 2º Conde de Essex, e, em 1591, agia como conselheiro
confidencial do conde. Ele continuou a usar seus contatos para avançar em sua carreira,
incluindo uma nomeação para o Conselho da Rainha em 1596, embora seus problemas
financeiros continuassem e, em 1598, ele foi brevemente preso por suas dívidas
incobráveis. Ele era um político astuto e conseguiu cortar seus laços com o duque de
Essex antes de Essex ser executado por traição em 1601 (inclusive argumentando
publicamente contra seu antigo benfeitor).
Com a ascensão do rei Jaime I após a morte de Isabel, em 1603, a estrela de Bacon
continuou a subir e ele foi condecorado no mesmo ano. Em 1606, ele se casou com
Alice Barnham, a filha de 14 anos de um parlamentar londrino bem-relacionado (mais
tarde ele a deserdou pela a descoberta de sua infidelidade). Apesar da renda generosa de
seus vários cargos, as dívidas antigas e seus métodos perdulários o mantinham
endividado. Conseguiu negociar os obstáculos políticos do reinado do Rei James e
continuou a receber o favor do rei, embora nem sempre fosse tão popular com seus
pares.
Desde sua morte, surgiram várias controvérsias e teorias de conspiração sobre Bacon,
incluindo sua possível homossexualidade, a possibilidade de que ele (e também o conde
de Essex) tenha sido o filho ilegítimo e não reconhecido da rainha Elizabeth, que ele era
o verdadeiro autor de muitas das maiores peças de William Shakespeare, que ele estava
profundamente envolvido com várias sociedades secretas, como os rosacruzes e maçons
e que ele fingiu sua própria morte.
A teoria dos quatro ídolos. No entanto, ele advertiu que antes de iniciar essa indução,
o filósofo deve libertar sua mente de certas falsas noções ou tendências que distorcem a
verdade, que ele caracterizou como os quatro ídolos: os ídolos da tribo, da caverna, do
teatro e do foro.
Saber é poder. A expressão “scientia potentia est” é uma expressão latina que significa
saber é poder. Bacon foi um dos pensadores a afirmar a importância do conhecimento
científico para melhorar a condição de vida da humanidade. É através do conhecimento
da natureza que é possível controlá-la.
Principais livros publicados
1605 – Da Proficiência e o Avanço do Conhecimento Divino e
Humano. Publicado em 1605, o Avanço do conhecimento dividiu o
entendimento humano em três partes: história, relacionada à faculdade de
memória do homem; poesia, relacionada com a faculdade de imaginação do
homem; e filosofia, pertencente à faculdade da razão do homem. Ele então
dividiu essas três partes com base em três aspectos: divino, humano e natural. As
classificações usadas em o Avanço do Conhecimento inspiraram a estrutura
taxonômica da Enciclopédia, altamente influente, publicada na França entre
1751 e 1772.
1620 – Novum Organum. Na época de Francis Bacon e por muitos séculos
antes dele, a ciência ou filosofia natural na Europa era dominada pelas obras de
Aristóteles. A maioria dos estudiosos reverenciava Aristóteles o que levou a
estagnação do desenvolvimento da ciência. A obra mais influente de Francis
Bacon, o Novum Organum Scientiarum (“novo instrumento da ciência”) foi
publicada em 1620. Nela, Bacon rejeitou a filosofia aristotélica e desenvolveu
seu famoso método baconiano, que usava o raciocínio indutivo para chegar a
verdades gerais a partir da observação cuidadosa de acontecimentos particulares.
Este método foi influente no desenvolvimento do método científico na ciência
moderna. A ênfase de Bacon no uso de experimentos é uma das razões pelas
quais ele é considerado “o Pai da Filosofia Experimental.”
1623 – History of Life and Death. Em 1623, Bacon História da Vida e Morte
foi publicada. Este trabalho é um tratado sobre medicina que examina as causas
da degeneração do corpo e da velhice, levando em consideração diferentes
análises, teorias e experimentos, para encontrar soluções para prolongar a vida.
1627 – A nova Atlântida. Escrito em 1623 e publicado após sua morte em
1627, expressava as aspirações e ideais de Bacon na forma de uma utopia
idealizada e uma visão do futuro da descoberta e do conhecimento humanos.
Nele, ele imaginou uma terra onde haveria maiores direitos para as mulheres, a
abolição da escravidão, a eliminação das prisões dos devedores (uma nota
bastante pessoal), a separação entre igreja e estado e a liberdade de expressão
religiosa e política. Inclui sua ideia de uma instituição cooperativa de pesquisa,
que foi fundamental para os planos e preparativos para a criação da Royal
Society e importante para a ciência no século XVII.
John Locke
Biografia
John Locke nasceu em uma família de classe média em 28 de agosto de 1634, em
Wrington, Inglaterra. Seu pai trabalhava como advogado no governo local e possuía
propriedades que produziam uma renda modesta.
Em 1665, Locke conheceu e tornou-se amigo de Lord Ashley, um estadista que tinha
vindo a Oxford para tratamento médico. Os dois se tornaram amigos e Ashley convidou
Locke para se juntar a ele em Londres na Exeter House como seu médico pessoal.
Locke concordou e partiu para Londres em 1667, onde viveu pelos oito anos seguintes.
Locke esteve exilado durante um longo tempo por perseguição política. É ao final desse
período que publica suas obras mais importantes: Um ensaio sobre o entendimento
humano (1690), no qual apresenta sua teoria do conhecimento, e Dois tratados sobre o
governo civil (1690), onde expõe sua filosofia política.
Alguns defensores das ideias inatas acreditavam que parte dos conteúdos existentes em
nossas mentes, como a ideia de Deus, normas morais, o princípio de não-contradição, já
nascem conosco.
Locke critica essa teoria afirmando que a crença de que a ideia de Deus ou princípios
morais são inatos não se sustenta se considerarmos que algumas culturas sequer sabem
o que é Deus e têm costumes muito diferentes. Ora, se de fato fossem inatas, tais ideias
deveriam estar presentes em todos os seres humanos.
Inicialmente Locke acreditava que a religião deveria ser definida pelo Estado, de modo
que houvesse uma única fé e ninguém possuísse liberdade nesse campo. Porém, depois
de uma viagem ao exterior, onde observou uma comunidade em que diferentes seitas
religiosas viviam em harmonia, mudou suas ideias, o que o levou a escrever Cartas
sobre a tolerância (1689), livro no qual defende a tolerância e a liberdade religiosa.
Além da liberdade religiosa, Locke também foi defensor de uma série de outros
aspectos do liberalismo político.
Em primeiro lugar, era contra a ideia de direito divino dos reis. A teoria do direito
divino dos reis era usada na época para justificar a monarquia, pois de acordo com essa
teoria algumas pessoas têm o direito de governar, já que foram escolhidas por Deus,
enquanto outras têm o dever de obedecer.
Para resolver esses inconvenientes é que optam por criar um governo para promover o
bem comum, de acordo com Locke. Isso faz dele um filósofo contratualista. Para esses
pensadores, o governo surge não de um comando divino, mas do consentimento da
população. Somente um contrato social garante legitimidade ao governo.
Em segundo lugar, Locke defendia um governo constitucional. Isso quer dizer que o
governo não está acima das leis, ao contrário, também deve respeitá-las. E essas leis,
para o filósofo, devem garantir o direito à vida, à propriedade e à liberdade. Caso o
governo desrespeite os direitos fundamentais pelos quais deve zelar, os cidadãos têm o
direito de se rebelar e substituí-lo.
A ideia de que os seres humanos tem certos direitos naturais, como a liberdade e a vida,
deu origem ao que hoje conhecemos como direitos humanos.
Empirismo de Locke
Embora as raízes do empirismo estejam na antiga Grécia, foi o filósofo inglês John
Locke (1632–1704) quem lançou as bases do empirismo moderno. Um homem de
muitos talentos e interesses diversos, Locke estudou teologia, ciências naturais, filosofia
e medicina na Universidade de Oxford. Por dezessete anos, serviu como médico pessoal
e conselheiro de lorde Ashley. Locke era ativo em assuntos políticos e, além de ocupar
vários cargos públicos, ajudou a redigir uma constituição para as colônias americanas
em 1669.
O conhecimento está localizado em nossas mentes e, para entender como ele é gerado e
seus limites, devemos analisar os conteúdos de nossa mente. De acordo com Locke, os
blocos de construção de todo o conhecimento são o que ele chama de ideias. É
importante entender o significado único que Locke dá a esse termo porque difere do
significado que ele tem para nós hoje. Ele diz que uma ideia é qualquer coisa que seja
“o objeto imediato de percepção, pensamento ou compreensão”. Ele nos oferece uma
coleção aleatória de exemplos para ilustrar o que ele quer dizer com “ideia”. Ideias são
o tipo de coisa expressa por palavras como “brancura, dureza, doçura, pensamento,
movimento, homem, elefante, exército, embriaguez e outros”.
Existem dois tipos de ideias simples. O primeiro tipo consiste em ideias de sensação,
que são as ideias que temos de qualidades como amarelo, branco, calor, frio, suave,
duro, amargo e doce. Tais ideias têm origem na observação do mundo ao redor. A
segunda categoria de ideias simples são as ideias de reflexão, que são obtidas da nossa
experiência de nossas próprias operações mentais. Assim, temos ideias de percepção,
pensamento, dúvida, crença, raciocínio, conhecimento e desejo, bem como das emoções
e outros estados psicológicos. Porque podemos observar a mente trabalhando, podemos
pensar sobre o pensamento (ou qualquer outra atividade ou estado psicológico).
No entanto, essas ideias são sons únicos, cores e outros fragmentos isolados de
sensação. Onde obtemos as ideias de objetos unificados, como livros e elefantes? Locke
acreditava que, embora a mente não possa originar ideias simples, pode transformá-las
em ideias mais complexas. Ideias complexas são combinações de ideias simples que
podem ser tratadas como objetos unificados e recebem seus próprios nomes. Locke
classifica as ideias complexas de acordo com as três atividades da mente que as
produzem: composição, relação e abstração.
Ao relacionar uma ideia com outra, podemos apresentar ideias complexas. Por exemplo,
a ideia de mais alto só poderia acontecer relacionando e comparando nossas ideias de
duas coisas. Marido e esposa, pai e filho, maior e menor, causa e efeito são exemplos de
ideias que não são experimentadas sozinhas, mas derivam da observação de relações.
Locke atacou a noção de ideias inatas. Em contraste com a teoria dos racionalistas de
que a mente naturalmente contém certas ideias, Locke propõe que a mente humana ao
nascer é uma tábula rasa, uma expressão latina que significa “folha em branco”. Ao
longo do tempo, a partir da sensação, a pessoa vai adquirindo uma quantidade muito
grande de ideias. Em outras palavras, sem experiência, a mente não teria conteúdo.
Entretanto, uma vez que tenhamos algumas experiências, a razão pode processar esses
materiais compondo, relacionando e abstraindo nossas ideias para produzir ideias mais
complexas. Portanto, a razão por si só não pode nos dar conhecimento além da
experiência.
Finalmente, Locke pensa que a ética pode ser colocada em uma base empírica. Como
não temos sensações diretas que correspondam aos conceitos de bem e mal, devemos
encontrar algumas outras sensações das quais essas noções podem ser derivadas. Como
é típico das teorias morais empiristas, a teoria de Locke começa com nossas
experiências de dor e prazer. Ele diz que chamamos de “bom” o que tende a nos causar
prazer e “mal” qualquer coisa que tende a produzir dor. Desta forma, a experiência pode
nos ensinar que certos tipos de comportamento são moralmente bons (como manter
promessas e prevenir danos), porque levam aos resultados mais satisfatórios.
Locke afirma que, apesar de todas as diferenças culturais, os códigos morais da maioria
das culturas têm um grande número de semelhanças. Essa semelhança existe porque a
moralidade consiste na sabedoria derivada da experiência coletiva da raça humana. A
experiência nos ensina que uma sociedade baseada na traição e no engano não será um
lugar muito agradável para se viver, nem é provável que ela sobreviva por muito tempo.
Mesmo que pensasse que a experiência pode nos ensinar o que precisamos saber sobre a
moralidade, Locke tentou tornar essa visão consistente com suas crenças cristãs. Ele
acreditava que Deus fez a experiência humana de modo que viver em conformidade
com a lei divina produzirá as experiências mais satisfatórias a longo prazo, tanto para o
indivíduo quanto para a sociedade.
Se você comparar sua experiência sobre coisas como alimentos, clima, velocidade com
a experiência de outra pessoa notará o seguinte. Algumas propriedades, como tamanho,
forma ou movimento, são constantes, enquanto outras propriedades, como cor,
temperatura ou sabor, podem mudar de uma circunstância para outra e são percebidas de
forma diferente por pessoas diferentes.
Locke explica essa diferença distinguindo entre dois tipos de propriedades que um
objeto pode ter. Propriedades que são objetivas, independentes de nós e que fazem parte
da composição do próprio objeto são chamadas de qualidades primárias. As
qualidades primárias de um objeto são suas propriedades de solidez, extensão, forma,
movimento ou repouso e número. Em outras palavras, são as propriedades que podem
ser expressas matematicamente e estudadas cientificamente. As propriedades que são
subjetivamente percebidas, que são os efeitos que o objeto tem em nossos órgãos dos
sentidos e cujas aparências são diferentes do objeto que as produz, são qualidades
secundárias. Qualidades secundárias são propriedades como cor, som, sabor, cheiro e
textura.
Quando tenho direito à propriedade privada? Em condições é legítimo que diga que algo
é meu? Quando a desigualdade de riqueza e propriedade observada entre as pessoas é
justa?
Ainda no século XVII, John Locke, um filósofo defensor da ideia de direito natural
criou uma explicação que se aproxima muito daquilo que pensamos ser a origem do
direito de propriedade. Suas ideias estão no livro Segundo Tratado sobre o Governo
Civil, no segundo livro, capítulo V. Em linhas gerais, defende que as pessoas são donas
de si mesmas e, portanto, do seu trabalho. Assim, quando exercem esse trabalho sobre
um bem que é natural, como ao cultivar a terra para produzir alimento, têm o direito de
dizer que que o alimento é produzido é seu. Mas isso é o resumo da história. A parte
mais interessante é como Locke chega a essa conclusão.
Tudo é de todos
O ponto de partida das reflexões de Locke sobre o direito de propriedade é a
compreensão de que a natureza e tudo o que ela oferece, incluindo a terra, a água, o ar,
os alimentos, os animais é um bem comum.
O primeiro passo do seu argumento de Locke é a alegação de “ainda que a terra e todas
as criaturas inferiores pertençam em comum a todos os homens, cada um guarda a
propriedade de sua própria pessoa”1. Ou seja, meu corpo é meu. Tenho direito exclusivo
sobre ele, pois não é uma propriedade comum.
Mas não é apenas o corpo físico que é minha propriedade. Tudo aquilo que ele é capaz
de fazer também é meu. Imagine a seguinte cena. Vivemos na selva e há uma laranjeira
carregada de frutas. Essa laranjeira é propriedade comum, pertence a todos os membros
da espécie humana, a mim e a você. No entanto, a partir do momento que me dou o
trabalho de colher alguns de seus frutos, estou misturando algo meu (o trabalho) a esse
bem comum. E a partir desse ato posso dizer legitimamente que as laranjas são minhas.
Portanto, é a partir do trabalho que se origina o direito à propriedade privada.
Conclusões
O que dizer das ideias de Locke? Quais suas consequências? O raciocínio parece
simples, claro e convincente. Porém, o que exatamente ele exige na prática? Será que
nossas leis de propriedade, por exemplo, estão de acordo com as condições de Locke
para podermos dizer que temos direito à propriedade?
Thomas Paine (1737-1809), um pensador político Inglês, extraiu das ideias de Locke
consequências bastante impopulares: a ideia de uma renda básica. Paine argumentou,
como Locke, que a natureza é um bem comum. Também como Locke, defendeu que
todos têm direito a usar dela para seu sustento e ninguém deve ser privado desses
recursos porque algumas pessoas se apropriaram de tudo.
Como na Inglaterra do século XIX muitas pessoas não tinham qualquer acesso aos
recursos naturais, defendeu que fossem indenizadas. Como? Uma forma seria
desapropriar as terras daqueles com grandes propriedades e distribuí-las aos demais.
Porém Paine teve outra ideia. Defendeu que todos os proprietários deveriam pagar um
valor que seria depositado em um fundo e distribuído na forma de uma renda básica
para toda a população. Esse valor seria uma compensação paga por aqueles que se
apropriaram dos bens comuns pelo fato de terem deixado os demais sem nada.
Maquiavel
Nicolau Maquiavel
Nicolau Maquiavel (1469 – 1527) foi um dos mais influentes teóricos políticos da
filosofia ocidental. Seu livro mais conhecido, O Príncipe, provocou grades mudanças na
forma de abordar a política, rompendo com uma visão dominante na filosofia
desde Platão e Aristóteles. Sua principal contribuição nesse sentido foi estabelecer uma
separação entre ética e política, argumentando que essas são formas independentes de
ação humana e que a política não deve estar subordinada à ética, como se pensava até
então.
Biografia
Maquiavel nasceu e foi criado em Florença, lugar que hoje fica na Itália, onde seu pai
era advogado. Ele recebeu a educação clássica da época, aprendendo gramática, retórica
e latim.
Em 1498, com 29 anos, assumiu um papel político relevante na recém criada República
de Florença e ao londo de mais de uma década desempenhou funções importantes,
acompanhando em primeira mão os acontecimentos políticos italianos.
No entanto, em 1513, sua vida passa por uma reviravolta. Por causa de mudanças
políticas, Maquiavel é preso, torturado e enviado para o exílio.
Folha de rosto da edição de 1580 de O Príncipe.
Depois disso o filósofo não voltaria mais ao seu antigo posto. Entre 1513 e 1527, ano de
sua morte, se dedicou a refletir sobre sua experiência e a pensar a política. Nesse
período, escreveu sua principal obra, O Príncipe, que seria publicado apenas depois de
sua morte, em 1532.
Qual o conteúdo dessa obra tão polêmica? O que defendeu Maquiavel no Príncipe para
ter sido alvo de tanto ódio e amor desde sua publicação?
A independência da política
Se fizéssemos para Maquiavel essa pergunta, ele não teria dúvidas quanto à resposta.
Recomendaria ao governante fazer o necessário para obter a aprovação do povo, caso
seu objetivo fosse permanecer no poder, inclusive comprando votos.
Algumas pessoas argumentariam que essa prática viola regras morais como não
corromper, não mentir e não subornar. Porém, Maquiavel responderia que, na política,
nem sempre devemos observar as regras morais. O governante que exita em fazer o
necessário para se manter no poder, mais cedo ou mais tarde será substituído por
alguém que fará isso. Portanto, se deseja continuar governando, em algumas
circunstâncias será necessário agir de forma contrária à moralidade comum.
O Príncipe, livro no qual o filósofo aborda esse tema, é uma manual dedicado a ensinar
como os governantes deveriam se portar no poder para serem bem sucedidos. Esse era
um gênero de livro comum no século XV. Porém, Maquiavel inovou ao escrever o seu.
Um dos capítulos obrigatórios desses livros eram dedicados às virtudes que uma pessoa
deveria ter para ser um bom governante. Geralmente eram sugeridas uma série de
virtudes cristãs: a bondade, a liberalidade, a integridade, a religiosidade, a sabedoria etc.
Basicamente, a julgar por esses manuais, uma pessoa moralmente correta, virtuosa, seria
um bom governante.
“um senhor prudente não pode nem deve guardar sua palavra, quando isso seja
prejudicial aos seus interesses. Se todos os homens fossem bons, este seria um preceito
mau; mas, porque são maus e não observariam a sua fé a teu respeito, não há razão para
que cumpras para com eles. Jamais faltaram a um príncipe razões legítimas para
justificar a sua quebra da palavra.”
O filósofo foi inclusive além disso, recomendando que o governante fizesse uso da
astúcia, da dissimulação e da mentira. Se bem utilizadas, se contribuírem para a
manutenção do poder, essas são virtudes de um governo.
Como se vê, as ideias de Maquiavel ainda não deixaram de ser chocantes. Nesse ponto,
é natural se questionar por que o filósofo acreditava que as pessoas no governo
poderiam fazer qualquer coisa, mesmo que imoral. A resposta está relacionada a uma
visão realista da natureza humana e da política.
A natureza humana
Na citação do Principe acima, encontramos a seguinte frase “se todos os homens fossem
bons, este [quebrar promessas] seria um preceito mau”. Nem todos os seres humanos
são bons e a política não é feita por anjos. Ao contrário, é feita por homens,
constantemente buscando alcançar o poder e permanecer nele a todo custo.
Maquiavel via isso como um fato imutável da natureza humana. Não importa o quanto a
sociedade se desenvolva, o quanto o tempo passe, a educação progrida, os seres
humanos sempre serão assim. Dessa forma, a única maneira de sobreviver nesse meio é
fazendo o que todos fazem.
No entanto, sua única chance de ganhar e eleição é mentindo. Isso porque o país passa
por uma crise econômica e a cidade da qual você deseja ser prefeito foi bastante afeita
com redução de receita e está bastante endividada. Você não pode prometer
honestamente qualquer melhoria significativa porque sabe que isso é inviável, a não ser
que a situação mude radicalmente.
Portanto, você está diante de duas alternativas difíceis. A primeira opção é se omitir,
não mentindo durante a campanha e garantindo a vitória do adversário. A consequência
disso será uma péssima administração e um grande prejuízo para a população. A outra
opção envolve uma ação imoral, a mentira deliberada, mas isso pode lhe garantir a
vitória e alguns benefícios para a população da cidade.
Qual a ação mais correta a adotar? Seja qual for a resposta, é difícil afirmar sem dúvida
que uma é melhor que a outra.
Então, visto a partir desse ângulo, o pensamento de Maquiavel não é tão imoral assim.
Sua visão realista sobre a natureza humana e sobre a política possibilita uma ação mais
efetiva e, talvez, mais correta na política.
Rousseau
Diante do problema, somos levados a pensar o que faríamos em uma situação limite, na
qual as normas morais e leis cotidianas estão ausentes ou não têm poder de influenciar
nosso comportamento. Diante do risco da morte, provavelmente nossos instintos
assumirão o controle e revelaremos nossa verdadeira natureza.
“Eu estimaria que cerca de 97% das pessoas acham que vivemos no planeta B”, diz
Postmes2. Será essa a nossa natureza?
O bom selvagem
Rousseau discordava dessa visão tão comum sobre a natureza humana. Em 1752
publicou um livro que imediatamente despertaria fortes reações e polêmicas: O discurso
sobre a origem da desigualdade entre homens. Qual sua conclusão sobre a natureza
humana? Que o homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe. Em outras palavras,
vivemos no planeta A.
Muito já havia sido escrito sobre a questão da natureza humana antes de Rousseau:
Aristóteles, Maquiavel, Hobbes, apenas para citar três filósofos que marcaram a história
com suas ideias. Ao último, inclusive, devemos muito das nossas ideias sobre o
comportamento humano livre das amarras das leis e da moralidade. Ele dizia que, na
ausência de um governo e de leis, viveríamos em uma guerra de todos contra todos.
Figura 1: Divergência entre Hobbes (o primeiro filósofo) Maquiavel (o segundo) e
Aristóteles (o terceiro) sobre a natureza huaman. Créditos da imagem: Dave Robinson,
Introducing Rousseau: A Graphic Guide.
Apesar de todo esse debate sobre a natureza humana, Rousseau alegava que pouco havia
sido compreendido sobre o assunto. No prefácio de seu Discurso, afirmou: “O mais útil
e o menos avançado de todos os conhecimentos humanos parece-me ser o do homem”3.
Há uma razão para esse ser o conhecimento menos avançado. Não vemos por aí o
homem em seu estado natural. Os seres humanos que conhecemos vivem em sociedades
e foram sendo modificados pelas circunstâncias em que vivem, pelas crenças e
costumes criados ao longo dos tempos. Somos, diz Rousseau,
Para tentar compreender quem é esse homem em seu estado natural, o filósofo irá
utilizar a boa e velha especulação filosófica e relatos de viajantes europeus sobre os
povos da América, África e Ásia. Um dos efeitos desses relatos foi a compreensão de
que muito do que se considerava natural nas sociedades européias, como os governos
comandados por reis, estava ausente em outras sociedades e talvez não fosse tão natural
assim.
No entanto, é importante não fazer confusões. Rousseau não está dizendo que os povos
indígenas nas Américas, por exemplo, vivem em um estado de natureza e basta
conhecer seu comportamento para compreender quem somos. Tais povos, na visão do
filósofo, também viviam em sociedade, foram educados dentro de costumes e hábitos
artificiais, e estavam afastados do ser humano em seu estado natural, ainda que menos
do que as sociedades européias. Para reconstituir esse homem em estado de natureza, é
necessário mais do que a observação de sociedades distantes.
Como Rousseau faz isso? Como ele separa aquilo que é natural no homem daquilo que
é artificial?
“vejo um animal menos forte do que uns, menos ágil do que outros, mas, afinal de
contas, organizado mais vantajosamente do que todos: vejo-o saciando-se debaixo de
um carvalho, matando a sede no primeiro regato, encontrando o seu leito ao pé da
mesma árvore que lhe forneceu o repasto; e eis satisfeitas as suas necessidades.”5.
Figura 2: As necessidades humanas no estado de natureza. Créditos da imagem: Dave
Robinson, Introducing Rousseau: A Graphic Guide.
Com tão poucas necessidades e satisfazendo-as facilmente, não há porque juntar
esforços com outros seres humanos. Sem interesses comuns, os homens vivem solitários
na natureza, raramente encontrando outros da mesma espécie.
“Nesse estado primitivo, não tendo casas, nem cabanas, nem propriedades de nenhuma
espécie, cada qual se alojava ao acaso e muitas vezes por só uma noite; os machos e as
fêmeas se uniam fortuitamente, conforme o encontro, a ocasião e o desejo” 6.
Na história pensada por Rousseau, é apenas mais tarde que surgirá a família e, a partir
dela, as primeiras comunidades.
O primeiro é um instinto de preservação que está presente nos outros animais. Nada
mais é do que um impulso que o leva a fazer ações que o manterão vivo: caçar, pescar,
colher frutos das árvores, se abrigar, se defender de ataques.
Para aqueles que concluem que os seres humanos são naturalmente agressivos e vivem
em conflito por causa de seu instinto de conservação, Rousseau lembra de outra
característica: a piedade. Essa “tempera o ardor que ele tem por seu bem-estar com uma
repugnância inata de ver sofrer seu semelhante”7.
Para mostrar como esse sentimento é natural, o filósofo observa que mesmo os animais
sofrem diante do sofrimento alheio:
“Um animal não passa sem inquietação perto de um animal morto de sua espécie:
alguns dão mesmo uma espécie de sepultura; e os tristes mugidos do gado, ao entrar no
matadouro, anuncia a impressão que ele recebe do horrível espetáculo que o comove”. 8
Essa disposição natural é forte o suficiente para manter os homens no estado de natureza
em paz com seus semelhantes. É somente com surgimento da sociedade, da linguagem e
da filosofia que tal instinto perde força:
A desvantagem do conflito
Para Rousseau, existe um conjunto de fatores que contribui para manter a paz no estado
de natureza. Já falamos sobre as poucas necessidades, facilmente satisfeitas, e a piedade
natural. Mas há ainda muitas outras.
No cenário desenhado por Rousseau, as causas comuns do conflito estão ausentes. Uma
delas são as ofensas. Quando vivemos em comunidades, passamos a dar valor para o
que dizem sobre nós. Assim, uma palavra ou gesto podem ser motivo para uma briga
que levará à morte. Ora, no estado de natureza, os homens vivem isolados e sequer
possuem linguagem. A ofensa não tem sentido nesse contexto, pois esta pressupõe
darmos valor para o que outros pensam e dizem sobre nós. É um fenômeno que só
existe na sociedade.
Mas e a desigualdade natural que existe de força e inteligência entre os homens não
teria levado ao domínio e opressão dos mais fracos pelos mais fortes?
Rousseau não vê como isso poderia acontecer. Ainda que alguém possa roubar o que
outro caçou ou colheu, fazer outros seres humanos obedecerem é mais complicado e
exige muitos desenvolvimentos.
“Se me expulsam de uma árvore, estou livre para ir para outra; se me atormentam em
um lugar, quem me impedirá de passar para outro? Se encontro um homem de força
muito superior à minha, e, além disso, muito depravado, muito preguiçoso e muito
feroz, para me constranger a prover à sua subsistência enquanto ele permanece ocioso, é
preciso que ele se resolva a não me perder de vista um só instante, que me deixe
amarrado com grande cuidado enquanto dorme, de medo que eu escape ou que o mate;
isto é, fica obrigado a se expor voluntariamente a um trabalho muito maior do que o que
quer evitar, é do que me dá a mim mesmo. Depois de tudo isso, sua vigilância se relaxa
por um momento, um barulho imprevisto fá-lo voltar a cabeça: dou vinte passos na
floresta, meus ferros se quebram, e nunca mais me tornará a ver. 10
Com o nascimento das comunidades e da agricultura, tudo isso vai mudar. Os seres
humanos começarão a acumular bens, a se comparar uns com os outros, se importar
com a opinião alheia e a se ofender, sentir ciúmes e raciocinar em defesa dos próprios
interesses em prejuízo da piedade natural. É, portanto, a passagem do homem natural
para a civilização que faz surgirem os problemas sociais que conhecemos desde o início
da história: opressão, escravidão, guerras, desigualdade.
“Recebi, senhor, vosso novo livro contra o gênero humano. Obrigado. Nunca se
empregou tanta sutileza no sentido de nos bestializar; dá vontade de andar de quatro,
quando acabamos de ler o seu livro.”11
Figura 3: Passagem do homem natural para a civilização. Créditos da imagem: Dave
Robinson, Introducing Rousseau: A Graphic Guide.
Ao contrário do que fizeram crer alguns críticos da época, o objetivo do Discurso não
era defender um retorno a esse estado natural. A discussão sobre a natureza humana tem
outro propósito para Rousseau. Ele não pensava ser possível retornar ao estado de
natureza, mas, olhando à sua volta, via uma sociedade com muitos problemas. Olhando
para a natureza humana, via que isso era contingente. As coisas estavam dando errado
não porque o homem é assim, mas porque a sociedade o transformou nisso.
Seu otimismo sobre nossa natureza dava sentido para seu trabalho futuro. Nos livros
que escreverá depois do Discurso sobre a Desigualdade, Emílio ou da educação e O
contrato social, pensará como educar as crianças e organizar o governo da sociedade de
modo a garantir que a natureza humana não seja corrompida pela sociedade.
Somos inerentemente bons ou inerentemente maus? A resposta depende do que você pensa da
política moderna.
Em 1651, Thomas Hobbes escreveu que a vida no estado natural – isto é, nossa condição natural
fora da autoridade de um estado político – é “ela é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e
curta”. Pouco mais de um século depois, Jean-Jacques Rousseau respondeu que a natureza
humana é essencialmente boa e que poderíamos ter vivido vidas pacíficas e felizes muito antes
do desenvolvimento de algo como o estado moderno. À primeira vista, então, Hobbes e
Rousseau representam pólos opostos em resposta a uma das questões milenares da natureza
humana: somos naturalmente bons ou maus? De fato, suas posições reais são mais complicadas
e interessantes do que essa dicotomia sugere.
A questão de saber se os humanos são inerentemente bons ou maus pode parecer um retrocesso
às controvérsias teológicas sobre o pecado original, talvez uma questão que os filósofos sérios
deveriam deixar de lado. Afinal, os humanos são criaturas complexas capazes tanto do
bem quanto do mal. Descer inequivocamente de um lado deste debate pode parecer um tanto
ingênuo, a marca de alguém que falhou em compreender a realidade confusa da condição
humana. Talvez sim. Mas o que Hobbes e Rousseau viram muito claramente é que nossos
julgamentos sobre as sociedades em que vivemos são grandemente moldados por visões
subjacentes da natureza humana e pelas possibilidades políticas que essas visões acarretam.
Por acaso, Hobbes não achou que somos naturalmente maus. Seu argumento, ao contrário, é que
não estamos conectados para viver juntos em sociedades políticas de larga escala. Não somos
naturalmente animais políticos, como abelhas ou formigas, que instintivamente cooperam e
trabalham juntos para o bem comum. Em vez disso, somos naturalmente interessados em si
mesmos e, em primeiro lugar, cuidamos de nós mesmos. Preocupamo-nos com nossa reputação,
bem como com nosso bem-estar material, e nosso desejo de posição social nos leva a conflitos
tanto quanto a competição por recursos escassos.
Se queremos viver juntos em paz, argumentou Hobbes, devemos nos submeter a um órgão com
o poder de fazer cumprir as leis e resolver conflitos. Hobbes chamou isso de
“soberano”. Enquanto o soberano preservar a paz, não devemos questionar ou contestar sua
legitimidade, pois isso leva de volta ao estado da natureza, o pior lugar possível em que
poderíamos nos encontrar. Não importa se concordamos pessoalmente com as decisões do
soberano. A política é caracterizada por desacordo e, se pensarmos que nossas próprias
convicções políticas ou religiosas são mais importantes que a convivência pacífica, essas
convicções são o problema, não a resposta.
Hobbes vira de perto os horrores da Guerra Civil Inglesa e a guerra civil continua sendo a
ilustração mais convincente de seu estado natural. Hoje, os leitores costumam rejeitar suas
ideias como excessivamente sombrias – mas isso provavelmente diz mais sobre nós do que
ele. Hobbes via a paz duradoura como uma conquista rara e frágil, algo que aqueles de nós que
tiveram a sorte de nunca ter experimentado guerra são preocupantemente suscetíveis de
esquecer. Mas grande parte da história humana foi devastada pela guerra e, infelizmente, ainda
existem muitas pessoas que vivem em estados devastados por conflitos e guerras – nesses casos,
Hobbes fala através dos tempos.
Mesmo que Hobbes estivesse certo sobre a guerra civil, ele realmente descobriu a verdade sobre
a condição humana? Rousseau achou que não, e acusou Hobbes de confundir as características
de sua própria sociedade com ideias atemporais de nossa natureza. A mensagem primordial da
crítica de Rousseau a Hobbes é que não precisava ser assim. Claro, hoje somos criaturas de
interesse próprio e competitivas, mas nem sempre foi assim.
Para Rousseau, tudo começou a dar errado quando os humanos aperfeiçoaram as artes da
agricultura e da indústria, o que acabou levando a níveis sem precedentes de propriedade
privada, interdependência econômica e desigualdade. A desigualdade gera divisão social. Onde
as sociedades já haviam sido unidas por fortes laços sociais, a escalada da desigualdade logo
nos transformou em cruéis concorrentes por status e dominação. O outro lado da crença de
Rousseau na bondade natural é que são as instituições políticas e sociais que nos tornam maus,
como somos agora. Em sua recontagem secularizada da Queda, o advento da desigualdade
econômica substitui nossa saída do Jardim do Éden. Continua sendo uma das acusações mais
poderosas da sociedade moderna na história do pensamento ocidental.
Rousseau achava que, uma vez corrompida a natureza humana, as chances de redenção são
muito pequenas. Nos seus dias, ele tinha pouca esperança para os estados comerciais mais
avançados da Europa e, embora nunca tenha testemunhado o início do capitalismo industrial, é
seguro dizer que isso apenas confirmaria seus piores temores sobre a desigualdade. O golpe na
história da análise de Rousseau é que, mesmo que Hobbes estivesse errado sobre a natureza
humana, a sociedade moderna é hobbesiana até o âmago e agora não há como voltar atrás.
Essa maneira de colocar as coisas adiciona um toque à narrativa usual, onde Hobbes deveria ser
o pessimista e Rousseau o otimista. Se isso é verdade para suas ideias da natureza humana, o
oposto acontece quando se trata de avaliar a política moderna. Se você acha que a vida moderna
é caracterizada por interesse próprio e competição, então uma resposta é sentar e se perguntar
como essas criaturas individualistas conseguiram formar sociedades pacíficas. Mas se você acha
que existe um lado melhor da natureza humana – que somos naturalmente bons -, é mais
provável que você pergunte: onde tudo deu errado? Hobbes viu sociedades divididas pela guerra
e ofereceu um caminho para a paz. Rousseau viu sociedades divididas pela desigualdade e
profetizou sua queda.
Essas perspectivas rivais ainda dividem o mundo hoje. O capitalismo nos transformou em
inimigos que competem incessantemente por lucro e prestígio, ou descobriu uma maneira
relativamente benigna de coordenar as atividades de milhões de pessoas em qualquer estado
sem degenerar em conflito? Como você responde a essa pergunta dependerá em grande parte do
que você acha que são as alternativas, e essas alternativas serão baseadas em suposições sobre a
natureza humana: se somos bons ou maus, ou seja, se é possível organizar as sociedades em
torno dos melhores aspectos de nossa natureza – empatia, generosidade, solidariedade – ou se o
máximo que podemos esperar é encontrar maneiras engenhosas de transformar nosso interesse
pessoal em bom uso. Mesmo se você acredita que somos naturalmente bons, no
entanto, permanece a questão de saber se é possível aproveitar nossas melhores qualidades nas
modernas condições sociais e econômicas. E nessa questão, é Rousseau – não Hobbes – quem
nos dá mais razões para se desesperar.
Um dos defensores mais destacados da democracia foi Jean Jacques Rousseau. Suas
ideias foram tão influentes que estão por trás de transformações históricas como a
Revolução Francesa. Os ideais de igualdade e liberdade, dos revolucionários, por
exemplo, fazem referência ao pensamento de Rousseau. Além disso, os argumentos que
desenvolveu para justificar a democracia permanecem sendo fonte de inspiração e
debate.
Conhecer porque pensava que a democracia era a melhor forma de governo, a única
legítima, é um bom ponto de partida para pensar sobre as questões com as quais
começamos o texto.
Críticas à desigualdade
O ponto de partida da defesa de Rousseau da democracia é a ideia de que todos os
homens são iguais e livres. Essa também é a razão pela qual critica toda forma de
subordinação de uma pessoa a outra.
O filósofo grego defendia, por exemplo, que a escravidão é natural e legítima, portanto.
Sua defesa da escravidão se baseava na alegação de que algumas pessoas nasceram por
natureza para serem escravos. Essas pessoas não têm capacidade de cuidar de si mesmas
e precisam que outros as comandem. São como crianças que não podem ser deixadas
sem a supervisão e o cuidado de um adulto. Para Aristóteles, há uma desigualdade
natural entre homens livres e escravos e isso justifica a escravidão.
Porém, nota Rousseau no início do livro chamado Contrato Social, “o homem nasceu
livre, e em toda parte se encontra a ferros”. Aqui o autor está comparando um direito
natural de todos os seres humanos à dura realidade da Europa do século XVIII, com
seus governos absolutistas. Os homens se encontram a ferros, para Rousseau, porque
são obrigados a obedecer a um rei. Não gozam de sua liberdade natural.
O grande objetivo de Rousseau foi pensar uma alternativa ao governo absolutista que
garantisse aos homens viver em sociedade, com um governo, e ao mesmo tempo livres.
Para o autor, uma condição indispensável para que o governo seja legítimo é garantir a
liberdade e a igualdade. Do contrário, o governo não é legítimo e ninguém tem qualquer
obrigação de obedecer às leis.
Porém conciliar igualdade e liberdade com um governo é um grande problema. Por que
se há governo, há alguém que manda e alguém que obedece. Então essa pessoa que
obedece não será livre. Ela tem que obedecer. Ao mesmo tempo, se há governo, também
há desigualdade, já que quem manda e quem obedece são desiguais: um tem poder
outro, não; um pode mandar, outro, não.
Então, como Rousseau resolve esse aparente paradoxo? Pois governo parece ser
sinônimo de desigualdade e algum tipo de perda de liberdade.
Vamos fazer uma comparação. Poder político é o poder de definir como uma sociedade
será governada. Por exemplo, o poder de decidir legalizar o aborto, por exemplo, é
poder político. Imagine agora que o poder político é um grande bolo. Numa monarquia,
apenas o Rei tem direito a esse bolo. Numa democracia, esse bolo é dividido em partes
iguais para todos os cidadãos.
Rousseau também pensava que numa democracia existe liberdade. Numa monarquia já
vimos que não. Um manda, outros obedecem. Numa democracia, pelo contrário,
mandamos em nós mesmos e por isso somos livres. Quando alguém nos obriga a fazer
algo, não estamos gozando de nossa liberdade. Mas quando mandamos em nós mesmo,
sim. Então, se participo da criação de uma lei que obriga a todos os motoristas a não
dirigirem alcoolizados, sou livre ao obedecer essa lei, já que fui em mesmo quem a
criou. Por outro lado, se uma pessoa apenas cria essa lei (um rei) e obriga todos a
obedecerem, se trata de uma condição de escravidão, já que estamos obedecendo não à
nossa vontade, mas a vontade de outra pessoa.
A uma primeira análise, poderíamos dizer que então nossa forma de governo atual é
legítima, já que vivemos numa democracia. Mas essa seria uma conclusão precipitada.
Para entender a razão, vamos conhecer primeiro uma distinção importante e bastante
simples. Existem democracias diretas e democracias representativas. As democracias
representativas são as atuais. Como elas funcionam? Periodicamente, toda a população,
escolhe para fazer parte do governo representantes que tomarão as decisões políticas.
Por outro lado, democracias diretas são aquelas em que o próprio povo vota para decidir
se aprova ou não uma lei.
Nos dois casos o povo como um todo tem direito a votar. A diferença reside no fato de
que numa democracia representativa, o voto é usado para escolher um representante que
terá total autonomia para decidir aprovar ou não uma lei. Já na democracia direta, o voto
é usado para decidir, sem intermediários, qual lei adotar.
“O povo Inglês pensa ser livre, mas está completamente iludido; apenas o é durante a
eleição dos membros do Parlamento; tão logo estejam estes eleitos, é de novo escravo,
não é nada.”
Ora, como é impossível aos homens engendrar novas forças, mas apenas unir e dirigir as
existentes, não lhes resta outro meio, para se conservarem, senão formando, por
agregação, uma soma de forças que possa arrastá-los sobre a resistência, pô-los em
movimento por um único móbil e fazê-los agir de comum acordo.
Essa soma de forças só pode nascer do concurso de diversos; contudo, sendo a força e a
liberdade de cada homem os primeiros instrumentos de sua conservação, como as
empregará ele, sem se prejudicar, sem negligenciar os cuidados que se deve? Esta
dificuldade, reconduzida ao meu assunto, pode ser enunciada nos seguintes termos.
“Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum a
pessoa e os bens de cada associado, e pela qual, cada um, unindo-se a todos, não
obedeça portanto senão a si mesmo, e permaneça tão livre como anteriormente.” Tal é o
problema fundamental cuja solução é dada pelo contrato social.
As cláusulas deste contrato são de tal modo determinadas pela natureza do ato, que a
menor modificação as tornaria vãs e de nenhum efeito; de sorte que, conquanto jamais
tenham sido formalmente enunciadas, são as mesmas em todas as partes, em todas as
partes tacitamente admitidas e reconhecidas, até que, violado o pacto social, reentra
cada qual em seus primeiros direitos e retoma a liberdade natural, perdendo a liberdade
convencional pela qual ele aqui renunciou.
Todas essas cláusulas, bem entendido, se reduzem a uma única, a saber, a alienação
total de cada associado, com todos os seus direitos, em favor de toda a comunidade;
porque, primeiramente, cada qual se entregando por completo e sendo a condição igual
para todos, a ninguém interessa torná-la onerosa para os outros.
Além disso, feita a alienação sem reserva, a união é tão perfeita quanto o pode ser, e
nenhum associado tem mais nada a reclamar; porque, se aos particulares restassem
alguns direitos, como não haveria nenhum superior comum que pudesse decidir entre
eles e o público, cada qual, tornado nalgum ponto o seu próprio juiz, pretenderia em
breve sê-lo em tudo; o estado natural subsistiria, e a associação se tornaria
necessariamente tirânica ou inútil.
Enfim, cada qual, dando-se a todos, não se dá a ninguém, e, como não existe um
associado sobre quem não se adquira o mesmo direito que lhe foi cedido, ganha-se o
equivalente de tudo o que se perde e maior força para conservar o que se tem.
Portanto, se afastarmos do pacto social o que não constitui a sua essência, acharemos
que ele se reduz aos seguintes termos:
“Cada um de nós põe em comum sua pessoa e toda a sua autoridade, sob o supremo
comando da vontade geral, e recebemos em conjunto cada membro como parte
indivisível do todo.”
Logo, ao invés da pessoa particular de cada contratante, esse ato de associação produz
um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quanto a assembleia de vozes,
o qual recebe desse mesmo ato sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. A
pessoa pública, formada assim pela união de todas as outras, tomava outrora o nome de
cidade, e toma hoje o de república ou corpo político, o qual é chamado por seus
membros: Estado, quando é passivo; soberano, quando é ativo; autoridade, quando
comparado a seus semelhantes. No que concerne aos associados, adquirem
coletivamente o nome de povo, e se chamam particularmente cidadãos, na qualidade de
participantes na autoridade soberana, e vassalos, quando sujeitos às leis do Estado.
Todavia, esses termos frequentemente se confundem e são tomados um pelo outro. É
suficiente saber distingui-los, quando empregados em toda a sua precisão.
A resposta que damos a essas questões partem do princípio de que todos são livres e
iguais e não devem ser governados por ninguém. Nesse aspecto, somos herdeiros do
pensamento de Rousseau. Ele foi um dos filósofos iluministas que defendeu a liberdade
e igualdade.
No texto abaixo, Rousseau critica algumas opiniões que circulavam em sua época e
defendiam alguma tipo de concepção não igualitária de governo.
Texto
Autor: Rousseau, O contrato Social
Esta liberdade comum é uma consequência da natureza do homem. Sua primeira lei
consiste em proteger a própria conservação, seus primeiros cuidados os devidos a si
mesmo, e tão logo se encontre o homem na idade da razão, sendo o único juiz dos
meios apropriados à sua conservação, torna-se por sí seu próprio senhor.
Grotius nega que todo poder humano seja estabelecido em favor dos governados. Sua
mais frequente maneira de raciocinar consiste sempre em estabelecer o direito pelo fato.
Poder-se-ia empregar um método mais consequente, não porém mais favorável aos
tiranos. É, pois duvidoso, segundo Grotius, saber se o gênero humano pertence a uma
centena de homens, ou se esta centena de homens é que pertence ao gênero humano,
mas ele parece pender, em todo o seu livro, para a primeira opinião. E este também o
sentimento de Hobbes. Eis assim a espécie humana dividida em rebanhos de gado, cada
qual com seu chefe a guardá-la, a fim de a devorar.
Aristóteles tinha razão, mas ele tomava o efeito pela causa. Todo homem nascido
escravo nasce para escravo, nada é mais certo: os escravos tudo perdem em seus
grilhões, inclusive o desejo de se livrarem deles; apreciam a servidão, como os
companheiros de Ulisses estimavam o próprio embrutecimento. Portanto, se há escravos
por natureza, é porque houve escravos contra a natureza. A força constituiu os primeiros
escravos, a covardia os perpetuou.
Eu nada disse do rei Adão, nem do imperador Noé, pai de três grandes monarcas que
partilharam entre si o Universo, como o fizeram os filhos de Saturno, nos quais se
acreditou reconhecer aqueles. Espero que me agradeçam por esta moderação, porque,
descendente que sou de um desses príncipes, quiçá do ramo mais velho, quem sabe se,
pela verificação dos títulos, eu não me sentiria de algum modo como o legítimo rei do
gênero humano? Seja como for, não se pode deixar de convir em que Adão não foi
soberano do mundo como Robinson o foi em sua ilha, enquanto permaneceu o único
habitante; e o que havia de cômodo nesse império era o fato de que o monarca, seguro
em seu trono, não tinha a recear nem rebeliões, nem guerras, nem conspirações.
Thomas hobbes
Biografia
Thomas Hobbes nasceu em Malmsbury, Inglaterra, em 1588. Como ele observou
em sua autobiografia, “nasceu gêmeo do medo” porque sua mãe entrou em
trabalho de parto prematuro por medo de que a Armada Espanhola estivesse
prestes a atacar a Inglaterra. Apesar disso, sua infância foi tranquila e foi educado
nas melhores escolas da Inglaterra.
Thomas Hobbes
Natureza Humana
A base da filosofia política de Hobbes é uma visão pessimista sobre a natureza
humana e a vida em sociedade. Segundo o autor, os seres humanos são bastante
imperfeitos. Estão constantemente sujeitos ao erro de julgamento, movidos por
ideias falsas, influências de terceiros mal intencionados, não poucas vezes agem
de forma egoísta, impulsiva e com uma preocupação excessiva com ninharias
como a honra.
Por tudo isso, a paz no convívio social é algo frágil. Hobbes vê a guerra civil que
atingiu a Inglaterra de seu tempo como o resultado dessa natureza humana
intratável.
Para ele, sempre que o Governo de uma sociedade deixa de existir, se retorna ao
chamado estado de natureza. E sendo o homem o que é, um ser egoísta, medroso
e preocupado com a própria imagem diante da sociedade, o único resultado pode
ser uma “guerra de todos contra todos”. Citando uma expressão latina, Hobbes
afirma que “o homem é o lobo do homem”. Com isso quer dizer que, na ausência
de um governo poderoso que obrigue a população a respeitar uma série de
normas de convivência, o homem destrói o próprio homem.
Com isto se torna manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem
um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram
naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens
contra todos os homens.
Thomas Hobbes
O contrato social
Para Hobbes, a sociedade política é uma criação humana para resolver o
problema da guerra de todos contra todos que prevalece no estado de natureza. A
única forma de acabar com esse conflito generalizado é todos os homens
concordando em transferir seus direitos, através de um contrato social, para uma
única pessoa ou grupo que tenha poderes absolutos. Esse será o governo,
responsável por garantir a paz na sociedade.
Hobbes foi um defensor da monarquia de seu tempo, que vinha sofrendo com os
ataques dos parlamentaristas defensores da limitação do poder do rei. Porém, ao
contrário de outros pensadores que defendiam a monarquia absolutista, Hobbes
não apela a um suposto direito divino dos reis governar. Ao contrário, baseia sua
defesa no fato alegado de que a única forma de garantir uma paz duradoura é
através de um governo com poderes absolutos.