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Filosofia

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 Subjetivismo
 Utilitarismo
Falácias
 Falácias
 Falácias ad hominem
 Falácias de relevância
 Falácias de transferência ilícita
 Falácias indutivas

Lógica
 Lógica
 Argumento por analogia, indutivo e de autoridade
 Inferências válidas
 Premissas e conclusão
 Proposições
 Silogismo e lógica aristotélica

Metafísica
 Antropologia filosófica
 Filosofia da mente de Descartes
 Liberdade e determinismo
Aristóteles

As quatro causas de Aristóteles


O que significa conhecer alguma coisa? Quando podemos dizer, por exemplo, que
conhecemos o ser humano? Ou, então, que conhecemos o nosso gato de estimação?

O filósofo grego Aristóteles propôs uma resposta para essa questão em seu livro
Metafísica. Para ele, se desejamos conhecer de maneira séria, científica, um
determinado fenômeno ou ser, precisamos investigar as suas causas.

A idéia de quatro causas de Aristóteles é uma teoria filosófica que explica como os
fenômenos ocorrem a partir de quatro tipos de causas: material, formal, eficiente e final.

 A causa material é o elemento que compõe o objeto ou fenômeno em questão.


Por exemplo, a causa material de uma mesa é a madeira que a compõe.
 A causa formal é a forma ou a estrutura do objeto ou fenômeno. Por exemplo, a
causa formal de uma mesa é sua forma de retângulo com quatro pernas.
 A causa eficiente é a força ou ação que causa ou produz o fenômeno. Por
exemplo, a causa eficiente da construção de uma mesa é o carpinteiro que a
constrói.
 A causa final é o propósito ou o objetivo final do objeto ou fenômeno. Por
exemplo, a causa final de uma mesa é servir como superfície para colocar
objetos sobre ela.

Essas quatro causas trabalham juntas para produzir o fenômeno em questão. Na teoria
de Aristóteles, o conhecimento dessas causas é fundamental para compreender o que
ocorre no mundo.

A idéia das quatro causas de Aristóteles é usada como uma ferramenta para entender e
explicar os fenômenos do mundo. Ela é aplicada em diversas áreas, como filosofia,
ciência, arte e outras, para identificar e analisar as causas que levam a determinados
fenômenos.

Por exemplo, na ciência, a teoria das quatro causas pode ser utilizada para investigar o
funcionamento de um motor ou o processo de crescimento de uma planta. Isso permite
identificar a causa material (como o metal ou o combustível do motor ou o solo e a água
da planta), a causa formal (a estrutura do motor ou a forma das folhas da planta), a
causa eficiente (a força que move o motor ou a luz solar que faz a planta crescer) e a
causa final (o propósito do motor ou a função da planta).

Além disso, a teoria das quatro causas é também utilizada em outras áreas, como a arte,
para analisar a criação de uma obra de arte e identificar suas causas materiais (como a
tinta ou o bronze utilizados), formais (como a composição ou a cor da obra), eficientes
(como o artista que a criou) e finais (como o objetivo ou o significado da obra).
Em resumo, a idéia das quatro causas de Aristóteles é usada como uma ferramenta para
entender e explicar os fenômenos do mundo, sejam eles científicos, artísticos ou outros.
Ela permite identificar e analisar as causas que levam a determinados fenômenos, o que
pode contribuir para o progresso e o conhecimento em diversas áreas.

Diferença entre as quatro causas de Aristóteles e a idéia de


causa na ciência moderna
A ciência moderna tem uma abordagem diferente da de Aristóteles quando se trata de
entender as causas de um fenômeno. Enquanto Aristóteles acreditava em quatro causas
— a causa material, a causa formal, a causa final e a causa eficiente — a ciência
moderna se concentra principalmente na causa eficiente, ou seja, a força ou a ação que
leva a um determinado resultado. Isso é porque a ciência moderna é baseada em
observações empíricas e na experimentação, enquanto a filosofia de Aristóteles era mais
baseada em especulações e na lógica.

Um exemplo dessa diferença é o modo como ambas abordam o movimento dos corpos.
Para Aristóteles, o movimento era visto como uma combinação das quatro causas — a
causa material seria o corpo que está se movendo, a causa formal seria a forma que o
corpo assume ao se mover, a causa final seria o objetivo do movimento e a causa
eficiente seria a força que está causando o movimento. Já para a ciência moderna, o
movimento é entendido como sendo causado pelas forças que agem sobre os corpos,
como a gravidade ou a força resultante de uma aceleração.

A ciência moderna se concentra principalmente na causa eficiente, ou seja, na força ou


ação que leva a um determinado resultado, enquanto a filosofia de Aristóteles incluía
também as causas materiais, formais e finais. No entanto, é importante notar que a
ciência moderna não nega a existência dessas outras causas, mas simplesmente não as
consideram relevantes para o seu estudo empírico. Por exemplo, em biologia, a ciência
moderna estuda o modo como os genes e as células se combinam para produzir
organismos vivos, mas não se preocupa em especular sobre o objetivo final da
reprodução.

Filosofia da arte de Aristóteles: mímesis e


catarse

O que é a arte? O que ela pode fazer conosco? Que efeitos pode provocar? Esses
efeitos são bons ou ruins?

Um dos primeiros registros que temos de pensamento sobre esses problemas é um


livro chamado Poética, escrito pelo filósofo grego Aristóteles, que viveu entre 384 e
322 a. C.
Platão e a arte
Aristóteles foi um aluno de Platão e em grande medida a Poética é uma resposta ao
pensamento de seu professor.

Platão refletiu muito sobre o que seria uma cidade ideal, quais leis ela deveria adotar
e o que deveria ser permitido ou proibido. E a arte era uma das coisas que ele
julgava prejudicial e que deveria ser proibida.

Ele entendia que a arte era imitação. Uma pintura, por exemplo, é a imitação, usando
cores, de objetos que observamos. O mesmo vale para esculturas, que imitam a
forma do que vemos, ou filmes que imitam determinadas ações. 

O problema disso é que, para Platão, conhecer significa conhecer as idéias das
coisas, por exemplo, a idéia de cachorro, não um cachorro em particular. Cachorros
não passam de imitações da idéia de cachorro.

Portanto, a arte, nas palavras de Platão, é “imitação da imitação” e está “três vezes
distante da verdade”, pois ela imita coisas particulares, não as idéias das coisas.

Como, para ele, a verdade é o valor fundamental, a arte, na medida em que não se
preocupa com a verdade, não tem valor.

Arte é mímesis do universal


Aristóteles parte do mesmo ponto de Platão. Ele aceita que a arte é imitação, o que
em grego se chama mímesis. Mas não é uma imitação qualquer.

Ele escreveu o seguinte:

“O ofício do poeta não é descrever coisas realmente acontecidas, mas as que podem,
em dadas circunstâncias, acontecer, isto é, coisas que são possíveis segundo as leis
da verossimilhança e da necessidade.”

Ou seja, o poeta não imita acontecimentos reais, mas o que poderia acontecer, de
acordo com as leis da verossimilhança e da necessidade. 

Por exemplo, num filme, ao representar um personagem com temperamento


explosivo em uma situação de conflito, é verossímil ou até necessário que a cena se
encerre com uma briga. 
Por isso Aristóteles também afirma que “a poesia tende a representar o universal”.
Ao vermos o filme, não estamos aprendendo sobre o comportamento do personagem
específico, mas do ser humano em geral. Pode até ocorrer de nos identificarmos com
o personagem e pensar que, na mesma situação, acabaríamos agindo da mesma
forma. 

 Assim, ao vermos um filme não estamos apenas nos divertindo com imitações de
imitações como pensava Platão, mas aprendendo sobre a natureza das ações
humanas.

O que é uma tragédia grega?


Na Poética Aristóteles analisa duas formas de arte muito importantes na Grécia
Antiga: a tragédia e a comédia. Infelizmente seu texto sobre a comédia se perdeu, de
modo que só nos restou o que escreveu sobre a tragédia.

Ao explicar o que é uma tragédia, Aristóteles escreve:

“A tragédia é a imitação de uma ação elevada e completa, dotada de extensão, numa


linguagem embelezada por formas diferentes em cada uma das suas partes, que se
serve da ação e não da narração e que, por meio da compaixão e do temor, provoca a
catarse de tais paixões.”

Há vários elementos nessa definição que poderíamos analisar com mais calma. No
entanto, o que mais nos interessa nesse momento é a parte final. A tragédia “se serve
da ação para, por meio da compaixão e do temor, provocar a catarse de tais
paixões.”

Vamos ver um exemplo de tragédia e como ela provoca temor e compaixão.

Édipo Rei é uma tragédia grega escrita em 427 a. C. por Sófocles. Aristóteles a
considerou em sua Poética o exemplo mais perfeito de uma tragédia.

A história começa com Édipo, rei de Tebas, enviando seu cunhado ao oráculo de
Delfos para pedir conselhos sobre uma praga que assola a cidade. E assim descobre
que a praga é uma punição divina porque o assassino do antigo rei da cidade, Laios,
nunca foi pego.

Para tentar descobrir quem é o assassino, Édipo pede ajuda para o poeta cego
Tirésias, mas ele se recusa a dizer quem é o responsável pela morte de Laios. Ao
invés disso, sugere que Édipo abandone a busca pelo assassino. 

Mas Édipo reage mal ao pedido e acusa Tirésias de ter provocado a morte de Laios.
E assim o poeta se vê obrigado a revelar que o assassino na verdade é o próprio
Édipo. 

Ao fim de uma acalorada discussão, Tirésias vai embora, murmurando


sombriamente que quando o assassino for descoberto, saberá que é um cidadão
nativo de Tebas, irmão e pai de seus próprios filhos, filho e marido de sua própria
mãe.

Para reconfortar Édipo, Jocasta, sua esposa e ex-mulher do rei assassinado, diz para
não se preocupar com oráculos. Como prova, conta de uma profecia segundo a qual
Laios seria morto pelo seu próprio filho. Mas o que aconteceu foi que ele foi morto
por bandidos em uma encruzilhada a caminho de Delfos.

A menção desta encruzilhada faz com que Édipo peça mais detalhes. Ele pergunta a
Jocasta como Laios era, e de repente fica preocupado que as acusações de Tirésias
sejam verdadeiras.

 Édipo então manda que a única testemunha sobrevivente do ataque, um pastor de


ovelhas, seja trazida para o palácio. 

Intrigada, Jocasta quis saber porque a preocupação. E aí ele explica que muitos anos
atrás, em um banquete em Corinto, um homem embriagado o acusou de não ser filho
de seu pai. Édipo foi a Delfos e perguntou ao oráculo sobre sua paternidade. Em vez
de respostas, ele recebeu uma profecia de que um dia mataria seu pai e dormiria com
sua mãe. Ao ouvir isso, ele resolveu deixar Corinto e nunca mais voltar. Enquanto
viajava, ele veio para a mesma encruzilhada onde Laios foi morto, e encontrou uma
carruagem que tentou expulsá-lo da estrada. Uma discussão se seguiu e Édipo matou
os viajantes, incluindo um homem que bate com a descrição de Jocasta de Laios. 

Édipo tem esperança, no entanto, porque a história é que Laios foi assassinado por
vários ladrões. Se o pastor confirmar que Laios foi atacado por muitos homens,
então Édipo está livre.

Com o desenrolar da história, descobrimos que as profecias estavam corretas. Laios


foi morto por Édipo, seu filho, que em seguida se casou com sua *mãe, Jocasta. 

Catarse do temor e da compaixão


Voltando agora à definição de tragédia de Aristóteles, podemos entender melhor o
que é o temor e a compaixão que essas obras despertam.

Quanto ao temor, ele afirma:

“é uma aflição ou perturbação resultante de se imaginar que suceda uma desgraça


destrutiva ou dolorosa  e que esses acontecimentos não pareçam distantes, mas
próximos e imediatos”

É essa aflição que sentimos desde o início da história de Édipo. Logo que a trama
começa a se desenrolar, suspeitamos que Édipo matou Laios e casou com a própria
mãe. Conforme novos fatos surgem, essa suspeita vai se confirmando, mas
permanece a possibilidade de que haja outra explicação. 
Quando finalmente toda a verdade se revela, já não sentimos temor, mas compaixão
de Édipo.

Aristóteles escreve 

 “daqueles que são atingidos pela desgraça sem o merecer devemos compartilhar a
pena e ter compaixão.”

É o que sentimos da desgraça de Édipo. Ao descobrirmos que seu destino se


realizou, que matou o próprio pai e se casou com a mãe, sofremos com seu
sofrimento, sentimos, com menor intensidade, o que sentiríamos se vivêssemos essa
experiência.

O resultado de tudo isso é a catarse dessas emoções. 

“Catarse” é uma palavra grega traduzida por “purificação” ou “purgação”. Ela era
usada em diferentes contextos. 

Na medicina antiga, por exemplo, essa purificação era feita pelos médicos através de
vômito, suor, sangria e outros métodos. Através disso o organismo era desintoxicado
para recuperar a saúde.

Então a tragédia e outras formas de arte, para Aristóteles, também fazem essa
purificação ou limpeza. Mas ao contrário do corpo, elas limpam as emoções. Depois
de experimentar o temor e a compaixão no teatro, o espectador é libertado de seu
peso. Sai aliviado.

Por analogia com a medicina, podemos pensar que na alma ou mente humana
também existem emoções que são prejudiciais, seja por sua presença ou quantidade.

Pense numa pessoa excessivamente amedrontada ou que se compadece com tudo o


que vê. Tal pessoa, ao passar pela catarse da tragédia, fará uma limpeza nessas
emoções e poderá viver e agir melhor. 

Felicidade e virtude segundo Aristóteles


A felicidade é fim da vida humana
Aristóteles foi um filósofo grego, nascido em 384 a.c. em Estagira, que tinha várias
idéias interessantes sobre o que é uma vida boa. Ele dizia algo que concordaríamos:
queremos várias coisas boas na vida, desde uma cama confortável para dormir até
uma viagem para a praia. Mas ao fim de tudo, o que realmente queremos, é a
felicidade. A própria praia ou a cama confortável nós queremos porque nos deixa
feliz. Sendo assim, o maior bem da vida humana é a felicidade ou o bem supremo. 
Ele escreveu

“Se há um fim das nossas ações que queremos por ele mesmo, quanto os outros os
queremos só em vista daquele, e não desejamos nada em vista de outra coisa
particular (assim, de fato, iríamos ao infinito, de modo que nossa tendência seria
vazia e inútil), é claro que esse deve ser o bem e o bem supremo.”

Aristóteles era grego então ele não falava em felicidade, mas eudaimonia. E essa
palavra pode ser traduzida de formas diferentes. Podemos chamar ela de felicidade,
uma vida bem sucedida ou simplesmente de sucesso. 

Ele disse

“Quanto ao seu nome, a maioria está praticamente de acordo: felicidade o chama,


tanto o vulgo como as pessoas cultas, supondo que ser feliz consiste em viver bem e
em ter sucesso.”

Mas já adianto que vida de sucesso ou feliz para o Aristóteles não tem nada a ver
com sucesso ou felicidade  no sentido atual.

Ele dizia que uma andorinha só não faz verão. Com isso, queria dizer que, para
provar que o verão chegou é necessário mais do que uma andorinha ou um dia
quente. Da mesma forma, para uma vida feliz não bastam alguns momentos
prazerosos.

Surpreendentemente, ele acreditava que as crianças não podiam ser felizes, o que
parece ser um absurdo. Se as crianças não podem ser felizes, quem pode? Isso revela
o quanto sua concepção de felicidade era diferente da nossa. As crianças estão
apenas começando a viver, por isso não tiveram uma vida plena, completa. A
verdadeira felicidade, argumentava Aristóteles, exigia uma vida longa.

Então, se felicidade não é ir à festas ou à praia, ouvir música ou maratonar séries, ou


seja, ter alguns momentos de prazer, o que pode ser?  

A virtude é o meio termo entre extremos


Para chegar ao final da vida e dizer que ela foi feliz, pensava Aristóteles, é
necessário nos treinarmos ou habituarmos a praticar ações virtuosas. E isso significa
algo bem específico para ele. Ele dizia que agir de forma virtuosa é, nas diferentes
situações, adotar o meio termo entre extremos. 

Vamos pensar em alguns exemplos do que Aristóteles pensava ser a virtude. 

Quando o assunto é direção, temos diferentes tipos de motoristas. Tem aqueles que
são extremamente medrosos e que sequer conseguem dirigir um veículo. Uma
pessoa assim, diria Aristóteles, pode estar se privando de coisas importantes na vida
por falta de coragem e poderia ter uma vida melhor se não fosse tão medrosa. 

No outro extremo, há pessoas que são imprudentes no trânsito. São motoristas que
colocam em risco a própria vida, a vida da família e outros desnecessariamente.
Talvez isso resulte em mortes ou pessoas feridas. Esse também é um caso extremo
em que a pessoa não está agindo de maneira virtuosa no trânsito, talvez por excesso
de coragem. 

Por fim, há aquela pessoa que tem a coragem necessária para dirigir em qualquer
situação, mas conhece todos os riscos envolvidos e dirige de forma prudente. Essa
pessoa, não erra por falta nem por excesso, é alguém que Aristóteles chamaria de
virtuoso no trânsito.

Vamos considerar mais um exemplo. Imagine, em um extremo, uma pessoa que em


um relacionamento amoroso é incapaz de dizer não. Tudo o que o parceiro pede ou
propõe a pessoa aceita, mesmo que nem sempre seja esse seu desejo. 

No outro extremo, podemos pensar em uma pessoa que quase sempre diz não. Se
trata de uma pessoa que não presta atenção nos desejos alheios e é incapaz de dizer
sim para o outro. Apenas seus desejos importam. 

Esses dois casos são extremos de comportamentos não virtuosos pensava


Aristóteles. A virtude nos relacionamentos está no meio termo entre esses dois
extremos. Na capacidade de perceber os desejos da outra pessoa e dizer sim algumas
vezes, mas também na capacidade fazer os próprios desejos valerem ao dizer para
aquilo que não se quer.

Enfim, para Aristóteles, uma vida boa deve ser longa, deve ter sido vivida com
virtude, ou seja, a pessoa deve ter sido capaz de encontrar o equilíbrio entre os
extremos nas mais diferentes situações. Apenas ao conseguir isso uma pessoa poderá
dizer que foi bem sucedida e conquistou a chamada eudaimonia. 

Platão e Aristóteles sobre mulheres:


citações selecionadas
Aristóteles, Política

“O homem, a menos que constituído em algum aspecto contrário à natureza, é por


natureza mais perito na liderança do que a fêmea; e o mais velho e completo, mais que o
jovem e incompleto.”

Aristóteles, Política

“A relação de macho para fêmea é por natureza uma relação de superior a inferior e de
governante a governado”.
Aristóteles, Política

“O escravo é totalmente desprovido do elemento deliberativo; a mulher o tem, mas não


tem autoridade; o filho o tem, mas é incompleto”.

Platão, República

“Mulheres e homens têm a mesma natureza em relação à tutela do Estado, salvo na


medida em que um é mais fraco e o outro é mais forte”.

Platão, República

“A relação de homem para mulher é, por natureza, uma relação de superior para inferior
e de governante para governado.”

Aristóteles, História dos Animais

“Portanto, as mulheres são mais compassivas e prontas a chorar, mais invejosas e mais
sentimentais e mais contenciosas. A fêmea também está mais sujeita à depressão do
espírito e ao desespero do que os homens. Ela é também mais desavergonhada e falsa,
mais prontamente enganada, e mais atenta às injúrias, mais ociosa e, em geral, menos
excitável que o macho. Pelo contrário, o macho está mais disposto a ajudar e, como já
foi dito, mais valente do que a fêmea.”

Formas de governo em Aristóteles


Segundo Aristóteles, existem três formas de governo puras: a monarquia, em que um
governa a democracia, na qual o povo governa, e a aristocracia, na qual os mais
qualificados governam.

Uma das questões fundamentais do pensamento político é saber qual a melhor forma de


governo. Em geral, todos acreditam que é melhor viver em sociedade e, para isso,
alguém tem que tomar as decisões coletivas, que impactam na vida de todos. Decisões
como quem vai ter direito a liberdade de expressão, se vai existir previdência ou direitos
trabalhistas, se o trabalho vai ser escravo ou assalariado e assim por diante.

Aceitando que é necessário um governo, a questão que surge em seguida é como esse
governo deve ser organizado. Aristóteles foi um filósofo que criou uma distinção
conceitual sobre tipos de governo que perdurou, sendo repetida por inúmeros outros
filósofos, até o século XIX.

Segundo Aristóteles, existem seis formas de governo diferentes. Em primeiro lugar,


existem aqueles governos que trabalham em favor do bem comum, tais são as formas
puras de governo. São eles a monarquia, a aristocracia e a democracia. O primeiro é o
governo de uma só pessoa, o segundo é o governo dos poucos, dos “melhores”, no
sentido de moralmente e intelectualmente superiores à média da população, e o último é
o governo dos muitos, do povo.
Em segundo lugar, existem as formas corruptas de governo, que são aquelas
governadas em benefício do interesse próprio. Assim, a monarquia corrompida se
torna tirania, na qual uma pessoa se apodera do governo para benefício pessoal
unicamente. A aristocracia corrompida se transforma em uma oligarquia, na qual
algumas famílias ou os mais ricos tomam o poder para vantagem própria. Por fim, a
democracia corrompida se converte em demagogia, na qual os mais pobres usam o
governo em favor de seus interesses.

Um Poucos Muitos
Forma Pura Monarquia Aristocracia Democracia
Forma Corrompida Tirania Oligarquia Demagogia
Assim, forma de governo, para Aristóteles, é o modo como o poder político é
distribuído entre as pessoas que fazem parte de uma sociedade. E os diferentes tipos de
formas de governo são classificados de acordo com dois critérios: o número de pessoas
que possuem poder político e a finalidade para a qual usam esse poder.

Aristóteles – sobre as emoções


Texto 1

Trecho da Retórica

Quando as pessoas se sentem tolerantes e amigáveis pensam de um modo, quando se


sentem irritadas ou hostis, pensam algo totalmente diferente, ou a mesma coisa com
uma intensidade diferente. Quando as pessoas têm sentimentos favoráveis ao sujeito que
lhes é apresentado para julgamento, elas o veem como autor de um mal pequeno, se
tanto. Mas quando têm sentimentos de hostilidade, formam uma opinião oposta. Do
mesmo modo, se as pessoas estão ansiosas e alimentam grandes esperanças em relação a
algo que lhes será agradável, elas pensam que isso certamente vai acontecer e seus
efeitos serão bons. Mas quando elas estão indiferentes ou aborrecidas, não pensam
assim.

Emoções são os movimentos da alma, sempre acompanhados por [graus variados de]
sofrimento ou prazer, que afetam os homens, alterando seus julgamentos. Assim
acontece quando eles estão zangados, com pena de alguém, ou com medo.

Texto 2

Trecho da Ética a Nicômacos

(…) na alma se encontram três espécies de coisas — paixões, faculdades e disposições


(…).

Por paixões quero significar os apetites, a cólera, o medo, a audácia, a inveja, a alegria,
a amizade, o ódio, o desejo, a emulação, a compaixão, e de um modo geral os
sentimentos que são acompanhados de prazer ou sofrimento; por faculdades quero
significar aquelas coisas em razão das quais dizemos que somos capazes de sentir as
paixões — a saber a faculdade de nos encolerizarmos, magoar-nos ou compadecer-nos
—; por disposições, as coisas em razão das quais nossa posição em relação às paixões é
boa ou má. Por exemplo, em relação à cólera, nossa posição é má se a sentimos de
modo violento ou de modo muito fraco, e boa se a sentimos moderadamente; e da
mesma maneira no que se relaciona com as outras paixões.

Ora, nem as virtudes nem as deficiências morais são paixões, pois não somos chamados
bons ou maus por causa de nossas paixões e sim por causa das nossas virtudes ou vícios;
e não somos louvados ou censurados por causa de nossas paixões (um homem não é
louvado por sentir medo ou cólera, nem é censurado por simplesmente estar
encolerizado, mas sim por estar encolerizado de certa maneira); mas somos louvados ou
censurados por nossas virtudes ou vícios.

Além disso, sentimos cólera e medo sem nenhuma escolha de nossa parte, mas as
virtudes são certos modos de escolha ou envolvem escolha. E mais, com respeito às
paixões se diz que somos movidos, mas com relação às virtudes e aos vícios não se diz
que somos movidos, e sim que temos esta ou aquela disposição.

Aristóteles: A filosofia nasce do espanto


Autor: Aristóteles

Todos os homens tendem por natureza ao saber: sinal disto é o prazer produzido
neles pelas sensações, já que estas, independentemente da sua utilidade, são amadas
por si mesmas, e, mais do que todos, aquela que é produzida pelo olhar.

Pode-se dizer, de fato, que preferimos a visão a todas as outras sensações, não só
quando temos um objetivo prático, mas também quando não pretendemos realizar
qualquer ação. E o motivo é que essa sensação, mais do que qualquer outra, nos
permite adquirir conhecimento e nos revela de imediato uma grande quantidade de
diferenças…

Os homens no início como agora, encontram no assombro o motivo para filosofar,


porque no início eles se maravilhavam diante dos fenômenos mais simples, dos
quais não podiam dar-se conta, e depois, paulatinamente, se encontraram diante de
problemas mais complexos, como as condições da Lua e do Sol, e as estrelas, e a
origem do universo.

Epicuro
Biografia
Epicuro nasceu na ilha de Samos, em 341 a.C., pouco tempo depois da morte de
Platão. Começou a se interessar pela filosofia ainda muito jovem. Estudou com
seguidores de Platão e Demócrito, dois dos filósofos mais importantes da
antiguidade. Em 306 a. C. fundou em Atenas uma escola própria e se dedicou a
elaborar uma nova filosofia.

Epicuro é conhecido como o filósofo do jardim, por ter fundado uma escola que era
um misto de escola e comunidade, em uma propriedade particular nos arredores de
Atenas. No jardim, Epicuro vivia em conjunto com seus amigos e seguidores
praticando a filosofia. O local se tornou um símbolo do desapego e do modo de vida
dedicado ao prazer defendido pelos epicuristas.

Epicuro era conhecido e seu modo de vida atraia curiosos. Há uma história sobre um
rei veio lhe visitar uma vez.

E ele estava pensando que esse homem devia estar vivendo no luxo porque seu lema
era: comer, beber e ser feliz. “Se esta é a mensagem”, pensou o rei, “verei pessoas
vivendo em luxo, em condescendência.” Mas quando ele chegou, viu pessoas muito
simples trabalhando num jardim, regando árvores. O dia inteiro eles estavam
trabalhando. Elas tinham muito poucos pertences, apenas o suficiente para viver. E à
noite, quando estavam jantando, não havia nem manteiga; apenas pão seco e um
pouco de leite – mas elas vivenciavam aquilo como se fosse uma festa. Depois do
jantar, dançaram. O dia acabou e eles ofereceram um agradecimento à existência. E
o rei chorou – porque sempre pensara em condenar Epicuro em sua mente.

Ele perguntou: “O que você quer dizer com ‘comer, beber e ser feliz?’”

Epicuro disse: “você viu. Por vinte e quatro horas estamos felizes aqui. E se você
quer ser feliz, você tem que ser simples – porque quanto mais complexo você é,
mais infeliz você se torna. Quanto mais complexa a vida, mais miséria ela cria.
Somos simples, não porque estamos buscando a Deus, somos simples, porque ser
simples é ser feliz.”

E o rei disse: “eu gostaria de enviar alguns presentes para você. O que você gostaria
para o jardim e sua comunidade?”

E Epicuro estava perplexo. Ele pensou e pensou e disse: “não achamos que mais
alguma coisa seja necessária. Não se ofenda; você é um grande rei, você pode dar
tudo – mas nós não precisamos. Se você insistir, pode mandar um pouco de sal e
manteiga.” Ele era um homem austero.

A comunidade logo despertou suspeitas. Epicuro possuía muitos críticos e pessoas


descontentes com sua valorização do prazer. Como sempre acontece, vários boatos
foram espalhados sobre a comunidade dos epicuristas. O irmão de um amigo de
Epicuro chegou a dizer que o filósofo precisava vomitar duas vezes por dia por
comer em excesso. Já Diotino, o Estoico, publicou cinquenta cartas obscenas
alegando terem sido escritas por Epicuro em estado de excitação sexual.

Apesar das associações que falar de prazer geralmente desperta, o que Epicuro
propunha como uma vida feliz era sobretudo o cultivo de prazeres modestos, o
cultivo da amizade e da reflexão, para que a vida não seja assombrada pelo medo
dos deuses ou da morte.

Epicuro morreu em 270 a. C. e epicurismo começou a perder espaço com a ascensão


do cristianismo. Os cristãos não viam com bons olhos a valorização epicurista dos
prazeres mundanos, pelo contrário, tudo isso era encarado como um pecado pela
nova religião. O cristianismo também foi um dos motivos pelos quais restaram
poucos escritos de Epicuro. Embora tenha sido um escritor prolífico, de suas
inúmeras obras restaram a Carta a Meneceu, uma breve exposição das suas ideias
éticas, a Carta a Heródoto, que resumo de sua metafísica e a Carta a Pítocles, que
fornece uma explicação atomista para fenômenos naturais.

Ainda assim, sua influência na antiguidade foi duradoura. Cerca de 400 anos depois
da morte de Epicuro, Diógenes, um homem rico de Enoanda, pagou pela construção
de um muro no mercado da cidade com mensagens baseadas na filosofia de Epicuro.
Ele explica que pouco antes de morrer quis “compor um belo hino para celebrar a
plenitude do prazer e, dessa forma, ajudar aqueles que estão saudáveis”. Era uma
lembrança aos seus conterrâneos do que realmente tem valor na vida. No muro, se
encontram frases como

“comidas e bebidas requintadas de modo algum libertam do mal ou proporcionam a


saúde da carne.”

“Deve-se atribuir à riqueza excessiva o mesmo grau de inutilidade que representa


acrescentar água a um recipiente que já está prestes a transbordar.”

Filosofia de Epicuro
Epicuro via a filosofia como uma medicina da alma. Se a medicina procura livrar o
ser humano de doenças e proporcionar uma vida saudável, a filosofia procura curar
os males da alma e proporcionar uma vida feliz.

Epicuro procurou oferecer uma cura para a alma humana a partir de suas reflexões
sobre a natureza e sobre a ética. A primeira, procura oferecer uma imagem adequada
da natureza, para que o ser humano não tema a morte nem aos deuses. A segunda,
mostrar o que é realmente importante para a felicidade.

Tudo é átomo e vazio


Epicuro estudou com um seguidor de Demócrito e assim como esse pensava que o
universo é composto de átomos e espaço vazio entre eles. A razão que o leva a
pensar assim é o fato de que tudo o que observamos é composto de partes menores.
Um corpo humano, por exemplo, é composto de uma série de órgãos. Os órgãos, por
sua vez, são compostos de células e assim por diante. Porém, esse processo de
divisão não pode continuar infinitamente. Chegará um momento que encontraremos
algo que não possui partes e não poderá ser dividido. Teremos encontrado o átomo,
que em grego significa “sem partes”. Além disso, deve haver espaço vazio para que
os objetos, pessoas, animais se movimentem, do contrário a natureza seria estática.
Essa concepção materialista de Epicuro tinha como finalidade terapêutica livrar as
pessoas do medo dos deuses. Era comum na época pensar, na falta de explicação
melhor, que os fenômenos naturais como tempestades, terremotos e outras
catástrofes naturais eram o resultado da fúria divina, uma punição pelo
comportamento incorreto dos humanos.

Para Epicuro, não é possível levar uma vida feliz sentindo medo a todo momento de
punições dos deuses. Para livrar os homens dessa doença da alma, defendia que
todos os fenômenos naturais, incluindo as catástrofes, eram o resultado do
movimento dos átomos. Não havia por trás disso qualquer intenção ou propósito,
apenas manifestações de uma natureza alheia aos interesses humanos.

Os deuses
Epicuro era acusado de ateu, embora não negasse a existência dos deuses. Porém
pensava que os deuses eram completamente diferentes daquilo que pensavam as
pessoas da época (e ainda hoje pensam). Pensava nos deuses como um tipo de ser
especial, extremamente feliz e tranquilo, totalmente alheio aos seres humanos. Ele
escreveu sobre os Deuses que

“Aquele que é plenamente feliz e imortal não tem preocupações, nem perturba os
outros; não é afetado pela cólera ou pelo favor, já que tudo isso é próprio à
fraqueza.”

Epicuro também fez críticas à concepção tradicional sobre deus ao apresentar o


chamado problema do mal. Ele foi responsável por uma das primeiras formulações
desse problema, que se tornaria muito discutido na Idade Moderna, cerca de quinze
séculos depois.

A morte
O segundo maior medo dos seres humanos, depois dos deuses, é da morte. Nesse
caso, Epicuro também tinha um remédio baseado no atomismo. Muitos filósofos,
como Platão, por exemplo, e pessoas comuns, acreditam no chamado dualismo de
corpo e alma. Trata-se da crença de que o ser humano é composto por um corpo
material, mortal, e uma alma não material e imortal.

Epicuro propôs uma filosofia da mente materialista. A mente humana, responsável


por nossa capacidade de pensar, não é a alma como pensava Platão. Ao contrário, é
um órgão composto de átomos assim como o coração. Não é possível que a mente
seja uma alma imaterial porque corpo e mente estão a todo momento conectados e
interagindo. Se penso em levantar da cadeira, minha mente é capaz de levantar meu
corpo da cadeira. Se vejo uma cena emocionante através de meus olhos, meu estado
emocional muda. Ora, como uma alma imaterial poderia se relacionar com um corpo
material? Para Epicuro, por essa razão, não faz sentido postular a existência de uma
alma imaterial para explicar os pensamentos. Assim como os demais fenômenos
naturais, os pensamentos são o resultado de movimentos dos átomos.
Consequentemente, não há vida após a morte. Com a morte do corpo, seus átomos
se separam e a pessoa que existia até então, suas memórias, medos, desejos deixam
de existir.

Por essa razão, não há porque temer a morte. Na Carta a Meneceu, Epicuro escreve
que

“o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós, justamente
porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando
a morte está presente, nós é que não estamos.”

Como a morte é o fim de qualquer consciência, não tem como ser dolorosa. Como a
morte não resulta em dor nem sofrimento, não há porque temê-la.

Uma vida feliz


Para Epicuro, uma vida feliz é uma vida de prazeres. Ele afirma que o prazer é a
finalidade da vida. Porém, nem sempre devemos nos entregar aos prazeres
indiscriminadamente. É necessário fazer uma análise de custo benefício e avaliar se
de um determinado prazer não surgirá, ao final, mais dor do que prazer.

É importante notar que que para Epicuro uma vida de prazeres é bem diferente do
que geralmente pensamos ser um prazer. Na carta a Meneceu, o filósofo escreveu o
seguinte:

Não são bebidas nem banquetes contínuos, nem a posse de mulheres e rapazes, nem
o sabor dos peixes ou das outras iguarias de uma mesa farta que tornam doce uma
vida

Epicuro diferencia três tipos de desejos presentes nos seres humanos:

1. Desejos naturais e necessários. Esses são os desejos elementares da


natureza humana, como a comida, bebida, sono, amizade. Não há como ser
feliz sem satisfazer esses desejos.
2. Desejos naturais, mas não necessários. São desejos naturais, que resultam
de necessidades humanas, mas é possível viver e ser feliz sem eles. São
exemplos desse tipo de desejo uma mansão, banquetes, muita bebida.
3. Desejos inúteis. Nessa última categoria se encontram os desejos que não
satisfazem nenhuma necessidade natural, mas resultam das falsas opiniões
humanas sobre uma vida boa. Estão incluídos aqui o desejo de fama, glória e
poder.

Todos esses desejos, assim como o medo da morte ou dos deuses, estão presentes
nos seres humanos e geram uma série de sofrimentos e perturbações. Se tenho
desejo de comer, por exemplo, mas não tenho acesso a alimentos de qualquer
natureza, sofrerei com a sensação de fome. Da mesma forma, se tenho desejo de ser
muito rico, mas não encontro os meios para isso, o resultado será frustração e
tristeza.
Porém, Epicuro pensa que a satisfação dos desejos naturais é fácil, de modo que daí
não surgirá sofrimento. Os demais desejos, por outro lado, podem ser evitados desde
que a pessoa se dedique à reflexão.

O ideal epicurista é uma vida simples, tranquila e rodeada de amigos. O objetivo


principal de sua filosofia foi livrar os seres humanos de crenças falsas que geram
grande sofrimento ao longo da vida. Um epicurista seria capaz de alcançar um
estado de tranquilidade e contentamento com o que a vida oferece, desfrutando de
prazeres simples proporcionados pelas necessidades naturais e necessárias ao lado
de muitos amigos.

Citações de Epicuro
A filosofia

Assim como a medicina não traz benefícios se não liberta dos males do corpo, o
mesmo sucede com a filosofia, se não liberta dos sofrimentos da alma.

O homem que alega não estar ainda preparado para a filosofia ou afirma que a hora
de filosofar ainda não chegou ou já passou assemelha-se ao que diz que é jovem ou
velho demais para ser feliz.

A amizade

De todas as coisas que nos oferece a sabedoria para a felicidade de toda a vida, a
maior é a aquisição da amizade.

Antes de comer ou beber qualquer coisa, pondere com mais atenção sobre com
quem comer e beber do que sobre a comida ou a bebida, pois alimentar-se sem a
companhia de um amigo é o mesmo que viver como um leão ou um lobo.

A morte

Não existe nada de medonho na vida para o homem que compreendeu


verdadeiramente que não existe nada de terrível em não viver.

Livros de Epicuro
A Carta a Meneceu é um dos principais documentos sobre as ideias de Epicuro. É
uma carta escrita a uma amigo que aborda os principais tópicos de sua filosofia. É
um texto curto que vale muito a leitura, se você tem interesse em conhecer melhor o
filósofo do prazer.

Filosofia helenística
A filosofia helenística tem início com as grandes expedições de Alexandre (322
a.C.) e termina no início da era cristã. Nesse período, há uma verdadeira reviravolta
no pensamento filosófico por causa de mudanças políticas provocadas pelas
conquistas de Alexandre. Entre as mudanças, a filosofia se torna mais preocupada
com o indivíduo e menos com a cidade e a política; a busca de um modo de vida
feliz se torna o centro das atenções dos filósofos; a filosofia passa a adotar um ideal
cosmopolita e os filósofos passam a se ver como “cidadãos do mundo” ao invés de
cidadãos de uma cidade particular.

A vida feliz
Epicuro, um importante filósofo do período helenístico, afirmou que “é vão o
discurso daquele filósofo que não cure algum mal do espírito”. Ou seja, é inútil fazer
filosofia se ela não trazer felicidade e reduzir o sofrimento. Nesse aspecto, Epicuro
está dizendo algo sobre o qual todos os filósofos desse período concordam.

A filosofia é vista nesse momento como estando atrelada a um modo de vida. O


filósofo, então, não é aquele que simplesmente escreve um livro, formula uma teoria
ou diz belas palavras. Mas aquele que reflete sobre a existência e vive de acordo
com algum ideal de vida boa. Todas as escolas desse período, o cinismo, o
estoicismo, o epicurismo, o ceticismo, adotam esse ideal de filosofia e desenvolvem
diferentes concepções de vida feliz, como iremos ver.

Escolas da filosofia helenística


Cinismo
A escola cínica teve início com Antístenes (445 – 360 a. C.) que, assim como Platão,
foi um seguidor de Sócrates e se via como responsável por dar continuidade à sua
filosofia. Depois da morte do mestre, abandonou a vida fácil dedicada ao ócio e
passou a viver do trabalho e entre pessoas pobres. Rejeitou o luxo da civilização e
procurou viver de forma mais natural.

A escola cínica teve continuidade com Diógenes (400 – 325 a. C.), um dos seus
representantes mais conhecidos. O filósofo abriu mão completamente das
comodidades da civilização e procurou viver de acordo com a natureza. Deixou de
se tomar banho e vivia num barril. Não respeitava convenções sociais, de modo que
fazia tudo em público, inclusive se masturbar. Seu comportamento rendeu-lhe o
apelido de “cínico” que em grego significa “como um cão”.

Estoicismo
A escola estóica surgiu com Zenão (333 – 263 a. C.) e teve uma longa existência,
sendo muito influente no Império Romano e inclusive na formação do cristianismo.
Grandes pensadores de Roma, como Sêneca, Epiteto e Marco Aurélio pertenceram a
essa escola.

O estoicismo partiu de uma idéia do universo como algo governado por princípios
racionais (algo como o que chamamos hoje de leis científicas) que é possível aos
seres humanos conhecer. Os estóicos não acreditavam nos deuses mitológicos e,
sendo assim, viam a natureza de forma determinista. De nada adianta rezar para os
deuses pedindo que uma tempestade, por exemplo, não aconteça. Ela acontecerá de
qualquer forma e não há nada que os seres humanos possam fazer para evitá-la.

Considerando esse caráter inevitável de tudo o que ocorre na natureza, um filósofo


estóico certa vez disse que o homem é “como um cão amarrado a uma carroça,
obrigado a ir para onde ela vai.” Com isso queria nos lembrar que estamos
completamente sujeitos às forças da natureza e suas leis imutáveis.

Diante dessa realidade, sem um deus salvador, só resta uma saída para levar uma
vida feliz: se adaptar às circunstâncias, aceitar o que acontece ao invés de resistir. É
por isso que hoje usamos a palavra “estóico” para se referir àquelas pessoas capazes
de enfrentar as situações mais difíceis, como a morte, de forma calma e sem
desespero.

O estoicismo ensina o autocontrole, o controle das emoções e desejos, dessa forma,


o filósofo estóico pode enfrentar qualquer situação sem grande sofrimento e levar
uma vida feliz.

Epicurismo
Essa escola da filosofia helenística teve origem com Epicuro (341 – 270 a. C.). Por
volta de 300 a. C. ele passou a viver com alguns amigos em um jardim nos arredores
de Atenas. Nessa comunidade, levavam uma vida simples dedicada ao prazer, o
grande ideal de vida epicurista.

Essa filosofia conquistou muitos admiradores ao longo do tempo. A obra-prima do


poeta romano Lucrécio, Sobre a natureza, é dedicada à filosofia epicurista.

Nada melhor do que uma história para ilustrar o que os epicuristas consideravam
uma vida feliz.

Epicuro era conhecido e seu modo de vida atraia curiosos. Dizem que o rei veio
visitar uma vez. Ele pensava que esse homem devia estar vivendo no luxo porque
seu lema era: comer, beber e ser feliz. “Se esta é a mensagem”, pensou o rei, “verei
pessoas vivendo em luxo, em condescendência.” Mas quando ele chegou, viu
pessoas muito simples trabalhando no jardim, regando as árvores. O dia inteiro eles
estavam trabalhando. Eles tinham muito poucos pertences, apenas o suficiente para
viver. E à noite, quando estavam jantando, não havia nem manteiga; apenas pão seco
e um pouco de leite — mas eles apreciavam a vida como se fosse uma festa. Depois
do jantar, eles dançaram. O dia acabou e eles ofereceram um agradecimento à
existência. E o rei chorou — porque sempre pensara em condenar Epicuro em sua
mente.

Ele perguntou: “O que você quer dizer com comer, beber e ser feliz?”
Epicuro disse: “Você viu. Por vinte e quatro horas estamos felizes aqui. E se você
quer ser feliz, você tem que ser simples — porque quanto mais complexo você é,
mais infeliz você se torna. Quanto mais complexa a vida, mais miséria ela cria.
Somos simples, não porque estamos buscando a Deus, somos simples, porque ser
simples é ser feliz.”

E o rei disse: “Eu gostaria de enviar alguns presentes para você. O que você gostaria
para o jardim e sua comunidade?”

E Epicuro estava perplexo. Ele pensou e pensou e disse: “Não achamos que mais
alguma coisa seja necessária. Não se ofenda; você é um grande rei, você pode dar
tudo — mas nós não precisamos. Se você insistir, pode mandar um pouco de sal e
manteiga.”

Nisso se resumia a filosofia do prazer recomendada por Epicuro: apreciar os


pequenos prazeres da vida e assim ser feliz.

Ceticismo
O ceticismo teve início com Pirro (360 – 272 a. C.), que defendia que devemos
suspender o juízo sobre todas as coisas e não adotar crença alguma. O cético é
aquele que não acredita em nada, nem mesmo naquilo que vê com os próprios olhos.

Os céticos apresentavam uma série de razões para justificar a necessidade de


suspender o juízo. Uma delas é a divergência de opiniões. Não existe uma ideia que
seja aceita integralmente por todos os seres humanos. Cada filósofo tem uma
opinião diferente sobre os mais diferentes assuntos, assim como as pessoas comuns.
Diante dessa divergência generalizada, os céticos pensam que a única posição
razoável é suspender o juízo.

O objetivo dos céticos era atingir um estado de tranquilidade absoluta no qual nada
afeta. O caminho para isso é justamente evitar manter uma opinião sobre qualquer
assunto. Há uma história segundo a qual durante uma tempestade em alto mar o
barco que Pirro era balançado por ventos violentos e jogado de um lado para o outro
pelas ondas enormes. Toda a tripulação estava apavorada com o risco da morte e
ainda assim o filósofo permanecia indiferente ao perigo. Olhando para um porco que
comia calmamente na tempestade, apontava no animal um exemplo de
comportamento sábio. Pirro conseguia se manter nesse estado porque evitava
acreditar em coisas como “o barco vai afundar”, “irei morrer”, “a vida é melhor que
a morte”. Ao contrário, suspendia seu julgamento e assim evitava preocupações
desnecessárias.

Antístenes
Antístenes foi um filósofo grego que viveu entre 445 a.C. e 365 a.C. Ele foi um dos
seguidores de Sócrates, um dos muitos que tentaram dar continuidade à sua filosofia.
É considerado o fundador de uma escola filosófica muito influente na antiguidade,
a escola cínica.

Antístenes era filho de um pai ateniense e mãe da Trácia — região próxima à Grécia
— o que lhe rendeu uma série de preconceitos. Os atenienses não viam com bons
olhos qualquer pessoa que não fosse grega. De fato, chamavam todos de bárbaros,
com um sentido totalmente depreciativo. O fato de Antístenes ser meio sangue
ateniense e meio sangue bárbaro lhe rendeu certa discriminação, porém parece ter
sido muito inteligente nas respostas àqueles que insistiam fazer piadas com isso. A
quem o ridicularizava, respondia “a mãe dos deuses também é da Frígia” ou os
insultava afirmando que os atenienses “não eram mais nobres que caracóis e
gafanhotos”.

Antístenes inicialmente estudou com Górgias, um dos primeiros sofistas, com quem


aprendeu retórica. Em seguida encontra Sócrates e abandona seus estudos iniciais. A
filosofia de Sócrates passou a exercer uma grande atração. Conta-se que caminhava
diariamente cerca de oito quilômetros para ouvir Sócrates, com quem aprendeu a
resistência e a impassibilidade, duas características marcantes da filosofia cínica.

Seus livros somaram dez volumes sobre os mais diversos assuntos, a ponto de ser
chamado de “tagarela prolífico”, mas todos se perderam na antiguidade.
Conhecemos um pouco de seu pensamento por intermédio de fontes secundárias.

Vamos conhecer alguns temas de sua filosofia.

As convenções sociais
Os cínicos eram diretos e não faziam nenhum esforço para respeitar as convenções
sociais. Diziam o que viam e pensavam, sem restrições. A língua afiada de
Antístenes fez inúmeras vítimas, entre elas Platão.  Certa vez disseram que Platão
falava mal sobre ele, ao que respondeu: “é um privilégio dos reis agir bem e ouvir
falar mal.”

Durante uma procissão viu um cavalo que trotava de maneira solene, se virou para
Platão e, ridicularizando o orgulho desse, disse “parece-me que também poderias
marchar como aquele vistoso cavalo”. Outra vez, foi visitar Platão doente, e vendo
uma bacia na qual havia vomitado, disse “vejo a bile aqui, mas não consigo ver o
orgulho.”

Presente em uma espécie de culto religioso e ouvindo do sacerdote que aqueles que
adotavam sua religião tinham muitas vantagens na vida após da morte, respondeu
“então, por que não morres?”

Dizia ainda, zombando do sistema de escolha de generais usado pelos atenienses,


para decretarem que os asnos são cavalos. Sua justificativa era a seguinte: “os
generais não parecem ter experiência alguma e são eleitos com um simples levantar
de mãos.”
Os cínicos prezavam pela liberdade, sob várias formas. Umas delas é a liberdade de
palavra, ou seja, dizer o que se pensa, com sinceridade. Nesse aspecto, desafiam as
convenções sociais que exigem uma certa dissimulação e não dizer tudo que se
pensa, para manter as aparências.

Antístenes também não fazia questão de levar a sério as leis da cidade. O homem
sábio, pensava, não é aquele que faz tudo o que as leis ordenam, mas aquele que é
capaz de avaliar, através do uso de sua própria razão, o que é correto e o que é
incorreto. As leis não passam de convenções sociais adotadas em uma cidade. São
apenas os costumes de um povo particular. O homem sábio procurará viver de
acordo com sua razão, não de acordo com a vontade da cidade.

Simplicidade voluntária
Outra característica marcante da escola cínica que inicia com Antístenes é a escolha
por uma vida simples sem a necessidade de grande riqueza. É importante não
confundir isso com pobreza, já que essa é uma privação involuntária de bens
necessários para uma vida digna.

O que Antístenes e outros cínicos faziam era abrir mão de coisas supérfluas para
viver de forma autossuficiente. O sábio é aquele que se basta a si mesmo e cuja
felicidade não depende de fatores externos, sejam pessoas ou coisas. Esse ideal de
independência era conhecido pela palavra grega autarquia.

Em relação a isso, Antístenes dizia, por exemplo, que a bagagem necessária em uma
viagem é aquela que fica boiando quando o navio afunda.

A ética de Antístenes
O ideal de vida de Antístenes era de total independência, liberdade e
autossuficiência. O sábio é aquele que se basta a si mesmo. E isso exige muito
trabalho e esforço, para se desligar da riqueza, não sofrer com a dor, abrir mão dos
prazeres, da fama, tudo que seja exterior. O ideal do filósofo é construir uma espécie
de fortaleza psicológica de modo que não dependa de ninguém nem de nada para
uma existência plena.

Nesse processo, é fundamental a prática, não a teoria. Antístenes demonstrava um


certo desprezo pela filosofia especulativa, que se limitava a teorizar sobre a vida, a
felicidade etc. O filósofo é como um atleta. Cabe a ele praticar sua concepção de
vida para se tornar mais forte, impassível, resistente.

Embora todos os livros escritos por Antístenes tenham sido perdidos, restaram
muitas máximas do filósofo que expressam seu pensamento sobre ações humanas
em diversas ocasiões.

Alguém que lhe perguntou com que mulher se casar, respondeu: “se escolheres uma
mulher bela não a terás somente para ti; se for feia, penará por isso.”
Dizia que era melhor cair entre os corvos do que os aduladores, porque “os
primeiros devoram os mortos, e os outros devoram os vivos” e que devemos dar
atenção aos inimigos, porque “são os primeiros a notar nossos erros.”

Hipárquia
Hipárquia é notável por ser uma das poucas mulheres filósofas da Grécia Antiga.
Atraída pelas doutrinas e dificuldades auto-impostas pelo estilo de vida cínico,
Hipárquia viveu na pobreza com o marido, Crates. Embora nenhum texto dos cínicos
existente seja diretamente atribuído à Hipárquia, os relatos anedóticos registrados
enfatizam tanto sua retórica direta quanto sua não-conformidade aos papéis tradicionais
de gênero.

Se casar é um papel social tradicional que os cínicos normalmente rejeitariam. Mas com
seu casamento com Crates, Hipárquia elevou as expectativas culturais gregas em relação
ao papel das mulheres no casamento, assim como a própria doutrina cínica. Com o
marido, Hipárquia incorporou publicamente os princípios cínicos fundamentais.
Especificamente, que o caminho para a virtude era viver de acordo com a natureza,
evitar o materialismo convencional e abraçar a auto-suficiência. Relatos sobre a vida de
Hipárquia referiam-se em particular à sua falta de vergonha ou anaideia, e a sua
acuidade retórica nos simpósios gregos tradicionalmente frequentados apenas por
homens. Com Crates, Hipárquia é considerada uma influência direta na filosofia estoica.

Hipárquia nasceu em Maroneia na Trácia. Ficou famosa por seu casamento com Crates,
o cínico, e infame por supostamente consumar o casamento em público. Provavelmente
nasceu entre 340 e 330 a.C., e estava em sua adolescência quando decidiu adotar o
manto cínico. Ela pode ter sido apresentada à filosofia por seu irmão, Metrocles, que foi
aluno no Liceu de Aristóteles e depois começou a seguir Crates. A maior parte de nosso
conhecimento sobre Hiparquia vem de anedotas e ditos repetidos por autores
posteriores.

Uma dessas anedotas afirma que Hipárquia estava tão ansiosa para se casar com Crates
que ameaçou se matar se ele não aceitasse. Embora Crates já fosse um homem idoso,
ela rejeitou seus pretendentes jovens porque se apaixonou pelos discursos e pela vida de
Crates.

Seus pais imploraram a Crates que a convencesse a mudar de idéia e ele recorreu a todo
que pode para isso. Vendo que não era bem-sucedido, tirou toda a roupa diante dela e
disse: “eis o futuro esposo e aqui estão seus bens; decide, portanto, pois não poderás ser
minha consorte se não se adaptares ao meu modo de viver”. Não é possível saber até
que ponto essa história é verdadeira. De qualquer forma, sabemos que Hipárquia
escolheu se casar com Crates e compartilhar suas atividades filosóficas.

A decisão de Hipárquia de se tornar uma cínica foi surpreendente, por causa do


desrespeito cínico pelas instituições convencionais e pela extrema dificuldade de seu
estilo de vida. Os cínicos tentaram viver “de acordo com a natureza” rejeitando
convenções sociais artificiais e recusando todos os luxos, incluindo quaisquer itens não
absolutamente necessários para a sobrevivência. Eles desistiram de suas posses, usavam
apenas um simples manto e um deles até vivia num barril. O ideal de vida cínico era a
autossuficiência.

A disposição de se casar com Crates também era incomum, considerando que o


casamento é uma instituição social do tipo normalmente rejeitado pelos cínicos, e os
cínicos anteriores, como Diógenes e Antístenes, sustentavam que o filósofo nunca se
casaria.

Alguns autores relatam que Hipárquia e Crates fizeram sexo em um pórtico público. Se
o conto é exato ou não, eles eram conhecidos por se comportarem em todos os aspectos
de acordo com o valor cínico de anaideia, ou falta de vergonha. A história do
casamento cínico de Hipárquia rapidamente se tornou o primeiro exemplo dessa virtude,
que é baseada na crença cínica de que quaisquer ações virtuosas o suficiente para serem
feitas em particular não são menos virtuosas quando realizadas em público.

A relação de Hipárquia e Crates influenciou seu pupilo Zenão de Cítio, o fundador do


estoicismo. Ele irá defender a igualdade dos sexos, o exercício e treinamento público
conjunto entre homens e mulheres e uma versão de “amor livre” em que aqueles que
desejam ter sexo simplesmente satisfarão seus desejos onde quer que estejam no
momento, mesmo em público.

Segundo alguns relatos, Hipárquia e Crates tiveram um filho, Hipárquia, gerado e criado
de acordo com seus valores cínicos. Quaisquer que fossem os detalhes reais de suas
práticas, seu exemplo influenciou as atitudes cínicas posteriores em relação à gravidez e
à educação dos filhos. Por exemplo, uma das cartas atribuídas a Crates sugere que
Hipárquia deu à luz “sem problemas” porque ela acreditava que o “trabalho de parto é a
causa de não trabalhar”. O parto foi mais fácil porque ela continuou a trabalhar “como
um atleta” durante a gravidez, o que o autor nota que é incomum. As cartas também
mencionam o uso de um berço de casco de tartaruga por Hipárquia e água fria para o
banho do bebê.

Hipárquia também é famoso por uma discussão com Teodoro, o Ateu, um filósofo
cirenaico que havia desafiado a legitimidade de sua presença em um simpósio. Ele
questionou sua presença citando um verso de Eurípides,

“quem abandonou a lançadeira junto ao tear?”

E Hipárquia respondeu:

“fui eu, Teodoro, mas acreditas que tomei uma decisão errada se dediquei à minha
educação o tempo que teria dedicado ao tear?”

No antigo contexto cultural grego, as mulheres de sua classe social normalmente se


ocupavam em tecer e organizar os criados domésticos, e a rejeição de Hiparquia das
expectativas convencionais para as mulheres era bastante radical.

Hipárquia é a primeira filósofa sobre a qual temos alguns registros históricos além do
nome. Já na antiguidade seu valor e contribuição foram reconhecidos. Segundo
relatados, sua cidade natal teve o nome alterado em sua homenagem.
Pirro de elida
Pirro nasceu na cidade de Élida em torno de 360 a.C. e inicialmente se dedicou à
pintura, no que não foi bem-sucedido. Parece ter se voltado para a filosofia depois que
fez uma viagem ao Oriente em uma expedição de Alexandre. Na Índia, conheceu os
gimnosofistas, sábios indianos. Numa demonstração de coerência inacreditável, um
desses sábios se jogou voluntariamente em uma fogueira e suportou impassível a dor
enquanto as chamas devoravam seu corpo.

Ao retornar para sua cidade natal, passou a se dedicar à filosofia com a qual atraiu
bastante atenção. O respeito que conquistou por seu modo de vida e comportamento fez
com que fosse apontado como sacerdote e que os filósofos não precisassem pagar
impostos. Nesse aspecto, Pirro se destacava pela sua tranquilidade e capacidade de não
se deixar afetar pelo que ocorria a sua volta. De fato, sua capacidade de se manter calmo
nas situações mais adversas era extraordinária.

Há uma história segundo a qual durante uma tempestade em alto mar o barco que Pirro
era balançado por ventos violentos e era jogado de um lado para o outro pelas ondas
enormes. Toda a tripulação estava apavorada com o risco da morte e ainda assim o
filósofo permanecia indiferente ao perigo. Olhando para um porco que comia
calmamente na tempestade, apontava no animal um exemplo de comportamento sábio.

As histórias sobre Pirro são abundantes. Algumas servem para compreendermos alguns
conceitos de sua filosofia, outras foram criadas por críticos para ridicularizar suas
ideias. De qualquer forma, é importante sempre manter um certo ceticismo em relação
às duas.

Uma segunda anedota conhecida sobre sua tranquilidade e indiferença é um episódio


envolvendo seu amigo Anáxarcos. Este havia caído em um pântano e não conseguia
sair. Gritava pela ajuda de pessoas que passavam próximas ao local. Num determinado
momento, vê Pirro passando, olhando em sua direção mas seguindo em frente sem fazer
nada para ajudá-lo. Apesar disso, elogia o amigo pela indiferença.

Diante de uma pessoa tão pitoresca, é natural se perguntar o que pensava para viver
dessa forma. E a resposta é: Pirro era um cético.

O ceticismo de Pirro
Pirro é o pai de uma filosofia chamada de ceticismo.  A questão central desse filósofo é
o que podemos conhecer com certeza? Algumas pessoas estão certas de possuírem uma
alma, enquanto outras alimentam dúvidas sobre sua existência. No entanto,
praticamente ninguém duvidaria que em inúmeras situações podemos ter certeza. Por
exemplo, imagine que você está a poucos metros de um cão que se mostra numa posição
de ataque. Ele mostra os dentes e começa a correr em sua direção. Numa situação como
essa, você certamente não ficaria parado, calmo, pensando que a existência do cão é
incerta, pois pode ser uma ilusão criada pelos seus olhos.

Pirro ao contrário, acreditava que não podemos ter certeza de absolutamente nada. Nem
mesmo de que existe um cão feroz na sua frente.
O filósofo pensava que existiam três perguntas fundamentais:

1. Como as coisas realmente são?


2. Que atitude deveríamos adotar em relação à elas?
3. O que acontecerá com aqueles que adotarem essa atitude?

A primeira dessas questões, Pirro respondia que não como podemos saber como as
coisas realmente, apenas como elas nos parecem.  A mesma coisa parece diferente para
pessoas diferentes, e, portanto, é impossível saber qual opinião é correta. A diversidade
de opinião entre os sábios, bem como entre as pessoas comuns, prova isso. Para cada
afirmação, a afirmação contraditória pode ser oposta com igualmente bons
fundamentos, e qualquer que seja a minha opinião, a opinião contrária é acreditada por
alguém que é tão inteligente e competente para julgar como eu. Opinião podemos ter,
mas certeza e conhecimento são impossíveis.

Com relação à segunda questão, o filósofo acreditava que deveríamos suspender o juízo
em relação a tudo. Normalmente, pensamos que uma ação é boa ou ruim, justa ou
injusta, prejudicial ou benéfica. Pense no episódio da tempestade: quantos julgamentos
faríamos numa situação assim? Mesmo sem querer, pensamos que o barco irá afundar,
que se afundar iremos morrer, que a morte é pior que a vida, por isso é melhor continuar
vivendo etc. Todos esses julgamentos, pensava Pirro, são precipitados, pois não
podemos saber realmente tudo isso. O mais correto, então, seria evitar julgar.

Por fim, aqueles que adotam a atitude adequada em relação à todas as coisas, ou seja, a
suspensão do juízo, terão como recompensa uma grande tranquilidade que surge da
indiferença, do não-julgamento. Era esse o segredo da tranquilidade de Pirro. Era capaz
de se manter calmo em qualquer situação porque evitava fazer julgamento sobre tudo.

Heráclito

Heráclito é um filósofo pré-socrático que nasceu na cidade de Éfeso, na Grécia


Antiga, aproximadamente no ano de 535 a.C. e morreu em 475 a.C. Essa cidade fica
perto de Mileto, onde nasceu a filosofia.  Como os demais pré-socráticos se
dedicaram à investigação da natureza, mas também foi além, explorando outros
domínios, como a política e a ética. É lembrado, sobretudo por sua afirmação de
que, na natureza, “tudo flui”.

Heráclito não era uma pessoa muito sociável. Pelo contrário, era desdenhoso e
aparentemente desprezava as pessoas. Tanto que não quis participar da política –
algo bastante valorizado entre os gregos – e mesmo quando foi convidado a redigir
leis para a cidade, recusou.

Escreveu um livro cujo título é “Sobre a Natureza” do qual restaram alguns


fragmentos. Pelo estilo empregado na escrita, Heráclito ficou conhecido como “o
obscuro”. Quando perguntado por que escrevia de maneira difícil, respondeu que o
fazia para evitar a ilusão daqueles que lêem coisas aparentemente fáceis e pensam
entender o que de fato não entendem.

Apesar de obscuro, seus escritos escondem idéias valiosas.

Idéias de Heráclito
Tudo flui
Dos fragmentos que restaram do livro de Heráclito certamente o mais conhecido é o
seguinte:

“Não se pode descer duas vezes o mesmo rio, e não se pode tocar duas vezes uma
substância mortal no mesmo estado, pois por causa da impetuosidade e da
velocidade da mudança, ela se dispersa e se reúne, vem e vai. (…) Nós descemos e
não descemos pelo mesmo rio, nós próprios somos e não somos.”

Para Heráclito, as aparências enganam. Ao chegarmos em um rio que já conhecemos


em outra ocasião, pensamos ser este o mesmo rio de antes. Porém, dado o fluxo
constante de água, já não é mais o mesmo. A água que existia antes já desceu rio
abaixo e a que vejo agora é uma nova. Nós também não somos mais os mesmo, já
que nosso corpo sofre um processo de constante mudança. E não só isso, o simples
fato de entrarmos na água promove uma alteração em nosso corpo.

Também é em razão dessa mudança constante que Heráclito diz que “somos e não
somos”. Nós somos algo num instante e não somos mais aquilo que éramos antes de
ser o que somos agora. Se somos uma pessoa molhada em um rio, não somos mais a
pessoa que estava com calor e gostaria de se refrescar.

O filósofo pensa que o fluir constante não é apenas uma característica da vida de
seres humanos e de rios, mas da realidade como um todo. Isso vale para as rochas,
os planetas, as plantas, animais, estações e até mesmo para materiais quase
indestrutíveis como diamantes. Tudo flui.

A harmonia dos contrários


Outra característica fundamental da natureza para Heráclito é o fato de que tudo é
formado de contrários: o quente e o frio, o dia e a noite, o inverno e o verão, a vida e
a morte. A mudança, o “tudo flui” é sempre a passagem de um contrário ao outro. A
criança que se torna velho, o seco que se torna úmido e assim sucessivamente.

O filósofo descreve esse processo como uma “guerra” e entende que é a guerra a
força por trás do movimento constante da natureza. E o resultado final dessa guerra
não é a desunião, mas uma “harmonia dos contrários”, porque no fundo “tudo é
um”. O jovem e o velho são a mesma coisa, porque esse será aquele quando mudar e
aquele serão esse. O mesmo ocorre com o calor e o frio e os demais contrários.

Heráclito pensa que as coisas têm sentido graças ao seus contrários:

“a doença torna doce a saúde, a fome torna doce a saciedade, o cansaço torna doce o
repouso. Não se conheceria sequer o nome da justiça se ela não fosse ofendida.”

Ou seja, se não existissem doenças, não teria valor a saúde, se não existissem
injustiças, sequer saberíamos o que é a justiça. Se não houvesse a morte, o que
pensaríamos da vida?

O fogo é a origem de todas as coisas


Assim como os demais filósofos pré-socráticos, Heráclito pensava existir um
elemento básico na natureza que constitui todos os demais. Tales de Mileto dizia que
esse era a água, Anaxímenes o ar e Heráclito pensava ser o fogo. É através de
transformações desse elemento que tudo vem a ser o que é.

Política
Em um dos fragmentos que restaram do livro Sobre a Natureza, Heráclito
recomenda que seus concidadãos se enforquem por terem banido seu líder mais
destacado. Provavelmente, era totalmente contrário ao governo democrático, por
pensar que o povo não passa de um bando de ignorantes. Defendia que o melhor era
um governo aristocrático de sábios, onde os mais capacitados tomam as decisões.

Filosofia moderna
René Descartes

René Descartes: idéias e biografia


Biografia
René Descartes nasceu na França em 1596 e morreu em 1650. Ainda jovem foi enviado
para um colégio interno jesuíta no qual recebeu uma educação básica. Em seguida,
iniciou a faculdade de direito, por insistência de seu pai que era juiz, mas abandonou
depois de dois anos.

No restante de sua vida, nunca mais teve qualquer compromisso formal com trabalho ou
estudo. Levou uma vida de ócio proporcionada por uma renda que conseguiu através de
sua herança.

O filósofo foi um viajante solitário ao longo de sua vida. Sem qualquer responsabilidade
e ocupação, viajou constantemente por vários países da Europa sem jamais se
estabelecer definitivamente em nenhum. Seus amigos eram poucos e possuíam um
vínculo derivado apenas do interesse comum pelas grandes questões filosóficas da
época.

Descartes não se dedicou à elaboração de uma filosofia desde cedo. Curiosamente, isso
tem a ver com uma visão que teve em 1619. Conta-se que em uma de suas viagens
estava sentado em seu quarto aquecido e teve a visão de um universo que poderia ser
decifrado através do uso da matemática. Isso parece ter feito com que desejasse elaborar
toda uma nova forma de compreender o mundo que seria muito influente na ciência
moderna. Embora seus hábitos preguiçosos fizessem com esse projeto fosse adiado
ainda por vários anos.

Em torno de 1630 Descartes se estabelece na Holanda e aí passa a escrever sua obra.


Esse era um país que se destacava na Europa pela liberdade de pensamento que
permitia. Enquanto em outros países as pessoas eram queimadas por fazer descobertas
contrárias aos dogmas da religião, na Holanda se gozava de uma relativa liberdade.
Tanto que outros pensadores originais do período, como Locke e Espinosa, viveram
algum tempo por lá. Esse era o centro intelectual da Europa no século XVII.

A filosofia de Descartes é marcada pela confiança na capacidade da razão humana


desvendar o funcionamento do mundo e assim não só atingir um conhecimento
verdadeiro sobre a realidade, mas também melhorar a condição humana na terra.
Depositava grande confiança nos progressos que seriam feitos na medicina depois que
adotasse um novo método. Esperava inclusive viver até mais de cem anos, confiante na
nova ciência, apesar de sua condição de saúde um tanto precária.

Com o intuito de criar uma nova filosofia, escreveu um livro chamado Tratado sobre o
universo, que abrangia questões filosóficas, científicas e matemáticas. No entanto, o
livro não seria publicado. Nesse período, em Roma, Galileu era obrigado a negar o
resultado de suas pesquisas para evitar a morte. Descartes preferiu evitar correr esse
risco e deixou o livro engavetado.

Dando continuidade ao seu projeto filosófico, Descartes escreveu o Discurso do


método e Meditações metafísicas. Mesmo tendo tomado cuidado para não gerar atrito
com a Igreja, na qual acreditava, seu livro gerou uma série de críticas e seu autor só não
teve maiores problemas por causa de suas amizades. O último livro fez com que fosse
acusado de heresia. Embora Descartes apresente uma série de argumentos para provar a
existência de Deus, aquilo que chamou de dúvida metódica não foi bem aceito e seus
argumento em defesa de Deus pareceram fracos demais.

Descartes se tornou bastante conhecido na Europa depois da publicação de seus livros.


A rainha Cristina da Suécia tomou conhecimento das ideias do filósofo e pediu que
viesse passar um tempo na Suécia para que pudesse ensiná-la sobre filosofia.

Descartes recusou o convite algumas vezes, mas diante da insistência da rainha não teve
outra escolha. Esse seria sua última viagem. O filósofo disse que a Suécia era tão fria
que “até os pensamentos dos homens congelavam”. Não resistiu ao clima e à nova
rotina. Morreu em 1650.

O projeto filosófico de Descartes


A opinião de Descartes sobre os conhecimentos que eram ensinados na época era
bastante crítica. No livro Discurso do Método, relata como ficou decepcionado com
aquilo que aprendeu. Tudo o que era ensinado então estava envolto em dúvidas e
incertezas. Todas as teorias filosóficas eram alvo de disputas intermináveis e não havia
esperança de que alguma delas acabaria se mostrando verdadeira. De modo que, ao
terminar seus estudos, tinha a impressão de que sabia menos do que ao iniciá-los.

Ao comparar a filosofia com outras áreas do conhecimento, como a física e a


matemática de sua época, a diferença era gritante. A primeira dava passos sólidos
fazendo novas descobertas sobre o mundo que podiam ser provadas e aos poucos se
tornavam aceitas pela maioria dos estudiosos. A segunda, já há séculos chegava a
conclusões que eram claramente verdadeiras e universalmente aceitas.

A filosofia, por outro lado, o que tinha de sólido para oferecer? Todas as suas teorias
eram questionadas e pareciam realmente duvidosas.

Para tentar dar um jeito nessa situação, Descartes pensa que o primeiro passo é adotar
um novo método. Assim, ele estabelece uma série de regras que deveriam ser
cuidadosamente observadas. Seu propósito com isso era oferecer uma forma de
proceder nas investigações filosóficas que pudesse levar a uma compreensão clara e
resultar em teorias sólidas, que possuíssem uma boa comprovação e fossem aceitas por
qualquer pessoa.

Nas palavras do autor, seu propósito era oferecer “regras certas e fáceis que, sendo
observadas exatamente por quem quer que seja, tornem impossível tomar o falso por
verdadeiro e, sem qualquer esforço mental inútil, mas aumentando sempre gradualmente
a ciência, levem ao conhecimento verdadeiro de tudo o que se é capaz de conhecer.”

O método cartesiano
Então, como devemos proceder para chegar ao conhecimento verdadeiro e evitar o erro,
de acordo com Descartes?
O método cartesiano é constituído por quatro regras. Ele mesmo seguiu essas regras ao
desenvolver sua filosofia e pensa que podem ser úteis para os filósofos em geral.

A primeira regra do método é a da evidência. Descartes afirma que jamais devemos


aceitar como verdadeira qualquer ideia que não seja “clara e distinta”. Ou seja,
qualquer ideia sobre a qual não reste a menor dúvida de que é verdadeira, que
seja evidente. Se houver uma dúvida, a mínima que seja, então não deve ser aceita.
Uma ideia duvidosa poderia colocar em risco toda uma teoria.

A segunda regra do método de Descartes é dividir os problemas complexos em


problemas menores, ou seja, fazer uma análise minuciosa dos problemas. A ideia é
tentar dividir o objeto de análise ao mais simples possível para que assim seja mais fácil
separar a verdade do erro.

Em seguida, depois da análise, se usa as ideias simples, claras e distintas, para construir
teorias complexas através do raciocínio dedutivo. Essa é a terceira regra do método,
conhecida como síntese. Ao desenvolver sua filosofia, Descartes demonstra o uso dessa
estratégia ao partir da afirmação simples e evidente “penso, logo existo”, para
conhecimentos mais complexos, como o que nosso corpo e alma são distintos ou que
existe Deus.

A quarta e última regra orienta a revisão ou controle. O filósofo recomendava rever


todo o trabalho feito a fim de evitar que qualquer erro tenha passado despercebido.

Descartes acreditava que seguindo esses passos simples, a filosofia poderia chegar a
conclusões indubitáveis sobre o mundo. Foi isso que fez ao desenvolver suas ideias e
ele mesmo pensou ter chegado a uma série de conclusões indubitáveis.

A dúvida radical
O primeiro passo de uma nova filosofia, sujeita o mínimo possível ao erro, é aceitar
apenas crenças que se mostrem claras e distintas. Por isso Descartes começa seu livro
chamado Meditações Metafísicas verificando suas crenças e disposto a colocar no lixo,
por assim dizer, todas aquelas que não se mostrarem claras e distintas.

Para isso, o filósofo explora uma série de argumentos céticos para verificar se suas


crenças se sustentam.

O primeiro desses argumentos apela ao erro dos sentidos. Esse argumento era muito
usado pelos céticos gregos na antiguidade. Observa que algumas ideias que formamos
sobre o mundo ao nosso redor podem estar erradas porque nossos sentidos nos
enganam. E como não é sensato confiar em quem já nos enganou uma vez, é melhor não
aceitar totalmente o que nos mostram os sentidos. É prudente, portanto, não confiar no
que conhecemos através deles, sobretudo naqueles casos em que mais falham, quando
os objetos estão longe ou a luminosidade não favorece a visão.

No entanto, há crenças que estão totalmente imunes a qualquer erro dessa natureza.
Descartes observa que uma pessoa não poderia ser enganada pelos sentidos sobre o fato
de estar em um determinado lugar, vestida de uma determinada maneira, que tem mãos
e pernas etc. Esse é um conhecimento evidente do qual apenas um louco poderia
duvidar.

Diante disso, Descartes parte para um novo argumento cético: o argumento dos sonhos.
Escreve Descartes

“Quantas vezes ocorreu-me sonhar, durante a noite, que estava [em outro] lugar, que
estava vestido, que estava junto ao fogo, embora estivesse inteiramente nu dentro de
meu leito?”

Sono e vigília são diferentes, mas não raro confundimos as duas coisas. E como
Descartes está disposto a aceitar apenas aquelas verdades claras e distintas, rejeita
também o conhecimento imediato de si como possível ilusão.

Descartes pensa ser possível que tudo o que percebe enquanto escreve seu livro, assim
como toda sua vida, seja uma ilusão criada por um deus enganador.

Por fim, Descartes considera a possível existência de um Deus enganador que chama de
gênio maligno. E se, argumenta o filósofo, existisse um Deus todo-poderoso e malvado
que nos enganasse sistematicamente sobre tudo. Pensamos que dois mais dois é quatro,
essa parece uma verdade clara e distinta. Porém, e se esse gênio maligno estivesse nos
enganando nesse ponto? O mesmo poderia fazer em relação a tudo: o que sabemos
sobre nosso corpo, o lugar onde estamos, as pessoas a nossa volta. Tudo isso poderia ser
uma ilusão criada por esse deus enganador.

E assim chegamos à dúvida radical de Descartes. De fato, seu raciocínio parece não
deixar lugar para qualquer certeza sobre o mundo que nos cerca. De modo que a única
atitude correta é suspender o julgamento sobre todas as coisas.
O método de Descartes o levou a rejeitar inicialmente todas as suas crenças. Depois de
destruir tudo que sabia até então, Descartes faz uma análise cuidadosa para verificar se
não há pelo menos uma crença que se salve. É assim que chega a sua primeira verdade
clara e distinta: penso, logo existo.

Penso, logo existo

Depois de pôr todas as suas crenças em dúvida, Descartes conclui que é um ser que
pensa. Um gênio maligno seria capaz de lhe enganar sobre todo, mas para que o engane
ele deve ser algo. Como esse gênio poderia enganar alguém que não existe? Assim, é
evidente que a ideia “penso, logo existo” é verdadeira.

Descartes afirma, então, que é um ser que pensa, que reflete, que duvida. Essas são
verdades evidentes, inquestionáveis, capazes de resistir até mesmo ao gênio maligno.

Essa é uma verdade fundamental que Descartes usa como o alicerce de toda sua
filosofia. Mas ainda assim é muito pouco o que oferece. Afinal, nesse ponto, o filósofo
tem certeza apenas de que existe. Nada mais. Dado que é possível que exista um gênio
maligno, não pode ter certeza sobre existência de uma mundo exterior, de que existem
pessoas nele. Na verdade, não tem como saber nem como é seu corpo ou mesmo se tem
um corpo. A única coisa que pode afirmar com evidência clara e distinta é que é um ser
que pensa.

Para dar um passo além e sair de si, Descartes terá que de alguma forma mostrar que o
gênio maligno não existe e que podemos confiar em nossa percepção.

Para fazer isso, o filósofo tenta provar que Deus existe e, como Deus é bom, não
permitiria que nossa vida não passasse de uma ilusão.

A existência de Deus

Descartes parte de uma série de ideias simples para mostrar que existe um Deus. Ele
observa, em primeiro lugar, que nada vem do nada, que tudo possui uma causa. Se
chover, houve uma causa que levou à chuva, se uma planta nasceu, isso também teve
uma causa. Além disso, essa causa deve adequada, deve ter tanta realidade quanto o
efeito.

Vamos considerar um exemplo simples desse princípio básico usado por Descartes.
Quando fervemos uma panela de água, ela deve ter recebido esse calor de alguma causa
que tivesse pelo menos tanto calor. Assim, algo que não é quente o suficiente não pode
fazer a água ferver, porque não tem a realidade necessária para produzir esse efeito. Em
outras palavras, algo não pode dar o que não tem. Essa parece ser uma ideia clara e
distinta difícil de questionar.

O próximo passo dado por Descartes é analisar as ideias que traz em sua mente e
verificar se há alguma aí cuja causa não tenha sido ele mesmo. Nesse ponto o filósofo
argumenta que como é uma substância finita, pode ter criado as ideias que possui de
outras substâncias finitas. Então, ele pode ter sido a causa da ideia de sol, de pessoas,
animais etc. Não é necessário que nada disso exista como causa de suas ideias.
Porém, entre essas idéias existe a idéia de Deus. Essa é a idéia de um ser infinito.
Poderia, pergunta o filósofo, ter sido ele a causa dessa idéia? Tirando as consequências
do princípio que a causa deve ter tanta realidade quanto o efeito, Descartes conclui que,
como ser finito, não poderia ter criado a idéia de um ser infinito. A única explicação é,
portanto, que um Deus tenha colocado tais idéias em sua mente. Portanto, Deus tem que
existir.

Deus como garantia do conhecimento

Descartes precisa mostrar que Deus não é um enganador e tampouco criou o homem
naturalmente propenso ao erro.

Descartes parte novamente nesse caso de idéias que considera claras e distintas. Deus,
para ser Deus, deve ser um ser perfeito. Das mesmas formas que um quadrado, para ser
um quadrado, deve ter quatro lados iguais, Deus, para ser Deus, deve ser um ser
perfeito.

Um ser perfeito poderia ser um gênio maligno? Descartes argumenta que a intenção de
enganar revela malícia e fraqueza, duas características que são claramente
incompatíveis com a perfeição divina. Portanto, Deus não é um ser enganador e
tampouco poderia permitir que um ser dessa natureza existisse. Um deus enganador
seria como um quadrado sem lados iguais ou com apenas três lados.

Deus também não criou o ser humano propenso ao erro. Realmente, ele seria um ser
malvado se tivesse criado os seres humanos de tal forma que estivessem constantemente
sujeitos ao erro. Ao contrário, o erro surge não de um defeito natural, mas do mal uso de
nossa capacidade de raciocinar. Ou seja, surge do fato de não seguirmos o método
proposto por Descartes, por sermos precipitados e adotarmos crenças que não são claras
e distintas.

Descartes, por fim, usa a perfeição divina para garantir que as idéias que intuímos como
claras e distintas são verdadeiras. O raciocínio é o seguinte. Como já vimos, Descartes
pensa que há verdades como “eu existo” que são evidentes, de modo que ser humano
algum seria capaz de negá-las. Ora, se fomos criados por Deus e ele nos fez de forma
que somos incapazes de não acreditar em algo que é falso, então ele é um ser maldoso.

Porém, Deus não é malvado. Por isso, deve ter criado o homem de forma que seja capaz
de reconhecer a verdade e o erro. O fato de uma idéia ser clara e distinta é justamente
um sinal, que Deus colocou na mente humana, de que uma idéia é verdadeira. De modo
que todas as idéias claras e distintas são verdadeiras.

E assim Descartes se afasta do ceticismo a que foi levado pela hipótese do gênio
maligno. Ele conclui, depois de demonstrar que ele próprio existe e que Deus existe,
que o ser humano pode conhecer a realidade porque foi criado por um ser bondoso.
Embora também esteja sujeito ao erro, isso só acontece naquelas situações em que se
aceita como verdadeiras idéias que não são claras e distintas.

Corpo e alma
Descartes é um dos principais representantes do chamado dualismo de corpo e alma.
Isso significa que acreditava que os ser humano são compostos de duas substâncias
diferentes, o corpo e a alma, e que essas substâncias eram independentes, podendo a
alma existir sem o corpo.

O corpo é algo material, faz parte do mundo físico, ocupa lugar no espaço. A alma, por
outro lado, não é material, não faz parte do mundo físico e não ocupa um lugar no
espaço.

Para mostrar que alma e corpo são diferentes, Descartes apresenta uma série de
argumentos. Um desses argumentos afirma que a mente ou a alma é consciente,
enquanto o corpo e tudo que é constituído de matéria não.

Alguns críticos apontaram para o chamado problema mente e corpo. Uma vez que corpo
e alma (ou mente) são substâncias tão diferentes, como é possível interagiram de
alguma forma. Considere um exemplo simples. Se tenho vontade de mover meu braço,
ele se move. Há aqui um processo no qual a vontade, que é um desejo da alma, pode
mover uma parte do corpo. Ora, como algo que é imaterial poderia interagir com uma
coisa que é não é material?

Esse problema foi apontado pela Princesa Elizabeth da Boêmia em uma carta escrita a
Descartes. O filósofo procurou resolvê-lo afirmando que a interação ocorria na glândula
pineal. Era aí que ocorria a junção entre corpo e alma. O problema da resposta é que, na
verdade, não responde a pergunta. A questão não é onde ocorre a interação entre mente
e corpo, mas como.

Muitos críticos acreditam que essa é uma falha séria na filosofia de Descartes e qualquer
perspectiva que defenda a existência de substâncias separadas constituindo o ser
humano.

A diferença entre homens e animais


Seres humanos pertencem em parte ao mundo físico, material e em parte ao mundo não
físico, não material, porque possuem um corpo e uma alma.

E quanto aos animais? Também possuem alma? O que os diferencia de seres humanos?

Para Descartes, animais possuem apenas um corpo, não possuem mente ou alma. Por
isso, seria possível fazer uma máquina que, se tivesse aparência externa de um animal,
seria idêntica ao animal real.

A conclusão de que animais não possuem alma levou Descartes a duas conclusões
adicionais. Animais são incapazes de falar e raciocinar. Até é possível que falem, como
um papagaio faz ao repetir o que ouve, porém esse e nenhum outro animal é capaz de
atribuir significado ao que está dizendo.

Em segundo lugar, animais não sentem dor ou qualquer outra sensação. É verdade que
eles aparentam sentir dor quando são agredidos. Porém, isso não passa de uma reação
mecânica a um estímulo externo. Embora um cachorro possa se contorcer enquanto
sobre uma violência, é uma reação de seu corpo que não é acompanhada de uma
sensação interior de dor.

Assim, raciocinar e ter sensações são privilégios de seres humanos, que possuem uma
alma. Os animais, ao contrário, por não possuírem alma, são incapazes de uma coisa e
outra.

Moral provisória
Descartes não tem uma filosofia moral desenvolvida como a de Aristóteles, Kant ou o
utilitarismo de Stuart Mill. Suas ideias sobre o tema se reduzem algumas regras que
adota de maneira provisória enquanto trabalha em suas investigações.

A dúvida metódica não deve levar a uma paralisia da ação. Enquanto reflete sobre uma
série de questões, o filósofo deve continuar vivendo, se relacionando com outras
pessoas.

É para isso que Descartes adota aquilo que chama de moral provisória. Essa moral
possui “três ou quatro regras”:

1. Obedecer às leis e costumes do país; manter a crença na religião católica e seguir


a opinião das pessoas mais moderadas e sensatas quando se trata da melhor ação.
2. Ser firme, manter a linha de ação uma vez adotada.
3. Tentar se adaptar às circunstâncias ao invés de mudar o mundo.
4. Analisar as várias profissões e adotar a melhor.

Livros de Descartes
Discurso sobre o método (1637)
Discurso do Método foi o primeiro livro publicado de Descartes. O autor acreditava no
potencial que o uso da razão nos mais variados assuntos tinha de melhor a vida humana.
Começa o livro dizendo que, embora todos os seres humanos possuam a capacidade de
raciocinar e chegar por si mesmo à verdade, essa não é bem usada. Propõe então seu
“Discurso” como uma espécie de manual de uso da razão. O livro apresenta seu método
da dúvida e uma série de conclusões a que chegou através do uso desse método.

Assim como os demais livros de Descartes, o texto em primeira pessoa torna a leitura
bastante agradável. Nos vemos, como leitores, na condição de um amigo íntimo ao qual
o autor revela seus pensamentos mais valiosos.

Além disso, por ter sido escrito para um público amplo, não apenas para filósofos, o
leitor atento não encontrará grandes dificuldades na leitura.

Meditações Metafísicas (1641)


As Meditações Metafísicas abordam os temas centrais da filosofia de Descartes: os
argumentos da dúvida, o cogito, a existência de Deus, a distinção entre a alma e o corpo.
Alguns desses temas já haviam sido apresentados no Discurso do Método, mas agora
aparecem de forma mais aprofundada. Ao contrário de seu primeiro livro, esse é voltado
especificamente para os filósofos para quem Descartes gostaria de apresentar e defender
seu pensamento.

As Paixões da Alma (1649)


As Paixões da Alma é o último livro de Descartes publicado antes de sua morte. Nele o
autor procura apresentar uma análise, apresentando as causas, significados e funções das
emoções. Entre os temas abordados estão uma tentativa de explicar como se dá a
interação entre a mente e o corpo, a capacidade da alma de exercer controle sobre o
corpo, uma classificação das paixões e como essas podem ser prejudiciais ou benéficas.

Descartes, moral provisória


E enfim, como não basta, antes de começar a reconstruir a casa onde se mora, fazê-la
demolir ou se ocupar a própria pessoa da arquitetura, além de ter cuidadosamente
traçado o projeto, mas é preciso também arranjar outra onde comodamente se alojar
enquanto durarem os trabalhos, assim eu, para não ficar em absoluto hesitante nas
minhas ações enquanto a razão me obrigasse a sê-lo nos meus juízos e para não deixar
de viver desde então do modo mais feliz possível, criei para mim uma moral provisória,
consistindo somente de três ou quatro máximas, que gostaria de vos expor.

A primeira era obedecer às leis e costumes do meu país, respeitando sempre a religião
na qual Deus me deu a graça de ser educado desde a infância e me conduzindo em todas
as outras coisas segundo as opiniões mais moderadas e mais afastadas do excesso que
fossem comumente aceitas na prática pelos mais sensatos dentre aqueles com quem teria
que viver. Pois, começando desde então por não considerar minhas próprias opiniões
como coisa alguma, pois queria recolocá-las todas em questão, estava seguro de não
poder seguir outras melhores que as dos mais sensatos. E ainda que haja talvez gente tão
sensata entre os persas ou chineses como entre nós, parecia-me que o mais útil era me
comportar segundo aqueles com os quais teria que viver; e que, para saber quais eram
verdadeiramente suas opiniões, eu deveria antes prestar atenção no que praticavam do
que no que diziam; não apenas porque, com a corrupção dos nossos costumes, haja
pouca gente disposta a dizer tudo aquilo em que acredita, mas também porque vários
inclusive o ignoram; pois como a ação do pensamento pela qual se acredita numa coisa
é diferente daquela pela qual se sabe que se acredita nessa coisa, uma existe com
frequência sem a outra. E entre várias opiniões igualmente aceitas eu só escolhia as
mais moderadas; tanto porque são sempre as mais cômodas na prática e possivelmente
as melhores, costumando todo excesso ser ruim, como também para me desviar menos
do verdadeiro caminho, caso falhasse, do que se, escolhendo um dos extremos, devesse
ter seguido o outro. E, particularmente, colocava entre os excessos todas as promessas
pelas quais se cerceia a liberdade de alguma coisa. Não que desaprovasse as leis que
para remediar a inconstância dos espíritos fracos permitem, quando se tem um bom
propósito ou mesmo, para garantia do comércio, um propósito apenas indiferente, que
se façam votos ou contratos que obrigam a perseverar nele; mas por não ver no mundo
coisa alguma que permanecesse sempre no mesmo estado e, no meu caso particular,
prometer aperfeiçoar cada vez mais meus juízos e não em absoluto piorá-los, pensaria
estar cometendo uma grande falta contra o bom senso se, pelo fato de antes aprovar
alguma coisa, fosse obrigado a tomá-la como boa mesmo depois que talvez tivesse
deixado de sê-lo ou quando não mais a considerasse assim.

Minha segunda máxima era a de ser o mais firme e o mais decidido possível em minhas
ações e de seguir as opiniões as mais duvidosas, uma vez me tivesse resolvido por elas,
com a mesma constância que o faria se fossem muito seguras, imitando nisso os
viajantes que, vendo-se perdidos numa floresta, não devem ficar dando voltas, a errar de
um lado para o outro, e muito menos parar num lugar, mas caminhar sempre o mais reto
possível numa mesma direção e não mudá-la de modo algum por motivos frágeis,
mesmo que talvez de início apenas o acaso os tenha levado a escolhê-la: porque assim,
se não vão exatamente aonde desejam, chegarão pelo menos afinal a algum lugar onde
provavelmente estarão melhor que no meio de uma floresta. De forma que, não
aceitando comumente as ações da vida nenhuma demora, é verdade bem certa que, se
não estiver em nosso poder discernir as opiniões mais verdadeiras, devemos seguir as
mais prováveis; e mesmo, ainda que não notemos mais probabilidade numas do que
noutras, devemos contudo nos decidir por algumas e considerá-las depois não mais
como duvidosas, uma vez que dizem respeito à prática, mas como muito verdadeiras e
certas, pois assim se considera a razão que nos fez optar por elas. E isso foi desde então
capaz de me livrar de todos os remorsos e arrependimentos que costumam agitar as
consciências desses espíritos fracos e vacilantes que se deixam levar com inconstância a
praticar, como boas, coisas que julgam mais tarde serem más.

Minha terceira máxima era tratar sempre de vencer a mim mesmo e não ao destino,
mudando antes meus desejos que a ordem do mundo, e no geral me acostumar a crer
que nada está inteiramente em nosso poder além dos nossos pensamentos; de modo que
depois de ter dado o melhor de nós em coisas que nos são exteriores, tudo o que
deixamos de conseguir é, no que nos diz respeito, absolutamente impossível. E isso já
me parecia suficiente para impedir que desejasse no futuro nada que não conseguisse e
para ficar dessa forma contente. Pois não se aplicando naturalmente nossa vontade a
desejar senão as coisas que nosso entendimento lhe apresenta de alguma forma como
possíveis, é certo que, se consideramos todos os bens exteriores a nós como igualmente
distantes do nosso poder, não lamentaremos a falta daqueles que parecem devidos ao
nosso nascimento, quando formos privados deles sem culpa nossa, mais do que
lamentamos não possuir os reinos da China ou do México; e fazendo da necessidade
virtude, como se diz, não desejaremos ter saúde estando doentes ou ser livres estando
presos, mais do que desejamos atualmente ter corpos de uma matéria tão pouco
corruptível quanto o diamante ou asas para voar como os pássaros. Mas admito que é
necessário um longo exercício e uma meditação persistente para se acostumar a encarar
todas as coisas sob esse ângulo; e creio que era principalmente nisso que consistia o
segredo desses filósofos que puderam outrora abstrair-se do império da fortuna e, apesar
das dores e da pobreza, disputar felicidade aos seus deuses. Pois, ocupando-se
incessantemente em considerar os limites que lhes eram prescritos pela natureza,
persuadiam-se de modo tão perfeito que nada estava em seu poder além dos próprios
pensamentos que só isso era suficiente para impedi-los de ter qualquer afeição por
outras coisas; e dispunham deles de forma tão absoluta que tinham nisso alguma razão
de se considerar mais ricos, mais poderosos, mais livres e mais felizes que quaisquer
dos outros homens que, não tendo essa filosofia, por mais favorecidos que sejam pela
natureza e a fortuna, jamais dispõem assim de tudo o que querem.
Por fim, para conclusão dessa moral, decidi fazer um exame das diversas ocupações que
têm os homens nesta vida e tentar escolher a melhor; e sem pretender dizer nada das
ocupações dos outros, pensei que não podia fazer melhor que continuar naquela mesma
em que estava, isto é, empregar toda a minha vida a cultivar a razão e avançar o máximo
que pudesse no conhecimento da verdade, seguindo o método que me havia prescrito.

Descartes, Discurso do método

Descartes, as regras do método


Estava então na Alemanha, para onde me haviam chamado as guerras que ainda ali não
terminaram, e, quando voltava da coroação do Imperador para o exército, o começo do
inverno me deteve num lugar onde, não achando conversa que me divertisse e além
disso não tendo, felizmente, cuidados ou paixões que me perturbassem, ficava o dia
inteiro trancado sozinho num quarto com estufa, onde tinha todo o tempo para me
entreter com meus pensamentos. Entre os quais um dos primeiros que me ocorreu foi
considerar que muitas vezes não há tanta perfeição nas obras compostas de várias peças
e feitas pelas mãos de diversos mestres quanto naquelas em que apenas um trabalhou.
Assim, vemos que as construções iniciadas e concluídas por um único arquiteto
costumam ser mais belas e bem ordenadas que aquelas que muitos trataram de reformar
aproveitando velhas paredes construídas para outros fins. […]

Mas, como um homem que caminha sozinho e nas trevas, decidi avançar tão lentamente
e ser tão circunspecto em tudo que, se progredia muito pouco, evitava pelo menos cair.
Não quis sequer começar rejeitando completamente qualquer das opiniões que se
infiltraram outrora em minha crença sem terem sido aí introduzidas pela razão antes de
empregar bastante tempo no projeto da obra que empreendia e na busca do verdadeiro
método para chegar ao conhecimento de todas as coisas de que o meu espírito fosse
capaz.

[…] E como a multiplicidade de leis fornece muitas vezes desculpas aos vícios, de
modo que um Estado é bem mais regrado se, tendo bem poucas, elas são estritamente
observadas, assim eu julguei que, em vez do grande número de preceitos de que se
compõe a lógica, me bastariam os quatro seguintes, contanto que tomasse a firme e
constante resolução de não deixar de observá-los uma vez sequer.

O primeiro era não tomar jamais coisa alguma por verdadeira a não ser que a
conhecesse evidentemente como tal: quer dizer, evitar cautelosamente a precipitação e a
prevenção; e só incluir em meus juízos o que se me apresentasse ao espírito de modo tão
claro e nítido que não tivesse como colocá-lo em dúvida.

O segundo, dividir cada dificuldade que examinasse em tantas parcelas quantas


possíveis e necessárias para melhor resolvê-las.

O terceiro, conduzir meus pensamentos de forma ordenada, começando pelos objetos


mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir pouco a pouco, como por degraus,
até o conhecimento dos mais complexos; e supondo mesmo uma ordem entre aqueles
que de modo algum precedem naturalmente uns aos outros.
E o último, fazer sempre levantamentos tão completos e inspeções tão gerais que tivesse
a certeza de nada omitir.

Essas longas cadeias de raciocínios, bem simples e fáceis, de que os geômetras


costumam se servir para chegar às mais difíceis demonstrações, deram-me a
oportunidade de imaginar que todas as coisas que podem cair sob o conhecimento dos
homens seguem-se umas às outras da mesma maneira e que, contanto apenas que se
evite tomar por verdadeira alguma que não o seja e que se respeite sempre a ordem
exigida para deduzir umas das outras, não pode haver nenhuma tão distante que por fim
não se alcance nem tão oculta que não se descubra.

Descartes, Discurso do método

Descartes, penso logo existo


O texto abaixo é uma passagem do livro Meditações Metafísicas escrito por René
Descartes e publicado em 1641. Nessa passagem, o autor chega à conclusão de que
pensa e, portanto, existe. Para uma análise do contexto e significado da expressão, veja
esse artigo.

A Meditação que fiz ontem encheu-me o espírito de tantas dúvidas, que doravante não
está mais em meu alcance esquecê-las. E, no entanto, não vejo de que maneira poderia
resolvê-las; e, como se de súbito tivesse caído em águas muito profundas, estou de tal
modo surpreso que não posso nem firmar meus pés no fundo, nem nadar para me
manter à tona. Esforçar-me-ei, não obstante, e seguirei novamente a mesma via que
trilhei ontem, afastando-me de tudo em que poderia imaginar a menor dúvida, da
mesma maneira como se eu soubesse que isto fosse absolutamente falso; e continuarei
sempre nesse caminho até que tenha encontrado algo de certo, ou, pelo menos, se outra
coisa não me for possível, até que tenha aprendido certamente que não há nada no
mundo de certo.

Arquimedes, para tirar o globo terrestre de seu lugar e transportá-lo para outra parte, não
pedia nada mais exceto um ponto que fosse fixo e seguro. Assim, terei o direito de
conceber altas esperanças, se for bastante feliz para encontrar somente uma coisa que
seja certa e indubitável.

Suponho, portanto, que todas as coisas que vejo são falsas; persuado-me de que nada
jamais existiu de tudo quanto minha memória repleta de mentiras me representa; penso
não possuir nenhum sentido; creio que o corpo, a figura, a extensão, o movimento e o
lugar são apenas ficções de meu espírito. O que poderá, pois, ser considerado
verdadeiro? Talvez nenhuma outra coisa a não ser que nada há no mundo de certo.

Mas que sei eu, se não há nenhuma outra coisa diferente das que acabo de julgar
incertas, da qual não se possa ter a menor dúvida? Não haverá algum Deus, ou alguma
outra potência, que me ponha no espírito tais pensamentos? Isso não é necessário; pois
talvez seja eu capaz de produzi-los por mim mesmo. Eu então, pelo menos, não serei
alguma coisa? Mas já neguei que tivesse qualquer sentido ou qualquer corpo. Hesito no
entanto, pois que se segue daí? Serei de tal modo dependente do corpo e dos sentidos
que não possa existir sem eles? Mas eu me persuadi de que nada existia no mundo, que
não havia nenhum céu, nenhuma terra, espíritos alguns, nem corpos alguns; não me
persuadi também, portanto, de que eu não existia? Certamente não, eu existia sem
dúvida, se é que eu me persuadi, ou, apenas, pensei alguma coisa. Mas há algum, não
sei qual, enganador mui poderoso e mui ardiloso que emprega toda a sua indústria em
enganar-me sempre. Não há pois dúvida alguma de que sou, se ele me engana; e, por
mais que me engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar
ser alguma coisa. De sorte que, após ter pensado bastante nisto e de ter examinado
cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que esta
proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira, todas as vezes que a
enuncio ou que a concebo em meu espírito.

Descartes, René. Meditações metafísicas. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2016.

Descartes, a dúvida radical


Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas
falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundamentei em
princípios tão mal assegurados não podia ser senão muito duvidoso e incerto; de modo
que me era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas
as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os
fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências. Mas,
parecendo-me ser muito grande essa empresa, aguardei atingir uma idade que fosse tão
madura que não pudesse esperar outra após ela, na qual eu estivesse mais apto para
executá-la; o que me fez adiá-la por tão longo tempo que doravante acreditaria cometer
uma falta se empregasse ainda em deliberar o tempo que me resta para agir.

Agora, pois, que meu espírito está livre de todos os cuidados, e que consegui um
repouso assegurado numa pacífica solidão, aplicar-me-ei seriamente e com liberdade em
destruir em geral todas as minhas antigas opiniões. Ora, não será necessário, para
alcançar esse desígnio, provar que todas elas são falsas, o que talvez nunca levasse a
cabo; mas, uma vez que a razão já me persuade de que não devo menos cuidadosamente
impedir-me de dar crédito às coisas que não são inteiramente certas e indubitáveis do
que às que nos parecem manifestamente ser falsas, o menor motivo de dúvida que eu
nelas encontrar bastará para me levar a rejeitar todas. E, para isso, não é necessário que
examine cada uma em particular, o que seria um trabalho infinito; mas, visto que a ruína
dos alicerces carrega necessariamente consigo todo o resto do edifício, dedicar-me-ei
inicialmente aos princípios sobre os quais todas as minhas antigas opiniões estavam
apoiadas.

Tudo o que recebi, até presentemente, como o mais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos
sentidos ou pelos sentidos: ora, experimentei algumas vezes que esses sentidos eram
enganosos, e é de prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma
vez.

Mas, ainda que os sentidos nos enganem às vezes, no que se refere às coisas pouco
sensíveis e muito distantes, encontramos talvez muitas outras, das quais não se pode
razoavelmente duvidar, embora as conhecêssemos por intermédio deles: por exemplo,
que eu esteja aqui, sentado junto ao fogo, vestido com um chambre, tendo este papel
entre as mãos e outras coisas desta natureza. E como poderia eu negar que estas mãos e
este corpo sejam meus? A não ser talvez que eu me compare a esses insensatos, cujo
cérebro está de tal modo perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bile que
constantemente asseguram que são reis quando são muito pobres; que estão vestidos de
ouro e de púrpura quando estão inteiramente nus; ou imaginam ser cântaros ou ter um
corpo de vidro. Mas quê? São loucos e eu não seria menos extravagante se me guiasse
por seus exemplos.

Todavia, devo aqui considerar que sou homem e, por conseguinte, que tenho o costume
de dormir e de representar, em meus sonhos, as mesmas coisas, ou algumas vezes
menos verossímeis, que esses insensatos em vigília. Quantas vezes ocorreu-me sonhar,
durante a noite, que estava neste lugar, que estava vestido, que estava junto ao fogo,
embora estivesse inteiramente nu dentro de meu leito? Parece-me agora que não é com
olhos adormecidos que contemplo este papel; que esta cabeça que eu mexo não está
dormente; que é com desígnio e propósito deliberado que estendo esta mão e que a
sinto: o que ocorre no sono não parece ser tão claro nem tão distinto quanto tudo isso.
Mas, pensando cuidadosamente nisso, lembro-me de ter sido muitas vezes enganado,
quando dormia, por semelhantes ilusões. E, detendo-me neste pensamento, vejo tão
manifestamente que não há quaisquer indícios concludentes, nem marcas assaz certas,
por onde se possa distinguir nitidamente a vigília do sono, que me sinto inteiramente
pasmado: e meu pasmo é tal que é quase capaz de me persuadir de que estou dormindo.

Suponhamos, pois, agora, que estamos adormecidos e que todas essas particularidades,
a saber, que abrimos os olhos, que mexemos a cabeça, que estendemos as mãos, e coisas
semelhantes, não passam de falsas ilusões; e pensemos que talvez nossas mãos, assim
como todo o nosso corpo, não são tais como os vemos. Todavia, é preciso ao menos
confessar que as coisas que nos são representadas durante o sono são como quadros e
pinturas, que não podem ser formados senão à semelhança de algo real e verdadeiro; e
que assim, pelo menos, essas coisas gerais, a saber, olhos, cabeça, mãos e todo o resto
do corpo, não são coisas imaginárias, mas verdadeiras e existentes.

Pois, na verdade, os pintores, mesmo quando se empenham com o maior artifício em


representar sereias e sátiros por formas estranhas e extraordinárias, não lhes podem,
todavia, atribuir formas e naturezas inteiramente novas, mas apenas fazem certa mistura
e composição dos membros de diversos animais; ou então, se porventura sua
imaginação for assaz extravagante para inventar algo de tão novo, que jamais tenhamos
visto coisa semelhante, e que assim sua obra nos represente uma coisa puramente
fictícia e absolutamente falsa, certamente ao menos as cores com que eles a compõem
devem ser verdadeiras. […]

Todavia, há muito que tenho no meu espírito certa opinião de que há um Deus que tudo
pode e por quem fui criado e produzido tal como sou. Ora, quem me poderá assegurar
que esse Deus não tenha feito com que não haja nenhuma terra, nenhum céu, nenhum
corpo extenso, nenhuma figura, nenhuma grandeza, nenhum lugar e que, não obstante,
eu tenha os sentimentos de todas essas coisas e que tudo isso não me pareça existir de
maneira diferente daquela que eu vejo? E, mesmo, como julgo que algumas vezes os
outros se enganam até nas coisas que eles acreditam saber com maior certeza, pode
ocorrer que Deus tenha desejado que eu me engane todas as vezes em que faço a adição
de dois mais três, ou em que enumero os lados de um quadrado, ou em que julgo
alguma coisa ainda mais fácil, se é que se pode imaginar algo mais fácil do que isso.
Mas pode ser que Deus não tenha querido que eu seja decepcionado desta maneira, pois
ele é considerado soberanamente bom. Todavia, se repugnasse à sua bondade fazer-me
de tal modo que eu me enganasse sempre, pareceria também ser-lhe contrário permitir
que eu me engane algumas vezes e, no entanto, não posso duvidar de que ele me
permita.

Haverá talvez aqui pessoas que preferirão negar a existência de um Deus tão poderoso a
acreditar que todas as outras coisas são incertas. Mas não lhes resistamos no momento e
suponhamos, em favor delas, que tudo quanto aqui é dito de um Deus seja uma fábula.
Todavia, de qualquer maneira que suponham ter eu chegado ao estado e ao ser que
possuo, quer o atribuam a algum destino ou fatalidade, quer o refiram ao acaso, quer
queiram que isto ocorra por uma contínua série e conexão das coisas, é certo que, já que
falhar e enganar-se é uma espécie de imperfeição, quanto menos poderoso for o autor a
que atribuírem minha origem, tanto mais será provável que eu seja de tal modo
imperfeito que me engane sempre. Razões às quais nada tenho a responder, mas sou
obrigado a confessar que, de todas as opiniões que recebi outrora em minha crença
como verdadeiras, não há nenhuma da qual não possa duvidar atualmente, não por
alguma inconsideração ou leviandade, mas por razões muito fortes e maduramente
consideradas: de sorte que é necessário que interrompa e suspenda doravante meu juízo
sobre tais pensamentos, e que não mais lhes dê crédito, como faria com as coisas que
me parecem evidentemente falsas, se desejo encontrar algo de constante e de seguro nas
ciências. […]

Suporei, pois, que há não um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte da verdade, mas
certo gênio maligno, não menos ardiloso e enganador do que poderoso, que empregou
toda a sua indústria em enganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as
figuras, os sons e todas as coisas exteriores que vemos são apenas ilusões e enganos de
que ele se serve para surpreender minha credulidade. Considerar-me-ei a mim mesmo
absolutamente desprovido de mãos, de olhos, de carne, de sangue, desprovido de
quaisquer sentidos, mas dotado da falsa crença de ter todas essas coisas. Permanecerei
obstinadamente apegado a esse pensamento; e se, por esse meio, não está em meu poder
chegar ao conhecimento de qualquer verdade, ao menos está ao meu alcance suspender
meu juízo. Eis por que cuidarei zelosamente de não receber em minha crença nenhuma
falsidade, e prepararei tão bem meu espírito a todos os ardis desse grande enganador
que, por poderoso e ardiloso que seja, nunca poderá impor-me algo.

Descartes, Meditações metafísicas

Descartes – sobre as emoções


Texto 1
Trecho de As paixões da alma

(…) embora [a ciência das paixões] seja uma matéria cujo conhecimento foi sempre
muito procurado, e ainda que não pareça ser das mais difíceis, porquanto cada qual,
sentindo-as em si próprio, não necessita tomar alhures qualquer observação para lhes
descobrir a natureza, todavia o que os antigos delas ensinaram é tão pouco, e na maior
parte tão pouco crível, que não posso alimentar qualquer esperança de me aproximar da
verdade, senão distanciando-me dos caminhos que eles trilharam. (. ..) e, para começar,
considero que tudo quanto se faz ou acontece de novo é geralmente chamado pelos
filósofos uma paixão em relação ao sujeito a quem acontece, e uma ação com respeito
àquele que faz com que aconteça; de sorte que, embora o agente e o paciente sejam
amiúde muito diferentes, a ação e a paixão não deixam de ser sempre uma mesma coisa
com dois nomes, devido aos dois sujeitos diversos aos quais podemos relacioná-la.

Fonte: DESCARTES, Renè. As paixões da alma, Parte primeira, Art. 12.

Textos 2
Trecho de As paixões da alma

Art. 52. Qual é o emprego das emoções e como podemos enumerá-las.

Observo (.. .) que os objetos que movem os nossos sentidos não provocam em nós
diversas paixões devido a todas as diversidades que existem neles, mas somente devido
às diversas formas pelas quais nos podem prejudicar ou beneficiar, ou então, em geral,
ser importantes; e que o emprego de todas as paixões consiste apenas no fato de
disporem a alma a querer coisas que a natureza dita serem úteis a nós, e a persistir nessa
vontade afim de enumerá-las Ias paixões], cumpre apenas examinar, por ordem, de
quantas maneiras diferentes que nos importam podem os nossos sentidos ser movidos
por seus objetos (…).

Art. 53. A admiração.

Quando o primeiro contato com algum objeto nos surpreende, e quando nós o julgamos
novo, ou muito diferente do que até então conhecíamos ou do que supúnhamos devia
ser, isso nos leva a admirá-lo e a nos espantarmos com ele; e como isso pode acontecer
antes de sabermos de algum modo se esse objeto nos é conveniente ou não, parece-me
que a admiração é a primeira de todas as paixões; e ela não tem contrário, porquanto, se
o objeto que se apresenta nada tem em si que nos surpreenda, não somos de maneira
nenhuma afetados por ele e nós o consideramos sem paixão.

Art. 54. A estima ou o desprezo, a generosidade ou o orgulho, e a humildade ou a


baixeza.

À admiração está unida a estima ou o desprezo, conforme seja a grandeza de um objeto


ou sua pequenez que admiremos. E podemos assim nos estimar ou desprezar a nós
próprios; daí provêm as paixões e, em seguida, os hábitos de magnanimidade ou de
orgulho e de humildade ou de baixeza.

Art. 55. A veneração e o desdém.


Mas, quando estimamos ou desprezamos outros objetos que consideramos como causas
livres, capazes de fazer o bem ou o mal, da estima procede a veneração, e do simples
desprezo o desdém.

Art. 56. O amor e o ódio.

Ora, todas as paixões precedentes podem ser excitadas em nós sem que percebamos de
modo algum se o objeto que nos provoca é bom ou mau. Mas, quando uma coisa se nos
apresenta como boa em relação a nós, isto é, como nos sendo conveniente, isso nos leva
a ter amor por ela; e quando se nos apresenta como má ou nociva, isso nos incita ao
ódio.

Art. 57. O desejo.

Da mesma consideração do bem e do mal nascem todas as outras paixões; mas, a fim de
colocá-las por ordem, distingo os tempos e, considerando que elas nos levam a olhar o
futuro muito mais do que o presente ou o passado, começo pelo desejo. Pois não
somente quando se deseja adquirir um bem que ainda não se possui, ou evitar um mal
que se julga passível de sobrevir, mas também quando se deseja apenas a conservação
de um bem ou a ausência de um mal, que é tudo aquilo a que essa paixão pode estender-
se, é evidente que ela encara sempre o futuro.

Art. 61. A alegria e a tristeza.

E a consideração do bem presente excita em nós a alegria, a do mal, a tristeza, quando é


um bem ou um mal que nos é representado como nosso.

Fonte: DESCARTES, Renè. As paixões da alma, Parte segunda, Arts. 52-7, 61.

Textos 3
Trecho de As paixões da alma

Art. 211. Um remédio geral contra as paixões

E agora que as conhecemos todas as paixões, temos muito menos motivo de as temer do
que tínhamos antes; pois verificamos que são todas boas por natureza e só devemos
evitar o seu mau uso ou os seus excessos (…).

Mas o que sempre se pode fazer em tal ocasião, e que eu julgo poder apresentar aqui
como o remédio mais geral e o mais fácil de praticar contra todos os excessos paixões,
é, sempre que se sinta o sangue assim agitado, advertir e lembrar-se de que tudo quanto
se apresenta à imaginação tende a enganar a alma e a fazer com que as razões
empregadas em persuadir o objeto de sua paixão lhe pareçam muito mais fortes do que
são, e as que servem para dissuadir muito mais fracas. (…)

Art. 212. Que é somente delas que depende todo bem e todo mal desta vida.

De resto, a alma pode ter seus prazeres à parte; mas, quanto aos que lhe são comuns
com o corpo, dependem inteiramente das paixões: de modo que os homens que elas
podem mais emocionar são capazes de apreciar mais doçura nesta vida. É verdade que
também podem encontrar nela mais amargura, quando não sabem bem empregá-las, e
quando a fortuna lhes é contrária; mas a sabedoria é principalmente útil neste ponto,
porque ensina a gente a tornar-se de tal forma seu senhor e a manejá-las com tal
destreza que os males que causam são muito suportáveis, tirando-se mesmo certa alegria
de todos.

Fonte: DESCARTES, René. As paixões da alma, Parte segunda, Arts. 211-12.

Dualismo mente-corpo de Descartes


O filósofo do século XVII René Descartes é o defensor mais conhecido do dualismo de
mente-corpo.

Segundo Descartes, seres humanos são compostos de dois tipos diferentes de


substâncias que estão de alguma forma ligadas entre si. Por um lado, temos corpos e
fazemos parte do mundo físico. Segundo o filósofo, o corpo é uma máquina feita de
carne e osso. Suas articulações e tendões agem como pivôs, polias e cordas. Seu coração
é uma bomba e seus pulmões são foles. Porque o corpo é uma coisa física, está sujeito
às leis da física e está localizado no espaço e no tempo. Assim como os humanos, os
animais também são máquinas, e seu comportamento é puramente um produto das leis
mecânicas.

Os seres humanos, no entanto, são os únicos que, além de corpos, também possuem
mentes. De acordo com Descartes, a mente (que é idêntica à alma) é o seu eu “real”. Se
você perder um braço ou uma perna, seu mecanismo corporal estará comprometido, mas
você ainda é uma pessoa tão completa quanto antes. Porém, se perder sua mente, não
será mais você, deixará de existir.

Essa concepção de Descartes pode ser chamada de dualismo mente-corpo ou dualismo


psicofísico. Como Descartes criou uma versão clássica dessa posição, também é
comumente referida,  em sua honra, como dualismo cartesiano.

Descartes se opunha, assim, a uma teoria filosófica sobre a mente conhecida


como fisicalismo. De acordo com essa concepção, a mente é física como o corpo.

Por que Descartes defendia o dualismo mente-corpo?


Descartes oferece vários argumentos para nos convencer de que a mente e o corpo são
duas substâncias distintas. O que ele faz é examinar aquilo que chamamos de mente e de
corpo. Através disso, mostra que ambos possuem características diferentes e, portanto,
são tipos diferentes de realidades. Para resumir a história toda, podemos chamar os
argumentos de Descartes de: argumento da dúvida, da divisibilidade e da
consciência.
O argumento da dúvida
Um dos argumentos centrais de Descartes em favor do dualismo mente-corpo é baseado
no que pode e não pode ser posto em dúvida. Num livro chamado Meditações
Metafísicas, Descartes chega à conclusão de que pode duvidar de tudo – inclusive de
que possui um corpo e que o mundo exterior existe – exceto da própria existência como
ser pensante. A famosa frase “penso, logo existo” expressa essa conclusão.

O argumento de Descartes poderia ser expresso assim:

Posso duvidar que meu corpo existe.

Não posso duvidar que minha mente existe.

Se duas coisas não possuem propriedades exatamente idênticas, elas não podem ser
idênticas.

Portanto, a mente e o corpo não são idênticos.

As premissas 1 e 2 identificam duas propriedades diferentes do corpo e da mente que


Descartes descobriu quando empregou seu método de dúvida. Ele descobriu que podia
ter absoluta certeza de sua mente, mas por causa da possibilidade de ilusão (sonhos e
alucinações), ele poderia estar enganado e, portanto, incerto, sobre a existência de seu
corpo.

Descartes ofereceu esse argumento como uma prova lógica de que a mente e o corpo
não poderiam ser a mesma coisa.

Este argumento tem problemas, no entanto. A propriedade de estar sujeito a dúvida não
é o mesmo tipo de propriedade que ter 1,80 metros de altura ou ser careca. O fato de eu
poder duvidar de algo é tanto uma propriedade psicológica minha quanto é o objeto da
minha dúvida. Para ver as dificuldades com esse argumento, considere o seguinte
argumento que tem essencialmente a mesma forma:

Estou em dúvida se o café está quente.

Não tenho dúvidas que o café é escuro.

Se duas coisas não possuem propriedades exatamente idênticas, elas não podem ser
idênticas.

Portanto, o café que não tenho certeza se está quente não é idêntico ao café que é
escuro.

Assim, é possível que Descartes tenha mais certeza sobre sua mente do que sobre seu
corpo, simplesmente porque ele não entende a natureza de cada um completamente o
suficiente para ver que eles são idênticos.
O argumento da divisibilidade

O argumento a seguir faz uso da mesma forma argumentativa de antes, mas evita a
dificuldade de lidar com nossas atitudes psicológicas.

O corpo é divisível.

A mente é indivisível.

Se duas coisas não possuem propriedades exatamente idênticas, elas não podem ser
idênticas.

Portanto, a mente e o corpo não são idênticos.

Neste argumento a favor do dualismo mente-corpo, a primeira premissa de Descartes é


baseada na noção de que todos os objetos materiais possuem extensão e qualquer coisa
extensa é divisível. Assim, porque o corpo é um objeto material, pode sempre ser
dividido em dois e dividido e dividido novamente (como numa autópsia).

Parece fácil conceder a Descartes a verdade da primeira premissa, mas e a segunda


premissa? Certamente, se assumirmos que a mente é uma substância espiritual, então,
como uma coisa espiritual não tem extensão, ela não pode ser dividida (ou pelo menos
dividida da mesma forma que um corpo é). Mas a noção de que a mente é uma entidade
espiritual é o que Descartes está tentando provar, então simplesmente assumir esse
ponto parece suscitar a questão.

Sem fazer essa suposição, podemos simplesmente olhar para nossa experiência mental e
descobrir que, qualquer que seja a natureza da mente, não é o tipo de coisa que tem
partes ou pode ser dividida? Ou a segunda premissa de Descartes é questionável? É
possível que a mente tenha divisões ou partes distinguíveis em algum sentido?

Alguns argumentariam, ao contrário de Descartes, que nossa vida mental parece


dividida. Por exemplo, podemos sentir amor e raiva ao mesmo tempo em relação a
alguém. Ou frequentemente achamos que nossos princípios morais nos puxam em uma
direção e nossos sentimentos em outra. Os anais da psiquiatria estão cheios de casos de
múltiplas personalidades, ou casos em que alguém conhece algum fato desconfortável
em uma parte da psique, enquanto outra parte da mente da pessoa trabalha horas extras
para negá-la.

Um tipo de cirurgia cerebral, conhecida como comissurotomia cerebral, é comumente


usada para tratar a epilepsia. O cirurgião corta o feixe de nervos (o corpo caloso) que
liga os dois hemisférios do cérebro. Pacientes com esses cérebros divididos
experimentam uma fragmentação dentro de sua experiência. A parte do cérebro que
processa dados visuais não pode se comunicar com a parte que processa as coisas
linguisticamente. Essas considerações parecem indicar que, seja o que for que compõe a
mente, é algo que tem componentes. Essa conclusão, pelo menos, torna plausível a
sugestão de que diferentes partes de nosso cérebro produzem diferentes facetas de nossa
vida mental e, portanto, coloca em dúvida a nítida distinção que Descartes está tentando
estabelecer aqui entre a mente e o corpo.
O argumento da consciência

Ainda outro argumento pode ser encontrado nos escritos de Descartes, que é baseado no
fato de que sua mente é uma coisa pensante enquanto seu corpo não é. Pensar para
Descartes não significa simplesmente raciocínio. Descartes usa a palavra “pensamento”
para se referir a toda a gama de estados conscientes como conhecer, duvidar, desejar,
querer, imaginar, sentir e assim por diante.

Portanto, seu ponto é que a mente é diferente de qualquer coisa no mundo natural,
porque ela é consciente. Em contraste, Descartes diz que “quando eu examino a
natureza do corpo, não encontro absolutamente nada nele que tenha sabor de
pensamento.”

O esboço do argumento da consciência segue os contornos dos argumentos anteriores,


exceto que Descartes inclui a premissa de que “os objetos materiais não podem ter a
propriedade da consciência”. Porque o corpo é um objeto material, não pode ser
consciente, mas sabemos de nossa experiência imediata de que nossa mente é
consciente. A partir dessas premissas, Descartes chega novamente à sua conclusão
dualista.

Crítica ao dualismo mente-corpo

O dualismo de mente-corpo de Descartes, por vezes, tem sido chamado o compromisso


cartesiano. Descartes foi um defensor entusiasta da nova ciência mecanicista. Ele
também era um católico sincero. Uma de suas preocupações, portanto, era conciliar as
visões científica e religiosa do mundo.

Ao dividir a realidade em territórios completamente separados, ele foi capaz de atingir


esse objetivo. Uma parte da realidade é composta de substâncias físicas que podem ser
estudadas pela ciência e explicadas por princípios mecanicistas. Esta parte do universo é
um mecanismo gigantesco, um relógio. Todos os eventos neste domínio são
determinados pelas leis que os físicos descobrem. Assim, fazemos observações,
formulamos leis físicas e fazemos previsões precisas sobre eventos físicos. Na medida
em que somos corpos, a ciência pode explicar nossos movimentos físicos.

A outra parte da realidade consiste em substâncias mentais ou espirituais. Nossas


mentes são livres para pensar e desejar como desejamos, porque as substâncias mentais
não são governadas pelas leis mecânicas. Desta forma, as pessoas (ao contrário de seus
corpos) têm genuíno livre-arbítrio. Se você pular em uma piscina, por exemplo, a queda
do seu corpo é regida pelas leis da natureza. Sua decisão de dar esse salto, no entanto, é
livremente escolhida e não pode ser explicada pela física.

No domínio físico, a ciência é a autoridade dominante e nos dá a verdade. Nós não


consultamos a Igreja ou a Bíblia para ver quão rápido o coração bombeia o sangue; a
ciência nos informa sobre tais fatos. Mas de acordo com o compromisso cartesiano, a
ciência não pode nos falar sobre o destino eterno de nossas almas, pode nos dizer apenas
sobre nossos corpos. Por isso, no campo espiritual, diz Descartes, a religião ainda
mantém sua autoridade e verdade.
Descartes tinha um problema remanescente. Embora a mente e o corpo estejam
separados, ele estava convencido de que eles interagem. Assim, a versão específica do
dualismo de Descartes é chamada de interacionismo. Parece fácil entender como as
entidades mentais interagem (uma ideia leva ao pensamento de outra ideia), e parece
fácil entender como as entidades físicas interagem (uma bola de bilhar colide com outra,
colocando-a em movimento). O problema é, no entanto, como uma substância espiritual
(a mente) pode interagir causalmente com uma substância física (o corpo)?

Descartes estava bem ciente desse problema; no entanto, suas tentativas de responder a
essa pergunta foram a parte menos satisfatória de sua filosofia. Em seus dias, os
cientistas estavam cientes da existência da glândula pineal, mas não sabiam o que a
glândula fazia.

Então, Descartes tinha um órgão (a glândula pineal) cuja função era desconhecida. Ele
tinha uma função (interação corpo-mente) cuja localização era desconhecida. Ele
concluiu que poderia resolver ambos os problemas com uma hipótese: a glândula pineal
é onde a mente e o corpo interagem. Descartes achava que a glândula pineal era afetada
por “espíritos vitais” e, por meio desse intermediário, a alma podia alterar os
movimentos do cérebro, que então afetavam o corpo e vice-versa.

Obviamente, explicar a interação mente-corpo referindo-se a glândula pineal não


resolve o problema, porque essa glândula é apenas outro objeto material que faz parte
do corpo. Se os “espíritos vitais” que medeiam a interação causal são algum tipo de
força física como o magnetismo, então ainda não sabemos como o físico pode afetar o
mental e vice-versa. O mesmo problema existe se “espíritos vitais” são de natureza
mental.

Francis bacon

Francis Bacon

Introdução
Sir Francis Bacon (1561-1626) foi um Inglês filósofo, estadista, ensaísta e cientista do
período final da Renascença. Ele era um político astuto e ambicioso no clima político
turbulento da Inglaterra do período. Mas, apesar de suas negociações nefastas e
constantes batalhas contra dívidas, também era possuidor de uma mente brilhante.

Sua principal contribuição para a filosofia foi a aplicação do raciocínio indutivo


(generalizações baseadas em instâncias individuais), a abordagem usada pela ciência
moderna, em vez do método da escolástica medieval e do aristotelismo, baseado no
raciocínio puro. Ele foi um dos primeiros proponentes do empirismo e do método
científico.

Vida
Francis Bacon nasceu em Londres, Inglaterra, em 22 de janeiro de 1561. Seu pai era Sir
Nicholas Bacon, Lorde Guardião do Grande Selo sob a Rainha Elizabeth I. Sua mãe era
Ann Cooke, segunda esposa de Sir Nicholas, filha de Sir Anthony Cooke e cunhada de
William Cecil (conselheiro-chefe da rainha Elizabeth). Ele foi criado como um
cavalheiro inglês e teve muitos contatos na corte. Era o mais novo dos cinco filhos e três
filhas de seu pai.

A educação inicial de Bacon foi realizada em casa devido à má saúde, que o atormentou
durante toda a sua vida. Entrou no Trinity College, em Cambridge, aos 12 anos e foi lá
que conheceu a rainha, que ficou impressionada com seu intelecto precoce. Em 1576, e
entrou brevemente na classe alta da Grey’s Inn, mas logo teve a oportunidade de viajar
(com Sir Amias Paulet, o embaixador inglês em Paris) pela França, Itália e Espanha,
incluindo algum tempo na Universidade de Poitiers na França. Houve rumores
infundados de que ele se envolveu romanticamente durante esse período com
Marguerite de Valois, irmã do rei francês).

Em fevereiro de 1579 ele retornou à Inglaterra com a morte súbita de seu pai. Embora
sua herança fosse muito menor do que o previsto, ele retornou à Grey’s Inn para estudar
direito a fim de se sustentar. Ele foi admitido como um advogado em 1582, mas suas
ambições (que ele descreveu como descobrir a verdade, servir seu país e a sua igreja) o
levaram à política . Ele serviu como membro do Parlamento para o Melcome Regis em
1584, e depois Taunton (1586), Southampton e Ipswich (1597), Liverpool (1589),
Middlesex (1593) e St Albans e Ipswich (1604).

Sua oposição inicial ao programa tributário de Elizabeth retardou seu avanço político,
mas, com a ajuda de seu poderoso tio, lorde Burghley, subiu rapidamente na profissão
de advogado. Nesse período, ele também se familiarizou com o favorito da rainha
Elizabeth, Robert Devereux, 2º Conde de Essex, e, em 1591, agia como conselheiro
confidencial do conde. Ele continuou a usar seus contatos para avançar em sua carreira,
incluindo uma nomeação para o Conselho da Rainha em 1596, embora seus problemas
financeiros continuassem e, em 1598, ele foi brevemente preso por suas dívidas
incobráveis. Ele era um político astuto e conseguiu cortar seus laços com o duque de
Essex antes de Essex ser executado por traição em 1601 (inclusive argumentando
publicamente contra seu antigo benfeitor).

Com a ascensão do rei Jaime I após a morte de Isabel, em 1603, a estrela de Bacon
continuou a subir e ele foi condecorado no mesmo ano. Em 1606, ele se casou com
Alice Barnham, a filha de 14 anos de um parlamentar londrino bem-relacionado (mais
tarde ele a deserdou pela a descoberta de sua infidelidade). Apesar da renda generosa de
seus vários cargos, as dívidas antigas e seus métodos perdulários o mantinham
endividado. Conseguiu negociar os obstáculos políticos do reinado do Rei James e
continuou a receber o favor do rei, embora  nem sempre fosse tão popular com seus
pares.

Francis Bacon desempenhou um papel de liderança na criação das colônias britânicas no


Novo Mundo, especialmente na Virgínia, nas Carolinas e em Newfoundland. Seu
relatório do governo sobre “A colônia da Virgínia” foi feito em 1609, e ele ajudou a
formar a Newfoundland Colonization Company, que enviou John Guy para fundar uma
colônia em Newfoundland em 1610.
A carreira pública de Francis Bacon terminou em desgraça em 1621, quando um Comitê
Parlamentar sobre a administração da lei fez 23 acusações de corrupção e suborno .
Embora sua prisão na Torre de Londres tenha sido de curta duração, ele foi declarado
incapaz de ocupar um cargo futuro ou estar no parlamento, e escapou por pouco de ser
privado de seus títulos. Ele foi banido de Londres e se aposentou em sua propriedade
em Gorhambury (perto de St. Albans) para dedicar-se à escrita e ao trabalho científico .

Bacon morreu aos 66 anos, na casa de Lord Arundel em Highgate, Londres, em 9 de


abril de 1626, deixando dívidas substanciais. Em seu funeral na Igreja de São Miguel,
em St. Albans, mais de trinta pensadores famosos da época reuniram seus elogios a ele,
sugerindo que, entre muitos inimigos políticos, ele também tinha muitos amigos
eruditos e literários .

Desde sua morte, surgiram várias controvérsias e teorias de conspiração sobre Bacon,
incluindo sua possível homossexualidade, a possibilidade de que ele (e também o conde
de Essex) tenha sido o filho ilegítimo e não reconhecido da rainha Elizabeth, que ele era
o verdadeiro autor de muitas das maiores peças de William Shakespeare, que ele estava
profundamente envolvido com várias sociedades secretas, como os rosacruzes e maçons
e que ele fingiu sua própria morte.

Principais ideias de Francis Bacon


Para Bacon, o único conhecimento de importância para o homem estava empiricamente
enraizado no mundo natural, e um sistema claro de investigação científica asseguraria o
domínio do homem sobre o mundo. Ele tinha uma grande reverência por Aristóteles,
embora achasse a filosofia aristotélica estéril e errada em seus objetivos .

Um novo método para a ciência. Bacon argumentou que, embora a filosofia na época


geralmente usasse o silogismo dedutivo para interpretar a natureza, ela deveria proceder
através do raciocínio indutivo: usar a observação para chegar à leis científicas . De seus
primeiros estudos, Bacon foi persuadido de que os métodos e resultados da ciência
então praticada (amplamente baseados no trabalho do filósofo grego Aristóteles ) eram
errôneos. Porém, enquanto muitas idéias aristotélicas (como a posição da Terra no
centro do universo) foram derrubadas, sua metodologia ainda estava sendo usada.
Bacon argumentou fortemente que a verdade exigia provas baseadas em observações da
natureza defendia uma investigação completa em todos os casos, evitando teorias
baseadas em dados insuficientes. Embora não seja ele mesmo um cientista ilustre, sua
importância está na maneira como  articulou o que se tornaria o modo dominante de
pensamento na ciência.

A teoria dos quatro ídolos. No entanto, ele advertiu que antes de iniciar essa indução,
o filósofo deve libertar sua mente de certas falsas noções ou tendências que distorcem a
verdade, que ele caracterizou como os quatro ídolos: os ídolos da tribo, da caverna, do
teatro e do foro.

Saber é poder. A expressão “scientia potentia est” é uma expressão latina que significa
saber é poder. Bacon foi um dos pensadores a afirmar a importância do conhecimento
científico para melhorar a condição de vida da humanidade. É através do conhecimento
da natureza que é possível controlá-la.
Principais livros publicados
 1605 – Da Proficiência e o Avanço do Conhecimento Divino e
Humano. Publicado em 1605, o Avanço do conhecimento dividiu o
entendimento humano em três partes: história, relacionada à faculdade de
memória do homem; poesia, relacionada com a faculdade de imaginação do
homem; e filosofia, pertencente à faculdade da razão do homem. Ele então
dividiu essas três partes com base em três aspectos: divino, humano e natural. As
classificações usadas em o Avanço do Conhecimento inspiraram a estrutura
taxonômica da Enciclopédia, altamente influente, publicada na França entre
1751 e 1772.
 1620 – Novum Organum. Na época de Francis Bacon e por muitos séculos
antes dele, a ciência ou filosofia natural na Europa era dominada pelas obras de
Aristóteles. A maioria dos estudiosos reverenciava Aristóteles o que levou a
estagnação do desenvolvimento da ciência. A obra mais influente de Francis
Bacon, o Novum Organum Scientiarum (“novo instrumento da ciência”) foi
publicada em 1620. Nela, Bacon rejeitou a filosofia aristotélica e desenvolveu
seu famoso método baconiano, que usava o raciocínio indutivo para chegar a
verdades gerais a partir da observação cuidadosa de acontecimentos particulares.
Este método foi influente no desenvolvimento do método científico na ciência
moderna. A ênfase de Bacon no uso de experimentos é uma das razões pelas
quais ele é considerado “o Pai da Filosofia Experimental.”
 1623 – History of Life and Death.  Em 1623, Bacon História da Vida e Morte
foi publicada. Este trabalho é um tratado sobre medicina que examina as causas
da degeneração do corpo e da velhice, levando em consideração diferentes
análises, teorias e experimentos, para encontrar soluções para prolongar a vida.
 1627 –  A nova Atlântida. Escrito em 1623 e publicado após sua morte em
1627, expressava as aspirações e ideais de Bacon na forma de uma utopia
idealizada e uma visão do futuro da descoberta e do conhecimento humanos.
Nele, ele imaginou uma terra onde haveria maiores direitos para as mulheres, a
abolição da escravidão, a eliminação das prisões dos devedores (uma nota
bastante pessoal), a separação entre igreja e estado e a liberdade de expressão
religiosa e política. Inclui sua ideia de uma instituição cooperativa de pesquisa,
que foi fundamental para os planos e preparativos para a criação da Royal
Society e importante para a ciência no século XVII.

Francis Bacon é considerado um “gênio universal” que fez contribuições importantes


em vários campos. Ele foi um filósofo, estadista, cientista, jurista, orador e autor. Bacon
foi a principal figura no campo da metodologia científica, cujo trabalho desempenhou
um papel fundamental na transição da Europa do Renascimento para o início da era
moderna. Ele é assim creditado por não ser menos que uma figura chave no início de
uma nova era intelectual. A Royal Society e outras instituições científicas aplicaram sua
abordagem científica e seguiram os passos de seu método científico reformado; e
numerosos cientistas e pensadores foram influenciados por suas obras.

John Locke

John Locke: ideias e biografia


John Locke (1632-1704) é um filósofo inglês conhecido como um dos pais
do liberalismo político, defensor do direito à propriedade privada e do governo
constitucional, um dos principais representantes do empirismo moderno e criador de
conceitos como tábula rasa. De modo que sua filosofia influenciou movimentos
políticos como a revolução americana e francesa e filósofos como Berkeley e Hume.

Biografia
John Locke nasceu em uma família de classe média em 28 de agosto de 1634, em
Wrington, Inglaterra. Seu pai trabalhava como advogado no governo local e possuía
propriedades que produziam uma renda modesta.

Locke recebeu uma educação extraordinariamente diversa desde a infância. Sua


educação formal começou em 1647 na prestigiada Westminster School for Boys. Mais
tarde, ele estudou uma grande variedade de literatura, ciência física, medicina, política e
filosofia natural na Christ Church em Oxford, onde se instalou em 1652.

Em 1665, Locke conheceu e tornou-se amigo de Lord Ashley, um estadista que tinha
vindo a Oxford para tratamento médico. Os dois se tornaram amigos e Ashley convidou
Locke para se juntar a ele em Londres na Exeter House como seu médico pessoal.
Locke concordou e partiu para Londres em 1667, onde viveu pelos oito anos seguintes.

Os interesses políticos de Locke já haviam começado a prevalecer sobre seus


experimentos em ciência e medicina, e eles se aprofundaram enquanto vivia com
Ashley. Nesse período, Locke trabalhou em vários cargos no governo, o que continuaria
fazendo ao longo de sua vida.

Locke esteve exilado durante um longo tempo por perseguição política. É ao final desse
período que publica suas obras mais importantes: Um ensaio sobre o entendimento
humano (1690), no qual apresenta sua teoria do conhecimento, e Dois tratados sobre o
governo civil (1690), onde expõe sua filosofia política.

Além desses livros, Locke é autor de Cartas sobre a tolerância (1689) e A


racionalidade do cristianismo (1695).

Depois de retornar à Inglaterra, se torna membro do Parlamento, onde permanece até


1704, ano de sua morte.

Teoria do conhecimento de Locke


Em um 1689 Locke publica seu Ensaio acerca do entendimento humano, livro no qual
defende sua teoria do conhecimento. O objetivo de sua teoria era explicar como
conhecemos a realidade e, assim, definir quais as possibilidades e limites de nosso
conhecimento.

Para entender as ideias de Locke sobre o conhecimento é importante situá-lo em um


debate mais amplo. Na filosofia existe uma longa discussão entre defensores das ideias
inatas e partidários da tábula rasa. Para os primeiros, a mente humana já nasce com
algumas ideias fundamentais. Descartes e Platão foram dois defensores importantes
dessa perspectiva. Esses filósofos são conhecidos como racionalistas. Já os segundos,
como Locke e Hume, pensam que a mente ao nascer é como um papel em branco, sem
nada escrito, que será preenchido através da experiência, uma perspectiva conhecida
como empirismo.

Alguns defensores das ideias inatas acreditavam que parte dos conteúdos existentes em
nossas mentes, como a ideia de Deus, normas morais, o princípio de não-contradição, já
nascem conosco.

Locke critica essa teoria afirmando que  a crença de que a ideia de Deus ou princípios
morais são inatos não se sustenta se considerarmos que algumas culturas sequer sabem
o que é Deus e têm costumes muito diferentes. Ora, se de fato fossem inatas, tais ideias
deveriam estar presentes em todos os seres humanos.

Ver também: Empirismo de Locke

Filosofia política de Locke


O contexto político inglês durante a vida de Locke foi marcado por dois conflitos
fundamentais. Um político, entre o rei e o parlamento em torno do poder de comandar a
Inglaterra; outro religioso, entre anglicanos, protestantes e católicos. A natureza e os
limites do governo e o tema da liberdade religiosa, centrais no pensamento de Locke,
estão relacionados a esse contexto histórico.

Inicialmente Locke acreditava que a religião deveria ser definida pelo Estado, de modo
que houvesse uma única fé e ninguém possuísse liberdade nesse campo. Porém, depois
de uma viagem ao exterior, onde observou uma comunidade em que diferentes seitas
religiosas viviam em harmonia, mudou suas ideias, o que o levou a escrever Cartas
sobre a tolerância (1689), livro no qual defende a tolerância e a liberdade religiosa.

Além da liberdade religiosa, Locke também foi defensor de uma série de outros
aspectos do liberalismo político.

Em primeiro lugar, era contra a ideia de direito divino dos reis. A teoria do direito
divino dos reis era usada na época para justificar a monarquia, pois de acordo com essa
teoria algumas pessoas têm o direito de governar, já que foram escolhidas por Deus,
enquanto outras têm o dever de obedecer.

Ao contrário disso, Locke defendia que o governo deve ter o consentimento da


população. Segundo o filósofo, originalmente os seres humanos vivem em um estado de
natureza, isto é, numa condição na qual não existe um governo que obriga que a
população respeite determinadas leis. Nesse Estado os seres humanos são livres, iguais e
já possuem uma série de direitos naturais. Porém, nessa condição existe uma série de
inconvenientes, pois as pessoas não respeitam os direitos umas das outras.

Para resolver esses inconvenientes é que optam por criar um governo para promover o
bem comum, de acordo com Locke. Isso faz dele um filósofo contratualista.  Para esses
pensadores, o governo surge não de um comando divino, mas do consentimento da
população. Somente um contrato social garante legitimidade ao governo.
Em segundo lugar, Locke defendia um governo constitucional. Isso quer dizer que o
governo não está acima das leis, ao contrário, também deve respeitá-las. E essas leis,
para o filósofo, devem garantir o direito à vida, à propriedade e à liberdade. Caso o
governo desrespeite os direitos fundamentais pelos quais deve zelar, os cidadãos têm o
direito de se rebelar e substituí-lo.

A ideia de que os seres humanos tem certos direitos naturais, como a liberdade e a vida,
deu origem ao que hoje conhecemos como direitos humanos.

Empirismo de Locke

Embora as raízes do empirismo estejam na antiga Grécia, foi o filósofo inglês John
Locke (1632–1704) quem lançou as bases do empirismo moderno. Um homem de
muitos talentos e interesses diversos, Locke estudou teologia, ciências naturais, filosofia
e medicina na Universidade de Oxford. Por dezessete anos, serviu como médico pessoal
e conselheiro de lorde Ashley. Locke era ativo em assuntos políticos e, além de ocupar
vários cargos públicos, ajudou a redigir uma constituição para as colônias americanas
em 1669.

É comum dizer que o Iluminismo começou com a publicação do livro de Locke Ensaio


sobre o entendimento humano em 1690. Com a possível exceção da Bíblia, nenhum
livro foi mais influente no século XVIII do que o Ensaio de Locke. De acordo com seu
próprio relato, a ideia para o trabalho começou quando ele e cinco ou seis amigos
estavam envolvidos em um vigoroso debate sobre questões relativas à moralidade e à
religião. Locke logo percebeu que essas questões muito difíceis nunca poderiam ser
resolvidas até que primeiro se fizesse uma avaliação das capacidades e limites da
capacidade de conhecer dos seres humanos. Como disse Locke: “Se pudermos descobrir
até que ponto o entendimento pode estender sua visão; até que ponto tem faculdades
para alcançar a certeza; e em que casos ela só pode julgar e adivinhar, podemos
aprender a nos contentar com o que é atingível por nós nesse estado.”

Locke sobre a possibilidade de conhecimento


Locke pensou que era óbvio que a experiência nos dá conhecimento que nos permite
lidar com sucesso com o mundo externo às nossas mentes. Portanto, Locke não é
um cético sobre nossa capacidade de conhecer a realidade a nossa volta.

O conhecimento está localizado em nossas mentes e, para entender como ele é gerado e
seus limites, devemos analisar os conteúdos de nossa mente. De acordo com Locke, os
blocos de construção de todo o conhecimento são o que ele chama de ideias. É
importante entender o significado único que Locke dá a esse termo porque difere do
significado que ele tem para nós hoje. Ele diz que uma ideia é qualquer coisa que seja
“o objeto imediato de percepção, pensamento ou compreensão”. Ele nos oferece uma
coleção aleatória de exemplos para ilustrar o que ele quer dizer com “ideia”. Ideias são
o tipo de coisa expressa por palavras como “brancura, dureza, doçura, pensamento,
movimento, homem, elefante, exército, embriaguez e outros”.

Como um químico analisando um composto em seus elementos mais simples, Locke


tenta encontrar as unidades básicas que compõem o nosso conhecimento. Os átomos de
pensamento mais fundamentais e originais são ideias simples. A mente não pode
inventar uma ideia simples, novinha em folha ou conhecer uma ideia que não tenha
experimentado. Por exemplo, um dicionário definirá amarelo como a cor de um limão
maduro. O dicionário pode referir-se apenas aos elementos da sua experiência para
tornar a ideia clara.

Existem dois tipos de ideias simples. O primeiro tipo consiste em ideias de sensação,
que são as ideias que temos de qualidades como amarelo, branco, calor, frio, suave,
duro, amargo e doce. Tais ideias têm origem na observação do mundo ao redor. A
segunda categoria de ideias simples são as ideias de reflexão, que são obtidas da nossa
experiência de nossas próprias operações mentais. Assim, temos ideias de percepção,
pensamento, dúvida, crença, raciocínio, conhecimento e desejo, bem como das emoções
e outros estados psicológicos. Porque podemos observar a mente trabalhando, podemos
pensar sobre o pensamento (ou qualquer outra atividade ou estado psicológico).

No entanto, essas ideias são sons únicos, cores e outros fragmentos isolados de
sensação. Onde obtemos as ideias de objetos unificados, como livros e elefantes? Locke
acreditava que, embora a mente não possa originar ideias simples, pode transformá-las
em ideias mais complexas. Ideias complexas são combinações de ideias simples que
podem ser tratadas como objetos unificados e recebem seus próprios nomes. Locke
classifica as ideias complexas de acordo com as três atividades da mente que as
produzem: composição, relação e abstração.

O primeiro tipo de ideias complexas é formado pela combinação ou união de duas ou


mais ideias simples. Podemos combinar várias ideias do mesmo tipo. Por exemplo,
podemos combinar nossas experiências limitadas de espaço para formar a ideia de
espaço imenso  mencionado pelos astrônomos. Também podemos combinar várias
ideias diferentes. A ideia que temos de uma maçã é a combinação das ideias mais
simples de vermelho, redondo, doce e assim por diante.

Ao relacionar uma ideia com outra, podemos apresentar ideias complexas. Por exemplo,
a ideia de mais alto só poderia acontecer relacionando e comparando nossas ideias de
duas coisas. Marido e esposa, pai e filho, maior e menor, causa e efeito são exemplos de
ideias que não são experimentadas sozinhas, mas derivam da observação de relações.

Finalmente, abstrair elementos comuns em uma série de experiências particulares nos


fornece ideias gerais. Locke diz que podemos formar a ideia geral de livro abstraindo
todas as qualidades que os livros em particular têm em comum e ignorando suas
distinções individuais. Por exemplo, livros individuais vêm em cores e tamanhos
específicos, mas todos os livros, em gera,l são objetos retangulares contendo páginas
com escrita ou imagens. Quando nos referimos a cães, seres humanos, edifícios ou
quaisquer outros grupos de coisas, estamos abstraindo as propriedades comuns
encontradas em nossas experiências de indivíduos particulares.
Locke e tábula rasa
Filósofos racionalistas, como Descartes, acreditavam que a razão por si só era capaz de
revelar como o mundo é. Isso porque a razão humana já possui algumas ideias inatas, ou
seja, ideias que já nascem com a pessoa. Empiristas como Locke, por outro lado,
acreditam que não podemos descobrir como o mundo é simplesmente raciocinando
sobre ele. Todo conhecimento sobre o mundo deve passar pela experiência.

Locke atacou a noção de ideias inatas. Em contraste com a teoria dos racionalistas de
que a mente naturalmente contém certas ideias, Locke propõe que a mente humana ao
nascer é uma tábula rasa, uma expressão latina que significa “folha em branco”. Ao
longo do tempo, a partir da sensação, a pessoa vai adquirindo uma quantidade muito
grande de ideias. Em outras palavras, sem experiência, a mente não teria conteúdo.

Entretanto, uma vez que tenhamos algumas experiências, a razão pode processar esses
materiais compondo, relacionando e abstraindo nossas ideias para produzir ideias mais
complexas. Portanto, a razão por si só não pode nos dar conhecimento além da
experiência.

Uma disputa importante entre os racionalistas e empiristas diz respeito à origem de


nossas ideias. Ambos concordariam que nossa ideia de “banana” tinha que vir da
experiência com bananas. No entanto, e a nossa ideia de perfeição? Esta questão é
comparável à pergunta: O que veio primeiro, a galinha ou o ovo? Os racionalistas
pensam que a ideia de perfeição é inata dentro da mente e, a partir dessa ideia
fundamental, derivamos a ideia de imperfeição. Um dos argumentos de Descartes para a
existência de Deus foi baseado na noção de que a ideia de perfeição tinha que ser
plantada na mente por um ser perfeito, uma vez que não poderia ter vindo da
experiência. No entanto, Locke diz que chegamos primeiro ao conceito de imperfeição a
partir das coisas que experimentamos e depois removemos imaginativamente essas
imperfeições até formarmos o conceito de perfeição. Por exemplo, estou ciente que meu
conhecimento de computadores é limitado. Mas meu entendimento está crescendo
continuamente à medida que minha ignorância é substituída por conhecimento. Assim,
posso imaginar um ser cujo conhecimento não tenha nenhuma das lacunas que o meu
possui, e essa imagem seria o conceito de conhecimento perfeito. Assim, a partir de
nossa experiência, podemos raciocinar sobre coisas que não experimentamos.

Os empiristas pensam que a nossa ideia de infinitude, semelhante à nossa ideia de


perfeição, pode começar com a nossa ideia do finito (tirado da nossa própria experiência
limitada), da qual derivamos a ideia do infinito. Alcançamos esse conceito, diz Locke,
repetindo imaginativamente e compondo nossas experiências de espaço, duração e
número limitados, continuando esse processo de pensamento sem fim. Da mesma
forma, podemos derivar a ideia de Deus imaginando-nos repetindo e infinitamente
compondo nossas experiências finitas de existência, duração, conhecimento, poder,
sabedoria e todas as outras qualidades positivas até chegarmos à nossa complexa ideia
de Deus. Locke acreditava na existência de Deus, mas quando procura demonstrar que
Ele existe, Locke recorre à evidência empírica tradicional presente no argumento
cosmológico e no argumento do design inteligente.

Finalmente, Locke pensa que a ética pode ser colocada em uma base empírica. Como
não temos sensações diretas que correspondam aos conceitos de bem e mal, devemos
encontrar algumas outras sensações das quais essas noções podem ser derivadas. Como
é típico das teorias morais empiristas, a teoria de Locke começa com nossas
experiências de dor e prazer. Ele diz que chamamos de “bom” o que tende a nos causar
prazer e “mal” qualquer coisa que tende a produzir dor. Desta forma, a experiência pode
nos ensinar que certos tipos de comportamento são moralmente bons (como manter
promessas e prevenir danos), porque levam aos resultados mais satisfatórios.

Locke afirma que, apesar de todas as diferenças culturais, os códigos morais da maioria
das culturas têm um grande número de semelhanças. Essa semelhança existe porque a
moralidade consiste na sabedoria derivada da experiência coletiva da raça humana. A
experiência nos ensina que uma sociedade baseada na traição e no engano não será um
lugar muito agradável para se viver, nem é provável que ela sobreviva por muito tempo.
Mesmo que pensasse que a experiência pode nos ensinar o que precisamos saber sobre a
moralidade, Locke tentou tornar essa visão consistente com suas crenças cristãs. Ele
acreditava que Deus fez a experiência humana de modo que viver em conformidade
com a lei divina produzirá as experiências mais satisfatórias a longo prazo, tanto para o
indivíduo quanto para a sociedade.

Como o mundo realmente é?


Como o mundo realmente é? Será que o vermelho que vejo é o mesmo vermelho que
você vê? O mundo como o cachorro vê é diferente do mundo como o vemos? Essa é
uma questão presente na teoria do conhecimento que recebeu respostas diferentes. Os
céticos, por exemplo, negam que possamos conhecer o mundo como ele é. Locke, por
sua vez, tinha um pensamento misto sobre essa questão.

Se você comparar sua experiência sobre coisas como alimentos, clima, velocidade com
a experiência de outra pessoa notará o seguinte. Algumas propriedades, como tamanho,
forma ou movimento, são constantes, enquanto outras propriedades, como cor,
temperatura ou sabor, podem mudar de uma circunstância para outra e são percebidas de
forma diferente por pessoas diferentes.

Locke explica essa diferença distinguindo entre dois tipos de propriedades que um
objeto pode ter. Propriedades que são objetivas, independentes de nós e que fazem parte
da composição do próprio objeto são chamadas de qualidades primárias. As
qualidades primárias de um objeto são suas propriedades de solidez, extensão, forma,
movimento ou repouso e número. Em outras palavras, são as propriedades que podem
ser expressas matematicamente e estudadas cientificamente. As propriedades que são
subjetivamente percebidas, que são os efeitos que o objeto tem em nossos órgãos dos
sentidos e cujas aparências são diferentes do objeto que as produz, são qualidades
secundárias. Qualidades secundárias são propriedades como cor, som, sabor, cheiro e
textura.

Voltando à questão sobre como o mundo realmente é, nossa experiência de qualidades


primárias nos dá conhecimento da realidade como ela realmente é, mas nossa
experiência de qualidades secundárias registra como o mundo objetivo afeta nossos
órgãos sensoriais específicos. Assim, achamos fácil concordar com o tamanho, o
número, a posição e a forma de um copo de chá gelado, porque essas são suas
qualidades objetivas ou primárias. No entanto, podemos discordar se o chá é doce
demais. Essa discordância é porque a doçura é uma qualidade secundária que não está
realmente presente no chá, mas reflete as maneiras subjetivas como o chá afeta
diferentes papilas gustativas. Um resultado da visão de Locke das qualidades
secundárias é que ela retira do mundo externo todas as características que os artistas
representam e os poetas descrevem. O que nos resta é o mundo que a ciência estuda, um
mundo de propriedades materiais quantificáveis.

Direito à propriedade privada para


Locke

Quando tenho direito à propriedade privada? Em condições é legítimo que diga que algo
é meu? Quando a desigualdade de riqueza e propriedade observada entre as pessoas é
justa?

Ainda no século XVII, John Locke, um filósofo defensor da ideia de direito natural
criou uma explicação que se aproxima muito daquilo que pensamos ser a origem do
direito de propriedade. Suas ideias estão no livro Segundo Tratado sobre o Governo
Civil, no segundo livro, capítulo V.  Em linhas gerais, defende que as pessoas são donas
de si mesmas e, portanto, do seu trabalho. Assim, quando exercem esse trabalho sobre
um bem que é natural, como ao cultivar a terra para produzir alimento, têm o direito de
dizer que que o alimento é produzido é seu. Mas isso é o resumo da história. A parte
mais interessante é como Locke chega a essa conclusão.

Tudo é de todos
O ponto de partida das reflexões de Locke sobre o direito de propriedade é a
compreensão de que a natureza e tudo o que ela oferece, incluindo a terra, a água, o ar,
os alimentos, os animais é um bem comum.

Segundo o filósofo, diferentes evidências conduzem a essa conclusão. Se, argumenta


ele, “consideramos a razão natural”, perceberemos que “os homens, desde o momento
do seu nascimento, têm o direito a sua preservação e, consequentemente, a comer, a
beber e a todas as outras coisas que a natureza proporciona para sua subsistência”1.
Além disso, para aqueles que acreditam na existência do Deus Cristão, de acordo com a
Bíblia, Deus “deu a terra aos filhos dos homens”. Ou seja, a terra e tudo o que ela
oferece para a sobrevivência humana não foi dada a uma pessoa em particular mas a
todos.

Surge assim o seguinte problema: é possível se apropriar legitimamente de um bem


comum? Deve haver uma forma de nos apropriarmos dos recursos naturais, do contrário
jamais poderíamos usá-los em nosso benefício, raciocina Locke. Afinal, de que adianta
a natureza produzir animais e frutas em abundância se devessem sempre ser
considerados bens comuns e uma pessoa jamais pudesse pegar para si, dizer que é seu e
usá-los? Mas qual é essa forma?
Meu corpo é meu, o resultado do trabalho também é meu
John Locke acredita que podemos nos apropriar legitimamente de algo que é um bem
comum através do trabalho.

O primeiro passo do seu argumento de Locke é a alegação de “ainda que a terra e todas
as criaturas inferiores pertençam em comum a todos os homens, cada um guarda a
propriedade de sua própria pessoa”1. Ou seja, meu corpo é meu. Tenho direito exclusivo
sobre ele, pois não é uma propriedade comum.

Mas não é apenas o corpo físico que é minha propriedade. Tudo aquilo que ele é capaz
de fazer também é meu. Imagine a seguinte cena. Vivemos na selva e há uma laranjeira
carregada de frutas. Essa laranjeira é propriedade comum, pertence a todos os membros
da espécie humana, a mim e a você. No entanto, a partir do momento que me dou o
trabalho de colher alguns de seus frutos, estou misturando algo meu (o trabalho) a esse
bem comum. E a partir desse ato posso dizer legitimamente que as laranjas são minhas.
Portanto, é a partir do trabalho que se origina o direito à propriedade privada.

Assim, se o corpo é meu, o resultado do trabalho realizado por é também é meu. O


pensamento liberal, ao qual Locke se filia, valoriza uma série de direitos, como o direito
à vida e o direito à propriedade, por exemplo. É importante notar que a base para
justificar ambos são semelhantes: a propriedade do próprio corpo. Se o corpo é meu,
você não pode violá-lo, agredi-lo, tirar sua vida. Da mesma forma, não pode tirar
minhas propriedades, pois essas são como uma extensão desse corpo.

Mas tem uma condição…


Locke afirma que somos donos de tudo aquilo que produzimos através do nosso
trabalho usando recursos naturais. Mas tem uma condição –  desde que o que restar seja
“suficiente aos outros, em quantidade e em qualidade”1. Ou seja, não podemos nos
apropriar de todos os bens comuns, mesmo que trabalhássemos o suficiente para isso.
Temos que deixar para os outros, porque a natureza é uma espécie de presente dado à
humanidade, não à uma pessoa.

Conclusões
O que dizer das ideias de Locke? Quais suas consequências? O raciocínio parece
simples, claro e convincente. Porém, o que exatamente ele exige na prática? Será que
nossas leis de propriedade, por exemplo, estão de acordo com as condições de Locke
para podermos dizer que temos direito à propriedade?

Thomas Paine (1737-1809), um pensador político Inglês, extraiu das ideias de Locke
consequências bastante impopulares: a ideia de uma renda básica. Paine argumentou,
como Locke, que a natureza é um bem comum. Também como Locke, defendeu que
todos têm direito a usar dela para seu sustento e ninguém deve ser privado desses
recursos porque algumas pessoas se apropriaram de tudo.

Como na Inglaterra do século XIX muitas pessoas não tinham qualquer acesso aos
recursos naturais, defendeu que fossem indenizadas. Como? Uma forma seria
desapropriar as terras daqueles com grandes propriedades e distribuí-las aos demais.
Porém Paine teve outra ideia. Defendeu que todos os proprietários deveriam pagar um
valor que seria depositado em um fundo e distribuído na forma de uma renda básica
para toda a população. Esse valor seria uma compensação paga por aqueles que se
apropriaram dos bens comuns pelo fato de terem deixado os demais sem nada.

Maquiavel

Nicolau Maquiavel
Nicolau Maquiavel (1469 – 1527) foi um dos mais influentes teóricos políticos da
filosofia ocidental. Seu livro mais conhecido, O Príncipe, provocou grades mudanças na
forma de abordar a política, rompendo com uma visão dominante na filosofia
desde Platão e Aristóteles. Sua principal contribuição nesse sentido foi estabelecer uma
separação entre ética e política, argumentando que essas são formas independentes de
ação humana e que a política não deve estar subordinada à ética, como se pensava até
então.

Biografia
Maquiavel nasceu e foi criado em Florença, lugar que hoje fica na Itália, onde seu pai
era advogado. Ele recebeu a educação clássica da época, aprendendo gramática, retórica
e latim.

Em 1498, com 29 anos, assumiu um papel político relevante na recém criada República
de Florença e ao londo de mais de uma década desempenhou funções importantes,
acompanhando em primeira mão os acontecimentos políticos italianos.

No entanto, em 1513, sua vida passa por uma reviravolta. Por causa de mudanças
políticas, Maquiavel é preso, torturado e enviado para o exílio.
Folha de rosto da edição de 1580 de O Príncipe.
Depois disso o filósofo não voltaria mais ao seu antigo posto. Entre 1513 e 1527, ano de
sua morte, se dedicou a refletir sobre sua experiência e a pensar a política. Nesse
período, escreveu sua principal obra, O Príncipe, que seria publicado apenas depois de
sua morte, em 1532.

O Príncipe é um manual de instruções que ensina como o governante deve proceder


para conquistar e permanecer no poder. Polêmico desde sua publicação, o livro recebeu
uma série de interpretações diferentes. Mal visto pela Igreja Católica, foi colocado no
Índice dos Livros Proibidos em 1559. A razão disso é ter sido considerado uma afronta
à religião, uma vez que seu autor recomendava aos governantes ignoraram as normas
morais se isso fosse necessário para manter o poder.

Por outro lado, filósofos como Espinoza (1632 – 1677) e Rousseau (1712 – 1778)


pensaram que Maquiavel estava alertando o povo sobre os perigos da tirania.

Qual o conteúdo dessa obra tão polêmica? O que defendeu Maquiavel no Príncipe para
ter sido alvo de tanto ódio e amor desde sua publicação?

Principais ideias de Maquiavel


As ideias de Maquiavel não deixaram de ser polêmicas ainda hoje, pois têm como ponto
principal a relação entre ética e política. Poderíamos colocar a questão nesses termos:
um governante, ao desempenhar seu trabalho, deve sempre fazer aquilo que é o correto
a ser feito no sentido moral? Ou, em algumas ocasiões, o mais apropriado é ignorar a
moralidade comum e seguir outros padrões de comportamento?
Para conhecer como Maquiavel via a política, pense na seguinte questão. Imagine que
você é presidente em um país escravocrata. Considerando a escravidão uma política
injusta, você é eleito com a promessa de que ela será abolida. Porém, seu partido e
aliados não tem maioria no congresso e, teoricamente, você não conseguirá aprovar a lei
que gostaria. Há apenas uma alternativa. Muitos congressistas da oposição estão na
política preocupados apenas com benefícios pessoais. Eles deixam claro isso, e você
inclusive sabe quanto custa obter o apoio de cada um. Assim, com a quantidade
adequada de dinheiro e outros benefícios, você pode garantir o voto favorável mesmo de
parlamentares contrários ao seu governo. O que você faria nessa situação?

A independência da política
Se fizéssemos para Maquiavel essa pergunta, ele não teria dúvidas quanto à resposta.
Recomendaria ao governante fazer o  necessário para obter a aprovação do povo, caso
seu objetivo fosse permanecer no poder, inclusive comprando votos.

Algumas pessoas argumentariam que essa prática viola regras morais como não
corromper, não mentir e não subornar. Porém, Maquiavel responderia que, na política,
nem sempre devemos observar as regras morais. O governante que exita em fazer o
necessário para se manter no poder, mais cedo ou mais tarde será substituído por
alguém que fará isso. Portanto, se deseja continuar governando, em algumas
circunstâncias será necessário agir de forma contrária à moralidade comum.

Essa ideia valeu ao filósofo um papel fundamental no desenvolvimento do pensamento


político moderno. Pela primeira vez alguém propõe que ética e política sejam tratados
como campos independentes e que a última não se encontre mais subordinada à
primeira.

As virtudes que um governante deve ter


Para compreender melhor a importância da separação entre política e ética feita por
Maquiavel, é importante ver suas ideias no contexto em que surgiram.

O Príncipe, livro no qual o filósofo aborda esse tema, é uma manual dedicado a ensinar
como os governantes deveriam se portar no poder para serem bem sucedidos. Esse era
um gênero de livro comum no século XV. Porém, Maquiavel inovou ao escrever o seu.

Um dos capítulos obrigatórios desses livros eram dedicados às virtudes que uma pessoa
deveria ter para ser um bom governante. Geralmente eram sugeridas uma série de
virtudes cristãs: a bondade, a liberalidade, a integridade, a religiosidade, a sabedoria etc.
Basicamente, a julgar por esses manuais, uma pessoa moralmente correta, virtuosa, seria
um bom governante.

A partir da análise de sua experiência na política, Maquiavel inova em O Príncipe ao


afirmar que nenhuma qualidade isolada pode ser identificada como virtude e buscada
em toda e qualquer situação. Em alguns momentos as virtudes cristãs podem ser úteis.
Em outros, o exato oposto. Cabe ao governante saber quando usá-las. Nenhum
governante que espere sobreviver pode se abster de uma ou outra forma de crueldade.
Tomemos um exemplo bem polêmico. Um governante deveria manter sua palavra, seus
compromissos, suas — para utilizar um caso contemporâneo — promessas de
campanha? Em relação a esse assunto, Maquiavel escreveu

“um senhor prudente não pode nem deve guardar sua palavra, quando isso seja
prejudicial aos seus interesses. Se todos os homens fossem bons, este seria um preceito
mau; mas, porque são maus e não observariam a sua fé a teu respeito, não há razão para
que cumpras para com eles. Jamais faltaram a um príncipe razões legítimas para
justificar a sua quebra da palavra.”

O filósofo foi inclusive além disso, recomendando que o governante fizesse uso da
astúcia, da dissimulação e da mentira. Se bem utilizadas, se contribuírem para a
manutenção do poder, essas são virtudes de um governo.

Então quando se fala da separação entre ética e política no pensamento de Maquiavel, é


disso que se trata. O bom governante é aquele que é habilidoso no uso de artimanhas, de
astúcias, da bondade, da crueldade, da mentira, da honestidade e uma série de outros
recursos para se manter no governo, não aquele que melhor expressa em suas atitudes
todas as virtudes morais.

Como se vê, as ideias de Maquiavel ainda não deixaram de ser chocantes. Nesse ponto,
é natural se questionar por que o filósofo acreditava que as pessoas no governo
poderiam fazer qualquer coisa, mesmo que imoral. A resposta está relacionada a uma
visão realista da natureza humana e da política.

A natureza humana
Na citação do Principe acima, encontramos a seguinte frase “se todos os homens fossem
bons, este [quebrar promessas] seria um preceito mau”. Nem todos os seres humanos
são bons e a política não é feita por anjos. Ao contrário, é feita por homens,
constantemente buscando alcançar o poder e permanecer nele a todo custo.

Maquiavel via isso como um fato imutável da natureza humana. Não importa o quanto a
sociedade se desenvolva, o quanto o tempo passe, a educação progrida, os seres
humanos sempre serão assim. Dessa forma, a única maneira de sobreviver nesse meio é
fazendo o que todos fazem.

A sugestão de Maquiavel para os governantes ignorarem as normas morais parece


exagerada, mas deveríamos ser mais cuidadosos na avaliação.

Imagine o seguinte dilema, certamente não muito difícil de identificar na realidade


brasileira. Você está concorrendo ao cargo de prefeito em sua cidade. Há apenas um
candidato adversário e você conhece essa pessoa de outras ocasiões, sabe de suas más
intenções e de sua falta de preocupação com o bem público. Sabe também que pode
fazer um trabalho bastante superior ao de seu adversário.

No entanto, sua  única chance de ganhar e eleição é mentindo. Isso porque o país passa
por uma crise econômica e a cidade da qual você deseja ser prefeito foi bastante afeita
com redução de receita e está bastante endividada. Você não pode prometer
honestamente qualquer melhoria significativa porque sabe que isso é inviável, a não ser
que a situação mude radicalmente.

Portanto, você está diante de duas alternativas difíceis. A primeira opção é se omitir,
não mentindo durante a campanha e garantindo a vitória do adversário. A consequência
disso será uma péssima administração e um grande prejuízo para a população. A outra
opção envolve uma ação imoral, a mentira deliberada, mas isso pode lhe garantir a
vitória e alguns benefícios para a população da cidade.

Qual a ação mais correta a adotar? Seja qual for a resposta, é difícil afirmar sem dúvida
que uma é melhor que a outra.

Então, visto a partir desse ângulo, o pensamento de Maquiavel não é tão imoral assim.
Sua visão realista sobre a natureza humana e sobre a política possibilita uma ação mais
efetiva e, talvez, mais correta na política.

Rousseau

O bom selvagem de Rousseau


Imagine a cena: um avião faz um pouso de emergência e algumas partes se soltam, a
cabine se enche de fumaça e há grande risco de incêndio. Todos percebem que precisam
deixar o avião imediatamente. O que acontece?

– No planeta A, os passageiros viram-se para os que estão ao lado e perguntam se estão


bem. Os que precisam de assistência recebem ajuda para sair primeiro do avião. As
pessoas estão dispostas a sacrificar a própria vida, mesmo por estranhos que nunca
viram antes.

– No planeta B, cada um cuida de si mesmo. Instala-se o pânico. Todos se empurram e


se atropelam. Crianças, idosos e pessoas com  deficiência são pisoteadas. 1

Em que planeta nós vivemos? 


O problema acima é apresentado a seus alunos por Tom Postmes, professor de
Psicologia Social na Universidade Groningen, na Holanda. Seu interesse filosófico está
em nos fazer pensar sobre questões fundamentais: quem somos nós? Qual é a nossa
natureza?

Diante do problema, somos levados a pensar o que faríamos em uma situação limite, na
qual as normas morais e leis cotidianas estão ausentes ou não têm poder de influenciar
nosso comportamento. Diante do risco da morte, provavelmente nossos instintos
assumirão o controle e revelaremos nossa verdadeira natureza. 

“Eu estimaria que cerca de 97% das pessoas acham que vivemos no planeta B”, diz
Postmes2. Será essa a nossa natureza?
O bom selvagem
Rousseau discordava dessa visão tão comum sobre a natureza humana. Em 1752
publicou um livro que imediatamente despertaria fortes reações e polêmicas: O discurso
sobre a origem da desigualdade entre homens. Qual sua conclusão sobre a natureza
humana? Que o homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe. Em outras palavras,
vivemos no planeta A.

Muito já havia sido escrito sobre a questão da natureza humana antes de Rousseau:
Aristóteles, Maquiavel, Hobbes, apenas para citar três filósofos que marcaram a história
com suas ideias. Ao último, inclusive, devemos muito das nossas ideias sobre o
comportamento humano livre das amarras das leis e da moralidade. Ele dizia que, na
ausência de um governo e de leis, viveríamos em uma guerra de todos contra todos.
Figura 1: Divergência entre Hobbes (o primeiro filósofo) Maquiavel (o segundo) e
Aristóteles (o terceiro) sobre a natureza huaman. Créditos da imagem: Dave Robinson,
Introducing Rousseau: A Graphic Guide.
Apesar de todo esse debate sobre a natureza humana, Rousseau alegava que pouco havia
sido compreendido sobre o assunto. No prefácio de seu Discurso, afirmou: “O mais útil
e o menos avançado de todos os conhecimentos humanos parece-me ser o do homem”3. 

Há uma razão para esse ser o conhecimento menos avançado. Não vemos por aí o
homem em seu estado natural. Os seres humanos que conhecemos vivem em sociedades
e foram sendo modificados pelas circunstâncias em que vivem, pelas crenças e
costumes criados ao longo dos tempos. Somos, diz Rousseau,  

“como a estátua de Glauco, que o tempo, o mar e as intempéries tinham desfigurado de


tal modo que se assemelhava mais a um animal feroz do que um deus, a alma humana,
alterada no seio da sociedade por milhares de causas sempre renovadas, pela aquisição
de uma multidão de conhecimentos e de erros […] mudou de aparência a ponto de
tornar-se quase irreconhecível.”4. 

Para tentar compreender quem é esse homem em seu estado natural, o filósofo irá
utilizar a boa e velha especulação filosófica e relatos de viajantes europeus sobre os
povos da América, África e Ásia. Um dos efeitos desses relatos foi a compreensão de
que muito do que se considerava natural nas sociedades européias, como os governos
comandados por reis, estava ausente em outras sociedades e talvez não fosse tão natural
assim.

No entanto, é importante não fazer confusões. Rousseau não está dizendo que os povos
indígenas nas Américas, por exemplo, vivem em um estado de natureza e basta
conhecer seu comportamento para compreender quem somos. Tais povos, na visão do
filósofo, também viviam em sociedade, foram educados dentro de costumes e hábitos
artificiais, e estavam afastados do ser humano em seu estado natural, ainda que menos
do que as sociedades européias. Para reconstituir esse homem em estado de natureza, é
necessário mais do que a observação de sociedades distantes. 

Como Rousseau faz isso? Como ele separa aquilo que é natural no homem daquilo que
é artificial? 

O homem natural: piedade e amor de si


Para isso, pensa Rousseau, devemos retornar ao momento da história humana em que os
homens ainda não viviam em sociedade. Chegando aí, o filósofo imagina indivíduos
vivendo de forma independente e com poucas necessidades, sobrevivendo facilmente
com o que a natureza tem a oferecer:

“vejo um animal menos forte do que uns, menos ágil do que outros, mas, afinal de
contas, organizado mais vantajosamente do que todos: vejo-o saciando-se debaixo de
um carvalho, matando a sede no primeiro regato, encontrando o seu leito ao pé da
mesma árvore que lhe forneceu o repasto; e eis satisfeitas as suas necessidades.”5. 
Figura 2: As necessidades humanas no estado de natureza. Créditos da imagem: Dave
Robinson, Introducing Rousseau: A Graphic Guide.
Com tão poucas necessidades e satisfazendo-as facilmente, não há porque juntar
esforços com outros seres humanos. Sem interesses comuns, os homens vivem solitários
na natureza, raramente encontrando outros da mesma espécie. 

“Nesse estado primitivo, não tendo casas, nem cabanas, nem propriedades de nenhuma
espécie, cada qual se alojava ao acaso e  muitas vezes por só uma noite; os machos e as
fêmeas se uniam fortuitamente, conforme o encontro, a ocasião e o desejo” 6. 

Na história pensada por Rousseau, é apenas mais tarde que surgirá a família e, a partir
dela, as primeiras comunidades. 

Rousseau identifica nesse momento do desenvolvimento humano a presença de dois


instintos naturais: o amor de si e a piedade. 

O primeiro é um instinto de preservação que está presente nos outros animais. Nada
mais é do que um impulso que o leva a fazer ações que o manterão vivo: caçar, pescar,
colher frutos das árvores, se abrigar, se defender de ataques.

Para aqueles que concluem que os seres humanos são naturalmente agressivos e vivem
em conflito por causa de seu instinto de conservação, Rousseau lembra de outra
característica: a piedade. Essa “tempera o ardor que ele tem por seu bem-estar com uma
repugnância inata de ver sofrer seu semelhante”7. 

Para mostrar como esse sentimento é natural, o filósofo observa que mesmo os animais
sofrem diante do sofrimento alheio:

“Um animal não passa sem inquietação perto de um animal morto de sua espécie:
alguns dão mesmo uma espécie de sepultura; e os tristes mugidos do gado, ao entrar no
matadouro, anuncia a impressão que ele recebe do horrível espetáculo que o comove”. 8

Essa disposição natural é forte o suficiente para manter os homens no estado de natureza
em paz com seus semelhantes. É somente com surgimento da sociedade, da linguagem e
da filosofia que tal instinto perde força:

“Pode-se impunemente degolar o semelhante debaixo da janela; é só tapar os ouvidos e


argumentar um pouco, para impedir que a natureza, revoltando-se nele, o identifique
com aquele que se assassina. O homem selvagem não tem esse admirável talento, e, por
falta de sabedoria e de razão, vemo-lo sempre entregar-se, aturdido, ao primeiro
sentimento de humanidade. Nos motins, nas brigas de rua, a populaça se aglomera, e o
homem prudente se afasta; é a canalha, são as mulheres dos mercados que separam os
combatentes e impedem a gente honesta de se degolar mutuamente.”9

A desvantagem do conflito
Para Rousseau, existe um conjunto de fatores que contribui para manter a paz no estado
de natureza. Já falamos sobre as poucas necessidades, facilmente satisfeitas, e a piedade
natural. Mas há ainda muitas outras.

No cenário desenhado por Rousseau, as causas comuns do conflito estão ausentes. Uma
delas são as ofensas. Quando vivemos em comunidades, passamos a dar valor para o
que dizem sobre nós. Assim, uma palavra ou gesto podem ser motivo para uma briga
que levará à morte. Ora, no estado de natureza, os homens vivem isolados e sequer
possuem linguagem. A ofensa não tem sentido nesse contexto, pois esta pressupõe
darmos valor para o que outros pensam e dizem sobre nós. É um fenômeno que só
existe na sociedade.

Mas e a desigualdade natural que existe de força e inteligência entre os homens não
teria levado ao domínio e opressão dos mais fracos pelos mais fortes?

Rousseau não vê como isso poderia acontecer. Ainda que alguém possa roubar o que
outro caçou ou colheu, fazer outros seres humanos obedecerem é mais complicado e
exige muitos desenvolvimentos.

“Se me expulsam de uma árvore, estou livre para ir para outra; se me atormentam em
um lugar, quem me impedirá de passar para outro? Se encontro um homem de força
muito superior à minha, e, além disso, muito depravado, muito preguiçoso e muito
feroz, para me constranger a prover à sua subsistência enquanto ele permanece ocioso, é
preciso que ele se resolva a não me perder de vista um só instante, que me deixe
amarrado com grande cuidado enquanto dorme, de medo que eu escape ou que o mate;
isto é, fica obrigado a se expor voluntariamente a um trabalho muito maior do que o que
quer evitar, é do que me dá a mim mesmo. Depois de tudo isso, sua vigilância se relaxa
por um momento, um barulho imprevisto fá-lo voltar a cabeça: dou vinte passos na
floresta, meus ferros se quebram, e nunca mais me tornará a ver. 10

Com o nascimento das comunidades e da agricultura, tudo isso vai mudar. Os seres
humanos começarão a acumular bens, a se comparar uns com os outros, se importar
com a opinião alheia e a se ofender, sentir ciúmes e raciocinar em defesa dos próprios
interesses em prejuízo da piedade natural. É, portanto, a passagem do homem natural
para a civilização que faz surgirem os problemas sociais que conhecemos desde o início
da história: opressão, escravidão, guerras, desigualdade.

O sentido do bom selvagem


As ideias de Rousseau não foram muito bem recebidas por seus contemporâneos.
Voltaire, seu amigo e certamente um dos filósofos mais espirituosos da história, não lhe
poupou o sarcasmo:

“Recebi, senhor, vosso novo livro contra o gênero humano. Obrigado. Nunca se
empregou tanta sutileza no sentido de nos bestializar; dá vontade de andar de quatro,
quando acabamos de ler o seu livro.”11 
Figura 3: Passagem do homem natural para a civilização. Créditos da imagem: Dave
Robinson, Introducing Rousseau: A Graphic Guide.

Ao contrário do que fizeram crer alguns críticos da época, o objetivo do Discurso não
era defender um retorno a esse estado natural. A discussão sobre a natureza humana tem
outro propósito para Rousseau. Ele não pensava ser possível retornar ao estado de
natureza, mas, olhando à sua volta, via uma sociedade com muitos problemas. Olhando
para a natureza humana, via que isso era contingente. As coisas estavam dando errado
não porque o homem é assim, mas porque a sociedade o transformou nisso.

Seu otimismo sobre nossa natureza dava sentido para seu trabalho futuro. Nos livros
que escreverá depois do Discurso sobre a Desigualdade, Emílio ou da educação e O
contrato social, pensará como educar as crianças e organizar o governo da sociedade de
modo a garantir que a natureza humana não seja corrompida pela sociedade.

Hobbes vs Rousseau: somos


inerentemente maus ou bons?

Somos inerentemente bons ou inerentemente maus? A resposta depende do que você pensa da
política moderna.

Em 1651, Thomas Hobbes escreveu que a vida no estado natural – isto é, nossa condição natural
fora da autoridade de um estado político – é “ela é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e
curta”. Pouco mais de um século depois, Jean-Jacques Rousseau respondeu que a natureza
humana é essencialmente boa e que poderíamos ter vivido vidas pacíficas e felizes muito antes
do desenvolvimento de algo como o estado moderno. À primeira vista, então, Hobbes e
Rousseau representam pólos opostos em resposta a uma das questões milenares da natureza
humana: somos naturalmente bons ou maus? De fato, suas posições reais são mais complicadas
e interessantes do que essa dicotomia sugere.

A questão de saber se os humanos são inerentemente bons ou maus pode parecer um retrocesso
às controvérsias teológicas sobre o pecado original, talvez uma questão que os filósofos sérios
deveriam deixar de lado. Afinal, os humanos são criaturas complexas capazes tanto do
bem quanto do mal. Descer inequivocamente de um lado deste debate pode parecer um tanto
ingênuo, a marca de alguém que falhou em compreender a realidade confusa da condição
humana. Talvez sim. Mas o que Hobbes e Rousseau viram muito claramente é que nossos
julgamentos sobre as sociedades em que vivemos são grandemente moldados por visões
subjacentes da natureza humana e pelas possibilidades políticas que essas visões acarretam.

Por acaso, Hobbes não achou que somos naturalmente maus. Seu argumento, ao contrário, é que
não estamos conectados para viver juntos em sociedades políticas de larga escala. Não somos
naturalmente animais políticos, como abelhas ou formigas, que instintivamente cooperam e
trabalham juntos para o bem comum. Em vez disso, somos naturalmente interessados em si
mesmos e, em primeiro lugar, cuidamos de nós mesmos. Preocupamo-nos com nossa reputação,
bem como com nosso bem-estar material, e nosso desejo de posição social nos leva a conflitos
tanto quanto a competição por recursos escassos.

Se queremos viver juntos em paz, argumentou Hobbes, devemos nos submeter a um órgão com
o poder de fazer cumprir as leis e resolver conflitos. Hobbes chamou isso de
“soberano”. Enquanto o soberano preservar a paz, não devemos questionar ou contestar sua
legitimidade, pois isso leva de volta ao estado da natureza, o pior lugar possível em que
poderíamos nos encontrar. Não importa se concordamos pessoalmente com as decisões do
soberano. A política é caracterizada por desacordo e, se pensarmos que nossas próprias
convicções políticas ou religiosas são mais importantes que a convivência pacífica, essas
convicções são o problema, não a resposta.

Hobbes vira de perto os horrores da Guerra Civil Inglesa e a guerra civil continua sendo a
ilustração mais convincente de seu estado natural. Hoje, os leitores costumam rejeitar suas
ideias como excessivamente sombrias – mas isso provavelmente diz mais sobre nós do que
ele. Hobbes via a paz duradoura como uma conquista rara e frágil, algo que aqueles de nós que
tiveram a sorte de nunca ter experimentado guerra são preocupantemente suscetíveis de
esquecer. Mas grande parte da história humana foi devastada pela guerra e, infelizmente, ainda
existem muitas pessoas que vivem em estados devastados por conflitos e guerras – nesses casos,
Hobbes fala através dos tempos. 

Mesmo que Hobbes estivesse certo sobre a guerra civil, ele realmente descobriu a verdade sobre
a condição humana? Rousseau achou que não, e acusou Hobbes de confundir as características
de sua própria sociedade com ideias atemporais de nossa natureza. A mensagem primordial da
crítica de Rousseau a Hobbes é que não precisava ser assim. Claro, hoje somos criaturas de
interesse próprio e competitivas, mas nem sempre foi assim.

Na análise hobbesiana, um estado político autoritário é a resposta para o problema de nossa


natureza naturalmente interessada e competitiva. Rousseau encarou as coisas de maneira
diferente e, em vez disso, argumentou que agora estamos apenas interessados em si mesmos e
competitivos devido à maneira como as sociedades modernas se desenvolveram. Ele achava que
nas sociedades pré-agrícolas – ele considerava relatos de viajantes sobre povos indígenas
americanos como modelo – os seres humanos podiam viver uma vida pacífica e gratificante,
unidos por sentimentos comunitários que mantinham sob controle nossos desejos competitivos e
egoístas. 

Para Rousseau, tudo começou a dar errado quando os humanos aperfeiçoaram as artes da
agricultura e da indústria, o que acabou levando a níveis sem precedentes de propriedade
privada, interdependência econômica e desigualdade. A desigualdade gera divisão social. Onde
as sociedades já haviam sido unidas por fortes laços sociais, a escalada da desigualdade logo
nos transformou em cruéis concorrentes por status e dominação. O outro lado da crença de
Rousseau na bondade natural é que são as instituições políticas e sociais que nos tornam maus,
como somos agora. Em sua recontagem secularizada da Queda, o advento da desigualdade
econômica substitui nossa saída do Jardim do Éden. Continua sendo uma das acusações mais
poderosas da sociedade moderna na história do pensamento ocidental.

Rousseau achava que, uma vez corrompida a natureza humana, as chances de redenção são
muito pequenas. Nos seus dias, ele tinha pouca esperança para os estados comerciais mais
avançados da Europa e, embora nunca tenha testemunhado o início do capitalismo industrial, é
seguro dizer que isso apenas confirmaria seus piores temores sobre a desigualdade. O golpe na
história da análise de Rousseau é que, mesmo que Hobbes estivesse errado sobre a natureza
humana, a sociedade moderna é hobbesiana até o âmago e agora não há como voltar atrás. 

Essa maneira de colocar as coisas adiciona um toque à narrativa usual, onde Hobbes deveria ser
o pessimista e Rousseau o otimista. Se isso é verdade para suas ideias da natureza humana, o
oposto acontece quando se trata de avaliar a política moderna. Se você acha que a vida moderna
é caracterizada por interesse próprio e competição, então uma resposta é sentar e se perguntar
como essas criaturas individualistas conseguiram formar sociedades pacíficas. Mas se você acha
que existe um lado melhor da natureza humana – que somos naturalmente bons -, é mais
provável que você pergunte: onde tudo deu errado? Hobbes viu sociedades divididas pela guerra
e ofereceu um caminho para a paz. Rousseau viu sociedades divididas pela desigualdade e
profetizou sua queda.

Essas perspectivas rivais ainda dividem o mundo hoje. O capitalismo nos transformou em
inimigos que competem incessantemente por lucro e prestígio, ou descobriu uma maneira
relativamente benigna de coordenar as atividades de milhões de pessoas em qualquer estado
sem degenerar em conflito? Como você responde a essa pergunta dependerá em grande parte do
que você acha que são as alternativas, e essas alternativas serão baseadas em suposições sobre a
natureza humana: se somos bons ou maus, ou seja, se é possível organizar as sociedades em
torno dos melhores aspectos de nossa natureza – empatia, generosidade, solidariedade – ou se o
máximo que podemos esperar é encontrar maneiras engenhosas de transformar nosso interesse
pessoal em bom uso. Mesmo se você acredita que somos naturalmente bons, no
entanto, permanece a questão de saber se é possível aproveitar nossas melhores qualidades nas
modernas condições sociais e econômicas. E nessa questão, é Rousseau – não Hobbes – quem
nos dá mais razões para se desesperar. 

A democracia para Rousseau


Qual a melhor forma de governo? O que é um governo legítimo? Se olharmos a história,
veremos uma sucessão de formas distintas de governo. Democracias diretas e
representativas, monarquias, ditaduras, aristocracias, tiranias e muitas outras. Qual
dessas é a melhor forma de governo?

Atualmente a resposta seria: a democracia é a melhor forma de governo. Diante dela,


podemos perguntar: essa é realmente a melhor forma de governo? Quais suas
vantagens? O que ela tem de melhor em relação, por exemplo, a uma ditadura?

Um dos defensores mais destacados da democracia foi Jean Jacques Rousseau. Suas
ideias foram tão influentes que estão por trás de transformações históricas como a
Revolução Francesa. Os ideais de igualdade e liberdade, dos revolucionários, por
exemplo, fazem referência ao pensamento de Rousseau. Além disso, os argumentos que
desenvolveu para justificar a democracia permanecem sendo fonte de inspiração e
debate.
Conhecer porque pensava que a democracia era a melhor forma de governo, a única
legítima, é um bom ponto de partida para pensar sobre as questões com as quais
começamos o texto.

Críticas à desigualdade
O ponto de partida da defesa de Rousseau da democracia é a ideia de que todos os
homens são iguais e livres. Essa também é a razão pela qual critica toda forma de
subordinação de uma pessoa a outra.

Em sua época, vários filósofos argumentavam em defesa de algum tipo de desigualdade


no governo. Grosso modo, diziam que algumas pessoas nasceram para governar e outras
para serem governados.  Esse tipo de justificativa para a desigualdade remonta pelo
menos à Aristóteles.

O filósofo grego defendia, por exemplo, que a escravidão é natural e legítima, portanto.
Sua defesa da escravidão se baseava na alegação de que algumas pessoas nasceram por
natureza para serem escravos. Essas pessoas não têm capacidade de cuidar de si mesmas
e precisam que outros as comandem. São como crianças que não podem ser deixadas
sem a supervisão e o cuidado de um adulto. Para Aristóteles, há uma desigualdade
natural entre homens livres e escravos e isso justifica a escravidão.

Rousseau discordava da afirmação de que há uma desigualdade natural entre os homens.


Para o autor, a desigualdade era criada pela sociedade que posteriormente usava esse
fato como justificativa para a desigualdade. A história se passa mais o menos assim. Um
grupo de pessoas é escravizado. Através do uso da violência, é obrigado a obedecer e
não tem acesso a qualquer tipo de formação ou educação. Depois de um tempo, seus
senhores olham para essas pessoas, observam que não fazem nada que não seja
obedecer (como poderiam fazer?) e concluem que elas nasceram para ocupar essa
condição.

Para Rousseau, de tanto as pessoas serem obrigadas e ensinadas a obedecer, acabam


sabendo só obedecer. Mas se pudéssemos criar os homens livres das convenções sociais,
de todas essas vozes que dizem que uns são superiores e outros inferiores, veríamos que
são todos iguais, com mais ou menos as mesmas capacidades, de modo que não é
possível justificar a desigualdade.

Todos nascem livres, mas se encontram a ferros


Então, o ponto de partida de Rousseau é o fato de sermos todos livres e iguais. Ou seja,
ninguém é obrigado, por natureza, a obedecer a ninguém. Todos são livres para fazerem
o que desejam.

Porém, nota Rousseau no início do livro chamado Contrato Social, “o homem nasceu
livre, e em toda parte se encontra a ferros”. Aqui o autor está comparando um direito
natural de todos os seres humanos à dura realidade da Europa do século XVIII, com
seus governos absolutistas. Os homens se encontram a ferros, para Rousseau, porque
são obrigados a obedecer a um rei. Não gozam de sua liberdade natural.
O grande objetivo de Rousseau foi pensar uma alternativa ao governo absolutista que
garantisse aos homens viver em sociedade, com um governo, e ao mesmo tempo livres.
Para o autor, uma condição indispensável para que o governo seja legítimo é garantir a
liberdade e a igualdade. Do contrário, o governo não é legítimo e ninguém tem qualquer
obrigação de obedecer às leis.

Porém conciliar igualdade e liberdade com um governo é um grande problema. Por que
se há governo, há alguém que manda e alguém que obedece. Então essa pessoa que
obedece não será livre. Ela tem que obedecer. Ao mesmo tempo, se há governo, também
há desigualdade, já que quem manda e quem obedece são desiguais: um tem poder
outro, não; um pode mandar, outro, não.

Então, como Rousseau resolve esse aparente paradoxo? Pois governo parece ser
sinônimo de desigualdade e algum tipo de perda de liberdade.

A democracia como única forma de governo legítimo


Para Rousseau, a única maneira de conciliar liberdade e igualdade com um governo é
através da democracia. A razão para isso é a seguinte. Um governo em que todas as
pessoas governam há igualdade. Uma cabeça, um voto é uma fórmula que expressa isso.
Quer dizer, ao contrário de uma monarquia, em que apenas uma pessoa governa e todas
as demais devem obedecer, numa democracia todas as pessoas governam, todas têm o
mesmo poder político.

Vamos fazer uma comparação. Poder político é o poder de definir como uma sociedade
será governada. Por exemplo, o poder de decidir legalizar o aborto, por exemplo, é
poder político. Imagine agora que o poder político é um grande bolo. Numa monarquia,
apenas o Rei tem direito a esse bolo. Numa democracia, esse bolo é dividido em partes
iguais para todos os cidadãos.

Rousseau também pensava que numa democracia existe liberdade. Numa monarquia já
vimos que não. Um manda, outros obedecem. Numa democracia, pelo contrário,
mandamos em nós mesmos e por isso somos livres. Quando alguém nos obriga a fazer
algo, não estamos gozando de nossa liberdade. Mas quando mandamos em nós mesmo,
sim. Então, se participo da criação de uma lei que obriga a todos os motoristas a não
dirigirem alcoolizados, sou livre ao obedecer essa lei, já que fui em mesmo quem a
criou. Por outro lado, se uma pessoa apenas cria essa lei (um rei) e obriga todos a
obedecerem, se trata de uma condição de escravidão, já que estamos obedecendo não à
nossa vontade, mas a vontade de outra pessoa.

Democracia direta e representativa


Então, para Rousseau, a resposta para o problema de qual a forma de governo adotar, o
que é um governo legítimo, é: democracia.

A uma primeira análise, poderíamos dizer que então nossa forma de governo atual é
legítima, já que vivemos numa democracia. Mas essa seria uma conclusão precipitada.
Para entender a razão, vamos conhecer primeiro uma distinção importante e bastante
simples. Existem democracias diretas e democracias representativas. As democracias
representativas são as atuais. Como elas funcionam? Periodicamente, toda a população,
escolhe para fazer parte do governo representantes que tomarão as decisões políticas.
Por outro lado, democracias diretas são aquelas em que o próprio povo vota para decidir
se aprova ou não uma lei.

Nos dois casos o povo como um todo tem direito a votar. A diferença reside no fato de
que numa democracia representativa, o voto é usado para escolher um representante que
terá total autonomia para decidir aprovar ou não uma lei. Já na democracia direta, o voto
é usado para decidir, sem intermediários, qual lei adotar.

A opinião de Rousseau em relação à democracia representativa era categórica.


Comentando sobre o governo Inglês, que na época era representativo, afirma o seguinte:

“O povo Inglês pensa ser livre, mas está completamente iludido; apenas o é durante a
eleição dos membros do Parlamento; tão logo estejam estes eleitos, é de novo escravo,
não é nada.”

A única forma de governo compatível com a ideia de liberdade e igualdade, portanto, é


uma democracia na qual o povo tenha poder constante de decidir sobre questões
políticas.

Rousseau: origem e natureza do contrato


social
Eu imagino os homens chegados ao ponto em que os obstáculos, prejudiciais à sua
conservação no estado natural, os arrastam, por sua resistência, sobre as forças que
podem ser empregadas por cada indivíduo a fim de se manter em tal estado. Então esse
estado primitivo não mais tem condições de subsistir, e o gênero humano pereceria se
não mudasse sua maneira de ser.

Ora, como é impossível aos homens engendrar novas forças, mas apenas unir e dirigir as
existentes, não lhes resta outro meio, para se conservarem, senão formando, por
agregação, uma soma de forças que possa arrastá-los sobre a resistência, pô-los em
movimento por um único móbil e fazê-los agir de comum acordo.

Essa soma de forças só pode nascer do concurso de diversos; contudo, sendo a força e a
liberdade de cada homem os primeiros instrumentos de sua conservação, como as
empregará ele, sem se prejudicar, sem negligenciar os cuidados que se deve? Esta
dificuldade, reconduzida ao meu assunto, pode ser enunciada nos seguintes termos.

“Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum a
pessoa e os bens de cada associado, e pela qual, cada um, unindo-se a todos, não
obedeça portanto senão a si mesmo, e permaneça tão livre como anteriormente.” Tal é o
problema fundamental cuja solução é dada pelo contrato social.
As cláusulas deste contrato são de tal modo determinadas pela natureza do ato, que a
menor modificação as tornaria vãs e de nenhum efeito; de sorte que, conquanto jamais
tenham sido formalmente enunciadas, são as mesmas em todas as partes, em todas as
partes tacitamente admitidas e reconhecidas, até que, violado o pacto social, reentra
cada qual em seus primeiros direitos e retoma a liberdade natural, perdendo a liberdade
convencional pela qual ele aqui renunciou.

Todas essas cláusulas, bem entendido, se reduzem a uma única, a saber, a alienação
total de cada associado, com todos os seus direitos, em favor de toda a comunidade;
porque, primeiramente, cada qual se entregando por completo e sendo a condição igual
para todos, a ninguém interessa torná-la onerosa para os outros.

Além disso, feita a alienação sem reserva, a união é tão perfeita quanto o pode ser, e
nenhum associado tem mais nada a reclamar; porque, se aos particulares restassem
alguns direitos, como não haveria nenhum superior comum que pudesse decidir entre
eles e o público, cada qual, tornado nalgum ponto o seu próprio juiz, pretenderia em
breve sê-lo em tudo; o estado natural subsistiria, e a associação se tornaria
necessariamente tirânica ou inútil.

Enfim, cada qual, dando-se a todos, não se dá a ninguém, e, como não existe um
associado sobre quem não se adquira o mesmo direito que lhe foi cedido, ganha-se o
equivalente de tudo o que se perde e maior força para conservar o que se tem.

Portanto, se afastarmos do pacto social o que não constitui a sua essência, acharemos
que ele se reduz aos seguintes termos:

“Cada um de nós põe em comum sua pessoa e toda a sua autoridade, sob o supremo
comando da vontade geral, e recebemos em conjunto cada membro como parte
indivisível do todo.”

Logo, ao invés da pessoa particular de cada contratante, esse ato de associação produz
um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quanto a assembleia de vozes,
o qual recebe desse mesmo ato sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. A
pessoa pública, formada assim pela união de todas as outras, tomava outrora o nome de
cidade, e toma hoje o de república ou corpo político, o qual é chamado por seus
membros: Estado, quando é passivo; soberano, quando é ativo; autoridade, quando
comparado a seus semelhantes. No que concerne aos associados, adquirem
coletivamente o nome de povo, e se chamam particularmente cidadãos, na qualidade de
participantes na autoridade soberana, e vassalos, quando sujeitos às leis do Estado.
Todavia, esses termos frequentemente se confundem e são tomados um pelo outro. É
suficiente saber distingui-los, quando empregados em toda a sua precisão.

Rousseau – críticas à desigualdade


política
Introdução
Quem tem o dever de obedecer? Quem tem o dever de mandar? Por exemplo, no
governo, a questão central é: quem dever governar? O que é um governo legítimo? Na
relação entre homens e mulheres, adultos e crianças, senhores e escravos, também é
possível fazer essa mesma questão: todos são iguais? Alguns são superiores e outros
inferiores e por isso devem governar?

A resposta que damos a essas questões partem do princípio de que todos são livres e
iguais e não devem ser governados por ninguém. Nesse aspecto, somos herdeiros do
pensamento de Rousseau. Ele foi um dos filósofos iluministas que defendeu a liberdade
e igualdade.

No texto abaixo, Rousseau critica algumas opiniões que circulavam em sua época e
defendiam alguma tipo de concepção não igualitária de governo.

Texto
Autor: Rousseau, O contrato Social

A mais antiga de todas as sociedades, e a única natural, é a da família. As crianças


apenas permanecem ligadas ao pai o tempo necessário que dele necessitam para a sua
conservação. Assim que cesse tal necessidade, dissolve-se o laço natural. As crianças,
eximidas da obediência devida ao pai, o pai isento dos cuidados devidos aos filhos,
reentram todos igualmente na independência. Se continuam a permanecer unidos, já não
é naturalmente, mas voluntariamente, e a própria família apenas se mantém
por convenção.

Esta liberdade comum é uma consequência da natureza do homem. Sua primeira lei
consiste em proteger a própria conservação, seus primeiros cuidados os devidos a si
mesmo, e tão logo se encontre o homem na idade da razão, sendo o único juiz dos
meios apropriados à sua conservação, torna-se por sí seu próprio senhor.

É a família, portanto, o primeiro modelo das sociedades políticas; o chefe é a imagem


do pai, o povo a imagem dos filhos, e havendo nascido todos livres e iguais,
não alienam a liberdade a não ser em troca da sua utilidade. Toda a diferença consiste
em que, na família, o amor do pai pelos filhos o compensa dos cuidados que estes lhe
dão, ao passo que, no Estado, o prazer de comandar substitui o amor que o chefe não
sente por seus povos.

Grotius nega que todo poder humano seja estabelecido em favor dos governados. Sua
mais frequente maneira de raciocinar consiste sempre em estabelecer o direito pelo fato.
Poder-se-ia empregar um método mais consequente, não porém mais favorável aos
tiranos. É, pois duvidoso, segundo Grotius, saber se o gênero humano pertence a uma
centena de homens, ou se esta centena de homens é que pertence ao gênero humano,
mas ele parece pender, em todo o seu livro, para a primeira opinião. E este também o
sentimento de Hobbes. Eis assim a espécie humana dividida em rebanhos de gado, cada
qual com seu chefe a guardá-la, a fim de a devorar.

Assim como um pastor é de natureza superior à de seu rebanho, os pastores de homens,


que são seus chefes, são igualmente de natureza superior à de seus povos. Desta maneira
raciocinava, no relato de Fílon, o imperador Calígula, concluindo muito acertadamente
dessa analogia que os reis eram deuses, ou que os povos eram animais.

O raciocínio de Calígula retorna ao de Hobbes e ao de Grotius. Aristóteles, antes deles


todos, tinha dito que os homens não são naturalmente iguais, e que uns nascem para
escravos e outros para dominar.

Aristóteles tinha razão, mas ele tomava o efeito pela causa. Todo homem nascido
escravo nasce para escravo, nada é mais certo: os escravos tudo perdem em seus
grilhões, inclusive o desejo de se livrarem deles; apreciam a servidão, como os
companheiros de Ulisses estimavam o próprio embrutecimento. Portanto, se há escravos
por natureza, é porque houve escravos contra a natureza. A força constituiu os primeiros
escravos, a covardia os perpetuou.

Eu nada disse do rei Adão, nem do imperador Noé, pai de três grandes monarcas que
partilharam entre si o Universo, como o fizeram os filhos de Saturno, nos quais se
acreditou reconhecer aqueles. Espero que me agradeçam por esta moderação, porque,
descendente que sou de um desses príncipes, quiçá do ramo mais velho, quem sabe se,
pela verificação dos títulos, eu não me sentiria de algum modo como o legítimo rei do
gênero humano? Seja como for, não se pode deixar de convir em que Adão não foi
soberano do mundo como Robinson o foi em sua ilha, enquanto permaneceu o único
habitante; e o que havia de cômodo nesse império era o fato de que o monarca, seguro
em seu trono, não tinha a recear nem rebeliões, nem guerras, nem conspirações.

Thomas hobbes

Thomas Hobbes: biografia e ideias


principais
Thomas Hobbes é conhecido principalmente por suas ideias políticas e concepções
sobre a natureza humana. Ao longo da vida, sua principal preocupação foi entender
como os seres humanos podem conviver numa comunidade política sem entrar em
conflitos violentos.

Biografia
Thomas Hobbes nasceu em Malmsbury, Inglaterra, em 1588. Como ele observou
em sua autobiografia, “nasceu gêmeo do medo” porque sua mãe entrou em
trabalho de parto prematuro por medo de que a Armada Espanhola estivesse
prestes a atacar a Inglaterra. Apesar disso, sua infância foi tranquila e foi educado
nas melhores escolas da Inglaterra.

Quando adulto, trabalhou como tutor, foi inclusive professor de matemática do


futuro Carlos II, rei entre 1660 e 1685.  Esse trabalho lhe rendeu tempo para se
dedicar aos estudos e contato com intelectuais importantes da Inglaterra, como
Francis Bacon.
Essa proximidade com a monarquia inglesa também lhe rendeu um exílio.
Hobbes viveu durante um período tumultuado na história inglesa. No início da
década de 1640, quando ficou claro que o Parlamento iria atacar o rei Carlos I,
Hobbes fugiu para a França. Como um monarquista dedicado, Hobbes temia a
perseguição se permanecesse em uma Inglaterra dirigida por parlamentares. Ele
permaneceu na França por onze anos, durante os quais produziu grande parte de
seus escritos mais importantes.

Nesse período conheceu Descartes, filósofo francês que defendia o chamado


dualismo de corpo e alma, ao qual Hobbes, um defensor do materialismo, se
opunha completamente.

Ao longo de sua vida profissional, Hobbes foi mais frequentemente


ridicularizado do que celebrado por seus contemporâneos. Na Inglaterra, suas
obras foram banidas repetidamente, e o “anti-hobbesianismo” chegou a tal ponto
em 1666 que seus livros foram queimados em Oxford. Por causa de sua filosofia
materialista e sua oposição à igreja estabelecida, Hobbes era muitas vezes
rotulado de ateu, embora nunca tenha afirmado ser um.

A reputação de Hobbes se estendeu a vários campos. Era conhecido como


cientista (em particular na óptica), como matemático (especialmente na
geometria), como tradutor de livros gregos clássicos e como filósofo. Mas é
sobretudo por suas ideias políticas que ainda hoje é citado e discutido.

Hobbes continuou sendo um escritor incrivelmente prolífico até a velhice, sem se


deixar deter pela oposição generalizada ao seu trabalho. Ele viveu até a idade de
oitenta e nove anos durante uma época em que a expectativa de vida média não
era muito maior que quarenta anos. E mesmo no final de sua vida continuou
escrevendo e fazendo traduções. Mesmo tendo suas ideias repudiadas ainda hoje,
é um pensador extremamente respeitado. Por mais repugnante ou atraente que
seus pontos de vista possam ser para os leitores, suas teorias brilhantemente
articuladas são lidas por pessoas de todo o espectro político. As ideias de Hobbes
podem ser adotadas ou rejeitadas, mas nunca são ignoradas.

Filosofia de Thomas Hobbes


A filosofia de Hobbes, assim como de outros filósofos de seu tempo, é uma
reação à filosofia escolástica. O filósofo queria dar um fim às controvérsias
estéreis e intermináveis da Idade Média e criar um sistema de pensamento sólido,
tanto quanto às conclusões da nova ciência.

O modelo de conhecimento sólido de Hobbes vem sobretudo da geometria e da


ciência. Da primeira ele admira o método rigoroso de dedução de verdades a
partir de princípios básicos. Da segunda, o materialismo. Apesar de ser um
admirador da ciência, Hobbes não via com bons olhos o método indutivo
proposto por Francis Bacon.
O materialismo de Hobbes
Ao longo da história da filosofia, duas concepções metafísicas sobre o mundo
estão em constante disputa: o materialismo e o idealismo. O último defende que a
natureza é constituída de duas substâncias básicas, uma material e a outra não
material. De acordo com essa concepção, por exemplo, o homem possui corpo e
alma. Já o materialismo nega esse dualismo. De acordo com essa teoria, o
universo é constituído apenas de matéria e o ser humano não possui alma, mas
apenas um corpo.

Hobbes é um defensor do materialismo. No Leviatã, sua principal obra, afirma


que “o universo é corpóreo, isto quer dizer, possui corpo.” Ser corpóreo, para o
filósofo, significa ter “comprimento largura e profundidade” e “aquilo que não é
corpo não é parte do universo”.

O que é o coração, senão uma mola; e os nervos, senão várias cordas; e as


articulações, senão várias rodas, dando movimento ao corpo inteiro.

Thomas Hobbes
Natureza Humana
A base da filosofia política de Hobbes é uma visão pessimista sobre a natureza
humana e a vida em sociedade. Segundo o autor, os seres humanos são bastante
imperfeitos. Estão constantemente sujeitos ao erro de julgamento, movidos por
ideias falsas, influências de terceiros mal intencionados, não poucas vezes agem
de forma egoísta, impulsiva e com uma preocupação excessiva com ninharias
como a honra.

Por tudo isso, a paz no convívio social é algo frágil. Hobbes vê a guerra civil que
atingiu a Inglaterra de seu tempo como o resultado dessa natureza humana
intratável.

Para ele, sempre que o Governo de uma sociedade deixa de existir, se retorna ao
chamado estado de natureza. E sendo o homem o que é, um ser egoísta, medroso
e preocupado com a própria imagem diante da sociedade, o único resultado pode
ser uma “guerra de todos contra todos”. Citando uma expressão latina, Hobbes
afirma que “o homem é o lobo do homem”. Com isso quer dizer que, na ausência
de um governo poderoso que obrigue a população a respeitar uma série de
normas de convivência, o homem destrói o próprio homem.

Com isto se torna manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem
um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram
naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens
contra todos os homens.
Thomas Hobbes
O contrato social
Para Hobbes, a sociedade política é uma criação humana para resolver o
problema da guerra de todos contra todos que prevalece no estado de natureza. A
única forma de acabar com esse conflito generalizado é todos os homens
concordando em transferir seus direitos, através de um contrato social, para uma
única pessoa ou grupo que tenha poderes absolutos. Esse será o governo,
responsável por garantir a paz na sociedade.

Hobbes foi um defensor da monarquia de seu tempo, que vinha sofrendo com os
ataques dos parlamentaristas defensores da limitação do poder do rei. Porém, ao
contrário de outros pensadores que defendiam a monarquia absolutista, Hobbes
não apela a um suposto direito divino dos reis governar. Ao contrário, baseia sua
defesa no fato alegado de que a única forma de garantir uma paz duradoura é
através de um governo com poderes absolutos.

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