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O SIM À EXISTÊNCIA1

Sonia Leite

Livro: Rosset, C., Alegria: a força maior. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.

Nesse trabalho, Rosset nos conduz ao longo de uma comovente análise da


filosofia nietzscheana cujo eixo fundamental é a concepção da alegria.
O que surpreende, além da clareza com que expõe as idéias, é a sua capacidade
de nos colocar em contato com passagens complexas de textos, tais como, Vontade de
potência, Além do bem e do mal, Ecce homo, Crepúsculo dos ídolos, dentre outros,
extraindo aquilo que considera ser o aspecto mais radical da filosofia nietzscheana – a
alegria – vista como a experiência, por excelência, de afirmação da vida. Coloca-nos,
assim, diante de uma nova abordagem do trabalho do filósofo, questionando outras
leituras mais tradicionais que destacam, apenas, o aspecto de um empreendimento
crítico, por parte da filosofia nietzscheana que vai de Platão a Heidegger. Ao contrário,
Rosset considera que a crítica presente, em Nietzsche, além de ser uma crítica que
observa e distingue e não, simplesmente, contesta, ataca, é secundária, no sentido de
segunda, ao pensamento prínceps de aprovação jubilante da existência, em todas as
suas formas. Neste sentido, o autor vai sublinhar o que denomina de caráter
verdadeiramente autoritário da alegria, presente na referida filosofia, esta arte quase
feminina de não se render à razão nenhuma, destacando-a como pura e simples
intensidade que se revela.
Rosset vai relacionar, lacanianamente2, a alegria à feminilidade, apontando
como constitutivo destas, uma espécie de a mais, aí presente, efeito suplementar e
desproporcional que retira qualquer possibilidade de encontrarmos uma causalidade,
ou acontecimento específico, que possa justificar, de uma vez por todas, essa
experiência. Considera que, talvez, seja nas situações mais adversas que a essência da
alegria poderá se deixar captar melhor, como um pleno, bastando-se a si mesma, e
que se revela, paradoxalmente, como um verdadeiro enigma.
Alegria de viver, simples prazer de existir, este sabor se revela quando da
aprovação e da aceitação incondicional do tempo que passa e muda, do jamais certo e
acabado, daquilo que, de melhor e de pior, experimentamos, por estarmos,
simplesmente, vivos. As coisas, os acontecimentos, existem não porque são, em si
mesmo, algo de absolutamente bom ou mal, mas porque são transitórios e mutantes
e, portanto, viventes.
Neste ponto, lembramos o belo texto freudiano Sobre a transitoriedade (1915)3 ,
onde se destaca o fato de que, suportando suas dores, seus lutos, o homem torna-se
capaz de abdicar dos objetos, aceitando a transitoriedade da vida e daquilo que a
compõe. Diferindo do poeta que, no texto em questão, lamenta, melancolicamente, a
falta da duração absoluta das coisas, Freud afirma que é pelo fato de a duração ser
restrita que os acontecimentos da vida podem ser vividos de fato e com intensidade.
Podemos colocar este ponto da seguinte forma: quando a transitoriedade é
aceita, a alegria, como expressão do sim à existência pode revelar-se e, nesse
momento, não será mais possível nenhuma forma de dissociação entre o trágico e o
dionisíaco, como nos aponta Rosset, em sua análise dos aforismas de Nietzsche.

1
Publicado na Revista Psicologia Clínica – Clínica Psicanalítica e Laço Social, PUC-Rio, vol.14,
número 1,ano 2002
2
Lacan, J. - Mais ainda, Livro 20, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,1996.
3
Freud, S (1915) Sobre a transitoriedade, Imago Editora, Rio de Janeiro,1977.,
Revela-se, aqui, a importância da memória, do recordar, independentemente da
qualidade da lembrança ser notável ou alegre, pois é isto que dá provas, afirma a
efetividade da existência. Rememorar é, então, aquilo que tem, como marca, o
reconhecimento de tudo que é existente e renovável a cada lembrança.
Outro ponto importante do estudo em questão, diz respeito à análise da música,
situada como centro nervoso da filosofia nietzscheana e protótipo da experiência do
júbilo e da alegria. Isto é, Rosset destaca que a alegria de ser tem seu ponto
culminante, exatamente, na expressão musical, visto que o efeito melódico, no seu
ápice, é a própria expressão do sim ao mundo. Aqui, encontramos um importante
aspecto da filosofia de Nietzsche onde ser e parecer não se distinguem um do outro,
pois não há oposição entre superfície e profundidade, sendo a “ontologia” nietzscheana
a doutrina de um ser, inteiramente, presente em seu próprio parecer.
Por outro lado, Rosset vai nos mostrar que o fato de o dionisíaco ser a marca
fundamental, em Nietzsche, isto não exclui a experiência do conhecimento, ao
contrário, temos aqui a combinação mais paradoxal onde a embriaguez do ser
possibilita, simultaneamente, o mais intenso dos conhecimentos – a gaia ciência. Este
saber está pautado, sobretudo, na afirmação do caráter insensato de qualquer
realidade e, é por isso que podemos defini-lo como a ciência do contra-senso, da
insignificância, do caráter, portanto, paradoxal de tudo o que existe.
É por isso que a chamada moral, em Nietzsche aponta, em última instância, para
uma verdadeira reviravolta na moral tradicional, pois o chamado homem virtuoso é,
aqui, o homem da beautitude e do gozo que, por saber da dor e do sofrimento, enfim,
do trágico da existência, é capaz de afirmá-la até as suas últimas conseqüências.
Esta perspectiva põe, em cheque, toda uma tradição que sustenta um elo entre
gozo e culpa, constituindo-se numa verdadeira crítica do remorso. Este é pensado,
aqui, como incapacidade do saber-gozar, um verdadeiro vício (vitium=defeito, falha)
na possibilidade de afirmação da existência, cujo efeito é a passividade e a impotência
para a ação.
Viver implica na ação afirmativa da existência e isto resulta no que Nietzsche
denomina de aceitação do eterno retorno, revelador da verdade do desejo humano,
devendo, como tal, ser acolhido com favor e amor, pois o homem da beautitude e do
gozo é, também, do bis e do da capo, simplesmente, pelo fato de querer e tornar a
querer sem descanso o que ele tem e sente.
É por isso que a aceitação do eterno retorno é a marca mais indiscutível da
alegria, aos olhos de Nietzsche, pois ele faz voltar as melhores e as piores coisas,
sendo a forma da mais plena aquiescência e da paixão pelo sim, por excelência.
Finalizando, consideramos o trabalho em questão não, apenas, fundamental para
todo aquele que se interesse pela reflexão filosófica, mas também, para o âmbito da
psicanálise, ao possibilitar um importante eixo para pensarmos os caminhos e os
descaminhos na construção e nos desenlaces da experiência psicanalítica.

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