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5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras[Livro Completo]-slidepdf.

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Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com

Copyright © 1999 by Roberto Schwarz


Capa:
Ettore Bottini
Preparação: f
Cássio Arantes Leite
Revisão:
Beatriz de Freitas Moreira ÍNDICE
Isabel Jorge Cury

Saudação honoris causa 9

I
Dados Internacionais de Catalogação na P ublicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Sobre a Formação da literatura brasileira . 17
S ch wa rz , R ob er to , 1 93 8 - Adequação nacional e originalidade crítica 24
S eq üê nc ia s b ra si le ir as : e ns ai os / R ob er to S ch wa rz . ~ S ão Os sete fôlegos de um livro 46
P aulo: Companhia das Letras, 1999.

I
ISBN85-7164-918-9

1 . E ns ai os b ra si le ir os 2 . L it er at ur a b ra si le ir a - H is tó ri a e II
crítica I. Título.

99-2767 CDD-869.909 Discutindo com Alfredo Bosi 61

I
Índice para catálogo sistemático: Um seminário de Marx 86
1.Literatura brasileira: História e crítica 869.909
A contribuição de John Gledson 106
Altos e baixos da atualidade de Brecht.. . 113

III

1999
I A nota específica . 151
Fim de século , . 155
Cidade de Deus . 163
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA S CHWARCZ LTDA. Nunca fomos tão engajados 172
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 72 Um romance de Chico Buarque 178
04532-002 - São Paulo - Sp
O livro audacioso de Robert Kurz . 182
Telefone: (011) 866-0801
Fax: (011) 866-0814 Aquele rapaz . 189
e-mail: co1etras@mtecnetsp.com.br Pelo prisma da arquitetura 199

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!205
I
II
I I
247

I
Orelha para Francisco Alvim 07 212
1;

U m depart am ento f rancês de ult ramar


220
27
215
. rf239
Pensando em Cacaso
Pelo prisma do teatro j
Um mestre na periferia do capitalismo (entrevista)
Conversa sobre Duas meninas .
Contra o retrocesso

Sobre os textos

f
i

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SAUDAÇÃO "HONORIS CAUSA"*

Com es ta ce ri mô nia a Univ ers id ade Esta dual d e Campi nas s aúda
a obr a e at uaçã o de um i nt ele ctu al exempl ar. O a dje ti vo se i mpõe, como
sabem os muitos amigos aqui reunidos, para os quais a exigência com
que o homenageado encara o ensino, o estudo, a escrita e a cidadania
t em s ervi do de or ien taç ão e a poio .

A autoridade que hoje se prende ao nome de Antonio Candido,


a utê nti ca em sen ti do p rópr io , poi s pre sci nde de pode r ma ter ia l, deco r
r e de vár io s fa tor es , d os qua is va mo s lembr ar alg uns.
Os artigos saídos na revista Clima e no r oda pé seman al da Folha de
S. Paulo e do Diário de S. Paulo, entre 1941 e 1947, formamo primeiro
bl oco de publ ic açõe s do es cri tor. Sã o mai s de c ent o e ci nqüe nta t rab a
lhos de assunto diverso, unidos pelo propósito militante de ampliar a
compreensão daatualidade. O comentário das tentativas iniciais depoe
tas e romancistas é feito sempre com seriedade e simpatia. Estréias deci
sivas, como as de C1arice Lispector ou João Cabral de MeIo Neto - um

teste para todo crítico -, recebem destaque pronto e à altura. Já a dis


cussão dos autores brasileiros consagrados setrava com rigor, que entre
tanto nada tem de forçado, pois na semana anterior, ou na seguinte, a
mesma coluna examinava, em espírito semelhante, os procedimentos
poét ic os d e T .S . Eli ot , o r omance de Si lone, as posi çõe s de Gi de, a a uto 
bio gra fi a d e Tr ots ki. A v izi nha nça e ntr e a pr oduç ão l oca l e as gra ndes
tendências contemporâneas em arte, política e filosofia, provocada pela

(*) Discurso lido nacerimônia em que Antonio Candido recebeu o título de dou
tor honoris causa da Unicamp.

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abertura de espírito dominante nesses rodapés, configura um programa versão universalista da questão pareceria acadêmica no mau sentido,
de desprovincianização e clarificação da cena cultural. deixando escapar os tópicos relevantes, sempre ligados a uma história
Situando um pouco, digamos que o crítico tratava de socializar particular.
o seujuízo de gosto por meio de argumentações apoiadas nas moder Todossabemos que Silvio Romero é uma figura substantiva e vul
nas ciências humanas, cuja implantação em São Paulo, na Faculdade nerável. A sua ofuscação terminológica e cientificista se presta facil
de Filosofia, Ciências e Letras, data do período. A ligação do debate mente ao riso, sobretudo, aliás, porque as modas científicas hoje são
literário ao dínamo da pesquisa acadêmica, com suas várias frentes outras. Ao insistir na relevância do seutrabalho, mas semlhe desconhe
em evolução, produzia um es tilo novo de raciocínio estético, m ais cer o aspecto rebarbativo, Antonio Candido assume como condição
afim com os requisitos intelectuais do tempo. Com outro rosto, a ati própria, que cumpre reconhecer e superar, o desequilíbrio e a precarie
tude esclarecida manifestava-se igualmente na dimensão extra-uni dade de noss a herança cultural. Para escrever a res peito, o crítico
versitária, através do engajamento antifascista, que também ele con desenvolve um estilo que combina a seriedade e o senso amistoso do
feria alcance coletivo aos argumentos : a eventual reorganização ridículo, estilo que registra e reequilibra nos termos devidos a impor
democrática das sociedades no pós-guerra, a brasileira inclusive, for tância que tem para nós - não hácom o s altar por sobre aprópria s om 
necia um prisma por onde avaliar o processo cultural. Por fim, salien bra - a nossa formação cultural defeituosa. Seja dito depassagem que
temos a convicção socialista doAutor, de que fazia parte o anti-stali uma solução de tipo análogo já dera encanto e pertinência à prosa críti
nis mo, o que foi pioneiro para a época. Tratava-se de uma pos ição ca de Lúcia Miguel-Pereira e Mário deAndrade.
difícil, que suscitava adversários por todos os lados. Embora não seja No prefácio à Formação da literatura brasileira, anos mais tarde,
o tópico central dos es critos , ela lhes com unica a s ua lucidez e inde Antonio Candido iria formular este mesmo sentimento em parágrafos
pendência, graças às quais, passados quarenta anos, eles ainda estão de muita beleza, que imagino responsáveis pela dedicação de vários
perto de nós. estudantes às coisas brasileiras. Passo a citar:
O conjunto forma uma ótima introdução, acessível, viva e diver Anossa literatura é galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto
s ificada, à problem ática de noss a literatura m oderna; a m eu ver, a de segunda ordem nojardim das Musas ... Osque senutrem apenas delas
melhor de que dispomos. Como os artigos de P aulo Emil io Salles são reconhecíveis à primeira vista, mesmo quando eruditos e inteligen
Gom es s obre o cinem a, e os de Decio deAlm eida Prado sobre a vida tes, pelo gosto provinciano e falta desenso deproporções. Estamos fada
teatral, os rodapés deAntonio Candido elaboram as linhas do momen dos, pois, a depender da experiência de outras letras, o que pode levar ao
to que acompanharam , além de se integrarem à sua fis ionomia, que desinteresse e até menoscabo das nossas. Este livro procura apresentá
através deles se transforma em problema passível de meditação. Ias, nas f ases f ormat ivas, de modo a combater s emelhante erro, que
Na tese sobr e O método crítico de Silvio Romero, defendida em importa em limitação essencial da experiência literária. Porisso, embo
ra fiel ao espírito crítico, é cheio de carinho e apreço por elas, procuran
1945, Antonio
crítica Candido
literária as procura externas,
considerações estabelecer a parte que devemsocial
de condicionamento ter nae dodespertar o desejo depenetrar nas obras como em algo vivo, indispen
sável para formar a nossa sensibilidade e visão do mundo.
psicológico, e asinternas, de composição artística. Por via oblíqua, tra
Comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela,
ta de examinar os press upostos de s ua própria atividade em curso,
não outra, que nos exprime. Senão for amada, não revelará a sua mensa
levando a cabo um primeiro esforço de auto-superação. A estratégia
gem;e senão a amarmos, ninguém ofará por nós. Senãolermos asobras
adotada é indicativa de uma convicção teórica: em lugar de debater a qu e a compõem, n ingu ém a s tomará do esquecime nto, desc aso ou
alternati va abstrata entre estudos de contexto e estudos de forma, dire incompreensão. Ninguém, além de nós, poderá dar vida a essas tentati
tamente nos termos da discussão e da bibliografia internacional a res vasmuitas vezes débeis, outras vezes fortes, sempre tocantes, em que os
peito, Antonio Candido prefere colher o problema na sua feição local, homens dopassado, no fundo deuma terra inculta, em meio a uma acli
exposta nos impasses metodológicos do predecessor. Deste ângulo, a mação penosa da cultura européia, procuraram estilizar para nós, seus

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descendentes, os sentimentos que experimentavam, as observações que taprópria, de inspiração antropológica e sociológica, em oposição pos
faziam -, dos quais seformaram os nossos.' sivelmente ao marxismo vulgar, mas em todo caso anterior à moda
o lugar da Formação da literatura brasileira na estante é ao lad o estrutural de inspiração lingüística, à qual muito discretamente esses
das obras clássicas de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e trabalhos se opuseram como uma alternativa de esquerda. São estudos
Caio Prado Jr. Até onde posso julgar, o livro renova e aprofunda a lei complexos, originais no método e extremamente fecundos nos resulta
tura de todos os autores de que trata, que são muitos. A sua erudição é d os, qu e firmaram um padrão de ensaísmo inédito no Brasil.
Do ponto de vista literário, os trabalhos mais complexos deAnto
notável
Contudo, e adiscreta, o que maior
originalidade vale adopena sublinhar
trabalho está nanum país de geral,
concepção alardes.
na nio Candido são os recentes, as combinações de depoimento exato e
idéia deformação, enfatizada no título. Como os mestres mencionados análise, que passou a publicar, se não me engano, a partir de fins dos
haviam feito para os padrões da sociabilidade e da vida econômica, anos 60. São escritos que abrem mão da terminologia e ex posição cien
Antonio Candido historia o vir-a-ser de um sistema literário relativa tífica, mas não da disciplina mental e conhecimentos correspondentes.
mente estável, com dimensão nacional, cujos problemas são particula Apoiado na sua excelente memória, onde está repertoriada a experiên
res. Nesse sentido tangível, trata-se de um estudo fundador. Identifica cia nessa altura já longa do estudioso da literatura e da sociedade, o
dinamismo s específico s e reais de no ssa vid a cu ltural, que uma inter ensaísta circula reflexivamente entre anedotas, testemunhos, decênios,
pretação uni versalista deixaria escapar. Assim, por exemplo, foi possí explicações, teorias, numa prosa simples e precisa, que é O espelho
vel captar, sob o signo do en gajamento patriótico das letras, uma certa daquela agilidade. A leitura do prefácio-homenagem a RaÍzes do
continuidade de fundo entre momentos tão opostos, pela escola, quan Brasil, das reflexões sobre "A Revolução de 1930 e a cultura" ou da
to o arcádico e o romântico. Daí também a relação complexa com a "Digressão sentimen tal sobre Oswald de Andrade" produz o efeito de
idéia nacional, cuja força formativa está su blinhada e examinada em uma forma literária própria, realizada à perfeição. 2
seu s efeitos, tornados parte de nossa identid ade, sem qu e entretanto o Na mesma linha de simplicidade alcançada, quero lembrar ainda
estudo tenha a mínima parte com o nacionalismo. um p equeno livro, o Na sala deaula, que seapresenta como um cader
Nas palavras do Autor, a Formação da literatura brasileira busca no de an álise literária, um apo io didático para o professor q ue queira
reconstituir a história dos brasileiros no seu desejo de terem u ma lite ex plicar a poesia a seus alunos. A sing eleza d a apresentação n ão impe
ratura. Essa aliança de esforço artístico e missão nacio nal, um fato de de as análises de co ntribuírem decisivamen te para a compreensão d a
época, ob riga a crítica a observar as duas d imensõ es, o u seja, a praticar literatura brasileira. Mas o que desejamos salientar aqui é outra coisa:
a análise interna das obras bem como a salientar o seu papel do ponto trata-se da tentativa de socializar, nas precárias condições culturais do
de vista da edificação da cultura pátria. Nos ensaios posteriores, Anto país, sem rebaixar o n ível, a mais requin tada e informada experiência
nio Candido irá deslocar os acentos. Ainda usando a sua terminologia, poética. Um esforço modelar de democratização da cultura, livre de
o in teresse agora se con centra nos processos de estruturação, em que barateamento, o u, para usar o termo político, isento de pop ulismo.
elementos da realidade externa se tornam forças ordenadoras internas Embutida nele, como um programa hipotético, está a conversão - à
à obra artística, aí rev elando dimen sões q ue escapam ou divergem da democracia - d o que a elite culta brasileira elaborou de melhor.
ideologia e das intenções deliberadas de seu criador. A prioridade pas Para terllÚnar, esta homenagem fica in completa se não mencio
sa para a análise estética, ou formal, mas sem que esta se dessocialize, narmos Osparceiros do Rio Bonito, o estudo sobre o caipira paulista e
o que é um prisma novo, além de resolver um impasse quase secular na a transformação de seus meios de vida, um dos livros obrigatórios da
crítica brasileira. Trata-se de um estruturalismo desenvolvido por con-
(2) Os textos mencionados encontram-se respectivamente em Teresina etc. (Rio
(1) Antonio Candido, Formação da literatura brasileira, São Paulo, Martins, de Janeiro, Paze Terra, 1980);A educação pela noite (São Paulo, Ática, 1987)e Vários
1969,pp.9-1O. escritos (São Paulo, Duas Cidades, 1970).

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soci ol ogia brasil ei ra. Como est amos sobr et udo entr e l it er at os, quero Socialista e presi dent e da s eção de São Paulo da Associ ação Brasi leira
salientar um de ta lhe a pena s, em contin uid ade a observaçõe s anterio de Escrit ores. Como faz par te ess encial do perf il uni versi tário que esta
re s. No ca pítulo sobre a vida fa miliar, o Autor examina a onomástica mos homenageando a resi stência mul ti forme à dit adur a de 64. Está viva
em relação com os la ços de parentesco. Habitu almen te e ssa ordem de na memória dos mais velhos a solidariedade do professor de Teoria
preocupações pert ence aos grupos dominantes tr adicionais, ciosos de Literária,jáentão muito eminente, com os alunos e colegas perseguidos.
s uas rami fi cações e precedências. Pode pert encer t ambém aos antr opó Muitos lembrarão o estudo curto e educativo sobre a força desagregado
lo gos, e m busca d a chav e explic ativa de soc ie dades alheias a se u uni ra do terror policial, publicado em pleno 1972, no momento em que o
verso. Ora , os ca ipira s sã o pa rte in teg rante de nossa socieda de, e mb o tema era agudo.3 Lembr ar ão igualmente o des afogo proporcionado pel a
r a i nferi ori zados. Quando s e i nteressa pelas r egras e pel os parent es cos publicação da revista Argumento, em 1974, quando a abertura mal se
que estão por det rás de seus nomes, Ant onio Candido est á t ransf orman vis lumbrava, r is co ass umido por uma equipe de i nt elect uais e homens
d o a cu riosidade gene aló gic a, norma lmente uma d ive rsã o vaz ia, o u a deboa vontade, deque f azia par te Antonio Candido. Há também a entr e
técn ica an tropológica, destinada à análise de mundo s e stran hos, em vis ta concedi da à r evist a Isto é, no final do governo Geisel, em que
mei o de conhecimento e reconhecimento de parcelas fr ágeis , injusti ça Anto nio Candido da va o primeiro passo p ara de volver a o socialismo o
d as e ameaça das de nosso próp rio mundo. Po sto em ligaçã o c om outra direito de cidad e no d ebate públic o.4 Cha mo a ate nção ainda para o te r
classe social, o interesse pela continuidade e organização dos laços rí vel depoi mento prestado àAss embléia Legis lati va do Est ado, sobre a
fami liares tr oca de s inaL .. s imbi ose, propi ci ada pela ditadura, ent re ação poli ci al e autori dade aca
Ma s tão importante como a obra e scrita é a atuaç ão do pro fessor. dêmica na Uni versidade de São Paulo.5 E l embr emos por fi m que Ant o
O número dos alunos para quem os cursos de Antonio Candido foram
nio Candi do f oi vice-presi dente e depois presidente da pri meir a direto
um ac onte cime nto e impulso decisivo é grande, em so cio log ia como ria da Adusp, a qual abriu a luta, dentro da universidade, contra a
em literatura; não há melhor prova da capacidade de um docente. No per seguição ideológica e a favor da reintegração dos profess ores cass a
que toca às inovações universitárias, lembro que Antonio Candido do s, crian do as c ondiçõe s para a superaçã o das a berraç ões do pe ríodo
impl antou os es tudos deTeori a Lit er ári a na Uni versi dade de São Paulo, anterior. Re stabelecido o clima de liberdad e, Antonio Cand ido viaja
contr ibuindo par a a s ua ult er ior generalização no paí s. Est eve t ambém para Cub a e passa a se mo vimen tar co ntra o isolamento da ilha e a fa vor
ent re os pri meiros a normal izar a presença do Modernismo nos estudos de seu retorno a o conv ívio latino-a me ricano, que é o utro modo de nor
superio res e n as tese s de pós-gra duaç ão, pux ando os currículos p ara a malizar a hipótese do socialismo no continente.
atualid ade. Mais adiante, fora m de le a idéia e a coo rden ação inicial d e Pode p are cer estranho, nu ma oc asião festiva, dar tanto espaço à
nosso Instituto de Estudos da Linguagem na Unicamp, concebido no vio lên cia , à injustiça, à corrupç ão e ao med o. A um esp írito dialético
intuito de evitar os problemas de gigantismo aparecidos no curso de entretanto nã o su rpreend e que haja sido em atrito co m isso tud o q ue um
Letr as da uSP. homem de correção tão natural, amena e de todos os momentos se te
Produção intelectual, capacidade didática e contribuições institu nha transformado em legenda.
cionais compõem uma carr ei ra acadêmi ca i mpecável e acatada. Soma Para encerrar esta saudação, quero observar que o Professor se
se a est a um conjunt o de atividades par alelas, decor rent es da convi cção a pro xima dos se te nta an os esc rev endo u ma prosa c ada vez mais viva,
política. Atividades modestas, àsvezes malvistas, que puxam pela cone co m parte imp ortante de su a obra por reunir em livro, e outra parte ain
xão, t ão f reqüentement e adormecida, ent re a vida estudiosa e o dest ino da na cabeça, por redi gi r. Vai entr ando ass im para a companhi a r eduzi-
ger al da s ociedade. A estatura i ntelectual deAntoni o Candi do s e afi rma
atra vés da u niã o dessas dua s fac es. Assim, não era in diferente que na
(3 ) "A ve rda de da repressão", in Teresina etc., op. c il.
década de 40 o professor de sociologia fosse também mil it ante ant if as  (4 ) "D em oc ra ci a e so ci al is mo ", e nt re vi st a a J or ge C un ha L im a, Isto é, 7 s el. 1977.
cis ta, redator de uma r evist a democrática, e,mai s t ar de, dir etor da Folha (5) O l iv ro n eg ro d a U SP (A du sp , 1 97 8) , p p. 5 5- 8.

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da e admirável dos escritores para quem a idade foi ocasião de desdo


bramentos intelectuais novos, tão insubstituíveis quanto os anteriores.
Penso nos seus amigos, e exemplos de todos nós, Manuel Bandeira,
Carl os Drummo nd de Andrad e e Sér gio Buarq ue de Hol anda.
Muito obrigado pela atenção. SOBRE A "FORMAÇÃO
DA LITERATURA BRASILEIRA "
(notas do debatedor)

Vou ret omar br evement e a s o bser vações de Paul o Ara nte s. Como
e le l embro u, a i déi a da/armação, mui to i mport ant e par a o t raba lho de
Ant oni o Candi do, fi gura no cent ro de vá ri os li vros cap it ais d a c ult ura
brasileira. Seria interessante marcar, ainda que de maneira ultra-sumá
ria, algumas diferenças.

Se vocês tomarem os livros de Gilberto Freyre, nos quais se des


creve uma espécie de matriz sociológica da civilização brasileira, o
mov iment o ger al é de s audos is mo; as si sti mos à pe rda progr ess iva de
1 um valor, no cas o o n osso pas sado col onia l. O cu rso da his tór ia si gni
fica o desaparecimento gradual de uma forma de sociedade admirável,
ou, ai nda, a decompos içã o de u m mol de.
Se v ocês pass are m ao Sér gio Buarq ue, é d ife rent e. Também aí nós
temos as raízes portuguesas, mas com sorte as deixaremos para trás,
nu m ti po de s ocie dade mai s democrá ti ca. O i mp uls o é de super ação das
origens, o que por momentos não impede o autor de as descrever de
modo próximo ao de Gilberto Freyre. A posição política entretanto é
op ost a, e a or ient açã o ap onta o fut uro.
Em Caio Pra do, li ter ari ament e me nos armado qu e os out ros doi s,
o esqu ema é mai s c omp lexo. També m aqui nós temos a matr iz col onia l
que precisa ser superada. Escravidão, monocultura, incultura, primiti
vismo - em suma, o atraso - são o resultado funcional da subordina
ção da Colônia à Metrópole. Instruído na tradição marxista, Caio
salienta o significado contemporâneo e internacional dessas deficiên
ci as, val e di zer , o seu papel na rep roduç ão da ordem imper ial ista . Não
s eremos uma na ção ind epende nte - a despe it o do Grit o do Ipi ran ga-

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enquanto não corr igirmos as deformações que constituem o nosso é ela mesma um achado literário, a condensação feliz de um prisma
legado colonial. estético-político substantivo. O ponto de vista é diferenciado e sem
Em Celso Furtado o problema dessa mesma superação seconden mitos: depois de ter sido uma aspiração, a formação do sistema literá
sa num ponto estratégico: o comando das decisões econômicas que rio brasileiro é um fato, com vantagens e vícios a especificar. A consti
determinam o futuro do país está fora deste e deve ser trazido para den tuição l ocal de um campo no qual as questões contemporâneas se
tro. Furtado escreve do ângulo do homem de Estado, e depois dos podem articular com propriedade representa um passo muito conside
outros três autores. Não desconhece o que eles dizem da conformação rável, que no entanto não faz a diferença total imaginada em concep
da sociedade brasileira, cujos efeitos negativos entretanto julga saná ções mais enfáticas do futuro nacional. Estamos longe das ilusões
veis, a partir de uma intervenção patriótica e esclarecida dos governan redentoras do nacionalismo, o que o próprio Antonio Candido assina
tesoNesse sentido, o processo da progressiva interiorização das deci laria no estudo sobre "Literatura e subdesenvolvimento", onde recor
sões seria, caso chegasse a se completar, o aspecto decisivo da história da a irrealidade de algumas das esperanças mais exaltadas ligadas ao
nacional recente. antiimperialismo. O termoformação está sendo usado, portanto, num
Nos quatro exemplos, o ponto de fuga do processo é fortemente sentido sóbrio, e sua normatividade, que existe, é descrita de fora, nos
impregnado de valor, negativo ou positivo, e diz respeito direto à atua limites de seu desempenho real. Para lhe perceber a irradiação mode
lidade vivida pelos autores. Sob esse aspecto, o livro de Antonio Can rada, basta lembrar que, j á "formado", o nosso sistema literário coexis
dido, em parte pela natureza do assunto, difere de seus pares. tia com a escravidão e com outras "anomalias", traços deuma socieda
Com efeito, no caso da literatura brasileira tratava-se de historiar de nacional que até hoje não secompletou sob o aspecto da cidadania,
uma formação que já sehavia completado: acompanhando o argumen e talvez não venha a secompletar, o que certamente faz refletir sobre a
to do mesmo Antonio Candido, em Machado deAssis temos um escri natureza mesma daquele movimento de formação nacional.
tor cuja força e peculiaridade só se explicam pela interação intensa e Do lado do assunto, a idéia deformação apreendia, dava visibili
dade a um dinamismo decisivo, a saber, a gravitação cultural da Inde
aprofundada entre autores, obras e público, interação que comprova
em ato a existência do sistema literário amadurecido. pendência, nointerior daqual Arcadismo e Romantismo - estilos tão
opostos - puderam ter uma inesper ada f uncionalidade comum. Do
Nas páginas iniciais da Formação, emque apresenta o seu projeto,
dizAntonio Candido queprocurou estudar a "história dos brasileiros no lado do presente, da história dos estudos brasileiros, a idéia tinha a ver
com os novos patamares teóricos ligados ao surgimento da Faculdade
seu desejo de ter uma literatura". Esse "desejo", que sepode dar como
de Filosofia da uSP. Ao positivismo rasteiro dos estudos literários tra
realizado a partir do último quartel do século XIX, naturalmente já não é
dicionais, opunha a exigência de um objeto logicamente constituído,
o do crítico, em meados do século XX, embora lhe diga respeito, como
com seus movimentos próprios de valorização, inclusão e exclusão.
parte importante de seupassado. As suas preocupações presentes, dita
Essa posição avançada, com razões e pressupostos refletidos e explíci
das pelo oradicalismo
formam fundo tácitodemocrático
sobre o quale apela vontade
outra históriadeé desprovincianizar,
narrada. tos, coisa inédita entre nós, até hoje não foi bem assimilada. Assim,
alguns apontam o déficit em entusiasmo brasileiro da parte deAntonio
Esse distanciamento que não cancela os seus vínculos tem conse
Candido (!), que não incluiu nasua Formação - por nãofazerem parte
qüências que vale a pena assinalar. O nacionalismo literário é entendi
dela - grandes figuras como Gregór io de Matos e o padre Vieira, ao
do como força e finalidade efetiva, a que no entanto o crítico, sendo
passo que outros críticos, ou os mesmos em momentos diversos, o acu
aliás internacionalista convicto, não adere. Este lhe reconhece produ
sam de bitolamento nacionalista por historiar uma aspiração nacional. I
tividade até certo momento, a dimensão de progresso relativo, o que
não impede de lhe notar e objetar também asfunções de encobrimento
( 1) Por e xe mplo, H ar oldo de Campos, O seqüestro do barroco naformação da
ideológico, de imposição de padrões de classe, além da indiferença à literatura brasileira: o caso Gregório de Mattos, Salvador, Fundação Casa de Jorge
qualidade estética, "defeitos" assinalados com umaironia peculiar, que Amado, 1989.

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Dizendo noutras palavras, Antonio Candido tem um conceito


maior, foi desse tipo o processo que Antonio Candido descreveu para a
materialista e não tradicionalista de tradição. Esta vale e pesa, mas por literatura brasileira.
razões que não seesgotam no âmbito dela mesma ou de seus defenso
Uma observação ainda, para sugerir a variedade dos funciona
res. Ela comporta usos diversos, conservadores ou transformadores, e mentos que a tradição pode ter.Vocêssabem que há momentos canôni
hoje aliás ela talvez seja mais indispensável a estes últimos que aos cos, em que a evolução da forma artística toma feição lógica muito tan
outros. Vocês que leram Adorno lembram a descrição exata que ele faz, gível. No romance f rancês, por exemplo, é f ácil notar que F laubert
no caso da música de Schonberg, da complementaridade entre o tradi apara asdemasias e extravagâncias de Stendhal e Balzac emvários pla
cionalismo severo e a capacidade de revolucionar uma forma. É como nos, apurando um desígnio formal que já se pressentia na obra deles.
se na ausência de tradição rigorosa as mudanças radicais se tornassem Sem forçar a nota, esse movimento sepode entender como imanente e
impensáveis ...
sob o signo doprogresso e daracionalização (oque não quer dizer que
Para bem ou para mal, um sistema literário é uma força histórica, o escritor mais avançado seja maior, nem, muito menos, mais interes
e funciona como um filtro - par a retomar as observações do Paulo. sante que seus antecessores, que entretanto ficam sendo "antigos" por
Num país culturalmente a reboque, como o nosso, onde as novidades comparação). Por outro lado, se viermos ao Brasil e pensarmos em
dos centros mais prestigiosos têm efeito ofuscante, a existência de um Machado deAssis, lembraremos com Antonio Candido que ele soube
conjunto de obras entrelaçadas, confrontadas entre si, lastreadas de ver e aproveitar meticulosamente os acertos de nosso romance român
experiência social específica, ajuda a barrar a ilusão universalista que tico, de resto tão fraco. A debilidade de uma tradição não a impede de
é da natureza da situação de leitura, ilusão a que é levado todo leitor, eventualmente formar parte forte de uma grande obra. Digamos então

especialmente quando, com toda a razão, busca f ugir à estreiteza


ambiente. que Machado redimensionava e solucionava os problemas armados
por quarenta anos de ficção brasileira. Contudo, a feição mais espeta
P ara dar um exemplo de outra ár ea, quando eu era estudante de cular do livro da maturidade machadiana, as Memórias póstumas de
ciências sociais na USP, acontecia mais ou menos o seguinte: alguns Brás Cubas, está no humorismo inglês, bem distante do tom de nossa
professores eram positivistas, outros eram weberianos, outros ainda prosa romântica. Como Flaubert, Machado havia estudado os seus pre
marxistas, que por sua vez se dividiam em lukacsianos e althusseria decessores, testado as suas situações ficcionais, racionalizado os seus
nos, depois gramscianos, e assim por diante. Essas filiações em parte procedimentos, apertado os parafusos, mas é certo que a modificação
refletiam simpatias filosóficas, em parte políticas, em parte os altos e que no seu livro desloca todo o resto é a adoção do narrador humorísti
codo Tristram Shandy. O resultado é extraordinário, inclusive e sobre
baixos das reputações internacionais; mas não refletiam o aprofunda
tudo como revelação de dimensões profundas da sociedade brasileira,
mento de questões efetivamente emjogo. Pouco tempo depois esse
quadro começou a mudar, por influência talvez da radicalização social mas certamente não vem em linha reta do aperfeiçoamento dos prosa
do pré-64. Passava a ser menos impor tante ser isso ou aquilo do que dores precedentes. A tal ponto que pareceu artificial aos críticos con
temporâneos, a quem o inglesismo deu impressão pedante, de falta de
avançar um passo emrelação aos problemas que estavam sendo postos
afinidade com a vida local. Pois bem, talvez não seja exagero conside
com insistência crescente pela realidade, que ia corrigindo e criticando
os esquemas dos meus professores. Estava se formando um sistema rar Machado como um artista de mesmo nível que Flaubert. Entretan
to, a solução que dáforça ao seu romance nem de longe tem a necessi
local de problemas e contradições, que de modo nenhum excluía, mas
dade inelutável da forma flaubertiana, que em certo sentido, difícil de
filtrava a oferta internacional de teorias sociais, que agora diziam res
formular, mas fácil dereconhecer, realiza na sua pureza oideal daprosa
peito a um contexto que tinha oportunidade contemporânea e lhes mar
narrativa moderna. Nesse sentido, sem ser menor, Machado é um artis
cava as implicações. Foi um momento - que não durou - de peso
tamenos "necessário", e sua obra não constitui um ponto cardeal, como
acrescido da experiência local, e de menos provincianismo. Em ponto a do outro. S alvo se pensarmos, a par tir de um sentimento histórico

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diverso, hoje muito forte, que nada é mais real do que a heterogeneida n osso tr abalh o faz que t enhamos um pé nu m depar tament o de l etr as da
dedo tecido literário, do que o efeito desencontrado, de corpo estranho, Unes p, o utro num arqu ivo em Lis boa e out ro na bi bli ot eca d a Uni ver
cau sado pe la t écni ca br it ânica e sete cent ist a no qua dro do Bras il oi to sidade de Indiana. É c omum o pr ocess o cu lt ural s e confi gura r assi m,
cent ist a. Por out ro lado, s e é cert o que Ster ne nã o formava part e da tr a mesmo que a essa combinação não corresponda nenhum processo polí
di ção br asi lei ra, é ce rto t ambém que ele for mava part e d a tr adi ção oci  tico. A falta de correspondência entre esse tipo de matriz cultural e nos
dent al. Nout ras pal avra s, Machado cul ti vava uma tr adi ção es tr eit a, na sas possibilidades práticas reais naturalmente é um problema. Por
qual a e xperi ênci a hi st óric a loca l se e stav a s ediment ando, sem prej uí  out ro l ado, é evi dente que hoje ta mbém a s possi bil id ades p rát icas n ão

zo de cu lt ivar a tra dição cl ássi ca, bem como o se nti ment o at ual ist a, que têm o âmbito, o contorno de um país. Indo a outro campo, quando o PT
comandava a comb inaçã o das ou tra s duas , com perf eit a c iênci a de su a quer se via bil izar pol it ica ment e, o seu candi dato à pr esid ência faz uma
dissonância. A heterogeneidade, quase cacofonia, dessa composição vi agem pel a Europa , par a vi si tar lí dere s soci al -democrat as, i sso por
nada tr adic ional is ta depende de um tra balho agudo de c aptaç ão e crí ti  que o partido sabe que faz parte de um contexto de forças que não se
ca de continuidades incipientes, humildes e não notadas antes - o fio esgota localmente. Sem apoio da social-democracia espanhola, alemã,
tênue que pode ligar Martins Pena, Manuel Antônio de Almeida, i tal iana etc., seri a i mpos síve l gove rnar . Di gamos e ntão que é cer to q ue
Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar -, assim como depende a inserção múltipla e muito espalhada do intelectual reflete no seu
de ass imil ação em gr ande escal a do ars enal da l it erat ura do Oc ident e. plan o uma cert a super ação prát ica das a renas loca is e nac ionai s. Nem
Aposição estratégica e muito consistente deFlaubert no quadro deuma por i sso e le pa ssa a hab it ar si mpl esmente o pl aneta , i lus ão de bols ist as
linha evolutiva crucial certamente faz parte de sua força. A continuida potenciais como nós, ilusão cujo preço cultural é a irrelevância. A
de muito cavada deMachado em relação aos modestos ficcionistas bra moda, como vocês sabem, é da aldeia global, por oposição às aldeias

sileiros anteriores, continuidade atravessada contudo de distanciamen locais: o tempo das formações nacionais passou, pois o mundo, interli
to e referências outras, dá um resultado não menor. Se não for levado gado pel as novas f ormas de comu nicaç ão, vi ve um só e mesmo pre sen
te. A gra nde acei tação des sa t ese no Bra sil t alvez não se de va a penas ao
em espírito de Fla-Flu, esse gênero de comparações faz refletir sobre os
seu acerto, relativo, mas também à decisão medíocre e muito com
ingredientes paradoxais darelevância, ou sobre ascondições e os cami
nhos i nesper ados da cul tur a em paí ses como o nosso . preen síve l de não se d ar por ac hado, de não se dar por impli cado na ini 
qüida de da s r el ações soci ais l ocai s, o que permit ir ia ent rar para o pri 
São r efl exões que dependem da i déi a nã o naci onali st a e n ão tr adi
meiro mundo sem mais perda de tempo. Uma modernidade das mais
cionalista de sistema literário nacional. Essa idéia, o ponto de chegada
tradicionais no país, da ordem, por exemplo, do Liberalismo e progres
do proce sso hi stór ico descr it o no l ivro de Ant onio Candi do, e t ambé m
sismo escravistas.
o pont o de c hegada d a exp osiç ão do Paul o, não podi a est ar mai s f ora de
moda, nem ter maior oportunidade crítica. Com os ajustes necessários,
que hoje mandam deixar em aberto o âmbito prático a que a noção do
"nacional" se referia, a idéia descreve a situação literária contemporâ
nea de qualquer pessoa com juízo. De fato, por mais heterodoxos ou
abrangentes que sejamos, não podemos nos articular diretamente com
a tradição mundial, que aliás não existe em estado pronto. Todos nos
articulamos nalgum lugar, retomando ou inventando tradições par
ciais, sendo que "lugar" naturalmente é uma noção variável, que no
momento , de vido à nova onda de i nte rnaci onal izaç ão, est á pass ando
por uma redefinição decisiva. Nenhum de nós universitários, por
exemplo, se l iga somente ao s eu paí s, ou à sua r egi ão. Conf orme o cas o,

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zados. Os parágrafos iniciais expõem uma questão teórica prestigiosa,
que será superada pelo andamento da análise: a constituição de um
romance dá-se apartir de estímulos diretos darealidade? Não seria mais
exato vê-Ia através da transformação de outros romances anteriores?
Em lugar da alternativa, que é um falso problema, Antonio Candido dirá
ADEQUAÇÃO NACIONAL que os dois processos coexistem, e que a sua combinação é regulada,
E ORIGINALIDADE CRÍTICA caso a caso, por uma fórmula singular, a qual é a chave da individuali
dade e da historicidade da obra.
Adiante veremos melhor o alcance desse argumento. Por ora bas
ta notar como uma mesma análise servia ao crítico para intervir em três
discussões teóricas distintas, deixando ver que ele tinha em mente um
caminho próprio, diferente daqueles mais concorridos. Tentaremos em
"O crítico é aquele quenasformas entrevê o des
tino [...]." seguida salientar e comentar a peculiaridade desse percurso, que apesar
de particular nada tinha de idiossincrático, antes atendendo a necessida
G. Lukács, "Sobre a natureza e a forma do
des objetivas da crítica em países como o nosso.
ensaio: uma carta a Leo Popper",
Conforme a expressão programática do Autor, trata-se de estudar
A alma e asformas
"um problema de filiação de textos e de fidelidade a contextos".3 Nes
salinha, oensaio indica apresença em O cortiço de temas, figuras e epi
Vamos tomar como ponto de partida o estudo de Antonio Candido sódios de L'Assommoir, ou de outros romances de Zola; mas assinala
sobre O cortiço. Redigido nos anos 70, foi publicado inicialmente em também as diferenças na composição, as quais concebe como adapta
duas versões parciais, com opropósito dedar lastro local a debates sobre ções do modelo ao contexto local, ou, ainda, como efeitos literários da
método.] Na primeira tratava-se de apontar a dimensão que escapava às filtragem reordenadora a que a experiência local submete os esquemas
leituras estruturalistas então em voga. Na outra, oAutor queria demons europeus. Assim, a comparação das formas leva à reflexão sobre as
trar pelo exemplo a legitimidade e até a necessidade do trânsito entre suas relações e sobre as sociedades respectivas, pondo em foco um
análise estética e reflexão histórico-social, um vaivém de esquerda, que complexo de questões interligadas, de claro interesse, que a divisão
entre os atualizados com astendências francesas e norte-americanas era corrente em matérias estéticas e sociais leva a desconhecer.
tido como um equívoco metodológico, atentatório à liberdade em arte. Por exemplo, Antonio Candido observa que a diferenciação
A versão completa do ensaio só agora foi publicada. 2 Também aqui alcançada pela sociedade francesa apartava os mundos do trabalho e da
os termos da discussão internacional, depois de propostos, são relativi- riqueza, de sorte que um romancista como Zola, com ambição de obra
cíclica, os trataria em livros separados; ao passo que o estágio primiti
( l) An toni o Ca ndi do, " A p ass age m do do is a o t rê s (c on tr ibui çã o p ara o e st udo da s vo da acumulação brasileira sugeria a um naturalista local, mesmo ins
mediações na análise literária)", Revista de História, 1 00, Sã o P aul o, 1974 ; e " Lite  pirado no L'Assommoir, um enredo em que explorador e explorados
ratura-sociologia: a análise de O cortiço de Aluísio Azevedo", Prática de Interpretação convivem estreitamente, com certa vantagem estética, devida ao real
Textual, s érie L etr as e A rt es , c ade rno 28 , pue, Rio de Janeiro, 1976.
ce espontâneo da polarização.
(2) Antonio Candido, "De cortiço a cortiço", Novos Estudos-Cebrap, 30, São Paulo,
1991. Na publicação definitiva, o ensaio forma um conjunto comparativo com outros três,
Notem-se as considerações contra-intuitivas a que um tal com
sobre as Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio deAlmeida, L'Assom posto de observações induz. À sociedade menos diferenciada, além de
moir, de E mile Z ola , e I Malavoglia, de Giovanni Verga. VerAntonio Candido, O discurso
e a cidade, São Paulo, Duas Cidades, 1993. As citações referem-se a essa edição.
( 3) Op. c it. , p . 124 .

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tributária da outra no plano cultural, não corresponde necessariamente outras. Além de esforço civilizatório, merecedor de aplauso, a utiliza
uma obra mais simples ou menos forte. Não porque a literatura inde ção de um modelo com pressupostos sociais europeus era uma cópia
penda da sociedade, ouplane num espaço incondicionado, como aven sim, na acepção pejorativa, enquanto ele não fosse reciclado conforme
ta o novo idealismo, mas porque as conexões não são asprevistas. as condições locais, quando então s e livrava da feição postiça, ou
Outro paradoxo: o desejo naturalista de transcrever a realidade melhor, quando superava a inadequação entre a cultura contemporânea
diretamente, sem a intermediação da literatura prévia ou de artifícios e ascondições do lugar.Assim, o "problema defiliação detextos e fide
delinguagem, mostra ser irreal; mas isso não anula as suas obras, como lidade a contextos", com as contradições que engendra, abre para um
pensa a crítica antimimética, para a qual o Realismo se resume numa espaço internacional, polarizado por hegemonia, desigualdade e alie
empresa ilusionista; antes obriga a lhes entender o valor em termos que nação, onde encontramos asdificuldades históricas e coletivas do sub
não os da doutrina. Por outro lado, a demonstração de que mesmo um desenvolvimento. A questão da originalidade seredefine, para além do
texto naturalista é filho de outros textos e não nasce da simples consi personalismo romântico, em termos sólidos e...originais.
deração do mundo não quer dizer que o momento da consideração não Entretanto, colocado o problema e traçadas algumas linhas com
exista. Contra a idéia pré-moderna (mas afinada com a mídia) da pro parativas, o ensaio parece abandonar o s eu objeto. Por razões que s ó
criação das obras pelas obras, numa espécie de vácuo social, sem refe adiante se esclarecem, passa ao estudo de um dito infame, corrente no
rência a realidades extratextuais, o argumento deAntonio Candido nos Rio de Janeiro da época, segundo o qual "para português, negro e bur
mostra o reaproveitamento de assuntos e formas no campo de gravita ro, três pês: pão para comer, pano para vestir, pau para trabalhar".4 A
ção de outra experiência histórica, a qual incide s obre o m odelo, análise mostra como, na expressão mencionada, a estrutura e as alite
rações convidam aojogo combinatório, a uma equivalência degradan
podendo estragá-Io
priedade, e em todo ou revitalizá-Io,
caso teleguiandotransformando-o com eou
a sua reorganização sem pro
imprimin te entre burro, negro e português, equivalência sustentada pela noção
do-lhe algo de si. pejorativa de trabalho que a sociedade escravista desenvolvia. O alvo
Há também a possibilidade de a cópia (no sentido de obra segun último da "piada" é o português, já que a assimilação entre o escravo e
da, por oposição à obra primeira) resultar superior, o que relativiza a a besta de carga não tinha por que escandalizar. Quem é o "em is sor
noção de original, retirando-lhe a dignidade mítica e abalando o pre latente" do gracejo?
conceito - básico para o complexo deinferioridade colonial- embu
Penso no brasileiro livre daquele tempo com tendência mais ou menos
tido nessas noções. Nem por isso entretanto estas setornam supérfluas, acentuada para o ócio, favorecido pelo regime de escravidão, encarando
como querem os amigos daintertextualidade e deDerrida, osquais mal o trabalho como derrogação e forma denivelar porbaixo,quase até àesfe
ou bem s upõem um espaço literário que não existe, s em fronteiras, ra da animalidade, como está nodito. O português senivelaria ao escravo
hom ogêneo e livre, onde tudo, inclusive o original - e portanto na porque, de tamanco e camisa-de-meia, parecia depositar-se (para usar a

da-, é cópia. Sópor ufanism o ou irreflexão alguém dirá que a even imagem usual do tempo) na borra da sociedade, "pois trabalhava como
tual superioridade de um artista latino-americano sobre o seu exemplo um burro". Mas enquanto o negro escravo e depois libertado era de fato
europeu indica paridade cultural das áreas respectivas, por aí ocultan confinado sem remédio às camadas inferiores, o português, falsamente
assimilado a ele pela prosápia leviana dos "filhos da terra", podia even
do as de si gual dade s e su jei çõe s que t eri am d e se r o n oss o as sunt o p or
tualmente acumular dinheiro, subir e mandar no país meio colonial. 5
excelência. É um bom resultado da déconstruction, além de uma ale
gria, saber que os latino-americanos não estamos metafisicamente Poi s bem, es te pon to d e vi sta do br asi leir o li vr e, com s eu res sen ti men
fadados à inferioridade daimitação,já que também oseuropeus imitam to "de freguês endividado de empório", ou com a sua "curiosa mistu-
(aí a relativização da originalidade). Mas seria m ais cegueira não
enxergar que ainovação não sedistribui por igual sobre o planeta, e que (4) Op. cit., p. 128.
s e as causas dess a des igualdade não são m etafísicas, talvez s ejam (5)Op. cit., pp. 129-30.

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rade lucidez e obnubilação ", se reencontra no enfoque narrativo de O A partir da década de 60, uma parte dos ensaios de Antonio Can
cortiço, onde tempapel estruturador. O c rí ti co se a fa sto u d o li vr o, ma s di do t em c omo des afi o t eór ic o a r ever si bi li dad e ent re aná li se li terá ri a e
para identificar um componente da sua ordem profunda. aná li se soc ia l. Conven cid o d o in te res se d ess es re la cio namen tos , bem
Assi m, o desv io exp osi ti vo dest ina- se a compr ovar a exi st ênc ia como da sua dificuldade, o crítico procura torná-Iosjudiciosos, evitan
extraliterária da posição que comanda o enfoque do romance (o que do a falta de discriminação reinante na historiografia positivista e natu
não é o mesmo que comandar o romance inteiro). Para prevenir mal r al is ta, cont in uada no mar xi smo vul gar , t ra diç ões par a a s q uai s a pec u
e nt endi dos , not e- se qu e est amos no pól o opos to d o reducionismo, pois Ii ar id ade d a es fer a li terá ri a po uco e xi st ia. Ora, se ho uve u m pr ogr ess o
não se t rat a de acomod ar a o bra a um e sque ma so cio lóg ic o pr ees ta be em crítica neste século, ele com certeza esteve na "descoberta", sob
l eci do. Pe lo co nt rár io , só a in ti mi da de mui to r efl et id a com o l iv ro pe r ró tul os de e sco la di ver sos , da in crí ve l compl ex ida de i nte rna d a li te ra
miti u r econ hece r na pi ad a d e por tu guês , c om a su a má -f é i deol ógi ca , lura, da natureza protéica da forma, e, sobretudo, do papel decisi vo des
u m t ermo de compa raç ão per ti nen te, d ota do de for ça s uge st iva . Como ta última. Quanto maior a intimidade com as obras e a sua força, mais
se vê, a sondagem de correspondências estruturais entre literatura e c la ro o er ro do con teu dis mo s impl es, e ma is es tr it o o ve to à cons ide ra 
vida social tem de se haver com obstáculos bem mais reais que os de ção independente das matérias, apartadas de sua especificação formal.
mét odo, t ão lembr ado s: e la exi ge con hec iment os e es tud os de sen vol  Como avaliar este hiato - ponto de honra dos novos estudos - entre
vid os e m ár eas di st ant es umas das o utr as , alé m da i nt uiç ão d a t ota li da a riqueza da significação estética e a banalidade da significação cor
de em curso, na contracorrente da especialização universitária comum. rente? É bem ve rda de que t al vez c onven ha que st ion ar a q ues tão , cu jo
I ss o po st o, o g olp e de vi st a p ara o par ent es co hi st óri co ent re e st rut ur as e spí ri to t ão a ssi mét ri co p ode ju nta r, no to can te aos e st udi osos , a es pe
dí spa re s é t alv ez a f acu lda de- me st ra da c rí ti ca mate ri al is ta , pa ra a q ual c ia li zaç ão na lg uns campo s e a ing enui da de e m out ro s.
a li te rat ur a tr aba lha c om mat éri as e con fi gur açõe s e nge ndra das fo ra de De todo modo, as respostas à pergunta serão diversas, ligadas a
seu terreno (em última análise), matérias e configurações que lhe concepções também diversas do que seja forma e do que seja realida
emprestam a substância e qualificam o dinamismo. Repitamos que o d e. No ext re mo , o es tud o da or gan iza ção i nte rna da ob ra pode se t or nar
objetivo desse tipo de imaginação não é a redução de uma estrutura a uma finalidade auto-suficiente, como acontece nalguns tipos de forma
outra, mas a reflexão histórica sobre a constelação que elas formam. li smo, pa ra os q uai s a r ef erê nci a a o mundo não é uma ques tã o a rt ís ti ca
Estamos na linha estereoscópica de Walter Benjamin, com a sua acui nem crítica, mas uma impureza. Esta é a outra frente onde intervém o
da de, por e xempl o, pa ra a i mp ort ânc ia do mec ani smo de mer ca do p ara e nsa io de Anton io Cand ido , cu jos cui dad os na ap ree nsã o e na de scr i
a compleição da poesia de Baudelaire.
ç ão da fo rma l it er ári a vê m de par com u ma d esc ri ção nã o men os es tr u
Noutras palavras, o dito dos três pês e o enfoque narrativo de O t ur ada n em men os or igi na l de r ea li dade s hi st ór ica s pe rt ine nt es. Quai s
cortiço têm em comum, ainda que não o tratem de modo igual, um são estas? É uma p erg unt a p ara a q ual não há res pos ta ger al , mas só cas o

naci ona li smo fei to d e d esp rez o p el o t rab al ho, pel o negr o, pel a an ima a caso, e dependendo sempre de um achado crítico, e m que a rel aç ão
li da de e pe lo po rt uguê s. A aná li se va i mos tr ar a pa rt e d a o fus caç ão e do i nt er na e d is cri mina da ent re os âmbi tos a cr esc ent e à in te li gênc ia d os
ressentimento nesse patriotismo pouco estimável, além de uma inespe dois. Num momento em que a tendência mais prestigiosa da crítica
rada ambivalência de colonizado em relação ao próprio Brasil. No i nte rna ci onal aban dona va o te ma da re fer ênc ia ex te rna , co nceb ida n a
ent ant o, ao meno s em pr incí pio , não h á dú vid a de q ue es sa conf igura  f orma i rr is ór ia do e spe lhi smo f ot ográ fi co, Ant oni o Can did o f azi a u m
ç ão i deo ló gic a se p oder ia r evel ar at rav és do es tu do d o r omanc e t oma esforço refletido em direção contrária, procurando precisar e aprofun
do nele mesmo, dispensando o achado do estratégico mote trocista. O dar os termos daquela relação. E m lugar do debate sobre teses gerais,
que se ganhou, então, ao considerar juntamente algo que é literatura e rapidamente estéril, tratava de detalhar modos de continuidade bem
algo que não é? Qual o interesse de armar um espaço com objetos de como de ruptura, puxando a discussão para questões de fato, ou seja,
natureza heterogênea? Vejamos algumas respostas. para o valor de conhecimento das leituras oferecidas.

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Como o r omance , o dit ado ant iport ugu ês man if est a uma ide olo  cu lam e s ão r eel abo rada s em ver sões mai s o u meno s su bli madas ou f al 
gia da época. O ensaio entretanto não aponta diretamente para aí, mas sead as, for mas, por tan to, t ra bal hando f ormas . Ou ai nda, as for ma s qu e
para alguma coisa menos palpável, embora real à sua maneira. O que en cont ramos n as obra s s ão a r epe ti ção ou a t ra nsf ormaçã o, com r esul 
Antonio Candido explicita é o sistema de relações sociais pressupos tado variável, de formas preexistentes, artísticas ou extra-artísticas.
to, a cuj a l ógi ca vi rt ual empre sta expr es são pel o pri sma de uma de suas Do âng ulo dos es tu dos li te rár io s, o f or te de ssa noç ão es tá no c om
fi gur as car deai s, no c aso o br asi le ir o nat o, l ivr e, oci oso e pre sumida
pa cto h ete rogê neo de re laç ões hi st óri co- soc iai s que a f orma s empre
me nte br anco ( por opos içã o ao por tug uês, a o e scr avo, ao tr aba lha dor e
art ic ula , e q ue fa z da hi st ori ci dade , a s er dec if rada p ela crí ti ca, a subs 
ao homem de s angu e afr ic ano) . A par áfr ase , s impl es e c ont unden te, t ânci a me sma das obr as. A vant age m res sal ta n o conf ron to com o s d ife 
uma espécie de invenção didática, tem força crítica notável.
rentes "formalismos" - termo confuso, que pensa designar pejorati
[ .. .] e u, br asi le iro n at o, l iv re , br anc o, nã o posso me co nf undi r co m o ho  va me nte a s uper est ima ção t eór ica do pape l da f orma, q uando tal vez s e
m em de t ra ba lho b rut o, que é e sc ra vo e de out ra c or ; e ode io o po rt ug uê s, trate, pelo contrário, de uma subestimação. Com efeito, os formalistas
qu e t ra ba lha c omo el e e ac aba m ai s r ico e ma is i mpor tan te do q ue eu , s endo costumam confinar a f orma, e nxer gar nel a um t ra ço di sti nt iv o e pr iv a
além dis so mais branco. Quanto mais ruidosamente eu proclamar os meus
t ivo , o pr ivi lé gio da art e, aqui lo que no c ampo ext ra -ar tí st ic o não ex is
débeis privilégios , mais pos sibilidades terei de s er considerado branco,
te, raz ão p or qu e a cel ebra m como uma est ru tur a se m ref er ênci a. Tome 
gente bem, candidato viável aos benefícios que a Sociedade e o Estado
se por exemplo a questão do ponto de vista narrativo, comumente
devem reservar a seus prediletos. [ ... ] Sórdido jogo, expresso nestes e
ex amina do e m ter mos espa ci ais , segu ndo e st ej a per to , l onge , aci ma,
outros mots d'esprit [a frase dos pês], que formam uma espécie de gíria
ideológica de class e, com toda a tradicional gross eria da gente fina."
abaixo, dentro ou fora das personagens. Sem desmerecer observações
dess a orde m, que pod em e scl are cer mu it o, é cla ro q ue a co mp reen são
Adiante voltaremos à intenção desmistificadora da análise. Por agora da substância prático-histórica do vínculo dá outra realidade aos estu
notemos apenas que este prisma, engendrado por uma história social dos da posição do narrador. O enfoque narrativo alimentado e discipli
particular, e articulado com as linhas básicas de sua configuração, é nado pelo complexo de finalidades próprio a certa elite brasileira em
umaforma o bje ti va, ca paz de pa uta r t ant o um ro ma nce co mo u ma f ór
fins do século XIX exemplifica bem esse enriquecimento.
mul a in sul tuo sa, um mov iment o polí tico ou uma re fl exão t eór ica , pas A compar açã o mai s r el evant e co ntud o se fa z c om o est ru tur al is 
síveis de confronto através da reconstrução daquela condição prática mo d e ins pi raç ão li ngü ís ti ca. S alv o engan o, ao a dot ar o i dea l de ci ent i
mediadora.
ficidade e o tipo de estrutura elaborado por essa disciplina, a crítica lite
Examinemos alguns aspectos e algumas conseqüências dessa
rária incorpora um modelo indiferente a aspectos decisivos de seu
idéia social de for ma. Trat a- se de um esquema prático, dotado de lógi objeto. Não custa lembrar que, embora feito de palavras, este último
ca e spe cíf ic a, pro gramad o se gundo as con diç ões his tór ic as a que at en não f unci ona como uma lí ngua , pois é um ar tef at o s ing ula r, ob ra de um
de e que o historicizam de torna-viagem. O esquema não se esgota em
sua s ma nif es taç ões s in gul ares , qu e pode m pe rt ence r a âmbit os de re a in div ídu o em fac e d e uma si tuação ar tí st ic a, s oci al et c. Or a, o foc o n os
mecan is mos un ive rsa is da li ngua gem e do pr ópri o s er human o empu r
l idade di st int os , a cuj os c omponen tes s e ar ti cul a. No c aso des cri to, el e
ra noutra direção, para o lado do historicamente inespecífico - hoje
setraduz num interesse econômico-político, numa ideologia, numjogo
mor ta l par a a l it er at ura. Apes ar da emin ênci a dos a uto res , a s lei s ger ai s
verb al, num enf oque na rr ati vo. Qua nto a af in ida des, est amos no u ni
da narrativa (Barthes) ou a teoria de uma função poética também uni
verso do marxismo, para o qual os constrangimentos materiais da
versal da linguagem (Jakobson) têm algo daquela generalidade sem
r epr oduç ão da s oci edade s ão ele s p rópr io s f ormas de base , as quai s ma l
objeto efetivo a que Marx, ao lembrar que o trabalho "em geral" não
ou bem se imprimem nas diferentes áreas da vida espiritual, onde cir-
existe, se referia como Abgeschmacktheit [sensaboria]. Na medida em
que o estruturalismo calca a sua investigação da forma no exemplo da
(6) Op. cit., pp. 132-3.
li ngüí st ic a, onde a r efer ênc ia, p or defi ni ção, é ape nas um hor iz onte , as

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relações históricas ficam relegadas ao campo dos conteúdos sem gr os seria das pi adas de português, como se sabe um gos to local . Mai s
potênci a pl asmadora e, ali ás, sem int eresse par a a crít ica. A ir oni a das ou menos à é poca, aliás , Machado de As sis recomendava "r aspar a cas
coisas l iter árias qui s que em mui tos casos a convi cção da relevânci a da c a d o r is o, p ar a v er o q ue h á d en tr o" .7 Nou tr as p alav ra s, a ide ntif ic aç ão
f or ma d es embo ca ss e n a c as tr aç ão de la e n a pe rd a d e s ua e sp ec if ic id a d o p ro blema, a e xp lica çã o d e s eu f un da me nto histór ic o- so ciológ ic o, a
de. O descompasso com o movimento da literatura nos últimos dois ind ic aç ão de s ua p re se nç a tác ita n um r oman ce d e p es o e n uma man if es 
séculos e meio, quando a invenção formal concebe a si mesma como t ação queri da e duvidosa da al ma nacional t êm como condi ção prévi a
uma sucessão de atos eminentemente históricos (e de modo nenhum u m a to de ind ep en dê nc ia r ef le xiva , a r ec us a e sc la re cida à c umplic id a
f ec ha do s n a r ef er ên cia à p róp ria lin gua ge m ou à s ér ie liter ár ia ), é g ra n de com os cost umes mentai s da el ite. N ão se tr ata da des crição dist an
de. Assi m, sumari amente digam os que a form a t ravejada pela r elação ciada de uma ideologia, mas de seu desmascaramento empontos cru
hist órica e pelos seus dinam ism os , i ntra e ext rali ter atura, parece bem ciais, com indicação dos motivos de classe atrás de preconceitos
mais próxima daquilo que os artistas de fato fazem e que vale a pena e fica ze s. Acompa nha da d e s eu s e fe itos intelec tu ais, e ss a p os iç ão o br i
buscar em seus trabalhos. ga a rever o quadro das idéias e letras brasileiras, no qual se inscreve
Qual o método para a) def inir o " emiss or l atente" de uma expres como uma reflexão modificadora, um progresso do conhecimento-de
são humorí sti ca, b) t rocar em mi údos o s ignifi cado s ocial dela, e c) l he s i d is po níve l n o inter io r d e u m p ro ce ss o histór ic o r ea l.
reconhecer a feição, a presença tácita - a qual é uma autêntica desco Assim, embora nascido no contexto de um debate acadêmico
ber ta - no enfoque nar rati vo de um livro im por tante da li terat ura bra sobre mét odos, onde devi a exem plif icar um a or ientação mai s abran
s ileira ? A d iv er sida de da s o pe ra çõ es , lig ada s a d if er entes d is ciplin as d o gente, o ensaio de Antonio Candido encontra o seu lugar próprio no
conheci mento, corr esponde à nat ur eza compósi ta da for ma descri ta. e nf re ntamen to liter ár io -ide ológ ic o- po lítico s ob re a n atur ez a d a e xp e
Est a reúne uma categoria técnica, el aborada pel a t eoria do romance, a r iê nc ia s oc ia l b ra sile ir a. S eja d ito e ntre p ar ên te se s q ue , p or f az er p ar te
uma f ig ur a p ró pr ia à h is tór ia e à s oc ie da de b ra sile ir as , f igu ra c uja g en e das tur mas i ni ciai s da Faculdade de Filos of ia de São Paulo (cr iada em
r alid ad e n ac io na l e s ub stân cia p ro blemátic a, nu nc a lev ad as e m c on ta , 1 93 4) , Anton io C an dido c os tu ma s er c itad o e ntre o s p rime ir os c rítico s
e stão g rifa da s e e xp lica da s a qu i p ela p rime ir a ve z. Ass im, a e xp os iç ão brasileiros a se beneficiar de uma formação atualizada em ciências
n ão d ev e a f or ça p er su as iv a à a utor ida de d e u m métod o f amos o, e s ob re  humanas, a salvo do autodidatismo tradicional e em sintonia com a
tud o p ron to , mas a o inter es se e à e vidê nc ia d os a ch ad os , d e v ár ia o rd em, dinâmi ca intel ectual nova - o que certam ente é verdade. Mas , passa
à exat idão das des crições, bem como ao rigor das anál ises. O es tudo no dos os anos, o valor de seus escritos - que melhoram e ganham em
caso não se f il ia a uma especi alidade part icular , embora est eja soli da saliência com o tempo - parece trocar de origem: interessam justa
ment e apoiado no conjunto das ciênci as humanas, e venha anim ado de men te p or n ão s e e sg otar em n o u nive rs alis mo prêt-à-porter do debate
di scipl ina cientí fi ca, com o ali ás indi ca a s ua di sposição para o debate teó rico a tu al, o u melho r, p or ter em c on tinu ida de r ef le tida c om a s p os i

c on stru tivo , c om p ad rã o a ca dê mico , muito f or a d os h áb itos d o p aís. ções , noções e contr adi ções sust ent adas pela experiênci a hist órica do
D it o isso, é claro que o essenci al do at o crít ico, na parte que vimos p aís, d en tr o, f or a e a ntes d a u nive rs id ade , e xp er iê nc ia c ujo a nd amento
até agora - a fixação e anatomia do tipo social atrás da prosa -, não é o utro e p os sive lmen te mais r ea l.
depende só da erudição li terár ia e hist ór ica, m as tam bém da sensibi li O desejo de ligar a obra a seu meio e a seu tempo não é novo. O
dade polít ico-m oral. A aproximação entr e o dit o dos três pês e a orga modelo consagr ado desse ti po de estudo manda começar pel o panora
nização de O cortiço não se f az pel a via di reta da s emelhança, e sim por ma de época, no qual em seguida se inserem os livros que se querem
inter médio da avers ão lúci da a certo t ipo de nacionali smo autori tári o e explicar . A arte da expos ição consist e, no caso, em acentuar os t raços
a pr ov eita do r, pr ópr io a u ma f aixa de p atriotas r uido so s, q ue s e s en tiam
os pró- hom ens do Brasil , com di reit o às benesses do Est ado, e própri o (7) Balas de estalo, 26jan. 1885; c itado e m C 1a ra A1vim, Os discursos sobre o negro
também, de modo indireto, à conivência muito generalizada com a no s éc ulo X IX : des vios da e nunc iação m ac hadiana, Rio de Janeiro, CIEC, 1989, p. 11.

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comuns, o ar de f amíl ia, tornando por assi m dizer i nerent es uma à out ra xam de existir. Veremos que a composição inesperada e abrupta do
a li teratura e a sociedade, i ncluída nest a até a pai sagem. Essa orient ação ensaio de Antonio Candido respo nde de mod o também mode rno a essa
nem sempre f oi conservadora, e na ori gem, quando se opunha a nor mas ordem de problemas.
de corte, a concepções universalistas e atemporais de beleza, teve Notamos a maneira inopinada pela qual o dito dos três pês e a sua
extrao rdinário imp acto crítico e inovad or. P ara apreciá-Ia na forç a da análise aparecem no ensaio. Depois de c onsiderações intro dutória s
genialidade, l eia-se a aut obiografia de Goethe, que procurou ver -se a si sobre o tema da "filiaç ão de textos e fidelidade a contextos", e d e com
mesmo , à sua geração e à c ultura e uropé ia c onte mpo rânea em termo s parações com o romance de Zola, seguidas de observações também
dessa ordem. Contudo, redefinida logo adiante na órbita da historiogra comparativas sobr e as soci edades francesa e brasi leira, entr a o exame
fia nacionalista, com as prioridades ideo lógicas c orrespon dentes, a detalhado de uma frase q ue and ava pelas ruas e que nada indic ava qu e
exigência de context ualização adquir ia conot ações de conformismo, viesse ao ca so. Numa versão inicial do escrito, destinada a um enco n
s enão apologéti cas. Em dif erentes versões, a ori entação pat ri óti ca im tro de profe ssores de lite ratura , Antonio Candido afirmava que tanto é
punha as suas coordenadas à apreciação li terária, de que passava a f un poss ível pass ar da observação l it erári a à observação s ocial como o con
cionar c omo o apriori, aliás err ado. De fato, as fronteiras nacionais são trário, e que a sua c omu nica ção se destinava a exemplificar o segundo
um limite - ou contexto - arbitrário para a vida do espírito moderno. caminh o. Seria u ma explica ção simple s para o ponto de partida na an á
Para os fins de sua arte, o escritor emancipado não se define como um li se social. Contudo, se exami narmos o f unci onamento desta últ ima na
cidadão, nad a o impedindo de de sconhe cer aquela baliza e de busc ar e conomia geral d o estudo, veremos que envolve que stõ es mais com
fora dela a inspiração e a matéria para a sua arte. Daí a dizer que o con plexas. Antes de mais nada , assin ale-se que a socie dade não aparece
dicionamento social da literatura não existe e não passa de um mito aqui na sua versão habitual, de ambiente externo e conhecido, cujas
r et rógr ado o pass o é pequeno. Ent retant o, o própri o s entimento do r ela grandes linhas as obras ilustram, mesmo quando as contestam. No
tivo das fronteiras políticas certamente corresponde a uma experiência c aso, pelo c ontrário, a sociedade figura por meio de um resultado seu,
social efe tiva, cond icionada e sustentada por proc esso s de raio mais LIma frase na qua l a sua proble mática de cla sse muito partic ular está
amplo. Digamos então que a liberdade artística, tal como os tempos condensada - mas não explicada - a p artir de um ponto de vista tam
moder nos a f ormaram, dis pensa o escri tor de se cur var às prescrições da bém particular, além de abje to. Conforme a demonstraç ão d o crítico, é
p átria ou de qu alqu er outra mod alidade de oficia lismo. Mas não o dis esse mesmo ponto de vista que inconscientemente anima o enfoque
pen sa de co nsistê ncia e profundidade no relac iona me nto com os seus narrativo de O cortiço, de qu e portanto é um e lemento din âmico inte
materiais, que tomou onde e como quis, e sobre os quais trabalha.8 rior: a co nseqüê ncia social passou a ca usa literá ria, com conseqüên
At ravés desse met abol is mo se processa, conscientement e ou não, uma c ias, por sua ve z, q ue se desdob ram na ficçã o.
l iga ent re f orma art ís ti ca e necessi dade hist óri ca, de esfera por defi nir Repet indo, a s ociedade não aparece como modal idade envol ven

cas o a caso, esfera aliás que hoj e pode i ncluir pólos afastados aponto de te, mas como elemento interno ativo, sob a forma de um dinamismo
t or nar i rr eal a i déia mesma de context o, com seus pressupostos det rama especifi cament e seu, result ado consis tent e dela e pot ênci a i nt eri or ao
c errada e ta ngíve l. A c ombinaç ão extrema entre liberdade no p onto de romance, onde atritará com outras forças e revelará algo de si. Lem
part ida e necessi dade na execução, neces si dade a descobrir , programa bremos ainda que se trata aqui de um ponto de vista ou padrão de con
da pela exper iência que a his tória acumulou nos materiais uti li zados, duta aut ori tári o e preconceit uoso, inconscient e da própr ia f ace pífi a,
defi ne avocação audaz daart e moder na, bem como a sua posi ção em fal que além do mais não é t emáti co no li vro, est ando na posi ção influente
so no que respeita ao âmbito e à ordem nacional, que nem por isso dei- e impalpável de sobredetermi nant e formal . Essa s oma de aspectos, que
se diri am negat ivos , tão reais e eficazes quanto turvos, cor re a sua sort e
(8) Neste ponto, como nas demais discussões sobre a forma literária e a sua his (e empu rra a dos outros) n o movimento d e conjunto do roma nce, a que
toricidade, me apóio na Teoriaestética de Adorno.
e mpresta a vivacidade en tre boça l e sub sta nciosa. As suas resultantes

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ficcionais, configuradas mas tácitas, parafraseadas pela interpretação nha central de grande consistência e nitidez. Em sentido óbvio, esta
crí ti ca, pas sam longe d as vi sõe s ofi ciai s ou cor rent es do paí s, e l onge de corr e da mot iv ação o u per sonal ida de de Joã o Ro mão. Mai s prof un
também da visão explícita promovida pelo próprio livro, cuja cegueira da ment e, o cr ít ico nota q ue el a apree nde, pel a pri meir a vez na li te rat u
de classe funciona como um ingrediente involuntário de complexida ra brasileira, o ritmo da acumulação do capital, nas condições peculia
de artística.
re s ao paí s. Assi m, a u nidade do li vro - um fa to i nte rno, de const rução
Tomada c omo in vólucr o da l it erat ura, a soci edade dese mpenha e estrutura - apresenta também uma face mimética - um fato da
um papel de enquadramento, que seria despropósito desconhecer. Mas ordem da referência externa -, ficando unidos aspectos que as teori
conc ebida como for ça int erna, encaps ula da num dis posit iv o for mal zações recentes não costumam considerar em conjunto. Por outro lado,
com desdobramento autônomo, a sua lógica escapa à comparação conf orme a obs ervaçã o pri ncip al do ens aio, e sse di namis mo da int ri ga
ext er na, p ara pr oduzir uma ve ross imil hança sem par te com as no ções não s ó não confi rma como i nfli ge u m des me nti do i ncis ivo ao sis tema
e os li mi tes acei tos . Os d ois funci onamentos s ão r eai s, e a pref erênc ia das no ções em pri me iro pl ano no r oma nce. No que depe nde de ap reci a
pel o se gundo t raduz o int eres se pela sonda gem de for ças org aniza do ções formul adas, es te últ imo des cansa em est ere óti pos natur ali st as,
ras pr ofundas . Parado xalment e, é s ob e sse a spect o des provi do de a val quanto à ra ça e ao cl ima, e na cional is tas , quan to ao ex- col onizad or.
empírico imediato que a o bra tem parte - a e specificar - com os des Ora, as polaridades correspondentes, entre negro e branco, trópico e
dobramentos do mundo. Voltando à nos sa ques tão, a i nt rodução a seco Eu ropa, br asil ei ro e po rtug uês, que organi zam e dã o col ori do de ci ên
de uma engr enagem soci al re levan te e tã o peculi ar acent ua, em luga r de cia ao espetáculo, são desconsideradas e derrubadas pelo curso da ação,
di sfa rçar , o component e não li ter ári o da li te rat ura, o que em segu ida igualmente claro. Esta opõe um homem em processo de enriquecimen
permite apreciar o trabalho especificamente literário de assimilação, to rá pido a os de mai s que e le expl ora , os doi s campos est ando impreg
va lor izaçã o e s uperaç ão d o qu e par eci a ma s nã o e ra exte rno. Co m esse nados, at é o â mago, embor a di fe rent emen te, pel as c ondiçõ es se mi co
las tro, t ambém a quest ão an ter ior da " fide li dade a cont extos " muda de loniais de trabalho, que portanto não são particulares a um ou outro nem
carát er: em lugar do model o pront o, dado e a copi ar, que f unci ona c omo serv em par a os dis ti nguir . O ho mem é um port uguês, e o s explor ados
um est ímul o de fo ra, t emos uma pres ença est rut urada - ext erna ? i nt er são, indiscriminadamente, outros portugueses, brasileiros, negros,
na? -, presa a práticas sociais específicas e parte, através destas, da mulatos e brancos. A esta luz, como fica a ideologia que contrapõe o
hi stór ia cont emporâne a. De out ro ângul o ai nda, t rat a- se de uma expo  br asi lei ro a o port uguês , ao neg ro e ao burr o, a qual af ir ma jus tament e
s içã o ensa íst ic a que fa z suas a contingência e a consistência próprias à asdiferenças e presunções que o entrecho da acumulação desqualifica?
aventura da arte moderna. O desdobramento

Iss o post o, a t ônica do ensai o não est á na ident if ica ção de uma ót i mostra que, afinal de contas, dos figurantes a que caberiam os três pês
ca de classe, nem o livro será amarrado a uma posição social particular. [pão, pano e pau] o português não é português, o negro não é negro e o
burro não é burro. Em plano profundo, trata-se de uma trinca diferente,
A pergunta é outra: qual o rendimento literário daq uele enfo que? ou pois em verdade estão em presença: primeiro, o explorador capitalista;
seja, na terminologia dialética doAutor, qual "a verdade dos pês"? Esta
se dese nvolve no conf ront o com a i ntr iga do romance, cu jo movimen segundo, o trabalhador reduzido a escravo; terceiro, o homem social
mente alienado, rebaixado ao nível do animal.'
to é ené rgi co. João Romão é um taver nei ro por tuguês , fan ati camente
acumulador, que não tem medo de trabalhar pesado, de se privar de Recapitulando os passos, a expressão humorística formaliza ideológi
t udo, de r oubar o que for pos síve l, ou de arni gar- se com u ma es crava , a ca e esteticamente (mas não no campo da arte institucionalizada) um
quem usa de todas as maneiras. Aos poucos põe de pé um cortiço, onde con junt o de pr econcei to s de clas se, o mesmo qu e governa c ert o aspe c
ex plor a indi st int amen te br asi lei ros e po rtug ueses , branco s e negros , to d' O cortiço, razão pela qual pôde servir de introdução à análise lite-
até ficar rico e entrar para a sociedade apresentável. O enriquecimento,
per segui do com d eter mi nação al ucina da, conf ere ao romance uma l i-
( 9) An to ni o C an di do , o p. c it ., p . 1 34 .

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rár ia d este . Uma vez ex posto à di nâmi ca d o r omanc e, aque le compl e econô mi ca, ao mesmo tempo que unif ica a na rrat iv a, redef ine o conf li 
xo aparece como um conjunto deilusões odiosas, além deeficazes, pois t o e seus campos, fazend o gi rar em f als o os chavõ es que a fáb ula devi a
obscur ecem de modo func ional e con serva dor o s i nter esse s em jogo, consolidar. O cuidado artístico eformal com a coerência narrativa fun
definidos no plano da intriga. Esse resultado artístico d o moviment o do ciona como um fator independente, com potência crítica involuntária
r oma nce ref lui sobr e a f ras e dos pês, e mbor a est a s eja uma pe ça de i deo em rel ação ao conju nto de ideo logi as que o enr edo, atr avés da mimese,
logia extraliterária, encontráve1 por assim dizer na rua: esclarece-lhe a reproduzia e ilustrava. Nesse sentido, a consistência formal desconhe
nat ureza de i lusã o r acis ta e xenóf oba, der iva da de uma rel ação de tr a ce a ordem estabelecida, os seus limites e os seus equívocos, em cujo

balho pecul ia r e de um ti po também pe culi ar de ac umul ação de r ique quadro não se acomoda e em relação à qual apresenta um valor de rup
za, "no qual o homem pode ser confundido com o bicho e tratado de t ura, por oposi ção ao pa pel r edundant e e conser vador d a mime se. Con
acordo com esta confusão" .'0 Aí está, perfeitamente claro, o inconcebí tu do, o cr ít ico notou aind a o val or mi mét ic o da pr ópri a cons ist ênci a
ve l par a alg umas teor ias : o di nami smo l it erá rio prod uzindo conh eci for ma l, que, se m p rej uízo de seu car áter const rut ivo, como que no i nte
mentos sobre arealidade externa ... Observe-se que a discrepância entre r ior de le, para doxal ment e imit a e tr az par a a di nâmica do romance o ri t
o movi ment o do r oman ce e o s eu sis tema de n oções pod e ser e ncara da mo de cert o ti po de a cumul ação de r ique za. Essa imit ação de u m anda
de mui tos modos. Uma lei tu ra menos ge nerosa , e menos i nter ess ante, men to ger al da soci edade t em potê ncia cr ít ic a por sua vez , pois l ivr a da
a tomaria simplesmente como defeito de composição. Desautorizadas facilidade e do preconceito a consistência do romance, a qual não se
pelo enredo, as perspectivas naturalistas e nacionalistas fariam figura deve ao acaso de uma fixação subjetiva (a avidez econômica de uma
de um pal avrea do va zio, que são em par te. Mas podem ser ent endida s personagem) mecanicamente reiterada, nem à nacionalidade portu-
também como ideologia, quand o ent ão a compos içã o disc repant e guesa des ta. Digamo s que a uni dade for mal a brangen te nã o é asseg u
adqui re f uncio nali dade crí ti ca e valor mimético em relação ao país. rada pelo bai xo c ontí nuo da obs essão do ganho, nem pela arqui tet ura
Trata-se de aspectos objetivos da configuração do romance, onde exis do s cont rast es entr e ra ças, cl imas e ti pos nacio nais , nem p ela v isã o de
tem em ato, mas sem estarem ditos. Sua formulação se deve ao crítico, classe que preside à narrativa, que entretanto são ingredientes capitais
e não pertence ao horizonte do romancista, o que não significa que ela de la. Cada um des tes é u ma for ma, com d inamis mo pr ópri o, a qual ser á
seja arbitrária. Como escreve Antonio Candido, a "violência social [do arrastada e desautorizadaem ato pelo movimento de conjunto, cuja for
l ivr o] é mai or do que s upunha o [seu] aut or" . ma geral tem a sua verdade na inverdade que as outras, vencidas por
No que respeita à mimese, o ensaio procede de maneira diferen algo de mais substantivo, vão deixando entrever ao longo do processo.
ciada, que em si mesma objeta às oposições sumárias em voga. O sis A ser assim, a literatura não fica reduzida a captar e a reapresentar
tema deprevenções embutidas no enfoque narrati vo será uma imitação o soci al? qua l a sua produt ivi dade pr ópri a? e m que ter mos conceber 
da real idade ? Parec eri a mais adequado c hamá -lo um decalque incons lhe os aspectos de inovação e ruptura? não haveria um pressuposto 
ciente, a migração de reflexos de classe dominante para o campo lite ingenuamente realista - de neutralidade e transparência da lingua
rário, onde atuam como princípio ordenador, desempenhando o seu gem, levando a ignorar o papel constituinte, a realidade irredutível des
papel ideológico de apresentar perspectivas particulares como verda ta última? Espero haver reproduzido fielmente as questões de Luiz
des gerais. Já no plano voluntário do assunto, o enriquecimento do Costa Li ma , levant adas no d ebate que s e s eguiu à exposi ção do pr esen
taverneiro português é contado de modo a deliberadamente confirmar te est udo. São o bjeçõ es que ajudam a e ntende r a pecul iar idade da po si
aquelas "verdades" - os estereótipos brasileiros no capítulo - que em ção de An toni o Candi do. A di scuss ão pode ria par ti r do an tagoni smo,
t roca l he empre sta m a ver ossi mil hança impregna da de prec oncei to. palp ável n as pe rgunt as, entr e a cap taçã o do soci al e a pr oduti vid ade
Ficou vi st o ent ret anto que a consi st ênci a e str it a na busca da va ntage m espec ífi ca d a li te rat ura e da li nguagem. Es sa opos ição não é a uto- evi
dente, e na minha opinião não corresponde à prática da grande arte
(10) Op. cit., p. 129. moderna , embora cor resp onda a u ma de sua s t eori as. Sem f orça r a nota,

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http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo 19/124
5/17/2018 e com o devido bom humor, pensoSchwarz, Roberto
que a divisão imaginada-por
Sequencias
Costa Brasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
ças a este último alinhamento, tudo dependendo de sua posição relati
Lima sepoderia formular da maneira seguinte: de um lado, nopartido vano conjunto. O mesmo vale para o aspecto construtivo, que no livro
do atraso, a mimese darealidade histórica, ausência de inquietação for tanto cria condições de generalidade incompatíveis com o preconceito
mal, redundância ideológica, ilusão da linguagem transparente, sem como decorre de algo como uma sistematização do próprio preconcei
tração própria; de outro, no partido avançado, a produção literária do to. Diante de uma descrição pormenorizada e refletida, as generaliza
novo, a ruptura antimimética, a consciência daeficácia específica à lin ções da Teoria Literária a f avor ou contr a a mimese ou a construção
guagem, bem como o desligamento da antena referencial. Ora, basta mostram-se improcedentes. Para completar, parece claro que o valor de

lembrar a acuidade social e imitativa dos melhores romancistas expe ruptura da construção pode sebeneficiar da tensão com o aspecto con
rimentais desse século para encarar com reservas esta distribuição dos formista da imitação, e que o valor crítico desta pode ser sublinhado
papéis.
pelo aspecto mecânico que a outra acaso tenha e ao qual vale escapar.
Voltando ao ensaio deAntonio Candido, vimos que ele não apon Achispa crítica não salta num lugar só, e estipular disjuntivas abstratas
ta um, mas vários tipos derelação doromance com a realidade. Apopu nem sempre é mais radical e produtivo do que discernir relações.
lação, o ambiente social e a paisagem são apresentados conforme as A forma de que falamos aqui é inteiramente objetiva, com o que
teorias do Naturalismo, científicas na época, hoje exemplos de ideolo queremos dizer que ela se antepõe às intenções subjetivas, das perso
gia. O ritmo estiliza as convicções nacionais a respeito da ganância e nagens ou do autor, as quais no âmbito dela são apenas matéria sem
brutalidade do vendeiro português, mas apreende também, noutro ní autoridade especial, que não significa diretamente, ou que só significa
vel, o andamento impessoal da acumulação de riqueza, cuja mola não por intermédio da configuração que a redefine. Quanto a afinidades, o
é a guerr a entre as raças e entre as nacionalidades, mas o capital. O primado da forma sobre opiniões e intenções setorna programático, na
mecanismo anônimo e irrefletido do enfoque narrativo é governado história do romance, apartir de Flaubert. Fora da literatura, o sentimen
por ambivalências características do nacionalismo complexado da (oanálogo se encontra na idéia marxista da precedência do processo,
virada do século, o chamado "jacobinismo" brasileiro. Essas ambiva cuja engrenagem objetiva, funcionando atrás das costas dos protago
lências não foram invenção do romancista e existiam também fora da nistas, também lhes utiliza e desqualifica os propósitos, transformados
literatura, onde puderam originar pancadarias, bem como o menciona em ilusões funcionais (como no caso da presunção nacionalista enco
do dito humorístico dos três pês. Para olhos de hoje, enfim, a relação brindo o funcionamento do capital). O interesse dessa idéia "desuma
mais significativa com a realidade é a que resulta da constelação pro na" e puramente relacional de configuração artística, cheia de implica
blemática, interna ao livro, entre o movimento da acumulação e um ções material istas e desab usadas, não está na harmonia, mas na
complexo de ideologias e formas da época, passavelmente grossas. dissonância reveladora, cuja verdade histórica é tarefa da interpretação
Assim, o crítico nos mostra que umromance tão real como O cortiço é evidenciar. Por fim, trata-se de uma forma de formas, um complexo
arquitetado, entre outros elementos, com um modelo narrativo estran altamente heterogêneo de experiências literariamente transpostas,
geiro, teorias científicas duvidosas, uma intuição da nova dinâmica sobre o qual o romancista trabalha. Valea pena insistir nessa diversida
econômica, projeções dopreconceito, umponto devista de classe taca deinterna - mal-amanhada doponto devista intelectual- porque ela
nho. Tomados em simesmos, os diferentes momentos de mimese dife dáuma idéiajusta da arte realista, àsvezes imaginada segundo o mode
rem muito quanto ao valor,e vão do brilhante ao lamentável. Mas mes loda supressão ilusória do sujeito nos automatismos da fotografia, das
mo estes últimos têm interesse, uma vez revirados pela corrente geral, anotações de campo, da prosa escorreita, da informação científica, da
e possivelmente as exper iências mais agudas e esclarecidas que o ausência de composição. Ora, o ensaio nos mostra a força literária de O
romance hoje possa propiciar venham por conta de suas expressões cortiço ligada essencialmente a efeitos disfuncionais de sua arquitetu
mais racistas. Noutras palavras, a mimese pode ter valor crítico, pode rae de seu enfoque narrativo, os quais por outra parte, sem serem visa
alinhar-se com o obscurantismo, e pode inclusive ter efeito crítico gra- dos, naturalmente foram buscados pelo escritor, que achou que o livro

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5/17/2018 Schwarz,
as si m e st ava bom. Ain da a qui es ta mo Roberto
s n a tr adi ção ma rxi st a,-Sequencias
da a ssi m Brasileiras [Livro
cussões Completo]
literárias, originais pela -slidepdf.com
conjunção crítica inédita que armaram,
c hamada "vi tó ri a do re ali smo" , que re conhe ce ao t ra bal ho de conf igu  onde análise artística, descoberta e tomada de consciência histórica vão
r açã o roman esca a f orç a c apaz de le var a mel hor s obre as co ncep ções de mão s dadas , na t ri lha , nat ur almen te, da pe cul iar id ade e sté ti ca, ma s
atrasadas ou limitadas de um autor e - por que não? - de umpaís. também moral, ideológica e política, de uma vasta experiência social em
Sem pre juí zo da e xis tên cia de f ul ano ou be lt ran o, a fi gura l ate nte
andamento. De outro ângulo, com vistas ainda no interesse que têm essas
atrás da frase dos três pês e do enfoque do romance é uma construção
dis cus sões , not e-s e que a l oca li zaçã o e o exa me do fund ament o pr át ico
abs tr at a, co m lug ar angu lar na o rgan iza ção so cia l do p aís em u m de seus
deuma forma permitem falar deobra e realidade uma em termos da outra.

emomentos. A generalidade
nesse sentido se pode dizere aforça explicativado
que a chave que abriuesquema
o romancelhefoi
vêm daí,
a des O lastro de realidade pertinente como que endossa a consistência do tra
balho artístico, alé m de empr est ar à expl ora ção e p aráf ra se da lógi ca
cobe rt a do di agr ama d e cl ass es a prop ri ado. O a ndament o da int ri ga vai
interna das obras um estatuto literário especial. Faz qu e a pr osa cr ít ic a
expor os impasses e as contradições daquela posição, que animam o
se beneficie da ressonância real que a radicalização sob todos os aspec
livro e não deixam também de existir fora dele, guardadas asdiferenças.
Foi visto o desempenho inglório em que a "prosápia dos filhos da t os, q ue é um i mper ati vo da i nt ensi fi ca ção es tét ic a, pos sa te r. As vá ri as

terra" encontra a sua verdade, uma vez levado em conta o curso específi passagens que citamos podem ilustrar esse ponto.
co da acumulação da riqueza. Vejamos outras revelações semelhantes, Com propósito apenas indicativo, a parte final do ensaio aproxima
que fazem parte do rendimento literário do livro nessa interpretação. As O cortiço de L'Assommoir e de Memóri as de um s arge nto de mi líci as ,
teorias naturalistas, por exemplo, mostram um regime de funcionamen obras que o Autor estudou no mesmo período. 12 O confronto cria um
to também sui generis, esclarecedor para a história intelectual do país. e spaç o d e di fe renç as poder osa me nte sug est iv as, e ntr e, por exempl o, o

Elas são ideológicas ao encobrir as necessidades do capital com catego significado sobretudo social da pobreza em Zola (Naturalismo europeu)
rias raciais, ou quando justificam "cientificamente" a situação inferior de e seu significado mais alegórico-nacional em Aluísio (Naturalismo bra
negr os e mu lat os , mas ai nda ass im tê m o méri to , para o Brasil, de trazer si lei ro ); o u ent re a d ial ét ic a de or dem e de sor dem num un ive rso qu ase
a nossa recalcada questão racial ao primeiro plano da discussão, além de sem trabalho, como é o caso no Sargento de núlícias, e a dialética do
integrarem uma situação teórico-moral complicada, acentuando
e spon tân eo e do di ri gido num mu ndo comand ado por luc ro, t rab alh o e
a ambigüidade do intelectual brasileiro queaceitava e rejeitava a suater c ompet içã o, c omo é o cas o n' O cortiço. Antes de entrarem em compara
ra, dela se orgulhava e se envergonhava, nela confiava e dela desespera ção, estes termos foram especificados com rigor pelas estruturas literá
va,oscilando entre o otimismo idiota das visões oficiais e o sombrio pes rias epela história deque fazem parte, de sorte que a sua aproximação não
simismo devido à consciência do atraso. Sobeste aspecto o Naturalismo
coloca em presença traços isolados, mas universos complexos e inteiros.
foi um momento exemplar, porque viveu a contradição entre a grandilo
Naturalmente não cabe aqui adivinhar um livro em preparação, mas
qüência das aspirações liberais e o fatalismo das teorias então recentes e

triunfantes, com base aparentemente científica, que pareciam dar um par ece c lar o que e sse s ens aio s, ao me smo t empo q ue ind ivi dual izam a o
cunho de inexorável inferioridade às nossas diferenças com relação às máxi mo os seu s obj et os d e an áli se , t êm a id éia d e os c olo car em cons te 
culturas matrizes."
lação solta, de forma a sugerir perspectivas no espaço heterogêneo cor
respondente. Digamos que o autor procura a maneira literária de praticar
Não vamos resumir outros deslocamentos e redimensionamentos de
a arte tão interessante, e em geral arbitrária, de comparar experiências ou
mesmo tipo operados pelo ensaio, dizendo respeito às inflexões mais ou
menos nacionais adquiridas no livro pelo sexo, pela natureza, pela alego
r ia . Para nos so p ropó sit o, bas ta i ndi car o int er ess e pal páv el des sa s di s- (1 2) Ve r, d o Au to r, "D eg ra da çã o d o e sp aç o ( es tu do s ob re a c or re la çã o f un ci on al
d os a mb ie nt es , d as c oi sa s e d os c om po rt am en to s e m L'Assommoir)", Revista de Letras,
v oI. 1 4, Fa cu ld ad e d e F il oso fi a, C iê nc ia s e Le tra s d e A ss is, 1 97 2; e "D ia lé ti ca d a m al an 
(1 1) O p. c it ., p . 1 39 .
dragem", Revista doInstituto de Estudos Brasileiros, 8 , Sã o Pa ul o, 1 97 0.

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aspectos nacionais. Noutras palavras, Roberto
trata-se de -Sequencias
um comparatismo que Brasileiras
ve ri fi[Livro
caç ão e iCompleto]
luminaçã o re cí-proc
slidepdf.com
a, os p ont os al tos d a r adi cal iza ção
permite problematizar e sopesar o país no contexto da sua atualidade. ar tí st ica e os des dobr ament os d o ca pit al , da lu ta de cl ass es e d a ord em
13

Nada mais contrário ao espírito de Antonio Candido que transfor burguesa, tendo como interlocutor de fundo a obra de Marx. Ora, a
mar o seu ensaio em receita. Contudo, trata-se de um trabalho muito si tu ação é di ver sa e ntr e nó s, onde e xis te uma co nsi der ável l it era tur a de
meditado, cujos passos têm a exemplaridade dos procedimentos que ima gin ação fun cio nando há ma is de um séc ulo, enfr onha da no espe cí
der am cer to. Cui demos ent ão de fi ca r com al gumas de suas sug est ões . f ic o e pr obl emát ico das r el açõe s soc iai s do paí s, mas s em c ont rapa rt i
A começar pelos parágrafos de reflexão prévia, onde os emprésti da conceitual de densidade equivalente à e sque rda. Daí o car át er di s

mos formais são considerados à luz ta nto da s oci edade de or ig em como creta mas resolutamente pioneiro dos ensaios de Antonio Candido,
da nossa. Esta espécie de verificação preliminar de formas e categorias obrigado a prover ele mesmo a história, a sociologia e a psicologia
pela experiência disponível faz parte das tarefas elementares do espíri social necessárias à plenitude de suas observações no plano formal.
to crítico seja onde for. Num país como o Brasil entretanto ela é mais
indispensável- e produtiva - porque as diferenças que o distinguem
da s s oci eda des qu e l he s erve m de pad rão di fi ci lment e de ixa m de p esa r.
Nem por isso aquela verificação é um cuidado corrente, pois o desejo
de coincidir sem ressalvas vexatórias com a vida cultural dos países
adiantados está entre as nossas aspirações mais caras.
Uma vez determinadas a forma e sua contraparte prática, vale a
pe na um exame e m se par ado de ssa úl ti ma, me smo qu e bre ve. Is to par a
que fique bem consubstanciada a sua peculiaridade, ou, ainda, para que
a d is tân cia q ue nos se par a das soc ied ades can ôni cas não apar eça como
re sul ta do d a i di oss inc ras ia de p ers onag ens ou d e um es cri tor com i ma
ginação desviada. Com efeito, a quem haveria de Ocorrer que "brasilei
ro nat o" ou "b ras il ei ro l iv re e br anco ", noçõe s c om vo caçã o de op ere
ta , fo sse m cat egor ia s par a l eva r a sé ri o?

O es sen cia l do t rab alh o nat ur almen te t em de es ta r na ex plo raç ão


e no coment ár io do mov iment o pr ópri o à f orma, com pr efe rên cia p ara
as suas conseqüências menos óbvias, ou as suas verdades mais sur
pre ende nte s, des de q ue d emonst rá vei s. No cont ext o b ras il ei ro, po bre
em reflexão crítica sobre a sociedade, o rendimento extraliterário dessa
pot ênci a d e r evel açã o d as f ormas o fer ece c ampo e te m opor tu nida de
excepcional. Nesse ponto é interessante a comparação com o ensaísmo
de esq uer da n a Europ a. A s it uaçã o des te f oi det er mi nad a de modo de ci 
si vo pe la pre senç a de uma t eor ia soci al av ança da, vig oro sament e an a
l ít ica e cr ít ic a. Bo a pa rt e do seu t rab alh o c onsi st iu em ent ret ece r, par a

( 13) Cf. A ntonio Candido, O d iscu rso e a cid ad e (São Paulo, Duas Cidades,
1993), em cuja primeira parte agora estão reunidos os três estudos mencionados, mais
"O mundo-provérbio", sobre I Malavoglia, de Giovanni Verga.

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5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras[Livro
ombros Completo]
de escrit or es que, ao -slidepdf.com
menos em part e, eram bast ante medíocres,
mas cuj a obr a havia contri buído na tr ansposi ção l iterária da exper iên
cia do país .
Sirva dei lustr ação a mudança na fi gura de Cláudio M anoel da Cos
ta ao passar de um crítico ao outro. À maneira r omântica, Verí ss imo o

OS SETE FÔLEGOS DE UM LIVRO consi derava como um t ímido precursor do senti ment o brasi leir o, sem a
força - ainda - da cor local. J áAntonio Candido vai valorizá-lo como

o poeta que, beneficiado pelo convencionalismo generalizante do


padrão neoclássico, pôde estilizar com admirável universalidade o
tema-chave das duas fidelidades do letrado brasileiro, tão apegado àrus
ticidad e da vid a loca l qu anto à norma cu lta d o Oc ide nte . A força parti
cu lariz ante no c aso - a c apacidad e d e config ura r este conflito históri
Os livros que se tornam clássic os de ime dia to, co mo foi o c aso da c o - dec orreu d o universalismo da escola p oética , a o contrá rio do que
Formação da literatura brasileira, publi cada em 1959, às vezes pagam supunha a vis ão românti ca, que aí s ó enxergava fr aqueza e f al ta de pecu
por isso, fica ndo sem o deba te que lhes de via corresp onder. Pa ssa dos liaridade. Assim, a valorização crítica do que é historicamente específi
quarenta anos, a idéia central de Antonio Candido mal começou a ser c o, e nsinada pelo ro ma ntismo, é co nservad a; a o passo que a c onden a
discutida.
ção romântica do registro neoclássico é questionada.
O livro vinha ap oia do em su periorida des p alp áveis, que se imp u O intere sse da vira-v olta, com se u claro ac réscimo em d iscern i
seram em bloco e empurraram para a sombra os detalhes. A erudição men to, que de ixa pa ra trás o pitoresqu ismo na cio nalista se m abrir mã o
segura, a atual ização t eórica, a pesquis a vol umos a, a exposi ção equil i da particularidade da experiência local, dispensa comentários. Os
brada e e leg ante, o juíz o de go sto bem a rgumen tad o, tudo isso e stava macha dia nos estarão reco nhece ndo uma v ariante do famoso "senti
numa escala inédita e ntre nó s. Se ja d ito e ntre parêntese s que a passa mento ín timo " d o t emp o e do pa ís, "diverso e melhor do que se fora ap e
gem do tempo nã o tornou me nos desejáveis estas qua lidade s. Entre  nas superficial". Para o que nos importa aqui, é uma instância entre
tanto, há t ambém os out ros aspectos, mais dif íceis de notar e igualmen muita s da p rodu tividade ligad a à verifica ção crítica da tradição, que
te valiosos.
a liás é outro n ome para o va lor intelectual do processo formativo estu
A título de exemplo, vale a pena estudar as relações do crítico e dado por Antonio Candido.
historia dor c om seu s pre dece sso res. Nada mais e ducativo que ver em Como estou querendo sugerir a fecundidade dess a li nha de t raba
conjunt o os capítulos deJ os é Verí ss imo s obre oArcadismo, na História l ho, vamos t omar para contraste o procedi ment o uni versit ár io comum.
da literatura brasileira, e os de Antonio Candido, na Formação: o lei Nest e, os fatos da l it er atura l ocal s ão apanhados sem mai or disciplina
tor notará que as observações do primeiro são retomadas uma a uma hist óri ca e revis tos ou enquadrados pel os pontos de vis ta presti gi osos
pelo segundo, formul adas com mai or amplit ude ou equilí bri o, combi  do momento, tomados à teoria crítica internacional e a seus pacotes
n adas a informaçõ es nova s, c orrigi da s pelo ponto de vista atual, mas conceituais . O chão s ocial coti diano e ext ra-uni versi tário da elabora
sempre aproveitadas. ção i nt el ectual , pautado por suas contradições específ icas, é subst it uí 
A relação de continuidade, adensamento ou superação é constan do pel o si stema de categorias elaborado nos programas de pós- gradua
te, ao pon to de se torna r uma forç a produtiv a delibera da, u ma técnica çã o, na ma ior parte norte -americ anos, co m brecha s para france ses,
de tra balho. Lembra o que o próp rio An ton io Candido no tou a respeito alemães e ingleses. O uni versali smo infuso da Teori a Lit erári a, que em
de Machado de Assis, que teve a capacidade de utilizar e aprofundar a par te nem decorre del a, mas da sua adoção acrí ti ca nes tas e noutras pla
elaboração dos romancistas que o precederam, crescendo sobre os gas, ca ncela a con struçã o intele ctual da ex periênc ia histó rica em cur-

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so. Desaparecem, ou ficam em plano irrelevante, o juízo crítico pro nais[Livro
Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras nahistoriografia literária.
Completo] Anovidade tinha a ver com o clima inte
-slidepdf.com
priamente dito e o processo efetivo de acumulação literária e social a lectual da Universidade de São Paulo dos anos 40 e 50, quando houve
queas obras responderam. Não custa insistir que estas minhas observa em algumas áreas da Faculdade de Filos ofia um esforço coletivo e
ções não são ditadas pelo chauvinismo, mas pela atenção às conse memorável de exigência científica e de reflexão. Sem prejuízo da pes
qüências acarretadas pelos diferentes recortes do objeto. quisa, os trabalhos deviam ser comandados por problemas, a que
Pois bem, o conselho que sepode tirar da abordagem deAntonio deviam a relevância.
Candido - que não foi concebida em vista desta polêmica - aponta Como diz o título do livro, trata-se de historiar nos seus momen-
para uma colocação diferente dos acentos. Digamos que a operação tos decisivos a formação de uma literatura nacional. Este último adje
todaé comandada pelojuízo degos to - que não s eomite -, s ituado e tivo é bom para datar a matéria estudada, em que a literatura brasileira
inspirado na vida presente, mas justificado com argumentos estrutu está em sentido histórico, e não geográfico e anacrônico. Por motivos
rais, historicamente informados, em que ele se socializa. Os conceitos que merecem análise, nós brasileiros gostamos de nos contrapor aos
das gerações anteriores, tanto os que o tempo sustentou quanto os pro portugueses, mas não ao legado colonial. Assim, temos o costume de
vincianos e fora de esquadro, fazem parte dessa informação histórica, considerar parte direta da nação tudo o que tenha ocorrido no território.
e são levados em conta, de sorte que a sua aferição crítica, àluz daexpe Daí que, forçando um pouco, osíndios pré-cabralinos, José deAnchie
riência e das teorizações contemporâneas, tem a feição (e a força) de ta, Cunhambebe, Zumbi, Gregório de Matos e o padre Vieira figurem
uma auto-superação que excede o indivíduo e sedá no âmbito dahistó como nossos concidadãos, numa pseudoproximidade que engana.
ria. Em vez do enquadramento da experiência local pelas teorias inter Num livro recente, Fernando Novais aponta o anacronismo embutido
nacionais, com o que ele implica de abdicação, unilateralidade, vida em expressões como "Brasil Colônia" ou "período colonial da história
do Brasil", àsquais prefere "América Portuguesa". "Pois não podemos
emudecida
tes, etc.,siassistimos
a qual por à relativização
só é um resultado crítico de esquemas ordem.
deprimeira universalizan
A inde fazer a história de um período como se osprotagonistas que a viveram
pendência no caso sedeve aodiscernimento formal e conceitual do crí s oubess em que a colônia iria s e constituir no s éculo dezenove num
tico, mas também expressa algo de um momento nacional favorável, estado nacional", diz o autor.2 Cada um a seu modo, Gregório e Vieira
em que a experiência feita no país, bem como apesquisa de sua consis são grandes figuras do sistema colonial, ou ainda, dociclo colonial por
tência interna, pareciam contar como um prisma relevante sobre ascoi tuguês. Será que ficam desconhecidos ou diminuídos por não terem
participado deum dinamismo que cinqüenta anos depois de sua morte
sas,um prisma que valia a pena objetivar e comunicar. O interesse pelo
passado sob o signo da atualidade, quer dizer, sem passadismo, havia mal começava a se esboçar?
sido firmado fazia duas décadas por Mário deAndrade. Para o moder Adivinhando a Formação da literatura brasileira pelo sumário,
nista, a tarefa nacional e a nossa função "para com a humanidade" con poderíamos pensar num estudo sobre os momentos arcádico e român
tico no Brasil, com um capítulo de ligação sobre as Luzes. Estaria per
sistiam em tradicionalizar o passado, "isto é,referi-Io ao presente". O 1

dido o essencial da contribuição deAntonio Candido, que consistiu em


sentido antitradicional em que usa a palavra tradição indica as carên ver aqueles momentos - esteticamente antagônicos - sob o signo
cias dopaís novo, denotando o ímpeto de criarjuntamente a tradição e
a liberdade em relação a ela. unificador da independência nacional em processo, compondo um
objeto com questões específicas. Em termos de estilo, nada mais opos
Em seu momento inicial, digamos que a concepção rigorosa do
toao Arcadismo doque o Romantismo. Um é explicitamente universa
objeto, com lógica interna e delimitação bem argumentada, opunha a
lista e convencional- bas ta lem brar os seus pastores -, enquanto o
Formação aos repertórios e panoramas algo informes que são tradicio-

(2) F erna ndo A. Novais, "Condiç õe s da priva cida de na Colônia ", in Laura de
(1) Mário deAndrade, "Assim falou o papa dofuturismo" (1925), inTelêAncona Mello e Souza (org.), História da vida privada no Brasil, vaI. I, SãoPaulo, Companhia
Lopez (arg.), Entrevistas e depoimentos, São Paulo, T.A.Queiroz, 1983, p. 18-9. das Letras, 1997,p. 17.

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out ro visa o máxi mo de indi viduali zação. Não obs tante, i mpregnados dessa[Livro
combinação a pedra de toque da compreensão do mundo pela
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras Completo] -slidepdf.com
de patri oti smo il ustr ado em dose variável, os dois movi ment os s ei nte esquerda.
graram à gravitação da independência nacional, à tarefa de criar um Voltando à est rutura da Formação da literatura brasileira, veja
país que participasse da cultura comum do Ocidente e que guardasse mos algumas objeções que ela suscitou, as quais são outras tantas
fisionomia própria. A continuidade do movimento foi uma tese dos maneiras de tornar visível o seu perfil. Aos nacionalistas, convencidos
pr óprios românti cos, que viam alguns árcades como predecessores, em de que o Brasi l começou no dia do descobri mento ou antes, o l ivro par e
especial os que haviam cantado o índio. Nesse se ntido, trata-se de um ce pouco pat ri ótico, poi s entr ega de mão beij ada aos port ugueses vári as
processo com unidade real, inclusive do ponto de vista da auto com das grandes figur as que viveram nessas par agens, como o padre Vi eir a
preensão de seus me mbros, que tinham em comum alguma coisa da ati e Gregório de Matos. Já comentamos o anacronis mo. O argument o rea
tude empenhada e construtiva da Ilustração. parece com o poeta e crítico Haroldo de Campos, que considera o livro
Contudo, sublinhar essa unidade, no caso, é só o primeiro passo. um "seqüestro do barroco", sempre por não tratar de Gregório.3 O
O essencial é descrever a sua articulação interna, ou seja, a complemen recorte seqüe stra dor seria expressão das preferências românticas de
taridade funcional dos momentos e a regra de seu movimento, além do Antonio Candido e de sua antipatia por tudo o q ue tenha a v er com Gôn
sistema de paradoxos e de ilusões que lhe corresponde. Noutras pala gora. Também aqui o anacr onismo dispensa coment ários. Não ocorreu
vras, a formação da li teratura brasil eir a é identifi cada como uma estru a Haroldo que a ausência do grande baiano se pudesse ligar à natureza
t ura histórica em senti do própri o, ali ás de grandes dimensões, com atri  do tema tratado, ou, por outra, que a formação da lite ratura nacional
butos e dinamismos específicos, a pesquisar e estudar dentro de sua s eja um processo part icular, com realidade e del imit ação própri as, cujo
lógica. Por exemplo, a identificação do caráter peculiarmente interes- âmbito não é o mesmo da hist óri a do territ ório ou da lí ngua, nem da li te
ratura escrit a "no Brasil" , para l embrar a s olução dada ao probl ema por
sado ou empenhado dessa literatura - caráter implica do na naturez a Afrânio Coutinho. Os ciclos históricos existem ou não existem. Não
patriótica e programática do processo da f ormação nacional t ardia
é u ma desc oberta de peso, cheia de alcance para a compreensão da vida cust a acrescentar que a força de Gôngora é um pressuposto explícito da
intelectual brasileira, e provavelmente das outras comparáveis, saídas, Formação, onde forma um contraste definidor com a imagem de tipo
como a nossa, de condições coloniais. Outra lei de movimento é a alter neoclássico. O que por outro lado não impede o livro de comentar os
monstrengos do barroco administrativo, tão funcionais nas circunstân
nância dos impul sos uni versalis tas e localist as, que t em como quadro
inicial a sucessão cronológica dos padrões neocl ássi co e r omânti co, cias da colonização.
mas cuja razã o de ser profunda é outra, ligada às nec essidades de afir Noutr o passo, Haroldo de Campos supõe que o autor, porque estu
dou uma formação nacional, é nacionalista, obedece ndo a "um ideal
mação de uma lite ratura nacional, a que os dois a spectos são necessá
metafís ico de enti ficação do nacional" .4 Por is so mesmo, s eria prisi o
rios, motivo pelo qual depois seguiram se alternando, já sem muito a
neiro das il usões da origem e da evolução linear, que segundo a filoso
ver com a matr iz inicial da oposição. Ess a feição est rutural-histórica do
livro não foi notada, porque o autor não fez praça dela. Talvez o fia de J acques Derri da acompanham a posi ção mencionada. Ora, a des 
peito da autoridade do filósofo, nada mais distante da realidade, pois
momento s eja bom para lembrar que Antoni o Candido é seguramente,
Antonio Candido per tence à geração univer sit ári a que notoriament e
e de longe, o mais est rutural entre os crít icos brasi leiros, s e ent ender
cri ti cou o nacionalismo e s eus mitos, dando uma explicação materia
mos o termo em acepção exigente, para além dos cacoetes terminoló
lis ta e sóbri a da formação nacional, alheia à pat riotada. J á quanto à t ese
gicos. Para dar idéia da posição avançada do livro, note-se ainda que a
de que ele cultive a metafísica da nacionalidade, só aplaudindo de pé o
combinação de estrutura e história - ou seja, a pesquisa da historici
dade entr anhada nas estruturas, bem como da discipli na estrutural dos
(3) Haroldo de Campos, O seqüestro do barroco na/armação da literatura bra-
andamentos históricos - estava no foco do de bate teórico da época. A sileira: o caso Gregório de Mattos, Sa lv ad or, Fu nd aç ão C as a d e J or ge A ma do , 1 98 9.
Crítica da razão dialética, de Sa rtre, publicada pouco depois, fazia ( 4) Op. cit., p . 1 2.

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dis parate. Para consolidá-Ia, Haroldo cata e força as expressões do tex li sou cri ti camente os preconceit os da perspectiva que, por out ro lado,
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to, de modo a mudar a Formação numa epopéia doL ogos e do Ser em j ulgou interessante tomar. Di gamos que ele, socialis ta e i nternaciona
busca de seu novo habitáculo em terras americanas.5 Depois de fazer lista, amigo da liberdade das artes, além de nascido cem anos mais
de Antonio Candido um misto brasileiro de Hegel e Heidegger- o que tarde, encara com simpatia o emp enho pa triótico e formad or daque la
é um erro de pessoa dos mais extravagantes - fica fácil apontá-Io geração, c uja força e pertinência reconhece , sem lhe desconhecer as
como ideólogo do Brasil metafísico. No c aso, se ve jo bem, a boa críti li mi tações . Por um lado, enquanto tarefa, consider a que a etapa da f or
ca entraria pelo rumo c ontrário e d esconstruiria as generalidades de mação está concluída e que se u prismajá não tem razão d e ser: a lite ra
Derrida - tão estéreis do ponto de vista do conhecimento - à luz de tura brasileira existe e a rarefação da vida colonial foi vencida. Não
uma problemática efetiva. obst ante, em out ro âmbit o, a f ormação do país i ndependent e e integra
Quanto à li neari dade do esquema, o própr io da análise est rutural do não se completou, e é certo que algo do déficit se transmitiu e se
praticada no li vro é j ustament e a exposição articulada, oposta à l inha tr ansmit e à esf era li terária, onde a falt a de organicidade, se f oi supera
evolutiva simples. Assi m, por exemplo, a busca românti ca da diferen da em cert o s enti do, em out ro conti nua viva. Est a posição distanciada,
ciação nacional aparece como fr eqüentement e i nócua, além de fil iada mas nã o por comple to, qu e de fato existe no livro em relação ao movi
às expectati vas eur opéias de pitoresco. Ao passo que o univer sali smo mento da formação, representa um modo real e apropriado de cons
arcádico aparece como capaz de confi gurar si ngularidades e perplexi  ciência hist óri ca. Com estas observações ent ramos par a o signi fi cado
dades hist óricas de manei ra superi or. Onde a vis ão l inear? contemporâneo da idéia da Formação.
Outros considera m que a co mbin ação de categorias de história Voltando atrás, em que consiste então o processo formativo? Usan
literária e de história política - Arcadismo, Romantismo e Inde do os termos do aut or, t rata-se da consti tuição progressiva de um s ist e

pendência - significa desconhecimento da autonomia da esfera esté ma l it erári o, composto de autores, obras e públicos i nterli gados, i deal
tica, ou, no caso, da periodização estilística (tese de Afrânio Coutinho), mente na escala da própria naç ão, a qual também vai se constituindo no
representando a recaída em posições ultrapassadas. Ora, a combinação processo. O adensamento da r eferência mútua, em l uta contr a a rarefa
dos âmbitos não decorre aqui de uma opção de método, da preferência ção e as segregações col oniais, era sent ido como part icipação na tarefa
por uma mane ira ou outra de análise, mas da descoberta de uma estru de construção cultural da pátria. A dimensão civilizatória desse esforço
t ura e de um movi ment o reais, cuj as arti culações, s umamente i nteres integrador - que busca superar a nossa "inorganicidade", para falar
santes, se devem estudar e não negar - a não ser, naturalmente, que se como Caio Prado Ir. - é patente. A t arefa se completa quando, por um
trate de demonstrar a sua ine xistência , o que seria legítimo (e ta lvez lado, o conjunto da v ida nacional estiver incorporado, e quando, por
dif ícil) . Sej a dito ent re parênt eses que a li gação refletida ent re análi se outro, a cul tura contemporânea esti ver assi mi lada em formas e temas.
est éti ca e análise hist óri co-soci al representou, e represent a, um passo à Do ponto de vista literário, a repolarização nacional do imaginário tem
frente substantivo, vistas as dificuldades teóricas levadas em conta e o seu moment o bom quando entr am em espelhament o mútuo e ver if ica
vencidas . Não vejo onde pos sa haver conformis mo nesse empreendi  dor as r el ações própri as ao país , já adensadas, e um complexo r elevant e
mento, comprometi do com a crí tica das formas art íst icas e t ambém das de idéias e formas modernas. O val or da desalienação cul tural e his tóri 
estruturas sociais.
ca i mplicada em movimentos dess a ordem é claro.
Uma vez que Antonio Candido explicou, no prefá cio, haver ado Vemos aqui uma das dimensões fort es do processo formati vo, que
tado em seu livro o ângulo dos primeiros româ ntic os, era quase ine vi torna literário, ou seja, traz para dentro da imaginação, o conjunto das
tável que alguém a ssinalasse o atraso ou a parcialidade de seu ponto de f ormas sociais que organizam o t erri tório. Uma vez i nteri ori zadas pela
vista. Contudo, como notamos a propósito do Arcadismo, o autor a na- literatura , estas passam a ser objeto passível de figuraçã o crítica e de
discussão. É esclarecedor a respeit o o bloco que t rata da ficção român
(5)Op. cit., pp. 12-5. tica, no segundo volume da Formação da literatura brasileira, onde

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Antonio Candido assinala a vocação extensiva de nosso romance. De do país. Ou seja, enquanto as decisões básicas que nos dizem respeito
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certo modo, este cumpria o papel que hoje cabe aos estudos sociais, forem tomadas no estrangeiro, a nação continua incompleta. Como
num movimento de ampliação que só se aquieta depois de recobrir o para os outros dois, a conclusão do processo encontra-se no futuro, que
país no seu todo. A expansão, no sentido da abrangência, se completa pareceu próximo à geração do autor, e agora parece remoto, como indi
com o fim do Romantismo, mais ou menos por volta de 1870, quando ca o título de um dos últimos livros dele mesmo: Brasil: a construção
começa a exploração em profundidade empreendida por Machado de interrompida (1992).
Assis. Como Antonio Candido também explicou, esse romancista Dei a vocês três exemplos em que o ponto de chegada da forma
soube aproveitar de maneira consistente os acertos de seus predecesso
res, ao mesmo tempo que lhes evitava as estreitezas, o que permitiu _ ção ainda
uma viradaestá por ser para
decisiva alcançado, quando então
a vida nacional. haverá -para
O caminho ou chegar
haverialá é
sem exclusão de outros fatores - que criasse ap rimeira grande obra da da ordem mais ou menos de uma revolução, ainda que não seja o mes
literatura brasileira do século XIX, e a primeira que de fato conta para a mo para cada um dos autores. Ora, a formação da literatura nos termos
cultura moderna. Temos aqui um quase-protótipo do movimento for de Antonio Candido difere bastante dessas construções, com as quais
mativo, com as suas estações sem grande valor literário, que entretanto no entanto se aparenta. Primeira diferença, ela pôde se completar no
permitem uma acumulação que em seguida faculta a vira-volta crítica e passado, mais ou menos àv olta de 1870, antes da abolição da escrava-
o surgimento de um grande escritor, capaz de transmutar a elaboração tura. Digamos então que elajá está concluída no momento em que o
local e precária em valor contemporâneo. Nesses termos, Machado de Autor a expõe, ou por outra, que ele não escreve com o propósito mili
Assis é um ponto de fuga e de chegada do movimento de formação da tante de levá-Ia a bom termo. Segunda diferença, ao se completar ela
literatura brasileira. Ao possibilitar a sua obra, despida de provincianis não marcou uma transformação fundamental do país. Ou ainda, foi
mo
no, eseria
debilidades, o processo
este o esquema mostrava da
da formação estar concluído.
literatura - Salvo
brasileira enga
segundo possível que o sistema literário do país se formasse sem que a escravi
dão - a principal das heranças coloniais - estivesse aboli da.
Antonio Candido.
O quadro se presta a reflexões sobre as liberdades e vinculações
Quando o livro saiu, alinhou-se entre várias obras de perspectiva complicadas da literatura, a qual pode atingir organicidade sem que
paralela e comparável, que buscaram acompanhar a formação do país ocorra o mesmo com a sociedade a que ela corresponde. Vemos no livro
em outros níveis. No campo progressista, os congêneres mais impor de Antonio Candido que a elite brasileira, na sua parte interessada em
tantes e conhecidos eram os livros de Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de letras, pôde alcançar um grau considerável de organização mental, a
Holanda e Celso Furtado. A comparação entre estas obras ainda está ponto de produzir obras-primas, sem que isso signifique que a socieda
engatinhando, à espera de trabalhos de síntese. Muito sumariamente de da qual esta mesma elite seb eneficia chegue a um grau de civilida
quero sugerir alguns contrastes. Para Caio Prado Jr., a formação brasi de apreciável. Nesse sentido, trata-se de uma descrição do progresso à
leira secompletaria no momento em que fosse superada a nossa heran brasileira, com acumulação muito considerável no plano da elite, e sem
ça de inorganicidade social- o oposto da interligação com objetivos maior transformação das iniqüidades coloniais. Com a distância no
internos - trazida da Colônia. Este momento alto estaria, ou esteve, no tempo, pode-se também dizer que essa visão do acontecido, apresenta
futuro. Se passarmos a Sérgio Buarque de Holanda, encontraremos da por Antonio Candido, resultou mais sóbria e realista que a dos outros
algo análogo. O país será moderno e estará formado quando superar a autores de que falamos. É como se nos dissesse que de fato ocorreu um
sua herança portuguesa, rural e autoritária, quando então teríamos um processo formativo no Brasil e que houve esferas - no caso, a literária
país democrático. Também aqui o ponto de chegada está mais adiante, - que se completaram de modo muitas vezes até admirável, sem que
na dependência das decisões do presente. Celso Furtado, por seu turno, por isso o conjunto esteja em vias de seintegrar. O esforço de formação
dirá que a nação não se completa enquanto as alavancas do comando, é menos salvador do que parecia, talvez porque a nação seja algo
principalmente as do comando econômico, não passarem para dentro menos coeso do que a palavra faz imaginar.

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Na altura em que Antonio Candido escre via, na década de 40 e 50, maneir a consist ente no movimento geral da modernização capit ali sta
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a sociedade brasileira lutava para se completar no plano econômico e está rele gada ao plano das fantasia s pias, não sen do mais assumida por
social. O impulso formati vo recebia o influxo materialista da industria ninguém. Por boa-fé, cet icismo ou cinismo, os gover nantes não escon
lização em curso e tinha como aspiração e eventual ponto de chegada o dem que nas c ircun stâncias a integração socia l não vai ocorrer. Vocês
paí s i ndustr ial, que se i ntegr a s ocialment e atr avés da reforma agr ária, dirão se me engano, mas tenho a impressã o de que tampouco a e squer
superando o atraso material e a posição subalterna no concerto das da está se comprometendo a sério com a hipótese de uma integração
nações. A vocação empenhada da intelectualidade, explicada no livro de acelerada da soci edade brasi leira. Nesse quadr o novo, como f ica a pró
Antoni o Candi do, vivia um moment o s ubstancioso. O nacionalismo
pri a idéia de formação? Vou s ó ali nhar algumas perspecti vas sumárias,
des envolviment is ta, que t inha como adversários inevitáveis o latif ún para sugerir questões e discussões possíveis.
dio e o imperia lismo, imprimia ao projeto de formação nacional uma Uma é de que ela, que é também um ideal, perdeu o sentido, des
dimensão dramática, de ruptura, que por momentos se avizinhava da qualificada pelo rumo da história. A nação não vai se formar, as suas
r uptura de classes e da r evolução soci ali sta. Poi s bem, ess e sent imento partes vão s e desli gar umas das outras, o setor "avançado" da soci eda
da relevância prática e histórica do processo de estruturação está presen de brasileira já se integrou à dinâmica mai s moderna da ordem i nterna
te naconcepção deAntoni o Candi do, onde entr etant o apeculiari dade do ciona l e deix ará cair o resto. Enfim, à v ista da nação que não vai se inte
objeto - a formação da literatura brasileira - faz ver as coisas e o seu grar, o própri o processo format ivo t erá si do uma mir agem que a bem do
curso em linha menos polarizada e triunfalista, ou mais cética. Digamos realismo é melhor abandonar. Entre o que prometia e o que cumpriu a
que os autores progr essi stas que hist ori avam a nossa formação econô distância é grande.
mica e s ocial mostravam um movimento repr esado, que não se comple Outra pers pecti va poss ível : suponhamos que a economia deixou

tara, e que transformaria o país se viesse a se completar. Ao passo que o de empurrar em direção da integração nacional e da formação de um
li vro que s oube per ceber o per curso efetivo da l it eratura nacional cons todo re lativamente auto-regulado e auto-suficiente (aliás, ela e stá
tatava um movimento que se completou e nem por isso transformou o empur rando em direção oposta). Se a press ão f or est a, a úni ca inst ância
Brasil. O sistema literário integrado funcionaria como uma antecipação que continua dizendo que isso aqui é um todo e que é p reciso lh e dar um
de integrações futuras? Não demonst rava t ambém que as elit es podiam futuro é a unidade cult ural que mal ou bem se formou historicamente,
ir longe, se m nece ssid ade de se fazere m acompanhar p elo restante do e que na litera tura se c ompletou. Nessa linha, a cultura formada, que
país? Se rão ritmo s desiguais, que nalgum mome nto convergirão para a lcançou uma certa o rganic idade, funciona como um antídoto para a
f ormar um uníss ono? São discrepâncias que fazem duvidar da hipótese tendência dissociadora da economia. Contudo vocês não deixem de
e até da necessidade - segundo o prisma - da convergência? Quais os not ar o i deal ismo dessa posição def ensiva. Toda pessoa com algum t ino
ensinamentos a tirar dessas constelações de resultados, que sintetizam materialista sab e que a economia está no comando e que o âmbito c ul
a experiência nacional e armam equações decisivas para o mundo c on tural sobr etudo acompanha. Entretant o, é preci so reconhecer que nos
temporâneo? Seja como for, sob o signo do desenvolvimentismo, os sa unidade cult ural mais ou menos reali zada é um elemento de anti bar
obst ácul os encontr ados pela indust ri ali zação e pel a reforma agrári a, bárie, na medida em que diz que aqui se formou um todo, e que esse
pelo cinema e pelo t eatro, pela alfabetização de adultos e pela r eforma t odo exi ste e faz parte interior de todos nós que nos ocupamos do assun
uni vers it ária pipocavam e remeti am uns aos out ros, sugeri ndo a noção to, e ta mbém de muitos outros q ue não se ocupam dele.
de uma única e vasta f ormação nacional em curso. Outra hipótese ainda: despregado de um projeto econômico
Che gando aos dias de hoje, pare ce razoável dizer que o projeto d e nacional, que dei xou de exi sti r em sentido fort e, o desejo de formação
completar a sociedade brasi leira não se ext inguiu, mas fi cou suspenso fica esvaziado e sem dinâmica própria. Entretanto, nem por isso ele
num clima de i mpot ênci a, ditado pel os constrangimentos da mundiali  dei xa de exis ti r, sendo um element o que pode ser util izado no mercado
zação. A expectativa de que nossa sociedade possa se reproduzir de das diferenças cult urais, e até do turismo. A formação nacional pode t er

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deixado de ser uma pers pectiva de r ealização substantiva, centrada
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n uma c erta a uto no mia p olí tic o-ec on ôm ic a, m as p od e n ão te r d eix ad o
de exis tir como feição h istórica e de ser talvez um trunfo comer cial em
toda linha, no âmbito da comercialização intern acional da cultura.
E nfim , a o d es li ga r-se d o p roc es so d e a uto -rea liz aç ão s oc ia l e e co nô mi
c a do país , que incluía taref as de re levância máxima para a humanida 
11
de, tais c omo a supe ração histórica das desigua ldades c oloniais, a for 
mação não deix a de se r mercador ia. E ela pode inclusive, no momento
p re se nte , e sta r te nd o u m g ra nd e fut uro n es se p la no .
Há também o ponto de vista propriamen te estético, inter essante e
d ifíc il d e formu la r. O utro d ia , u m a mig o fic ci on is ta e c rít ic o m e e xp li
c av a q ue o â mb it o forma ti v o p a ra e le já n ão ti nh a s en ti do . Os s eu s m od e
l os li te rá ri os l he v in ha m d e to da p arte : d a F ra nç a, d os E sta do s U nid os ,
d a A rg en tin a, a me smo tí tu lo q ue d o B ra sil . É natur al que s eja ass im, e é
bom que todos escolhamo s as inf luências à noss a man eira individual e
c om li be rd ad e, s em c on stran gi me nto c ol eti vo . N ão o bs ta nte , é v erda de
também que esse sentime nto de si e das coisas f az supor uma ordem de
liber dade e de c idadania do mu ndo, e s obretudo uma sociedade mun
d ia l, q ue n ão e xis te m. S e e m l ug ar d as i nflu ên cia s li te rá ri as , q ue d e fat o
estão como que à esc olha, pe nsarmos na linguagem que usamos , com
prometida - sob pena de pasteurização - com o tecido social da expe
riência, veremos que a mobilidade globalizada do ficc ionista pode ser
ilusória. A nova or dem mundial pr oduz as suas cisões própr ias , que se
a rt ic ula m c om a s a nti ga s e s e d e po sit am n a li ng ua ge m. De m od o m ud a
do, esta continua local, e a té s eg un da o rd em q ua li fi ca a s a sp iraç õe s d os
intelec tuais que gos tar iam de escr ever como se não foss em daqui - r es
ta nd o n atu ra lm en te d es co brir o q ue s ej a, a go ra , s er d aq ui.
N o m ome nt o, o s is te ma l it erário n ac io na l p arec e u m rep os it ório
de forças em desagregação. Não digo isso com saudosismo, mas em
e sp írito rea li sta . O s is te ma p as sa a fun ci on ar, o u p od e fun cio na r, c omo
algo r eal e construtivo na medida em que é um dos e spaços onde pode
mos s entir o que está se de compondo. A contemplação d a p erda de uma
f orça civilizatória não deixa de s er civilizatór ia a se u mod o. Dur ante
muito tempo tendemos a ver a i norganicida de, e a h ipó tese de sua s upe
ração, como um destino particular do Brasil. Agora ela e o naufrág io da
h ip óte se s up erad ora a pa re ce m c om o o d es tin o d a ma io r p arte d a h uma 
nidade contemporânea, não sendo, ness e sentido, uma experiência
secundária.

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DISCUTINDO COM ALFREDO BOSI

Ao acaso dos comentários, tenho a impressão deque o novo livro


de Bosi está causando um discreto escândalo. I Aliás, com todo o respei
to e muita amizade, devo dizer que aqui e ali também me escandalizou.
Como os assuntos tratados são diversos, era natural que não faltasse
ocasião para diferenças. Mas não são estas a causa daquela reação, que
se deve a algo mais geral. Com efeito, o crítico não é católico para uso

apenas
uma particular,
nota masao
inesperada também
debate,nas concepções eagnóstico.
habitualmente na escrita,Se
o que
não traz
me
engano, o incômodo é semelhante àquele causado por declarações
públicas de ateísmo, e, ultimamente, também de socialismo: por que
não guardar para si as convicções sobre assuntos tão privados como
Deus e a ordem social? Por outro lado, e lembrando o que somos, tal
vez fosse mais inteligente pensar que o estranhável, no caso, o indício
de alheamento, sejam os próprios escandalizados. Todos sabemos que
desde o começo dos anos 60 o movimento das pessoas inconformadas
com a desigualdade e a miséria na sociedade brasileira inclui um setor
de católicos. Estes adiante resistiram à ditadura, e hoje participam das
lutas pelo respeito aos Direitos Humanos, onde a sua atividade - à
qual às vezes se juntam grupos protestantes ejudeus - é vista com
naturalidade. Isso sem falar na suapresença junto aos pobres nas comu
nidades de base. Noutras palavras, a esquerdização do catolicismo
criou uma corrente político-moral nova, com valor CÍvicoprovado, e
motivos e desempenho próprios, opostos à religião conservadora de

(1) Alfredo Bosi, Dialética da colonização, São Paulo, Companhia das Letras,
1992. As indicações de página referem-se a essa edição.

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pr axe, e t ambém ao cl ima por assi m di zer dess ensi bil iza do de nossos t ic a. Not e-s e ai nda que a o menos desde Ni et zsche a a náli se c ontábi l do
5/17/2018 Schwarz, Roberto - Sequencias
di as. Não é de admirar ent ão que p or s ua vez e la ins pir e i nter pret ações Brasileiras
e ndivi[Livro
damento Completo]
dos homens com-slidepdf.com
o Senhor f az part e do arsen al da cr ít i
de conj unto da exper iênc ia naci onal . Ora , sen do ass im, como exp li car ca à religião, e não do aperfeiçoamento desta. Dom Casmurro, por
que as le it uras catól ic as d a hi stór ia e da c ult ura br asi lei ra cont in uem a e xempl o, enc ara o céu como um b anquei ro mi seri cor dioso , que sa berá
ser encaradas com pé atrás pelo público dito esclarecido, que entretan per doar os mil hare s de padre s-nos sos prometi dos mas não rez ados po r
to vibra com a atuação destacada - suponhamos - de um jurista cris Bent in ho. Escr evendo de pois de ssas de smi st if icaç ões, Bosi nat ural 
t ão na Comiss ão de Jus ti ça e Paz, ou com os pr onunci ame ntos ava nça mente não as desconhece, mas as acata em espírito diverso, fazendo
dos de um bispo? As novas afinidades, a nova química entre religião e delas um fator de decantação, que obriga a uma religiosidade mais
justiça social, bem consubstanciadas na experiência brasileira dos últi l impa, que t ran scenda os esq uemas da tr oca.
mos decênios, não se impuseram, nem sequer como problema, no O capí tul o s obre Anchi et a conv ida a obs ervaçõ es anál ogas. Aqui
âmbito das construções intelectuais mais exigentes - com prejuízo Bosi aponta a distância entre os autos catequéticos do missionário e a
para est as, que fi caram aqu ém d o que ocorr e de fat o. Longe de si gni fi lírica sacra do religioso. O espírito dos primeiros, destinados à conver
car a vit óri a da razão, que em al gum moment o p ode t er sid o, a a usênci a são do gentio, ou seja, à destruição de seu mundo, é manipulativo e
doprisma católico no debate político-cultural é uma fraqueza deste, um mani queí sta , c om muit o re curso a os pavo res do inf erno ; ao pas so q ue
si nal de r epre sent ati vida de pr ecár ia. Ne sse s enti do subs tanc ial - sem n a s egunda, onde o crent e est á entr e igu ais, domina a efu são mís ti ca, a
mencionar as contribuições do scholar - o livro de Bosi, para quem o re laçã o pes soal e l ivr e com um Deus humaniz ado. Bos i nota ai nda q ue
obscurantista-mor são as nossas elites, ascultas inclusive, deve ser sau os autos adaptam formas medievais, arcaico-populares, enquanto a
dado como um ve rdadei ro aco nteci me nto, que vem to rnar men os irr eal lírica depende de modos já modernos de devoção, o que sugere "a

a discussão. regressão da consciência culta européia quando absorvida pela práxis


A cer ta alt ura, a prop ósit o da poe sia s acra de Gr egóri o de Mat os, da conquista e da colonização" (p. 93). A desarmonia drástica detecta
Bosi observa o caráter calculista e retorcido das especulações do poeta da no interior da produção literária e também da pessoa de Anchieta
so bre a Graç a Divi na: Deus não dei xará que se perc a uma ovel ha tr ans compõe uma figura histórica de alto interesse, expressiva da enverga
via da, pois seri a mau negóci o para a Glóri a d' El e. Notáv eis pela acui  d ura das quest ões envol vida s n a col oniz ação, mui to longe das anedo
dade , as obj eções a ess as co ntas s ão fei tas do â ngulo de uma ex igênc ia tas piedosas sobre o apóstolo dos índios e os primeiros passos das letras
rel igi osa mais a lt a, de abandono e amor místi co. A cult ura cat óli ca do b rasi lei ra s. Dit o is so, obs erve- se t ambém aqui o peso que tev e n a def i
cr ít ico o ha bil it a a re conhecer mes quinha ria ( e v ida?) onde o lei to r le i nição e dramatização doproblema areligiosidade do crítico, para quem
go' s em i nt imidade com os mea ndros da devoç ão, só admira o enge nho o universalismo cristão é uma perspectiva real, de todos os momentos.
ret óri co. Por out ro la do, o r igor es pir it ual que permit iu ass inal ar com Assim, as astúcias bastante terroristas da evangelização, estudadas no
vantagem para o conhecimento um ingrediente especioso e muito t eat ro a nchie tano, não s ão con denadas com di stâ ncia, sécu los depois e
expl ic ati vo da poes ia de Gre góri o é o mesmo que lev a a consi derá -Ia levado em conta o curso das coisas, mas no seu presente, à luz das
como inferior, o que, aliás, em princípio não seria necessário, desde que "mensagens fundadoras e originais do cristianismo, como a igualdade
ela fosse vista como a figuração - incisiva e interessante - de uma de todos os homens e o mandamento do amor universal", que são "os
ati tude , e nã o como a at it ude ela próp ria . Como aind a t ere mos oca sião tr aços pr ogre ssi sta s vi rt uais do Evangel ho" ( p. 92) . A ess a l uz abs olu
de ver, o catolicismo de Bosi concentra-se na identificação, aprovação ta, a inculcação jesuítica teria sido um erro, no sentido enfático daidéia.
ou repr ovação de at it udes , mais que na av entur a obj eti va a que est as s e Ora, a desat iva ção da cons ciên cia h ist óri ca choca o espí ri to l aic o, a o
arriscam no interior da figuração artística. Há aí uma certa desdiferen qual a alternati va entre manipulação erespeito da pessoa humana pare
ciação das esferas que a civilização moderna separou, de sorte que a ce rá pou co re al no âmbit o de c onquis ta, expa nsão da fé e col onizaç ão
arte tende a ser tomada como manifestação direta, fora da refração esté- a que pertencia a catequese. Ainda assim e paradoxalmente, a superio-

62 63

http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo 31/124
r idade do ensaio se prende às suas numerosas e boas reflexões histori  como da sociedade em funcionamento. A opção pelo Espírit o inclui a
5/17/2018 c iza do ra s, d e inten çã o po r a ss im d izSchwarz,
er negativa, Roberto
qu e têm po r-fSequencias
ina lida Brasileiras
ruptura[Livro Completo]
com o próprio aparato -das
slidepdf.com
di stinções teol ógicas, a pont o de o
de esclarecer as ci rcunstâncias que impediram a palavra de Deus, crítico heterodoxamente preferir à religião com selo oficial a religiosi
sempre ressalvada, de se ef et ivar adequadamente no mundo. "O uni dade dos oprimidos, tenha ela a f orma que t iver , sej a ou não cristã. Por
versalismo cri stão, pecul iar à mensagem evangél ica dos primeiros o utro lad o, a d es pe ito d a f eiçã o ab so lu ta , e p or ta nto a te mpo ra l, o r ec ur 
séculos, precisa de condições especiais par a manter sua coerência e so aos Evangelhos acompanha tendências da atual idade, nas quais se
p ur ez a" ( p. 93 ). i nspira. A aplicação do mandament o do amor uni versal aos enfrenta
Assim, o cat ol icismo do livro nada tem de oficial , muit o menos de
a po lo gé tico . Dá a imp re ss ão talve z de s e en co ntra r na d ef en siva d ia nte men to s e ntre c iv iliz aç õe s no s s éc ulos XVI e XVII p od e r ep res en ta r u ma
aspiração anacrônica, mas assimila ospontos de vista antiimperialistas
da antropologia e do marxismo, e na ofensiva em relação à Igreja e à e p re ser va cion is ta s d a a ntro polog ia c on te mpo râ ne a, h or ro riza da c om
liter atur a. P ar a ter idé ia d o r u mo es pe cial d a s ua e xigên cia, da vira- vo l o s e fe itos d eva stad or es d a mund ia liza çã o d o ca pital. Algo s emelha nte
Ii

ta q ue e la r epr es en ta , o bs er ve- se q uan to Bo si c onc ed e a os d es cr entes , val e para a anál ise par amarxist a da "pr áxis" dos missionár ios, onde a I
ou melhor , q uan ta s ob je çõ es a o c a to licismo h is tór ic o e le f ez s ua s, a lé m
f

c er ta a ltur a o s jes uítas f ig ur am c omo " in te le ctuais o rg ân ic os d a a cu ltu


do ânimo de levar mai s longe as mesmas obj eções. O primeir o bloco de ração", experi ment ando nos índios uma "arte para massas" (p. 81). O I
capítulos, dedicado ao Brasil Colônia, trata de quatro glórias nacionais c ar áter f or ça do d es sa tran sp os iç ão d a ter mino lo gia d a luta de c la ss es
e d a I gr eja, todo s c ristão s d e g ra nde e nv er ga du ra . P ois b em, o co njun  pr ov ave lmen te é p ro pos ital: c omo n a Te ologia d a Libe rtaç ão , tra ta -s e li!

to se poderia resumir como a exposição dos fracassos de Anchieta, d e tra ze r a a ná lise mar xista a o â mb ito ca tólic o, p ar a de nu nc iar d e de n
Gre gór io d e Ma tos , Vie ir a e Anton il, p or ins uf iciênc ia o u c on iv ên cia tro a aliança hi stórica da Igreja com o dinhei ro e o poder, e sobretudo t
11.

em face dos const rangimentos do sist ema coloni al. Do ponto de vista para dar perspectiva histórica e científica ao trabalho com as novas
d a histor io gr af ia b ra sileira , a s c onc lus õe s, c au cion ad as p or u m juízo
r eligios o, s ão d e uma s ev er id ad e ina udita . J á men cion amos a r e gr es sã o
mas sa s p obr es e m s ur gime nto n a Amé rica La tina. O p ou co e mp en ho n a
s on da ge m e stétic a, e nf im, c oincide c om a b aixa a tu al d o v alor c og niti
I
~
~
d a c ons ciên cia e m q ue inc or re u Anc hieta no a fã d e co nve rter o s índios . vo d a a rte, uma ba ix a pa ra do xa l, qu e v emju nto c om ar otin iz aç ão inf la 
P or s ua v ez , a p oe sia d e Gre gó rio s e d iminu iu p ela p os içã o s oc ia l r etró 
g ra da e d es tr uti va q ue lhe d eu a p au ta . O p ró pr io pa dr e Vie ir a, h er ói tal
c io ná ria d as p ond er açõ es f or ma is , c au sa da p ela e stetiza çã o mer ca ntil
do cotidiano. Na falta de uma noção mais exigente - por assim dizer
I
~

vez do livro, não reuniu a força para vergar a realidade da Colônia ao evangéli ca - de forma artíst ica, para que se afer rar a seu est udo? I
sentimento cristão da vida, de sorte que a sua luta pela liberdade dos Como indicam o título e as matérias, o livro de Bosi aspira a uma ,1

í ndios não se pôde prolongar na defesa dos negros. A esplêndida obje visão d e c onjun to d a h istór ia d o p aís, s ob o s ign o d a f or ma çã o c olon ia l e ~
t ividade da prosa de A nt onil , por fim, serviu para feti chizar, ou seja, de suas ext ensões probl emát icas no pr esente. Algo paralelo ao que em
p ar a impr imir a ap ar ên cia do n atur al e n ece ss ár io à s c r ué is injun çõe s da s eu momen to f iz er am Ca io P ra do J r. , S é rg io Bu ar que d e Holan da e C el

produção mercant il. Resumindo: o dinamismo econômico-social da so Furtado. Cada um a seu modo, esses autores expuseram a herança
c olon iz aç ão levo u a melhor s obr e o s E van ge lh os , mas n ão s obr e a I gr e n ega tiva d a C olôn ia , q ue incu mb ia à Na çã o tra ns fo rmar , s ob p en a d e n ão
j a, que com mais ou menos conflit o se acomodou ao movimento, pas se tornar independente ou moderna. A superação estaria em l inha com
sando a integrar a argamassa da dominação; as Let ras, por seu turno, tendências econômicas, psicossociais, políticas etc. Já na variante acres
embora digam al go do custo humano do pr ocesso, não se podem sepa centada por Dialética da colonização, o pólo do progresso se prende a
rar das eventuais debilidades de seus autores, as quais no caso são o uma categoria de difícil definição, ora religiosa, ora jurídica, ora cientí
aspecto relevante. Diante desse quadro, e decidido a não defender o fi ca, mas sempre mor al : é o universalismo dos intuitos - uma sublima
inde fe ns áve l, B os i toma o pa rtido da s " men sa gen s f und ad or as ", c on tr a ção da igualdade e fr at er ni dade cri stã entre os homens - que irá se cho
as conveniências ou necessidades materiais da mesma Igreja, bem car contr a a organização i ní qua da economia. Note-se contudo que os

64 65 li

11,

1;;,

I 1

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mestres anteriores haviam escrito na órbita da Revolução de 30 e da Toda s essas questões se refle tem na concepção de cultura e arte
5/17/2018 industrialização, apostando na força Schwarz, Roberto
integradora de algum tipo-de
Sequencias
desen Brasileiras
popular[Livro Completo]
brasileira -slidepdf.com
s, um dos eixos da obra. O ponto de partida de Bosi é
volvimento naciona l em curso. Este promoveria ao mundo do salário e a segregação cultural imposta pela colonização aos escravos e a boa
da cidadania a mass a dos enquadr ados nas formas econômico-soci ais par te dos homens l ivres, que viveram apartados do mundo contempo
ant igas . Ao passo que Bosi publi ca o s eu li vro em 1992, quando as novas râneo e "sob o li mi ar da escrit a" (p. 46). Nessas condições especiais não
formas de internacionalização do capital parecem ter alterado a perspec se mestiçaram só raças, costumes, técnicas etc., mas também os ani
ti va, ou, ainda, quando o nacionali smo desenvol vimenti sta, e,com ele, a mismos indí genas, afri canos e i bero-católicos , formando uma reli gio
miragem de uma integração nacional em pata mar mais alto, humana sidade que seria como que a alma do mundo colonial, no sentido gené 
ment e def ensável, par ece ter per dido a credi bil idade. A dialética entre rico em que Marx afirmava que "a religião é a alma de um mundo sem
Nação e Col ônia - um tópi co clássico do ensaísmo his tórico brasil eir o alma" (p. 30) . A tese é interess ante, capital para a arquit etura do l ivro,
- é retomada agora, no mome nto em que perde a v oltage m, o qua l aliás que entretanto não a troc a e m miúdos. Seja como for, esse complexo
se ria um bom mo mento pa ra repassá-Ia, desde que a parte das ilusões cultural, solidamente preso às necessidades de sobrevivência dos
viesse aoprimeir o plano. E de f ato, se o arcabouço de passado coloni al e dominados, mas também o avesso de uma exclusão social em escala
presente nacional não mudou, o ânimo da const rução é outr o, poi s falta o histórica, não se desmanchou com a I ndependênc ia - pois o século XIX
ponto de fuga da tr ansformação efetiva. J esuít as e í ndios versus bandei brasileiro mante ve o trabalho escravo e o essencial do sistema econô
rantes e senhores de engenho, nos séculos XVI e XVII; o novo Liberalismo, mico anterior - e mais, chegou ao nosso tempo. Que fazer com esse
da geração de Nabuco, versus interesses do café, na campanha da legado, cal ami toso par a uns, admir ável par a outr os? Ar espost a geral de
Abolição; o positivismo social dos republicanos gaúchos versus estrei Bosi manda respeitá-Io, sem preconceito elitista, dogmatismo religio

teza das oligarquias paulistas e mineiras, durante a República Velha: nos so, mani pulação comercial, oportuni smo popul ist a ou primit ivismo de
t rês casos - os pontos altos, segundo Bosi, da nos sa dialéti ca da col oni esteta de vanguarda, para só mencionar algumas distorções a que se
zação - assis ti mos à arremeti da deprojetos universalistas nacionais de contrapõe o ve rdadeiro sentimento cristão. Entretanto, ao longo d os
transformação social (com a s ressalvas de vidas ao caso das missõe s exemplos l embrados e dos juízos de val or, podem-se adi vinhar aspira
jesuíticas) contra o particularismo dos grandes negócios, que acaba pre ções mais específicas. Num passo inesperado do livro, o único talve z
val ecendo. A conexão entr e os epis ódios se f az pel a via da si mples repe onde a ex periê ncia estétic a dá as cartas, Bosi recorda uma cerimônia
t ição, e não pel o apr ofundamento do confl it o, que não se r evel a produti religiosa a que assistiu na periferia industrial de São Paulo, a poucos
vo, não se transforma e não vai a parte alguma, o que naturalmente metros de uma rodovia de trânsito intenso. Um grupo de homens e
r egist ra uma experi ência his tóri ca. Se houve alguma acumulação, f oi na mulheres pobres, de pé no chão e encharca dos de pinga, se reunia para
direção da expectativa decrescente, que não dei xa de ser um resultado, honrar o p adroeiro. A c erta altura, o capelão - que não é p adre - entoa
pel o apr endizado i mplícito nas derr otas. Como é sabi do, a his tóri a não um hino em latim acaipirado, sendo seguido pelos presentes sem
desbancou só o projeto dos jesuítas, o l iber ali smo radi cal de Nabuco e a nen huma hesitaç ão, com muita arte e divisão de vozes. Eis o enigma:
modernização vargui st a, mas sobr etudo col ocou em xeque o desenvol "[ . .. ] um coral de arrepiante beleza. [ ... ] O que pensar dessa fusão de
vimentismo e o socialismo. Algum tempo atrás pareceria patético trazer latim li túrgico medieval post o em prosódi a e em música de viola cai pi
à pri meira li nha da argumentação soci al o univers ali smo cri stão, vist o o ra, e de sua resistência à ação pertinaz da Igreja Católica que, desde o
que ele t em de abst rato - ainda mais assi m, despojado dedi mensão ecle Vaticano II, de cretou o uso exclusivo do vernáculo como idioma pró
siástica. Mas se um escritor atento e refletido como Bosi se animou a prio para toda sorte de ce lebração?" (p. 50). A comoção do episódio,
colocá-Io no c entro de um livro agora, não será porque pressente que a que Bosi tác ita e provoc adoramente contrasta com as ambigü idades
bancarrota das categorias anteriores, tão mais plausíveis sociologica soc iais e a utilidade nebulosa da beleza erudita (ou seja, da a rte eman
mente, já lhe emprestou verossimilhança nova? cipada ), liga -se à pre sença franca do culto, da dimensão comunitária e

66 67

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da r esistência
à desumani zação t razi da pelos tempos. Est a úl ti ma pode est á a pont o de part ir , mas ao menor descui do pode sai r na direção opos
5/17/2018 Schwarz,
até mesmo vir sob a f ei ção par adoxal de Roberto
medi das progressi stas - Sequencias
da I gre Brasileiras [Livro
ta ao nosso Completo]
destino. -slidepdf.com
A causa última dessa excitação decisória esteve ao
ja. Considerando-se as afinidades do Autor, nada mais antidogmático, que tudo indica na industrialização que começava, pondo fim ao ciclo
sem prejuízo de o arrepio comportar uma confirmação do valor da de pr odução de mer cadori as por meio de t rabal ho f orçado ou semifor
herança católica para os pobres. Pouco antes, o crítico fizera a distin çado, que viera da Colônia àqueles dias e sustentara um mundo parti
ção entre dois tipos de cultura popular: um primitivo, sem ligação com cular . Conforme se tornavam desnecessár ias à economia, as relações
o mundo da escrita, e outro "de fronteira", não menos autêntico, que se sociais e formas culturais de que se compunha a civilização colonial

produz pel o cont at o da vida popular com os códi gos l et rados. Exemplo eram colocadas em disponibilidade e viravam objeto de ponderação
i lust re do segundo t ipo seri am as fi guras do Alei jadi nho. Entr e parên estéti co-pol ít ica. Ficava suscit ada a quest ão de seu val or em cir cuns
teses, terá mesmo cabimento alinhar no campo popular esse escultor e tâncias modernas, ou mesmo do valor das próprias circunstâncias
ar quit et o t ão i mpregnado da t radição cul ta? Seja como f or , t ant o nest e modernas. Naqueles anos, mar cados pela crise da ordem l iberal e capi 
caso quanto no da cerimônia religiosa, o que importa a Bosi é o encon talista, pelo fascismo e pela Revolução Soviética, os traços não burgue
tro produtivo, e sobretudo não destrutivo, entre as esferas iletrada e ses decorrentes de séculos de segregação apareciam à imaginação sob
letrada, de sorte que a identidade popular não se apague ao assimilar a prismas inesperados. Além de obstáculos ao progresso, figuravam
out ra. O i nfl uxo inverso não chega a ser r ecomendado expl icit amente, também como inspiração e base presente para um futuro melhor, des
mas as suas r azões se pr essentem nas ent reli nhas: a devoção comuni tá pi do das ali enações contempor âneas. Nesse senti do not e- se a promes
ria e a intimidade animista com a natureza, próprias à cultura popular, sa de naturalidade e graça que a sujeição apenas parcial do povo ao
poder iam i nf undi r humani dade ao indi vi dual ismo e ao r acionali smo dinheiro, à gramática normativa, a modalidades modernas do trabalho,
falso de nossa elite ilustrada. ao Estado, à Igreja oficial etc. parecia encerrar para os modernistas.
Par a os moder ni stas e os intelect uais de 1930, o dest ino das cul tu Enfim, cabia ao novo Brasil fazer o melhor proveito, em todos os pla
ras t radi ci onal e popul ar havia sido uma quest ão nacional, figurando na nos, dessa colossal her ança, de que poder ia dispor com a li berdade que
ordem do dia e dizendo respeito à feição futura do país. Observem-se pensam ter quanto às relações antigas os que estão se envolvendo em
os manifestos de Oswald, que meio na piada jogam com a visão de um r el ações novas. Mas vol temos ao l ivr o de Bosi , que r ecapi tula o essen
caminho de progresso sui generis, onde os lados simpáticos de nossa cial dessas quest ões por um ângulo católi co, sensí vel ao vast o cont in
informalidade pré-burguesa - devidos à herança colonial- se com gente humano intocado pela secularização. Também aqui a gênese
binari am sem sacr if íci o à experi ment ação técnica e l iber tári a da ar te de colonial da cultura popular e de sua religiosidade é concebida a partir
vanguarda, criando um exemplo revolucionário para o mundo, uma do sent iment o nacional e em vi st a de possívei s opções r el igiosas, polí 
soci edade aomesmo t empo espontânea e avançada, isenta dos mal es da ticas e estéticas. Aliás, a própria consideração abrangente ou indiferen

ci vil ização do pr esent e. E de f at o, a poesi a de Oswald deve agr aça mui  ciada do âmbito popular é uma abstração comandada pelo ponto de
tas vezes incrível à felicidade com que opera essa aliança. Por sua vez, vista naci onal em espír ito práti co. Sob est e aspecto, salvo engano meu,
impressionado com o ritmo peculiar da Amazônia e do Nordeste, que caberi a pergunt ar sea Dialética da colonização não est ar ia reagindo na
per cor rera como "tur ista aprendi z", ou t al vez como emi ssár io autode década de 90, quando a modernização se encontra no impasse, a pro
signado do auto conhecimento nacional, Mário de Andrade chega a blemas col ocados pel os anos 20 e 30, quando el a desl anchava e o proble
imaginar uma evolução asiática para o Brasil, que teria mais a ganhar ma se propunha em termos diferentes. Esta pode ser a explicação para
com as lentidões contemplativas do modelo hindu. Também a adver uma cer ta dual idade de enf oques, que f az que a cult ur a popul ar às vezes
tência de Blaise Cendrars aos brasileiros, tornada célebre pelo Mani figure como questão nacional, com f ut ur o aber to, e àsvezes como f enô
festo da poesia Pau-Brasil, pertence a esse mesmo contexto de esco meno de resistência. Num caso a palavr a est á com os anos desenvolvi
lhas à la carte e definição nacional iminente: a locomotiva do progresso mentistas, no outro com o pós-64.

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Ou seja, de corrido mais de meio século de industrialização c api nação, o leva a edulcorar a brutalidade reinante entre a casa -grande e a
tali sta, que tr ansformou tudo, não se completou e não integrou a nação, senza la. Assim c omo a minúcia com que o se gundo estuda a assimila
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
aper gunta atual já não diz respei to ao modo cer to de incorporar a heran ção das técnicas indí genas pelos pauli stas fari a i magi nar algum equilí 
ça colonial, mas sim ao que efetivamente ela veio a ser. É verdade que brio nessas relações, obscurecendo "o uso e abuso do nativo e do afri
a cultura gerada "sob o limiar da escrita" não desaparec eu. Mas os seus cano pelo português. [ ... ] Deve o estudioso brasile iro competir com
portadores e a sociedade de que fazem parte estão mudados, e mais, a outros povos irmãos para sa ber que m foi melhor col onizado? Não me
mudança não parece consubstanciar as noções e alternati vas que acom parece que o conhecimento justo do processo avance por meio desse
panharam o começo do ciclo. A locomotiva do progresso partiu, a jo go inconsciente e muitas vezes ingênuo de compara ções que neces
modernidade assumiu formas não canônicas, o país continua inconfun sariamente f avoreçam o nosso colonizador" (p. 29). A ironia, discreta
dível , l onge da t emi da des caract eri zação, e ent retanto as expectati vas mas enérgica, se ali ment a de um hori zonte ideológico post eri or, li gado
de progress o social l igadas a estas evoluções fi zeram água. Os pobres às lutas de li bert ação nacional nos anos 60 e 70, que fundiu o anti impe
foram "liberados" da disciplina colonia l, mas nem por isso a maioria rialis mo à revis ão hist óri ca da Conquis ta e à anti pati a ger al pel a expan
chego u à condição proletária, inscrita no universo do salário, da cida são européia, descobrimentos e c olonização inclusive - ressalva do,
dania e das le tras, embora todos se tenham tornado co nsumidores, ao no caso de Bosi, o desempenho de uma parte dos jesuítas. Com o pas
menos i magi nári os. Segundo a f órmula de um observador recente, são sar do tempo, firmada essa noção unitária e acusa dora do processo da
"s ujeitos monetários sem dinheir o",2 num quadro de que a contraven col onização, fi cou pat ente naquelas pas sagens clássicas das l etr as bra
ção e o gangsterismo fazem parte tão estrutural quanto o encanto da sileira s a virtualidade ideo lógic a, maior num caso, menor no outro, da
cultura iletrada. Se passarmos ao pólo das elites, a feiçã o fixada pelos empatia com o colonizador. Contudo, sem prejuízo de os brasileiros
te rmos traços índios ou negros (ou italianos ou judeus), já não somos
mesmos decên ios de desenvolvimentismo tampouco se coaduna com os índios e a fricanos da prime ira ép oca, de modo que há também inge
a visão de Bosi. Onde estão os racionalistas arroga ntes e secarrões,
nuida de e mitificaç ão em considera r o colonizador como o outro, com
amigos da cultura erudita e fechados à devoção e ao animismo popu
quem nós, povos c olonizados, nã o temos parte. Observe-se ainda que
lar? A experiência aponta noutra direção, pois serão raras as iniciativas
o ac ento na unilateralidade bárbara da ação coloniza dora tem va lor de
anti -soci ais nos altos escal ões da Repúbli ca que não venham ampara
conhecimento só até certo ponto. No seu momento, a ousadia de
das em reza s. Sem prejuízo da gra ça e do alento utópico, o nosso fundo
Gi lber to Freyr e e Sérgio Buarque consis ti u j ustament e em pesquis ar e
não burguês se mostrou apto, també m, a servir de legitimação ao capi
salientar a influência do colonizado sobre o colonizador, um ângulo
t ali smo sem lei nem cidadania t ri lhado no paí s. Ass im, a oposição ent re
insólito , além de neg ado ideologicamente, que força va o reconhe ci
a estreiteza do racionalismo de elite e a humanidade da devoção popu
ment o da dívida raci al e cult ural contraída pelo opress or j unto aos opr i
lar não esclarece o emaranhado contemporâneo e não ajuda a tomar
mi dos, cuja presença na vida nacional s aía enormemente valorizada.3
posição crí ti ca diante dele, que precisa ser vist o no seu movimento, ain
Bosi observa bem que esse elogio da mestiçagem em sentido amplo
da que este desconcerte. vem junto com certa defesa da colonização portugue sa em relação às
Depois de re conhecer a contribuição d e Gilberto Freyré e Sérgio
demais. Contudo, não se trata no caso apenas de ideologia, mas tam
Buarque, Bosi lhes obj eta a idealização das relações coloni ais , descri
bém de especif icação his tóri ca, em f ace da qual a afi rmati va genéri ca
tas pelos dois autores sob o signo da adaptação e de uma inesperada
do caráter violento e i njusto da r elação faz f igura abs trata, embor a crí-
r eciprocidade. A i nsi stência por parte do primeir o no escass o orgulho
r acial do port uguês, e na decorr ente promiscui dade sexual e mis cige-
(3)Antonio Candido, "O significado de Raizes do Brasil", introdução à quinta
edição dolivro deSérgio Buarque deHolanda, Riode Janeiro, José Olympio, 1968.Ain
(2) Robert Kurz, O colapso da modernizaçüo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992, da de Antonio Candido, "Aque le Gilbe rto", in Recortes, São Paulo, Companhia das
p.195. Letras, 1993.

70 71

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tica. De fato, sem prejuízo da desumanidade, o imbricamento de colo artísticas, religiosas e sociais, emprestando ao conjunto a sua vibração
nizador e colonizado tem dinamismo próprio, a que o foco na injustiça especial, que um trabalho limitado a um daqueles domínios dificilmen
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras [Livro
te atinge. Completo]
Por outro -slidepdf.com
lado, não vamos esquecer que a sociedade moder
dá acesso apenas parcial. Tanto é assim que logo adiante o próprio Bosi,
querendo distinguir a evangelização jesuítica da ação dos puritanos na na se construiu através da separação dos âmbitos, cada qual entregue à
Nova Inglaterra, apela para exatamente os mesmos esquemas. Invoca sua lógica interna, e que a promiscuidade deles não deixa de configu
o catolicismo português, comparativamente mais arcaico e tangível, rar uma regressão. Digamos talvez que a parte do esbulho e da domina
cheio de imagens e figuras intercessoras, que a despeito da assimetria ção social direta na sociedade brasileira, atropelando na prática aquela
fundamental da situação, garantida em última análise pelas armas, per diferenciação de esferas, induz à fusão reflexiva correspondente, quase
mitiu aos padres uma catequese menos áspera, a construção de uma como um desespero. Mas observe-se igualmente o paradoxo muito de
"ponte praticável, com mãos de ida e volta" entre a sua cultura e a dos nosso tempo e da feição "urgente" da América Latina: a conjugação de
índios (pp. 65,72,73). estética, religião, moral e política, operada por Bosi, num movimento
Muito da ressonância e algo dos problemas do livro têm a ver com em que resistência e desdiferenciação ou redução não se distinguem,
a sua composição. No bloco central encontram-se ensaios de objeto atende por sua vez à aspiração moderna e até vanguardista de ignorar a
bem circunscrito e corte acadêmico severo, ligados a momentos repre separação entre arte e vida e de deixar para trás, verdade que sob domi
sentativos da história cultural e social do país, vindo da Colônia a 1930. nante estética, aquelas separações clássicas da ordem burguesa. Aliás,
Os autores e escritos analisados alinham-se no âmbito culto, ou tam também neste ponto a Dialética da colonização sefilia ao ensaísmo de
bém do mando, no caso de se tratar de política, mesmo quando são 30, comprometido com a experiência nacional, animado de liberdade
inconformistas. Flanqueando esse bloco, redigidas noutro espírito, a modernista diante dos gêneros, e anterior à especialização universitá
introdução e as conclusões circulam no tempo, variam o registro retó ria. Mas ainda aqui estamos em 90, e sem desconhecer que Bosi é o his
rico, trocam facilmente de tópico, e sobretudo põem na pauta a cultura toriador da literatura mais equipado de minha geração, essa forma não
popular, que funciona como o pólo oposto, social e moralmente, aopri acadêmica de fato acaba impondo traços regressivos em relação aos
meiro. Esta última não chega a ser estudada em sentido próprio, mas a termos e ao nível do debate atual, inesperados num livro tão pesquisa
sua presença, carregada de emoção, produz um questionamento difuso do e estudioso. Um crítico exigente pode sentir, por exemplo, que as
de tudo o mais, um reenquadramento tangível, de efeito sibilino. A análises literárias deveriam ir mais longe, sem consideração do argu
exposição aqui é menos sistemática e se movimenta entre erudição, mento religioso ou social a ser exposto, e am esma coisa vale, se não me
crônica de coisas vistas e ouvidas, análise, convicções, decepções, engano, para o analista político, o historiador e o sociólogo. Ao tomar
perspectivas etc., sob o signo de aspirações contemporâneas. Entre a os seus dados e esquemas sem fixar o estado atual das questões em dis
sua mobilidade e a diversidade dos temas no bloco central- onde são cussão e sem passar pelo detalhe e pela necessidade interna dos racio
estudados, um por vez, tópicos literários, religiosos, sociais, políticos CÍnios contrários ou rivais, Bosi compõe um painel a que do ponto de
- há uma correspondência oblíqua, com virtualidades infinitas: vista do processo organizado e autocrítico do conhecimento falta algo
ambas são disciplinadas pela experiência histórica a que reagem e que da complicação labiríntica real, ficando um tanto direto e arbitrário.
é o seu objeto alusivo. Daí o caráter de meditação nacional que já aspri Certamente ele, que leu tudo e é aberto, escolheu essa via por objetar à
meiras resenhas da obra lhe reconheceram ao colocá-Ia na família de desumanidade das especializações, à indiscrição dos debates e ao feti
Casa-grande & senzala e Raízes do Brasil. Assim, com mais ênfase até chismo da parafernália científica, bem como à irrelevância da agitação
do que as teses ou reflexões, a construção do livro ela mesma deixa acadêmica em geral, irrisória diante das questões tremendas do país.
entender que a cultura oficial deve explicações ao sofrimento e heroís Mas o problema fica de pé.
mo da vida popular, e m c ujo d es tino a n aç ão e stá e mjog o. Como é fácil Voltemos entretanto à posição ocupada pela cultura popular na
de entender, essa constelação mergulha umas nas outras as questões construção do livro, que tem nela o ponto melindroso, estratégico para

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o seu senti mento da hi stóri a. Com o Bosi é lacônico a res pei to, a expli  que Bosi quas e não as procur e cons ubs tanciar , pref erindo deixá-I as a
ci tação cor re o ri sco de f orçar a not a. N o essencial , digam os que não só meia d is tâ nc ia e ntre a tes e h is tór ic a, p as síve l d e a pr ec ia çã o e mp ír ic a, e
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiraso art[Livro
igo de fé. Completo]
Sem colocar a - slidepdf.com
questão na sua generali dade, ele em certo
el e recusa a hierar qui a entre alt a cul tura e cultur a popular, como suge
re a superi oridade da segunda, o que entre conhecedores da pr imei ra momento louva a abertura generosa própria à cultura popular, "que
era raro - antes de se tornar freqüente, sob a pressão igualadora do nada r efuga por princí pi o, tudo assi mil a e r efaz por necessi dade" , sem
mercado, a que se somou a pressão mais ou menos política e muito pr ec on ce ito d e c or , c la ss e, n aç ão o u tempo ( p. 5 5) . Ora , " é jus ta me nte
inf lu ente d as min or ia s s ob re o c ur rícu lo tra dicion al d as u nive rs id ade s este sincretismo democrático que falta às vezes aos estilos consumados
norte-americanas. Bosi naturalmente não desconhece o comercialismo d a c ultu ra e ru dita , s ob re tu do q ua nd o s e c od if ic ar am n o inter io r d e ins 
da mídi a, nem o atual debat e sobre o cânon li terári o, que entret anto não tituiçõ es f ec ha da s e a uto- re pr od utor as " ( p. 5 6) . A d es pe ito d a f or mu la 
s ão o s s eu s inter lo cu to re s d o c or aç ão . A s ua v er da de ir a r ef er ên cia e stá ç ão r es tr ita, o p ro pó sito de g en er aliz ar e stá c la ro . O p re co nc eito e a r ig i
no período hist órico anteri or, quando a el it e t inha pr esunções espi ri d ez f ic am d o lad o e ru dito , v is to e m s egu id a s ob o s ig no d e a ca de mismo
t uais especí ficas, de cuja arr ogânci a e carát er il usório aquela hierar  e esnobismo, ao passo que as virtudes da razão - salvo o ceticismo 
quia, que se t rata de afront ar, seri a a expres são de classe. Em li nha com no c ampo p op ular , paradoxalmente associadas à ausên-
s e e nc on tr am
isso, a sua explicação do valor da cultura popular se concentra nos cia de letras. A e xc lu sã o c ultu ra l d os p ob re s, ins ta la da c om a e sc ra vi
aspectos que, do pont o de vi sta de nos sos maior es, sequios os de mos d ão e r ea firmad a mais a dian te e m c on diçõ es d e tra ba lh o s emif or ça do ,
tra r c iv iliz aç ão , e també m d e tripu diar , d ev er ia m p ar ec er c au sa d e in fe  a qu ém d a c id ad an ia , n ão é e nc ar ad a s omen te p elo a sp ec to d a p riva çã o,
r io rida de . P os ta n o q ua dr o da c olon iz aç ão , a c ultur a p opu la r é c on ce bi mas també m c omo a mb ie nte p os itiv o, a o a br ig o d a c iv iliz aç ão s ec ula
da c omo a r es is tê nc ia , a e xtra od in ár ia c ap ac id ad e d e s e s ob re po r a tud o ri zada e indi vi duali sta criada pel a or dem burguesa, em rel ação à qual
o que existe de pior e de mais destrutivo, a saber, as façanhas dos e la d etém p er tinê nc ia c rítica . Ass im, o s en tido c omunitá rio, a c on fian 
p atriar ca s f un da dor es d a n ov a o rd em n o ter ritó rio: d es tr ib aliz aç ão v io  ça na providênci a di vina e o m ateri ali smo anim ist a que acompanham a
l ent a, escravidão, pobreza, segr egação, a que o ulter ior desenvol vi  arte e o cotidiano do povo não seriam resíduos a s up er ar , n em regres-
mento do capit ali smo dari a continui dade a seu modo. Levadas a s ério, sões, como quer a Ilustração antipopular, mas respostas profundas à
essas convicções trazem consigo uma hipótese teórica de enorme fal sa raci onalidade moderna. Em bora gerada em condições de opr es
al cance, bem como um programa de t rabalho que a veri fique. N a t ril ha são e s egr egação c ol onial, es sa cult ura estari a se contrapondo à nossa
da boa citação de Marx, segundo a qual a religião seria a alma de um república de ment ira, tam bém ela segregadora - e Bosi tal vez disses
mund o s em a lma, tra ta -s e d e ide ntif ic ar e c olhe r na c ultu ra p op ular n ão s e q ue no li mit e t oda r epúbl ica é menti ra (ainda que par a os ef eitos pr á
apenas a m arca t raumát ica, em si mesm a uma verdade e uma acusação, tic os e le s eja r epu blic an o e né rg ic o) . S em d úv id a, a p os iç ão impr es sio
c omo tam bém o c onh ecimen to e a supe ra ção e sp iritua l do m un do na pel o desejo de um a sociedade sem as tar as da nossa, o que não exclui
moderno - nada menos -, datado dos Descobrimentos. A fibra e as a poss ibil idade de se t ratar de um pr econceito invert ido. As suas di fi

respostas provadas na luta pela sobrevivência teriam composto, no c ulda de s a pa re ce m b em q ua nd o lembr amos o e sq ue ma mar xista, o nde
c ampo d os e smag ad os , u m c omplex o c ultu ra l d e v alor h uman o melho r a s d if ic ulda de s tampo uc o f alta m: a qu i, s implif ic an do muito , a s c on di
que o seu correl ato no outro pól o, est e li gado - mesmo que cri tica men ções de fábri ca a que os tr abalhadores são sujei tados pelo capital fun
te - à li ber dade de vi stas ( impi edade?) facult ada pel a domi nação. Mas cionariam como a escola do mundo moderno, ensinando às suas víti
a cul tura popul ar, tomada no seu processo efeti vo, será mesm o i sso? A mas a disciplina e a ciência necessárias para que um dia o pudessem
c is ão c olon iz ad or a e nf ea rá s omen te o h emis fé rio s oc ia l s up er io r, s em gerir em proveito de todos. Não foi o que aconteceu; mas a idéia não é
truncar a expressão dos prejudicados principais, embaixo? Qual a i ncompreensí vel. O ra, a cul tura pel a qual se inter essa Bos i é de outra
verossimilhança dessas certezas, tão contrárias a tudo? São elas em o rd em, e ss en cialme nte tra diciona lista, e a ss imilar e a ce itar os e ns in a
t odo caso que emprest am ao li vro a com bativi dade sil enciosa, ai nda ment os da hist ór ia cont emporânea seri a, para ela, o m esmo que desa-

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parecer. Isso não lhe diminui a dignidade, talvez a aumente, mas torna
culto universalista - Ide pr egar a boa nova a todos os povos [...]"
problemática a posição de portadora de esperança geral que ela ocupa (p. 379). No século XIX, ainda em função da mão-de-obra, é o liberalis
5/17/2018 Schwarz,
na arquitetura do livro - uma esperança Roberto
decrescente, quase-sem
Sequencias
futu Brasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
mo escravocrata do café e do açúcarque seopõe ao liberalismo depubli
ro segundo o próprio autor (p. 383), no que aliás, à esquerda, ela não cistas e poetas, favoráveis àAbolição. No século XX, enfim, o particu
e stá sozinha . Do po nto d e vista d a p olítica imp lícita, n ote-se q ue o larismo escandaloso da República Velha, governada pelos interesses
suporte característico daquela cultura é o povo rústico e semi-rústico, cafeeiros, desperta a oposição dos republicanos gaúchos, unidos no
e não o operário de fábrica, especializado, sindicalizado etc., nem "positivismo social", que lhes permite conceber "o Estado-Nação
muito menos o cidadão. Por isso, a sua promoção seria considerada como um sistema ainda a construir" (p. 381). Entre parênteses fique
retrógrada por alguns, nosmomentos de industrialização forte, quando notado, pela vira-volta que representa, o triste papel que os homens de
a condição proletária pareceria estar se generalizando. Mas também prol de São Paulo e o seu espírito deempresa desempenham em todas
aqui houve história, e hoje, quando o que se generaliza é o desempre as etapas desse roteiro ...Mas voltemos aos mencionados pares confli
go, o trabalho informal e a pobreza, e a hipótese deuma nação majori tivos, cuja resultante é uma de duas: seja que asidéias e obras literárias
tariamente proletária parece afastada pela nova feição do capital, é a reagem, sejaque se curvam às grandes linhas da desumanidade econô
hipótese marxista que se esfuma, ao passo que outras relações meio à mico-social do tempo, na qual têm a sua interlocutora direta. Uma
margem do capital e da lei - entre as quais o amor ao próximo? _ objeção possível diria que Bosi moderniza indevidamente as contradi
readquirem perspectiva no tempo. A propósito, na sua caracterização ções ao trazer a órbita econômico-social à consciência imediata e clara
do sistema cultural contemporâneo, é clara a preferência de Bosi pela dos envolvidos. Por outro lado, talvez não haja livro na crítica brasilei
atividade não institucional, seja a dos pobres, seja a dos intelectuais ra em que o alcance prático do espírito, bem como de seus fracassos,
desvinculados. Isso por oposição aos que trabalham na universidade e tenha tanta saliência, o que deve ser saudado. Nas páginas finais, em
na mídia, atrelados aos interesses de dominação correspondentes busca de conclusões, o autor recapitula e resume aqueles enfrentamen
(p. 309). Seria aexpressão teórica deuma aliança possível oujá emcur tos, para lhes fixar o denominador comum. Nos três períodos, o pensa
so entre os novos militantes católicos, movidos mais pela fé que pela mento localista, "espelho dos cálculos do aqui-e-agora", colado à con
Igreja, e os novos pobres, deixados à margem pelo capital e desatendi veniência do negócio colonial, está em luta com "projetos que visam a
dos pelo Estado? transformação da sociedade recorrendo a discursos originados em
A contribuição propriamente acadêmica do livro está nos capítu outros contextos, mas forrados de argumentos universais" (p. 382). A
los centrais, que estudam a guerra entre a economia de cunho colonial distribuição dos acentos está clara: deum lado a empresa, o imediatis
e algumas tentativas de "universalização do humano" (p. 148). Estas mo e a iniqüidade, e do outro a cultura, a memória e a universalização;
últimas são examinadas ora no plano das idéias, ora no plano artístico. ou ainda, a oposição à desumanidade colonial não se alimenta das con
Ao leitor nutrido de agnosticismo e materialismo, a mencionada coli tradições desta, mas de idéias buscadas em países e tempos distantes.
são histórica pode parecer abstrata e pouco verossímil. Já o leitor cató
lico talvez se surpreenda com a presença maciça do interesse econô Essa observação, quemereceria estar mais especificada, vale pelo espí
rito antiprovinciano e pelo propósito de mobilizar contra a escravidão
mico numa obra voltada para o espírito, sentindo aí a press ão do e suc ed ân eo s o s co nh ec ime ntos e as tra diç õe s d a h uma nidad e, em
marxismo. E de fato, na bibliografia brasileira quase não existe livro especial os Evangelhos (mas não esqueçamos que a mobilização des
sobre literatura eidéias emque aeconomia tenha posição detanto peso. tes em sentido oposto, apologético, também está sempre ocorrendo).
Assim, para os séculos da Colônia, o embate gira em torno da mão-de Que pensar dessa tentativa de tipificar o conflito colonial e lhe encon
obra indígena e se dá entre "uma frente econômica predatória" (o açú trar a constante? Acredito não me enganar achando que a composição
car do Nordeste e os bandeirantes de São Paulo) e uma ordem religio do livro - e o título - empurram noutra direção menos estática. De
sa militan te, e mp en ha da em " tran splantar pa ra o No vo Mund o u m fato, terminada a leitura, Bosi como que nos ficou devendo a interpre-

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tação sintética da seqüência que ele mesmo armou e cujos três tempos car, ao passo que a relativa abertura do porto melhorava a situação das
formariam a dialética da colonização. Digamos então que a obra se companhias estrangeiras, dos comerciantes reinóis, bem como dos
5/17/2018 constrói sobre alternativas históricas Schwarz,
explícitas, dispostas
Roberto cronologica poucos[Livro
-SequenciasBrasileiras engenhos maiores, pertencentes
Completo] possivelmente à nobreza da
-slidepdf.com
mente, que certa dose de terminologia e estilo expositivo marxistas terra, "caramurus" na designação pejorativa da sátira. Acresce que
fariam imaginar sob o signo da contradição em movimento, o qual Gregório é Doutor em Leis em Coimbra e literato consumado, soman
entretanto não se aplica. O âmago dos conflitos é atemporal, e seus do ao "berço fidalgo" "o exerCÍcio de profissão liberal prestigiada"
pólos são estranhos uns aos outros, não se engendrando reciprocamen ("Cabia-lhe um quinhão do aparelho administrativo"), além de cultivar
te. Os negócios são particularistas e não produzem universalidade, ao a auto-idealização do letrado barroco, animado de desprezo estamen
passo que a cultura só é particularista por pressão externa e concessão. tal por comércio e trabalho físico, ou seja, o que é quase o mesmo, por
Em lugar de dialética, com a sua parte de lógica interna, inconsciência, judeus e cristãos-novos, ou pelo sangue africano e pela mistura com
produtividade, inerência reCÍproca e interação dos âmbitos, assistimos este (pp. 99-100). A ser exata a caracterização, o "antigo estado" - de
a uma espécie de queda-de-braço entre o espírito e a economia. As saudosa memória - que a "máquina mercante" estava subvertendo se
armas da inconformidade nascem fora, e não dentro da disputa mate poderia definir pela prerrogativa incontrastada do sangue nobre portu
rial, cujo sentido nefasto é fixo e inequívoco: a humanidade reside nos guês, em detrimento de estrangeiros, negociantes, trabalhadores, bra
símbolos, na religião, na memória, e não na empresa econômica, que é sileiros enriquecidos ou com pretensões de grandeza, que deveriam
o contrário dela. Na associação de marxismo e cristianismo ensaiada todos conhecer o seu lugar, como aliás fugiam a seu lugar os que mes
por Bosi, a economia, que o crítico materialista trouxe à frente, com clavam sangue branco e africano. Anobreza postergada pela nova força
vistas à superação do dualismo habitual, é objeto da condenação moral do dinheiro na Colônia: esta a desordem de que se ressentia o poeta e
do crítico católico, ficando reiterado o alheamento - espiritualista? que seria o objeto de sua sátira, estritamente passadista. O leitor vá aos
entre as esferas. Este pode refletir um preconceito religioso antigo, ou, textos e veja com os próprios olhos quanta coisa difusa e turva ganha
também, registrar a experiência histórica recente, a impotência diante clareza através desse prisma, obtido por meio da especificação social
do avanço maciço da mercantilização na área da cultura, que parece dos interesses. Em relação às interpretações correntes, note-se que
não permitir brecha. Não deixa de ser atual essa associação a seco e sem ficam em dificuldade: a) a figura do poeta protonacionalista, já que as
saída entre o reconhecimento e a rejeição do primado da economia ... presunções dos brasileiros, bugres com desejos de aristocracia, são
O estudo sobre Gregório de Matos é um momento alto do livro. A alvo de ridículo sistemático; a própria incorporação do vocabulário e
correspondência entre a organização profunda da obra e a posição de da sonoridade local, com seu pitoresco aparentemente simpático à
classe do poeta, em crise histórica, está sistematizada com abrangência mestiçagem, vale como sátira à "língua torpe" do país; b) a figura do
nova. Trata-se deuma tese forte, dessas que abrem perspectivas e põem poeta libertário, já que a licença dos costumes vem articulada com dis
em questão as leituras correntes. No ponto de partida está o famoso tância e abjeção social, sobretudo o meretrício das negras e mulatas;
soneto à Bahia, que lamenta a decadência trazida pela "máquina mer que pensar das reclamações - satíricas? - contra os empecilhos
cante" ao" antigo estado" de abundância, do poeta como da cidade. Em legais que os brancos de bem encontram para matar os seus escravos?
que consistiu a mudança? Para responder, Bosi recorre à história, no c)o poeta carnavalizador, à Bakhtin, pois na poesia erótica de Gregório
que se poderia chamar um exerCÍcio de filologia sociológico-econômi o registro chulo e o registro nobre não dizem respeito às mesmas
ca. Observa então que Gregório vem da pequena nobreza luso-baiana, damas, a que irreverentemente tomariam ora do ângulo oficial, ora do
proprietária de engenhos, muito pri vilegiada pelas leis metropolitanas, outro; aplicam-se, isso sim, a realidades sociais distintas - um às
para a qual a progressiva subordinação de Portugal à Inglaterra, a par pobres negras, o outro a senhoras nÍveas e inalcançáveis -, servindo à
tir de 1640, significou um golpe. Desaparecia o amparo oficial irrestri consolidação da iniqüidade social, e não à sua relativização; d) o pri
to, que sustava até mesmo a execução das dívidas dos senhores do açú- meiro exemplo de "antropofagia" artística brasileira, uma vez que o

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primitivismo ufan is ta e tra ns forma do r
q ue an ima a idé ia o swaldian a
não tem afinidade com a personagem do poeta e jurista ultr adouto, como no das letras, de cujo exame tão exato e livre quanto possível
5/17/2018 Schwarz, Roberto - Sequencias
ci oso do sangue luso, que não aceita ser confundi do com o populacho Brasileiras [Livro
dependem Completo]
as boas percepções -da
slidepdf.com
atualidade. 4 En tre pa rê ntes es , e a be m
em cuja companhia se compraz. Nout ras pal avras, por trás da irreve da complexidade real das coisas, veja-se ainda que a disposição de
rênci a sat írica está o ressentimento de um ponto de vist a de classe par  espíri to que faz que Bosi apost e pouco na expl oração estética é a mes
ticul armente conservador, o que par a o leit or de hoje, mais ou menos ma q ue lhe p ermite ide ntific ar c om s egu ra nç a o s c omp on entes men os
p ro gres sista, ve m c omo u ma s urpres a. As sim, a rec on stru çã o d e um tal simpáticos da poesia de farra grossa de Gregório, com o que ajuda a
p risma a ju da a p erceb er lin ha s ine spe ra da s e mu ito e lu cida tiva s n a ob ra compreensão desta, mais talvez que a indiscriminada voga atual da
d o g ra nd e po eta, c ons tituind o p ortan to u ma interve nç ão c rítica d e p ri tra nsg re ss ão , a c ujo e stetic is mo po r s ua ve z n ão falta ino cê nc ia .
meira ordem. Por outro lado, invertendo a corrente, não haveria na Co mo s e relac ion am lib eralis mo e es cravidã o a o long o d o s éc ulo

di versidade e no dinamismo da poesia de Gregório nada de imprevis XIX b ra sile iro? Bo si d edica a o tema um e ns aio po rme no riza do , e m q ue

to, nenhum i ndício novo sobre aquela mesma posi ção, ou, com mais historia os diversos funcionamentos daquele rótulo ideológico, segun
a mp litud e, s ob re a co rres po nde nte e xp eriê nc ia h is tó rica ? O e ns aio d e d o e stiv ess e a ss oc ia do ao s interes se s d e es crava tu ra , e ma nc ipa çã o o u

Bo si é pa rc o n o ca pítu lo , c ujo d es en vo lv ime nto pe diria a e xp lo ra çã o imigran tismo. Um d os ob je tivos é d es fa ze r a impres sã o d e " impa ss e" ,
"o travo de nonsense" que costuma acompanhar aquela combinação,
estética dos poemas, ou seja, o interesse pelas razões formais de sua
em aparênci a contradit óri a: "mas como é possível um liberalismo
força, bem como a suspensão do primado das intenções, ideológi cas
e scrav oc ra ta ?" (p. 1 96 ). Co mo tra balhe i s ob re o as su nto po r meu lado ,
como tudo o mais. Reconhecido o sistema de precedências e preven
d e u ma p ersp ectiv a c ontrária n ess e p on to , o a rgu men to me interes sou
ções que animou a imaginação lit erária nas circunstâncias, não seria
e spe cialmen te . Em linh a c om Bos i, n un ca ima gine i q ue o lib eralis mo
preci so vê-Io no seu resultado artístico, d elibe ra do o u n ão, ac ompa 
n ha r-lh e a p ro du tivida de , a s tran sformaç ões e o d es tino intra te xto? As não tivesse funções no Brasi l escravi sta; mas acho de fato que o cum
primento destas vem acompanhado de um travo vi rtual ou efetivo de
exigências que gover nam um belo poema só expressariam as premis
ina de qua çã o, n o q ue a liás n ão faço ma is qu e repe tir o luga r-co mu m d os
sa s d o a utor, s em tra ns fo rmá-Ias ? S e Bo si n ão v ai p or aí, n ão é na tu ra l
contemporâneos, queixosos da fei ção ar tificial de que se revestiri a a
ment e porque lhe faltem os recursos da análise, mas porque o seu f oco
modernidade no paí s. A diver gência é cheia de impl icações e vale um
é outro: para ele os motivos contam mais. Novamente o problema se
debate. É i ndiscut ível que o l iberali smo econômi co e a sua ênfase na
pren de ao us o c atólic o d o ma rx is mo. A a cuida de de ste pa ra o interes se
p ro prie da de p ode m c alhar be m à d efes a da e sc ra vidã o. Ne sse s en tido ,
e co nô mico e o an ta gon is mo s oc ia l s erve à ca ra cteriz açã o pejorativa
conclui Bosi, trata-se de uma ideologia que, embora engendrada na
dos parti cularismos de cl asse e de sua desumanidade, no caso a f ei ção
E uropa d o s éc ulo a nterior, nã o intro du z na da d e " ex cê ntrico , d es lo ca 
e stame ntal d os ran co re s d e Greg ório , em co ntra ste c om o u nive rs alis 
d o ou p ostiç o" n a lin gua gem d e no ss os po líticos e mp en had os e m leg i-
mo c ristão . O ma rxismo é indisp ens áv el a Bos i p orqu e lhe o fe re ce uma
expl icação moderna da maldade dos homens, mais que da enrascada
( 4) A qu i e a li , se m m en ci on ar n om es , Bo si i nd ic a as d if er en ça s e nt re a su a i nt er 
i nfernal em que est es foram se met endo. Assim, fi ca sem uso o que tal pretação de Gregório e as demais. Como o leitor logo nota, há no ar um debate virtual
v ez s eja o p rinc ip al, a isen çã o d ia lé tica n o tra to d aq ue le s mes mo s a nta s ob re o a ss un to , qu e v al er ia a p en a a ti var . O l aco ni sm o d o c rí ti co a r esp ei to f ru st ra u m
pouco, pois o confr onto com os pontos de vista de Augusto e Haroldo de Campos, José
gonismos, a qual os consider ari a como momentos por assi m dizer de
M ig ue l Wi sn ik , L ui z K osh ib a ( um a b oa t ese d e m es tr ad o e m H ist ór ia, n a u sp , q ue i nf e
uma "história natural" (por oposi ção a uma história conscient e) , que l izm en te n ão e st á e m l ivr o) , T ei xei ra G om es e J oão H an se n, t ão d iv er so s e nt re si , s er ia
em boa parte corre à rev elia d e s eus s ujeito s, e c ujas co nse qüê nc ias , u ma b el a o po rt un id ad e i nt el ec tu al . N a qu es tão d a n ob re za d e sa ng ue, B osi d ei xo u p as
sar o estudo de Rocha Peres, ao que par ece o ú nico documentado, segundo o q ual o avô
gostemos ou não, são as condições do present e, onde aliás o seu signi 
d o p oe ta er a u m m est re- de -o br as p or tu gu ês q ue n ão s ab ia a ss in ar o n om e. S e f or a ss im ,
ficado pode ser o contrário do original. As intenções, inclusive as G re gó ri o e st ar ia n o c aso d e s ua s p ró pr ia s sá ti ras à n o br ez a f al si fi cad a, as q ua is n ão p er 
me lho re s, e s em es qu ec er a s p iores , sã o ingred ie ntes entre outros do d em e m q ua li dad e p or c au sa d iss o.

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timar o cativeiro (p. 202). Ou seja, o que é funcional não é postiço, e mas por outro fazem que ele pareça monstruoso a um bom inglês como
vice- versa, o que à primeira vista parece plausível, mas pode não ser. o reverendo Walsh (o aspecto grotesco nas circunstâncias) (p. 202). A
5/17/2018 Schwarz,
Noutro passo, na mesma direção, Bosi obser va Roberto -Sequencias
que a par tir do século Brasileiras [Livro
o po siç ão e nt re Completo]
func io na lid ad e -slidepdf.com
e d is pa ra te , po st ul ad a p or Bo si, n ão e ra
XVI, com a formação de um sistema mundial, o lugar de origem das real no caso, e um aspecto não suprimia o outro ... Desse ângulo, des
idéias passa a importar pouco. Agora o que vale é lhes acompanhar a manchar a sensação de desconcerto, formulada um sem-número de
di fu sã o e a na lis ar o s " co nte xto s e sp ec ífic os " qu e a s s oli ci ta ra m e a da p v ez es p elo s h ome ns d o te mp o, s eria c omo fugi r a o a ss un to , o u me lh or,
t aram (p. 3 81). A l egi tima çã o j á n ão d ec orre d e c ertid ão d e n as ci me n à b oa q ue st ão , qu e ju st ame nte man da e xp lic ar po r qu e, a pe sar d e a da p
to, mas da '~filtragem" o pe ra da p elo di sp os itiv o d os in te re ss es lo ca is , a ta do , o lib erali smo e d ema is in stit ui çõ es m od erna s t in ha m c on ot aç ão
qual separa o apr oveitável do estranho, ou, voltando aos termos ante absurda no país. Salvo engano, a explicação tem a ver com o modo
rio re s, o fun cio nal d o " ex cên tric o, d es lo ca do o u p os tiç o" (que a li ás já retrógrado pelo qual o Brasil r ompeu o estatuto colonial e entr ou para
não teria como existir, pois nalguma medida sempre ter ia passado por o c onc erto d as n açõ es in de pe nde nte s. Trat ava -s e d e in co rp orar as i ns 
alguma instância de seleção). O avanço intelectual envolvido na passa tituições e idéias necessár ias à construção da jovem pátria, mas isso
gem de um critério de origem a outro de ajustamento se impõe de ime s em q ue bra d a o rd ena çã o s oc ial e e co nô mic a forma da n a Co lô nia , t rá 
di ato . En tret ant o, a q ue m s e d irig em e ss as e xp li caç õe s? Em p rim ei ro fico negreiro e trabalho escravo inclusive, ordenação sobre a qual
lugar aos defensores de uma vida intelectual estritamente autóctone, ou rep ou saria m a lib erda de e a p ro sp erid ade n as n ov as c ircu ns tâ nc ia s.
a in da a os in imig os d a c u lt ura a lie níg ena , co m s ua n oç ão mu ito i rrea l d o T ant o a fun cio na lid ade d e cl as se c omo o a sp ec to d es eng on ça do de ss e
mo vime nto d as id éia s. E m s eg un do , a os i lu di do s p elo lib erali smo e co acoplamento saltam aos olhos. Assim, por ajustadas que estivessem à
nômico, que er radamente pensam haver neste alguma coisa que não se situação, que as filtrou, as idéias e teorias novas não tinham como não
ajusta ao escravismo, com o que até certo ponto estariam protegendo a faz er ta mb ém fig ura e sc an da lo sa , de sv ia da d o c an ôni co (o prog re ss o
g ra nde id eo log ia mo de rn a da p ro prie da de c on tra o j uíz o de d es uma ni  e urop eu ). P elo v is to , emb ora e xis ti nd o, o a ju sta me nto n ão a bol ia n em
d ad e rad ic al. As sim, a o mo strar qu e o l ib eralis mo foi co ad o pe lo filtro esgotava a questão, que supõe a existência de outro pólo exterior, que
de um interesse de classe execrável, ao qual serviu bem - o que é ver o a ju sta me nt o nã o ap ag a. Vo lte mo s e ntreta nto à n oç ão de " filtrag em" ,
dade - , Bosi julga haver diss ipado a ilusão, ou melhor, a ideologia de por meio da qual Bosi quer acompanhar o movimento das idéias no
desconcerto e nonsense q ue a co mpa nh ou a s ua a ss oc ia çã o c om a e sc ra  mu nd o mo de rn o. E la te m mé ri to s c la ro s, c omo o ga nh o e m o rg ani cid a
vatura. A meu ver este segundo passo joga a criança com a água do ba d e e m rel aç ão a mo de los me câ ni cos o u a le ató rio s d a d ifus ão d o p en sa 
nho. A começar pelo propósito mesmo do raciocínio. A mencionada me nto . E m e sp ec ia l a s lig aç õe s mui to a s simé trica s e nt re p aís es ric os e
convicção da excentricidade e do deslocamento local das idéias moder pobres, adiantados e atrasados, centrais e periféricos, passam a ser
n as n ão é uma in ve nç ão d os h is to ria do re s d o s éc ul o XX, cuja supressão olhadas com mais humanidade, e mais acerto, pois em lugar da impo
n os p ude ss e d ev ol ver u ma vi sã o ma is e xa ta d as c ois as . P el o c on trário , s iç ão d ireta e u nila teral s omo s le va do s a no ta r a efic ác ia , me smo in vo 
sem prejuízo do caráter ideológico, aquele sentimento de despropósito l unt ária , d a co ns ti tu iç ão i nt erna d a p arte fra ca , qu e n un ca é t ot alme nte
é justamente o fenômeno que se deveria explicar em sua necessidade passiva. Isso posto, a metáfora do filtro tem também implicações
h is tó ric a, p ois foi u ma pres en ça no tó ri a n o B ra sil o it oc en ti sta , e e sta va menos realistas quanto à cena contemporânea. A sua inspiração profun
por assim dizer inscrito nas coisas, tanto que a maioria dos exemplos d a, q ue ma nd a res ga ta r a i ni cia tiv a e p rod uti vi da de d os o primi do s, t em
l embrad os po r Bo si p ara p ro var a fun cio nal id ade es crav is ta do li be ra  como outra face um esquema simples, polarizado entre unidades e o
l is mo s erve ig ua lme nte pa ra a bo nar a feiç ão d es con jun ta da d a mes ma que não são elas. Pensando um pouco, nos daremos conta de que os
c omb in aç ão. T ome m-se c omo ex emp lo a s s impa tia s b ritâ nic as do i lu s "contextos específicos" através dos quais a filtragem opera funcionam
tr e Bernardo Pereira de Vasconcelos, que por um lado não o impedem
I, c omo in stâ nc ia s fin ais . Em c on se qü ên cia mu lt ip lic am-se o s â mb it os
d e p rom ov er o tráfico n eg re iro (o a sp ec to fun cio nal d o li be ra li smo ), restritos de reprocessamento de idéias - se é possível dizer assim-,
t
f

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exteriores uns aos outros e mal ou bem iguais em eficácia e direito. De Como o leitor notou, o livro de Bosi não deixa indiferente. Se fui
tal sorte, vindo ao exemplo brasileiro, que a acepção européia do libe fiel à m inha intenção, as objeções que tratei de formular terão s ido
ralismo não pesaria sobre a nossa, que só devido a engano passaria por outras tantas saudações à sua insatisfação decidida e exposta. Esta foge
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
inadequada. Ora, esse arquipélago de âmbitos independentes difere tanto aoesquadro que a sua audácia corre o risco denão ser identifica
m uito do que a observação ens ina s obre o espaço das idéias e da vida da devidamente. Com efeito, depois de anos de pseudo-radicalidade
prática em nosso tempo, estruturado por condições e antagonismos artística, de subversão cultural em abstrato, especialmente a da lingua
globais, s em cuja presença as diferenças locais ou nacionais não se gem, que agora setornou ideologia literária geral, é como senão tivés
entendem, e aquém decuja complexidade - mesmo que apenas indi semos antena e palavras para identificar um esforço dereorientação de
cada - as questões ideológicas não se discutem razoavelm ente. O fato em curso. A virada do catolicismo, a tentativa de lhe incorporar a
mal-estar brasileiro em relação àsidéias modernas, de que o sentimen inspiração marxista e de explicitar as conseqüências culturais da nova
to deinadequação doliberalismo é uma instância, pertence a essa esfe atitude são verdadeiros partos. Divergências à parte, é uma alegria
rados efeitos globais, deincompatibilidade e co-presença de pontos de saber que esse livro vai causar uma agitação considerável nas salas de
vista engendrados no interior e em diferentes lugares de um sistema aula do país: que pensar da dualidade religiosa deAnchieta e da cate
transnacional, que a noção de filtragem, com o seu viés localista, tende quese dos índios? e de Vieira, que lutou pela liberdade dos m es mos
a desconhecer. O pr óprio Bosi encontrou o probl ema ao lem brar a índios, mas admitiu e até recomendou a escravização de africanos? a
explicação de Marx sobrea plantation norte-americana, cujos proprie compreensão aguda que Antonil tinha das necessidades econômicas
tários são ditos capitalistas a despeito do trabalho escravo, pois setra fez dele um traidor do cristianismo? As questões refletem uma interpe
ta de "anomalias nointerior de um mercado mundial assentado sobre o netração de crítica literária, pesquisa histórica e empenho moral-polí
trabalho livre" (pp. 22-3). A propriedade escrava seguramente estava tico que é nova e faz parte da peculiaridade des sa obra. No centro de
aclimatada, mas nem por isso deixava de ser uma anomalia - o equi tudo, a reafirmação do universalismo cristão nas condições da Améri
valente de nosso nonsense liberal-escravista - em face do m ercado ca Latina dehoje, de olhos postos no espaço social que o outro univer
mundial, sob cuja luz ela deve ser vista, e vice-versa. Não custa lembrar salismo, o do capital e da cidadania, parece incapaz de preencher. É
o capítulo célebre em que Marx comenta os ensinamentos que a escra claro que para quem não seja religioso o mandamento do amor aopró
vidão colonial encerra para a compreensão do caráter também elefor- ximo parece um fundamento frágil. Mas o mandamento capitalista
çado do trabalho livre na metrópole, destacando as revelações da ano segundo o qual todos devemos passar a vida vendendo e comprando
malia sobre a norma, ouda periferia sobre o centro.5 Como é sabido, na sem descanso não parece também muito convincente. Um marciano,
metrópole a expropriação prévia dos trabalhadores os reduziu a força mesmo sem o ponto de vista deuma humanidade naturaliter christia-
de trabalho e os colocou na dependência do capital para sobreviver, o na, teria a impressão de que setrata do sacrifício exigido por uma reli
que tornava dispensável a coação física, sem a qual nas condições de gião absurda.
imensidão territorial americana a ninguém ocorreria aceitar os termos
do capital, ou seja, aquele mesmo trabalho livre. Assim, longe de ser
um traço inconseqüente, a discrepância entre a feição local dasrelações
sociais e a sua norma contemporânea, mesmo remota, pertence estru
tural e objetivamente à dialética global do sistema, à qual dá acesso,
devendo ser estudada, e não descartada, ainda quando os mecanismos
de filtragem a abafem ao máximo.

(5) K. Marx, "A teo ria moderna da colon ização, in O capital, voi. I, capo 25.

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Qual a origem do seminário? Como tudo que é antediluviano, ela
é nebulosa e há mais de uma versão a respeito. Giannotti conta que na
5/17/2018 França,
Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras quandoCompleto]
[Livro bolsista, freqüentou o grupo Socialisme ou Barbarie,
-slidepdf.com
onde ouviu as exposições de Claude Lefort sobre a burocratização da
União Soviética. De volta aoBrasil, em 1958, propôs à sua roda de ami
gos,jovens assistentes de esquerda, que estudassem o assunto. Fernan
UM SEMINÁRIO DE MARX do Novais achou que era melhor dispensar intermediários e ler O capi-
tal de uma vez. Aanedota mostra a combinação heterodoxa e adiantada,
em formação na época, de interesse universitário pelo marxismo e dis
tância crítica em relação à URSS.
Quando o seminário começou a se reunir, as figuras constantes
eram Giannotti, Fernando Novais, Paul Singer, Octavio Ianni, Ruth e
A história mundial não existiu sempre; Fernando H. Cardoso. Com estatuto de aprendiz, apareciam também
a história, como história mundial, alguns estudantes mais metidos: Bento Prado, Weffort, Michael Lowy,
é um resultado. Gabriel Bolaffi e eu. Acomposição era multidisciplinar, de acordo com
Karl Marx, "Introdução", a natureza do assunto, e estavam representadas a filosofia, a história, a
Fundamentos da crítica à economia política economia, a sociologia e a antropologia. Vivíamos voltados para a uni
versidade, mas nos reuníamos fora dela, para estudar com mais provei
to, a salvo da compartimentação e dos estOrVOSpróprios à instituição.
O marxismo está em baixa e passa por ser uma ladainha. Entretan O ambiente era de camaradagem, muita animação, e também de rivali
to, acho difícil não reconhecer que alguns dos argumentos mais inovado dade. Durante um bom tempo a primeira prevaleceu. A discussão e a
res e menos ideológicos do debate brasileiro dependem dele, com a sua crítica eram enérgicas, uns metiam o bedelho no trabalho dos outros,
ênfase no interesse material e nas divisões da sociedade. Será mesmo o havia temas compartilhados e disputados, de sorte que o processo tinha
uma certa nota coletiva, com pouca margem para a propriedade priva
caso de esquecer - ou calar - o nexo entre lógica econômica, aliena
da de idéias. Acada encontro seexplicavam e discutiam mais ou menos
ção, antagonismos de classe e desigualdades internacionais? E será cer
vinte páginas do livro. As reuniões sefaziam de quinze em quinze dias,
to que a vida do espírito fica mais relevante sem essas referências?
em tardes de sábado, com rodízio de expositor e casa, e uma comilan
Como tive a sorte de participar de um momento de marxismo crí
ça no final. Havia bastante desigualdade de posses entre os participan
tico, me pareceu que seria interessante contar alguma coisa a respeito. tes, patente nas moradas respectivas, que iam do abastado e confortá
Me refiro a um grupo que se organizou em São Paulo, a partir de 1958,
na Faculdade de Filosofia, para estudar O capital. O grupo deu vários vel ao sobradinho
demais, mas lembrogeminado
a diferençae modesto.
como um Não
traço perguntei
de união, aaqopinião
ue não dos
fal
professores bons, que eScreveram livros de qualidade, e agora viu um tava alguma coisa poética. Em vez de atrapalhar, contribuía para nos
de seus membros virar presidente da República. Naturalmente não dar o sentimento da primazia do interesse intelectual e político. A fór
imagino que o marxismo nem muito menos o nosso seminário tenham mula deu certo e a geração seguinte montou um seminário de compo
chegado ao poder. Mas mal ou bem é possível reconstituir um caminho sição mais ou menos paralela, em 1963. Depois o costume entrou para
que levou da Faculdade de Filosofia da rua Maria Antônia e daquele o movimento estudantil, já no âmbito da resistência à ditadura de 64.
grupo de estudos àprojeção nacional e aogoverno do país. Embora pro Note-se que na época os CÍrculos de leitura de Marx se multiplicaram
pício a deduções amalucadas, é um tema que merece reflexão. em todo o mundo, uma "coincidência" que vale a pena examinar.

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Com a morte de Stalin, em 1953, a divulgação das realidades ina ilustrados e noticiários de cinema, os automóveis nacionais rodando na
ceitáveis da União Soviética e da vida interna dos partidos comunistas rua, o imenso canteiro de obras em Brasília, inspecionado pelo presi
ganhou em amplitude, também entre adeptos e simpatizantes. Aincon dente[Livro
sempre risonho, que para a ocasião botava na cabeça um capace
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras Completo] -slidepdf.com
gruência com as aspirações libertárias e o espírito crítico do socialismo te operário, o povo pobre e esperançado chegando de toda parte, uma
ficara irrecusável. Nesse quadro, a volta a Marx representava um esfor arquitetura que passava por ser a mais moderna do mundo, pitadas de
ço de auto-retificação da esquerda, bem como de reinserção na linha de antiimperialismo combinadas a negociatas do arco-da- velha, isso tudo
frente da aventura intelectual. Afrontava o direito de exclusividade, o eram mudanças portentosas, animadas por uma irresponsabilidade
monopólio exegético que os partidos comunistas haviam conferido a si também ela sem limites. O país sacudia o atraso, ao menos na sua for
mesmos em relação à obra de seus clássicos, da qual davam uma ver ma tradicional, mas é claro que nem remotamente se guiava por uma
são de catecismo, inepta e regressiva. À distância, o seminário paulis noção exigente de progresso. Era inevitável, nas circunstâncias, que
tano sobre O capital fazia parte dessa contestação, como aliás indica a outras acepções mais estritas do interesse nacional, da luta de classes,
inspiração lefortiana inicial. Com efeito, a crítica ao marxismo vulgar, da probidade administrativa etc. começassem a assombrar o ambiente,
bem como às barbaridades conceituais do PCB, era um de seus pontos para bem e para mal.
de honra. Mas é fato igualmente que os descalabros da URSS, em fim de Isso posto, o contexto imediato do seminário não era a esquerda
contas o desafio essencial para uma esquerda à altura do tempo, não nem a nação, mas a Faculdade de Filosofia. Em seus departamentos
ocupavam o primeiro plano em nossa imaginação. A aposta no rigor e mais vivos, ajudada pelo impulso inicial dos professores estrangeiros,
na superioridade intelectual de Marx, embora suscitada pelo atoleiro .i esta fugia às rotinas atrasadas e buscava um nível que fosse para valer,
histórico do comunismo, era redefinida nos termos da agenda local, de isto é,referido aopadrão contemporâneo de pesquisa e debate. Nova no
superação do atraso por meio da industrialização, o que não deixava de li
i
ser abstrato e acanhado em relação ao curso efetivo do mundo. Voltare ambiente,
dia a natureza
a desbancar organizada
as formas e técnica
anteriores do trabalho
de produção universitário
intelectual. ten
Tratava
mos ao assunto.
se de um empenho formador, coletivo, patriótico sem patriotada, con
A outra referência internacional foi a Revolução Cubana, em vergente com o ânimo progressista do país, de que entretanto se
1959. Também ela desmentia o marxismo oficial, pois não foi feita por distinguia por não viver em contato com o mundo dos negócios nem
operários, não foi dirigida pelo Partido Comunista e não respeitou a com as vantagens do oficialismo. Daí uma certa atmosfera provincia
seqüência de etapas prevista na teoria. A sua grande repercussão que na, séria, simpaticamente pequeno-burguesa, bem mais adiantada aliás

I
brou a redoma localista em que vivia a imaginação latino-americana, a que o clima de corte que marcava a intelligentsia encostada no desen
qual se deu conta, com fervor, de que era parte da cena contemporânea volvimentismo governamental (ver Terra em transe, de Glauber Ro
e de sua transformação, e até portadora de utopia. A incrível aventura
i
cha). Por outro lado, vinha também daí a conseqüência nas idéias, já
dos revolucionários, em particular a figura ardente de Guevara, parecia que estas corriam num mundo à p arte, que pouco sofria o confronto das
mudar a noção do possível; emprestava um sentido novo à iniciativa

I
pessoal, à independência de espírito, ao próprio patriotismo, e também correlações de força reais, pelas quais tínhamos franca antipatia.
Quando os jovens professores se puseram a estudar O capital,
à coragem física, que mais adiante passariam por provações tremendas. pensavam mexer com a Faculdade. Queriam promover um ponto de
O contexto nacional, esquerda à parte, era formado pelo desenvol vista mais crítico, e também uma concepção científica superior, ainda
vimentismo de Juscelino, com o seu propósito de avançar cinqüenta que meio esotérica. O Brasil entrava por um processo de radicalização,
anos em cinco. Três décadas depois, lembrando o período, Celso Fur e a reflexão sobre a dialética e a luta de classes parecia sintonizar com
tado observa que naqueles anos pareceu possível uma arrancada recu a realidade, ao contrário das outras grandes teorias sociais, mais volta
peradora, que tirasse a diferença que nos separava dos países adianta das para a ordem e o equilíbrio do que para a transformação. Entretan
dos. As indústrias novas em folha, propagandeadas nos semanários to, a conseqüência principal do seminário pode ter sido a inversa: atra-

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vés dele, a Faculdade é que iri a i nf luir de for ma decisi va sobre o mar A intensidade int el ectual do seminário devia muit o às i nt erven
xismo local.
ç õe s lóg ico -metodo lóg ic as de Gia nn otti, cu jo teor e xige nte, e xa ltad o e
Grosso modo, este havia existido como artigo de fé do Partido o bs cu ro , a lé m d e s empr e vo ltad o p ar a o pr og re ss o da c iê nc ia , c aus av a
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
C omun is ta e á re as a ss emelha da s, o u, a in da, c omo r ef er ên cia f ilos óf ic a e xc itaçã o. Ap r ópr ia a la d os c ie ntis ta s s ociais s e tinh a c ompe netra do d a
d e e sp ír itos e sc la re cido s, imp re ss io na dos c om a r es is tên cia s ov ié tica mi ssão f iscali zadora do fi lósofo, de quem esperávamos o esclareci
ao nazismo e opos tos aos pri vi légios da oligarquia br asilei ra. Nesse men to d ec is iv o, a o bs er va çã o qu e n os p er mitiria s ubir a o utro p la no , o u
s en tido, aliá s muito p os itiv o, o mar xismo e ra u ma p re se nç a d ou tr in ár ia escapar à tri vi alidade. Supersti ções à parte, a vontade de dar um gran
à antiga, apoiada no cotidiano e bebida em manuais, sem prejuízo da de passo à frente, e o sent imento de que is so seri a pos sível, estavam no
i nt enção pr ogressi sta e das constelações m odernas a que se referi a. ar. Por Giannotti e Bento Prado interpostos, o estudo de Marx tinha
Além da bitola stalinista, contudo, a própria opção revolucionária e e xten sõ es f ilos óf ic as , q ue n utriam a n os sa ins atis fa çã o c om a v ulga ta
popular, bem como a perseguição policial correspondente - fontes comunista, além de fazerem contrapeso aos manuais americanos de
n atur ais d e a utor ida de - , tinh am c on tr ib uído p ar a c on finá -I o n um u ni metodologia empírica, que não deixávamos também de consumir.
v er so intelec tu al pr ecá rio, a fa stado da no rmalid ad e d os e stud os e d es  Apesar de desajeitada, a tensão ent re esses extr em os foi uma força do
provido de relações aprofundadas com a cul tura do país. Tant o é assim g ru po, q ue n ão a br ia mão do p ro pós ito d e e xp lica r a lg uma c oisa d e r ea l,
que os seus melhores resultados, até onde enxergo, ocorreram onde e nesse sentido nunca foi apenas doutrinário.
meno s s e e sp er a. En co ntra m- se e sp ar so s n a ob ra d e p oe ta s e e ns aístas En tr etanto, s e n ão me e ng an o, a ino va çã o mais mar ca nte f oi o utra ,
c om o utra f or ma çã o, d e ins er çã o c ultur al e histór ica mais d ens a, c omo també m d evida a Gian no tti, q ue n a s ua e stad a n a F ra nç a h av ia a pr end i
por exemplo Oswald e Mário de Andrade, que lhe sof reram a infl uên do que os grandes textos se devem explicar com paci ênci a, palavra por
palavra, argumento por ar gumento, em vi sta de lhes entender a arqui
ci a e aos quais o foco mat eriali sta no dr am a das cl asses, no int eresse tetura. Paulo Ar ant es cham ou a atenção para a ironia do caso, em que a
econômico e nas i mplicações da t écni ca sugeriu form ul ações moder
teoria mai s crít ica da sociedade cont empor ânea adquiri a autoridade e
nas . O caso de exceção f oi Cai o Pr ado Ir., em cuja pessoa inesperada o
ef icácia entre nós através de sua associação à técnica da explication de
p risma mar xista s e a rtic ulou cr itic amente à a cu mu la çã o intelec tu al de
texte, mais ou menos obrigatória no secundári o europeu.] Contudo,
uma grande família do café e da política, produzindo uma obra supe
r ior , a lh eia a o p r imar is mo e a ss en ta da n o c on he cime nto s ób rio da s r ea  observe- se que no Brasi l, a não ser pel a l iterat ura de uns poucos escri
t ores, Machado de A ssis à frente, a idéia da consi stência integral de um
lidades locais. Poi s bem, a l igação del iberada da lei tura de O capital ao
t ext o não exist ia, de modo que a mil itância do f ilósofo t razia um clar o
mot or da pesquisa universit ária i ria modificar o quadro e deixar a cul
pr ogresso. Além disso é certo que os escrit os de Marx, e em par ticular
tur a mar xista a nter ior e m s itua çã o d if íc il. No e ss en cial, o d es níve l ind i
as páginas i ni ciais de O capital, exi gem um grau excepcional de aten
cava regim es dif er ent es de reflexão social, dos quais um s e est ava t or 
ção. Not e- se enfi m que o aprendi zado da l eitura cerrada e metódica
nando anacrônico. O s aspect os modernos da Facul dade, que era uma
instituição especializada, de estudiosos profissionais, deixavam paten a te nd ia à s n ec es sida de s un ive rs itár ia s de iniciaç ão e d if er enc iaç ão .
Tant o que est ava em curso um m ovim ent o paralel o nos est udos l it er á
tes o s lad os a rc aico s e a ma do rístic os da s lid er an ça s d o ca mp o po pu la r. rios, onde também se ensinava a ler "de outra maneira", diferente da
Como é óbvi o, são mudanças hi stóricas obj etivas, que nada dizem do
comum. Sem alarde e com result ados admi rávei s, cada um a seu modo,
v alor d as p es so as , e a liás é c er to q ue a ins tituc ion aliz açã o d a intelig ên 
Augusto Meyer, Anatol Rosenfeld e Antonio Candido praticavam o
cia tem por sua vez um preço alto em alienação e embotamento. Seja close reading h av ia a lg um tempo . Na mes ma é po ca , Afr ân io Co utin ho
como for, a i déi a de uma esquerda marxis ta s em chavão, à alt ura da pes
q uisa u niver sitá ria c on te mp or ân ea, ab er ta p ar a a r ea lida de , s em c ad á
(1) Paulo E. Arantes, Um departamento francês de ultramar, S ão P aulo, P az e
veres no armári o e sem autori taris mos a ocultar, er a nova. Terra, 1994, capo5.

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Dito isso, a contribuição específica do seminário veio por outro 45/124
fazia uma ruidosa campanha pelo New Criticism, ao passo que os con
cretistas proclamavam a sua "responsabilidade integral perante a lin lado. Os jovens professores tinham pela frente o trabalho da tese e o
guagem".2 Em suma, a leitura dos textos e aexplicação da sociedade se desafio de firmar o bom nome da dialética no terreno da ciência. De
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tecnificavam, de modo ora despropositado, ora esclarecedor, mas sem Brasileiras
modo [Livro Completo]
geral escolheram -slidepdf.com
assunto brasileiro, alinhados com a opção
pre aumentando o desnível com os não-especialistas. Era a vez dos uni pelos de baixo que era própria à escola, onde se desenvolviam pesqui
versitários que chegava. sas sobre o negro, o caipira, o imigrante, o folclore, a religião popular.
Enquanto isso no Rio de Janeiro o ISEB ligava a dialética e a luta de Comentando o deslocamento ideológico dos anos 30 e 40, a que a Fa
classes ao desenvolvimentismo. A instituição era oficial, incluía vários culdade sefiliava, Antonio Candido apontou a novidade democrática e
antigos integralistas, não se fechava aos comunistas, e entrava num pro antioligárquica de um tal elenco de temas.4 Este o quadro em que a
cesso de radicalização espetacular. Menos que o insólito da mistura, os ruminação intensa de O capital e d o 18 Brumário, ajudada pela leitura
nossos olhos estritos notavam o caráter mais nacionalista que socialista dos recém-publicados História e consciência de classe, de Lukács, e
da pregação: tratava-se de um quadro claro de inconseqüência, para o Questão de método, de Sartre, dois clássicos do marxismo heterodoxo,
qual torcíamos o nariz. Não há dúvida deque a falta derigor existia, e que iria semostrar produtiva. O fato é que a certa altura despontou no semi
em 64 foi preciso pagar por ela. Mas é certo também que o ISEB respon nário uma idéia que não é exagero chamar uma intuição nova do Brasil,
dia ao acirramento social em curso, por vezes de maneira inventiva e a qual organizou os principais trabalhos do grupo e teve repercussão
memorável, ao passo que asnossas objeções pouco saíam doplano tran considerável. Sumariamente, a novidade consistiu em juntar o que
cado das posições de princípio. Atrás da antipatia é possível que estives andava separado, ou melhor, em articular a peculiaridade sociológica e
sem, além da oposição teórica, o complexo provinciano dos paulistas, e, política do país à história contemporânea do capital, cuja órbita era de
demodo geral, asdiferenças entre Rio e São Paulo. Como é sabido, avida outra ordem. Com a parcialidade do estudante que aproveitou apenas
intelectual carioca evoluía em torno de redações dejornal, editoras, par uma parte do que ouvia e lia, exponho em seguida os argumentos que
tidos políticos, ministérios, ou seja, organismos com repercussão nacio mais contaram para mim.
nal e saída fluente para o debate público (sem falar em praias, boemia e O passo à frente está indicado no título do doutoramento de F. H.
mundanidades); bem o contrário da nossa escola da rua Maria Antônia, Cardoso, Capitalismo e escravidão no Brasil meridional (1962). A
ambiciosa e caipira, sofrendo da falta de eco nacional e tendo como ban ousadia do livro, que estuda o Rio Grande do Sul oitocentista, estava no
deira o padrão científico, por oposição à ideologia. Além disso é possível relacionamento complicado entre aqueles dois termos assimétricos,
que a aposta marxista "pura", voltada para a dinâmica autônoma da luta nem opostos nem próximos. Não se tratava de categorias complemen
de classes, tivesse mais verossimilhança no quadro do capitalismo pau tares, à maneira da oposição entre casa-grande e senzala, cuja reunião
lista. Ao passo que no Rio, com as brechas e verbas oferecidas à esquer compõe um todo sociológico; nem se tratava da culminação de um
dapela promiscuidade donacional-populismo, não havia como dizernão antagonismo global, à maneira, imaginemos, de "Escravismo e aboli
ao Estado, cuja ambigüidade no conflito em parte era efetiva. No essen ção". O que o livro investiga em pormenor são as conexões efetivas
cial, entretanto, a facilidade com que em 64 a direita iria desbaratar a entre capitalismo e escravidão numa área periférica do país, área com
esquerda, em aparência tão aguerrida, demonstrou o infundado das alian certa autonomia, mas dependente do que se passava nos âmbitos cen
ças desta, acabando por dar razão aos paulistas.3 trais e na vizinha Argentina, onde vigorava o trabalho assalariado.
Antes que o Senhor, ou a Liberdade, o outro da escravidão é o capita
(2)Augusto de Campos, Décio Pignatari, Haroldo de Campos, "Plano piloto para lismo, e este de modo muito relativo, já que é também a causa dela. De
poesia concreta" (1958), in Teoriada poesia concreta, São Paulo, Ed. Invenção, 1965,
p.156.
(3) Leia-se a respeito a reconstituição interessante de Daniel Pécaut, Os intelec- (4) Antonio Candido, "Entrevista", in Brigada ligeira e outros estudos, São
tuais e apolítica no Brasil, SãoPaulo, Ática, 1990. Paulo, Unesp, 1992,pp. 233-5.
·'1
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ent rada ficavam r elativizadas pela história as polarizações abst ratas 46/124
acaba obr igando à Abol ição; c) ao avançar, ela não cumpre as pr omes
entre escravidão e liberdade, entre os correspondentes tipos sociológi
sas formadas no âmbito do conflito ante rior; d) chegado o momento, o
cos, ou a identifi cação i deológi ca
entr e l iberdade e capit ali smo. Se em avanço tem a r eali dade de uma t arefa i neludí vel, em cuj o cumprimen
5/17/2018 Schwarz,
últi ma análi se o capitalismo é incompat ível comRoberto -Sequencias
a escravidão, e acaba Brasileiras
to no[Livro Completo]
entant o há espaço para -uma
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cer ta li berdade e invenção pol ít icas,
por l iqui dá-Ia, por moment os ele t ambém preci sou, par a desenvolver bem como para o surgimento de desumanidades novas; e) as taras da
se, des envolvê- Ia e até implant á-Ia. De sorte que nem ele é tão avança socieda de brasileira, objetivadas em sua estrutura soc iológica ou de
do, nem ela tão atrasada . Assim, a escravidão podia ter parte com o classes, não de vem ser concebidas como resquícios do pas sado col o
progresso, e não era apenas um vexame residual. É claro que não se t ra nial, nem como desvios do padrão moderno ( coisa que ent retanto elas
tava aqui de elogiá-Ia , mas de olhar com imparcialidade dialética os t ambém são), mas como par tes i ntegr antes da atuali dade em movimen
paradoxos do movimento históric o, ou, ainda, as ilusões de uma con to, como resultados funcionais ou disfuncionais da economia contem
cepção linear do progresso. Sem que a ponta polêmica estivesse explici por ânea, a qual excede os l imit es do país. Contra as mi ragens i deológi 
t ada, t ratava-se de uma especif icação import ante e estr atégi ca do cur so cas, cabe à crítica elucidar as relações de toda ordem, em especial as
da hist ória, poi s punha em evi dência a i ngenuidade dos progressismos r egress ões, de que se compõe o progresso (aliás progresso de quem?).
correntes. No campo da esquerda, em especial, desment ia o i ti nerári o A implicação mais inovadora, contudo, refere-se à aplicação de
de etapas obrigatórias - com ponto de pa rtida no comunismo primiti ca tegorias sociais européias (sem exclusão da s marxistas) ao Brasil e
vo, passando por escravismo, feudalismo e c apitalismo, para chegar a às demais ex- colôni as, um procedimento que l eva ao equívoco, aomes
bom porto no socialismo - em que o Partido Comunista fundava a sua mo tempo que é inevitável e indispensável. Fique de lado a crítica ao
política "científica".
uso chapado de receitas, sempre j usta, mas tão vál ida no Velho Mundo
O caminho fora aberto por Caio Prado Jr., que na esteira aliás de quant o entr e nós. A dif icul dade de que tratamos aqui é mais específi ca:
Marx explicara a e scravidão colonial como um fenômeno moderno, nos paí ses saídos da coloni zação, o conjunto de cat egori as his tóri cas
l igado à expansão comercial européia, estranho por tant o àquela s uces plasmadas pela experiência intra-européia passa a funcionar num espa
são de etapas canônicas. I sso post o, o argumento de Cai o t ratava ainda ço com tr avejamento soci ológi co diferent e, diverso mas não alheio,
de nossa pré-história. Já na monografia de F. H. Cardoso estamos em em que aquelas categorias nem se aplicam com propriedade, nem
pleno Brasil independente, cujos movi ment os nos dizem r espeit o dire podem deixar de se a plic ar, ou melhor, giram em falso mas são a refe
t o. Usando t erminologi a posterior, mas cujo fundament o descrit ivo j á rência obri gatória, ou, ainda, tendem a um cert o f ormali smo. Um espa
se encontra aqui, o que temos é que o progresso naciona l repõe, i sto é, ço diverso, porque a col onização não cri ava soci edades semelhantes à
repr oduz e até amplia as i naceitáveis r elações s ociais da Colôni a. E pior metr ópole, nem a ult erior divisão internacional do t rabalho igualava as
ainda , quando enfim suprime a escravidão, não é para integrar o negro nações. M as um espaço de mesma ordem, porque também ele é coman
c omo c idadão à soc iedade livre, mas para enredá -Io em formas velha s dado pela dinâmica abrangente do ca pita l, cujos desdobramentos lhe
e novas de i nferi ori dade, s ujeição pess oal e pobreza, nas quais se repr o À
duzem outros aspectos da her ança col onial, que teima em não se diss ol dão a regra e defi nem a pauta. distância, essa meia vigência das coor
dena das européias - uma configuração desconcertante e sui generis,
ver e parece continuar com um grande futuro pela frente, o qual é pre que requer malícia diferencial por parte do observador - é um efeito
ciso reconhecer, ainda uma vez, como fundado na evolução moderna consistente da gravitação do mundo moderno, ou do desenvolvimento
da economia.
des igual e combinado do capitalismo, para usar a express ão cláss ica. Já
As i mplicações des ses encadeament os são numerosas. Par a o que na perspectiva das ex-colôni as, mais ou menos melhori stas pel a força
interessa aqui, retenhamos algumas: a) a hist óri a (do capit al? da liber do ponto de parti da, esper ançosas e empenhadas na generalização l ocal
dade? da alienação? do país? do Rio Grande?) procede por avanços e dos benefí cios do progr esso, a art icul ação i nevit ável de modernidade e
recuos combinados; b) contudo ela avança, tanto que o capitalismo des agregação coloni al aparece como anomalia pátria, uma originali-

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acompanhando a dinâmica
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dade nos momentos de otimismo, uma diferença vergonhosa nos de conjunto do capitalismo mercantil, Novais 47/124
demais, mas sempre um desvio do padrão civilizado. Um dos melhores chega à conclusão heterodoxa, além de contra-intuitiva, de que a escra
capítulos de Capitalismo e escravidão estuda os dilemas da racionali vidão moderna é uma imposição do tráfico negreiro, e não o contrário.
5/17/2018 É claro queRoberto
zação de uma economia escravista.Schwarz, nesse contexto as idéias Digamos por fim que a interpenetração da história local e global alcan
-SequenciasBrasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
derazão e produtividade, discutidas com minúcia, aparecem a uma luz çada nesse livro não descreve apenas a gravitação daquele tempo, como
crua. O deslocamento meio macabro entretanto não as desqualifica, também responde a uma intuição do nosso.
nem ele é sem relevância. Muito pelo contrário, então como hoje, as Uma das melhores contribuições do seminário não veio de dentro
inadequações desse tipo abrem janelas para o lado escuro mas decisivo dele senão indiretamente. Espero não forçar a realidade achando que
Homens livres na ordem escravocrata (1964), de Maria Sylvia de Car
da história contemporânea, o lado global, dos resultados involuntários,
crescidos "atrás das costas" dos principais interessados. Às apalpade valho Franco, embora elaborado fora dogrupo, respira o seu mesmo cli
las, havia consciência no seminário de que sem crítica e invenção cate ma crítico, ideológico e bibliográfico. Passando por alto as diferenças,
gorial- ou seja, sem a superação da condição mental passiva, de con há complementaridade de fundo com Capitalismo e escravidão. Este
sumidores crédulos doprogresso das nações adiantadas (etambém das último livro surpreendia ao integrar o trabalho escravo aos cálculos e à
atrasadas) - não seria possível dar boa conta datarefa histórico-socio reprodução da sociedade moderna. Analogamente, Maria Sylvia salien
lógica posta em nossos países. Noutras palavras, faria parte de uma ins tava o vínculo de estrutura entre a categoria mais relegada e confinada
piração marxista conseqüente um certo deslocamento da própria pro do país - os homens pobres do interior - e a configuração da riqueza
blemática clássica do marxismo, obrigando a pensar a experiência e do poder mais avançados, tal como sehaviam desenvolvido na civili
histórica com a própria cabeça, sem sujeição às construções consagra zação do café. Embora Capitalismo e escravidão pesquisasse a econo
das que nos serviam de modelo, incluídas aí as de Marx. mia do charque no Rio Grande do Sul e Homens livres tivesse como

Essa ordem de questões iria encontrar o seu tratamento maduro na documentação


guetá, as grandesde linhas
base os processos-crimedas da
argumentativas comarca
duas de Guaratin
monografias pedem
tese de Fernando Novais sobre Po rt uga l e Br as il n a c ri se d o A nt igo S is 
tema Colonial (1777-1808). O livro, concebido nos anos do seminário e uma leitura de síntese, pois se referem a dimensões interligadas, gerais
terminado muito tempo depois, é a obra-prima do grupo. Como indica o e decisivas da sociedade brasileira no conjunto. A sujeição violenta em
título, a exposição vai do todo à parte e vice- versa, com domínio notável que se encontra o escravo, bem como a relação de dependência à qual o
sobre a matéria nos dois planos. Contra o preceito corrente, que manda homem livre e pobre na ordem escravista não pode fugir, ambas têm
situar a história local no seu contexto mais amplo, cuja compreensão como antagonista, no pólo oposto, a camada de homens que a proprie
entretanto não está emjogo por sua vez, Novais busca ver os âmbitos um dade insere no mundo do cálculo econômico. Fernando Henrique havia
no outro e em movimento. Assim, asreformas portuguesas no Brasil, que analisado os impasses cruéis da racionalização produtiva no escravis
naturalmente visavam preservar a posição da Metrópole, são observadas mo. Em espírito similar, Maria Sylvia observa que os donos da terra tra
também como outros tantos passos involuntários na direção da crise e da tam os seus moradores e dependentes ora como apadrinhados, com os

destruição do Antigo Sistema Colonial no seu conjunto, a bem da Re quais têm obrigações
(ou seja, amorais,
oraque
como estranhos, sem direito a morada
volução Industrial na Inglaterra. Um encadeamento propriamente dialé ou proteção terra em moram de favor pode ser vendida).
tico. A exposição em vários planos, muito precisa e concatenada, é um Essa última mudança de atitude, em que o mundo vem abaixo para um
trabalho de alta relojoaria, sem nenhum favor. Também aqui o marxismo dos lados, ocorre arbitrariamente, sem satisfações a dar, conforme a
rigoroso mas não dogmático punha em dificuldade as idéias feitas, dos variação dos interesses econômicos ou outros da outra parte. Assim, ain
outros e as suas próprias. Entre estas, como se sabe, está a que afirma o da que nas duas monografias a simpatia dos autores fique com os opri
primado daprodução sobre a circulação, oupor outra, que manda fundar midos, cujas chances analisam, o resultado substantivo vai na direção
a compreensão histórica nas relações de produção locais. Pois bem, contrária, sublinhando a margem de manobra que a peculiar estrutura do

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p ro ce ss o b ra sile iro fac ulta à p ro prie da de , a q ua l s eg un do a c on ve niên  i ndustri al, que er a quem pesava mais na bal ança, o rumo estava toma 48/124
cia toca os s eus negócios por mei o de escravidão, trabal ho l ivre, rel a d o: " sa tisfeita já c om a c on diçã o d e s óc io m en or d o c ap italis mo o cide n
ções paternalistas ou indiferença moderna. Longe de ser apenas um tal e de guarda avançada da agricultura", ela renunciara a tentar "a
5/17/2018 empar edamento no pass ado, es seSchwarz, l eque de "opções"
Roberto mostr-ava-se uma
Sequencias Brasileiras [Livro
hegemonia Completo]
plena -slidepdf.com
da sociedade". A incógnita, se houvesse, vinha do
b em e xp lorad a p re rroga tiva s oc ia l n o interio r d a c en a c on te mp orân ea . campo oposto. Qual seria "a reação das massas urbanas e dos grupos
N ou tras p alav ra s, a o a profun da r a a ná lise d e c la ss e, o s em in ário e sp ec i populares" ? Ter iam capacidade de organização e decisão "para l evar
fi cava a i mensa e desconcer tante li ber dade de moviment os da riqueza m ais a dian te a mo de rniza çã o p olític a e o p roc es so d e d es en vo lv ime n
em face dos opri midos no país (o que não dei xava de ser um result ado to e co nô mico d o p aís" ? " No lim ite a pe rg un ta s erá e ntão , s ub ca pita lis

p arad ox al p ara u m g ru po d e e studo s ma rx is ta s). mo ou soci ali smo?" Só Deus sabe o que teri a sido esse soci alismo, mas
Como se sabe, as per gunt as que diri gimos ao passado t êm funda o p ro gn ós tico , no q ue d iz res pe ito a o s ub ca pita lism o, n ão s ó fu gia à vo z
ment o no pres ent e. Se fi zermos abst ração da mat éria específ ica que as cor rente como se most rou exat o. A al ternat iva contrar iava de fr ente as
trê s tes es p es qu is aram (a q u al e ntre ta nto lhe s c on fe ria a n ov a s erie da de formu la çõ es do P artido Co mu nista, q ue s e h av ia m tra ns fo rm ad o n o c li
u nive rs itária ), o s eu c on ju nto c om o q ue ind ic a a m ão inv is ív el d a h is tó  ma g eral da e sq ue rd a e jus tifica va m a s a lian ça s e m q ue e sta a cred itav a.
ria cont emporânea, ou mel hor, indi ca a obr a que se es tava esboçando S em pre a plic an do d efin iç õe s remo ta s, o PC afiançava - no jargão do
através de nós todos e que até agora não chegou ao papel com a p lenit u tempo - o interesse antiimperialista da burguesia nacional, que por
de des ejável. Tra tava-se de entender a funcionali dade e a cr ise das for iss o me sm o s eria a liad a d a c la ss e o pe rá ria n a luta pe la ind us tria liza çã o
ma s " atra sa da s" d e tra ba lh o, d as relaç õe s " arca ic as " d e c lientelis mo , do país, ao passo que o latifúndio e os americanos formavam o bloco
d as c on dutas " irra cion ais" d a c la ss e d omina nte, b em c om o da ins erçã o o po sto a o p ro gres so . Ne ss a p ersp ec tiva , n ão h av eria ind us tria liza çã o
gl obal e subor dinada de nossa economia, tudo em nossos di as. O est í s em v itória s ob re o imp eria lism o, o u, p or o utra , a v itória d es te c on fina 
mu lo v in ha d a rad ic aliz aç ão d es en vo lv ime ntis ta , a q ue a u nive rs id ad e ria o país em sua feição agrícola. Ora, como se sabe, esse conjunto de
respondia de modo oblíquo: por que a A bolição, além de não levar à teses foi durament e desmenti do pel a hi stór ia. No aperto, a burguesia
L ib erda de , n ão c riou u m o pe ra riado à m an eira c lá ss ic a? c omo ima gina r n ac io na l p re fe riu a d ireita e o s a me rica no s a o o pe ra riad o n ac io na lista,
a p as sa ge m d a e stre itez a d as relaç õe s de d ep en dê nc ia p es so al à a be rtu que por s ua vez, em parte ao menos, t ambém pr eferi a as fi rmas es tran
ra nacional e internacional da consciência de classe? como seprocessam geiras. E o mais importante: contrariando a previsão dos progressistas,
interna me nte, n o b ojo d as a sp iraç õe s e ma nc ip atória s e d en tro d a c orre  ao golpe conservador seguiu-se um poderoso surto industrial- que
lação de f orças local, as grandes tr ansformações da atual idade, que de e ntre ta nto n ão c ump riu n en hu ma d as p ro me ss as p olític as e c iv iliz ató
emancipatórias podem não ter muito? Embora fosse a inspiração de ria s q ue s e c os tu ma a ss oc ia r a o d es env olvime nto e co nô mico . Fe rn an
todo s, é p re ciso c on vir q ue o h oriz on te s oc ia lista n ão s e d es en ha va c om do Henri que acert ara em toda linha, também nest e pont o: tr atava-se de
firme za n os fatos , n em g an ha va c orpo n a figu ra qu e e ss es tra ba lh os ise n u m " su bc ap italis mo ", á vido d e a va nç os e co nôm ic os e s em c omp ro mis
tos de demagogia compunham. Passando por cima da convicção dos s o c om a integ ra çã o s oc ia l d o p aís. A imp opu la rida de d a tes e n ão imp e
a utores , a p es qu is a a ca dê mica rad ic al ia d elin ea nd o u m q ua dro irres ol dia que a sua justeza fosse r econheci da à boca pequena, e suponho que
v id o, d e d ifíc il interpretaç ão , q ue a in da v ale a p en a interro ga r. a a sc en dê nc ia intelec tu al e p olític a d e s eu a utor n o interio r d a e sq ue rda
A relev ân cia c on te mp orâne a e e xtra -a ca dê mica d es se s po ntos d e ten ha c re sc id o a p artir d aí.
vist a apareceu no livr o seguint e de F. H. Car doso, Empresário indus- Ou tro fator d e a utorid ad e e stev e n a c rítica fro ntal à s c on ce pç õe s
trial e desenvolvimento econômico, sempre uma tese universitária, mas despolit izadas do subdesenvolvimento então propagadas pelo esta-
já a mei o cami nho da inter venção pol íti ca. O parágr afo final , r edigido blishment a me rica no . Co ntra o s e squ em as a bs tratos e m v og a n os E sta
às vésperas e sob a pr essão do des fecho de 64, concluía por uma alt er dos Unidos, que pr opunham a questão em termos inocentes, de variá-
nati va inesper ada para a es quer da. No que dependesse da bur gues ia veis econômicas bem ou mal combi nadas , t rat ava- se de ident ifi car os

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'~;-:'.. interesses e!} olvidos, sem os quais aquelas variáveis permaneciam


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v- • "e r ~~~.~>:
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letra l1!P:fta.~. m lugar dorearranjo defatores econômicos isolados, ope também a uma aspiração peculiar do debate brasileiro, sempre isolado 49/124

~~15referência no vácuo, ou das genéricas escalas de transição do da atualidade pelas feições singulares e "arcaicas" do pàfs;e sempre
tradicional ao moderno, entrava em foco, com evidente vantagem inte necessitado, por isso mesmo, deum trabalho crítico de desproviTiéiaríF
5/17/2018 Schwarz, Roberto
zação, que permita entendê-Io no presente.
lectual, o campo efetivo da luta pelo desenvolvimento. Um-Sequencias
campo his Brasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
tórico, pautado pelas grandes coordenadas do tempo: capitalismo dos O percurso e a conclusão do Empresário industrial formavam a
monopólios, imperialismo, competição internacional, descoloniza síntese atualista dos resultados do seminário. Conforme o livro trata de
mostrar, o trajeto em direção ao desenvolvimento não é o mesmo nos
ção, enfrentamento entre capitalismo e socialismo, configurações
específicas da luta de classes. Talvez se possa dizer que naqueles anos países desenvolvidos e nos subdesenvolvidos, embora aqueles sirvam
tumultuosos, de culminação e crise do nacionalismo desenvolvimen demodelo para estes. O que não quer dizer que osúltimos não sedesen
volvam, mas que o seu desenvolvimento corre noutros trilhos, encon
tista, o qual trouxe à cena a massa dos excluídos e os prometia integrar
(ilusão ou não), a experiência da história empurrou uma parte da inte tra problemas diferentes e é levado adiante por categorias sociais que
lectualidade a se desapequenar. A teoria social desenvolvida nas uni tampouco são asmesmas. Assim, a sua burguesia nacional não corres
versidades dospaíses hegemônicos passava a serexaminada com olhos ponde ao conceito de burguesia nacional, idem para a sua classe traba
críticos, a validade geral de seus consensos sociológicos e econômicos lhadora. A própria noção de racionalidade econômica não coincide, e
deixara de ser ponto pacífico, e mesmo o seu lado mediocremente apo só os doutrinários ou os sociólogos não sabiam que um empresário
logético foi notado. Com isso, a discussão do subdesenvolvimento weberiano estrito no Brasil se daria mal e seria um exemplo de irracio
adquiriu uma representatividade contemporânea inédita, que abria nalidade. Segundo os espíritos ofuscados pelo modelo canônico, essas
perspectivas aopensamento de oposição também no mundo desenvol diferenças inviabilizariam o desenvolvimento. Não assim o espírito
vido. A circulação m undial da obra de Celso Furtado e da Teoria da dialético, afeito a ver o m es mo no outro. Na verdade, é no interior
Dependência, semfalar no destaque alcançado por artistas latino-ame daquelas diferenças tãoheterodoxas queo desenvolvimento vaise dan
ricanos no período, dão testemunho desse interesse acrescido. Com do, até que em 64 a crise chame à ordem do dia a redefinição da socie
altos e baixos, a fIoração do m arxism o e da dialética no continente dade, que daria substância social e civilizadora às promessas do cresci
expressava e formulava esta repolarização dos pontos de vista, que mento, quando então a classe dominante atalha as aspirações populares
e sai pela brecha do subcapitalismo, que a nova configuração daecono
tra o atraso. de história e contradição a questão dita técnica da luta con
impregnou
mia internacional lhe abria. Em suma, com oprogresso asanomalias da
Do ângulo acadêmico, mas também político, a novidade estava sociedade brasileira sereproduziam noutro patamar, em lugar de sedis
em associar a visão marxista da industrialização brasileira a uma en solverem. De outro ângulo, essas anomalias são o arranjo sociológico
quete s obre o que pensavam e faziam os em presários . O m arxism o político em cima do qual se processa a inserção do país na economia
defrontava-se com fatos que lhe dizem respeito, aopasso que osindus internacional, e nada mais normal do que elas, portanto. Noutros ter
triais eram postos diante de suaresponsabilidade histórica, vista esta no mos ainda, o desenvolvimento dos países subdesenvolvidos não leva
quadro vasto da industrialização retardatária, do progresso e da inte ao desenvolvimento senão em aparência, pois assim como, chegado o
gração (ou desintegração) nacionais, do confronto entre capitalismo e momento, estes repõem o seu travejamento social "arcaico", o capita
socialismo - sem esquecer a opção pelo golpe militar iminente, uma lis mo visto no todo e em plena ação modernizante também repõe a
data destacada no calendário da Guerra Fria. Sem favor, apesquisa uni situação subdesenvolvida, que nesse sentido faz parte do travejamento
versitária deixava de ser remota. A busca da ligação viva e contraditó arcaico da própria sociedade contemporânea, de cujo desenvolvimen-
ria entre as contingências locais e o andamento global da história con to então seria o caso de duvidar. Noutras palavras, estavam errados tan
temporânea atendia a um ideal de dialética. Noutro plano, respondia to os descrentes como os crédulos. O pioneir ismo do quadro - em
cujas cores paradoxais carreguei um pouco - era grande, levando Flo-
100
101

restan Fernandes a escrever na orelha do livro que "de fato, sóos cien
http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo solução recria outra modalidade de atraso (este o momento de dura 50/124
tistas sociais dos 'países subdesenvolvidos' possuem condições para constatação ).
resolver problemas metodológicos ou teóricos mal formulados pelos Para concluir com um pouco de pimenta, saltando mais de vinte
5/17/2018 autores clássicos". O próprio autor da monografiaRoberto
Schwarz, terá sentido-Sequencias
a novi anos,[Livro
Brasileiras acho possível enxergar -uma
Completo] configuração análoga na eleição pre
slidepdf.com
dade e o risco de sua posição, pois termina a nota introdutória lembran sidencial de 1994. Para Lula e o Partido dos Trabalhadores a disputa
do o Galileu de Brecht, que a certa altura, pensando em si mesmo, na dava-se em termos nacionais internos, tendo de um lado o Brasil car
ciência e na Inquisição, faz o elogio dos copernicanos: "O mundo intei comido e conservador, enfeitado pela conversa fiada tecnocrática, e do
ro estava contra eles, e eles tinham razão". Quando um pouco adiante outro o Brasil social, do progresso e da integração dos excluídos. Ao
Giannotti redigiu a sua crítica ao marxismo tão influente deAlthusser, passo que FHC apostava na incidência da mutação econômica global,
na qual seopunha, com notável independência, aoesvaziamento posi que valorizava a estabilidade doméstica, convidava o eleitorado a par
tivista das categorias sociais, suponho que obedecesse a um sentimen ticipar das novidades materiais e organizativas do mundo contemporâ
to dessa mesma ordem, de valia da experiência histórica feita.' neo, e declarava matéria vencida os conflitos sociais armados no perío
Dependência e desenvolvimento na América Latina foi escrito do anterior. À vista do resultado, mais uma vez a evolução geral do
depois do golpe, no Chile, ejá não pertence à época do seminário. Não capitalismo desarmava o enfrentamento interno, de conteúdo socioló
tenho osconhecimentos para um bom comentário de suasrelações com gico claro, e dava espaço à recondução, ainda que relativa, dobloco do
a teoria econômica cepalina, nem da repercussão que alcançou, eviden poder. Tudo em linha com asanálisesjá clássicas do próprio sociólogo,
temente muito grande. Seu programa de especificações históricas, asquais entretanto, em ocasiões prévias, sehaviam destinado a abrir os
sociológicas e econômicas, assim como o sistema dasvariações depaís olhos da esquerda, ao passo que agora levavam à presidência o seu
a país, que aponta para um todo em movimento, fazem a novidade e a autor em pessoa, à frente de uma coligação partidária de centro-direi
força do livro. Espero não errar, contudo, notando que em parte setra ta.6 O significado histórico dessa vitória está em aberto e não é o assun
ta da generalização e do ajuste, para o continente, dos pontos de vista to de meu depoimento - a não ser muito indiretamente, pelo viés de
do Empresário industrial. Lá estão as singularidades dos arranjos sua ligação com asconclusões do grupo, armadas no estudo do Brasil
sociológicos nacionais, sempre subdesenvolvidos e carregados de his escravista. Com efeito, a constatação da margem de liberdade absurda
tória, funcionando como suportes da inserção contemporânea da eco e anti-social de que a classe dominante - fortalecida pelo seu canal
nomia. São eles atravação docaráter dependente, ou "sub", deseuspaí com o progresso domundo externo - dispõe nopaís, foi umdosresul
ses, que nem por isso ficam excluídos do desenvolvimento capitalista, tados a que a contragosto chegavam os nossos estudos marxistas.
que se processa de forma sui generis através daqueles mesmos arran Agora, com trinta anos de distância, como fica o seminário? Já
jos (areposição do atraso), ou de sua reformulação (o atraso reposto de disse o bem que penso de suas contribuições para a interpretação do
modo novo). Ainda uma vez tratava-se de mostrar que as categorias Brasil. Não obstante, visto de meu ângulo de hoje, o marxismo do

econômicas
volvidos nãonão andam sozinhas
dispensava e que
uma correia deatransmissão
subordinação dos subdesen
interna, acessível grupo deixava
mesmo. a desejar
Não houve muitonalguns aspectos,
interesse que talvez
pela crítica sejam
de Marx sempre o
aojetichismo
àlutapolítica (este omomento combativo). E que astransformações do da mercadoria. Como correspondia àqueles anos de desenvolvimen
capitalismo central mudam os termos do enfrentamento de classes nos tismo, o foco estava nos impasses da industrialização brasileira, que
países periféricos, abrindo saídas imprevistas no quadro do conflito podiam até empurrar na direção de uma ruptura socialista, mas não
cristalizado anteriormente, que passa a girar em falso, enquanto a nova levavam à crítica aprofundada da sociedade que o capitalismo criou e

(5) "Contra Althusser", Teoria e Prática, 3, São Paulo, 1968; retomado em J.A. (6) Para uma análise crítica do percurso, ver José Luís Fiori, "Os moedeiros fal
Giannotti, Exercícios defilosofia, SãoPaulo, Brasiliense, 1975. sos", Mais!, Folha de S.Paulo, 3jul. 1994, pp.6-7.

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de que aqueles impasses formam parte. Era lógico aliás que houvesse
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rio em fim de contas permanecia pautado pela estreiteza da problemá- 51/124
uma dose de conformismo embutida no projeto basicamente nacional, tica nacional, ou seja, pela tarefa de superar o nosso atraso relativo,
ou até continental, de tirar a diferença e superar o atraso, já que no caso sempre a ntepo sta à atualid ad e. Fic av a de ve nd o ou tro pa sso, qu e
os países adiantados (embora não as suas teorias sociológicas) tinham enfrentasse - na plenitude complicada e contraditória de suas dimen
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de ser dados como parâmetro e como bons. Aparte da lógica damerca sões p re sen tes, qu e são tran sn ac ion ais - a s relaçõ es d e de finição e
doria na própria produção e normalização da barbárie pouco entrava implicação recíproca entre atraso, progresso e produção de mercado
em linha de conta e ficou como o bloco menos oportuno da obra de rias, termos e realidades que setem deentender como a precariedade e
Marx. Pelas mesmas razões faltou ao seminário compreensão para a a crítica uns dos outros, sem o que aratoeira não sedesarma.

importância dos frankfurtianos, cujo marxismo sombrio, mais impreg


nado de realidade que os demais, havia assimilado e articulado uma
apreciação plena das experiências do nazismo, do comunismo stalinis
ta e d o american way o/life, encarado semcomplacências. Daí também
uma p ossível inoc ên cia d o g ru po e m relaçã o ao lado de grad an te d a
mercantilização e industrialização da cultura, consideradas sem maio
res restrições. E daí, finalmente, uma certa indiferença em relação ao
valor de conhecimento da arte moderna, incluída a brasileira, a cuja
v isão ne ga tiva e prob lematiz ad ora d o mu ndo atual n ão se a tribu ía
importância. O preço literário e cultural pago por esse último descaso,
aliás um subproduto perverso da luta pela afirmação da universidade,
foi alto, pois fez que os achados fortes do seminário não se aliassem
produtivamente ao potencial crítico espalhado nas letras e na cultura
ambiente, ficando confinados ao código e ao território acadêmico, di
zendo e rendendo menos do que poderiam. Para contraste basta pensar
nas relações daprosa deGilberto Freyre e Sérgio Buarque com a cultu
ra modernista, às quais seprende o estatuto tão especial de suas obras.
Penso nãoexagerar achando queno essencial aintuição histórico-socio
lógica do seminário nãofica devendo à desses mestres, embora seja evi
dente que, pela falta da elaboração de um instrumento literário à altura,
entroncado nas Letras contemporâneas, as obras respectivas não ocu
pem um lugar de mesma ordem. Visando mais alto, por fim, me parece
certo que a clara visualização do subdesenvolvimento e de suas articu
lações tem alcance histórico-mundial, capaz de sustentar, suponhamos,
algo como as Minima moralia referentes ao que é sem dúvida uma das
feições-chave do destino contemporâneo. Fica a sugestão, mas a idéia
talvez não pudesse mesmo se realizar em nosso meio, já que em última
an álise estáv amos - e e stamos - e ng ajad os e m en co ntrar a soluç ão
para o país, pois o Brasil tem que ter saída. Ora, alguém imagina Marx
escrevendo o Capital para salvar aAlemanha? Assim, o nosso seminá-

104 105

d e b loc os inteiros d a c rô nica , s em p re juízo d a d iv ersida de d os tóp ic os ,


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é o a co mp an ham en to s arcá stic o d as p ro clama çõ es e d os rac io cínios d e
que se cercava o p rocesso que l evou àAbol ição e à Repúbl ica. Pelo vi s
to, Machado desenvolveu uma idéia especial das possibilidades do
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g ên ero, c om luga r pa ra rep to s intrinc ad os à intelig ên cia d o leito r, idé ia
na qual ficou sem sucessores.
A CONTRIBUIÇÃO DE JOHN GLEDSON Seguindo aelaboração do Quincas Borba, conforme ia sendo publi
c ad o em folhetin s, e faz en do a c omp araç ão c om a e diçã o fin al, e m livro,

G le ds on e nc on tra p ro ce dime ntos a nálogo s, o me smo tip o d e ag re ss ão


encoberta, mas com intenção de bomba. Por exemplo, observa que o
ma lu co d es tina do a a le go rizar o Bras il inicialme nte s e c ha ma va Ru bião
(ru biác ea ) J os é d e Ca stro , isto é , C afé F ulan o d e T al, a o p as so qu e n a v er
Os estudos de John Gledson sobre Machado de Assis inovam
s ão definit iva, posteri or à proclamação da Repúbl ica, ele passava a se
muit o e em várias frentes. Na boni ta or elha - ami gamente enci umada c ha ma r Pe dro R ub iã o d e Alva ren ga , mu ito próx imo d e P ed ro d e A lc ân 
- que escreveu para M ac ha do de As sis: fic çã o e histór ia , Alexandre tara, o n ome c iv il d o Im pe ra do r, c om a rub iá ce a d e p erme io .
Eulal io chamava a at enção par a a int ensi dade i ntelectual dos ensaios c) A n ov id ad e ma is s ens ac ion al d o liv ro , c on tu do , e stá na releitu 
que estava apresentando. I De fato, c ad a u m d eles tra z um a tes e iné dita , ra do M emor ia l de Aire s, h ab itua lme nte c on side ra do p ela c rítica u m
exposta com clar eza e energia, apoiada em pesqui sa e ar gumentos, romance acima das baixezas do mundo, a obra da reconciliação de
c omp on do u m liv ro e nxu to, q ue faz d iferen ça . Machado com a v ida, a morte e o amor conj ugal. Gledson faz a per gun

O pri ncipal de sua cont ribuição tal vez se possa resumir nos pon ta c erta : n ão h ave rá n exo e ntre a mú sica algo a do cica da d os s en time n
tos segui nt es. a) Descober ta lit er ária de Casa velha, romance breve a tos d omé stic os e a s n ume ro sa s an ed otas referentes à Ab oliç ão , a ne do
que a cr íti ca não havi a dado mai or atenção; Gledson l he assinala a qua tas c uja lóg ic a é preciso ide ntific ar? A re sp os ta q ue e nc ontra mo stra u m
lidade artística notável, a densidade histórico-sociológica da dramatur M ac had o ma is a ce rbo do q ue n un ca , p ois a d oç ura da s e mo çõ es req uin
g ia, a inten çã o d e a le go ria po lítica n ac io na l, b em c omo a p os iç ão d e e lo t adament e confi nadas à esfera pri vada é outr a f ace da indiferença de
falta nte n a e voluçã o do roma nc e m ach ad ia no , c uja c oe rê nc ia e ss a o bra n os sa e lite p elos s eus e sc ra vo s, q ue a A bo liçã o, n uma a utên tica tra iç ão
permite avaliar melhor. histórica, abandonava à sua sorte. A frase que passa por ser o supra
b) Detalhamento das relações, muit o menci onadas, mas pouco sumo da sabedoria do Machado conselheir al - "Não há al egr ia públi
estudadas, entre os trabalhos do cronista e do romancista. Gledson ca que valha uma boa alegria particular" - fulge a uma luz odiosa e
guarda dist ância do vi rtuosismo entedi ado que dá o t om à crônica, e faz n ov a, q ue a tra ns forma e m g ra nde literatura.
quest ão de examinar de perto a matér ia tratada. Graças a isso, not a que Machado de Assis : i mpos tura e reali smo, p ub lica do a go ra p ela
a c el ebrada art e machadiana de l igar tudo a t udo, ou nada a nada, é t am Companhia das Letras, é a tradução de The Deceptive Realism of
b ém u ma a rte d o d es pistame nto, d a d es co ntextua liza çã o e sc arninha . M ac had o de As sis, saído na Inglater ra em 1984. Trata-s e de uma dis-
Disfarçado nos meandros digressivos corre o fio da crítica social, s ent ing i nterpretati on of "Dom Casmurro", como di z o s ubtí tulo
muito mai s metódica e devastadora do que se supunha, mudando o sen ing lê s. T amb ém a qui o teor d e ino va çã o é a lto.
t ido à frivoli dade da prosa. Ass im, ficamos sabendo que a r azão de ser N a estei ra de Helen Cal dwell e Si lviano Sant iago, Gledson not a a
n aturez a s in tomá tica da s inc on sistên cias d o n arra do r, c uja b oa-fé fic a
(I) John Gledson, Machado de Assis: ficção e história, Ri o d e Ja nei ro , Paz e post a em dúvida: sob pena de ingenui dade, a n arrati va tem de ser enca
Terra, 1986. rada com pé-atrás, como a ver são t al vez facciosa de uma das figuras do

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drama.2 O passo adiante está na acepção em que esta possível parciali custa lembrar que alguns, entre os quais me incluo, pensam - sem 53/124
dade vem tomada. Em lugar de elemento de psicologia individual, ela nacionalismo nem xenofobia - que o método da aplicação direta de
é vista no interior do sistema social composto pelas personagens, como conceituações prestigiosas, européias ou americanas, esterilizou uma
expressão de um de seus pólos, e inteligível somente através da relação fatia assustadora de nosso ensaísmo nos últimos vinte anos (o oposto
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deste com os demais. As conseqüências, para o entendimento do da pretensa liberdade antropófoga). Gledson, diferentemente, trata de
romance, são profundas. a) O narrador sem credibilidade não funciona armar um problema literário, no caso o complexo machadiano de
como quebra do universo realista, mas como parte dele. b) Nada do que assuntos, pontos de vista, procedimentos artísticos e circunstâncias
é dito se deve entender tal qual, já que o contexto social muda o senti nacionais, uns em atrito produtivo com os outros. Para descrever um tal
do aos termos. c) Esta redefinição vai longe e acarreta uma surpreen complexo com exatidão, é preciso estudar em várias frentes, que vão da
dente inversão valorativa: o ingênuo Bentinho, a santa senhora sua mãe análise de texto à pesquisa histórica, literária e extraliterária. As noções
e o pitoresco agregado da família aparecem como figuras do autorita que resultam são concebidas sob medida para a peculiaridade e histo
rismo paternalista, desagradáveis e muitas vezes sinistras, aopasso que ricidade do objeto, para as contradições que o movimentam, nos antí
a feição inquietante de Capitu pode não passar de preconceito de clas podas das terminologias sistemáticas destinadas ao estudo da literatu
se, de projeção de quem não tolera condutas independentes, sobretudo ra em geral. Essa educação do crítico pelo assunto alcança até a
por parte dos socialmente inferiores. linguagem, e o leitor notará como os meandros do universo machadia
Uma vez estabelecido o tipo social do narrador, a natureza históri no, inclusive os penosos, plasmam o vocabulário, as noções e a frase de
ca de suas relações com as demais personagens também ressalta. Em Gledson. Uma das razões, aliás, do incrível desencontro entre a nossa
especial os amores com Capitu aparecem sob o signo das tensões entre tradição crítica e o romancista esteve, com as exceções sabidas, na fal
proprietários e dependentes, muito próprias à sociedade brasileira. Com ta de instrumento propriamente literário para parafrasear e analisar
esse passo, Gledson não aponta apenas o fundo realista e nacional do uma experiência tão intrincada e turva, difícil, entre outras razões, por
livro, como indica uma ponte, a continuidade temática entre Do m C as - ser pouco lisonjeira para nós.
murro e os romances machadianos da fase imatura, os quais também Deixamos para o fim o achado interessante - e problemático 
giram em torno destas realidades. A persistência e consistência do traba dos "enredos politicamente significativos". Num escritor meticuloso
lho machadiano ao longo de trinta anos surge de forma impressionante. como Machado não podem ser casuais as muitas alusões a episódios e
Dando um balanço, digamos que Gledson renovou de modo com 1 protagonistas históricos, nem a ocorrência freqüente de datas. Buscan
pleto e convincente a leitura de dois livros capitais da literatura brasi do-Ihes a razão de ser, Gledson notou: a) a existência, como elemento
leira, a que acrescentou um terceiro, que quase não constava da lista. de estrutura, de uma periodização refletida da história nacional; b) um
Modificou também a visão que se tinha da oficina machadiana. Isso funcionamento simbólico de cenas e personagens da vida privada, que,
sem mencionar as contribuições muito substantivas à leitura de Quin- mediante indicações calculadas, parecem ter equi valente na arena polí
cas Barba e Esaú e Jacó. Trata-se assim de uma intervenção crítica tica, a que pela feição entretanto não pertencem; c) a natureza às vezes

I
marcante e considerável,
dos brasileiros recentes. que situa o autor na primeira linha dos estu f enigmática dessas alegorias, como que exigindo a decifração de um
melindroso segredo pátrio.
Isso posto, é interessante observar que as suas descobertas sefize
ram à margem das modas críticas, e em parte na contracorrente delas, I' Basta lembrar Casa velha para reconhecer o bem-fundado dessas
suposições. Com efeito, Lalau nasce em 1822, no ano da Independên
por senso da particularidade histórica do objeto. A este respeito não
I
i
cia, fica órfã em 31, no ano da Abdicação, e, sendo uma pobre agrega
da, quase casa com um filho da oligarquia em 39, entre alusões à rebe

i lião na província e à anarquia do período regencial. O descalabro não


(2) Ver Helen Caldwell, The Brazilian Othello o/ Machado de Assis, Berkeley,
U ni v er si ty o f C al if or ni a Pr es s, 1 96 0, e S i l vi an o S an ti ag o, "A r et ór ic a d a v er oss imi I ha n
ça", in Uma literatura nos trópicos, São Paulo, Perspectiva, 1978.
chega a se completar porque o rapaz, submetido a toda sorte de pres-

108 109

sões, consente e m casar de ntro de s ua classe, à época da Maioridade, c on ste la çã o d e c la ss e, a o me sm o t emp o q ue p ro cu ra , c om me no s s orte ,
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pondo f im à turbulê ncia. As data s são incontesta velmente toma das à 54/124
a le go riz ar a e vo lu çã o p ol ít ic a d o p aís .
história nacional, de que a moça deve significar algum aspecto - mas T ra ta nd o-se d e u m e sc ri to r d a força d e Mac ha do , o e ve ntu al d es a
qual? Passando a indicações mais es curas, em Dom Casmurro h á u ma c erto a rt ís tic o m erec e refle xã o. Q ua nd o b us ca va p re nd er a s s ua s fáb u
5/17/2018 a lu sã o e nfáti ca e mi ste rio sa Schwarz,
a o G ab in ete Roberto
R io Bran co , e m c oin ci-dê
Sequencias
nc ia Brasileiras
las ao[Livro
s pontos Completo]
de infle xão da-slidepdf.com
história nacional, o romancis ta seguia a
c om o a fo ga me nt o d o a mi go E sc ob ar, d es as tre c ap it al n a d eg ri ng ola da i ns piraç ão d o R ea li smo e urop eu , o u, p or o ut ra , t en ta va c on fe cc io na r
espir itual de Bentinho. Gledson ap onta o par alelo pos síve l com a ins algo semelhante no Br asil. Independê ncia, Abdica ção, Regência ,
tabilid ade oligár quica, talvez inaug urada com a Lei do Ventre Livre , Maiorida de, Conciliaçã o, Gabinete Rio Bran co etc. ser iam os nossos

obra daquele gabinete. Pode ser, sobretudo porque senã o - como lem equivalentes da periodização da história francesa pós-revolucionária,
bra o p rópr io Gleds on a p ropósito de outro para lelo semelhante - fica c uj as e ta pa s, mu ito n íti da s e c on tras ta nte s, fac ul ta ra m a os e sc ri to re s
ríamos sem explicação alguma para a insistência em março de 71: d aq ue le p aí s u ma e xp eriê nc ia e u ma rep re se nta çã o in éd ita s d a h is to ri 
"Nunca me esqueceu o mês e o ano".3 cidade do presente, incluído aí o âmbito privado. Stendhal queria
Assim, a intenção de criar enredos que digam respeito não só à demonstrar que algo tão eterno como o amor não era a mesma coisa
p ro bl emá tic a s oc ia l d o p aís , ma s ta mb ém à s ua h is tó ri a política, pare antes e depois da Revolução. Par a Ba lzac, o senso das contra dições
c e b em c on su bs ta nc ia da . E la c as a a liá s c om a c on tin ui da de , d es lo ca da c on te mp orân ea s e d e s ua p ro fu nd id ad e h is tó ric a, m es mo o u s ob re tu do
p ara u m p la no c rít ic o e s up erio r, q ue Mac ha do b us ca va d ar a o n ac io na  a p ro pó si to d e n in ha ri as , e ra a fac uld ad e a rtí sti ca mo de rn a p or e xc elê n
lismo romântico. Todavia, intenções não são o mesmo que resultados c ia . B au de la ire t in ha o p ro je to d e p ô r d ata s a o s eu d es es pe ro . O ra , c omo
artísticos, e s e G le ds on c on ve nc e p le na me nt e q ua nto à s p rim ei ra s, p er é notório, não faltava a M achado o se ntimento do tempo e da dif erença
s ua de m en os , a té o nd e p os so v er, n o to ca nte a os s eg un do s. Ne ste a sp ec  q ue e ste faz . E nt re ta nto , e a pe sa r d as m uit as d ata s, o d in ami smo h is tó 
to cabe uma dive rgência co m o seu po nto de vista crítico, o qual dá ma is ric o d a li te ra tu ra fra nc es a n ão e xi ste e m s ua o bra.
pes o à intenção do es critor que à configuraç ão da obra. As raz õe s d a d ific uld ad e p od em s er i nte re ss an te s, v amo s a rris ca r
Com efeito, não há como duvidar dos p aralelismos que Gledson algumas . Os estuda ntes s abem, e Gle dson observa, que os livros obr i
des cobre, nem do propós ito or ganiza dor que os anima: e ntre os episó g ató rio s s ob re o n os so s éc ul o XIX, como Um estadista do Império, de
d io s d a v id a p ri va da e a s d ata s s ig nific at iv as d a p ol ít ic a n ac io na l h á c or Nabuc o, ou Do Império à República, d e S érgio Bu arqu e d e H ola nd a,
res po nd ên cia d el ib erad a. E ntreta nt o, s e refle ti rm os s ob re o ren di me n s ão d ifíc eis d e a ss imi la r: o le ito r n ão g ra va a s uc es sã o d os m in is té rio s,
to literário dessa construção machadiana, estaremos diante de um c on he ci do s p elo s eu d ia d e n ome aç ão o u p elo n om e d e s eu o rg an iz ad or,
problema. A vivacidade e o destemor de Lalau, por exemplo, seriam geralmente um título de nobreza que já não diz nada. Ficamos como o
atributos dos anos da Regência? Inversamente, os traços próprios à c ria do e sp an ho l n o Quincas Barba, que diante das es tatuetas dos dois
polític a do per íodo esclarecer iam o ca ráte r da mocinha ? Ta lvez sim, Napoleões a fir ma com altivez que "no me dicen nada esos dos píca-
talvez não, pois a densidade dos pontos em comum é insuficiente  ros". Aliás, a pes quisa e o métod o expositivo de Gleds on r espondem a
salvo me lhor juízo - par a disc iplinar a interpr etaçã o ou para excluir a e ss e a lh ea me nto , q ue p ro cu ra m s an ar, forne ce nd o à le itu ra a i nforma 
i nte rp re ta çã o a rb it rá ria . E m c omp araç ão , o bs erve -s e a e fi cá ci a d a a rt i ção de época necessária. Um tal sumiço do passado, ou, por outra, a
c ul aç ão s oc io ló gic a, b em e xp lic ad a p or Gl ed so n: a qu el as me sma s q ua  ausê ncia da história na consciência pr esente e na autojustif icação do s
lidades de Lalau adquirem outra vibração quando as vemos como os brasileiros é uma peculiar idade cultur al que vale ela mesma um estu
a trib uto s d e u ma a greg ad a n o q ua dro d e u ma g ra nd e famí lia p at ri arca l. do, além de deixar no vazio as alusões sibilinas de M achado a oca siões
Ne ste s en ti do , d iría mo s q ue Casa velha e xp lo ra a dm irav elm en te u ma nacionais . Par a sentir a difer ença, basta uma vis ita sumária aos vizi
n ho s P arag ua i e A rg en tin a, c om s eu d eb at e h is tó ric o a ca lo ra do , p orme 
( 3) Mac ha do de A ss is , Dom Casmurro, capo CXXII. norizado e iludido.

IlO III

r
Contudo, não é só a nossa ignorância que bloqueia a vibração das II
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datas no romance machadiano. A i ncrível estabilidade das relações - , 55/124
5/17/2018
ouinjustiças - debase dopaís contribui demodo decisivo para confe-
ir alguma coisa irrisória às datas magnas que registram as mudanças
emnossa política. Desse ângulo, o contraste com asperiodizações fran
..
i
Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
cesas, as quais refletem embates em que está emjogo o ser-ou-não-ser
ALTOS E BAIXOS DA
da ordem social contemporânea, é muito eloqüente. O próprio Macha
do foi se dando conta disso e acabou fixando a irrelevância das datas ATUALIDADE DE BRECHT1
políticas como sendo o dado decisivo de nosso ritmo histórico, num
bom exemplo de dialética entre experiência social e forma. A leitura
que Gledson faz da valorização deliberada e engenhosa do tédio em
Esaú e Jacó é interessante a esse respeito. São indicações, enfim, dos
contratempos objetivos que encontrava e precisou contornar um
"N ão há que m pos sa com as cr is es !
romancista que queria configurar a experiência histórica do país, em
Inexoráveis pairam
sintonia com os mais exigentes mestres europeus. Mesmo noções tão
Sobre nós as leis da economia, essas desconhecidas.
"universais" quanto as de período ou dia memorável diferem muito
E m tremend os ciclo s retomam
segundo o processo em que estão inseridas, como cabe aos escritores
As catástrofes da natureza!"
descobrir, sob pena de fazerem má literatura.
B. Brecht,
A S an ta Joa na d os Matad ou ro s (1928-31)

" As r eg ras da e cono mi a gl obal s ão c omo a l ei da


gravidade. Não são regras americanas."

B il l C 1in to n a B ori s I e1 ts in , p or o cas ião d e u m


e nc on tro d e cú pu la e m M os co u,
O Estado de S.Paulo, 3 s et . 1 99 8

Com a licença de vocês, vou fazer o papel de advogado do diabo.


Quero começar explicando o ponto devista segundo o qual Brecht hoje

não tem atualidade nenhuma. Pode ser um bom ponto de partida para
testar a atualidade dele, que gostava de dialética e talvez aprovasse esse
encaminhamento da discussão.
A suamarca registrada, como todos aqui sabem, é apreferência es
tético-política pelo teatro "narrativo", bemcomo a crítica, também esté
f
Í t
tico-política, ao teatro "dramático". Em linha com essa posição, Brecht

( 1) Comentá rio f eito e m seguida a uma leitura pública de A S an ta Joa na d os


Matadouros, organizada pela Companhia do Latão.

112
113

contrapõe o ator que encara o seu papel com distanciamento, como seo Vocês vêem aí, balizada pela relação entre explorador e explora
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estivesse narrando de fora, naterceira pessoa, aoator que seidentifica a dos, a reunião dos temas que mencionei um minuto atrás. Examinadas
te, em carne e osso. revelar estranho, o mais comum pode ser difícil de explicar, e a regra,
5/17/2018 Schwarz,Roberto
De um lado fica a encenação antiilusionista -Sequencias
que, em lugar de Brasileiras
que é [Livro Completo]
aquilo a que -slidepdf.com
estamos habituados, pode ser incompreensível. E
esconder, põe à mostra os procedimentos da teatralização. O público está aí, sob a pressão do caráter nefasto denosso tempo, a exigência de
em conseqüência se dá conta do caráter construído das figuras e, por que sejamos (ascrianças e nós) desconfiados, de que nãoconsideremos
extensão, do caráter construído da realidade que elas imitam e interpre nada como sendo natural, isso para que tudo seja passível de mudança.
tam.Ao sublinhar a parte do fingimento na conduta teatral, a parte da A postura didática e o verso prosaico, em que entre outras coisas deve
coisa feita, Brecht quer ensinar que também as condutas da vida mos reconhecer uma radicalização vanguardista, têm parte essencial
comum têm algo de representação, ou por outra, que também fora do no dispositivo literário de Brecht. O escritor buscava formas frias de
teatro os papéis e a peça poderiam ser diferentes. Trata-se de entender, entusiasmo e de ênfase, para responder à altura, como artista, às cir
em suma, que na realidade como no teatro os funcionamentos são cunstâncias da luta de classes. A vizinhança do catecismo naturalmen
te é um risco.
sociais e, portanto, mudáveis. Do outro lado da divisória, enquanto
isso, ficaria o teatro historicamente obsoleto, o teatro dito "aristotéli Em chave extrateatral esses assuntos podem ser aproximados da
co", que através da catarse, dapurgação dos afetos, ajuda oshomens a idéia marxista da "desnaturalização", de que vocês ouviram falar. Ao
reencontrar o equilíbrio diante danatureza eterna e imutável das coisas contrário dos economistas, que viam na divisão da sociedade em clas
humanas. ses a expressão acabada da natureza humana, Marx a explicava como
Para exemplificar, vou ler o prólogo de A exceção e a regra, onde uma formação histórica, que surgira a certa altura e desapareceria nou
essestópicos estão em resumo. O ator-narrador fala aosescolares a que a tra. Seja dito entreparênteses que o autor de O capital considerava esse
peça se destina (um público não comercial, conforme a preferência de resultado crítico um de seus motivos de orgulho. Voltando a Brecht, a
Brecht): \{
célebre exigência de que a cena represente o mundo enquanto transfor
t: mável participa do mesmo espírito. Se a considerarmos apenas como
Logo mais contaremos J
um lembrete do caráter histórico das relações humanas, sempre muda
A história de uma viagem empreendida diças, ela hoje estaria banalizada. Mas se reconhecermos a ênfase no
Por um explorador e dois explorados.
transformável, com sua recusa tácita do presente de exploração, esta
Vocês olhem bem para o comportamento deles:
remos diante de um imperativo mais difícil, para o qual a inteligência
Notem que, apesar de familiar, ele é estranho f
Inexplicável, apesar de comum Ij da historicidade não pode serdita real senão ao atender àsnecessidades
da intervenção modificadora. A oportunidade do mandamento e a difi
Incompreensível, embora sendo a regra. :,$

culdade de cumpri-Io saltam aos olhos.


Mesmo as ações mínimas, simples em aparência ~ Pois bem, esse conjunto de convicções políticas, teses estéticas
Observem-nas com desconfiança! Questionem a necessidade
Sobretudo do que é habitual! e procedimentos literários que formam a textura da arte deBrecht foi
Pedimos que por favor não achem duramente afetado pela história recente. Não há como desconhecer
Natural o que muito serepete! os tempos mudados. Quem tem idade para lembrar o clima cultural
Porque em tempos como este, de sangrenta desorientação brasileiro de antes de 64, ou antes de 68 - que f oi quando o golpe da
De arbítrio planejado, de desordem induzida direita atingiu defato osintelectuais -, sabe que essas posições des
De humanidade desumanizada, nada seja dito natural pertavam uma emoção e agitação consideráveis. Quando um ator
Para que nada seja dito imutável. dizia, como vocês ouviram na Santa Joana, que a injustiça de classe

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não é uma fatalidade natural, como a chuva, e que portanto ela pode agravaram o abalo. A lista é conhecida: Revolução Russa, hiperinfla
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ser combatida, o efeito de revelação e até de galvanização era incrí ção, Crise de 29, desemprego e subida do nazismo. A síntese do mun 57/124
vel. A unanimidade ficava ainda mais forte se ao contrár io, por do contemporâneo que se encontra no prólogo deA exceção e a regra,
cegueira, ou por conivência com a opressão, a personagem afirmas que é de 1930, dánotícia donovo quadro. Vivemos umtempo "de san
5/17/2018 se que a injustiça é sim um a fatalidade danatureza,
Schwarz, como a-chuva,
Roberto e
Sequencias grenta
Brasileiras desorientação/
[Livro De arbítrio
Completo] planejado, de desordem induzida/ De
-slidepdf.com
que portanto não adianta lutar contra ela. Ao que parece, a recusa da humanidade desumanizada [...]". Para que esse estado de coisas não
força hipnótica do conform ism o e do palco não deixava tam bém de seja dito imutável, o ator mestre-escola pede encarecidamente àscrian
hipnotizar . .. As sim, uma vez que entendês sem os que a injustiça é ças que duvidem . .. do habitual, do familiar, do simples. Pois bem ,

social, e não natural,


transformação a dificuldade
do mundo como que
estava ao alcance ficavaPassado
da mão. superada ea
o tem vocês m e dirão se estou enganado, m as acho que entre a síntes e de
época e os conselhos a respeito há um certo desajuste, que é uma insu-
po, essa facilidade, para não dizer credulidade, parece desconcertan ficiência objetiva ... O mundo nos dois casos não é omesmo, osmomen
tepor sua vez. tos não coincidem. A sangrenta desorientação, o arbítrio planejado e a
Como aspróprias palavras sugerem, a dominação que deve a soli desordem induzida não são habituais, familiares ou simples, e nesse
dez aocostume, àrepetição constante e às aparências de naturalidade é sentido os conselhos contrários a sua aceitação inocente chovem no
do tipo pré-moderno. A luta da dúvida contra o obscurantismo, fora e
molhado. Ou por outra, será mesmo verdade que a sociedade a cami
dentro de nós mesmos, é uma figura clássica da emancipação burgue
nho do fascismo, caracterizada por caos, complô, ação direta, manipu
sa, que tinha como adversário a autoridade feudal e sua caução religio lação etc., pareceria natural? E reside mesmo aí, nessa ilusão de natu
sa. É claro que o antiobscurantismo de Brecht já não pertence a esse
ralidade, o bloqueio que aprisiona os explorados em sua condição,
período, do qual entretanto não se desprende inteiramente. É como se
fechando-lhes a saída em direção deuma sociedade justa? Note-se que
algo da naturalidade e do prestígio feudais sehouvesse transmitido ao nem por isso apostura distanciada epedagógica deBrecht perde aforça
capital, e algo do fatalismo conformado dos servos subsistisse na clas
poética. Voltaremos ao assunto.
se operária, fazendo que o combate ao imobilism o dos poderes de
Em 1948, pouco depois de terminada a Segunda Guerra Mundial,
ontem permanecesse na ordem do dia. Quanto à ordem capitalista de
Brecht tratou de seintegrar aorecomeço da vida na Zona de Ocupação
hoje, cujo cimento há muito tempo não é aveneração de costumes anti
Soviética, que mais tarde seria a República Democrática Alemã. Fugia
gos, sabemos que o passo da ingenuidade à esperteza do cada- um-por
ao macarthismo nos Estados Unidos, quejá o tinha na mira, e buscava
sinão basta para superá-Ia. Digamos que ao desnaturalizar a sujeição e
os seus automatismos, ao lhes historicizar a eternidade, o gesto teatral participar na construção do socialismo, a respeito da qual vinha cheio
brechtiano invocava um espaço de liberdade em que o mundo figurava de idéias próprias, nada convencionais. Como considerar essa associa
como transformável em abstrato. Uma vez que os oprimidos detectas ção, carregada aliás dereservas recíprocas, entre o luminar da vanguar
sem o estranhável no familiar, o irracional no comum e o descabido na da e o novo estado? Este último, sem prejuízo de ser um regime poli

regra, a reordenação compreensível e aceitável da sociedade ficava a cial, bem com o uma impos ição e um satélite da União Soviética,
um passo. Esse o contexto, senão me engano, para entender a pompa pretendia realizar uma aspiração histórica da humanidade. O intrinca
em surdina que cerca a técnica do distanciamento, em especial a sua do verdadeiramente tenebroso da situação desaconselha ojuízo pouco
pretensão revolucionária. informado, como no caso seria o meu. O leitor dos Diários de trabalho
Nalgumas partes da Europa, a Primeira Guerra Mundial varreu a e dos poemas daquela quadra entretanto sente, a par da força literária e
superstição da ordem e da autoridade, aquela mesma que em princípio da disposição crítica muito viva, àsvezes estonteante, osmomentos de
seria o alvo da crítica desnaturalizadora. Os anos seguintes assistiram ranço oficialista e os prenúncios de mumificação. Com a m orte do
a outros cataclismos igualmente "antinaturais", além de inéditos, que escritor, em 1956, a consagração mundial dispara. Segundo as circuns-

116 117

tânc ias , p re va le ce o e stímulo d o mais ino va do r d os a rtis ta s d a e sq uer anos de pré-revol ução - ou sej a, de questi onament o coti di ano da into
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da , o u a e xploraç ão d e s eu p re stígio c om fin alid ade a po lo gé tica. lerável estrutura de classes do país - e no desfecho militar de 64. Em 58/124
O teatro brechtiano entrou para a vida cultural de São Paulo na luga r da atualização c ultu ra l, c ujo termo d e referên cia e ra m os p alco s
mesma segunda metade dos anos 50. Inicialmente como parte da mili  a me rican os e e urop eus d e q ua lida de , v in ha a interrog aç ão do s ne xo s d e
5/17/2018 tân cia a tu aliz ad ora a q ue s e de dica vaSchwarz,
m a s b oas cRoberto
ompa nh ia s p-roSequencias
fiss io  Brasileiras
c la ss e [Livro
interno s, Completo] -slidepdf.com
c ujo a tras o v exa mino so , em qu e n os rec on he cíamos
nai s, que traziam ao palco os aut or es discutidos da época: Tennessee c omo p arte d o Te rc eiro M und o, e ra tomad o c omo p ro blema e eleme nto
Willia ms , Arthu r Miller, J ea n- P au l S artre e ou tros . E ra n atural qu e ch e n ec es sá rio d e u ma s oluç ão vá lida , n ac ion al e moderna. Durante um ani
gasse a vez de Brecht, recomendado pela glória européia crescente. A mado espaço de tempo, que não ia durar, o compromisso com a pr omo

sua assimilação contudo foi mais difícil. Não tanto por ser um autor ção histórica do povo trabalhador primou, como critério de modernida
co mu nista, p ois v ário s d os e sc ritores a dmirad os do p aís ha viam s ido o u de, sobre o anseio de atualização das classes ilustradas.
continuavam sendo militantes, simpatizantes ou críticos interessados A cultura viva dava uma clara guinada à esquerda: trocava de
do comuni smo. At é onde vejo, o que o tornava um corpo estranho era a a lianç a d e c la ss e, de faixa e tá ria e, c om e la s, de critério d e relev ânc ia .
radicalidade da inovação artí stica. No seu caso não bastava aceit ar ou Um pouco na real idade e mui to na i maginação, mudavam os produto
rejeitar um conjunto de posições mais ou menos ousadas, postas em res , a p latéia, o a ss un to , o p ro grama, a té cnica e a s s impa tias internac io
c en a à man eira c onv enc io na l. A no va p ro pos ta inc luía u m pa co te d e a ti nai s, agora fixadas na Revol ução Cubana, obr a também ela do i ncon
tude s e p ro ced imen to s iné dito s, cu jo b ê-á-bá era prec is o a prend er. As formismo de gente que não chegara aos 30. A nova geração t eat ral, de
imp lica çõe s de o rd em ge ra l, q ue s e d es ejav am rev oluc io ná rias e m rela formação menos acabada que a outr a, estava próxima do movi mento
ção à cultura burguesa no seu todo, por ora ficavam na penumbra. As universitári o e de sua rápida poli tização. Buscava contato com a l ut a
dificuldades iam do elementar, da compreensão do que pudesse ser o operária e camponesa organizada, com a música popular, e comparti

tal "efeito de e stran ha me nto", a té a ine vitá ve l c ontrad iç ão c om interes  lha va o modo d e vida p re cá rio e pré-ad ulto do s e stud antes , q ue n ão raro
ses criados: as companhias gi ravam em torno de at ores famosos, que eram p obres e le s mes mo s. O relativ o p re ju íz o e m e sp ecializ açã o a rtís 
queriam saber se a sua arte de ar rebatar a p lat éi a agora i a p ara o li xo, ou tic a, be m co mo u ma c erta d es clas sifica çã o s oc ia l, n o c on te xto faz ia m
figura de prenúncio do socialismo. Desrespeitavam a fronteira cultural
por outra, se a nova técni ca não matava a emoção. Lembro da genuína
perplexidade nos ensaios d eA a lma b oa de Se ts ua n (1958), onde Maria iJ I en tre as c la ss es e e stav am e m s inton ia co m a n ova feiçã o d o mov imen 
Della Co sta e S and ro Po llon i p ed ia m e sc la re cime ntos a Ana tol Ro se n 11 to popul ar . O guarda-chuva do nacional ismo populi sta propiciava o
feld, que começava a assumir com brio o seu papel de explicador de contato entre setores progressistas da elite, os trabalhadores organiza
Brecht. do s e a fra nja e squ erdiza da da c la ss e méd ia , e m e sp ec ia l os e studa ntes
11 e a intelectual idade j ovem: para efeit os ideológicos, essa li ga meio
A modernização dos palcos pauli stanos na década de 50, que foi
um p ro gres so no tó rio, h av ia d epe ndido d a c ontribuição d os e nce na do 
,
$ demagógica e mei o explosiva agora era o povo. A inserção aguda e crí
%
tic a d o e sforço c ultu ral mais d o q ue c ompe ns ava o refin amen to a rtís ti
res estrangeir os, além de passar por um novo profissionalismo, pelo li
b om p re pa ro d os a to re s, p ela atua lizaç ão d o rep ertó rio e , v isto o c onjun  co do decênio prévio, em fim de contas bastante convencional. A
to, pela digni ficação burguesa da vida teatral. Nas est réi as do Teatro imp reg na çã o da s a rtes d o e sp etácu lo pe la tarefa h is tó rica d e d ar v oz à s
desigualdades nacionais teve i mportância imensa, que até hoje não se
Bras ileiro d e C oméd ia res pira va -s e distin ção de c la ss e, c omo a liás n os
esgotou.2
c on ce rtos d a Cu ltura Artís tica, on de s e a pres en ta va m mús ic os de rep u
As vocações requeri das pela nova conj untura eram do t ipo agit-
t ação i nt ernacional em clima de fruição civil izada e casacos de pele. li
prop. Hav ia an te ce den te s ilu stre s n a fas e d e ch oqu e d o Mo de rnismo de
E nq ua nto iss o, a ten dên cia n o plan o na ciona l e ra o utra , imp rimind o u m
c on te úd o d iferen te à n oçã o de prog re ss o. En trav a e m mov imen to a ra di (2) Para uma exposição mais detalhada, Roberto Schwarz, "Cultura e política,
cali zação do popul ismo desenvolvimentist a, que iri a desembocar em 1964-1969", in O pai defamília, Rio deJaneiro, Paz e Terra, 1978. li:!
I

118 119
:1

I1I

22, afinidade que no entanto custou a setornar consciente e produtiva. pelas relações de favor e pelas saídas da malandragem. A inteligência
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As alternativas em debate, que estavam por toda parte e, ainda que pre de vida que está sedimentada emnossa falapopular tem sentido crítico 59/124
cariamente, tinham envergadura histórica e enraizamento prático, específico, diferente da gíria proletária berlinense, educada e afiada
desestabilizavam as compartimentações correntes da vida do espírito. pelo enfrentamento de classe. Conforme um descompasso análogo
O momento pedia inteligência política, invenção de formas, agilidade entre asrespectivas ordens do dia, o nosso zé-ninguém precisava ainda
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
organizativa, disposição para o enfrentamento, além de irreverência na se transformar em cidadão respeitável, com nome próprio; ao passo
utilização da cultura cons agrada e capacidade para tratar em pé de que para Brecht a superação domundo capitalista, assim como a disci
igualdade os recursos da arte erudita e da tradição popular. Esse o cal plina da guerra declasses, dependiam dalógica do coletivo e da crítica

do de cultur a militantista em que o rigor artístico e ideológico de à mitologia


histór burguesa
icas não do indivíduo
eram iguais, emboraavulso. Em de
a questão suma, as -constelações
fundo a cr ise na
Brecht, o seu compromisso sistematizado com a revolução, mais adi
vinhados que conhecidos, até por dificuldades de língua, iriam ganhar dominação do capital- fosse a mesma, assegurando o denominador
vida. Depois de décadas, tratava-se da ressurreição no Terceiro Mundo comum. Entre parênteses, algo daquela aspiração brechtiana ao anoni
f,

iI
do artista conseqüente dos anos 20 e 30, que concebera a sua arte van i, mato superador talvez se encontrasse, entre nós, na poesia política de
guardista e combativa na atmosfera ainda atual das revoluções russa e Carlos Drummond deAndrade, quetambém desejou anular o pequeno
alemã, pressentindo aliás a clandestinidade antifascista que viria em burguês dentro de si. Como aliás a codificação lingüística da oposição
seguida. Na verdade, nada mais distante dos espetáculos impecáveis entre as classes era um programa deJoão Cabral de MeIo Neto.
m as inatuais com que agora nos anos 50 o Berliner Ensemble, sob a
direção do próprio Mestre, conquistara uma certa hegemonia no teatro
I O desajuste principal, contudo, seprendia à própria idéia do dis
tanciamento. Este devia abrir um campo entre o indivíduo e seus fun
europeu. f cionamentos sociais, de modo a dar margem à consciência crítica, tor

A funcionalidade do espírito brechtiano para a esquerda terceiro nando patentes a estrutura absurda da sociedade, a lógica de classe do
mundista é fácil deentender. Avinculação das Letras a um programa de processo e o irrisório da luta individual. Ora, a dimensão nacionalista
experimentação coletiva e em toda linha, seja artística, política, filosó do desenvolvimentismo requeria, pelo contrário, uma boa dose daque
~ la identificação mistificadora que o distanciamento brechtiano, fruto
fica, científica ou organizatória, assim como a recusa do realismo
socialista, respondiam a impulsos reformadores reais. Em m eio a j: em parte da crítica de esquerda às chacinas patrióticas da Primeira
comunistas ortodoxos e heterodoxos, católicos de esquerda, populistas
antiimperialistas, artistas de vanguarda e libertários em geral, e a des il Guerra Mundial, desmanchava. Ficou famosa a solução de compro
misso desenvolvida na época pelo Teatro deArena, brilhante sob mui
peito da falta de informação, Brecht se tornava algo como um supere f tos aspectos, além de representativa em suainconseqüência: no centro,
-~i
go difuso: o dramaturgo cujas inovações tinham como referência a um herói popular e nacionalista, a quem o ator e o público seidentifi
reflexão independente sobre a luta declasses era umideal, e defato pro cavam com fervor; à volta, os anti-heróis daclasse dominante, a que os
punha um eixo novo. Aliás, o senso derealidade e o espectro largo de recursos brechtianos da desidentificação e análise, com a correspon

suaexperimentação mudavam a qualidade do próprio experimentalis dente cabeça fria, emprestavam o brilho e a verdade que, por uma iro
m o, ao qual conferiam uma nota diferente, livrando de literatice o nia da arte, ficavam fazendo falta ao outro, o qual contudo devia nos
servir de modelo.3
modernismo literário. Isso dito, vale a pena mencionar, para refletir a
respeito, os desencontros que Brecht ocasionava, já que os anos 20não A ninguém ocorria seguir à risca os ensinamentos de Brecht, que
eram os anos 60, nem aAlemanha era o Brasil. no entanto funcionavam como um desafio, vindo de regiões mais exi-
Como sabem os tradutores, a linguagem nua dos interesses e das
(3 ) O s p ara do xo s d o T ea tro d e A re na fo ra m a na li sa do s n o ca lo r d a h ora , c om s im
contradições de classe, que imprime a nitidez sui generis à literatura p at ia e a cu id ad e,
p or A na to l R ose nf el d: "H eró is e c or in ga s" , i n O mit o e o herói nomo-
brechtiana, não tem equivalente no imaginário brasileiro, pautado derno teatro brasileiro, S ão P aulo, P er spec tiva , 1982.

120 121

gentes da reflexão e stética e política. O ac ento no rac iocínio claro, na meios trocava de sinal e dava um incrível espetáculo de auto-superação
exploração de classe e no raio X das i deologi as baratas tornava i ntragá
http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo a celerada, em que para bem e para mal pulsava a hora histórica. A luci 60/124
vel a gelatina do nacionalis mo populi st a, além de contrast ar com o fra dez quanto ao despreparo estético e político, naquele momento de inicia
co teor polí ti co da l it eratura brasi leira em geral. Sem que se pos sa falar ti vas e improvi sações not áveis, sempre a meio cami nho entre o genial e
de filiação estrita, eram posições que os artistas em busca de conseqüên a estudant ada, conta ent re os t raços memoráveis da época.
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
cia, e parte dos especta dores, iam reconhecendo c omo suas. Natural Voltando à canção, na quelas circ unstânc ias o envolvimento do
mente o histo riador da literatura pode perguntar pela importância de teatro com a músi ca popular faria uma dif erença de peso. Par a o t eatro,
Brecht para Revolução naAmérica do Sul, a peç a tosca e muito inova porque a tenta tiva de combinar a sua lingu agem, de circuito restrito, a

dora de Boal, ou para A mais-valia vai acabar, seu Edgar, uma farsa outra de imensa aceitação, com processo produtivo e enraizamento de
didática de Oduvaldo Vianna Filho, na qual se expunha o bê-á-bá da c lasse muito diferente, alterav a tudo. Para a canção, porque o teatro
exploração econômica. Mas a questão ficaria melhor e mais materialis político e e xperimental se dirige , e m nome da liberdade, à fração des
ta se fosse coloca da ao contrário. A verdade é que o ascenso político da pert a da contra-eli te do paí s, em oposi ção ao rebanho dos consumi do
massa tr abalhador a e dos confli tos própr ios à s ociedade i ndust ri al tor res. Essa postura (ou pretensão) de vanguarda traz algo insubstituível.
navam caduco o quadro e streito do drama burguês e levavam a jovem É verdade que as combinações del iber adas entr e samba, âni mo exper i

Ii
dramaturgia a reinventar a roda , isto é, a lógica do teatro narrativo _ mental e conquistas da poesi a modernista, que forçavam vár ias divisó
c om re sultado tão vivo quanto precário. Ne sse contexto, o trabalho rias sociais e culturais, vinham de um momento anterior e não haviam
brechtiano tinha muito a oferecer. 4
c omeçado c om o teatro. Formavam parte brilhante d a modernizaçã o
Se não me engano, a principal ajuda consistiu em e levar brusc a brasil eir a, com os s eus epis ódios de descomparti ment ação e real inha
mente o patama r da ambição, numa á rea até então de pouco arrojo. As mento de class e, onde graças à i magi nação e ao t rabalho art íst ico fi ca
perspectivas que o novo tipo de teatro p olítico abria à c anção - e vice vam superadas, de modo produtivo e prometedor, as not óri as f raturas
versa - podem dar uma idéia do salto. Como se sabe, o song brechtiano que invi abil izavam o paí s. Di to iss o, o hori zonte da revolução, encena

I
tinha pa rte com a experimentação teatral de ponta, era composto por do pelo teatro, introduzia ne sse processo um ponto de fuga radic al. A
músicos de vanguarda, a letra era obra de um grande poeta, e o conjunt o r epresentatividade pecul iar de composi tores-cantores como Caetano
i ntegrava um moment o alto de questi onament o da ordem burguesa. Sem Vel oso e Chico Buarque, ou, noutr a esfera, o cineast a Glauber Rocha,

I
intenção de desmerecer ninguém, era uma constelação que não seencon deve algo à irradiação daquele momento, quando se ligaram como
trava no Brasil, salvo, até certo ponto, para o último termo. Este, no f orça histórica os processos da art e popul ar, o experimentali smo esté
ent anto, como que foi sufi ciente para sugerir os demais, embora sem os tico e a encenação política.5
suprir... Os nossos grupos teatrais não vinham de uma formação literária Al go paralelo ocorreu em relação ao teat ro de revi sta, cuj a tr ivia
forte, e algo parecido valia, até onde sei, pa ra os músicos a que se asso t li dade popul aresca era r ecusada pelo teat ro s éri o, que buscava a atual i
ciaram. Contudo, i nspir ados na radi cali zação hist óri ca em cur so, que li zação cult ural. Ora, o t eatr o com referência brechtiana, céti co no que se
abria um canal decisivo entre a experimentação artística e a transforma tis refere à seri edade do t eatr o s éri o, t ratou de reat ar com a dimensão i rre
ção do mundo conte mporâne o, os espetáculos do Tea tro de Arena, do verent e do pri meiro, sobretudo com a sua forma solt a, as canções inter
CPC, do Oficina, do TUSP e certamente outros mais ganharam altura. Uma cala das e a malícia geral, em que enxergava apoios para o distanc ia
vez alimentada pelo sentimento agudo da atualidade, à qual era preciso mento crítico e recursos para uma arte antiburguesa.
responder com os meios disponíveis, a relativa limita ção cultural e de

(5) Esses vários c ruza me ntos a pa re ce m c om rique za nos e sc ritos de Cae ta no


(4) Para uma visão abrangente e articulada do processo, ver Iná Camargo Costa, VeIoso, Alegria, alegria, Rio de Janeiro, Pedra Q Ronca , s. d. , e Verdadetropical, São
A hora do teatro épico noBrasil, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996. Paulo, Companhia das Letras, 1997.

122 123

Em 1964, o golpe de força da di reita t runcou, sem encontrar aliás tar ao ter ro r a s ua pr óp ria b as e s oc ia l, p er dia o q ue lhe r es ta va de c rité rio e
grande resi stência, o vast o pr ocesso democrático a que o novo t eatro a lc an ça va um p atamar s up er io r de b ar bá rie. Na s ua p ar te c rítica , a v id a
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procurava r es ponder. Como é sabi do, a repr es são ao movimento ope intelectual ficava sem dimensão pública possível. Contudo, proibir não é
refutar, e nesse sentido a inspiração brechtiana, como aliás o debate geral
tin ad a a p ar alis ar o s e stud an te s e a in telec tu alid ad e d e o po siçã o, s e p ro  d a e s qu er da , s aíam d e ce na mas n ão pe rd ia a r a zã o de s er . Até p elo c on tr á
5/17/2018 vou cont or nável. Assi m, em pouco tempo Schwarz, Roberto
a esquerda voltava a-marcar
SequenciasBrasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
r io , a r epr es são e ra co mo q ue o a te stad o v iv o d e s ua a tu alid ad e. A s ur pr e
presença e até a predominar no movimento cultural, só que agora saviria mais adiante, ao longo dos anos 70, quando a abertura política deu
atuando em âmbito socialm ent e conf inado, pautado pela bilheteri a e e sp aç o à r etomad a d as p os iç õe s a nter io re s - mas estas já não conven
distante dos dest inatários populares, que no período ant er ior havi am
conferido transcendência - em sentido próprio - à s ua produção. Por ciam. Dev id o à d itad ur a, o de ba te p olític o f ic ar a n a g elad eira e nq ua nto o
mun do e o p aís mud av am. Ora , po r mais qu e a no ss a c rítica liter ár ia d ig a
u m a ca so inf eliz , o u me lho r, p or f or ça d a v itór ia d a d ir eita , a n ov a g er a o c ontrá rio, o s p ro ce dimen tos a rtís tico s têm p re ss up os to s qu e n ão s ão
ç ão tea tr al a lc an ça va a p len itude a rtís tica , d e q ue a q ue stão r ev oluc io  artísticos eles próprios: a derrocada do comunismo, que havia começado,
nária fazia parte, no momento em que as condições históricas favoráveis b em c omo a s n ov as f eiçõ es d o ca pita lismo, a fe tav am a téc nica tea tr al d e
a seu pr oj eto haviam desaparecido. D epois de ter si do um movimento Brecht na sua credibilidade. Entrávamos no mundo de agora.
e fe tivo d a intelec tu alid ad e d e e sq ue rd a, a ida e stétic o- po lítica a o p ov o A e xp licita çã o d o ar tifício ar tístic o f oi um pr oc ed imen to ge ra l d as
refluía para a condição de experimento gl or ioso e i nt errompido, que va ng uar da s, d ec id id as a r as ga r o v éu s ac ra liza do r e n atur aliz an te da f or 
continuaria alimentando a imaginação de muitos, ao mesmo tempo ma o rg ân ica . P ar a u ns , tra ta va -s e d e a ta ca r a p ar te da r ev er ên cia a pa ss i
q ue, no utro plano , s e tr an sf or ma va e m matér ia d e êx ito n o me rc ad o c ul va do ra n a a titu de e stétic a. Pa ra o utro s, d e d es au to ma tiza r a a te nç ão de
tural. Como não podi a deixar de ser, o tr iunf o em cena daquela mesma lei tores ou espectadores, embot ada pelo hábit o. Par a outros ainda, de
esquerda que, na rua, fora bati da quase sem luta, iri a trazer e el aborar
as marcas do que suceder a, levando a rumos imprevistos, entre mui tas salientar o aspecto material do trabalho dos artistas, para alinhá-Io no blo
c o d o pr og re ss o, c om a s o utra s f or mas de p ro du çã o p ro fa na . To da s e ss as
ou tr as c oisa s, a pr óp ria e xp er imen ta çã o b re ch tian a. Po r e xe mp lo , a u ti d imen sõ es e xistia m n o p ro ce dime nto br ec htia no , o nd e en tr etan to e la s
1iza çã o do s pr oc ed imen to s n ar ra tivo s, c on ce bida o rigina lmen te p ar a mud av am d e a lc an ce, a o s e ve re m ins cr itas d ir etamen te n a vira da ge ra l
p ro piciar a d is tâ nc ia c rítica , n algun s momen to s v ia -s e tra ns for ma da da históri a contemporânea, do capi tali smo ao comuni smo. O vínculo
p or Bo al e Gla ub er n o s eu c on tr ár io , e m v eículo d e e mo çõ es n ac io na is , entre o experimentalismo acintoso e a luta pela transformação política da
"de epopéia", para fazer contrapeso à derrota polí tica. Est ava de volta sociedade conferia à literatura de Brecht um tipo peculiar de pertinência,
a iden tifica çã o c ompe ns ad or a d e qu e B re cht d es ejar a liv ra r a cu ltur a.
p ar a n ão d iz er a utor id ade . P elas mes ma s r az ões , ela f ic ar ia mais vu ln e
Paralelamente, no teatr o de Zé Cel so os efeit os de distanciamento
rável que outras aodesmentido que ahistória infligiu a suas expectativas.
adquiri am um t imbre equí voco, mais da ordem da dis soci ação que do Esquematicamente, a t ransf or mação brecht iana do teatr o - con
e sc la re cime nto, e m q ue a utod en ún cia f er oz ( o impu ls o c rítico ) e a uto cebida nos anos 20 - pressupunha que estivesse em curso a superação

complacência descarada (a desqual ificação da crít ica, uma vez que os do capit al ismo pelo comunismo, ou, em faixa paralel a, o seu travesti
s eus p or ta do re s h av ia m s id o d er ro tad os ) a lter na va m e s e c on fu nd ia m, mento p elo f as cismo. Dir ig id os c ontra e ste ú ltimo, os p ro ce dime ntos
encenando uma espécie de colapso his térico e hi stórico da razão. São a ntiilu sion is ta s e ns in av am a s ob ried ad e men ta l anti-kitsch, capaz de
pont os de chegada substanciosos, por vezes i mpressionant es, em que lhe d en un ciar a s imp os tu ra s. Qua nto ao c apita lismo, a po siçã o d is ta n
s e c on de ns ar am imp as se s d e no ss o d es tino r ece nte. c ia dor a p un ha e m r elev o a s ua irr ac io na lida de obsoleta, q ue os tra ba 
Em 1968, através doAto Institucionalnº 5,a ditadura estendeu àopo lhadores - ou seja, a revolução - iriam superar. Ora, como hoje é do
s iç ão d e c la ss e méd ia e a lta, b em c omo a o c ampo d a cu ltur a, a r ep re ss ão conhecimento geral, a experiência histórica feita em nome do comunis
que até aquele momento havia reservado aomovimento popular. Ao sujei- mo se afastou imensamente dos propósitos iniciais e levou a pior no

124
125

confronto com a ordem do capital. Há diferentes explicações para a t e, fi li ado à l it eratura nat uralist a, no qual a contri buição volunt ária dos
derrota, mas, sejam quais forem, ficou difícil imaginar que no camp o associados a fastava da ce na as considera ções mercantis e o ponto de
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do "s ocialismo real " se esti vess e ges tando uma sociedade de t ipo s upe vista ofi cial- e o avanço his tóri co das organizações operári as aut ôno
rior. As revelações a r espei to, vindas no boj o do colaps o, espantaram
mas. Como bem obs erva I ná Camargo Costa, essa ali ança configur ava,
até os be m informados. Assim, a clarividência e a d ianteira históric a
parcialmente, uma apropr iação popul ar dos meios de produção cul tu
5/17/2018 presumidas no procedimento Schwarz,
brechtiano Roberto
fic avam -Sequencias
sem apo io no an da Brasileiras
ral.x [Livro Completo]
Logo adiant e, ent retanto,-slidepdf.com
com a imposição do i nteresse nacional
mento real das cois as, tr ansformando em il usão a s uperi oridade crít ica. sovi éti co no i nterior do movimento dos t rabalhadores, o quadro passa
O dist anci ament o fazi a fosforescer a face caduca do mundo capit ali s va a s er outr o. A dimensão crí ti ca do distanciamento brechti ano deixa
ta, mas não habilitava por si só a v isualizar o esperado sistema de vida va de ter o vento da história a seu favor, em especial no campo socialis
melh or - cuja feiç ão voltava a ser de sconhecida. Digamos então que, ta, e se tornava um exercício de estilo ou, também, de nostalgia de
hoje como ontem, o caráter absurdo e devastador do capitalismo se épocas gloriosas - recém-encerradas, antes quase de começarem, o
impõe como uma evidência, a qual c ontudo está historicamente presa que não as impede de existirem como o momento canônico da revolu
a outra, à r evelação da dinâmi ca r egress iva das s ociedades que r ompe ção. Para fechar o círculo, lembremos que na URSS dos anos 70 a " mani a
ram com o padrão burguês na tentativa de superá-Io. Isso não torna de consertar o mundo" veio a ser o nome próprio da doe nça mental dos
i nsuperável esse padrão, mas mostr a que não é sufi ciente sair del e par a dissidentes, cuja cura exigia internamento psiquiátrico. Trabalhando
criar outra ordem s uperi or. Dif erent ement e do que a esquerda supunha, na Repúbli ca Democráti ca Alemã, não seri a est ranho que um operári o
a passagem da crítica à superação mostrou não ser automática, nem
de linha brechtiana se opusesse à inculcação ideológica " habit ual mas
ó bvia. Na circunstância , o compone nte didático do distanciamento
incompreensível", para em seguida preferir o ca pita lismo e acabar na
brechti ano ficava sem ter o que ens inar , aomenos diretamente, e muda cadei a. O ali nhamento automáti co ent re distanciamento e socialismo
va de sentido. Uma encenação à altura do que a contragosto todos
havia muito tempo era ideologia.
aprendemos tem de levar em c onta esse horizonte difícil, sob pena de
Qua ndo fo i derrubado, em 1964, o governo Gou lart levanta va
transformar em kitsch de segundo grau a ges ti culação da s obriedade.
bandeiras sociais avançadas. O golpe mi li tar em def esa de "t radi ção,
Pensando no público em que se inspiravam as suas inovações, e
famíl ia e propri edade" confir mava uma vez mais a dist ribui ção clássi 
que elas por sua vez estilizavam, Brecht se refere a "uma a ssembléia de
ca de papéis, que nos países desenvolvidos saíra da ordem do dia: a
transformadores do mundo" - uma companhia peculiar, de caráter
esquerda queria mudar a soc iedade, ao passo que a direita se aferra va
proletári o, amiga sobr etudo da insatis fação bem formulada, do espíri 
ao passado. Com a s diferenças do caso, esse havia sido o próprio hori
to crí tico e de propostas subvers ivamente materi ali stas e práti cas." Se
zonte inicial das vangua rdas históric as, horizonte que dava sinais de
não for uma ilusão retrospectiva, esse espectador sob medida para o
persistir no Te rceiro Mundo, onde o dispositivo literário de Brecht
t eatr o pol íti co exi st iu durante um cur to perí odo, nuns poucos lugares,
reencontrava ajusteza antiga. Assim, o programa de desnaturalização
li gado a condi ções especiais, que merecem reflexão.7 Era o resultado
das conve nções teatrais parecia parte e símbolo de outra vira-volta
da confluência entre os "teatros livres" - um expe rimento importan- mais transcendente, alinhando com a superação soc ialista da ordem
burguesa, incapaz de evoluir.
(6) Bertolt Bre cht, Arbeitsjournal, Fr an kf ur t/ M. , S uh rk am p, 1 97 4, v oI . 1 ,
p.270. Pois bem, passados dez ou quinze anos, quando o arrastado pro
(7) Comenta ndo a s c ondições de e xistência de um verda de iro tea tro polític o, cesso de abert ura polí ti ca permit iu que as reflexões est éti cas e históri
Brecht anota com parcimônia sardônica: "Depois da Primeira Guen'a Mundial, havia cas vol tass em acomuni car entr e si ,constatou-s e que os anos de ditadu-
1'1
teatro em quatro países: o primeiro passara por um cataclismo social completo; o segun
do, por um c atac lismo pela metade; o terce iro, por 114;o último, por 118.- O terce iro
I (8)Iná Camargo Costa, Sinta o drama, Petrópolis, Vozes, 1998, pp. 19-26; Ana
era a Tcheco-Eslováquia, e o quarto a América, depois da grande crise". Não é preciso'
dizer que o primeiro havia sido a Rússia, e o segundo a Alemanha. Id., ibid., p. 315. tol Rosenfeld, Teatroalemão, SãoPaulo, Brasiliense, 1968, pp. 120-3.

126 127

ra n ão haviam sido propriamente conse rvado res - sem prejuízo de seu


não encontr am corr espondência plausí vel na noção de progr ess o, mas
horror. Além do salto dado pela indústria e por sua internacionalização, tampouco na de passadismo. A esfera supran acional d as dec isõ es de
http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo
que mud avam muito as coisas, houve nos ano s do "milag re e conômi in vestimento, na qual dívidas social-históric as têm pou ca e ntrada, 63/124
co" uma consi derável l iberação dos costumes s exuais, a r elati var oti ni  reserva a seus representantes o uso como que exclusivo da fala com
zaçã o d o uso de dro gas, a incorp oraç ão de uma pa rte dos pob res a o c on
relevância, ou com acesso a financiamento, o que dá no mesmo. As
5/17/2018 sumo de massas, por precário que fosse , bem c omo
Schwarz, o grande -
Roberto a vanço da
SequenciasBrasileiras [Livro
que ixas Completo]
sinc eras que os proc-slidepdf.com
urado res do ca pital mundializado e pro-
mercantilização na área da cultura, com a correspondente dessacraliza gressista opõem ao conservadorismo impatriótico dos sindicatos e
ção des sa últ ima. A dit adur a foi ant ipopular, mas não tr adicionali st a, demais defensores da nacionalidade, sempre derrotados, express am o
nem des denhava cál culos maquiavélicos , ant it radicionais a s eu modo. novo si stema dei lusões e a nova corr elação de forças. O quest ionamen
É possível, por e xemplo, que "lib eralizasse" e m á reas tabu, até e ntão to do ca pital pare ce já não estar a c argo dos trabalhado res, mas da s co n
desvinc ula das da política, a o mesmo te mpo q ue suprimia, mediante tr adições dele própri o, que evolui sem adver sário de peso equival ente.
policialismo e terror, as liberdades públicas essenciais. Caetano Veloso O ímp eto da inova ção, ba sta nte às cegas e num ritmo de feira tecn oló
assinalo u o proble ma d e outro ângulo, ao obse rvar que a poesia tropi gica, em que a desnaturalização adqui re algo desmesurado, de calami 
c alista tev e como pano de fund o a coincidênc ia en tre o au ge da c ontra dade da natureza, está com o dinheiro. Em comparação, nada mais
cultura e o pior período autoritário.9
comedido que a dessacralização brechti ana da desi gual dade social.
Seja como for, a recuperação capitalista de aspirações libertárias, Embora se considerasse criador e teórico de um teatro novo,
própri as até ent ão à tr adição anti burguesa, começara t ambém no Brasil , Brec ht in sistia na an tigüid ade do tea tro épic o. Este fora praticad o po r
desativando em v ários pontos o sistema d e altern ativas em que se ins chineses ej apones es, por eli sabetanos e espanhóis do Siglo de Oro, sem
pira o engajamento socialista. A certeza da e squerda, se gundo a qual o esquecer os aut os medievais e o didati smo dos padres jesuít as. Ass im,
part ido do movimento era ela própr ia, aopasso que s eu advers ári o seria as técnicas da representação antiilusionista não eram originais, ou
conservador e passadista, perdia o pé na realidade (e se mantin ha viv a melhor , elas se t ornavam moder nas em senti do forte s óquando r et oma
aopreço de as palavras fi carem sem s entido) . A vitória do capit al só não das - como foram - no horizonte revolucionário à volta da Primeira
era tão c ompleta q uanto nos países do cen tro po rque e ntre as força s qu e Guerra M undi al, com s eu movimento operári o, ant iburguês e ant icapi
obri garam à abert ur a pol ít ica est ava o novo si ndicali smo independen talista, que fazia a diferença. Nessas circunstâncias, umas poucas
te, que e m seguida daria ba se ao Pa rtido dos Trab alha dore s. Durante sociedades - talvez se devesse dizer cidades - se dotaram de um tea-
alguns anos, atí pi cos à vist a do que s e pass ava no mundo "adi antado", tro político. Tra tava -se de um instituto peculia r, qu e tinha como pre 
o ant agonismo ent re tr abal ho organizado e capital pareceu comandar a missa um movimento popular poderoso, emancipador, capaz de se
cena brasileira à mane ira clá ssica, prevista pela esquerda. A idéia de defender contr a os adver sários, além de se i nt eressar pel o li vre exame
progresso não se esgotava em mera mudança e permanecia vinculada, de su as qu estões vita is, com vista s em transforma ções prática s. Para
como a um pré-requisito evidente, à superação mais ou me nos progra  assinalar o incomum dessa criação, Brecht lembra que a maioria das
g rande s nações não se inclin ava a examinar os seus problema s n o pal
mada de iniqüidades histórica s - a té que também aqui o sin dica lismo co, e que Londres, Paris, Tóquio e Roma mantinham os seus teatros
perdes se a iniciati va, bati do pel a nova preponderância que a mundi al i
z ação, e a conc omita nte ameaça d e crise, conferiam ao capital. Este se com fina lidades comple tamente outras, ficand o à margem da ino va
impun ha atravé s d a qu ase-fatalidad e e do quase-a utomatismo de seu ção. 10 - Mas voltemos à afinidade entre a re volu ção social e o pac ote
curso de mudanças aceleradas, que saía caro não acompanhar (mais dos procedi mentos ant ii lusi onis tas. A encenação que a par da mat éri a

ca ro p ara uns que para outros), ao passo que os estrago s deco rre ntes já
(10) Ver "O teatro épico pode ser feito em qualquer lugar?" (Sobre uma drama
turgia não aristotélica), e "Teoria política da desfamiliarização" (Nova técnica da arte
(9) Caetano Veloso, Verdade tropical, o p. cit., p . 3 63 .
dramática), Gesammelte Werke, vol. VlI, FrankfurtlM., Suhrkamp, 1967,pp. 272 e 358.

substantiva
busca e discute a si mesma em todos os planos, incluídas a s para doxalmente, em parte talve z por uma questão de taman ho, como
suas condições materi ai s, como que des naturali zando as r elações ent re um dissuasivo.ll
esses aspectos, é um análogo da sociedade em vias de esclarecer e
http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo 64/124
Noutras palavras, o distanciamento artístico parece desvitalizado
t rans formar os própri os f undament os. Com mai s ou menos consciên
pelas circunstâncias: que mais quer o materialist a, se há mercadorias à
cia, o cult ivo moder nist a da aut o-r eferência alude a essa vir tual idade
escol ha e s ea engrenagem mercantil integr a a t odos? Essa objeção, que
prometéica, autocri adora, que lhe empresta a vibração radical. A clare
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras tem [Livro
(ou teve?)Completo] -slidepdf.com
o apoio do dia-a-dia nos países em que o salário e a pre
za po lítica de Brecht a resp eito ajud a a ver o vín culo de orig em, ao mes
vidênci a social i ntegraram a classe t rabalhador a, está por tr ás da tr ans
mo tempo que faz ret1etir sobre os rumos da ulterior dissociação. A formação de Brecht em clássico, quer dizer, em genial escritor de
invi abili dade dess e t eatro crí ti co nos paí ses f ascistas e, a part ir de cer outras eras. No Brasil, onde mais uma vez vivemos um momento de
t omomento, na URSS, dispensa comentários. Mais oport uno hoje é con atualização, ou seja, de moder nidade def inida pel o padrão mundiali
siderar as redefinições ocorridas em nossa própria socie dade, em qu e zado, que é o dos países de que dependemos, não tivemos dúvida em
até s egunda ordem o ponto de vis ta da mercador ia adquir iu uma pri ma achar que estamos no mesmo caso ou, pel o menos, no mesmo caminho.
zia inédita.
Mas será exato?
É f ácil notar o uso que a publi ci dade tem feit o dos result ados mais
N a esfera do teatro - que não é decisiva no capítulo - o interesse
sens acionais da art e de vanguar da, entr e eles os recursos do ator brech
renovado por Brecht aponta em direção diversa. Até onde entendo, e
t iano. O ganho em inteli gência repr esent ado pel o dist anci amento, con
vocês dirão s e me engano, o ensi namento que se busca no ant ii lusi onis
cebido outrora p ara estimular a crítica e liberar a escolha social, troca
mo dele é mais da ordem da pergunta que da resposta, embora a son da
de sinal sob re o n ovo fundo de consumismo genera lizado, ajudando,
gem tenha hori zont e de engaj amento col eti vo. Não assi m por que a solu
suponha mos, a promover uma marca de sapólio. Você s e stã o le mbra
ção esteja lá , pronta, mas porque diante das proporçõ es e da história da
dos do excelente ator que faz a propaganda de televisão da palhinha
Bom Bril. O distanciamento não só deixou de distanciar, como pelo desigualdade brasileira a idéia "atualizada" e pró-mercado de renunciar
à intervenção coletiva, ou de estaci onar nos li mi tes recomendados, do
contrário vivifica e torna pala tável a nossa se micapitulação, a c ons
espectador, do consumidor e do eleitor, parece ficar aquém, implicando
ciência de que entre a s m arc as con correntes de sapólio pode não hav er
a atrofia de formas de consciência já desenvolvidas. Com perdão do
grande diferença, e de que n o e ntanto nos rea lizamos "escolhendo".
esquematismo, imaginemos que até 64-68 a desnaturalização brechtiana
Noutro plan o, como se obse rva na a bertura de qualquer no ticiário de
funcionasse como uma pal avra de ordem oportuna, s ob encomenda para
TV, também o foco brechtiano na i nfr a-estr utura material da i deologia remover o verniz de eternidade que protegia, além do pal co, o latif úndio
- na inclusão didática dos bastidores na cena de primeiro plano - tro e o Imperi ali smo. Em seguida, com o surto industr ial dos anos do "mil a
cou de sentido, funcionando como apoio à autoridad e do capital, e não
gre" e com o surgimento de uma classe operária moderna, o momento
como crítica. As câmaras e os operadores filmam outras câmaras e
pareceria f avor ável ao component e anti capi talist a daquela pal avra de
outros operadores, que filmam o estúdio, o logo tipo giga nte e os a pre ordem. Contudo, a dimensão extr anacional pesou mais, como ali ás era
sentadores. Aí está, para não ser ignorado, o aparato industrial-mercan natural, e a not a domi nant e do período f oi dada pela falência e der rota do
til por trás das mentira s e das informaç ões ineptas que o uviremos em
campo socialis ta, esvaziando o ponto de fuga da concepção brechti ana,
seg uida, de cuja se rie dade o volu me impre ssionante da tecnologia , do
tra balho e do dinheiro envolvidos, que certamente merece m c rédito,
não permitem duvidar. Assim, o próprio materialismo da auto-referên (11 ) C omen tand o o rád io e o cin ema n orte-americano s, Ado rn o o bserva q ue
"eles se definem a si mesmos como indústrias, e as cifras publicadas dos rendimen
cia bre chtiana parece comportar u tiliz ações a pologétic as. Depois de tos de seus diretores-gerais suprimem toda dúvida quanto à necessidade social de
h aver sido um chamado à emancip ação, a insistência no cará ter social seus produtos". Dialética do esclarecimento, Rio de Janeiro, Zahar, 1985, p. 114.Há
um intervalo de mais ou menos dez anos entre as formulações de Brecht e as de
e não-n atural da engrenagem qu e nos c ondiciona pa ssou a fu nciona r, Ado rn o, q ue são d o começo d a d écad a d e4 0 .

130
131

q ue é p rá tico . Nov a vira -v olta a go ra , n os an os 9 0, q ua nd o a ide olog ia o fi mo, no caso, é um princípio formal. Embora quebre a redoma da esfe
ci al brasil eira coi ncide com o ponto de vist a que pusemos em epí gr afe, ra estética, a relação militante com o espectador funcionaria por seu
http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo
segundo o qual "as regras da economia global são como a lei da gravi turno como uma lei de composição, armando um jogo que suspende a 65/124
da de ", u ma n ov a n atur ez a q ue b en ef ic ia a tod os q ue n ão a d es re sp eitam. transitividade simples. Assim, diversamente do proclamado, a verdade
Dia nte d is so, a v er ac id ade e o b em-a cha do d o p ro gr ama d es na tur aliz a das peças não est ar ia nos ensinamentos t ransmit idos, nos t eor emas
5/17/2018 dor e di stanciador t êm tudo para r essurgir em novo patam ar. E de
Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras f ato, sobre [Livro
a luta de Completo]
classes, mas na-slidepdf.com
dinâmica objetiva do conjunto, de que
u ma p equ en a p ar te d o mu nd o tea tr al tra ba lha a f und o n a a ss imilaç ão d as el es e a própri a at itude di dát ica seri am uma parte a int erpretar, e não a
téc nica s d e B re ch t, a po stan do n elas c omo e sc ola d e f or ma çã o s up er io r: últ ima i nstância. O ensaio, que conhece e cr iti ca as posições polít ico
espera que a excel ência da or ientação artí sti ca apr ofunde
a noção que estéticas de Brecht, dá mais peso à obra que à teoria, ou melhor, vê o
temos d e n ós mes mo s e d o c ar áter d is for me e intoler áv el d a p r es en te nor- p ap el d es ta n o inter io r d aq ue la . S em pr ejuízo d as muita s o bjeç õe s inc i
malidade social, ou da presente modernidade.
sivas - a meu ver todas certeiras - a retificação operada por Adorno
P ar a o s f in s d e n os so c omen tá rio, tomamos o p r oc ed imen to d a d es 
a jud a o a dmir ad or d o tea tr o d idá tico a e nten de r p or q ue e ns in amen to s
f am ili arização como a suma da atitude brechtiana, q ue d is cu timo s e m
d e a lc an ce mod es to o p od em inter es sa r tan to . 12 Libera também os nos
s eu s a ltos e ba ix os n a histór ia r ec en te . F ic ar am d e lad o a s g ra nde s ob ra s
s os o lh os p ar a os r eq uintes f or ma is d a liter atur a b rec htia na , o bs cu re ci
dramáticas, em que se assenta a glória do artista, a sorte das quais no
dos pela sali ênci a das questões polí ticas, mais f áceis de discuti r. Sir 
entanto envolve muitos outros fatores. Brecht não acharia errado o
vam de exemplo as misturas dissonantes de brutalismo e acuidade
recorte, pois de fato reconheci a um valor à part e a cert o molde ost ensi 
intelec tu al, o u d e mater ia lismo p es o p es ado e , d o o utro lado , d elic ad e
vo, ligado à pe ss oa , q ue h avia c ultiva do e a pe rf eiço ad o c omo u ma e sp é
z a n a c on du çã o d e a nd amen to s e r ac ioc ín io s, à beira do arabesco e da
c ie d e da nd is mo de e sq ue rd a: u m mis to d e p ro voc aç ão e d is tâ nc ia d es a
v ar ia çã o a bs tr ata. As c or re spo nd ên cias o blíq ua s e f lu tu an te s c om a luta
b us ad a, c ujo a lc an ce n ão s e e sg otav a n o c ampo liter ár io . Atr ib uía- lh e
função parapolítica, de vacina antiideológica, sob medida para as de clas ses fazem que essas combinações i nesperadas se possam con

imposturas da ordem burguesa. Com efeito, ao fazer da vexação da templar ind ef in id amen te , pe la s s ug es tõe s co ntra ditó rias q ue tra ze m.
empatia - operada pelo distanciamento - a dialética de suas encena Noutr as pal avras, depois de desacat ada em primei ro plano, à maneir a
ções, no palco ou fora dele, ao sujeitar a fascinação pelo indivíduo ao vanguardista, a imanência formal se restabelece em outro raio mais
c on tr ad itór io d as c au sa çõe s mater ialis ta s e d as r ea lida de s c oletiva s, am pl o, sem garanti a convencional, por força dos infi nitos cuidados
com sua lógica de outra ordem, Brecht apurava uma nova forma de com a composição. Estes vêm subordinados à recusa política da inocui
consciência, afinada com a superação proletária da sociedade capitalis dade artística - ou vice- versa? - num sentido que cabe à encenação
ta. Tr atav a- se d e tor na r p ro du tiva a r elativ iz aç ão d o ind iv íd uo, d e q ue a c on figu ra r. Co ns ta , nã o lembr o o nd e, q ue B re ch t p en sa va e m r es er va r
refl exão teórica e estéti ca do t empo andava cheia, e sobretudo de res u ma s ala d e s eu tea tr o, n a Aleman ha s oc ia lista, à produção de escânda
p on de r a o c ar áter ter atológ ic o d o e sp etác ulo o fe re cido p ela s oc ie da de los. É um a hist ór ia plausí vel, que torna palpável a sua idéia especial de

do capital, desde que olhada com distanciamento, por um prisma de engajamento literário, ligada à tra ns fo rmaç ão d as téc nica s e d os d is po 
c la ss e a ntag ôn ic o. Ora , s e o p ro ce ss o e fe tivo n ão tomou f eiçã o s up er a s itiv os p rá tico s d a c ultu ra, n o c as o pa ra s ac ud ir o e sp ec ta do r, d id atic a-
dora e o curs o das coi sas f oi outr o, a decifrar , o pr ognósti co embuti do
naquela postura se torna uma tese duvidosa por sua vez, a ser tomada (12) T. W.Adorno, "Engagement", Noten zur Literatur, Gesammelte Sehriften,
como par te do probl ema, e j á não como li ção. vol. 11, Frankfurt/M., Suhrkamp, 1974, pp. 415-22. Do mesmo autor, também sobre
a posição de Brecht, ver Asthetisehe Theorie, Gesammelte Sehriften, vol. 7, pp. 366-7.
A cert a altura de seu ensai o capit al sobre a l iter atura engajada,
Para uma apreciação menos favorável do ensaio sobre o engajamento, Iná Camargo
Adorno observa - deslocando o debate - que no teatro de Brecht o Costa, "Brecht, Adorno e o interesse do engajamento", in Sinta o drama, Petrópolis,
pr imado da doutr ina atua como um elem ent o de ar te; ou que o di dat is- Vozes, 1998.

132 133

mente, um pouco para além da contemplação estética, mas com o con


Lembremos que a SantaJoana é anterior aopredomínio do stalinismo
sentimento deste e com cobertura de instituição. 13 no interior da esquerda, e que a tentativa brechtiana de encontrar poesia na
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linguagem partidária - anônima, padronizada e autorizada - expressava 66/124
um sentimento histórico e uma aposta: osmilitantes ilegais, com sua disci
Acabamos de ver, no palco, que a Santa Joana é uma obra esplên plina e abnegação, estariam entre asfiguras-chave da luta pela nova era de
dida. Isso anula as questões que levantamos? Só teríamos a perder com liberdade. Ora, Completo]
a vizinhança desse clima com o absolutismo stalinista, que
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras [Livro -slidepdf.com
uma resposta simples. Antes de comentar algumas das extraordinárias
começava a ocupar o campo, salta aos olhos dehoje e toma difícil a separa
verdades de sua configuração, que aliás não estão menos no tempo que
ção completa das águas. Veja-se a propósito dessa ambigüidade o terrível
a teoria estético-política a que se prendem, notemos - para refletir a
elogio do heroísmo, ou sacrifício, dos revolucionários profissionais.
respeito - que também aqui existem
tórica tornou difíceis de aceitar. os aspectos que a e xperiência his UM
Vocês terão observado que por comparação, ao contrário do que Qu e g en te é es sa?
desejava o autor, a fala do dirigente comunista é pouco interessante. É
certo que este se distingue por entender o essencial: explica os meca O OUTRO
nismos da exploração e da especulação capitalistas, as suas relações Nenhum desses
com o desemprego e a baixa dos salários, além de saber que os traba C ui do u s ó de si.
lhadores só têm f orça quando agem coletivamente, e que a passagem à Viv eram sem paz
greve geral e ao uso da violência está na lógica dessa ação. A sua inte Para dar pão a desconhecidos.
ligência instruída de teoria contrasta superiormente com a mesquinha
ria e a credulidade gerais. Ou ainda, as suas razões duras e objetivas se O PRIMEIRO
contrapõem com vantagem à grandiloqüência dos enganadores, a qual Po r q ue se m p az ?

cai no ridículo, sublinhado pela dramaturgia. Contudo, nem por issoas


suas palavras dispõem de vibração à altura da virada superadora e O OUTRO
inaugural queparecem prometer, o que não deixa de propor um enig O i nju sto a nd a ca lmame nt e n a ru a, ma s
ma. A despeito de dizerem o que é, e de adquirirem a autoridade corres O justo se esconde.
pondente, elas são cinzentas e burocráticas, no que de fato formam
uma exceção no interior da peça. É como se a v erdade - ou as certezas O PRIMEIRO
- da posição bolchevique não emitissem a luz que a composição artís Q ual é ofuturo deles?

tica esperava delas. Ou, invertendo os termos, como se a composição


estivesse pedindo a seu material o que ele não podia dar ... 14 O OUTRO
Embora
Tr ab alh em po r s al ári os pe qu en os e s eja m ú teis a i númer os
(13) Peter Bürger procurou apontar o lugar específico de Brecht no mapa da Nenhum deles vive até o fim os seus anos
arte moderna.
diferença entreMais
arte eclarividente que osliquidar
vida, nem queria "vanguardistas", este artística".
a "instituição não pensava Mascancelar
tampoua
N em co me o s eu pã o, n em mor re s at is feit o
co admitia deixá-Ia intocada, à maneira dos escritores "modernistas". Para ele, que se N em s e en ter ra co m as ho nr as d evi das . A ca ba m
inspirava no marxismo, tudo estava em não abastecer a instituição tal e qual, mas em Isso sim, antes do tempo natural e são
transformá-Ia. Cf. P.Bürger, Theorie der Avantgarde, Frankfurt/M., Suhrkamp, 1974, Liquidados e desfigurados e insultados
pp. 123-8.Ver igualmente José Antonio Pasta Junior, Trabalho de Brecht (São Paulo, No seu enterro.
Ática, 1986), que dá a importância devida ao papel que o escândalo tem na concep
ção do dramaturgo.
(14) Bertolt Brecht, A Santa Joana dos Matadouros, S ão Paul o, Paz e Terra, O PRIMEIRO
1996, pp. 127-8. P or q ue n ão s e o uve f al ar n el es ?

134 135

O OUTRO Com o sesabe, a Santa Joana é resultado dos estudos marxistas a


Quando você lênosjornais que um bando de criminososfoi que Brecht sededicou na segunda metade dos anos 20, com o propósi
fuzilado tode entender e detranspor para o teatro o movimento efetivo dasocie
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Ou recolhido àpenitenciária, são eles. dade contemporânea. Fredric J ameson refere-se com acerto a um lado
Balzac no trabalho do dramaturgo, enfronhado em toda sorte de segre
O PRIMEIRO dos de ofício, como por exemplo asengrenagens da luta de classes, as
5/17/2018 Isso continuará sempre assim? Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras [Livro Completo]-slidepdf.com
sutilezas do dinheiro, os mecanismos da Bolsa de Valores, os macetes
da retórica fascista, os cálculos envolvidos na mendicância organizada
O OUTRO
etc. 16 Esse atualismo da inteligência artística representa por si só uma
Não." façanha, mais ainda se lembrarmos os pressupostos individualistas e
Instruídos pelo meio século que passou e pela revelação de outras faces anacrônicos do drama burguês, com osquais o homem de teatro tinha
da medalha heróica, em particular a disciplina incondicional e a apro de se haver. A disposição de incorporar àsletras o realismo trazido pela
priação nacionalista-soviética da luta de classes, dificilmente saudare visão marxista, ou, ainda, de não construir sobre fundamento obsoleto,
mos nesses justos os mensageiros da nova era. Levado em conta o labi leva entre outras inovações à troca do eixo personalista pelo eixo cole
rinto dos interesses escusos em guerra, que agora é do conhecimento tivo, demassas, nacomposição: esta seordena segundo o ciclo dacrise
comum, as fortes figuras de ativista que nosfitam do passado adquirem do capital, com etapas de prosperidade, superprodução, desemprego,
uma nota indecisa. E se muito pelo contrário elas fossem as vítimas em quebra e nova concentração econômica, contra as quais se rompem os
sursis - ora generosas, ora autoritárias, ora sinistras - dos Estados e propósitos individuais. Isso posto, a estatura singular da Santa Joana,
das polícias políticas, tanto as do adversário como as do próprio cam d entro tamb ém da o bra d e Brecht, depende da adoção d e mais ou tro
po comunista? A interrogação dessas ambigüidades alucinantes, para ângu lo inesperado , o q ual- h oje- faz a d iferença.
não dizer duplicidades, e do déficit expressivo que as acompanhou, o É fácil imaginar que a revelação do materialismo, na escala avas
qual reflete uma imensa derrota histórica, é talvez o desafio mais difí saladora ensejada pela Primeira Guerra Mundial e pela Revolução
cil para uma encenação responsável da peça. Russa, significasse a desqualificação ideológica do período anterior.
Em tudo que diz respeito à vida do capital, por outro lado, A Sa n- Desse ponto de vista, tudo que cheirasse a idealismo, cartilha patrióti
ta Joana dos Matadouros brilha incrivelmente. Acresce que o nosso ca, autoridade dos clássicos nacionais, âmbito burguês ou resquício
próprio universo, da Lua aopatrimônio genético, no momento tende a feudal adquiria tonalidade grotesca ou odiosa. Entretanto, apesar do
ser cotado em Bolsa e que esta vive àbeira daquebra, exatamente como clima de liquidação, talvez se possa distinguir entre vertentes da críti
na peça, cuja oportunidade não podia ser maior.Ainda que os especia ca m aterialista. Numa, os milhõ es de soldados mo rto s e a fome das
listas jurem qu e o crash de 29 não se repetirá, a cho radeira do s "pe populações fazem ver que entre o interesse econômico (ocomércio de
quenos especuladores", esmagados pela especulação dos grandes, oua canhões) e a inculcação cultural e nacionalista há uma aliança que pos
sibilita a guerra e é de classe. Na outra vertente, a mesma catástrofe
miséria dos
indústrias trabalhadores,
desemprega, a quem
parecem a saudável
saídos concorrência
donoticiário entre
de hoje. Dito as
isso, ensina que tudo é ilusão, salvo a sobrevivência econômica da própria
a impressão extraordinária não decorre apenas da semelhança imedia pessoa, reproduzindo assim o individualismo burguês, ou o antagonis
ta. Tão impo rtante qu anto esta é a resso nância qu e o assunto no vo e mouniversal, em novo patamar. Em ambos os casos, o corpus ideoló
decisivo - o ciclo dacrise capitalista - encontra nas formas culturais gico da civilização de pré-guerra sofre uma desmoralização radical,
canônicas, integradas àjustificação da ordem burguesa.
(16) Fredric Jameson, Brecht e o mét odo, Petrópolis, Vozes, no prelo, prólogo
(15) Op. c it., pp. 174-5. e p ar te m , 1 6.

137
136

seja em nome do sofrimento das massas (variante de esquerda), seja em teira, a montagem brechtiana cancelava a passagem do tempo e obriga
nome do interesse econômico nu e cru, que a cultura burguesa prévia va à promiscuidade pública as aspirações iniciais, ou também máximas,
decorosamente encobria (o novo realismo do capital). A Santa Joana
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e os pontos de chegada presentes da civilização burguesa. Ora, os resul 68/124
incorporou asduas acepções no que tinham de mais depreciati vo e bem tados desta última, quanto à injustiça de classe e à degradação, incitam
fundado, mas sem lhes aceitar o corolário "reducionista", que manda a uma paráfrase deprimente daquela mesma dignidade humana e har
vajogar a mencionada cultura no lixo por falta de substância. monia[Livro
social que num momento anterior os poetas e filósofos haviam
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras Completo] -slidepdf.com
Em vez de fazer tábula rasa do passado, Brecht, cuja posição a res idealizado. Assim, o que a dissonância coloca em jogo é uma relação
peito era própria, tratou de montar uma antologia estratégica de textos histórica intema, satiricamente compactada. 17 A enormidade do efeito
máximos da tradição, a que as falas das personagens aludem sistemati
camente. O escritor não abria mão da cultura consagrada, embora lhe diz tudo, mas não é fácil de especificar.
Atítulo indicativo, tomem-se asvariações engenhosas com que os
sublinhasse o lado especioso, que o tempo trouxera à tona. Apoiado em
magnatas da carne enlatada formulam a sua angústia, que é da inadim
seus dons excepcionais de pastichador, expunha as peripécias da luta
de classes e os cálculos do cartel dos enlatados - a matéria nova - em plência, nos termos soberbos do sentimento hOlderliniano do destino:
como a água, que não conhece descanso, os humanos (ou serão os capi
versos imitados de Schiller, de Holderlin, do segundo Fausto, da poe
talistas?) tombam de penhasco em penhasco até o fundo insondável do
sia expressionista, ou também dos trágicos gregos, vistos como ale
mães honoris causa. Os recursos literários mais celebrados da literatu abismo (a falta de fregueses solventes).'x Ou tome-se a compaixão
ra nacional, ou, por extensão, o melhor e o mais sublime da cultura (17) Saudando o R om an ce d os t rê s v in té ns , em 1935,Walter Benjamin observa que
burguesa, contracenavam de perto com a crise econômica. Esta última, atérecentemente a figura moderna do gângster nãoera familiar na Alemanha. "Com efei
para agravar a afronta, é vista no âmbito satírico e sangrento da indús to, o traço drástico de barbárie, que caracteriza a misériados explorados desde o início do
capitalismo, só tardiamente marcou o lado dos exploradores. Brecht trabalha em presen
tria de carnepela
emnatureza
conserva,dasonde matança, racioCÍnioosfinanceiro e fome ça dos dois
queâmbitos. Por isso ele conjuga as épocas, situando As
os circunstâncias
seus gângsteresdanuma
convivem coisas, metaforizando tempos e fixando Londres tem o ritmo e o aspecto dos tempos de Dickens. vida
os ensinamentos deixados pela guerra. privada são de ontem, as da luta de classe, as de hoje. Esses londrinos não têm telefone,
m as a s ua pol ícia j á usa t anques ." W. B enj ami n, " Brecht s Dreigros chenroman" ,
A novidade não estava no contraste artístico entre o mundo moder Gesammelte Schriften, FrankfurtlM., Suhrkamp, 1972,voI. m, p. 440.
no e a tradição clássica. Afinal de contas, a diferença cômica entre o (18) Os versos de Hbl derl in que servem de mote s ão os s eguintes, t om ados à
"Canção de Hyperion" (trad. José Paulo Paes): "Mas a nós não é dado/ Repouso em
herói homérico e o burguês encartolado e barrigudo foi um lugar
parte alguma.! Exaurem-se, sucumbem/ Os homens sofredores/ Cegamente atirados,!
comum do século XIX. Noutra chave, vários dos principais escritores Ao longo dos anos,! De uma a outra hora, dei Penhasco em penhasco,! Até, lá embai
modernistas procuraram dar parentesco mítico a seus episódios contem xo, o Incerto". A est rofe est á em oposi ção às precedent es , onde os " gêni os ventu
rosos" caminham sobre "chão macio", ou dormem o sono da inocência, felizes como
porâneos, para lhes atenuar a contingência e lhes emprestar generalida
crianças de peito, quando não "Contemplam a paz/ Da eterna claridade". Anote-se a
de, dignidade arquetípica, eternidade etc., mesmo que irônicas, ou para nota prometéica na nobreza atribuída ao "Incelto", à insatisfação, ao sofrimento, que
lhes acentuar a sordidez. Basta pensar em Gide, Proust, Thomas Mann, contrastam com a plenitude descansada dos divinos.
Ali nho a s egui r os pri ncipai s pas sos em que ess e arcabouço é reuti li zado na
Kafka, Joyce,anos,
Eliot essa
e outros mais. Na obraosdeBrecht, que pertence quase Santa Joana. O leitor terá uma idéia do alcance da operação brechtiana.
aos mesmos distância entre modelos ilustres e o tom do A primeira alusão ao poema refere-se à decisão de Joana, que quer conhecer e
presente assume uma feição própria, impregnada de marxismo, ou seja, com bater a causa da mi séri a dos trabalhadores . A advertência vem de Mart a, s ua
companheira no movimento dos Boinas Pretas: "Nesse caso o teu destino é negro,
de análise de classe e de busca da unidade do processo. A concatenação Joana.! Não te intrometas em disputas terrenas!/ Quem se mistura é tragado.! A tua
a frio do interesse econômico o mais cru e do idealismo filosófico e líri pureza não resistirá. Breve/ Em meio à frieza geral estará perdido/ O teu pouco calor.
co o mais exaltado (a dimensão clássica alemã), sob o signo da crise A bondade abandona! Quem se afasta do aprisco.! De degrau em degrau/ Buscando
sempre mais embaixo a resposta que não alcanças/ Desaparecerás na sujeira!! Porque
capitalista, que é escarninho, compõe um Frankenstein. A ferocidade da é com s uj ei ra que s e fecham as bocas / Dos que pergunt am s em prudência" (p. 37).
caricatura até hoje faz correr um arrepio na espinha. Extravagante e cer- Em luga r da que da de Hype rion, temos a desc ida de libe rada de Joana, que quer

138 139

vegetariana - tingida de lirismo expressionista - com que Bocarra, o Lem bra-te , ó Cridle, aquele v itela

rei dos frigoríficos, justifica a venda em boa hora de sua parte no negó Que virava o olho claro, grande e obtuso para o céu
cio das conservas: E nq ua nt o e ntr ava n a f aca ? S en ti co mo se f os se c ar ne d e min ha c arn e.
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A i de n ós , C ri dl e, co mo é s ang ren to o n os so c omé rc io . 19
69/124

Qual a idéia por trás desses A nota de


conhecer a miséria que reina láembaixo, no "Incerto". Uma descida heróica e, nesse farsa grossa deve-se à inviabilidade do capitalista como figura lírica, já
5/17/2018 sentido, ascencional. Não é a opinião de Marta, que teme Roberto
Schwarz, que Joana desapareça na
-SequenciasBrasileiras
que [Livro Completo]
por definição ele defende-slidepdf.com
interesses particulares e de classe, que
imundície, sugerindo a afinidade do Incerto com as classes baixas; ou pior, receia que
usem (quem?) a s uj ei ra para l he t apar a boca. S e for ass im, aliás, a descida não será requerem esperteza - o contrário do abandono poético. A despeito da
um destino prometéico, mas uma liquidação infligida pelos de cima. Os deuses no estilização chapada, que pareceria direcionada e sem revelações, a
caso seriam a classe dominante?
O esquema reaparece na falade Criddle, um dos magnatas do enlatado, que apro farsa não podia ser mais ambivalente: faz rir do capital com base na
veita o intervalo do lockout para lavar os seus matadouros, engraxar as facas e comprar poesia, e da poesia com base no capital. Nada mais baixo que ele, nada
"[...] umas tantas máquinas/ Modernas, que poupam muito salário.! É um novo siste mais desfrutável que ela. Estamos no terreno das charges políticas do
ma, da máxima inteligência.! Suspenso em tela de arame, o suíno sobe/ Ao andar mais
período de Weimar, ou dos quadros de Grosz, com seus capitalistas de
alto onde começa a ser abatido.! Com leve ajuda o animal seprecipita dasalturas/ Sobre
as facas. Entendeu? O suíno corta-sei Por conta própria e transforma-se em salsicha'! nuca espessa, focinho de porco, fraque impecável e cinismo blindado,
Assim, caindo de etapa em etapa, abandonado/ Pela sua pele, que se transforma em cruzando na rua com mutilados de guerra, proletárias desnutridas e
couro/ Separando-se de seus pêlos que serão escovas/ E deixando enfim os seus ossos
cachorros famélicos, tudo encimado por clichês dohumanismo oficial,
- fut ura! F arinha - o s uí no i mpele a si m es mo/ Rumo à lata de conserva. Entendeu?"
(p. 41). Aqui são os próprios deuses (o industrial capitalista) que abatem a criatura (o num clima de salve-se-quem-puder. As revoltas e os ódios condensa
suíno) e a precipitam rumo ao Incerto (a lata de conserva). A inteligência técnica asso dos nessas imagens têm teor muito diverso, tanto de esquerda como
cia-se à crueldade com os animais e insinua que a vítima, que vai sendo esfolada por conformista ou de dir eita. Desdobradas pela ação teatral, por outro
simples efeito natural, de gravidade, tem algo a ver com a classe operária.
Convencida da injustiça sofrida pelos trabalhadores, Joana vai juntar-se a eles lado, essas mesmas figuras estereotipadas vão espernear na crise,
nos matadouros, onde os comunistas pregam o uso da força e a greve geral, enquan quando então o seu traço caricato e seu humor drástico se complicam
t o o exércit o com eça a usar metralhadoras para evacuar a região. Acos sada pel o ainda mais, entrando para uma dinâmica de outra ordem, na qual os
medo, pela fome e pelo horror à violência, Joana entende que o seu lugar não é ali e
resolve ir embora. Tomando distância didática de si mesma, ela explica ao público: exploradores são confundidos e os explorados não acham a saída, dei
"Durante três dias na capital das conservas, no lamaçal dos matadouros/ Foi vista xando fora de combate as classificações morais anteriores, que passam
Joana! Descendo um degrau depois do outro/ Para purificar o lodo, para aparecer! a contribuir por sua vez para o caos. Sob diferentes ângulos, a atualida
Aos Ínfimos. Três dias/ Descendo, enfraquecendo no terceiro/ E por fim desaparecen
do no lamaçal. Digam dela:/ O frio foi demais"(p. 146). A descida teve inspiração de do conjunto tem a ver com essa equação.
cristã e propósito salvador, mas a pressão da miséria e dos poderosos prevalece. À Para B recht, tratava-se de sublinhar - e assimilar? - a desenvol
primeira vista, desaparecer no lamaçal significa confundir-se com os explorados no tur a debochada com que a burguesia lida com os valores supremos de
seu anonimato. À segunda, lembrando que Joana vai embora, pode sugerir a volta a
seus pequenos privilégios anteriores. sua própria civilização, segundo as circunstâncias da economia e da
Usando de sua "privilegiada inteligência cheia de astúcias", Bocarra fecha gran luta de classes. Nesse sentido, observe-se que a cara de pau dos magna-
des contratos com os fabricantes de enlatados, ao mesmo tempo que por baixo do pano
manda comprar a totalidade do gado em pé disponível. Para cumprir os contratos, os
fabricantes são obrigados a comprar a carne do próprio Bocarra, cujos prepostos Des baratada a greve geral , a economi a volt a a funci onar, agora com menos
pedem mais e mais caro, levando à quebra as indústrias e a bolsa. "[...] os preços des empregados . Os Boinas Pret as - os s ol dados de Deus - preparam a sopa, a músi 
pencavam de cotação em cotação/ Como as águas precipitando-se de penha em penha ca e asrezas para enredar os desempregados. "Nós, aqui, a postos! Eles, ali, chegan
m ergulham/ Em busca do fundo do abis mo. Vieram parar em t ri nt a." O s ujeit o da do! Olhe m como a misér ia acossa os pobres! Olhem como ela os empurr a par a
queda aqui são os preços das mercadorias, que caem das alturas do céu e desaparecem bai xo! Olhem com o eles despencam/ Aqui para bai xo onde não há s aí da e a pos tos
no Incerto da perda de valor. Para os bois, o desastre significa a liberdade: estamos: nós!/ Bem-vindos! Bem-vindos! Bem-vindos!/ Bem-vindos embaixo entre
"Arquejando, por fim liberta, naquele momento/ Em que contrato algum mais obriga nós!" (p. 172). A descida ao Incerto no caso termina nas malhas do desemprego, da
va à sua compra! A carne bovina entrou para o insondável" (p. 163). O insondável, religião e do assistencialismo
muito apropriadamente no caso, é a supressão da forma mercantil. (19) Op. cit., pp. 19-20.

140 141

I
I
tas , a lé m de de nun ciad a, é tamb ém ex amina da a te ntame nte, c omo u ma produzir etc., causando uma extraordinária ampliação e intensificação
es pé cie de ma rav ilha da n aturez a, ou c omo u ma au la s obre o fun cion a do presente, a que os espelhamentos antagônicos imprimem a qualidade
me nto mod erno da s idé ia s, qu e d erru ba o s ing ên uo s, mas nem por i sso
http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo literária e p olêmica inc omp aráv el. Ao romp er co m a v eros similha nç a 70/124
detém a crise. O escr itor não vinha par a moral izar - o que julgava i nú 1 ime diata, s us te ntada pe la h omo ge ne id ad e d o a mb ie nte e d o d is cu rs o, a
til-, mas para aguçar o senso crítico na sua dimensão de classe. A s eu II
Santa Joana arma um p alco d e a bran gên cia s upe rior, ún ic a tamb ém n a
obra de Brecht. Adiante comentaremos a incrível apoteose protofascista
i
ver, o artigo em falta no campo dos explorados não era a disposição õ
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com

I
pa ra o e ntend ime nto, ma s a ca pa cida de de formular e s us ten ta r interes  ~ d a c ena fina l, c om a s ua multiplica çã o o pe rátic a d e timb re s literário s 
s es n ov os , à a ltura d o temp o, co m força d e a firma çã o h is tó rica . todos substanciosos em sua depravação -, que é um alto momento de
Embora tenha algo de receita, o ac op la me nto d e p astic hes líric o literatura mo de rn a, impe ns áve l s em a n oçã o muito v erda de ira d a luta d e
filosóficos às brutalidades da competição econômica e do antagonismo classes no âmbito da cultura.
de clas se c omp õe um d is po siti vo d e g ra nde a lc anc e, em e sp ec ia l d ev id o A propósito dessas operações de r edimensionamento social das
à amplitude forçada q ue o a co mpa nha . No q ue d iz res pe ito a o m un do do s formas, observe-se a mudança por que passa o cul to romântico da sin
trabalhadores, por exemplo, a fórmula evita a segregação cultural em que gel eza, à maneira do Lied, à vista dos sem-t et o na nevasca. Os ver sos
estes se viam fechados, além de dar expressão ao desencontro, a superar, vêm escritos num telão e servem de final mudo ao episódio em que as
entre excelência cultural e ponto de vista operário. Avesso à sentimenta me tralha doras triun fa m s obre o s g rev is ta s. "C ai n ev e em c ima d e n eve /
lização da cultura dos trabalhadores, Brecht sabia que a experiência des O que era vivo se escondeu/ Ficam de fora as pedras/ E quem não tem
tes, apesar de ter a j ustiça de seu lado, só ganha altura caso saia de seu nada de seu."21 Anal ogamente, o que signi fica a conci são trágica - um
encapsulamento e l eve a melhor sobre o seu antagonista, graças a uma empréstimo do coro grego - quando usada pela massa trabalhadora, à
p erspe ctiva s upe rior e ge ne raliz áve l, q ue s e e la bo ra ou n ão. P ara e xistir espera diante dos portões fechados da fábrica? E o que quer dizer o
com envergadura pl ena, próxima da "consciência possí vel", como na acento leninista i nvolunt ári o que desponta na pregação indignada da
época dizia o marxismo, oponto de vista histórico dos explorados depen mocinha do Exército da Salvação? Nada menos verossímil que essas
dia de ac umulaçã o cu ltural e formu la çã o b us ca da, b em c omo d a c on te s montagens e fusões nunca vistas (salvo em esquet es estudanti s), nas
taç ão do s p on to s d e v is ta he ge môn ic os , q ue lhe s ão feroz me nte ad ve r qu ais e ntre ta nto a s itua çã o op erária mo de rn a s e p ro je ta e s e d es cob re ,
SOS.20Nessa li nha, trabal hando pela capaci tação da fala operária, o ao redi mensionar nos seus termos o desapego lí rico dos românti cos, a
drama tu rg o recu sa va o e nqu ad rame nto c orren te , q ue ma nd a c on fina r a sobriedade do acento trágico grego, o compromisso cristão com a
vida dos trabalhadores a seu ambiente imediato e ao registro naturalista, pobreza. Para apr eciar a ousadia contra-intuit iva dessas soluções, é
s ob p en a d e pe rd a d e a utentic id ad e. P ro curav a, p elo co ntrá rio, v ê-Ia n a prec is o lemb ra r q ue e la s força m a c on tigü id ade do qu e a h is tó ria s epa 
dime ns ão rea l (e rarame nte as su mida ) d e força es trutural d o pres en te , rou, e que superam, sem deixar de registrá-Io, o descompasso entre as
lidando com asdemais classes e o todo da cultura contemporânea. As rea formas erudi tas e a luta social , bem como os preconceit os mútuos que
lid ad es d o tra balho e d o de se mpreg o, da fome e d o frio, d a luta o rg aniza lhe correspondem.
da e d o ma ss ac re militar s ão ap re se ntada s e m s ua rec ip ro cida de d ireta e
d ecisiva c om a s e stra tég ia s d o c ap ital, c om a s c onv enç õe s e stétic as e a s P ara q ue m ten ha no çõ es d e lite ra tu ra a le mã , a fe içã o literária ma is
a ud ac io sa da pe ça e stá n o s eu s is te ma d e ima ge ns , uma e spé cie de topo 
teo rias e con ômica s, c om o s entime nto de s i da s c la ss es p ro prietária s, logia l írica, em forma de coleção de cacoetes, que Brecht abstraiu das
com os ensi namentos da moral e da rel igião, com as novas maneiras de cenas finais do segundo Fausto e da canção de Hyperion, de HOlderlin.
A alusão aos poemas celebrados da língua funciona como um baixo
(20) Num ensaio de 1920, Lukács distinguia entre a consciência psicológica ou c ontín uo . Aí e stão , em va rian te s n umeros as , a a spira çã o a sce ns io na l
empírica dos trabalhadores, limitada pelas circunstâncias, e a consciência de classe
que Ihe s seria "possível", e m virtude da posiç ão-c ha ve que ocupa m na produçã o
moderna. Ver,em História e consciência de classe, o artigo "Consciência de classe". (21) A Santa Joana dos Matadouros, p. 146.

142 143

dos humanos, a tragédia das quedas, a idolatria dos píncaros e desfila


capital, apresentado no ato mesmo de se travestir de outra coisa, mais
deiros, a glória dos uníssonos, o éter divino composto de altura, luz,universal e menos inaceitável, pertence ao mesmo ciclo.
pureza, imaterialidade e superação, asharmonizações sentenciosas dos Ora, bas ta pensar um instante para s aber que esse quadro es tá
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contrários, redimindo a divisão passada etc. Pois bem, para que a paró mudado e que o determinismo econômico hoje funciona como a ideo
dia cause o seu estrago, basta que esses esquemas quase religiosos de logia explícita dasclasses dominantes, quejustificam a suahegemonia
cenografia e coreografia idealista s ejam aproxim ados da esfera da e a própria desigualdade s ocial através dele, que trocou de cam po.
5/17/2018 Schwarz,
exploração capitalista do trabalho, quando Roberto
então eles se tornam-Sequencias
o cor Brasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
Ass im , o que era es queleto no arm ário s e tornou bandeira pública,
relato es trutural- e nada inveros símil- dodesapreço pelo que está criando o mistério específico da nova fase: como entender que essa

embaixo, no oescuro,
Como se vê, em desordem,
reducionismo com fome vulgar
e o materialismo e trabalhando
tambémpesado.
têm os bandeira
interesses seja aclamada?
materiais, tidosSe antesparticularistas
como as razões ditas ideais encobriam
e indefensáveis, os
agora
seusmomentos deacerto explosivo ... Feito oparalelo entre a paisagem s ão as razões econômicas que legitim am ou criticam as outras, sem
depenhascos em que semove a ascensão lírica e,do outro lado, a topo haver perdido - salvo engano - aquele mesmo caráter particularista.
grafia social do capitalismo, igualmente íngreme, o resto é automático. Digamos, para exemplificar, que um governo atualizado destina verba
Movido a insinuações, trocadilhos, malícia, acuidade crítica, rancor às artes pensando nos benefícios que estas trazem ao turismo, assim
social etc., não há como deter oprocesso decontaminação recíproca. O como toca as suasreformas educacionais de olho nos eventuais ganhos
alpinismo da alma poética pode ser traduzido para o vernáculo da livre da produtividade, ou explica a distribuição absurda da renda com as
iniciativa, com a sua avidez ilimitada, a plenitude dos superlucros, as contingências do capital. A prova de seriedade é dada pela obediência
quebras, as trapaças e o canibalis mo generalizado, sem esquecer a às considerações econômicas, aquelas mesmas cujo teor anti-social o
ânsia altruísta denão afundar napobreza. Inversamente, o dia-a-dia da marxismo noutra época denunciava como um indecente segredo de
concorrência no m ercado pode achar uma vers ão vantajosa de s ino classe. A vira-volta veio se impondo aos trancos, e a Primeira Guerra
destino das águias. Mundial, com o que trouxe de bancarrota da civilização burguesa e do
internacionalismo socialista, foi um de seus momentos. A ferocidade
A desmistificação de classe, que é devastadora, no caso liga-se a
umtrabalho deinvenção e conhecimento dosmais consideráveis. Entre da denúncia ideológica na Santa Joana dá testemunho do abalo causa
os objetivos da peça, Brecht assinalava a fixação do "estado evolutivo do. O processo secompletou algum tempo depois da guerra seguinte,
quando as necessidades do capital setornaram para todos os efeitos o
atual do homem fáustico".22Dito isso, a sátira tem data. Vocês sabem
equivalente da razão, ou ainda, quando a abundância de mercadorias
que o escândalo inicial da crítica materialista - o crime de lesa-huma
passou a ser a ideologia e ajustificação suficiente da sociedade capita
nidade cometido por Marx em meados do século XIX - esteve em afir
lista, acatada também pela classe operária. Voltando à Santa Joana,
mar que o capital, que é uma relação declasse, é o segredo e a chave da
como fica a sua atualidade nessas circunstâncias? Com efeito, por que
sociedade burguesa, inclusive de seu direito, do estado, da moralidade
rir ainda - como defatorim os - daprecedência dom otivo econômi
e da cultura. Longe de serem incondicionadas e de promoverem a uni co sobre osdemais, seestamos cansados de observá-Ia o dia inteiro, em
versalidade humana que proclamavam, estas esferas formariam siste
tudo e em nós m esm os , s em m aior surpresa e nem s em pre com senti
ma com a exploração econômica, a qual, uma vez reconhecida pelos mento de perda? Adesmistificação, ligada ao lugar oculto da economia
explorados como um fato declasse, sem caução divina ou natural, esta no rol das coisas, não setornou um gesto vazio?
ria com os dias contados. O virtuosismo com que Brecht nos faz rir do Ao tempo da composição da Santa Joana, o recurso aos chavões
do idealismo como força viva do presente já seria algo estranho, vindo
11I,
(22) Bertolt Brecht,
p. 451.
Werke, B er lim- Fr ankf ur t/M. , Auf ba u- Suhr ka mp, 1989, vol. de um escritor de vanguarda e da esquerda. Para que ressuscitar o que
a guerra havia enterrado? A ressurreição brechtiana naturalmente era

144
145

peculiar, sublinhando ao máximo as avarias que a tradição sofrera, ao ção do impasse e de seu aprofundamento que na saída revolucionária,
ponto detransformá-Ia num monstrengo risÍvel- dotado entretanto de limitada à determinação de vencer, ou de resistir e talvez morrer, para
realidade. Na última cena da peça, por exemplo, a pobre Joana é cano que outros trabalhadores vençam mais adiante. Digamos que falta
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nizada contra a suavontade epromovida apadroeira do capital em nova substância específica àperspectiva de superação, o quenão desmancha
fase, tudo embaixo debandeiras, banhado em luz cor-de-rosa e ao som nem atenua asirracionalidades aque respondia, asquais naausência de
deversos goetheanos. O kitsch saliente e cínico, proto-hollywoodiano, alternativa tangível tomam feição de desastre em permanência, para
5/17/2018 dava uma variante crítica das falsificações e mitificações
Schwarz, Roberto baratas com
-SequenciasBrasileiras [Livro
retomar Completo]
a expressão -slidepdf.com
de Walter Benjamin. E digamos ainda que, até
que o nazismo começava a construir a sua idéia grandiosa do passado segunda ordem, foi isso mesmo que a decantação operada pelo tempo
nacional e de si mesmo. De outro ângulo, havia o empenho de tornar reteve da peça. A classe operária dos anos 30, levemente esfumada,
comensuráveis a luta de classes e a literatura canônica, de modo a des parece matéria dereconstituição histórica; aopasso que a outra classe,
manchar a unção conservadora em volta desta e, assim, devolvê-Ia à em vias de monopolizar a iniciativa, é o protagonista de umpastelão já
vida, o que de fato ocorre. Apesar da irreverência, ou por causa dela, a de nossos dias, com duas ênfases modernas: uma, no interesse capita
pesquisa das implicações que a luta operária e o materialismo tinham lista deslavado, que corre às cegas; a outra, no cinismo com que são
para a fisionomia moderna das letras representava uma verificação crí adaptadas às circunstâncias as idéias antigas e célebres, em que nin
tica de primeira ordem. guém acredita. Trata-se de um sÍmile do presente histórico, de suas
t

Aseu modo, o descaramento no trato com asidéias e formulações superações sem superação, do despropósito em curso e da disposição
mais prestigiadas da civilização burguesa traçava o limiar de uma nova para o vale-tudo.
época, despregada de seus compromissos anteriores, vistos agora Em seu momento, suponho que a incorporação do ciclo da crise à
como velharias escarnecidas. O estatuto caduco da tradição idealista é forma teatral tenha sido um feito atualista de mais peso que o pastiche
complementar, no caso, da esperteza superlativa dos homens do capi econômico-político dos clássicos, sem prejuízo de as duas novidades
tal, que em matéria dedesmitificação - seo termo significar a prece estarem relacionadas, como é óbvio. Contudo vocês observem que de
dência do dinheiro sobre tudo o mais - não recuam diante de nada e lápara cáa troca defunção do determinismo econômico alterou aspro
estão na ponta do processo. Isso posto, o limiar histórico da Santa porções nesse ponto. Por engenhosos que sejam, os encadeamentos e
Joana é outro, mais atual. Conforme alimentam e aprofundam a crise, sobressaltos da economia no palco não abrem maiores perspectivas,
as espertezas geniais dos capitalistas trocam de sinal, tornando-se para além de aprofundarem a mesma coisa, e pouco diferem de seus
obsoletas e mais nocivas por sua vez. O que está em cena, sob o signo equivalentes na imprensa diária, cuja agitação faz parte da estática de
da crise, é a transformação das astúcias do capital em reflexos contra nossos dias. Ao passo que os reflexos grotescos na literatura clássica
producentes e cegos, quase se diria antediluvianos. O contraste entre a vivem plenamente. Por quê?
jogatina naBolsa e o pânico de todos em face das turbulências daeco O riso diante dos golpes dos capitalistas na Santa Joana, em espe
nomia de fato faz pensar emperda dejUÍzona escala da espécie. cial quando vêm vestidos de alusões ilustres, talvez seja de um tipo
É claro que na construção brechtiana essa progressão negativa
o idealismo superado pela esperteza que se revela cegueira - vem novo. Não se respeitada.
sob a fórmula trata, comoPelo
antigamente,
contrário, de detectar anti-social
o interesse o interesseéescuso
o pon
complementada por um movimento positivo: ao se tornar insustentá to de partida notório, e a piada está na ingenuidade dos que ainda não
vel, a crise faz fermentar a revolução proletária, e com ela a superação sabem disso, e sobretudo na desfaçatez com que a cultura nacional é
do impasse. O leitor de hoje, escaldado pelo destino que tiveram as posta a serviço dos negócios, não porque estes precisem da proteção
revoluções, não dá de barato esse esquema e procura mais precisões na dela ou porque ela tenha credibilidade, mas porque estamos a um pas
constituição interna da peça que lhe permitam avançar um pouco. Até so das vias de fato. Nesse sentido, as citações clássicas deturpadas são
onde vai a minha leitura, ele dirá que há mais evidência na configura- uma espécie de análogo da disposição de reorganizar a legalidade em

146 147

causa própria. E mais que do engenho dos golpes, rimos de sua regula
ridade inexorável. É como seexistisse um imperativo, ou um defeito de
constituição, mandando não fazer nada em que a esperteza não tenha
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parte. Os golpes tornaram-se uma segunda natureza - bem mais temí 73/124
vel, nessa altura, que a primeira -, que entretanto nada, salvo ela mes
ma, impede de mudar.
5/17/2018 Todos sabemos que hoje quem Schwarz,
acumula forças, corre riscos,
Roberto pula
-Sequencias 111
Brasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
os mares, agoniza, aprende, morde o pó etc. é o capital, de quem os
empresários e governantes são os pálidos executivos, e os demais _
com algum exagero - as vítimas perplexas, atuais ou potenciais. Con
forme o termo de Marx, trata-se do fetichismo da mercadoria, que faz
que ascoisas adquiram atributos humanos, e que oshumanos serelacio
nem como coisas. Noutras palavras, o capital chamou a si as alternati
1'
vas e os destinos que eram o assunto da literatura e, correlativamente,
!II
transformou em mentira barata a literatura que insista em desconhecer
li'! esse esvaziamento dos pobres-diabos que somos. Ao encharcar de clás
sicos o mundo das negociatas, Brecht preferiu ficar na penúltima etapa
da fetichização, um passo aquém da delegação completa da energia
social ao mercado. Como as citações estão acintosamente desfiguradas,
não cabe imaginar que elas devam introduzir um rumo próprio, de resis
tência, diferente do outro. Brecht queria mostrar que algo de Bocarra já
existia no Fausto, mas não que a grandeza das Luzes continuasse viva
nas especulações da Bolsa. Digamos então que o universo do idealismo
é uma presença que puxa para o exótico e só em parte adere às persona
gens. Ele existe no espaço social, onde é usado por uns e outros, com
efeitos que sempre excedem a intenção imediata. O resultado é uma ilu
minação de viés, que faz ver a face não mercantil dos negócios, que não
é boa, e não deixa que o fetichismo se complete, ou seja, que o capital
pareça ser apenas o capital. Assim, a vizinhança escarninha do presente
com as glórias peremptas da ordem burguesa segue nos interrogando,
não porque proponha uma volta atrás ou uma solução, mas pela evidên
cia de fraude que proporciona.

148

http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo 74/124
A NOTA ESPECÍFICA
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com

"O que se deve exigir do escrit or antes de tudo é certo sentimento


íntimo, q ue o to rn e ho me m d o s eu tempo e d o s eu pa ís , a in da q uan do tra te
de assunt os remotos no tempo e no espaço." Com essa reflexão, talvez a
mais celebrada da crítica brasileira, Machado deAssis se opunha à men
talida de p ro vinciana " qu e s ó r ec onh ec e e sp ír ito na cion al n as ob ra s q ue
tra ta m d e a ss un to loc al". P ar a c ompletar , o r oman cista a con se lh av a u m
br as ileirismo " in te rior , d iv er so e melho r d o qu e s e f or a a pe na s s upe rf i
cial". I Não é preciso di zer que pensava no seu própri o programa de tr a
balho, que pouco depois resultaria nas primeiras obras-primas da litera
tura brasileira em formação.
A polêmica movia-se no quadro das inseguranças culturais do
país novo em folha, recém-saído da segregação coloni al, desej oso de
f irmar identidade e de festejar- se a si mes mo. Os românticos havi am
o pe ra do a f us ão de c olor id o loc al e pa tr io tismo, c om s uc es so a va ss ala
d or . Co ns cien te do lad o c on ve nc io na l e c on gr atulatór io d es ta c ombi
nação, em que o pit or es co t em algo de carta mar cada, a que responde o
a plau so f ác il d os c ompa tr io tas , M ac ha do a spira va a u ma s oluç ão s upe 
rior. Começara a busca de uma feição nacional que não si gnif icasse
confinamento temático e superficialidade artística.
Di to i sso, em que consi stiri a a t al i nt eriorização do paí s e do tem
p o, c ap az de imp re gn ar a ss untos long ín qu os , p ar a n ão d iz er e stra ng ei
ros ou universais?

(I) Machado deAssis, "Notícia daatual literatura brasileira - Instinto denacio


nalidade" (1873), in Obra completa, Rio deJaneiro, Aguilar, 1959, vol.m, p. 817.

151

Se examinarmos o romance machadiano, encontraremos na sua colônia, a cuja camada europeizante fornecem o álibi das aparências.
composição uma resposta de genial simplicidade. O quesito dos assun No primeiro passo, o efeito satírico está na distância que separa as rea
tos que vão além da província é atendido em escala enciclopédica pela lidades brasileiras da norma burguesa européia; no segundo, decorre da
verve e por certa "cultura geral" do narrador, figura cosmopolita e elasticidade com que a civilização burguesa se acomoda à barbárie, a
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ultracivilizada, um compêndio de elegâncias de classe, que não se pri qual parecia condenar e que lhe é menos estranha doque parece. A inde
va de discretear sobre o mundo e sobre si mesmo, de A a Z. Vai do Rio
pendência de espírito pressuposta sobretudo nesta última observação,
de Janeiro antigo aos tempos homéricos, passando por Santo Agosti feita em luta contra a atitude reverente do intelectual colonizado, colo
5/17/2018 nho, os Rothschild, a guerra da CriméiaSchwarz,
etc. QuantoRoberto
à radicação -Sequencias
na rea Brasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
cava Machado entre os críticos abrangentes da atualidade.
lidade nacional, outro ponto de honra do espírito moderno, estamos
Noutras palavras, a especificidade nacional existia, mas tomava
diante da prosa de um proprietário abastado à brasileira, quer dizer,
enfronhado em relações de escravidão e clientela, das quais de fato feição negativa, desde que fosse elaborada com verdade e de modo
artisticamente satisfatório. Depois de ser um ideal, o "homem do seu
decorre um sentimento peculiar da atualidade, passavelmente retrógra
tempo e do seu país" fazia figura de problema, quando não de vexame.
do, cuja fixação sarcástica, na escala do universo (deAaZ), é um feito
As razões históricas do quadro são conhecidas de todos. Talvez se
artístico de Machado de Assis. Convenhamos que mais situado não
possa falar num pitoresco estrutural, definido pela discrepância com o
I seria possível. A exemplo dopaís, este narrador-protagonista, que é um
tipo social, reúne o gosto pela civilização ao substrato bárbaro. É ele a Oitocentos europeu, em especial o trabalho livre e a igualdade perante a
lei. Conquistada de forma conservadora, a independência política bra
invenção literária audaciosa, o eixo da composição, a esfinge trivial a
;1 ser decifrada - embora a leitura convencional, seduzida pelo clima sileira (1822) havia preservado o complexo social e econômico gerado
refinado, de classe alta, o considere um modelo a imitar. pela exploração colonial. Entre outras coisas não suprimiu o tráfico
negreiro e o trabalho escravo, o qual durou até 1888. Assim, por um lon
De passagem, notem-se os paralelos com argumentos muito pos
teriores de Jorge Luis Borges, por exemplo em "O escritor argentino e go período a prosperidade material e os avanços culturais do país deve
a tradição": "[. .. ] os nacionalistas simulam venerar as capacidades da ram-se ao florescimento de formas sociais que sehaviam tornado a exe
mente argentina, mas querem limitar-lhe o exerCÍcio poético a alguns cração do mundo civilizado. As ambivalências que essa constelação
pobres temas locais, como se os argentinos só pudéssemos falar de inglória causava valem um estudo sistemático. A fixação exclusiva no
subúrbios e de fazendas, e não do universo. [... ] Creio que os argenti atraso ou no defeito social da nação entretanto limita o foco, em espíri
nos e em geral os sul-americanos estamos numa situação análoga [àde to moralista: faz supor que o século XIX tenha sido a história da Liber
judeus e irlandeses]; podemos manejar todos ostemas europeus, mane dade e de seus tropeços no país, e não, como é mais plausível, a do Ca
já-Ios sem superstições, com uma irreverência que pode ter, e já tem, pital, que não tinha objeções absolutas à escravidão, a qual havia
conseqüências afortunadas". 2 abolido nalgumas partes, e suscitado noutras. Desse ângulo, a cena bra
A riqueza da equação machadiana é grande. De um lado, assisti sileira lançava uma luz reveladora sobre as noções metropolitanas e
mos à comédia local das presunções de civilidade e progresso, qualifi canônicas de civilização, progresso, cultura, liberalismo etc., que aqui
cadas e desqualificadas pelo pé na escravidão e nas relações conexas: conviviam em harmonia meio absurda com o trabalho forçado e uma
o Brasil de fato não é a Inglaterra. De outro, invertendo a direção da crí espécie de "apartheid", contrariando o essencial do que prometiam.
tica, temos a revelação do caráter apenas formal daqueles indicadores Suponhamos então que a especificidade nacional residiu e reside
da modernidade, inesperadamente compatíveis com as chagas da ex- no sistema desses funcionamentos anômalos, ligados à refuncionaliza
ção moderna - pós-colonial- da herança colonial. Os seus desdobra
(2) A com paração ent re M achado de Ass is e B orges foi esboçada por Davi mentos não burgueses são vergonhas? poesia? resquícios? tradição?
Arrigucci Ir., em "Da fama e da infâmia (Borges no contexto literário latino-america promessas? Há fregueses para cada uma dessas hipóteses. Como as
no)", in Enigma e comentário, São Paulo, Companhia dasLetras, 1987.
anomalias têm apoio na divisão internacional do trabalho, bem como
152
153

e m p rivilég io s s oc ia is inter no s, q ue a s r e pr od uz em, o de se jo d e s upe ra 


ç ão f ic ou s em e fe ito d ecisivo até s egu nd a or de m. No plan o liter ár io tal
v ez s e p os sa dize r q ue a s ob ra s q ue c on sc ie nte o u inc ons cien te men te
der am for ma ao probl ema e se situaram com profundidade a respeito,
http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo 76/124
suspendendo a redoma nacional e sentindo que ali estava em jogo o
mund o co ntempo râ ne o, ten ham s id o a s d ecisivas d a c ultu ra b ra sile ir a.
FIM DE SÉCULO
En te ndida c om a mplitude s uf ic ie nte, a s on dag em d a e xpe riên cia es pe 
5/17/2018 Schwarz,
cí fica que coube aos br asi leiros é também Roberto
a font -Sequencias
e do val or de seus tra Brasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
b alho s. Nem po der ia s er d e o utro modo .
Sob o si gno da industri al ização e de um certo fechamento da eco
nomia, já perto de nosso tempo, o desenvolvimentismo prometeu
incorporar ao mundo do salário e da cidadania a população r el egada,
com cujo pouco preço e muita esperança cont ava par a conquistar um No começo da década de 60 um crít ico observava que no Brasil se
lugar para o Brasi l entre as nações adiantadas. Se fosse possí vel, teria faziam filmes que, embora tendo público numeroso e entusiasta, não eram
sido uma solução. Hoje vivemos a decomposição daquele projeto, considerados propriamente cinema pelos seus produtores e espectadores.
substituído por outro, em que a hipót ese da integração social figur a Ci nema de verdade era o que nos vi nha dos Estados Uni dos ou talvez da
com menos força. As "peculi ari dades" do novo ciclo não deixarão de Europa, muito diferente das nossas chanchadas. Cinema era somente o que
,li
,d! aparecer, sejá não estiverem aparecendo, inclusive na literatura. não produzíamos, e que valorizávamos demodo aliás um tanto subalterno.
É o que o crítico chamava "a situação colonial do cinema brasileiro".
Essa si tuação t inha prolongament os também na reflexão, a qual
c om tod a na tu ra lida de tomav a c omo o bjeto o c in ema- ar te, q uer d iz er , o
cinema feit o fora. Assim, enquant o o crít ico americano ou europeu
escrevia em diálogo virtual com os diretores dos filmes que comentava,
o brasileiro não dispunha dessa referência importante. Na ausência dela
n ão lhe r es ta va s enã o a a firmaç ão da s mitologias e manias de um a ficio
n ado . Se u ve rd ade ir o inter lo cutor e ra m a igno râ ncia do p úblico , a e stu
pidez da censura, o mau gosto dos di stribuidores, além da simpati a do
gr up in ho d os ad eptos . T ratav a- se d e u m b em e ngr en ad o s is te ma d e a lie
nações, que em palavras do própri o cr ítico imprimia "a mar ca cr uel do
s ubd es en volvime nto" e m tod os q ue s e o cup as se m d o as su nto du ra nte
a lg um tempo. Não er a u ma iro nia f ác il, p ois q ue m a ss im se e xpr es sa va
v in ha s e o cup and o d e c in ema e m tempo integr al ha via muito s a nos .

O aut or de que f al amos é Paulo Emili o Salles Gomes, e o escrito


e m q ue stão f oi a pr es entad o c omo c on tr ibu iç ão à Pr imeira Co nve nçã o
Nac io na l d e Cr ític a Cine matog rá fica , e m 1960.1 Ex pu s a lg uma c oisa

(1) P.E. Salles Gomes, "Uma situação colonial", Arte em revista, I, São Paulo,
Kairós, 1981.Ver ainda, do mesmo autor, "Acriação de uma consciência cinematográ
fica nacional", Arte em revista, 2, São Paulo, Kairós, 1983. A publicação mencionada
reúne uma boa documentação sobre o período.

154 155

de s eu argu me nto po rq ue res ume co m felic id ade a s itua çã o q ue o n ac io  Com a dist ância no tempo e a ampliação da per spectiva, ent ret anto,
n alis mo d es en vo lv ime ntis ta q ueria s upe ra r no c ampo da c ultu ra. No te  essa mesma mescla sof re mais outra vira-volta: dei xa de funci onar
s e q ue o divó rc io en tre a spira çã o cu ltural e c on diçõe s loc ais é u m traç o como emblema nacional, para indi car um aspecto comum das indus
comum, e quase se diria lógico, da vida em colônias ou ex-colôni as.
http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo trializações retardatárias, passando a representar um traço característi 77/124
Nesse sentido não se tratava de nada novo ou exclusivo ao cinema.
c o da c ena c ontemp orâne a toma da em s eu c on ju nto.
Devido a seu componente i ndustrial, entretanto, este últi mo levaria a
Seja como for, o nacionalismo desenvolvimentista armou um
r eformular aquele divórcio em t ermos at uali zados, propícios à inter
venção deliberada e política. ima giná rio s oc ia l n ov o, q ue p ela p rime ira ve z s e refere à n aç ão inteira ,
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
e q ue a sp ira, tamb ém pe la p rime ira v ez , a c erta c ons is tê nc ia interna : u m
Posto como objetivo prático, o desenvolvimento nacional reorga
ni zava o e spaço da imaginação e do pensamento crí tico em torno de um ima giná rio n o q ua l, s em prejuízo d as falác ia s n ac io na listas e p opu lis

eixo interno. Cheia de difi culdades, a relação entre as aspir ações de tas, parecia razoável testar a cultura pel a prática soci al e pelo desti no
mo dernida de e a e xp eriê nc ia e fe tiva do pa ís s e torna va u m tópico o bri d os o primidos e e xc lu íd os . D e p as sa ge m s eja d ito q ue a de rroc ada p os 
gat óri o, desmanchando o bovarismo endêmico e convi dando a refle terior das promessas daquele período não invalidou - ao menos não
xão a tocar terra. No limite tratava-se de arrancar a população aos por completo - o sentimento das coisas que se havi a f ormado, refl exo
enquadramentos semi coloniais em que se encontr ava, e de tr azê-Ia, agora meio irreal de uma responsabilidade hist óri ca, cuj as der rot as
ainda que de forma precária, ao universo da cidadania, do trabalho a ss in alam ou tros tan to s a va nç os d a n ov a d es solid ariz aç ão s oc ia l.
a ss alaria do e da a tivida de e co nô mica mod erna, ind us tria l s obretud o, Nascido na conjunção de mercado i nt er no e industri alização, o
contrariando o destino agrário a que o imperialismo - como se dizia ciclo de se nvo lv ime ntis ta a dq uiriu c erto a le nto de ep opé ia pa triótic a a
- nos forçava (o que aliás naqueles anos 60 deixara de ser verdade). partir da const rução de Brasíli a; o seu ponto de chegada seri a a socie
Iss o n a ó tica ju stific ado ra e c omo q ue " re sp on sá ve l" d o p ro je to na cio da de n ac io na l integ ra da, liv re do s e stig ma s co lo niais e eq uiparad a a os
nal. Com menos simpatia e mais acento na irresponsabilidade e na países adiantados. É u m fato qu e na s próp rias e lite s e xistia a c on vicç ão
cegueira, pode-se dizer igualmente que os novos tempos desagrega de q ue e ss a tra je tó ria inc lu iria mo men to s d e fricç ão c om os interes se s
v am à distânc ia o v elho en qua drame nto rural, p ro vo ca nd o a migraç ão norte-americanos. Ocorr e entretanto que no início dos anos 60 se foi
para as cidades, onde os pobres fi cavam largados à disposição passa firma nd o ma is ou tra c on vicç ão , e sta ex plos iv a, s eg un do a q ua l a firme 
velmente absoluta das novas formas de exploração econômica e de z a do an tiimpe rialis mo d epe ndia d e u ma mo difica ção na co rrelaç ão de
manipulação populista. força s e ntre a s c la ss es s oc ia is d en tro do p róp rio p aís. O na cion alis mo
Afastada de suas condi ções ant igas, posta em situações novas e s ó a lc an çaria os s eu s o bjetiv os s e fos se imp ulsion ad o pe lo a cirrame n
ma is o u men os u rb ana s, a c ultura tra dicion al n ão d es apa re cia, ma s p as  t o da l ut a de classes. Começava a radicalização social que seri a corta
sava a fazer parte de um processo de outra nat ureza. A sua presença sis d a e m 64 p elo g olpe militar.
temátic a n o a mbiente mod erno c on figu rav a u m d es ajus te e xtra vag an  Noutras palavras, surgia a consciência de que a exploração de
te, c he io de d ime ns õe s e nigmátic as, qu e e xp re ss av a e s imbo liza va e m classe no plano interno e as grandes desigual dades na ordem interna
certa medida o caráter pouco ortodoxo do esforço desenvolvimentista. c io na l s e alime ntav am rec iproc amen te e q ue e ra n ece ss ário e nx ergar as
Aliás, com a sua parte de simpatia e de tolerância, mas também de duas em conjunto. Pouco tempo depois Glauber Rocha formularia a
absurdo e de pr imiti vi smo, essa mescla do tradicional e do moderno se sua "estéti ca da fome", na qual r ei vi ndicaria a feiúra e miséria do Ter
prestava bem para emblema pitoresco da identidade nacional. Por c eiro Mu nd o, ma s p ara lan çá-Ias à cara dos cinéfilos europeus, como
ou tro lado , é ce rto q ue o ritmo e a s ociabilida de tra dicion ais lan çav am parte do mundo deles, ou melhor, como um momento significativo do
p or s ua ve z u ma luz c rítica s obre a s p au ta s do p ro gres so e co nômico dito mundo contemporâneo, e não mais como um exotismo próprio a
" no rma l" , crian do a p re su nç ão d e qu e n as c on diçõ es b ra sile iras a s oc ie  reg iõ es distantes ou a s oc ie da de s a tras ad as . Po r a qu eles me smo s an os
da de mo derna s eria mais c ordial e me no s bu rg ue sa q ue n ou tras p arte s. foi e la borad a a T eoria d a De pe ndê nc ia , q ue es tud ava o vínc ulo de e stru -

156
157

tura entre a ordem mundial e as distintas situações de subdesenvolvi sociedade brasileira resultaram num quase-apartheid. A burguesia
mento. Como se vê, foi um momento forte de tomada de consciência nacional aspirava à associação com o capital estrangeiro, que lhe pare
contemporânea, nacional e de classe, que se traduziu por uma notável cia mais natural que uma aliança com os trabalhadores de seu país, os
desprovincianização do pensamento. Não foi por acaso que o Cinema quais por sua vez também preferiam asempresas de fora. O que pare
http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo 78/124
Novo, a Teoria da Dependência ou a obra de Celso Furtado tiveram a cia acumulação se perdeu ou não serviu aos fins previstos. A verifica
repercussão internacional que tiveram. À guisa de contraprova, note ção recíproca e crítica entre as culturas tradicional e moderna não se
secomo a perda desse dinamismo devolveu acultura do país à sua irre deu, ou melhor, deu-se nos termos lamentáveis das conveniências do !

5/17/2018 Schwarz,
levância tradicional, da qual hoje todos Roberto -SequenciasBrasileiras
sofremos. [Livro
mercado. Completo]-slidepdf.com
Etc. etc. lil

I1

Com o golpe de 64 a dimensão democratizante do processo che Entre parênteses, não custa observar que asidéias deDerrida che ii
i"

"

gava a seu fim. Mas não o próprio nacionalismo desenvolvimentista, garam ao Brasil antes que se instalasse esse clima. Recordo um ensaio ii
que depois deuma curta interrupção - ummomento inicial desubmis do amigo Silviano Santiago, aqui presente, quedata de 1971,cujo hori
são direta aos interesses norte-americanos - voltava e até seintensifi zonte ainda era outro, anterior à desmobilização, e aliás bastante pior.
cava, agora sob direção e com características dedireita. Atalponto que Naquela oportunidade a desconstrução servia como objeção ao paro
uma fração da intelectualidade, mais desenvolvimentista e antiimpe xismo autoritário da ditadura, assim como à rigidez da esquerda envol
rialista que democrática, acompanhou com certa simpatia o projeto dos vida na luta armada. Incluía também um ligeiro toque de reivindicação
generais de transformar o Brasil numa grande potência. O ciclo chegou latino-americanista ao questionar o primado do centro sobre a perife
aofim com os dois choques do petróleo, a crise da dívida e sobretudo ria, o que talvez fosse um modo paradoxal de dar continuidade ao
com os novos saltos tecnológicos e a globalização da economia, que
, 1

nacionalismo do período anterior.2 Silviano me corrigirá sefor o caso.


somados levantaram uma muralha e transformaram a paisagem. Nos Voltando contudo ao argumento, a desintegração do projeto
anos 80 ficava claro que o nacionalismo desenvolvimentista se havia desenvolvimentista deixou por terra um conjunto impressionante de
tornado uma idéia vazia, ou melhor, uma idéia para a qual não havia ilusões. Procurei indicar a afinidade que existe entre essa desautoriza
dinheiro. Nas novas condições de tecnologia, as inversões necessárias ção maciça deuma experiência histórica e o teor de ambigüidade que a
para completar a industrialização e a integração social do país se nova crítica injetou nas categorias históricas tradicionais. Tanto que a
haviam tornado tão astronômicas quanto inalcançáveis. O nacional desconstrução filosófica, apesar do esoterismo, chega a parecer uma
desenvolvimentismo entrava em desagregação - e começava operío descrição vulgarmente empírica de notórios equívocos e desenganos
do contemporâneo, que para os efeitos deste seminário poderíamos contemporâneos. Contudo, basta pensar um pouco mais concretamen
chamar de "nosso fim de século". te naquela desintegração para lhe notar a materialidade prática, um
Como estamos entre críticos literários, é interessante notar que a peso decatástrofe real que não secompagina com oestatuto apenas dis
realidade começava a separecer com a filosofia, no caso, com a terra cursivo da crítica filosófica e de seu objeto. I

movediça postulada pelo desconstrucionismo. O processo da moderni Assim, porexemplo, o desenvolvimentismo arrancou populações
zação, com dinamismo próprio, longo no tempo, com origens e fins a seu enquadramento antigo, de certo modo as liberando, para as reen III

mais ou menos tangíveis, não se completou e provou ser ilusório. Nes quadrar numprocesso àsvezes titânico deindustrialização nacional, ao
lil

sascircunstâncias, a desestabilização dossujeitos, dasidentidades, dos qual a certa altura, ante as novas condições de concorrência econômi
significados, das teleologias - especialidades enfim do exercício de ca' não pôde dar prosseguimento. Já sem terem para onde voltar, essas
leitura pós-estruturalista - adquiriu uma dura vigência prática. Assim, populações se encontram numa condição histórica nova, de sujeitos I1
o desenvolvimento nacional pode não ter sido nem desenvolvimento
nem nacional, nem muito menos uma epopéia. O motor da industriali (2)Silviano Santiago, "O entre-lugar dodiscurso latino-americano", in Uma lite
zação patriótica esteve na Volkswagen e os esforços de integração da São Paulo, Perspectiva, 1978.
ratura nos trópicos,

158 159

monetários sem dinheiro, o u d e e x-proletário s v irtu ais, d is po níve is Es se p risma tem interes se tam bé m p ara o fun do d o d eb ate intelec 
para a cri minal idade e t oda sorte de f anatis mos. Pas sando ao esfor ço tua l b ra sile iro. A p artir d a Ind ep en dê nc ia , e ste último d ev e a s ua ins pi
n ac io na l d e a cu mu la çã o, o q ue s e v ê s ão s ac rifícios fan tá stic os p ara ins  ração à tarefa inconclusa da formação
à qual se vincula o nacional,
tal ar usinas atômi cas que nunca irão funcionar, est radas que não vão a imper ativo de parti cipar da moder nidade - um imper ativo com aceit a
http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo 79/124
part e alguma, ferrovi as imensas ent regues à ferrugem, edifi cações ção geral. 4 C om o c ic lo de se nv olvime ntis ta a q ue stão a dq uire a s fe iç õe s
fant asmas que entret anto não se desmancham com as il usões ou nego d eh oje: tra ta -s e de ind us tria liza r o p a ís , tra ze nd o a p op ulaç ão rural a fo r
ciat as que as t iraram do nada. Que fazer com el as? Inclusi ve o cres ci ma s inc ip ie ntes d e tra ba lh o a ss alaria do e c id ada nia, d e c on su mo e c ul
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
mento da universi dade pode ser vist o em termos análogos. Digamos tura atuais, a fim de equipará-Io ao progresso do mundo. A reflexão a
e ntão q ue o s res ulta do s d a ilu sã o s ão fatos s oc ia is e fe tivo s.
ess e respei to cos tuma tomar car áter dif erencial : em quais pont os e por
Um estudioso alemão da modernização, Robert Kurz, de quem que razões - devidas ao passado colonial- o país discrepa da norma
emprestamos as fórmulas, os argumentos e exemplos do parágrafo ci vili zada? De c erta maneir a, apesar dos obstácul os, o s ent imento de
a nterio r, c ha ma " pó s-ca ta stró fica s" a s s oc ie da de s q ue s e m ob iliz aram m ode rn id ad e q ue c orre sp on de a tal refle xã o n ão é mu ito a flito n em p ro 
a fundo par a o desenvolvi mento i ndustri al e não o cons egui ram viabi  blemático, pois a moder ni dade no caso se apresenta como est ável, à
lizar. J O "colapso da modernização", que consiste exatamente na espera e ao alcance da mão, além de encarnada positivamente nas
s eqüênci a de arregimentação pr of unda e fr acasso, para o aut or j á é um nações que nos servem de modelo. Se já no sécul o passado soubemos
fato nestas sociedades, ao passo que a normalidade passou a não ser trocar a escravidão pelo trabalho mais ou menos livre, nada parece
mais que um verniz. Noutras palavras, a falência do desenvolvimentis
imp edir a go ra q ue a e lite s e a uto-re fo rme e p as se d o c lien te lismo à c on 
mo, o qual havia revolvido a sociedade de al to a bai xo, abr e um perío d uta rac io na l, do ma nd on is mo à c id ad an ia , d a c orru pç ão à virtud e rep u
d o e sp ec ífic o, e ss en cialme nte mo de rn o, c uja d in âmica é a d es ag re ga  b lica na , d o protec io nismo à liv re c on co rrên cia e tc ., q ua nd o e ntão fare
ção. Se for assim, o que está na ordem do dia não é o abandono das mo s p arte dign a d o c on ce rto d as n aç õe s e vo lu íd as .
ilusões nacionais, mas sim a sua crítica especificada, o acompanha
En tretan to, s e h is to riciza rm os a mo de rn iz aç ão , c om o é n ec es sá 
mento de sua desintegração, a qual é um dos conteúdos reais e momen-
rio, e a tomar mos não como coleção de normas abst ratas , à di sposição
tosos de nosso tempo.
g eral, m as c omo proc es so mu nd ia l e fe tivo , c om s eu d es en ho rea l, o nde
Consi der ada desse ângulo, al iás, a desi ntegração nacional não é
possivelmente não haja lugar para nós, e muito menos para todos,
uma questão naci onal , e sim um aspecto da inviabi li zação global das
desest abili zaremos aquel as es per anças. Contr ariamente ao que diz a
ind us tria liza çõ es retarda tá rias , o u s eja, d a imp os sibilida de c re sc en te ,
ideologia - como bem observa Kurz - o mercado não é para todos.
p ara o s p aíse s a tras ad os , d e s e inc orpo ra re m e nq ua nto n aç õe s e d e m od o
De pas sagem fica cl aro quanto er a est reit a e provinci ana a nossa i déia
social mente coeso ao pr ogresso do capi tali smo. As f ragment ações
d e mo de rn iz aç ão , p ara a q u al o p ro blem a n ão e stav a na m arch a d o m u n
locais são o avesso do avanço contemporâneo e de seu curso cada vez
do, mas apenas em nossa posi ção relat i va dentr o dela. Se é ver dade que
m ais de stru tivo e u nifica do . (As sim, o d is cu rs o d es co ns truc io nista
s obr e os pr econceitos e enganos embuti dos na i déia abst rata de nação a modernização tomou um rumo que não está ao alcance de nossos
recursos, al ém de não criar o emprego e a ci dadani a promet idos, como
tem p ou ca relev ânc ia e p as sa à margem do processo efetivo. A presente
ficamos? O que pensar dela? O mito d a c on ve rg ên cia p ro vide nc ia l
d es in te graç ão n ac io na l é u ma rea lida de m ateria l d a h is tória c on te mp o
e ntre p ro gres so e s oc ie da de b ra sile ira e m forma çã o (ou latin o-ame ri
rânea, e a distância que separa as suas condicionantes técnico-econômi
cana) já não convence. E se a part e da modernização que nos tocou f or
c as d os tro ca dilh os filos ófic os e m mo da , talve zjá e x-mo da , é p atétic a. )

(4) Antonio Candido, "Uma literatura empenhada", in Formação da literatura


(3)Robert Kurz, O colapso da modernização, São Paulo, Paz e Terra, 1992. brasileira, São Paulo, Martins, 1969,vol. I.

160 161

esta mesma dissociação agora em curso, fora e dentro de nós? E quem


somos nós nesse processo?
As soci edades que não al cançar am a i nteg ração moderna são a fe
tada s de modo dife renci ado pel a nova ordem gl obal. No Br asi l cor re
http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo
mos o r isco de ver r epri sado o de sast re da Abol ição, q uando os senho 80/124
r es, ao se moder niza rem, s e l ivr aram d os e scrav os e os abandonar am à
sua sorte. É sabi do qu.e o nov o padrão c ompet it ivo , íngr eme em fac e " CIDADE D E DEUS "
5/17/2018 das real ida des d a v ida popul ar, se compõe à maravi
Schwarz, lha com o n-os
Roberto so des 
Sequencias Brasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
caso secul ar pel os pobr es. Em se u "de sprepa ro", est es est ão dei xando

de int ere ssar at é como fo rça de tra balho qua se grat uit a. Pass ou o tem
po em que incorporá-Ios parecia um imperativo econômico. Diante das
novas tendências estruturais, mais segmentadoras que integradoras,
com as s uas des quali fi cações soc iai s d uras e sobr etudo o des emp rego O romance de estréia de Paulo Lins, um catatau de quinhentas e
t ecnol ógic o, não se rá fáci l as eli tes d ecidi rem e ente nderem, até para cinqüenta páginas sobre a expansão da criminalidade em Cidade de
uso particular, em que consiste ser parte de um país ou governá-Io. Só
Deus, no Rio de Janeiro, merece ser saudado como um acontecimento.
por coração cristão ou deformação esquerdista antiga os cidadãos da
O int eres se explos ivo do as sunt o, o tamanho da empres a, a s ua dif icul 
faixa atualizada, aliás policlassista, sentirão afinidade com os que
dade, o pont o de vist a i nter no e dif erent e, tudo cont ri bui par a a avent u
sobraram. O divórcio entre economia e nação é uma tendência cujo
a lcanc e ainda ma l começamos a imagina r. A pe rgunt a não é r etór ica: o ra artística fora do comum. A literatura no caso foi levada a explorar
que é, o que s igni fi ca uma cul tura nacion al que já não art icu le nenhum possibilidades robustas, que pelo visto existem.

projeto coletivo de vida material, e que tenha passado a flutuar publici Para indicar os novos tempos, o autor fala em "neofavela", por
tariamente no mercado por sua vez, agora como casca vistosa, como oposição à favela em acepção antiga, que foi reformada pela guerra
u m es ti lo de vida si mpát ic o a consumir entr e ou tros ? Essa e stet iz ação entre os traficantes de droga e pela correspondente violência e corrup
c onsumist a das as pir ações à comuni dade nac ional não dei xa de ser um ção da polícia. É este o processo que o romance recria, numa escala
índi ce da nova s itu ação t ambém da ... es tét ic a. Enfi m, o cap it ali smo numerosa, com algo de enciclopédia, que lembra as grandes produções
continua empilhando vitórias.
de cinema sobre o gangsterismo.
No pa rágra fo de aber tur a, que é suti l, e ncontr amos a s p aut as clás 
sica s da vi da popu lar bras il eir a, em t oda a sua gr aça. Enquant o di vide
o baseado com um amigo, Barbantinho sonha com o futuro. Quer ser
um salva -vi das com bom prep aro fí sico . Não um de sses r ela xados, que
por fal ta de exer cíc io dei xam o ma r l evar as pess oas. Até mes mo depoi s
fI do expedi ent e o meni no cuida ria da for ma, apr ovei tando o percur so
entr e a pra ia e sua cas a pa ra corr er. "O cer to er a mal har s empr e, ali me n
tar-se bem, nadar o máximo possível." Em boa paz e sem susto para a
consciência, o pé na irregularidade convive com a disposição prestati
'I va, a a mbi ção modest a, o resp eit o aos consel hos de quem s abe, o horá

~I ri o de tr abalh o, a a tual iza ção com o f igur ino e m maté ria d e saúde, alé m
_~iJ

? da proteção de Iemanjá. Acresce que o pai e o irmão de Barbantinho

162 163

•••• _----- ----- ------ • • • • ~<


• ~<~ ~~ ~- " " -- -" - ~-

também são salva-vidas, de modo que o menino está seguindo o bom Em pl ano menos palpável há a quase-padronização das seqüên
exemplo.
cias, sinistramente monótonas em sua variação. Depois de uma ou
N a s páginas seguintes, conduzidas de modo talvez um pouco outra droga ou diversão vem a saída para um assalto, com ou sem
ind eciso, e ss a c ons te laç ão co rd ata e otimis ta va i s er q ue stion ad a p ela mor te, pa ra u m e stup ro , p ar a uma v in ga nç a a mor os a, p ar a a e limin aç ão
http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo
po br eza , o d es empr eg o e , s obr etud o, p elos p rime ir os c ad áve re s b oian  de bandidos de out ro bando, ou também de inimigos dentro do próprio 81/124
do no r io que corr e ao l ado da favela. O aspecto da vida popul ar que irá e tc. Os p as se io s c om p ro pós ito d e distra ção , p ar a joga r b ola n a p r aia o u
p re va le ce r é o utro . A d if er en ça , qu e r es sur ge a tod o momen to , tem f un armar rolo numa fest a, depois de alguma confusão tendem para o mes
5/17/2018 ç ão e strutur al e co mo qu e e sb oç a u maSchwarz,
p er sp ectiv a Roberto
h is tór ic a. -SequenciasBrasileiras [Livro Completo]
mo desenlace, o que é uma das-slidepdf.com
linhas evolutivas amargas do livro.
Com o primeiro assalto e a entrada em cena dos bandidos, o livro D epois vem a fuga, a pé, de ônibus, em carro roubado ou t áxi, e o ento
ad quire o an da men to q ue f as cina rá o leito r a té o f in al. Uma inter pr eta c amen to pa ra p as sa re m a s vinte e q uatro h or as d o f la gr an te . T ra nc ad os
ção à al tura do romance vai depender da contempl ação e análise desse num quarto qualquer , os "bi chos-soltos" tomam leit e ou precisam de
dinamismo poderoso.
mais dr og a pa ra r ecu pe ra r a c alma e d or mir.
No plano direto da movimentação, há a visibilidade realçada, à Sem prejuízo da repetição constant e dessas seqüências, o movi
maneira do filme de ação. De revólver na mão, Marreco, Alicate e mento vai em crescendo, numa direção que é o problema a encarar, ou
i I Cabeleir a, o chamado Trio Ternura, "passaram correndo pelo Lazer, a in da , q ue é o pr es en te inex tr ic áv el. A c adê nc ia a mp la d o liv ro d ep en 
e ntrar am p ela p ra ça d a L o ur a, s aíra m e m f re nte ao ba r do P in gü im, on de d e mais d as muda nç as d e p atamar , c om a lc an ce c oletiv o, qu e de p on to s
estava parado o caminhão de gás" que iriam assalt ar. Chutam a cara do d e inf le xã o n a vida ind iv id ual, embo ra e stes tampo uco f alte m. Veja- se
tra ba lh ad or q ue , d eitad o n o c hã o, ten ta va e sco nde r o d in he ir o. A p ala por exemplo um assalt o de motel que toma rumo bár baro, com muitas
v ra " tr ab alha do r" tor na mais c ond ená ve l a v io lê ncia d os ba ndido s? Ou
mort es e perseguição policial. Na mesma noi te um homem se vinga da
pe lo c ontrár io e la e sc ar nec e d o o tá rio q ue o s q uis e nga na r? I mp os síve l t raição da amada cortando em pedaços a cri ança branca que el a dera à
dize r. A a mb iv alên cia n o vo ca bu lá rio tra du z a ins ta bilidad e d os p ontos luz. Noutra esquina um trabalhador decepa o rival com um golpe de
de vi sta embut idos na ação, um certo negaceio malandr o entre ordem e foice. Não há ligação entre os crimes, mas no dia seguinte Cidade de
d es or de m ( pa ra r etomar , n outra e ta pa, a ter mino lo gia de " Dialétic a da Deus saí a do anoni mato e passava a figurar na primeira página dos jor
maland ra ge m" ). Aliás , os mes mo s as sa ltantes f ra nq ueiam o s bu jõ es de nai s como um dos lugares vi ol entos do Rio de Janeir o. A i mportância
g ás a o p e ss oal a ss us ta do , q ue s aía de f ininh o mas n um min uto leva toda dos bandi dos aumenta aos ol hos dos out ros e del es próprios. O assal to
a mercadoria. Tudo tão claro quanto complicado. a o motel, q ue d er a e m c hac ina p or n er vo sismo d os lad rõe s, tran sf or ma 
O apuro da coreografia combina-se à indistinção entre o bem e o v a- se n um f eito no tá ve l, au me ntand o a au to rida de d os b and id os e o ter 
mal. Quando t rocam t iros, a autor idade e os bandidos põem "meia car a ror que inspiram. Estava formado o novo mecanismo de integração
na quina da esquina". O acerto da expressão, com r ima interna e t udo, perversa: as pi or es desumanidades adquirem si nal positivo uma vez
faz pensar que não só a arte decanta a vida como também a vida se ins
que al cancem sair na mídia, uma espécie de al iada par a romper a bar
pira nos seriados de televi são a que bandidos e poli ci ais assi stem. As reir a da exclusão social. "- Todo bandido tem que ser famoso pra nego
fugas e perseguições mostram a favel a como uma sucessão de muros r es pe itar lega l! - diss e C ab eleira a Pr etin ho ."
precários, quintais e becos, onde quem dá a volta para surpreender o Agitado pelo ferimento de um amigo, Zé Pequeno barbariza a
outro pelas costas topa de frente com o terceiro que não queria encon es mo , mur mu ra r ez as inco mp re ens íve is , mand a c ompr ar c ar ne p ar a u m
trar e tc . A inten sida de e o p e rigo d as a çõ es , b em c omo a nitide z do c ená  churrasco e põe o seu bando em vigília de guerr a à base de cocaína. No
rio, como que concebido sob encomenda, criam uma certa empatia, a d ia s eg uinte o gr up o s ai d e olho a rr eg alad o, r ilha ndo o s d en te s e matan
q ue en tr etan to a b ru ta lida de mon struo sa log o tir a o s ab or de av en tu ra . d o, mas , ine spe ra da me nte, n ão f alta métod o à s ua f úr ia : a s vítima s s ão
So br a uma e sp éc ie d e c ompr ee ns ão a tô nita . o s d ono s d as bo ca s- de -f umo. A p re te xto d e v in ga nç a, Zé P eq ue no p as -

164 165

sava de assaltante a chefe local do tráfico, logo interessado num clima


1
rem como moscas, longe da opulência que nalgum lugar o tráfico deve
de ordem dentro do terror, de modo a não afastar os fregueses de fora. proporcIOnar.
Como no outro caso, em que desgraças quaisquer empurraram o bandi A oscilação vertiginosa na estatura das personagens, conforme o
tismo desorganizado para um nível superior deintegração, também aqui ângulo pelo qual se encarem, formaliza e dá realidade literária à fratu
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o acaso de um furor pessoal faz deslanchar o processo de unificação do ra social, que se reproduz dentro também da esfera do crime. Morto no 82/124
poder e do negócio local. A imensa desproporção entre a causa imedia chão, o senhor violento e astuto da vida e da morte dos outros é um
ta e o resultado "necessário" é um desses nexos em que sentimos o peso menino desdentado, desnutrido e analfabeto, muitas vezes descalço e
5/17/2018
inexorável da história contemporânea. Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras
de bermuda,
[Livrode cor sempre escura,
Completo] o ponto de acumulação de todas as
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Ao acaso dos episódios, vão pingando elementos de periodização, injustiças de nossa sociedade. Sepor um lado o crime forma um univer
comuns à ordem interna da ficção e à realidade: do roubo por conta pró so à parte, interessante em simesmo e propício à estetização, por outro
pria à organização em quadrilha, do imprevisto dos assaltos ao negócio ele não fica fora da cidade comum, o que proíbe o distanciamento esté
regular da droga, do revólver simples ao armamento de especialista (no tico, obrigando àleituraengajada, quando mais não seja por medo. Tra
auge da luta entre quadrilhas, Zé Pequeno, que não tem medo de nada, ta-se de uma situação literária com qualidades próprias.
tenta negociar fuzis usados na guerra das Malvinas), da espreita de oca Colado à ação, o ponto de vista narrativo lhe capta as alternativas
siões aocontrole e gerência deum território. Em vagas sucessivas, a vio próximas, a lógica e os impasses. O imediatismo do recorte reproduz a
lência cresce e a idade dos criminosos diminui. Na situação chega a pare pressão do perigo e da necessidade a que as personagens estão subme
cer lógico que chefes de dezessete anos designem soldados de doze ou tidas. Daí uma espécie de realidade irrecorrÍvel, uma objetividade
dez, menos vigiados, para a tarefa de fuzilar o dono de outra boca-de absurda, decorrência do acossamento, que deixam o juízo moral sem
fumo, que terá dezoito. Com lágrimas nos olhos, a missão será cumpri chão. Dito isso, estamos longe do exotismo ou do sadismo da literatu
da, para subir no conceito dos demais e alcançar logo asprerrogativas do ra comercial de assunto semelhante. O horizonte reduzido é claramen
"sujeito homem". te uma desgraça geral, cuja extensão cabe ao leitor avaliar. Como não
Quais as fronteiras dessa dinâmica? A ação move-se no mundo entender, por exemplo, que os meninos pequenos se iniciem assaltan
fechado de Cidade de Deus, com uns poucos momentos fora, sobretu do velhos e mulheres grávidas? Há lógica igualmente em bater em aci
do em presídios, para acompanhar o destino das personagens. Embora dentados para poder roubá-Ios. É compreensível que as mulheres do
apresentado em grande escala, o curso das coisas está em versão restri meretrício assaltem quando não encontram freguês; que os bandidos
ta em relação a suas premissas: asesferas superiores do negócio dedro sejam muito nervosos; que fulano nunca haja "mantido relações
gas e de armas, a corrupção política e militar que lhe assegura o espa sexuais com uma mulher por livre vontade dela"; que o melhor meio de
ço, não comparecem. Já os seus prepostos locais, quando não são os fuga seja o ônibus, porque "preto que toma táxi ou é bandido, ou está
próprios bandidos, pouco sedistinguem destes. A não ser por raros fla doente à beira da morte". Etc. etc. A matéria é de humor negro e mun
shes, que no entanto bastam para sugerir a afinidade de todos com do-cão, mas está noutro espírito.
todos, a administração pública e a especulação imobiliária que estão na O foco na ação, que a todo momento se precipita para soluções
origem da segregação da favela tampouco aparecem. fatais, imprime aolivro o ritmo sem trégua. Ligada a essa rotina da ten
Literariamente, a órbita limitada funciona como força, pois ela são máxima, a trivialização da morte empurra para um ponto de vista
dramatiza a cegueira e segmentação do processo: em seu ramo, reser desabusado e abrangente, a um passo da estatística, quer dizer, superior
vado aos desvalidos, os chefes de bando não deixam de ser potências, às emoções do suspense, ou ainda, voltado para coordenadas supra
criaturas que entre outras coisas usaram a cabeça e aprenderam lições individuais, de classe, asquais no caso são decisivas. Aintimidade com
duríssimas, isso sem falar na incalculável tensão nervosa que suportam o horror, bem como a necessidade de encará-Io com distância, se pos
a todo momento. Nem por isso deixam de ser pobres-diabos que mor- sível esclarecida, é uma situação moderna.

166 167

Como o antigo Nat ural ismo, o romance de Paul o Li ns deve par te e ntre a s a çõ es . O ge sto e xplic ativ o de ve -s e a o p ad rã o da n arra tiva n atu
d a e nv erga du ra e d a dispo siçã o o us ad a à parceria com a enquete social. ralis ta . A indicaç ão d es ca ma da é u m s ub prod uto d a p es qu is a d e c amp o
Lembrando que a const el ação hi stórica é outr a, tal vez se possa dizer e t em a ver com a idéia de ef iciência do relat ór io científi co. A n ota sen
que em Cidade de Deus os resultados de uma pesqui sa ampl a e muit o saci onali sta dos not iciári os de jornal, usados como documentação
http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo
relevante - o projeto da antropóloga Alba Zaluar sobre "Crime e cri fatual e matéria-prima ideológica, também entra para a escrita, que 83/124
minalidade no Rio de Janeiro" - foram ficcionalizados do ponto de a ss imila a ind a, a lé m d a de termina ção d es es pe ra da d os b an dido s, a b ru 
vi sta de quem er a o obj et o do estudo, com a cor respondent e ativação de talidade entre administr ativa e obt usa da t er minologi a policial . Com

5/17/2018 um ponto de vista de classe diferenteSchwarz, (mas sem Roberto


promoção de-Sequencias
ilusões sua car
Brasileiras ga de modernidade
[Livro Completo] degr adada e alienada, a mescla é mui to con
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p olític as no c ap ítulo). S ig nifica tiva e m s i me sma , e ss a rec omb in aç ão sistente e faz parte real, como se sabe, do universo de s uas víti mas, que

de fatores tem um tom próprio, que no conjunto funciona vigorosamen a despei to do abandono há muito t empo vi vem em terri tório trabalha
t e, embora destoando da "prosa bem- feita". Seja como for, a ampli tu do , pa ra n ão d iz er m elho ra do , p elo p ro gres so . B as ta p en sa r n o " La zer"
de e o mapeamento da mat éria, o âni mo sist ematizador e pi oneir o, que pelo qual os bandidos passam na ida e na volta de suas saí das e que cer
conferem ao li vr o o peso especial, têm a ver com a vi zi nhança do traba tamente foi a cont ribuição de um urbanista. Obser ve-se por outro l ado
lho científico, e também do trabalho em equipe: na página final, dos que a gr avi tação i ninterrupta do t ráfico das drogas desquali fica todo
:1
a grade cime ntos , o a utor d á c ré dito a d ois co mp an he iros pe la p es qu is a u m c omp lex o d e e xp licaç õe s, ou trora c ie ntífic as e a gora b em p en sa n
históric a e de lin gu ag em, à ma ne ira do c ine ma . S ão en ergias a rtís tica s tes , c en trad as no a lco olis mo d o p ai, n a p ros titu iç ão d a mã e, n a d e sa gre
da a tua lidad e, q ue nã o c ab em na n oç ão a co mo da da d e im aginaç ão c ria g aç ão d a família e tc . Na s c ircu ns tâ nc ia s, e ss es rac io cínios a dq uire m
do ra qu e a ma io ria d e no ss os e sc rito re s c ultiva . a lg o d e an tigo e irrea l, e mb ora b iriteiro s, p iran ha s e tc . forme m a reg ra .
O entrevist ador e o pesquisador ajudar am o art ista em sua esque Como uma ideologi a entre outras, o r epert óri o de causas nat ural istas e
ma tizaç ão , à q ua l imp rimira m d es ig ua ld ad es literária s q ue s ão o utro s s oc iológ ic as s e integ ra a u m tec id o d is cu rs ivo s em ú ltim a pa lav ra , q ue
tantos sinais do t empo e apoios construtivos. Assim, o trabalhador, o p or s ua v ez func ion a c omo eleme nto d e u m en igma ma is am plo, forma 
ma la ndro, o b ic ho -s olto , o c oc ota, o s rap az es d o c on ce ito e a po lícia n ão do pel o imenso negócio do crime, de contornos incertos, e pelo r umo
se defi nem para sempre, cada qual por si: são el ement os, em parte anti da soci edade contemporânea, de cuja f ei ção efetiva aquelas explica
g os , d e u ma e stru tu ra no va em forma çã o, a p es quisa r e a divinha r. É den ções não dão notícia.
tro de la q ue a s c ateg oria s s e distin gu em e relac io nam d e ma ne ira prec i Até certo ponto, a transcrição da fala popular, viva e enxuta ao
s a, a lé m d e mud áv el, q ue a ss eg ura a p ertinê nc ia fin a à ficcionalização. extremo, à b eira d o minima lism o, faz c on tras te c om e ss a a rg ama ss a.
A matéri a brut a dos depoi ment os cr ia complexidade quase que no at o: P or ou tro lad o, p ela b rutalid ad e e c ons ta nte repe tição , e la po de tamb ém
há o m enino que prefere ouvir a conversa dos bandidos a r ezar com o p ai s er vista c omo a s ua e xp re ss ão p ura e s imp le s. A o us adia d e lin gu ag em
na Assembléia de Deus. Há o bicho-solto que por amor de uma preta ma is n otáv el, n o e ntan to , ve m p or c onta d e u ma ine sp erad a ins is tê nc ia
bonita sonha com a vida de otário. Outro declara que "virar otário na na poesia - à qual se pode obj etar mui ta coisa, menos o grande acerto
construção civil, jamais". Esse mesmo, pouco depois, vira crente e de sua presença. Nela se combinam os recursos da letr a de samba e uma
a rran ja e mp re go n a Sé rg io Do urado : a fé p as sa va a afas ta r " o s en time n ver são abandi dada do t rocadil hi smo concretist a - a epí gr afe do l ivro
to d e rev olta dian te d a s eg re ga ção q ue s ofria p or s er n egro, d es de ntad o é de Paul o Lemi nski -, cuj as possibi lidades populares aparecem aqui
e s emi-an alfa be to ". O mu nd o relac ion al a rma do pe lo jog o d as p os iç õe s d e ma ne ira interes sa nte. A imp ortâ ncia de libe ra da e ins olente d a n ota
fica na i nt erseção da lógica do cotidiano, da li teratura de imaginação e líri ca, que faz frente ao peso esmagador dos condicionament os pel a
do esforço organizado de autoconhecimento da sociedade. misé ria, d á a o ro ma nc e u m tra ço distin tivo , d e rec us a, d ifíc il d e imag i
Ainda nessa li nha de arte compósi ta, vejam-se os momentos em n ar n um e sc rito r me no s inc onforma do . Se ria interes sa nte refle tir s ob re
que a prosa recapitula o passado ou explora o presente, no intervalo a lig aç ão e ntre es se liris mo imp ro vá ve l e a força n ec es sária a o d es lo ca-

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me nto d o p on to de v ista d e c lasse - d e ob jeto d e ciênc ia a sujeito da como que equilibrados pelo objetivo maior e comum, que alegra acida
ação- que observamos apropósito dopapel daenquete social naobra. de. É como se dentro da desigualdade houvesse uma certa homeostase
"É tud o v erda de ", a visav a Balzac n a a be rtura d e u m roma nc e do todo, até certo ponto tolerável, que a guerra do narcotráfico vem
cheio de lances de imaginação extremada. Também para Paulo Lins romper. No interior destaúltima e de suasexigências sem perdão, a ale
n ão se trata d e n eg ar a p arte d a ficç ão , mas d e lh e a ce ntuar
http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo o va lo r d e gria da vida popular e o próprio esplendor da paisagem carioca tendem 84/124
prospecção e desvendamento. Diante da tarefa deromancear a sua vas adesaparecer numpesadelo, o queé um dosefeitos mais impressionan
ta matéria, o e scritor lan ça mão d e ap oios d e tod a sorte, qu e v ão d e tes do livro.
Crime e castigo e Angústia às superproduções de cinema. Há bastante Segundo uma boa fórmula, a sociedade atual está criando mais e
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
proximidade com a imaginação sensacionalista e comercial de nossos mais " su jeito s mone tário s sem d in he iro" . O seu mu ndo é o n osso , e

dias, mas em espírito oposto, antimaniqueísta, antiprovidencialista, longe derepresentarem o atraso, eles sãoresultado doprogresso, oqual
anticonvencional. A pauta é dada pelo atolamento das intenções  naturalmente qualificam. No íntimo, o leitor sente-se em casa comeles,
Mané Galinha, o bandido simpático e vingador, vai ficando igual a seus pois tendem a realizar o sonho regressivo comum da apropriação dire
inimigos - e pela dissolução geral do sentido, o qual, embora enérgi ta dos bens contemporâneos.
co, não sesabe qual seja. Por esse lado estamos no âmbito válido e sem
consolações baratas da arte moderna. Assim, nas cenas de ação coleti
va em grande estilo, interrompidas e retomadas em função do suspen
se, quando polícia e bandidos vão para o duelo decisivo à Ia Holly
w oo d, tu do termina em de se nc on tro: a mo rte nã o falha, ma s ch eg a
antes do clímax programado, por mãos que não interessam e por moti
vos meio esquecidos que não estavam na ordem do dia. Noutro passo o
melhor malandro de Cidade de Deus acaba como vítima de um carro
q ue de u ma rch a à ré. Por sua v ez o pior ma lfeito r d o roman ce mo rre
sumariamente com um tiro na barriga, que não restabelece a justiça
nem reequilibra o mundo.
Atrás desse anticonvencionalismo metódico se desenha outra
transição mais sutil, entre etapas da contravenção, também ela pouco
edificante. Quando morre Salgueirinho - o bom malandro morto pela
ma rch a à ré - c ho ra m esco la s de samba, na morada s, a migo s e d iscí
pulos, com ele se vai umpedaço da sabedoria que mandava assaltar só
na área dos outros, não brigar à toa pois há mercadoria para todos etc.
Quando morre Cabeção, o detestado detetive responsável pela ordem,
a comoção é de outra espécie, mas a favela também vibra. Já quando
morrem os n ovo s ba ndido s, o s filhos a utên tico s d a n eo fa ve la, n ão
acontece nada. Digamos que a forma anterior de marginalidade era
b em ma is simpá tica , pa ra n ão dizer men os a nti-soc ial. Assim, n os
meses de preparação do Carnaval, os malandros, ladrões e piranhas
assaltam a todo o vapor, para levantar recursos para a escola de samba.
Os crimes, q ue c erta me nte n ão d eixam d e oc orrer n o p ro ce sso, são

170 171

perversidade de classe dessas privações, bem como o seu anacronismo,


ia ap en as um p as so.
Para apr eci ar a dimensão brasil ei ra do quadro é precis o lembrar o
nosso passado escravista, ai nda recent e, cuj as seqüelas em matér ia de
sujeição total e exclusão, bem como de autori dade irr esponsável, são
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ma iores d o q ue s upo mo s. O e xtra ordinário e ng ajame nto a bo licion is ta
NUNCA FOMOS TÃO ENGAJADOS
de J oa qu im N a bu co ilu stra a s d is tân cias s ociais ve rtig in os as q ue o p aís
desafia a transpor. Ilustra também uma problemática político- moral sui
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
generis, d a q ua l a lgo s ub siste a té h oje.
Segundo Nabuco, o mandato abolicionista é uma delegação
" in co ns cien te d a p arte do s q ue a faz em, ma s [.. .] interpretad a p elos q ue
a a ce itam c omo u m m and ato q ue s e n ã o p od e ren unc ia r. N es se s en tido ,
Usada em senti do genérico, a palavra "engaj ament o" não t em cor d eve -s e dize r q ue o a bo licion is ta é o a dv og ad o g ra tu ito d e d ua s c la ss es
própri a. Um i nt electual t ant o pode se engajar no cent ro como na direi  sociais que, de outra forma, não teriam meios de reivindicar os seus
ta ou na esquerda. O senso das proporções ent retanto logo avisa que o direitos, nem consciência deles. Essas classes são: os escravos e os
,

termo parece excessi vo para a opção pelo centro. Al go como "ousar " 'ing ên uo s'. O s mo tivo s p elos q ua is e ss a p ro cu ra çã o tác ita impõ e-no s
u ma ida à pizzaria. No caso da di reita, o que destoa é a defesa do pri v i uma obri gação irrenunciável não são puramente - para mui tos não são
l égio, que briga com a vibração democrát ica que irr adi a daquela pala mesmo pr incipalmente - motivos de humanidade, compaixão e defe
v ra , c uja p arcialid ad e p ela e squ erda s e d ev e à rep ercus são g en eros a da s a g ene ro sa d o fra co e d o o primido . [00'] Ac eita mo s es se ma nd ato c omo
figura de Sartre. homens políticos, por motivos políticos, e assim representamos os

E sta ú ltima a ce pç ão pe rten ce a o a ntifas cismo e urop eu, a o a sc en  escravos e os ' ingênuos' na qual idade de brasi leiros que j ul gam o seu
so operári o do pós-guerra e chegou até o t erceiro-mundismo dos anos título d e c ida dã o diminu íd o e nq uan to h ou ver b ra sile iros e sc ra vo s, isto

6 0. Sa lv o e ng an o, e la p re ss up õe a formaç ão bu rg ue sa do intelec tua l, e , é , n o interes se de tod o o p aís e n o n os so próp rio interes se ". '
d o o utro lad o, u ma s emi-ex clus ão c iv il e c ultu ra l d os tra balhad ores . Es ta mo da lida de rad ic al e e xige nte d e p atriotis mo , limp a d e c om 

M ais ao fund o, d es loc an do tud o tra gica me nte, e stav a a Gu erra Fria . placências sentimentais, que não acoberta o "nosso" atraso nem a
Est as coor denadas expli cam a nota de aventura e escândalo cer injust iça soci al, faz esfregar os olhos incrédul os. Levado por ela, um
c an do a s d ec is õe s d o e ng ajame nto. Co m efeito , a o en ga ja r-se o intelec  moço bem-nascido desert ava a sua cl as se, a sua "raça", r el ativi zava a
ca rida de cris tã , d iz ia c oisa s d urís sima s à Igreja, d en un ciav a o jog o d os
tual cometia uma traição de classe. Não só passava para o outro lado
como colocava os seus conheci ment os e pr eparo cul tural a serviço da "plutocratas" no parlamento e se ligava ao movimento popular, em
luta d os d es po ss uído s, o u, a in da , red irec ion av a a c ultura bu rg ue sa c on  parte à margem da l ei. Sem esquecer que revia a hist ór ia e o funciona
tra o s eu fun da me nto d e p rivilé gio. me nto a bjeto d a p átria e m termo s de u ma n itid ez d es co nc erta nte.

A i déi a pareci a sob medida para o Br as il desenvolvi ment ist a, Outra fase de engajamento intenso foram os anos de 1962 a 64,
onde as aspirações de progresso encontravam a barreira das formas qu an do os imp as se s d a p olític a po pu lista e mp urra ra m a P re sidê nc ia d a
República a estimular a reivindicação popular como forma depressionar
arcaicas de propriedade e poder. Era nat ural que setores i lustrados da
o s a dv ersá rios . P arte s d a intelec tua lida de ma is d es pe rta, em e sp ec ia l os
classe média not assem o parent esco ent re a p rópria i mpot ênci a e a p re
e studa ntes , c ome çaram u ma v erda de ira " id a ao po vo " e toma ra m o p ar-
c arie da de d a v id a p opu lar, q ua se d es prov id a d e d ireitos c ivis, s em falar
de mínimos materiais. Apesar da distância, não haveria algo em
comum entre a falta de perspectiva de uns e outros? Daí a denunciar a (1) Joaquim Nabuco, O abolicionismo, Petrópolis, Vozes, 1977,pp. 67, 69.

172
173

tido da reforma social profunda, fora dos planos governamentais. A países ricos. 2 Na própri a Europa, em segui da aos vagal hões de 68, e aos
mobilização, amplamente caucionada pelas desigualdades inaceitáveis aum ent os salari ai s subs eqüentes, a int egr ação pol íti ca e cul tural dos
do país, somava os impulsos oficialistas e os subversivos. A ambigüida tra ba lh ad or es pa re cia s e c ompletar . Nes sa s c on diçõ es o e nga ja me nto
de favorecia a radicalização aventureira e desembocava em meses explo intelec tu al n ão s e ter ia tor na do u m a na cr on is mo ? Dia nte d e s in dica to s
s iv os , d e pr é- re vo lu çã o d es ar ma da , a q ue o g olpe d e 6 4 p ôs u m ter mo.
http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo p od er os os e b em-s uc ed id os , d otad os d e staff e d ir ig entes à a ltur a, c om 86/124
O direi to de cidade dos t rabalhadores e dos pobres ainda não est a c on qu is ta s e sp etac ular es no a tivo , é c omo s e a c onv er são d o intelec tu al
va conquistado, quando a derrota do campo popular o suprimiu por à caus a dos t rabalhadores passasse a s of rer de despr oporção, ou lem
tempo indeterm inado. N o campo da cultura, entret anto, sem prej uízo brass e o alucinado apoi o do m osqui to ao elefant e. A lógica da mer ca
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
do des astre, as ilusões do perí odo t iveram result ados reais. A s novas d or ia e xp an diu- se v io le ntamente, tan to n a e sf er a p opu la r c omo n a c ul

ali anças e simpat ias de cl asse operavam transfusões de exper iência tural, em detrimento das conexões não mercantis, inaugurando um
social, se é poss ível dizer assim , al ém de com bi nações t ambém novas cl ima es pi rit ual novo. O m arxismo, cuj o fundamento ativi sta havi a
de forma e conteúdo: a cultura do cinéfilo dava de encontro com o s id o a s emi- exc lu sã o s oc ia l do o pe ra riad o, e ntra va e m b aixa a ce ntua 
movimento camponês, o estudante educado no verso modernista se da, o que não deixava também de ser um paradoxo, uma vez que a crí
arri scava na m úsica popular etc. Não será exagero dizer que de l á para tic a a o f etic hismo d a mer ca do ria é u ma d e s ua s c on tr ib uiçõ es c entra is ."

cá boa parte da melhor produção em cinema, teatro, música popular e Es ta m orte provisóri a ent retanto não foi mor rida. Foi mat ada, j á que a
ensaí smo social deveu o impuls o à quebr a mei o prát ica e m eio i magi e stab iliz açã o s oc ia l d o c ap italis mo n os p aíse s r ico s v eio junto c om uma
nári a das barr eiras de classe, esboçada naquel es anos, a qual dem ons c ampa nh a ide ológ ic a e nc ar niça díss ima, q ue va le ria a p ena d oc umen 
trou um incrível pot enci al de es tímul o. Para o professor ci nqüentão de tar, cujo foco esteve e está na desqualificação da crítica ao capital e à
hoje não é fácil explicar aos alunos a beleza e o sopro de renovação e cult ur a que o acom panha. Um cachorro tão chutado pode estar vivo.
justiça que na época se haviam associado à palavra democracia (e Até o nd e p ude a co mp an ha r, a r es po sta intelec tu al à f eiçã o d ec ep 
socialismo) . cionante da A ber tura brasi lei ra foi decepcionante por sua vez. Nada à
Qua nd o o mov imen to o pe rá rio v oltou à cena e i mpôs a sua r eal i alt ura do jogo de cena e dos acert os nos bast idores a que se dedi car am
dade, com as greves da segunda metade da década de 70, foi por sua os conservador es dos campos aut orit ário e democrata. É como se a

p ró pr ia co nta, c om s eus p ró pr io s líd er es . As g re ve s do ABC p es av am d e mud an ça n os ter mo s d a p ro cu ra çã o s oc ia l d o p en sa me nto h ou ve ss e lhe


modo deci sivo, e à vista de todos, par a que se invi abi li zas se a dit adur a qu eb ra do o â nimo c rítico e a br an ge nte. Acr es cia q ue u ma p ar te d a inte
militar . A intelectua lida de d e es qu er da , q ue c or re ra r is co s e f iz er a op o lec tua lida de o po sicion is ta p as sa va p ela e xp er iên cia d e g ov er no , pe s
s iç ão a o r eg ime, n atur alme nte v ibr ou. M as a s c on diçõ es d e s eu e ng aja s oa lmen te o u p or a migo s inter po stos . O a pr en diza do d o r ea lismo e d os
mento - a " procuração tácita" de N abuco - estavam mudadas. A anti segredos de ofício, ou do negócio, poderia valer muito à pedagogia
ga as simetria, que tornava complementares a privação de um lado e o polí tica. Mas acabou li mit ando a li ber dade de escrit a, const rangida
pr epar o pol íti co e ideológico do outro, se tr ansf ormara mui to. Ao vol  diante dos novos int er esses cri ados, que afi nal de cont as não eram ini

tar em d o e xílio, a s g ra nd es f ig ur as d o p ré -6 4 c on statav am q ue o f un da  mi gos (ao mes mo tempo que a mal edi cência podia correr i li mitada).
mento de sua influência anterior deixara de exist ir. No m esmo sentido Complet ando o quadr o, o clim a de capit alis mo social na Europa deu o
o movimento est udant il, que fora uma caixa de res sonânci a naci onal , a va l mode rno à a co mod aç ão ide ológ ic a em c ur so .
passava a t er uma posi ção secundária no rol das coisas.
Enquanto a ditadura sufocava a vida intelectual do país, lá fora (2 ) Fre dr ic J am eso n, " Pe ri od iz an do o s a no s 6 0", i n H el oí sa Bu ar qu e d e H ol an da

o co rr ia m mud anç as . O c ic lo d as g ue rr as d e lib er ta çã o na ciona l c he ga  (org.), Pós-modernismo epolítica, R io d e J an ei ro , R oc co , 1 99 1.


( 3) S ob re a i nd ep en dên ci a re la ti va e nt re o s t e ma s d a r ev ol uç ão o pe rá ri a e d o fe ti 
v a a o f im, d eixa nd o s em o bjeto o ter ce ir o- mu nd is mo, c uja e xa ltaç ão d a chismo da mercadori a na obra de Marx, vero l ivro de Robert Kurz, O colapso da moder
sol idariedade fora um dos fer mentos revoluci onár ios dos anos 60 nos nização, S ão Pa ul o, Pa z e T er ra , 1 99 2.

174 175

Contudo, a integr ação de todos sob o guar da- chuva do mercado A te cn ific aç ão d a s oc ie da de a va nç a e o n úm ero d os e sp ec ia li sta s
próspero - tendência que em certo momento autorizou os melhores a ume nta . A l ig aç ão e ntre e ste s e g ov erno , a dmi ni straç ão p úb lic a e ge s
e sp írito s a c on ce be r a s s oc ia l-de mo crac ias c omo s oc ie da de s e st ab ili  tã o d o c ap it al é e st re it a, forma nd o o b lo co d a a uto ri da de m od erna . " Os
zadas e racionais - no Brasil não ocorreu nem parece em vias de ocor varões sabedores", como dizia Machado de Assis , para caracter izar
rer. Posso estar enganado, mas imagino que a esterilidade relativa da uma inteligência rara que acabava de se enganar por completo. Do
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p ro du çã o i nt ele ctu al d o p eríod o s e d ev a à a do çã o d o h oriz on te te óric o outro lado da cerca vivem os leigos, que ficam inermes, e, mais que
"pacificado" dos países ricos, talvez menos real e "avançado" do que a isso, desqualificados. O bloco das capacidades, de que mal ou bem as
desagregação em cur so entre nós . E agora mais ainda, quando a dina grand es li de ra nça s s in di ca is t amb ém faz em p arte, c on he ce e ss es e fe i
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras [Livro
tos e trata Completo]
de tirar proveito deles.-slidepdf.com
Os representantes do país organizado,
mização do capital se mostra ligada estruturalmente à criação de
e ta mb ém de s i m es mo s, d efron ta m-se c om o p aís de sorga ni za do , o po 
d es emp re go , rec olo ca nd o a d iv is ão s oc ia l e a d es trut iv id ad e d a mo de r
n iz aç ão c om pe tit iv a n o c ent ro d o d e ba te eu rop eu . C omo s erá n o Bras il, s iç ão q ue e m p arte s e s ob re põ e à d ivi sã o e ntre a s c la ss es , q ue e nt re ta n
to não desaparecem, a não ser que fechemos os olhos. Nesse ponto a
onde estes resultados não se produzem depois, e sim antes de integra
v elh a i ns piraç ão d emo cráti ca d o e ng aja me nt o i nte le ct ual ta lv ez te nh a
da a população ao mercado e às garantias sociais? E se, com per dão da
alguma vigência moderna. Onde o intelectual conservador tira divi
m á p al avra, e nt re g lo ba li za çã o e d es ag re ga çã o ho uv er u ma d ia lé tic a, a
d en do s d a a ut orid ad e d e s eu c on he cime nto té cn ic o (no qu al o m ate ri a
qual estamos cansados de ver na rua mas não formulamos, talvez por
lis ta in clu i a s fre qü en ta çõ es " ex cl us iv as ", t an to as d e trab alh o q ua nto
p ru dê nc ia p ol íti ca , o u p or s en ti me nto d o d ec oro c ie nt ífic o, o u p ara nã o
as s ociais), o de esquerda abre a caixa-preta, como "advogado gratui
sermos desconvidados aqui e ali, ou ainda por subserviência mental?
to" dos excluídos, e também de uma ordem onde o saber não sirva de
Nestas circunstâncias, a ativação brasileira do discurso da moderniza
álibi à dominação. O seu programa não é regressivo e não suprime a
ção econômica, sem mais e socialmente neutr a, parece fortemente d iferenc ia çã o s oc ia l; ma s o am álg ama o dio so d es ta ú lti ma c om a d es i
ideológica.
Pensando melhor, veremos que a intelectualidade nunca esteve gualdade,
lho tem deoser
poder irr esponsável
combatido. e os preconceitos do Brasil novo e ve
tão engajada. Rara mesmo, em nos sos dias , é a torre de mar fim. Acre P ara fic ar n o p re co nc ei to d e c la ss e, b as ta p en sa r n as b arba ri da de s
d it o a li ás q ue a c rít ic a i nde pe nd en te , s em p at ro cin ad or n em in te re ss e do candidato Coltor e na indulgência que mereceram, devidas ao que
direto à vista, é o que mais nos está fazendo falta. Quase todos estamos tu do in dic a a o fig urin o e sc ov ad o, a u ma s ta nta s lí ngu as e stran ge iras e à
e mp en ha do s, s up on ha mo s, n a a dmin is traç ão p úb li ca , n al gum p arti do, casca de um discurso moder nizador . Como os seus erros de gramática
n um d ep arta me nto d a u niv ersi dad e, n uma firma d e p es qu is a, n um s in  fossem de grã-f ino, não causaram estranheza, ao pas so que Lula, evi
d ic ato , nu ma a ss oc ia çã o d e profis si ona is l ib erai s, n o e ns in o s ec un dá  dentemente um orador claro, ágil e interes sante, era atacado por não
rio, num setor de relações públicas, numa redação de jornal etc., com o saber português. Assim como agora em 1994 não é possível, em boa
o bj etiv o ne m s em pre m uito c rí ve l d e us ar o s n os so s c on he cime nt os e m consciência, lançar dúvidas sobre a inteligência e o preparo do candida
fav or d e a lg uma e sp éc ie d e a pe rfei ço ame nto e mo de rn iz aç ão . As sim, to popular - com certeza um homem acima do comum -, a n ão ser que

um dos impuls os ess enciais à idéia de engajamento, que mandava tr a a s pa la


Uvras s ej
m in te leam
ctu alt oma
i nddaeps ennde
o nte
s en ti do quraeria
l emb lh est am
dabé
vamm o
q suen os so s ailvócs.om
o Bras
ze r a c ul tu ra d it a d es in te re ss ad a a o c omé rc io d os in te re ss es c omu ns , s e
as suas taras e o capital global com os seus deslocamentos ciclópicos e
rea li zou p le na me nte . O q ue n ão o co rreu foi a e sp erad a di fe re nç a d emo 
imprevisíveis não deixarão de marcar presença e que nenhum dos dois
crática que esta descida à terra faria. Na falta dela, o compromisso
candidatos lhes poderá fugir.
social dos especialistas, incluída aí a dose normal de progres sismo, éo
mesmo que ir tocando o s erviço, e a combatividade do engajamento
pode ter algo de um lobby de si próprio.

176
177

c ia is há o q ue s e p o de ria c ha ma r de e moç ão d a top og ra fia e d os c on tras 


t es: o narr ador des ce às car reiras a es cada de ser vi ço, dobra a esquina
que há um momento observara do s ext o andar, corre pelo túnel na con
tramão, emerge aliviado noutro bairro, onde respira outros ares, e
começa a subi da da encost a em di reção ao verde e às mansões de bl in
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dex, de onde vê o oceano. O leit or confi ra na i maginação a p oesi a dess a 88/124
UM ROMANCE DE CHICO BUARQUE seqüência.
Dependendo do ponto de vis ta, o narrador é umjoão-ninguém ou
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras [Livro
um filho -famíliaCompleto] -slidepdf.com
d es ga rrad o. O p rime iro mo ra n um q ua rto-e-sa la , a nd a

de jeans, camiseta branca e tênis, bebe água na pia de mictórios fedi


dos, e arrasta a sua mala pelas calçadas. Mas sabemos também que o
seu falecido pai tinha natur alidade para grit ar com empr egados; que a
Estorvo é um l ivro bri lhante, escrit o com engenho e mão leve. Em
poucas linhas o leitor sabe que está diante da lógica de uma forma. A
I mãe fi ca qui eta quando atende o t el efone, porque acha imprópr io uma
s en ho ra d iz er a lô ; qu e a irmã , c as ad a c om u m milion ário , mo ra n a ma n
narrati va cor re em rit mo acelerado, na primei ra pess oa e no presente: a t são de blindex; que o bel o sí tio da famíli a virou plant ação de maconha
a çã o q ue pres en ciamo s c on siste n o q ue o n arra do r, q ue é o p ro ta go nis e refúgio de bandidos.
t a, f az, vê e imagi na. A l inguagem r eúne aspir ações dif íceis de casar: Pode-se di zer também que se tr ata de um fi lho-famí li a vivendo
trata de ser despretensiosa - palavras de um homem qualquer -, mas como j oão-ni nguém a cami nho da marginal idade. Quais os confl itos
ai nda assi m abert a para o lado menos i mediat o das cois as . A combina embutidos nessa composição? Note-se que a tônica do romance não
ção funciona mui to e produz uma poesia especial , que é um achado de e stá n o a ntag on is mo, ma s n a flu id ez e n a d is so lu çã o d as fro nteira s e ntre

Chi co Buarque. A e xpressão simpl es faz parte de sit uações mais sut is e as categorias sociais - estaríamos nos tornando uma sociedade sem
c om plex as do qu e e la . classes, sob o signo da delinqüência? -, o que não deixa de assinalar
O romance começa com o narrador semidormido diante do olho um m om en to n ac io na l. A in da a ss im , n ão s e e n te nd e o nive la me nto s em
mági co de um quarto- e- sala. A cara do outro lado da port a, nem conhe considerar as oposições que ele desmancha.
cida nem desconhecida, o decide a tomar a fuga que irá movimentar o A fala e m p rime iro p la no, mu ito s imp átic a, é d o h ome m qu alque r,
entrecho. Havia razão? Não havia? Alucinações e reali dade recebem c uja é tica é u ma e stética , o u c uja b irra d as p re sun çõ es s oc ia is s e trad uz ,
tratamento literário igual, e têm o mesmo grau de evidência. Como a n o p la no d a e xp re ss ão , p ela e xc lu sã o d e frico te s e a fe ta çõe s literária s.
força motivadora das primeiras é maior, o cl ima se t orna oní rico e fata D es se p rism a, refin ad o a s eu m od o, e c uja d ata é o rad ica lism o e stud an 
liz ad o: o futuro p od e d ar ma is e rrad o a ind a. A interpe ne traç ão d e rea li ti l dos anos 60, o l uxo dos ri cos não passa de desafinação. Acasa de con
dade e imaginações, que requer boa técnica, torna os fatos porosos. c re to e v id ro es tá e rrad a, o s c av alhe iros c om c ara d e iate c lu be tamb ém,
Esta cara é feita de outras caras, a barba eu conheço de outro queixo, o e a irmã muit o pr oduzida idem: "Ei s mi nha i rmã de pei gnoi r, t omando
p re se nte é c omp os to d e ou tros mo men to s. O relato s ec o e fac tu al do q ue café da manhã numa mes a oval" . Mas os tempos são outr os, e a anti pa
está aí, bem como do que não está, ou da ausência na presença, opera a tia pelo dinheiro não impede o nar rador de aprovei tar uma visi ta par a
tra ns mu ta çã o d a fic çã o de c ons um o e m literatura e xige nte (aq ue la q ue roubar as jóias que o l evarão para o campo da marginál ia. Por seu lado
busca est ar à altur a da compl exidade da vida). o s ric os n ão lhe c on de na m o tem pe ra me nto " de a rtis ta ", c omo a liás n ão
As n ec es sida de s d a fug a, c om s ua s p re ss as e s eu s v ag ares , filtram antipatizam deveras com o mundo do crime. O assunto que excita o
o sentimento da cidade. O Rio existe fortemente no livro, mas de cunhado é o estupro de que foi vítima a mulher, que entretanto flerta
maneir a í nt ima, de relance, sem nada de cart ão-postal. Nas cenas ini- com o delegado que se encarregou do caso, o qual se dá com os bandi-

178 179

de artí sti ca, mas uma aspi ração real das coi sas e das pessoas ao f iguri 
dos , que podem ser os do cri me ou outr os . Uma pr omis cui dade apoca
no evi dent e, ao l ogot ipo delas mesmas. A i rresi stí vel at ração da mídi a
líptica, à qual todos já parecem acostumados , e que pode s er imagina
e ns in a e e ns aia a fig ura c om unicá ve l, o c omp orta me nto q ue c ab e n uma
ção do nar rador, mas pode também não ser . Como a geografi a, a hist ó
ri a est á nest e li vro só indir etament e, mas faz a sua força. fórmu la s imp le s, o nd e a p alav ra e a c oisa c oinc id am. É por ess e l ado de

Numa grande cena de rua, com corre-cor re, cambur ões e TV, uma c lo ne p ub licitá rio q ue Ch ic o Bu arqu e fix a a s s ua s p erso na ge ns .
A irm ã
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b aixinh a c om c ara d e índ ia p ro cu ra imp ed ir a pris ão do filho , a os g rito s elegante sobe as escadas e gira o corpo, conforme o ensinamento da 89/124
mo de lo p rofis sion al; o ma rido d es fe re o s aq ue b ufan do, c omo o s ten is 
e com bons argument os. O narrador sente que vai f icar a f avor dela, mas
tas campeões ; os mar gi nais fazem roncar as suas motos vermel has,
logo vê que se enganou, pois a mulher pára de gritar quando percebe
numa cena que el es mesmos já viram em fi lme, e usam anéis enormes,
5/17/2018 q ue nã o e stá s en do filma da . O e pisó dio, Schwarz,
q ue o n arraRoberto
do r p re fe ria-q
Sequencias
ue n ão Brasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
q ue o fus ca m c om o faróis. M alan dros , milion ário s, e mp re ga do s, b an 
tiv es se a co ntec id o, e xp lica mu ita c oisa , talv e z ma rq ue u m h oriz on te d e didos e, naturalmente, a polícia, todos participam do mundo da ima
época. O desejo de tomar o partido dos pobres e de vê-Ios defender na
gem, onde bril ham acima de seus conf li tos, que fi cam rel ega dos a um
rua o s s eu s d ireito s s ob e d e s up etão , p ara s e a pa ga r e m s eg uida . É como
estranho sursis. O acesso ao espetáculo dos circuitos e dos objetos
um reflexo antigo, antediluviano, hoje uma reação no vazio, já que a
modernos parece compensar de modo mais do que suficiente a sua
alegria do povo é aparecer na televisão. O desejo de uma sociedade
substância horrenda.
dif erente e mel hor parece t er fi cado sem ponto de apoi o. Est aríamos
V is ta n o c on ju nto, a linh a d a a çã o tem a fo rç a d a s imp licida de , a pe -
forçando a nota ao imaginar que a suspensão do juízo moral, a quase
sar das aluci nações . A fuga não vai a nenhuma part e, ou melhor, o nar 
a ton ia c om q ue o n arra do r v ai c ircu la nd o e ntre a s s itua çõe s e a s c la ss es , rador fica voltando aos mesmos lugares. São rei nci dências sem fi m à
sej a a perpl exidade de um vet erano de 68?
v is ta , e mb ora n ão p os sa m tamb ém s er infin itas , p ois a s itua çã o s e a gra
O outro local important e do l ivro é o velho sít io da f amíl ia. Como va a cada vez. Nas cenas finai s o monst ruoso toma conta. De ol har f ixo
espaço da i nfância, da gente simpl es e da nat ureza, parecer ia um r efú
n o grotes co d os o utro s, q ue d e fato é e xtre mo , o n arra do r n ão n ota a c ros 
gio, o remédio para os desajustamentos do narrador. Ao chegar lá, ta de sujeira, hematomas, feridas e cacos de vidro - sem mencionar a
entret anto, este enc ont ra um povo - cr ianças incl usive - organi zado confusão moral- que acumulou e o deve estar desfigurando. Essas
e e sc ra viza do p ara a c ontra ve nç ão , s id erad o p or v id eo ga me s, m otoc i informa çõ es c ab e a o leito r reu nir, p ara v is ua liza r a p erso na ge m q ue lhe
c le ta s, b lu sõ es e tin tu ra p ara c ab elos , a lé m d e p re pa ra do p ara ne go ciar fala, não menos anômala e acomodada no i ntoler ável que as f aunas do
com as aut oridades. Ou s eja, fechando o cír culo, a mesma cois a que na lux o o u d o s ub mu nd o. A ce rta a ltura, n uma d e s ua s a lu cina çõ es , inc on s
mansão de blindex: no reservatório das virtudes antigas não há mais c ie nte d e s eu a sp ec to , o n arra do r q ue r a braç ar n a rua u m h om em q ue jul
á gu a lim pa . As sim, d epo is d os temp os e m q ue a p o brez a ign oran te s eria g a re con he ce r. E ste n ão h es ita e m s e d efen de r c om um a fac a d e c oz in ha .
educada pela elite, e de outros tempos em que os malfeitos dos ricos Es tri pa do, o narrador pega o ônibus e segue vi agem, pensando que tal 
ser iam sanados pela pur eza popular , chegamos agora a um atol eiro de vez a mãe, um amigo, a irmã ou a ex-mulher possam lhe dar "um canto
que ninguém quer sair e em que todos se dão mal. por uns dias". Esta disposição absurda de continuar igual em circunstân
P or u m p arad ox o p ro fun da me nte m ode rn o, a ind efin iç ão interio r cias impossíveis é a fort e metáf ora que Chico Buarque i nventou para o
dos caracteres tem como contrapartida uma visibilidade intensificada. Brasil contemporâneo, cujo livro talvez tenha escrito.
Gest os e moviment ações t êm a niti dez a que nos acost umam a hist ória
e m q ua drin ho s, a s gags de cinema, os epi sódios de TV, bem como o so
nho ou o pesadel o. Essa exat idão, mui to not ável, decorr e e m pr imei ro
lugar da fel ici dade li ter ária e da obser vação segur a do escrit or, e tam
bém da escol a do r omance pol icial . Mas há nela um outro aspect o, bem
perturbador. É como se no momento ela não fosse apenas uma qual ida-

181
180

se redimensiona, deixando ver um panorama surpreendente, de veros


similhança perturbadora. Isso posto, devo dizer que não sou especialis
ta na matéria, e que me animei aresumir os raciocínios de Kurz pelo seu
impacto crítico: evidenciam a caricata falta de horizonte em que o des
lumbramento com o mercado vem encerrando a nossa intelligentsia.
o
LIVRO AUDACIOSO
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O ponto de partida é conhecido de todos. A competição econômi 90/124
DE ROBERT KURZ ca força as empresas a buscarem a eficácia, revolucionando o trabalho,
a técnica, os produtos, que adiante voltam a competir e a ser revolucio
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras
nados, [Livro Completo]
e assim por -slidepdf.com
diante. Noutras palavras, está na lógica da produção
de mercadorias obrigar ao desenvolvimento das forças produtivas.
Algum tempo depois da Segunda Guerra Mundial esse processo, que
acompanha o capitalismo desde o começo, alcançou um patamar deci
Como entender a derrocada dos países socialistas? Embora che
sivo, cujas conseqüências determinam a história contemporânea. O
gasse de surpresa, ela deu lugar a mais certezas do que dúvidas, e pare dado crucial está no casamento, sob regime mercantil, entre a investi
ceu de fácil compreensão. Segundo a voz geral trata-se: a) da vitória do gação científica e o processo produtivo. A ligação foi dinamizada afun
capitalismo, e b) da refutação doprognóstico histórico de Marx; ou ain do pelas condições de mercado mundializado que a Pax Americana
da, da derrota do estatismo pelas sociedades de mercado. Pois bem, sustentou, as quais abriram possibilidades inéditas à velha concorrên
para desmanchar a unanimidade acaba de sair na Alemanha um livro cia entre capitais.
inteligente e incisivo, de Robert Kurz, que arrisca uma leitura inespe É sabido igualmente que esses passos, com destaque para o apro
rada dos fatos. A mencionada débâcle representaria, nada menos e
I
veitamento da microeletrônica e dos computadores, não puderam ser
pelo contrário, o início da crise do próprio sistema capitalista, bem acompanhados pelos países socialistas. A partir daí a distância entre os
como a confirmação do argumento básico de O capital. dois blocos cresce, e empurra os perdedores para o colapso (reunindo
O leitor escaldado dirá que o papel aceita tudo, até sofismas como os aliás a boa parte do Terceiro Mundo desenvolvimentista, forçado a
os supracitados. Acaso será sinal de crise triunfar sobre o adversário? entregar os pontos dez anos mais cedo). Concebida nos termos da com
A derrota do socialismo não está à vista de todos? As sociedades ex petição entre sistemas, essa seqüência é a demonstração da vitória da
socialistas não reconhecem elas mesmas a superioridade da economia economia de mercado sobre o estatismo. Não assim para Kurz, que
de mercado, cujos mecanismos procuram assimilar avidamente, a des entende as economias ditas socialistas como fazendo parte do sistema
peito de Marx? Os reservatórios de mão-de-obra e os mercados poten mundial de produção de mercadorias, de sorte que a quebra daquelas
ciais do Leste não ampliam o espaço do capital? explicita tendências e impasses deste. A crise procede da periferia para
O livro não desconhece essa ordem de fatos, que no entanto con o centro, ou seja, começou pelo Terceiro Mundo, foi aos países socia
sidera noutra perspectiva. Em lugar de contrapor modelos abstratos de listas ejá chegou a regiões e bairros inteiros nos países ricos. Qual a sua
sociedade - capitalista vs. socialista, democrático vs. totalitário, con natureza?
correncial vs. estatista, burguês vs. proletário etc. -' trata de conceber A concorrência no mercado mundial torna obrigatório o novo
em movimento e no conjunto a história do sistema mundial de produ padrão de produtividade, configurado pela combinação de ciência, tec
ção de mercadorias. A essa luz o desempenho daqueles termos opostos nologia avançada e grandes investimentos. Tanto o mercado como o
(1)Robert Kurz, Der Kollaps der Modernisierung, Frankfurt am Main, Eichborn padrão, na sua forma atual, são resultados tardios e consistentes da evo
Verlag, 1991;em português, O colapso da modernização, Rio de Janeiro, Paz e Terra, lução do sistema capitalista, que, chegado a esse patamar - sempre
1992. O presente artigo serviu de prefácio à edição brasileira. segundo Kurz -, alcançou o seu limite, criando condições completa-

182 183

des produtivas doplaneta, o que nas novas condições é o mesmo que as


mente novas. Pela primeira vez o aumento de produtividade está signi
ficando dispensa de trabalhadores também em números absolutos, ou inutilizar. O debate ideológico entretanto não se fixou nessa queima, e
sim nos méritos genéricos do mercado livre, entendido como modelo
seja,o capital começa aperder afaculdade deexplorar trabalho. Amão
abstrato. Enquanto isso o mercado concreto, que é histórico, eleva a
d e-obra barata e semifo rçad a com b ase n a qu al o Brasil ou a União
Soviética contavam desenvolver uma indústria moderna ficou sem alturas mais e mais inatingíveis os seus requisitos de acesso. As virtu
http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo
relevância e não terá comprador. Depois de lutar contra a exploração des do modelo, aocontrário portanto doque afirmam osideólogos, não 91/124
capitalista, os trabalhadores deverão se debater contra a falta dela, que são para todos. Na vigência da lógica mercantil, o estoque de capitais
pode não ser melhor. Ironicamente, a exaltação socialista do herói pro que engendra os avanços produtivos já não tem como ser alcançado
5/17/2018 Schwarz,
letário e do trabalho "em geral" consagrava Roberto
um gênero -Sequencias
de esforço his noutros
Brasileiras pontosCompleto]
[Livro daTerra:cada passo àfrente nos países atrasados é com
-slidepdf.com

toricamente já obsoleto, de qualidade inferior e pouco vendável, supe pensado por dois, três ou mais, que não há como ac ompanha r, nas
rado pelo capital e não pela revolução. Mas o caráter excludente das regiões adiantadas.
novas forças produtivas não pára aí. Vejam-se a respeito os esforços desenvolvimentistas do Terceiro
Também a derrota adquire atributos novos no mercado global, Mundo, anacrônicos, via de regra, antes mesmo de começarem a pro
se m perde r os antigos . Nã o diz res peito a e mpre sas ape na s, mas a duzir, isso quando chegam a tanto e não param a meio caminho, satis
regiões e atépaíses. Muitas vezes os gastos em tecnologia e infra-estru feitos com as bandalheiras propiciadas. Subsídios, endividamentos e
tura, indispensáveis sob pena de abandonar a partida, são inalcançá decênios d e sacrifício h umano brutal n ão tro ux eram a prometida
veis. Assim, a vitória deuma empresa não é sóa derrota da vizinha, mas modernização da sociedade, quer dizer, a sua reprodução coerente no
pode ser acondenação e a desativação econômica deum território intei âmbito do mercado global, agora mais remota do que nunca. Com esse
ro noutro continente. Com a agravante, no caso dos países desenvolvi fracasso abriu-se a época presente, das "sociedades pós-catástrofe",
mentistas, de que a mundialização do mercado foi precedida por um on de o desmoronamento dá a tônica. A situação em v ários países d a

esforço industrialista nacional que ficou incompleto. Este arrancou a América Latina hoje sepode caracterizar como de "desindustrialização
população aos enquadramentos herdados, para criar a força de trabalho endividada", com populações compostas de não-pessoas sociais, ou
moderna, assalariada, "abstrata", i.e., pau para toda obra, necessária às seja, de sujeitos monetários desprovidos de dinheiro. Contudo, haven
empresas. Ora, a mutação do mercado e do padrão produtivo faz que do ainda quem opere com lucro no mercado mundial, a ilusão de que
estas últimas já não tenham uso para as multidões detrabalhadores sem esse sistema é "normal" e leva a algum porto não se extingue, mesmo
saúde, sem educação e quase sem poder aquisitivo que, depois de serem aopreço deos beneficiados viverem atrás de guaritas. "São estas mino
o trunfo competitivo doTerceiro Mundo, passam a ser a sua assombra rias" - escreve o autor - "qu e seaferram àsestratégias d ep rivatiza
ção, não tend o m ais para o nd e vo ltar. Mesmo n os casos melh ores, çãoe abertura do FMI, sustentando as miragens a que figuras como Fuji
quando uma empresa sediada em país pobre logra enfrentar os custos mori, Menem ou Collor de Melo devem a sua ascensão." A tendência
da modernização e assegura um lugar no mercado mundial, o efeito é chega ao extremo lógico quando uma economia é expelida da circula
perverso. Na falta dos investimentos pesados em comunicação detoda ção g lob al, d ep ois d e a concorrência mo dern a lh e ter desativado os
ordem, b em como em edu cação e saúd e, necessários à articulação recursos locais: a massa da população passa a depender de organiza
social dessa espécie de progressos, os avanços eventuais ficam isola ções internacionais de auxílio, transformando-se em caso de assistên
dos, como um corpo estranho e dispendioso. Ou pior, só formam teci cia social em escala p lanetária. Dro ga, máfia, fund amentalismo e
do com os parceiros de troca nos países ricos, constituindo talvez mais nacionalismo representam outros modos pós-catástrofe de reinserção
um dreno de empobrecimento dos já pobres. no contexto modernizado.
Assim, combinada à concorrência global, a produtividade con A débâcle soviética segue uma via análoga, também ela determi
temporânea leva de vencida e torna obsoleta grande parte das ativida- nada pelo custo inalcançável da nova produtividade. Não vamos reca-

184 185

p itular a s e ng en hos as o bs erva çõ es de K urz a res pe ito de ss e p ro ce ss o, ção a uma nova idade das trevas, de caos e decomposição, embora o
bem como das desilusões que o mer cado reserva aos ex- países soci a p ro ce ss o p ro du tivo , c on side ra do em s ua materia lida de e e nv erga dura
listas. Fiquemos com dois pontos. a) A derrota deu-se no terreno capi planet ár ia, e apartado da bi tola concorr encial, exiba os el ementos de
t al ista da rent abi lidade, que port ant o ti nha perti nência interna, o que u ma s oluç ão, q ue o a utor v alen te me nte c ha ma p elo no me d e c omun is 
a co ns elha o ree xa me d o s oc ia lismo inicial. Se m du vida r da co nv ic çã o mo. A quem no entanto ocor rer ia pensar o mundo contemporâneo f ora
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dos revolucionários, Kurz aproxima formulações de Lenin e Max d a lei d a tro ca d e merca do rias ? Se gu nd o o no ss o liv ro, o p ró ximo de cê  92/124
W ebe r, s ub linh and o o p aren te sco fun ciona l e ntre a ex alta çã o s oc ialis  ni o ensinará a li ção cont rária, ou sej a, a impossibili dade de conceber o
ta do t rabalho em abstrato e a sua justifi cação pel a ét ica protestante. mun do d entro d aq ue la lei. De ss e p risma , o M arx d a c rítica a o fetic his
Ne ss e s entid o e e m retro spe cto, o s oc ia lismo teria s ervido d e c obe rtu mo d a me rc ad oria s erá ma is a tu al q ue o d a lu ta d e clas se s. O mo vime n
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
ra ideológica a um esforço retardatário e gigantesco de industrialização to pendular do capitalismo, entre momentos concorrenciais e estatizan
nacional. Est e não escapava ao sistema mundial de produção de mer t es, agora irá para o segundo pólo, t al vez t omando a for ma do est ado de
c ado rias , a q ue a liás os mo me ntos e statiz an te s nu nc a foram e stra nh os , s ítio , req ue rido p elo a profun dame nto do s imp as se s d o s is te ma .
bastando pensar no Mercantilismo, em Bonaparte e Bismarck, e, no O livro de Kurz procura adivinhar e construir o movimento do
en tre-gu erra s, n o K ey ne sianismo, e m S ta lin e . .. Hitler. b ) É desse pon mundo contemporâneo, que trata de colocar em forma narrat iva. Esta
to de vista que a derrocada dos países socialistas e de sua indústria se vale de operações intelectuais díspares, sem nada de épico em si
rep re se ntaria um c ap ítulo, po sterior a o terceiro -mun dista, do co la ps o me sma s, d as q ua is e ntre ta nto d ep en de a força d o an da men to d e c o n jun 
da modernização econômico-social . Esta não estaria mai s no f uturo, t o - como aliás ocorre no romance moder no. Assi m, a exposição com
mas no passado, e deu no que deu, por tenebrosa que uma tal perspec bina observações avul sas, glosas do bat e-boca ideológico mundial,
tiva seja para a Eur opa do Lest e e a A méri ca Lati na. O capí tulo seguin uma tese a cont racorrente sobre a dinâmica geral da atualidade, revi 
te da cr ise já est á em andamento nos paí ses centrais, onde o mesmo ine sões crít icas de noções do establishment, à d ireita e à esquerda, análi

xorável aumento de pr odutividade vai inut ili zando e assimi lando ao ses econômicas, rápidos excursos históricos, e um panorama - este
Te rc eiro Mu ndo n ov as regiõe s e n ov as c ama da s s oc ia is . O c aráter s ui ver tiginoso, de verossimi lhança notável - da devastação planetária
cida dos termos atuais da concorrência capitalista salta aos olhos e a tra zida pe lo prog re ss o rece nte d o c ap ital. O leito r d e M arx terá n otad o
ce gu eira do mu ndo a re sp eito n ão a ug ura na da de b om. " A c orrida e ntre algo d a c o mp os içã o d o 1 8 B rumário, com a sua grandeza acintosamen
o coelho e o ouriço só pode t erminar com a morte do primeiro." te c ac ofôn ic a, s eus âmb itos e ritmo s muito h eterogê ne os , tudo e m fun
A s er v erda de ira, a feiçã o inv iá ve l q ue o d es env olvime nto d as for ção das revelações do pres en te , e nten dido c omo n ov id ad e h is tó rica .
ças produt ivas t omou, levando o capi talismo ao i mpasse, confirma o Por um lado, a multiplicidade dos procedimentos, cada qual dependen
prognóstico cent ral de Marx. Por out ro lado, a novidade da pr esente te de disciplina intelectual e estilo literário próprios, atende a esta
c rise ve m d a inco rp oraçã o d a c iê nc ia a o proc es so prod utiv o, a p artir d a n oç ão de um p re se nte c omplex o. P or o utro, ela c on figura a promisc ui
q ua l o p es o d a c las se tra ba lha dora, s eja d o p onto de v is ta n uméric o, s eja dade (no bom sent ido) em que vivem o j ornal ista, o fil ósofo, o econo
do ponto de vi sta da natur eza do processo, entra em declínio. Assi m, mista, o h is toria do r, o literato, o a gita do r e tc . n o interior d o s ujeito q ue

contrariando o outro prognóstico de Marx, a crise do capitalismo se b us ca faz er fre nte à e xp eriê nc ia d o te mp o, p or e sc rito e p ara u so d o p ró
aguça no momento mesmo em que a classe operária já não tem força ximo. Diferentemente da epopéia de Mar x, que saudava a abertura de
para colher os seus resultados. A versão última do antagonismo não um ci clo, a de Kurz é inspi rada pel o seu presumido encerr amento. Se
s erá d ad a p elo e nfre ntame nto e ntre bu rg ues ia e p ro le ta riad o, ma s pe la em Marx assistimos ao aprofundamento da luta de classes, onde as
dinâ mica d es trutiv a e e xc lud ente d o fetic hismo d o c ap ital, c uja c arre i s uce ss iva s d erro ta s d o jov em p ro le ta riad o s ão o utros tantos a nú nc io s
ra a bs urda e m meio a os d es ab ame ntos s ociais qu e v ai p ro vo ca nd o p od e de seu reerguiment o mais conscient e e col ossal, em Kurz, cent o e cin
s er a co mpa nh ad a d ia riame nte p elos jorna is . O mo vime nto va i e m d ire- qüenta anos depois, o antagonismo de classe perdeu a virtualidade da

186 187

solução, e com ela a substância heróica. A dinâmica e a unidade são


ditadas pela mercadoria fetichizada - o anti-herói absoluto - cujo
processo infernal escapa ao entendimento de burguesia e proletariado,
q ue e nqu anto tais n ão o e nf ren ta m.
Aque da do bloc o s oc ia lista f oi a co mpa nha da , n o p la no da s idé ia s,
p ela p ro scr iç ão d a an ális e g lo ba liza nte e p ela pr omoçã o d o c atec is mo
http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo "AQUELE RAPAZ" 93/124
libe ra l, p atetic ame nte distante d a r ea lida de histór ic a. A pe rs pe ctiv a de
uma história do sistema mundial de produção de mercadorias traz à
frente conexões decisivas - bem ou mal apanhadas - que só por dis
5/17/2018 parate, interesse de classe estreito Schwarz, Roberto
ou acoelhamento -Sequencias
intelectual um Brasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
mor ad or da Amé rica L atin a qu e leia jor na is d eixa rá de n otar .

Nada mais francês pela filiação do que o livro de Jean-Claude


Bernardet. 1 A p rime ir a p ar te , p as sa da n a E ur op a, lembr a os c lá ss ic os d a
Nouvelle Vague, co m a po es ia d as a miza de s d e co lé gio, a p re ca rieda de
mater ial e a inten sida de mor al do p ós -gu er ra . T ambé m d ec is iv a e f ra n
c es a é a tra diçã o liter ár ia d as co nf is sõ es d o inco nf es sáv el, pa ra a qu al o
valor da arte não se separa do risco - em sentido forte - incorrido na
procura da verdade pessoal, sobretudo no terreno do sexo. Uma tradi
ção que busca a garantia de relevância artí stica, e até de realidade, no
sentimento da ameaça que paira: só o que expõe o escritor ao cast igo
social, para não dizer à sanha da ordem, merece ser escrit o. Faz par te
de ss a po étic a o d es dé m p ela es tetiz aç ão liter ár ia , s empr e u ma aten ua 
ção. A dignidade das letr as manda fixar a mat ér ia proibida com a obj e
tiv ida de e o de sp ojamen to p os síveis, r eg ra s ev er a, de q ue a p ro voc aç ão
não está ausente. Um dos mestres desta linha, Michel Leiris, adota o
sí mile da tauromaquia: o trato rente com o peri go - a real idade no que
ela tenha de mortal para o desejo do indivíduo - confere distinção
humana à movimentação do toureiro ou do literato.2
No livro de Jean-Cl aude a prosa se encontra sempre sob pressão.
O narrador quer falar de um rapaz - aquele, mas aquele quem? - que

não vê há décadas, se é que o deixou de ver, e talvez o veja constante


mente. O r ap az , q ue o s ou tr os dize m e fe mina do , s er ia u m c ompa nhe i
r o d e e sc ola, c ujo no me e sc apo u? Po ss iv elmen te f os se o a migo de cisi-

(1)Aquele rapaz, São Paulo, Brasiliense, 1990.


(2) "De Ia littérature considerée comme une tauromachie" (1945), publicado à
frente deL'Age d 'homme, do mesmo autor. Paris, Gallimard, 1986.

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vo, com quem seidentificava, ainda que, salvo engano, sem lhe ter sim homem comum que busca a si mesmo. É como se o livro de Jean
patia, ou quem sabe lhe tendo repulsa? Ou "aquele" rapaz seria ele pró Claude nos dissesse, sem alarde, que o passar dos anos pôs à mostra a
prio? A certa altura, do fundo de seu desconcerto (qual?), o menino dimensão referencÍal e realista da revolução formal da arte moderna ...
pede socorro à professora de latim: quer salvar-se? E se pelo contrário No mesmo espírito, as personagens são designadas sumariamente
quisesse obsequiar a família bem pensante, que reconhece na professo como o pai, a mãe, a madrasta, o amigo, os empregados etc., dispen
ra a estimável sobrinha de um figurão da república? Como saber no sando os nomes e reduzida a pouca coisa ap articularização. Embora o
http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo 94/124
caso seq uem falou de dentro dele e tomou a iniciativa não foi o pai em ponto de mira seja uma configuração pessoal, cuja realização na vida
pessoa, seu arquiadversário? Para explicar a afinidade com o amigo, o custará atritos infernais, além de tenacidade notável e coragem, a sua
narrador lembra os sofrimentos em comum, pois ambos eram filhos de estrutura é genérica, não autorizando maiores ilusões de individuação.
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileirasTambém[Livro Completo]
a audácia kafkiana -deslidepdf.com
reduzir um homem ao anonimato de
pais recém-divorciados. Contudo o mesmo parágrafo diz, linhas
te, que o foco da identificação estava nos modos femininos do colega e adian uma função, ou da letra K, entrou para o consenso, e a mais atormen
na caçoada que eles suscitavam. Explicações podem funcionar portan tada luta pela particularidade subjetiva se resolve em fim de contas
to como tapumes, e semelhanças e angústias podem não ser as designa numa ou noutra variante de funcionamentos psicanalíticos e socioló
das abertamente. Pessoas, fatos e motivos estão envoltos em incertezas gicos. Nesse sentido, a narrativa assimila com muita conseqüência as
vertiginosas, através das quais o narrador se procura (e expõe). conquistas e desilusões do século, donde a sua consistente modernida
A narrativa começa um pouco desajeitada, com palavras modes de artística. Não custa assinalar, por fim, num país de sexualidade gre
tas, sem entonação artística ou perfil forte: "Queria falar de um rapaz gária e publicitária como o Brasil, a novidade benfazeja do tom do
[...]". Falar, aqui, não será inventar; será lembrar, ruminar, vacilar, rela livro de Jean-Claude. Até onde posso ver, o exame de consciência
tar, tudo preso ao conflito da autodefinição, um gênero literário tam ateu, alheio ao espalhafato e ao glamour, mas com a coragem do dese
bém ele pouco definido. Naturalmente o acento biográfico pode ser um jo individual, traz uma dimensão literária que falta à nossa cultura.
artifício ficcional. Mas ainda que seja, a situação de auto-exame traz Sobretudo nas partes iniciais, a tensão dos episódios decorre de
consigo a regra da veracidade, o movimento de verificação interior e proibições, obrigações, suspeitas, que formam o traço de união meio
retificação, que cortam as asas ao romanesco. Assim, dada a exigência oculto entre as anedotas. Estas são heterogêneas e breves, alinhadas em
antiescapista, há propriedade crítica na aparência algo informe da grupos de três, quatro ou mais em cada parágrafo. Compõem um fluxo
exposição, na relativa falta de acabamento sintático e vocabular, na acelerado, deliberadamente sumário na sua indiferença a contrastes
inflexão francesa do português, e sobretudo no caráter mais indicativo violentos: por exemplo, as perplexidades do colegial estrangeiro dian
que realizado dos episódios, como que afirmando aprimazia do proble tedo sentido das palavras brasileiras ou diante do quarentão que o apal
ma, da intensidade e da inquietação moral, que são o que importa e tor pa no bonde lotado são mencionadas num mesmo fôlego e a mesmo
na secundárias as demais considerações. título. A equiparação escandalosa é operada pela homogeneidade do
Por outro lado, num paradoxo interessante, o viés conteudista e o tom, por certa clareza geral, e naturalmente pelo ritmo de um mundo
gesto quase de depoimento andam acompanhados da panóplia formal interior específico. Tomadas nelas mesmas, as microcenas pareceriam
doromance moderno. Aí estão a dúvida quanto à identidade da pessoa, peças de uma reconstituição de época. Entretanto, à medida que seu
as frases que mudam de sujeito a meio caminho, a composição hetero denominador comum aflora, arma-se outro temário mais abstrato, em
gênea do presente subjetivo, onde os diferentes passados não se arti torno da coerção, da resistência ou da adesão a ela, envolvendo os fun
culam conforme a cronologia, e aí está a relevância pessoal dos fatos, cionamentos efetivos e não-canônicos da norma.
discrepando por completo do razoável. Entretanto, longe de serem As imposições com que a personagem se defronta são variadas:
rupturas com a convenção narrativa, pertencentes ao âmbito exclusi formar fila na escola, decorar declinações latinas, guardar segredos,
vo da arte, estes prismas funcionam como os recursos necessários ao segurar os gases em sociedade, melhorar a caligrafia, não conversar a

190 191

sós com os coleguinhas, provar coragem física ao pai, chamar de


mamãe à madrasta etc. A relação do menino com o mundo das injun
I Dado o ângulo, recebem destaque quase exclusivo o convencio
nalismo, os preconceitos e a disposição repressiva da família burgue
ções não se resume contudo em rebeldia. Sirva de exemplo o alívio sa, travestidos de racionalidade, não sem comédia. Entretanto, o con
paradoxal que lhe trazem a disciplina do internato e a vaia dos colegas, junto pode ser considerado também em termos mais nuançados. No
que prefere à pressão da família nos fins de semana. Em certa ocasião caso trata-se de uma família que pratica uma espécie de conformismo
o cachorro da casa o impede de abrir o armário para pegar um chocola
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te; é o mesmo cachorro bravo perto do qual o menino se sente protegi I
discutidor, com o inevitável trejeito das racionalizações, que no entan
to não se confundem com a imposição autoritária direta. Andar com 95/124
5/17/2018
do, em segurança para dormir. Pelo visto há pressões providenciais,
que encobrem outras mais temíveis. i
jóias na praia é afetação? O cinema americano é ridículo? A sociedade
desaprova gente "assim"? O farisaÍsmo das perguntas, juntamente com
No caso, a chave da relação Schwarz,
complexa comRoberto
a coerção-Sequencias
está na Brasileiras [Livro
a veneração Completo]
pela -slidepdf.com
música e pelos livros, não impede que façam parte do

I
homossexualidade que não se conhece. Esta sobredetermina tudo. Por espaço onde se constitui a liberdade própria à civilização burguesa,
exemplo, o menino encara com desânimo infinito asexigências da cali 1 com o foro interior que ela supõe. É interessante notar, nesse sentido, a
grafia ou do solfejo, pois sente que no essencial o desempenho confor variedade nada unÍvoca dos papéis desempenhados no livro pela reser-
me não será para ele. Pelas mesmas razões pode olhar as regras com va. Desde cedo as crianças aprendem a guardar o segredo necessário a
perplexidade verdadeira, de marciano, ou com revolta, ou ainda com surpresas festivas. Mas o menino cala igualmente para negar obediên
distância crítica. Pode também acatá-Ias, para se acolher à sua sombra, cia ao pai, para castigá-Io, para se defender e, também, para não ter a
ocultar-se de sie dos outros. Como é natural, essa distância irreparável revelação de simesmo. Durante a Ocupação, cala ainda para esconder
entre o movimento espontâneo e a vida normativa se traduz por irrup as visitas noturnas do mesmo pai, que luta na Resistência. O pior da
ções inopinadas. Num passo brusco, o menino põe na boca um peixe traição paterna, por fim, consistiu em pedir silêncio ao filho sobre uma
vivo, que acaba de pescar, deixa que se agite, e surpreende-se a si m es ª viagem aParis, pelo Natal, sob pretexto da tradição familiar das surpre

mo ao
que parti-Ioescrever
imagina em doistêm
comuma
umaestrutura
dentada. comum:
Analogamente, as histórias
os seus sentimentos i.II sas: todos
Em na verdade tratava-se
os casos o silênciodeconstitui
apresentarumaas força
crianças à futura
e algo como madrasta.
um direi
f
não devem ser expostos, mas haverá uma cena que os sugira, "sem ter to, usados para o bem ou para o mal, o que dá uma versão instrutiva e
nada a ver com o enredo". não-idealizada do aspecto fechado da compostura burguesa. Aliás, no
A guerra no escuro toma feição mais seguida e consistente no atri ~
.4
diário do pai - outra forma de reserva - o menino lê às escondidas o
to com os "assim chamados" pais. Assim chamados, porque o menino elogio de seu próprio caráter taciturno e concentrado, sinal de serieda
não reconhece à madrasta a legitimidade de mãe e se sente traído pelo de e augúrio de bom futuro. E de fato, um dos focos da narrativa está na
pai. A "traição" lhe dá o direito de desautorizar a autoridade, questio f acumulação dos impasses e das razões que, somando-se, a certa altura
ná-Ia, hostilizá-Ia, e,no limite, colocar-se como o pai de seu pai. Acon
jugação desse direito com a outra culpa engendra uma das constelações
~I permitirão afirmar uma identidade discrepante, além de refletida e
combativa, sem que haja necessidade de ruptura violenta - o oposto,
características do livro. O pai não merece que o filho confie nele e em fim de contas, do autoritarismo.
muito menos que lhe revele o melhor amigo, o que permite ao filho I Voltando ao conflito, ele se solucionará anos mais tarde, já no
cheio de razões castigar o traidor por meio da mentira e, n o mesmo pas Brasil, depois de se acentuar muito. A oposição à fanulia agora alcan
I
so, esconder a simesmo o caráter particular de sua amizade. Está laten ça tudo, e vai da preferência pelos pais dos outros à incapacidade de
te a hipótese complementar, na qual a revelação do caráter da amizade passar em exames, à tentativa de suicídio, ao gosto por Picasso, Baude
seria uma bofetada no pai, ou ainda, na qual a bofetada no pai traria a "
,I laire e Prévert, numa guerra acerba, mas dentro de limites. Apressão do
revelação da sexualidade do filho. A ansiedade envolvida nesse jogo é sexo funde numa proibição só todas asregras, qualquer uma das quais,
intensa e vai crescendo. I mesmo fácil de contornar, parece resumir a reprovação da própria
~l
192 193

l ib erda de d e s er; a ss im c om o q ua lq ue r li be rd ad e t oma da a dq ui re res so  como que entra em novo foco. O que era resistência informe adquire
n ân cia e xa lta nte , a lu din do a u m n ão -d ito e xp lo siv o. U ma e xp eriê nc ia contorno e afirma seu direito de cidade. Nesse sentido há um nexo de
c om á cid o l is érgic o t ra z o d es en la ce . O rap az v ê ros ác ea s, t ud o s e o rga  e mancipação e realização pessoal unindo o momento da revelação aos
n iz a e m c írcu lo s e s emi círcu lo s, c erto q ua dro e xa mi na do n a B ie na llh e sofrimentos anteriores. Uma espécie de historicidade interna, com radi
vem à mente, quadro em que uma mancha rosa- aveludada se desenha c al iz aç ão d e c on fli to s, p on to a lt o n a t oma da d e c on sc iê nc ia e , a s eg uir,
sobre fundo c inza, a m ancha pulsa e adquire volume, lembra a f orma de a qu is iç ão d e lib erda de e m rela çã o a u m m ec an is mo rep et it iv o, a o q u al a
http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo 96/124
u m o uriç o, " se m o s e sp in ho s" , e s eu mo vi me nt o p eris tá lt ic o, p as sa nd o p erso na ge m s e v ira o brig ad a a o fe re ce r s ac ri fí cio s s em fim à v is ta .
Como entende r o episódio, c lara mente centr al? A diversidade
ao corpo da personagem, faz que esta tenha um espasmo. Salvo equí
voco, a s figuras são do ânus . A experiência é da ord em de um renas ci d rá sti ca d os â mb ito s, d om in ad os p or u m e le me nto formal em comum,
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras [Livro Completo]
lhe empresta interesse de -slidepdf.com - um estatuto ficcional
mento radical, se é possível dizer assim, na qual o filho é mãe e pai de
s i m esmo: "Digo-lhe [ao médic o] que tinha na scido de novo, que tinha
exemplo teórico
pec ulia r - , poss ivelmente em linha com o sentimento estrutur alista da
me nascido". v id a. 3 De fat o, c om o o l eit or d o e ns aí smo e strut ural is ta rec on he ce rá , o
Trata-se de uma vitória, pois a nova relação com o círculo tanto i ntu ito d e a ss oc ia r ma te ma tiz aç ão , z on as e ró ge na s, te oria e st éti ca e a ti
or ganiza como liber ta. Permite "conf iar em minhas emoç ões que, por tude subversiva, tudo ligado ao esvaziamento do tempo, é muito da
ma is a rreb at ad oras e in co mp re en sí ve is q ue fos se m, t in ha m u ma l óg ic a id eo lo gia fra nc es a d aq ue le s a no s. Mes ma c oi sa p ara a a ss oc ia çã o e nt re
i nte rn a. A p artir d aí p as se i a c om ba te r o c írcu lo e e vo lu í p ara o la bi ri nto as a spir ações ao r equinte máximo e à naturalidade também extrema,
e o fragmentár io". Embor a rec ôndito, há humorismo na for mulação, em princípio contraditórias. Que pe nsar da afinidade entre a r eação
p oi s o le ito r a te nt o n ão d ei xa rá d e s e p e rg un ta r a q ue p arte s d a a na to mia q uím ic a (o á ci do ), a s forma s g eo mé tric as (ex tramo ra is e u ni ve rs ai s p or
h um an a o s d oi s ú lti mo s te rm os , tã o d a m od a, c orre sp on de m. R eto ma n e xc el ên cia ), a fas cin aç ão e st éti ca e o ê xta se s ex ua l p ro ib id o? S ob o s ig 
d o a s rev ela çõ es t ra zi da s p el o c írcu lo , e ste o fe re ce u ma e xp lic aç ão d as n o d a n at urez a, o u d a e st ru tu ra , q ue é i nd iferen te me nte n atu ra l e c ul tu 

duas experiências artísticas mais fortes, quase extáticas, antes descritas r al, está s ugerida uma idéia natur alista de inocência, inesperada em
no livr o. As sim, o que havia deixado f ora de si o menino no cinema não fac e d a te má ti ca ma ld ita . .. Mas o bs erve -s e q ue t amb ém n a p ersp ec tiv a
f ora a viuvez de Lady Ha milton, nem a morte de s eu Almirante Nelson, contrária - ligada ao terror do tabu e aos poderes em parte sórdidos
mas o salão em semicírculo, cujas c ortinas se f echariam em s eguida, que compõem o conflito - a nota inocente aparece. Ela decorre do
onde a dama - Vivien Leigh - se encontrava ao receber a notícia. Do c aráte r m uit o rarefeit o d a h is to ri cid ad e, c om s eu p on to d e in fl ex ão d ia 
mesmo modo, n 'Amorte do cisne, "o que me fas cinava não er a a morte, lética na consciência do... círculo.

n em a q ue da fin al, n em a traj etó ria q ue a b a il arin a ti nh a d e p e rc orre r p ara E st a ú lti ma , v is to q ue o li vro n ão e sq uiv a o ca siõ es c ru as e v ex at ó
alcançar o ponto do palco onde cairia, er am os círculos que des crevia ria s, n ão p od e s er to ma da c om o u m e ufem is mo e st ra to sféric o. T ra ta -s e
antes de cair , é nesses círculos que começa o def inhamento do cis ne". de uma concepção ousada, polêmica a se u modo, que isola do restante
T amb ém q ua nt o a o fut uro, a i lu min aç ão p ro pi cia da p el o á cid o li sé rg ic o o cur so pr ofundo das coisas, o qual se realiza à marge m e a s alvo de ter
é o p onto de virada na vid a. Anova cons ciência de si e do passado desar  remotos his tóricos ta is c omo a Segunda Guer ra M undial ou uma atri

ma o d is po si ti vo d o c on fli to e a bre u m m ov ime nto d e re co nc il ia çã o c om bula da emigraç ão tr ansatlântica, que têm papel apenas de bastidor .
o s p ai s e o mu nd o. Primeiro na França e depois no Brasil, assistimos a um movimento
Círculos, semicírculos erosáceas no caso são figuras de geometria, estrito, que se realiza em cir cuito fecha do, indif erente às situações,
m as tê m e xi stê nc ia ig ua lme nt e n o c orpo e mp íric o, a lé m d e d arem v is i movimento cuja fixa ção é o objeto de pr imeiro plano da narrativa. Do
b il id ad e à a sp iraç ão p ro fu nd a d e u m in di víd uo e to rn arem in te li gív ei s â ng ulo l it erário , c on tu do , e st a li nh a d e u nid ad e n ão p re va le ce d e mo do
momentos S.!JlÇjiài§.g~ s ua v id a im ag in ária . C om a i rrup çã o d aq ue la s for
mas, #érlfub 'da sp r1 ~~ iras p ág in as , d es as trad o e fora d e e sq ua dro, ( 3) A gr adeç o a obs er va çã o a V inic ius D anta s.

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total , e algo da verdade e p oesi a do livro result a do que escapa a s eu con c on te xto próp rio, e d a c on figu ra çã o d e u m o utro , o a gu errime nto c he io
trol e. A obsessão da consistência int erior é um t raço da personagem, de razões do europeu educado deixa entrever o seu componente des
bem como uma r egra ri gorosa de composi ção ar tíst ica, mas não dei xa propositado, maníaco, algo como um impedimento quase insuperável.
também de ser encenação de si mesma, quando então assume si gni fi A reprovação moral recíproca entre franceses perdidos na Praia
cações impr evi stas, contr acenando sobre o fundo mais amplo, entr e Grande; a certeza de que o mecânico mul ato, embor a apli cado e inteli 
outros ritmos e outros referentes. gente, no fundo não saberá tr abal har bem; a dur eza com que o pai pre
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Enquanto t er mina a guer ra, começa a hist ór ia do rapaz, toda vol  fere passar fome com a famíl ia a d eixar de ser pat rão e procur ar empr e
tada para dentro, movida a força de desadaptação e desconf or to i nte g o, tud o iss o n ão de ixa tamb ém d e s er e xótic o, a d es peito d a p re su nçã o
rior. A e stra nh ez a e m relaç ão a o mu nd o h is tó rico tem rea lida de p alpá  d e rac io na lidad e. S em p ro pó sito d e c rô nica o u c or loc al, s ão e pisó dios
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
vel, pois as anedotas comportam sempre uma pincelada de época  em que a t ão buscada l ógi ca int er ior, e, com ela, o padrão da burgues ia
p en te ad os a me rica nos , a v og a d os d iv órcios , o s n ovo s ma iô s, a b om ba eu ro pé ia , mo stra m o utra fac e, c om mu ito p od er d e rev elaç ão.
schrappnell -, a que o foco moral, que dá conti nui dade à narrat iva, Vimo s c omo o rap az in ho s e d eba te n o e sp aç o c on fina do e pe ss oa l
parece indiferente. A ligação entretanto se faz por vias travessas, eo d as inc lina çõ es c ulpo sa s. Os s eu s s ofrime ntos a in da a ss im têm a le nto
ângul o subj etivo não i mpede que desde o i ní cio o leit or tenha o cl ássi lib ertá rio, p ois rea ge m, c om a força d a inc apa cida de p ara o c on fo rmis
c o s en time nto realis ta d a s oc ie da de fra nc es a. O me nino d es ajus ta do , mo, a aspectos substantivos da repressão social. Lá estão o arbítrio
que não se acomoda à def inição corr ent e dos sexos, mas reprova e quer pa te rn o, d is fa rç ad o d e rac io nalid ad e, a h ip oc risia d as famílias , o p re 
c as tiga r o p ai, e stá me no s s ó d o q ue p en sa . E mb ora iss o po ss a s urpree n conceito de classe e raça, as prescrições e proibições em matéria de
der, o seu debate int erior soma com a al egri a posti ça e decorosa da vida a mo r, a s p re le çõ es e difica ntes , o ho rror à a rte mo de rn a e tc. A c erta a ltu
f amili ar, com os pensament os cediços suscitados pelos "novos t em
ra, com a revelação da consistência profunda de sua vida, que deixa
pos", e também com o antagonismo e ressentimento, sem esquecer o e ntão d e lhe p arec er u ma co leç ão de de sv ios e rrátic os , a pe rs on ag em se
d es ejo d e p un ir, g erais e ntre o s a dulto s. S ão ex pres sõ es d o c aráter a rg u
põ e fora do a lc an ce d aq ue le s ma nda me ntos . Co ntud o e d e m od o s ig ni
mentativo - de que em sociedade burguesa se revestem a repressão e
f icativo, o resultado pr incipal dest a nova li berdade não será mais que
o juízo de g os to . Co mo na fic çã o rea lista, o e ntre la ça me nto c on flituo
u m teo r a cres cido de tolerân cia, q ue p ermite a rec on ciliaç ão , d entro de
so da solidão moral e das relações s oci ais se projet a sobre a paisagem,
certo sentimento de superioridade, com a madrasta e o pai, a quem o
c om a q ua l c omp õe u m m un do c on sisten te , c he io d e res so nâ nc ia s. Es te
rapaz agora maduro aj uda a morrer. Ou seja, a força tão penosamente
permi te, por exemplo, a poesia das cenas em que a amizade malvi sta
adquiri da se apli ca em âmbit o sobretudo pri vado, com f or te ef ei to de
f az frente tanto à reprovação ger al como t ambém ao frio e à umi dade de
a nticlíma x. Dize nd o d e o utro mo do , a s e n ergias de tod a orde m, mo ra is ,
um triste pátio de colégio francês no inverno, que reforça as demais
intelec tu ais e o utra s, forma da s na luta c on tra u m p re co nc eito b as ilar, s e
adversidades. Um belo contraste é dado pela primeira visita a Nice,
quando as palmeiras e a doçura do clima mediterrâneo despertam no e sg otam d e ma ne ira intra ns ce nde nte. Na me sma lin ha , no te-se a p arci
môni a e a falt a quase complet a de conseqüência para a narrat iva com
me nino um a e xc itaçã o a bs oluta, " se m c on tinu id ad e co m o e nredo ".
A vinda a o B ras il s us pe nd e e sta c orre sp on dê nc ia e ntre a v id a inte q ue a pa re ce m, a qu i e a li, indica çõ es referentes à história po lítica d o
ri or e a sociedade à volta, fazendo que o sent imento corr elato de pleni século: o fim da guerra, a retirada dos nazistas, o pai que lutou na

tude romanesca desapareça. A não ser que a fal ta de conti nui dade com Re sistênc ia , a mã e q ue p os sive lme nte s e e n treg av a a a le mã es (um p or

o novo ambiente tenha, por s ua vez, força real ista. É o que ocorre, e a menor que dá mai s repercussão à ambivalência do menino na sua que
deter minação sem quart el com que os membros da famí lia cont inuam da pelo lado mal dito), e, muito mais tarde, o nacionali smo pri mário e
iguais a si mesmos, fechados e ciosos de ter razão, oferece uma boa c omp le xa do d a b urgu es ia a rg elin a, além d a p re se nça d e b ra sileiro s e m
ima ge m do ins ulam en to pa té tico do e migran te . M elho r, n a a us ên cia d o Argel, salvo engano os exilados de 64. O tratamento sumário dado a

197
196

estas indicações responde, à distância, aojá notado efeito modesto da


emancipação da homossexualidade, com o qual compõe uma figura.
Através desta o livro alude ao tempo e nos diz que episódios tremen
dos, em que se desencadearam forças e esperanças máximas, acabaram
por sereduzir a marcas na vida privada.
PELO PRISMA DA ARQUITETURA
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(uma argüição de tese)
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com

Cara Otília:

somos amigos há muitos anos, e há muitos anos sou seu leitor


atento. De modo que digo sem nenhum medo de errar que o seu traba
lho intelectual chegou a um ponto ótimo.
Você publicou há pouco um livro sobre Mário Pedrosa que é real
mente de primeira, cheio de observações que interessam à história não
sóde nossas artes plásticas, como de nossa literatura e vida política. É 1

um trabalho que convida a sair da rotina e a arriscar conexões entre


domínios da vida que se costuma estudar em separado.
Acompanhando o percurso de um homem ligado ao mesmo tem
po à vanguarda artística e à vanguarda política, você historia e analisa
os acertos e os desencontros próprios a essa combinação, que para mui
tos de nós representou o ideal. Ao longo da vida tão movimentada e
internacional de Mário Pedrosa vão se aliando e desentendendo o
socialismo, a arte social de Kathe Kollwitz nos anos 30, a luta anti-sta
linista, o abstracionismo nos anos 50, e o megaexperimento modernis
ta que é a construção de Brasília. Para o meu gosto, à parte as muitas
ligações apontadas e os acertos de caracterização, o achado do livro
está na sua linha central. Com toda razão, você sublinha a unidade do
impulso utópico o qual levava o intelectual a ser revolucionário tanto
nas artes quanto em política, ao ponto de imaginar que a realização de
projetos caros à vanguarda artística sópodia ser indício de algo parale
lo, igualmente libertário, no campo social. Daí o entusiasmo que levou

(l) Otília Arantes, Mário Pedrosa: itinerário crítico, SãoPaulo, Scritta, 1991.

198 199

Pedrosa a se tornar por um momento uma espécie de ideólogo de O tom é de discussão propriamente dita, sem ponto morto, sem
Brasília. temor à compartimentação acadêmica das especialidades, circulando
Pois bem, chegada aqui você teve o bom senso (e a ousadia) de com liberdade entre o argumento filosófico, a descrição de obras e a
considerar que esta Brasília, que realizava o programa de artistas tão situação histórica. Tudo estritamente segundo as necessidades doobje
indiscutivelmente avançados como Niemeyer e Lúcio Costa, não dizia to e do raciocínio, num clima de sobriedade e intensidade intelectual
respeito somente ao mundo dos arquitetos. Ela era a mesma que, do que éraro. Penso não meenganar achando que há aíum padrão deprosa
http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo crítico-filosófica novo no país. 99/124
ponto de vista da crítica social, representara um aprofundamento do
Sem entrar na substância do livro, quero ainda chamar a atenção
caráter autoritário e predatório da modernização brasileira, em linha
com a tendência que em seguida levaria ao regime militar. Noutras para o seu tópico final, intitulado "Um ponto devista". Depois dehaver
5/17/2018 discutido
Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras [Livroas razões darevalorização
Completo] tardia da arquitetura
-slidepdf.com moderna pelo
palavras,
tórico dasavanguardas
realização mais sensacional
artísticas incluíae entre
abrangente
as suasdovirtualidades
programa hiso filósofo, o ensaio salta para o Brasil, para a nossa experiência com o
servir de álibi a um processo de modernização passavelmente sinistro, modernismo arquitetônico, a qual será chamada atestemunhar nocapí
em cuja esteira ainda nos encontramos, e ao qual aquela realização em tulo. O passo àfrente é grande, e consiste emdar-se conta deque asteo
rias de um pensador, mesmo alemão, podem ser testadas sem despro
fim de contas seintegra bem, semdissonância notável. A revolução nas
formas arquitetônicas e urbanísticas não cumprira a sua promessa de pósito pela experiência local, ou, mais grave ainda, que areflexão sobre
a experiência local pode fornecer um capítulo a um livro filosófico ...
revolucionar a vida para melhor. A Brasília davidareal, que não hápor
Há um avanço paralelo no argumento sobre o significado local da
que passar por alto num debate estético que sepreze, constitui uma
nova construção. A inadequação de origem está à vista de todos que
verificação palpável do caráter iludido do vanguardismo abstrato _ tenham um verniz materialista. De fato, "num meio acanhado como o
como aliás constataria o próprio Mário Pedrosa no último período de nosso, onde está a base social e produtiva que daria sentido à raciona
sua vida, quando afirma que a noção de vanguarda artística perdeu o
fundamento. Noutras palavras, você soube reconhecer no percurso e lidade
ausênciaarquitetônica desejadao Brasil
de grande indústria, pelos não
modernos?".
seria lugar Desse ângulo,
apropriado paranao
sobretudo no impasse de um crítico o destino local, mas globalmente essencial da nova arquitetura, cujos descaminhos locais seriam antes
relevante, de uma das grandes aspirações deste século no âmbito da equívocos do queparte integral da linha histórica da arquitetura moder
civilização burguesa. na.Ora, as suas reflexões vão em direção contrária a essa, cujo progres
Logo depois desse livro você publicou outro, escrito a quatro sismo na verdade é conformista, pois se limita a denunciar e lamentar
mãos com Paulo Arantes, em que comenta e critica as duas conferên a falta das condições modernas no país. O ponto de vista que você
cias de Habermas em defesa domovimento modernista na arquitetura. 2 expõe é bem mais drástico, e sustenta que foi precisamente a ausência
Esse trabalho não é de leitura fácil, porque é superlotado de argumen de uma sociedade industrial desenvolvida que permitiu a realização
tos, e muito econômico e preciso na exposição. O assunto está indica dos experimentos por assim dizer totais da arquitetura e do urbanismo
do no subtítulo: arquitetura e dimensão estética, depois das vanguar novos, os quais não poderiam ocorrer senão nas condições autoritárias
das.situação
da Trata-sedadaarquitetura
teoria da modernidade segundo
contemporânea, o filósofo,criticamente
confrontadas bem como do Terceiro Mundo,
nacionalmente por exemplo,
engajada na Índia oulocais
sobre os obstáculos no Brasil. A reflexão
à modernização
uma com a outra e tendo como fundo a Teoria estética deAdorno. Indi (perspectiva tão incontornável quanto ideológica) cede o passo àrefle
retamente está emjogo a própria situação atual da arte. xãoteórica sobre o dinamismo modernizante global, tomado nasua fei
ção efetiva, de que a teratologia terceiro-mundista faz parte. Assim,
(2) Umponto cego nopr oj et o moder no de Jür gen Haber mas, São Paulo, Bra longe de ser um desvio sem significado, a combinação monstruosa e
siliense, 1992. desconcertante de modernismo e miséria está na lógica do processo.

200 201

Ela diz algo de essencial sobre a concepção de modernidade que ani s eu co ntr ári o. Em lu gar da su bst ânci a - que s eri a a quel a tr ansf or ma 
mou a arquitetura deste século, bem como sobre a nossa idéia e a pró ção redentora - ficou um conjunto de normas de funcionalidade, que
pria realidade da modernização. se most ra ram fun cio nai s so bre tudo p ara o pr oce sso soc ia l e ma ter ia l
Cada um a seu modo, os livros sobre Mário Pedrosa e sobre da produção industrial. Passada a Segunda Guerra, aspatologias urba
Habermas acompanham um movimento que, iniciado nos países do nas des se novo t ip o de s oci edad e s e to rnar am e vi dent es e in via bil iz a
cap it ali smo mad uro, a c ert a al tur a se tr ansp lan ta e te m u m c apí tul o br a ram o s s ent iment os ut ópi cos hi st ori camen te vi ncu lad os ao f unci ona 
http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo
si le ir o. Est e, l onge d e ser uma vari ant e fo lcl ór ica , en si na al go de sub s li smo. Resp onden do à mor te de st e e apa rent ement e em o posi ção a e le, 100/124

tantivo sobre o processo considerado no conjunto. O mérito desprovin vão surgindo experiências que acabam se afunilando no clima pós
cianizador dessa estratégia expositiva é evidente, pois leva a encarar os moderno. Você recusa esta oposição - o glosadíssimo antagonismo
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
fatos locais em termos não apenas nacionais, mas contemporâneos, e entre arquitetura moderna e pós-moderna - por considerá-Ia uma
vic e-v ers a, rompen do co m a est re it eza de v is tas do na cio nal is mo, sem a par ênci a enc obri ndo o ess enci al , que ser ia d a o rdem da cont in uida 
no ent ant o des conhe cer a re al ida de do â mbi to a qu e est e se ref er e. Ne s de. Este o ponto central de seu argumento, cujo caráter polêmico dis-
sas matérias toda receita é um erro, mas nos dois trabalhos está dado pensa comentários.
esse passo valioso, que acho que pode ser tomado como programa: os Os pas sos d a di sc uss ão são o s se guin tes : nos an os 20, que r di zer ,
desenvolvimentos locais são vistos no bojo da história contemporânea, na es te ir a da Revol uçã o Rus sa, que co loc ara o s oci al is mo na or dem d o
mas não como simples ilustração, em fim de contas redundante, e sim dia, diz Le Corbusier: "Arquitetura ou revolução. Podemos evitar a
c omo momen to verd adei ro e re vel ador d o sen ti do ger al da at ual id ade. revolução". Você nota bem que a arquitetura aqui representa "uma
Bem, ma s vamos ent ão a s eu li vr o n ovo, que voc ê apre sen tou par a alternativa à revolução, e não à sociedade convulsionada do entre
es se c oncur so d e l ivr e- docên cia .' Tra ta- se de um co nju nto de e nsai os guerras". Logo adiante você lembra um passo da "Carta de Atenas"
que re capi tula moment os s ig nif ic ati vos da ar qui tet ur a des te s écul o, e ( 1933) , se gundo a qual a "ci dad e f unci onal " l eva e m c ont a q uat ro fun
també m da co rr espo ndent e dou tr ina e ide olog ia. O âng ulo de ob ser va çõ es: mor ar , tr abal har , rec rea r- se, lo comover -s e. Como é fá cil no tar ,
ção é atual, quer dizer, tem como ponto de partida o abandono em nos t ra ta va-s e de u ma ref orma mo der niz ant e, uni vers al is ta, cauc iona da
so tempo do pr oje to func ion ali st a, tr oca do pel a ori ent aç ão di gamos pelo espírito dautopia. É um model o ún ico , q ue as pi ra à val id ade i nte r
pós -moder na, ou, par a us ar o s eu ter mo, pel a arqu it et ura s imul ada . nacional e nivela as diferenças históricas. Observa você, concluindo,
A un ida de dos en sai os é f ort e e a o lon go del es va mo s enco ntr an que es sas a bst ra ções u rba nís ti cas e spec if ica m no pl ano que l hes é pró
do a formulação e a crise das idéias estéticas, e não só estéticas, de que prio aspróprias abstrações operadas pelo capitalismo no plano das rela
todos nos alimentamos. A propósito, sempre me impressiona como a çõe s s oci ai s e de pro dução . Ou a inda , us ando a s ua fra se, "O meca nis 
hi st óri a cont empor âne a s oa d if ere nte s egun do sej a cont ada pel os his  mo totalizador encarnado pela cidade era o palco desta abstração".
toriadores da política, da economia ou da arte. O seu livro deve uma Ass im, num pri meir o momen to, o " Int er nat iona l S tyl e" r eves te de
par te do int er ess e a est a dif er ença , à sur pre sa de ver o sé cul o apr ese n utopia as condições de generalidade requeri das pela expansão do capi
t ado do ângu lo do deba te ar quit et ôni co. De fat o, a li nha ev olut iva qu e tal. Esgotada a credibilidade dessa promessa, surge a atual arquitetura
você expõe convida à reflexão, à maneira do enredo de um romance: o do simulacro, do espetáculo, da multiplicação das imagens, escandalo
qu e quer di zer es te and ament o d as coi sas ? sament e opos ta à so bri edad e fu nci onal is ta e a seu â nimo de r efo rma.
Red uzi da ao mín imo, a hi st óri a s eri a a segu int e: o âni mo ut ópi co Você reage com bom senso e duvida da proclamada onipotência do
da arquitetura, ou seja, os planos de redenção social através do novo simulacro, ou da volatilização da realidade operada pela presença
arranjo do espaço habitado, na casa e sobretudo na cidade, deram no gene ral izada da TV. Em lugar disso, você observa que com a nova
arquitetura a cidade se torna ela mesma uma mídia, contribuindo por
( 3) O lugar da arquitetura depois dos modernos, São Paulo, Edusp, 1993. sua ve z par a a ge ner ali zaç ão do " efe it o te lev is ão". Gu iad a pe la po lí ti -

202 203

ca c ult ural do Estad o o u das gr andes empres as, a ar quit et ura moder na
vem a ser uma pe ça i mpor tan te par a o des envolv imento da soci edade
de consumo. Assim, depois de interpretar as necessidades da industria
lização capitalista, a arquitetura inventa as soluções necessárias ao
aprof undamento do consumis mo. Ou, como você quer ia demonst ra r,
funcionalismo e pós-modernismo são momentos sucessivos de uma ORELHA PARA FRANCISCO ALVIM
mesma racionalidade social.
http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo 101/124
O resumo foi um pouco acelerado, mas espero que não tenha sido
muit o ine xato e que permit a algumas per guntas , com as quai s t ermino .
De um modo geral, as suas exposições se completam pelo con
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
fronto entre idéia e resultado, entre o que um movimento promete e o
que ele cumpre no seu desempenho efetivo. Embora essa ordem de
conf ront o pe rte nça ao p rogra ma e ao p rópri o r eceit uár io da dial éti ca, Na poesia de Francisco Alvim estão juntos o mais alto lirismo e o
conhecimento refletido e desabusado davida contemporânea. Difícil de
são poucos os trabalhos bem-sucedidos nessa linha. Fazem parte do
grup o es tes s eus est udos, nos quais o cur so das promess as e dos resu l conseguir, essa aliança de faculdades inimigas não deixa a espontanei
tados da arquitetura moderna compõe uma figura vasta e de fato dade resvalar para airrelevância e o kitsch, nem aceita a perspicácia sem
impressionante. Dito isso, quero lembrar uma boa reflexão de Adorno, transcendência, a desambição humana que por vezes diminui o realista.
segundo a qual as ideologias não são mentirosas pela sua aspiração, Quem di ri a que lug ares- comuns da de puraçã o l ír ica , tai s como a luz, o
mas pe la a fir ma ti va de q ue es ta s e t enha real iz ado. Qual o s igni fi cado, tempo, a água, o nada, o vento, o infinito pudessem pautar a figuração
qual o part ido que a crí ti ca de art e pode t ir ar d esse es paço en tre as pir a tal vez mai s pr ofunda e i mpi edosa de nos sos rece ntes anos de chumbo?
ção e re ali zação, e sobr etudo ent re obr a i ndivi dual e t endênci a ger al? Usadas sem preciosismo ou pompa, aquelas palavras tão genéricas
Nes se se nti do, como f icam a s experi ênci as mode rnis tas de que mal ou entram em simbiose com toda a antipoesia - esta muito específica 
bem se formaram as noções de beleza de nossa geração e da anterior, de que a f ormação soci al br asil ei ra ve m sendo capaz : i mpuni dade ofi 
noções de que não s aberi a como abri r mão? Pe nso no i mpact o de r eve cial, adesão conscienciosa ao opressor, meandros morais do empreguis
lações juvenis, como aquelas propiciadas - digamos - pelos móveis mo, polícia atuando em faixa própria, além dos desdobramentos corre
escandinavos, pela religião das tubulações aparentes, pela sobriedade latos na vida amorosa e na conduta popular. É claro que o espelhamento
do espaço moderno, pelo antiilusionismo do palco brechtiano etc. recíproco de sentimento cósmico e notação do desarranjo social permi
Foram absorvidas pela modernização, sem deixar resíduo crítico? E te l eit ura s vari adas , que nã o ten tar emos aqui . Mas fi que assi nal ado um
como s e li ga a o des ti no da arqui tet ura a di fere nça t ão t angí vel e ntre as de seus efeitos: o compromisso com os elementos naturais faz que o
casas modernas boni tas e as f eia s? Em que s enti do as expl icaç ões que suj eit o mude a r es pira ção e não ca iba no conce it o t rivi al del e mesmo. A
você dá poderiam incidir em nossa apreciação de obras-primas, por função esclarecida do lirismo aqui é tangível.
exemplo de Mies van der Rohe, ou de beldades como o Palácio do Ita
marat y? O â ngulo de anál is e t eri a de ser out ro? O espírito
Ma nuel Bande irahumilde e fraterno
; t amb ém a Dos toi buscado
evski , nonos
quepoemas deve
t oca à fa muito
mi li ari dade a
Minha cara Otília, quero cumprimentá-Ia calorosamente pelo interior com o erro e o crime. A convicção da fraqueza humana, assim
bom trabalho.
como a ausênci a de pres unção qua nto à pr ópri a p essoa (Goet he: nunc a
s oube de um c rime de que não me j ulga sse ca paz), autor iza m o i ncrí vel
vaivém sem quebra entre a debilidade do sujeito lírico, veraz e nobre
em sua vitória sobre o orgulho, e ascondutas clássicas da miséria nacio-

205
204

n a!. A p al av ra p as sa liv re me nte d e u m s uj eit o a o utro, à s v ez es s em ma r


cação clara: quem está falando é um poeta, um delator, um figurão da
R ep úbl ic a, u ma tris te p ro sti tu ta ? A fo rç a n ec es sá ria à i de ntific aç ão e ao
reconhecimento de afinidades dessa ordem não é pequena, e tem o
mérito de ser estética e socialmente substantiva.
Do ponto de vista da composição, o elemento-base não s ão pala
"UM DEPARTAMENTO
vras nem versos, mas/alas, a s m ais s imp le s e n atu ra is , e m c uj a c ol eta o u
http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo
FRANCÊS DE ULTRAMAR" 102/124
c on fe cç ão o a ut or a ce rt a in fa liv el me nte n a mo sc a. Brev id ad e e n at ura
lidade acentuam, no plano da forma, a similaridade dos que se presu
me m d iferen te s. E m mu it os p oe ma s é c omo s e h ouv es se u m mi crofon e
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
c ircu la nd o. O q ue é d it o é fac íli mo e q ua se n ad a, ma s o c on ju nt o, forma 
do pelas vozes que contracenam, tem a complexidade da própria vida e
e sb oç a a lg o c om o u ma fra gm en tá ri a c omé dia n ac io na l, in te rio r e e xt e P elo a ss un to e à p rime ira v is ta , o liv ro d e P au lo Aran te s n ão p od ia
rio r. As d es co nti nu id ad es d a fal a, q ue o ra p erde o fio , o ra o ree nc on tra ser mais caipira. Qual o interes se de estudar os primeiros pas sos de um
n ou tro p erso na ge m, s ão o traç o ma rc ada me nte mo de rn o e e nig má tic o departamento de filosofia paulistano, passos inevitavelmente um
do livro.' Imitam as intermitências do sujeito? A realidade suprapessoal p ou co bi so nh os ? O mo tiv o p arec eria ma is s ent im ent al d o q ue t eó ric o. '
dos discursos? A fragilidade de um tipo sociopsicológico? A força Mas o leitor logo se dá conta de que não é isso. A vinda à usp dos
expansiva do lirismo, que rompe as paredes ilusórias da individualida p ro fe ss ores e stran ge iros n os a nos 3 0, a s a n ed ota s s obre a s ua v id a m un
de e se reencontra nos outros? Uma certa unidade no tom do país? A dana, o transplante de um programa de estudos francês para um país
identidade que se esboça através das descontinuidades tem es tatuto com outros pressupostos sociais, as alienações e os estímulos que
i nc erto , e ta nto p od e i nd ic ar a de sc obe rta d e u ma rea lid ad e c omu m, c as o res ult aram d es se a rran jo , tu do i sto rap id am ent e c omp õe u m p ro ble ma
e m q ue rep re se nta ria força , c om o p od e in dic ar c omp la cê nc ia n o i rrea li  consistente, de muito interesse e cheio de ironias históricas.
z ad o. E ss a d úv id a e la me sma é um e le me nto d e p ertin ên ci a h is tó ri ca . A criação de um depar tamento de filosofia com padrão exigente é
A limpidez da composição, lidando com matéria tão impura, um capítulo entr e outr os da f or mação da cultura nacional moder na.
d ev e-se a o e nl ac e c om a t rad iç ão , s ob re tu do a mo de rn is ta , c ujo rela cio 
Participa, as sim, de um processo começado com a I ndependência, ao
n ame nto p ro fu nd o c om a rea li da de b ra si le ira p ro po rc io na a o c on tin ua 
lo ng o d o q ua l o p aí s, q ue c arre ga to da s a s m a rc as d a c ond iç ão c olo ni al,
dor uma espécie de justeza decantada. A fonte, além de Bandeira, é
procura se dotar dos melhoramentos próprios às nações adiantadas.
Drummond: o auto-exame do pequeno-burguês, que através da culpa
Isso diz respeito às ins tituições, às artes, às ciências, e vale também
i nd iv id ua l d es co bre v íc ios d e c la ss e e u m p as sa do h is tó ric o, p os si bili 
para o ensino da filosofia. As dificuldades do process o muitas vezes
ta as unificações a que aludimos. A técnica da notação mínima, com
têm f eição anedótica, mas a sua relevância é evidente, s e for em vistas
intenção de alegoria nacional, obviamente vem de Oswald. Por f im, o
desse ângulo.
clima de desbunde pertence aos anos 70 e à geração dos poetas margi
n ais , c uj a e xp eriê nc ia n o e nt ant o é t ra ta da c om di sc ip lin a in te le ctu al e A li ás , q ua ndo e stu da o e sforço fei to p elo s n os sOS filó so fo s p ara s e
v oc ab ul ar min ei ra s, d e raiz n eo clá ss ic a s et ec en ti sta , o q ue p arad ox al ig ua la re m a o p ad rã o e urop eu , P au lo n ão s e c o nc en tra n a d iferen ça q ue
fal ta va ti ra r. Em lu ga r d is so , e mu da nd o a pe rs pe cti va c orre nte , e le p ro 
mente transforma a dissolução em clarividência.
c ura e nx erga r n as c on st ela çõ es um p ou co e sd rú xu la s e p or a ss im d iz er
F ra nc is co Alv im é u m g ra nd e p oe ta .

(I) Paulo Eduardo Arantes, Um departamento francês de ultramar, São Paulo,


(I) Francisco Alvim, Poesias reunidas, São Paulo, Duas Cidades, 1988. Paz eTerra, 1994.

207
206

.....- ~-- -------- 1'i

defeituosas do esforço filosófico local, historicamente inevitáveis, a fora, e outra coisa é aquilo que os primeiros fazem e o segundo apre
revelação de aspectos reais da filosofia européia, que nas suas condi cia". Ou seja, a chanchada que fazemos e apreciamos não é cinema, ao
ções de origem não ficavam patentes. A aventura brasileira das idéias passo que cinema deveras é só o que não fazemos e que apreciamos de
do Velho Mundo não é um capítulo de exotismo. modo algo subalterno. O autor sublinha o efeito destrutivo destas alie
Assim, a crônica de um episódio universitário local seinscreve no nações, sem excluir a si mesmo. Assim, a certa altura anota que todos
processo secular de formação e modernização do país, e pode revelar que se ocuparam de cinema no Brasil por algum tempo, mesmo os vito
facetas inesperadas do próprio padrão "alheio" que tratávamos de inte
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riosos, exibem "a marca cruel do subdesenvolvimento", reconhecível 103/124
riorizar. O próximo passo, que Paulo por enquanto só insinua, consis à primeira vista.
tiria em tomar as discrepâncias entre o que a filosofia significa num Há um paralelo sugestivo com a situação fixada entre nós pelo
lugar e no outro como cifras através das quais se adivinha o próprio modelo estrutural de história da filosofia, situação que Paulo Arantes
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movimento da sociedade contemporânea. Digo tudo isso de modo estuda. É claro que não havia nada no pensamento brasileiro que tives
sumário, só para dar uma idéia do raio vertiginoso dessa construção. se o grau de elaboração arquitetônica sem o qual a aplicação da pers
A inspiração geral do livro vem da Formação da literatura brasi- pectiva estrutural vira piada. Inversamente, a relevância dos estudos
leira, deAntonio Candido. Em especial de sua idéia mesma de "forma estruturais para o esclarecimento da experiência brasileira é muito
ção", que aponta uma fase específica, com traços e problemática pró indireta. O que pensamos - retomando Paulo Emilio - é chanchada
prios, em que o esforço literário funciona em aliança com o propósito e não filosofia; e afilosofia - o cinema sério, dos países adiantados 
de contribuir para a construção da nacionalidade. Tratava-se, nos ter não nos ilumina. São impasses reveladores, que tanto falam de uma
mos de Antonio Candido, de escrever uma história dos brasileiros no situação histórica como do método estrutural. O livro é rico em carac
seu desejo de terem uma literatura. terizações desse tipo, e atento a toda sorte de conexões históricas
Paulo adaptou a fórmula e escreveu uma história dos paulistas no imprevistas, próprias ao processo da "formação" tomado no seu con

seu desejoCandido
Antonio de construírem
entretantoumavaicultura filosófica.
de 1750 O processo
a 1870, recuo descrito
no tempo que por
faz junto, que ultrapassa a compartimentação acadêmica. Assim, há obser
vações sobre a funcionalidade cultural de posições disparatadas, sobre
diferença e permite ao autor tratar com amenidade as ironias da situação. as ligações entre a nova filosofia e o Modernismo, a arte da prosa, as
Já o processo estudado por Paulo é quase contemporâneo. Nesse sentido ciências sociais, o diletantismo filosófico anterior, o Iseb etc.
o trabalho dele se aproxima mais do de Paulo Emilio, que por sua vez his Mas voltando aPaulo Emilio, a quase alegria com que ele denuncia
toriou o desejo dos brasileiros de terem um cinema, também um proces va as deformações do pessoal de cinema, repito que sem ressalvar a si
so recente. Essa proximidade no tempo levou tanto Paulo Emilio como mesmo, tinha muito aver com o começo dos anos 60. Reconhecer adefor
Paulo Arantes a seconsiderarem parte das contradições e alienações que mação iajunto com ligá-Ia àordem internacional do imperialismo, que era
descrevem, o que cria um tipo de ironia mais acerbo. preciso combater, para mudar. Aradicalização de 64 batia à porta.
As linhas comuns aos trabalhos dos dois Paulos são numerosas e Pouco depois Glauber formularia a "estética da fome", na qual
têm fundamento na realidade. Decorrem de questões gerais ou compa reivindicava a miséria feia do subdesenvolvimento, com propósito de
ráveis, próprias aos processos de formação nacional nos diferentes jogá-Ia na cara dos cinéfilos europeus, não como um pedaço de exotis
âmbitos. Sugerem apossibilidade e o interesse de considerar essas evo mo, mas como parte inaceitável do mundo deles. Havia conexão entre
luções em conjunto, no seu ritmo desigual e combinado. ateratologia social brasileira e a ordem internacional. Na mesma época
Comentando a "situação colonial" de nosso cinema anterior ao Antonio Candido concebia um modelo de crítica literária em que a aná
Cinema Novo, Paulo Emilio observa a propósito da chanchada "uma lise das obras brasileiras permitia aprofundar a compreensão de obras
harmoniosa combinação de pontos de vista entre os produtores e o pertencentes às culturas de que dependemos e que nos servem de
público destes filmes brasileiros. Para ambos, cinema mesmo é o de padrão. No campo da filosofia, apoiado no marxismo mais ou menos

208 209

independente que se desenvolvera na uSP Gia


.' . '
tt" t
nno I eve o topete ou a
tranqmhdade de escrever uma crítica excelente e forte ao trabalho de
1-------------.------~.. ."
. de alguns acertos, de hteratura nao entendIa nada. Para situar a Idela de
absoluto l iterário que Bento defendia, Paulo r econstitui a noção do " con-
~lthusser, o grande nome do momento. Por seu lado Fernando Hen- creto" e m Sartre, resume a e volução do pensamento literário deFou c ault,
nque Cardoso estudava os passos do dI' t' d . . -'
· . , , ,esenvo Vlmen o m ustnal bra- a mesma COIsapara Lebrun, tudo operaçoes vastas e dehcadas. Ocorre
sIlelro e conclUla a s~a luz que a teoria do desenvolvimento de Walt que Bento não v oltou à questão literária, de modo que se pode dizer q ue
Ro~tow, o p apa amencano do assunto, não tinha a v alidade geral a q ue Paulo m obilizou conhecimentos e a cuidade e m escala n otável p ara expli-
http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo 104/124
asplf~~a. ~ m todos esses exemplos está presente o s entimento de q ue a car a lgo q ue quase não v eio a s er. Não digo i sto p ara objetar, p elo contrá-
expenenCl~ cultural e a elaboração intelectual do país fazem parte da rio. O sentimento da existência e fecundidade de configurações pouco
cena . mundIal c ontemporânea, e mais, que vale a p ena levá-Ias adiante palpáveis é, além de bonito, indispensável ao projeto de Paulo, de cuja
5/17/2018 Schwarz, Roberto -Sequencias
com m dependência, quer dizer, em relação crítica tanto com o d eslum- Brasileiras
matéria[Livro Completo]
"em formação" -slidepdf.com
decorre. Não acredito por exemplo que na
bra~~nto colonizado como com as versões estereotipadas do antiim- Europa tivesse sentido escrever o b elo ensaio em q uestão.
~enahsmo e d o marxismo. Hoje a idéia de que haja nexo entre as mal- Mesma coisa para a valorização da escrita de Bento, em quem Paulo
formações do país e a ordem econômica mundial saiu completamente vê o i nventor do e nsaio f ilosófico paulistano. F ui r efrescar lembranças, e
de moda e a vida intelectual voltou à irrelevância. Já o livro de Paulo de f ato, p assados trinta a nos, a mistura um t anto t radicionalista de parna-
reata com aquela tradição forte, o q ue, a m eu ver, deve ser saudado. sianismo, Drummond c1assicizante e Merleau-Ponty cultivada por Ben-
· _ Para .terminar q uero dizer alguma coisa sobre a escrita e a compo- to continua levemente antiga, mas sobretudo incrivelmente jovem,
sIçao.do hvro. A p rosa é mais de literato que de filósofo profissional. imune ao tempo, como observou Paulo. Impressões como esta, alimen-
~l~. clrcul~ com liberdade entre a evocação, a análise, a história das tadas também pelo envelhecimento irremediável de tanta coisa daquele
IdeIas, a piada, o perfil intelectual, a reconstituição minuciosa de um tempo, valem muito p ara a reflexão efetiva.
argumento, a observação literária etc. Em c ontrapartida o domínio filo- A p rosa de Paulo é guiada, se não me engano, pela ambição da
sófic~ perde o privilégio de não ser confrontado com o mundo e as fluência e d a presença de espírito totais, entendidas como antídoto p ara
demais modalidades ~: escrita. Empurrados por Paulo para o campo a:o~partimentação acadêmica. Sabe~os que hoj,eesta c ompartimenta-
aberto da cultura pohtIca e da sensibilidade literária moderna sem a çao e o natural, de modo que a naturahdade atraves da q ual P aulo a quer
proteção do cercadinho da convenção acadêmica, os maneiris~os d superar tem muito de artifício e construção, que são méritos estéticos,
gênero filosófico ficam como que expostos, fazendo uma fi ura à~ mas talvez paguem um preço. A mobilidade ensaística, viabilizada pela

v:z~s inesperada, meio cômica, meio inócua. Verificações des~ espé- exatidão e extensão dos estudos prévios, induz a u ma leitura ace~~ra~a,
Cle externa" são u ma constante e u ma força na e scrita do livro. na qual a lgo daquele esforço e d e seu resultado p ode p erder em sahencIa.
· Entretanto
. é claro que o sujeito da prosa no caso nã'o e pre, -f'l I oso' _ . Todos estão
1 lembrados
.' da f'lh
"Teoria do medalhão",
d f" de O Machado
. . de l'
fIco. A sua lIção de casa foi feita em grande escala e Ul't o b em, e e'1ne a -
ASSIS, n.,a qua um pai ensma
., ao I o os truques o o ICIO. pnnClpa . e
que se apóia a agilidade da movimentação literária. Trata-se de reab- nao se mdlspor com lll~g~em. Ora, quem ab:-ea b oc~ corre o n~co _de
sorver na fluência da fala inteligente um respeitável onjunto . de d'ISCI._ desagradar.
d d 1Isso 1"
querera .dIzer que
" o"medalhao . 'd" deva fIcar
., "mudo.f""Nao,
plinas estudadas
. ' . em separado ' no seu pad -o .. F
ra mais ngoroso. az parte es e que e e se ImIte seja aos. negocIOsmm
, os
. , seja a meta
- ISIca ,
da VIvaCIdadee da feição própria dessa s t'l' I Izaçao
_ a relerenCla
., A' peno-• , ou, noutras palavras, ao 10calIsmo e. as . generahdades
. A' que nao venham
dica e .d esabusada às c ondições histo'r'Icas d o PaiS,que
' lh' .
e Impnmem a ao caso..' Machado naturalmente- satmzava a IrrelevanClado
" , pensamen-
,.
nota SItuada antiingênua , mas tamb'em a perspectIva . espeCIal. . to' naCIOnale
. sugena a superaçao
. daqueles polos mocuos,.,o que e maiS .
Veia-se por exemplo a d'Iscussao _ l'ummosa d a f'lI osofIa
.. hterarIa
,. de facIl de recomendar que realIzar. ..' Lembro o conto .'para mdlcar, . ainda
.
Bento Prado Jr Esta bOI'xp ost a num art'IgOd"d. Iveru o e bom dos anos 60 uma' . vez o fundamento - brasIleIro antIgo, extra-ulllversItano e mUlto
que demonstrava por a+b q' e oJovem cntlco , . Rob er to Schwarz, apesar' solldo das preocupaçoes do Paulo.

211
210

A e stampa de Cacaso er a r igoros ament e 68: cabel udo, ócul os de


J oh n Le nno n, s an dá lias , p aletó v es tido e m c ima d a c amisa -d e-me ia ,
s ac ola d e c ou ro . N a p es so a d ele e ntre ta nto e ss es a pe trec ho s d a re be ld ia
v in ha m imp re gn ad os d e o utra c on otaç ão m ais remo ta . S en do u m c av a
l heir o de ma sculi nidade oste ns iva, Cacaso usava a sa ndá lia com me ia
soquete branca, exatamente como era obrigatório no jardim-de-infân
PENSANDO EM CACASO ci a. A sua bolsa a tir acolo f azia pensar numa lanchei ra, o cabelo com
http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo 105/124
pri do l embr ava a i da de dos cachi nhos , os óc ul os de vovó pareci am de
brinquedo, e o paletó, que emprestava um decoro meio duvidoso ao

5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras [Livro


conj unto, Completo]
t ambém. -slidepdf.com
Aligaç ão mui to próxima e vi va - chei a de f otogra
fias - com a mãe, uma senhora de beleza comovente, completava o
a pe go a ss umido a os p rime iros a no s.
Quando Cacaso morreu, em 1987, tinha quase pronto um belo Contudo, essa recusa da respeitabilidade adulta nada tinha de
e stud o s ob re a p oe sia d e F ra nc is co A lv im, s eu g ra nd e a migo . O e ns aio, cr ianci ce, de desi ntere sse pelo mundo práti co ou por confor tos mate
a que as linhas que seguem serviram de introdução, foi publicado ria is . C ac as o s on ha va m uito , p orém s e c on ce bia c omo p es so a o bjetiv a
pouco depois em Novos Estudos-Cebrap e se chamava "O poeta dos e deter minada, a quem o descas o pelos meandros convencionai s per
out ros". Era um tít ulo exat o, que apl audia o ouvido i ncrível de Chico miti ri a um ataque mai s f unc ional aos al vos que lhe importa va m. A sua
fé n a e ficá cia d e me dida s rac io na liza do ra s d a c on du ta , c omo p or e xe m
para a conversa alhei a. Designava também um ideal de vida do própri o
Ca ca so , q ue e m m atéria literária g os ta va d e d ar e rec eb er p alpite s, e ntre p lo a reo rg an iz aç ão d os e stud os , d os h orário s de tra ba lh o, d os s is te ma s
de fichamento, das formas de colaboração e convívio, chegava a ser
risadas, de inventar projetos comuns e de estimular a produção à sua
vol ta, sobret udo de pess oas improváveis , que ninguém imagi nari a desconcert ante. Encar ava o mundo e a si mesmo com di stânci a humo
rís tica , e a ch av a q ue o s d ois me re ciam reforma , à q ua l s e d is pu nh a s em
artistas. Ele andava atrás de uma poesia de tipo sociável, próxima da
ligar para interesses criados - o que também dava aos seus projetos
c on ve rs a b rinc alho na e ntre a migo s. Um e me nd aria o o utro , tra ta nd o d e
algo de conspi ração de garot os que sabem o que querem. Queri a cons
tor nar mais engraçada e verdadei ra uma fal a que pert encesse a todos,
tr uir a sua obr a de poeta, queri a trazer à l uz do di a os podres da conivên
ou não foss e de ninguém em part icul ar. Era um modo j uveni l de sent ir
cia literária, que o exasperavam, queria acertar no amor, queria dar o
s e à vont ade e a sal vo das rest riçõe s da propri edade privada. Nessa l i
seu depoi mento sobr e o Brasi l, quer ia vencer , e sem dúvida nenhuma
nha, ele tinha a intenção de estudar a poesia "marginal" dos anos 70
q ue ria g an ha r d in he iro c om o s eu tra ba lh o.
como um vast o poema colet ivo, cuja mat éri a ser ia a experi ência hi stó A certa altura, Cacaso imaginou que a sua vida de intelectual e
r ica do perí odo da repr essão, e cujo aut or seri a a ger ação daquele decê ar tis ta s eria ma is li vre compondo let ras de músi ca popular do que dan
n io , v is ta n o c on jun to , fic an do d e lad o a ind iv id ua lida de d os a rtis ta s. d o a ulas n a fac ulda de . Na é po ca c he go u a ide aliz ar b as ta nte a lib erda de
Cacaso estava s empre fazendo amigos novos, de cujo val or tr ata d e e sp írito p ro po rc io na da p elo m ec an is mo d e me rc ado . P en so q ue u lti
va de per suadir os mais ant igos. A palavra- chave nessas expl icações mame nt e andava revendo e ssas convicções . Seja como f or, o pas so de
era "fi gurinha". Se não me engano, a expres são designava pess oas que p ro fe ss or a letrista, a co mp anh ad o d e p la no s a mb ic io so s d e leitu ra lite
não tendo posição firmada na praça nem por isso abriam mão de um rária , h is tó rica e filos ófic a, a ss im c omo d e p rod uç ão c rítica , mo stra b em
p erfil e xige nte e c ap rich ad o. G ra nd e fig urin ha a liás e ra o p ró prio C ac a a sua dis pos ição de ent rar por cami nhos ar ris cados e de vencer em toda
so, a quem por isso mesmo a fama, quando começou a vir, deixava um a li nha . Tal vez apost asse que uma certa infor mal idade de menino lhe
pouco atrapalhado. p ermitiria c orre r p or fora, ign orar e s up erar a s in co mp atib ilid ad es q ue a

213
212

nossa cultura ergueu entre arte exigente e arte comercial, entre estudos
e e str el ato, ent re conse qüênci a pol ít ica e fr uiçã o des ini bi da. A mes ma
consi der ação di ret a do que p udess e sat is fazê -Io na ord em do i deal e na
ordem do apet it e f azi a que Cacaso se se nti sse at raí do p elas ma nif est a
ções correspondentes da barra-pesada.
Ass im como não r espei tava as conven ções, Cacas o ado rava f azer
PELO PRISMA DO TEATRO
cerimônia e armar jogos pessoais, desde que fossem da invenção ou
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simpatia dos envolvidos. Nesse capítulo, leia-se a homenagem aos 106/124

oitenta anos de Drummond, de uma graça especialíssima, onde o home


n ageado , o ma is perna mbuc ano dos minei ros , contr acen a com Ma nuel
5/17/2018 Schwarz,
Ban deir a, o ma is mineir o dos perna mbu canos . ParRoberto
a um pri me iro-Sequencias
pa lpi  Brasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
te sobre o tipo tão peculiar de prosa que Cacaso estava desenvolvendo,
note-se o convívio entre a diversão pura - a que ele dava uma feição Co mo a p rof essor a I ná pol emiza em vár ias fre nte s, pa ra não dize r
meio int eri ora na, de con vers a de t ico- ti co - e a nota ção cr ua de int er es em todas, o leitor corre o risco de não notar que está diante de um livro
ses e apetites. Os contos "Inclusive ... aliás ..." e "Buziguim" exemplifi de con cepção r efi nada e i ncomum. Res umi ndo ao máxi mo o se u argu 
cam o que estou dizendo.] ment o, di gamos qu e se tra ta de es tudar o cap ít ulo br asi le ir o da hi st óri a
do t eat ro é pico mo derno , o qual de f orç a pr odut iva pas sou, num segun 
do tempo, a artigo de consumo. O olho para mudanças desse tipo, em
que as intenções dão no seu contrário, caracteriza o espírito desabusa
[ do da autora.]

Obs erve- se que a i déi a do l ivr o pode p arec er f orçad a. O teatro épi-
1 co do título, com o seu território mundial e seu episódio brasileiro, mais
a re ssonâ nci a s ubver siv a, não ser á uma ass ombr ação ? Ele não est ari a
funcionando como um fantasma transatlântico, parente aliás dooutro
o comuni sta - que ron dava a Europa e o casi onal me nte se encar nava?
Com a q ued a do mur o e m Be rl im, qu ando a s c ontr adi ções do c api 
tal s aír am de moda, a al a dos res sabi ados se div idi u: para o s de sil udi 
dos da revolução, a dinâmica interna de classes perdia o peso; já para
os cansados do antiimperialismo, era o nexo global que deixava decon

I
I
tar , a cul pa do atr aso de vendo s e e xpli car e atr ibui r den tro do pa ís. Uns
e outros concordavam em esquecer o vínculo problemático entre os
dois âmbitos, ou seja, coincidiam na liquidação da dialética.
Nessa linha, voltando à crí ti ca l it erá ri a, po r que não f ic ar n a c rô
nica empírica e local do que realizaram o Teatro de Arena, o CPC, o
grupo Opinião e o Oficina, o mais das vezes com verve e, salvo para o

(1)Novos Estudos-Cebrap, 14e 19, Sã o Paulo. O e studo sobre a poe sia de Fra n
cisco Alvim agora está em Cacaso, Não queroprosa, Campinas, Editora da Unicamp, (1)Iná Camargo Costa, A hora do teatro épico no Brasil, São Paulo, Paz e Terra,
Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, 1997. 1996.

214 215

Améri ca do Sul , d e Bo al, d es co br ia p ar a a c en a a f ig ur a d o tra ba lha do r


últ im o, sem grande pretensão de art e? E uma vez que o assunto t angí
vel era est e, a ref erência a um pr ocesso de trans formações mundiai s, caricat amente i ner me, sem qualidade dramát ica alguma, víti ma des
que al ém do mais deu em nada, teri a mesm o cabiment o? Por outro lado, preparada da contra-revolução em marcha: o achado crítico era este
se o i nteress e estava na i rradi ação das posi ções de Brecht , por que não mes mo . P ou co d ep ois, já q ue a inten çã o e ra p ed ag óg ic a, Via ninh a d av a

estudar singelam ente e caso a c as o a r ecepção de sua obra no Brasi l, que outro passo e inventava um modo cênico, aliás muito engraçado, de
não se li mi tou àquel e momento, nem compõe um t odo uni ficado? e xp lica r o c on ce ito d e mais- va lia. Nes sa a ltur a a c on ve nç ão d ra má tica
Aen ce na çã o d e Eles não usam black-tie, e m 1 95 8, c ujo ê xito ine s b ur gu es a e stava a po se ntad a, o s d es tina tá rios d o e sp etác ulo p as sa va m
http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo 107/124
p er ado a br ia um p er ío do , f or ma o po nto d e p ar tida d o liv ro . E m s eq üê n a ser estudantes e populares, bem diferentes do público pagante das
s alas c on ve nc io na is , e o s p ró pr io s a to re s, mob iliz ad os p ar a a s tar ef as
cia rápida e encadeada, São Paulo e Rio veriam mudar os assuntos, a
do agit-prop, vulgo CPC, s e h av ia m r ec on ve rtid o a u ma e spé cie d e a ma 
5/17/2018 Schwarz,
dr amaturgi a, a p latéia, a form a da empr esa teat ral Roberto -Sequencias
e a própria l igação da Brasileiras [Livro
do rismo Completo]
e ng ajad -slidepdf.com
o. A tra ns fo rmaç ão n ão p od ia s er mais c ompleta.
cul tura com a hegemonia de class e. Pel a pr imei ra vez no t eatro br asi
l eiro a greve operári a e as suas quest ões polí ti cas e morai s f iguravam Como assinal a Iná, a pressão das novas real idades econôm icas e

no centro de uma peça. No ambiente jovem do Arena, próximo ainda operári as sobre a convenção do dram a burguês não fazia do Brasi l um
d as lutas e stud antis , o n ov o tema r ef le tia a s ub id a d o mov imen to p op u cas o à parte. D o Nat urali smo em di ant e, a evol ução do teat ro eur opeu
lar , q ue mod if ic av a o d eb ate c ultu ra l a o lhe leva r a s s ua s p re oc up aç õe s. pode ser vis ta em term os dela. Mas é fato que Guar ni eri , m uito jovem,
Por seu lado, o público que manteve o espetáculo em cartaz durante d e e sq ue rd a e p ou co a fina do c om o v an gu ar dismo a rtís tico , d es co br iu
mais de um ano também era diferente, anunciando a radicalização da por cont a própri a alguns pas sos daquele per cur so cl ássico. A conver
pr óxima f ase: uma plat éia mai s m oça, polit izada e i nf ormal , com bi rra gênci a da lut a de cl asses com a c rí ti ca à n or ma canônica do dram a e c om
das eli tes e l igada às reivi ndi cações sociais de que o teatr o ant erior não a elaboração de f ormas de t eatr o nar rati vo estava sendo r einventada
se ocupava. l ocalm ent e, bem engrenada com as condi ções cul turai s e polí ti cas do
É
A s cons eqüênci as da matér ia operár ia para a for ma dr amáti ca s ão momento. claro que em seguida o corpus d as e xp er iê nc ia s e teo rias
uma especialidade de Iná, que as estuda com precisão notável. Com e ur op éias a r es pe ito s er ia a ss imilad o c om a vide z, mas r eb atid o n es ta s
efeit o, a convenção do drama burguês, para a qual o di álogo entre indi  c ond iç õe s, q ue tor na va m f ra nc amen te p ro du tiva a s ua e ntra da .
ví duos é o fundam ent o úl ti mo da r eali dade, excl ui do teat ro as di men Por out ro lado, sabe-se que o ques tionament o da norma dramát i

s õe s d ec is iv as d a v id a mod er na , q ue s ão d e mas sa . A s oluç ão e nc on tr a ca na Europa havia cor rido paralel o à cri se da ordem burguesa el a pró
da por Guarni eri na sua peça i lust ra bem o problema. Em cena, vemos pria, assim como o surgimento do teatro épico viera de par com as
os c on flitos ind iv id ua is d os o pe rá rios , a o p as so q ue a g re ve , q ue é o c en n ov as r ea lida de s p op ular es e a s p er sp ec tiva s d e r evo lu çã o s oc ia l. Nes 
s as c ir cu ns tâ nc ia s, o direito histórico d as f or ma s liter ár ia s e a luta e ntre
tro d e tud o, tem p re se nç a a pe na s ind ir eta, a tr av és d e c omentár ios e d is 
cussões . Noutr as pal avr as, o pri ncipal es tá fora do palco, e deve a exis elas part ici pavam do caráter deci sivo dos tem pos, e não s e esgot avam
tência a procedimentos com fundo narrativo ( po r o po siçã o a dia lógico ), no campo da arte. A paixão despertada pelo teatro e pelas teorias de
q ue d o p on to de v is ta d a r e gr a do g ên er o s ão o utro s tantos d ef eito s. Anã o Brecht sempr e teve a ver com este est atut o híbri do, como recor dam os
ser, natur alment e, que o gênero é que est eja superado. Seja como for, a seus admir ador es. N a década de 50, contudo, sobret udo vist a de hoje,
crí ti ca na época notou e apont ou o desl ize, identi ficado como queda na parte dessa aura possi velment e já fosse ideol ogia. D it o iss o, sal ta aos
t ensão l it erári a. A ssi m, a ordem do dia passava a inclui r a cont radição ol hos que a n orm a do drama burguês no Br asil não vinha sust entada por
e ntre a f o rma d ra má tica p ur a e , d o o utro lad o, a s n ov as r ea lida de s s oc ia is u ma tra diçã o d e b on s e sc rito re s, n em c od if ic av a a s c on vicç õe s e fe tiva s
e a s téc nica s n ec es sá rias à e xp os iç ão tea tr al d es ta s. d e n os sa e lite , p ar a a q ua l o ind iv id ua lismo b ur gu ês e ra n o máx imo u ma
F ir ma da a p er sp ec tiva , a r eo rien ta çã o da d ra ma tu rg ia f oi r ápida . a ng ús tia p re stig io sa , b em d is ta nte d os f un cion amen to s loc ais. Ass im,
Co ntra stan do c om a c on ce pç ão o timista d e Gua rn ie ri, A revol ução na o n os so tea tr o é pico s ur gia c om a uten ticida de , liga do a o a sc ens o d a luta

217
216

popular, ma, não se cont~apunha a nada de artistica ou ideologicameo- 1 parte se ajustou, e em par'c se ajosloo reagiodo, Estas ma"has e con-
te fort~~ O Teatro BrasIleIro de Comédia, que no caso funcionou como tramarchas, brilhantemente analisadas, já vão formando o nosso chão
o bastIao da ~ena b~rguesa, era ele mesmo uma inovação recente, cria- de hoje. Havia começado o segundo tempo do ciclo e do livro, em que
da pelo desejo pauhstano de mudança e atualização. Talvez se prenda o teatro épico passava de força produtiva a artigo de consumo.
a essa falta de adversário enraizado a qualidade literária em fim de con- Um aspecto marcante desta evolução foi a unanimidade, com algo
tas modesta das peças nascidas de um movimento tão vivo, que deu de exorcismo, que se formou contra o CPC. De ix and o d e lado a d ireita ,
encenações tão brilhantes. Há bastante que aprender sobre nós mesmos que não tinha mesmo por que gostar de um trabalho de esquerda, hou-
http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo
com a feição ~eio inventiva e meio rala tomada pelo teatro épico nes- ve o arrependimento dos próprios cepecistas, que acompanharam com 108/124
tas band~s, feIção ligada à d iferença das sociedades e das ocasiões his- autocrítica e tudo o r ecuo do Partido Comunista, o qual nunca aprecia-
tóricas. E um assunto apontado por Iná, que merece mais exploração. ra a a rte moderna e a gora procurava se d istanciar da subversão. Houve
5/17/2018 , " Noutras palavras, estamos dianteSchwarz, Roberto
da construção de nossa -SequenciasBrasileiras
pré-his- também[Livro Completo]
a militância concretista,-slidepdf.com
que sublinhava a diferença entre a s ua
tona recente, buscada na sua complicação e através do teatro. Trata-se inovação "rigorosa" (7) e o populismo regressivo dos poetas do Violão
de estudar as ligações internas entre o acirramento social que l evaria a de Rua. Quanto a isto, a ousadia da experimentação formal que Iná
64, os n~vos assuntos, esperanças e b elezas que lhe correspondiam, as identifica no teatro cepecista lança uma luz surpreendente sobre o
contradIções formais engendradas, as grandes defasagens internacio- debate, e seria bem interessante que um espírito desprevenido da nova
nais, o t ip~ de dominação de classe e d e hegemonia cultural, a presen- geração o examinasse de mais perto. E houve enfim a inesperada rea-
ç~ conheCIda mas pouco analisada do stalinismo etc. De outro ângulo, ção da intelectualidade que viria a ser do PT e que, parte por anticomu-
dIgamos que Iná compôs um objeto complexo, na melhor tradição da nismo, parte por catolicismo, parte por ouvir os concretistas e parte por
dialética materialista: as questões de arte (como as demais) são objeti _ uma espécie de purismo melindroso no trato da cultura popular, fez do
vas, transcendem o i ndivíduo, e o encadeamento em formação é uma CPCe de suas iniciativas a encarnação mesma do espí rito de Stali n (!).
força produtiva, que encontraria os seus limites internos se antes disso Não sendo sócia de nenhum desses partidos, e t endo sobre o p roblema
não topasse com a força bruta. A diversidade e precisão dos conheci- a clara opinião de uma trotskista esclarecida, a a utora vai encontrando
m~~tos ~a autora é tão considerável quanto discreta. Sempre ágil e as expres~ões certeiras de que precisa p~ra caracterizar, o rec~~ ge!al.
~Illlmahsta, a prosa vai por exemplo da análise engenhosa das seqüên- Talvez seja o c aso de saudar em s~a escnta .pouco ~a~a a conc~h~çao a
:I~S dramáticas à notícia pormenorizada sobre a repressão ao teatro entrada em cena desse ponto de VIsta e special, polemIco .e ~larIvIdente
epI~o em Alemanha, URSS, França, Itália, Estados Unidos e Uruguai, ou no q~al out~os se calam, e dotado nat~ralmente de parcIahd~des pro-
à d Iscussão do que seria um socialista para um stalinista no Brasil dos nun.cI~d~s (as vezes c~beçudas, ~credIto eu, como na cegueIra para a
anos 30, questão filológica sem a qual alguma coisa do teatro de posIçao a parte de DecIO ~e AlmeIda ~rado). ,
Oswald. passaria em branco . Por nosso resumo o l'teI or t'era nota d o que Ao descrever . e anahsar
-' a evoluçao teatral
- neste segundo penodo,
, .
a opaCIdade da Teoria Literária atual na-o omparece no I"IVro, que na postas
.., de l ado as mtençoes e fIxada a atençao" . nas mudanças
, . teclllcas
-"
boa tradição dos estudos diale'tI"cos re f ere, sempre que possIvel, ' obJetivas,
. Ina faz ver encadeamentos 'meIO
. .mvoluntanos
,. que '-dao fno
entender as matérias em termos de r e 1açoes
- h'ISt'oncas
. . .
e SOCIaIS.Neste na espmha' . e mostram
. o que pode a cntIca hterarIa como exphcaçao e
sentido espero não errar achando ue se tra t a d'e u m conVIte, pelo exem- comentano da reahdade.

plo, a ~ u so e ~e tivo d a inteligê nc ia , à mu ltiplica çã o d as o bs ervaç ões , à


pe sq UIsa d e h gaç ões rea is e iron ia s ob je tivas , a os racioc ín io s lon go s e
c omplex os , e m s uma , à refle xão literária de níve l.

. ~om o gol~e de Estado de 1964, a trajetória que acompanhamos


fIC OUmterro mpIda . Co mo e ra inev itáv el, o tea tro e m pa rte rea giu, e m

218 219

pu D ntro d'e mm h as l'llllltaçoes,


. - ~
trateI. de dar uma I'd"ela di'essa p emtu de de
grande prosador, e da unidade atrás da incrível variedade das soluções.
Acontece que esse padrão deescrita não nasceu pronto. Ele sefor
mou a partir das dificuldades históricas e literárias do país, e através da
"UM MESTRE NA PERIFERIA reflexão crítica a respeito. No meu primeiro livro procurei identificar
DO CAPITALISMO" as estações desse caminho. Estudei os desacertos estruturais na ficção
realista de Alencar, procurei mostrar que eles refletiam as circunstân
http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo
(entrevista) cias peculiares do liberalismo numa sociedade escravocrata e cliente 109/124
lista como a brasileira, e sobretudo tratei de indicar a maneira metódi-
ca e refletida pela qual Machado procurou esquivar esses desacertos e
5/17/2018 construir
Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras narrativas
[Livro mais consistentes.
Completo] Estas escapavam às ingenuida
-slidepdf.com
des deAlencar, tinham bem mais noção da realidade e de seus proble
Augusto M assi: Vamoscomeçar pelo título. Por que U m m est re na mas, mas só para incorrer noutras limitações, até menos simpáticas.
periferia do capitalismo? Tomando em conjunto os romances e a situação, percebe-se uma pro
Roberto Schwarz: Uma amiga maldosa diz que o título faz pen blemática historicamente peculiar, complexa e perfeitamente moder
sar em problemas d o e nsin o em pa íses d o Terce iro Mun do . Até q ue na, quer dizer, nada caipira, contrariamente ao que aqueles romances
po dia ser, p ois o livro d e fato p roc ura c olher o e nsin amento d a o bra "para moças" poderiam fazer crer. Os aspectos inaceitáveis dopaís, as
machadiana, que tem tudo a ver com condições culturais periféricas, e d eficiên cias de tod a ordem do s roman cistas qu e o prec ed eram, as
nem por isso deixa de ser uma obra de primeiríssima linha. Voltando estreitezas de suas próprias obras dejuventude, este o conjunto muito
ao título, ele retoma a fórmula de Walter Benjamin para caracterizar negativo que a prosa machadiana da segunda fase supera, e mais, ao
Baudelaire, "um lírico na era do capital". A graça está em reunir qual ela deve a força e a relevância.
noções de data e âmbito muito diferentes e incompatíveis, mas que a
realidade junta. O "mestre" pertence aomundo do artesanato e trazum M.: A noção devolubilidade, que você aplica ao narrador do Brás

clima de exigência espiritual e perfeição. A "periferia do capitalismo" Cubas, permite articular a análise da forma literária e da realidade
social. De onde veio esse conceito?
é um termo tomado à reflexão social moderna e faz pensar em condi
S.: Se você acompanhar com atenção a voz do narrador, as infle
ções deprecariedade que nos atingem a todos. Pois bem, Machado de
xões, você logo nota que ele gesticula muito, que a todo momento ele
Assis chegou a ser um grande mestre apartir dessas mesmas condições
está trocando de atitude. Você vai notar também que essas mudanças,
desvantajosas. Meu livro tenta analisar e explicar esse processo.
que parecem o cúmulo do capricho e do arbítrio, são repetitivas e têm
sua regra. O começo de meu trabalho consiste na descrição desse com
M.: Qual a ligação entre este livro e o outro, A o v en ced or as ba ta -
portamento "volúvel" do narrador - o termo é deAugusto Meyer -,
tas, dedicado aAlencar e aoromance machadiano da primeira fase?
comportamento que imprime um ritmo próprio à narrativa, da qual por
S.: Nesse estudo sobre as Memórias póstumas procurei mostrar de isso mesmo ele é a forma. Em seguida trato de identificar a estrutura de
perto, explicar em que consiste a força literária doromance machadia qu e o me smo co mpo rtamen to faz parte , o u seja, o s tipo s sociais, as
no da maturidade. A densidade da prosa, a sua potência intelectual, a idéias, as normas com que interage. A conseqüência imediata é que o
quantidade e sutileza das observações derealidade, a malícia dos arran narrador adquire uma feição social e histórica bem definida. Em lugar
jos formais, o alcance estratégico do ângulo narrativo, a feição carac da isenção, que é a regra a que aspira a ficção realista, surge um narra
teristicamente nacional, tudo isso foi pouco examinado pela crítica. dor situado, agressivamente faccioso e sarcástico, a dramatização espe-

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t ac ula r de uma c ond uta d e c la ss e. Mac had o é o roma nci sta d a de sfaça  ça, o estalo do gênio etc. Você não vai por aí, e explica tudo por uma
t ez d as e lit es b ra sile iras , e n ão d o " home m e m g eral" , c omo fre qüe nt e tran sforma çã o de co nte úd o em forma. A q ue stã o e ntã o é s ó d e t éc nic a?
S.: Co nve nh amos qu e é p oss íve l c omp le ta r q uaren ta a nos , fic ar
me nt e s e d iz . Vo lta nd o à s ua pe rg un ta , e ss e tip o d e a nál is e t em a v anta 
doente e até dar de cara com a morte sem escrever nada de especial.
gem - se não estiver errado - de colher o depoimento histórico da
p ró pria forma , q ue n o c aso ma cha di an o é ap ime nt ad ís simo. A i dé ia é d e Agora, se ocorre ao cidadão escrever alguma coisa notável, natural
me nte s erá i nte re ss an te pe rg un ta r p ela s razõ es d o n ov o p as so . Ai nd a
superar o estudo a-histórico das formas, do qual uma história das formas
a ss im é p re ci so s abe r p rimei ro e m qu e c ons is tiu a no vi da de, s en ão n ão
qu e nã o s aia do p ró prio p la no d ela s na ve rd ade é ap ena s u ma v arian te .
http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo h á c omo faze r a p ergu nt a c erta. 110/124
Um tema b ás ico no s roma nc es d a p rime ira fas e é o es trag o c aus a
M.: Como assim?
do p el a c on du ta a rb itrária e c ap ric hos a d e a lgu m p rop rie tá rio . O co n
S.: A desregulamentação moderna da arte coloca a crítica numa
texto social no caso é de paternalismo, o que é decisivo, e as persona
5/17/2018 situação especial, de que é preciso tirar Schwarz, Roberto
as conclusões. -SequenciasBrasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
A conseqüência
gens "dependentes" vivem meio em pânico, à mercê dos repentes de
tímida diz que não há mais forma canânica, que as obras inovam umas
uma viúva rica ou do filho querido dela. A intenção artística dessas
e m rel aç ão à s ou tras n o p la no da forma , e qu e c abe à c rític a a co mp anh ar
ob ras , to das ma is o u me no s frac as e e di fica nte s, é d e e duc ar s em o fe n
esse processo de transformações e invenções. Você note que nesse
d er, a pa ra r a s b rut al ida des in con sci en te s o u d es ne ces sá ria s da c la ss e
rac ioc ín io , em qu e t ud o p arec e p os sí ve l, há n a v erda de u ma rela ção qu e
abastada, no quadro geral do clientelismo brasileiro. O que esses livros
n ão e stá p os ta e m q ues tã o, o q ue faz qu e a p os iç ão to da s eja mu ito me nos
estão dizendo é que se a gente de posse tratasse os pobres de modo
mó ve l q ue a a rte mod erna e nã o es te ja à alt ura d ela. A li be rd ad e forma l me no s b árba ro s eria me lh or pa ra to do mun do , in clus ive p ara o s ric os ,
d e qu e trata e sse rac ioc ín io nã o inc lu i a lib erda de de a lte ra r a s rela çõe s
já que teríamos uma sociedade mais civilizada.
e ntre as formas e a rea lid ad e, lib erda de q ue p ara o mel ho r d a a rte mo der Po is b em, no Brás Cubas Machado deAssis faz uma coisa incrível:
na obviamente é central. A conseqüência enérgica a ser tirada pela críti
por estratagema adota o ponto de vista do inimigo, apropria-se dele,
ca, e que lhe daria outra robustez, vai por aí. A atual desregulamentação transforma em procedimento narrativo de todos osinstantes a conduta de
da arte inclui a liberdade e a obrigação, para toda e qualquer obra indi classe arbitrária e irresponsável daquele mesmo tipo social que nos livros
vidual, de inventar com nitidez a sua situação no espaço extra-estético, a nt eriores lhe c au sa va ho rror e q ue e le ha via critic ado . O qu e e ra as su n
o seu lugar social, os seus relacionamentos reais, que não estão mais to vira forma, o que era um momento raro e especialmente negativo - a
prescritos por um estatuto geral e aceito da atividade artística. Essa hora em que as figuras de classe dominante se desmandam - se torna a
in ven ção é a ve rd ad eira al ma da i no va ção forma l, o n ervo de s eu al ca n rotina em que está embebida a totalidade da vida. Machado trocava a
ce c rít ico , o s eu ris co. A a ven tu ra d a a rte mo derna es tá n es se pla no, e s ó perspectiva social de baixo pela de cima, e adotava, dentro de um espíri
secundariamente na novidade em relação à tradição artística, novidade to de e xp os içã o s arcá stic a, o p onto d e v is ta e a p rimei ra pe ss oa d o s in gu 
qu e e xis te ma s d eco rre d a o ut ra. Ca be à c ríti ca de sc ob rir e sse s c orre la  la r do s p ro prie tá rio s. Em lu gar da e sfera a can had a e p ro vin cia na d a p ri
tivos extra-artísticos da criação formal, explicitar a energia e perspecti meira fase, onde setratava de tornar menos ruins e destrutivas asrelações
va de corren te s de ss a au to loc aliz aç ão e a utod efin iç ão p or a ss im diz er paternalistas, temos agora um proprietário brasileiro freqüentando em
totais. Desse ângulo, Machado foi um tremendo inventor, de extraordi primeira mão o universo inteiro, no caso Portugal e Itália, e barbarizan
ná ria a cu id ad e. Qua ndo o s n os so s es tu dios os s e co mpe net rarem d is so, do a filosofia, a ciência, a política, a poesia etc. segundo as conveniências
I

vão se dar conta de um literato de vigor insuspeitado. de seu interesse de liberal escravista e clientelista. Tratava-se da despro
vincianização, da universalização em sentido literal da conduta de nossa
M.: C ome nta ndo a d iferenç a e nt re o p rimei ro e o s eg un do Ma cha  elite, que passeava pela civilização contemporânea a marca registrada de I i

do , a crític a lemb ra razõ es de orde m b io gráfic a: a i dad e ma du ra , a d oen - seu procedimento ideológico, com efeito naturalmente deplorável.

223
222

Se voltarmos daqui à biografia de Machado, parece razoável v ersa li sta , tã o fra nc es a, nã o s e d es tin a a c onfun dir na me sma h uma ni
s upor que a virada corresponde
as relações entr e os proprietár ios
a uma nova convicção,
e seus dependentes
segundo a qual
não vão se resol ,
~::~
,~
dade os socialmente
ma nifes tar
opostos, mas a rir dessa hipótese,
a o rd em s oc ia l qu e o s o põ e.
bem como a

ver segundo as regr as da civilidade, porque o interess e dos primeiros


n ão é e st e. De sc re nte d e u ma s aíd a c iv iliz ad a, q ue h av ia d es ej ad o, e n ão M.: Há conexão entr e essas reflexões e os motivos que o levaram
vendo outra por perto, Machado inventou uma forma capaz de exibir a organizar o volume sobre Os pobres na literatura brasileira?
n a s ua e xt en sã o a d es trut i v id ad e d a c on du ta d e n os sa e lit e, e mb ora s em
S .: Vo cê vi u b em. Nó s to do s s abe mos , ma s c os tu ma mo s e sq uec er,
tr azer propostas de reforma. Com isso ele desorientou o mundo intei que
http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo o caráter irreal e o deslocamento da modernidade no Brasil não 111/124
ro, pois num país onde mesmo os conservador es sempre se entendem decorrem da incultura das elites, mas da situação apartada e da falta de
como reformistas, a ausência de proposta parece que só pode vir de direito em que vivem os pobres. Esta é a chave de quase todos os pro
a lg ué m s em e sp írito c rí ti co , i sto é, d e u m e sp írito me ta fí sic o. blemas políticos e es téticos do país. Não digo isso para desmerecer,
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
Seja como for, a inovação formal que sustenta as Memórias tinha ma s po r co nv ic çã o d e q ue s em e ntrar p or a í n ão s e e n te nd e ne m s e res ol
sim fundamento biográf ico - numa virada ideológica, numa opinião ve nada. Quem diria que um jogo tão britânico e requintado como o
nova e negativa a respeito do futuro próximo do país . andamento das Memórias póstumas está ligado às discricionariedades
de uma sociedade escravista e clientelista? Pois está. Com os ajustes
M.: Me chamou a atenção que você não analisasse "frontalmente" necessários, algo parecido vale para a rispidez de Graciliano, a male
o s a sp ec to s c éle bres d a ob ra ma ch adi an a, c omo p or ex emp lo a s fi gu ras molência de Mário de Andrade, o moder nismo de Oswald, o pr ofetis
femin ina s, o p es sim is mo et c. mo de Glauber etc.
S.: A lista pode ser ampliada, pois na verdade não há nada nas
Memórias que se possa tratar diretamente. Isso porque tudo no livro M.: Num trabalho como o seu, inter essado no social, não deixa de
v em a trela do a os rep en te s do n arra do r c ap ric ho so , e s e re de fin e n a rel a surpreender a pouca presença da questão da cor. Af inal, Machado er a
ção com eles, que não devem ser deixados de lado, sob pena de se per mulato.
d er o es se nc ia l d as s itu aç õe s. C as o e u e st eja c erto e a que le s c ap ri cho s S.: Vários amigos me f izeram essa objeção. Sem desejo de ofen
tenham caráter de clas se, toda a vasta matéria universalis ta do livr o, der, tenho a impressão de que se trata de um preconceito invertido,
a qu el a qu e d iz res pe ito a o h ome m di to " em g eral" , p as sa a t er e fei to irô segundo o q ual o assunto do homem de cor s ó p ode ser a s ua própria cor ,
n ico , p orqu e mu da in te irame nte d e s ign ific ad o s eg un do a s ua fun çã o d e sob pena de lhe faltar autenticidade. Mário de Andrade, num estudo
m om en to. E sta s em pre refle te , a ind a q ue à d is tâ nc ia , o de se qu il íb rio m ui to in ju sto e a rg uto , a firma qu e Mac ha do h avi a p erdid o a s ob rie da 
a troz d as rela çõ es s oc ia is bras ile iras e a d os e d e a rb ítrio q ue e sta s fac ul  de habitual, havia "mulatizado" ao adotar nas Memórias as fórmulas
tam aos de cima, arbítrio encenado e es tilizado nas guinadas do narra meio pedantes do humorismo inglês. Nesse plano tudo depende da
d or. A c omp le me nta ri da de e ntre o d es va li me nto de un s e a p re po tê nc ia acuidade fisionômica e é difícil dizer alguma coisa exata e limpa de
de outros transforma em sarcasmo a ps icologia univer salista que tem preconceito. Mário, que pr ezava a naturalidade r omântica e via nela o

f eito a glória de Machado de Assis, e que na ver dade, levado em conta caminho para um Brasil mais fraterno e menos convencional, enxergou
o s eu fun cio na me nto l ite rá rio e fe tiv o, s ó s erve p ara e sc arne ce r a i dé ia n o e mp ertig ame nto p ernó stic o d e Brás Cu ba s u m d efeit o p or as sim d i
mesma de universalidade. Uma fórmula pessimista não quer dizer o zer sócio-r acial. Passado o tempo, ficou mais difícil de aceitar a idéia
mesmo na boca de um cavalheiro bem tratado ou na de uma pobre ve - cara aos modernistas - segundo a qual o problema do país era um
lh a a co ss ad a p ela n ec es sid ad e. As má xima s d a p sic olo gia femin in a d ão certo formalismo, que uma boa dose de naturalidade e irr ever ência
res ul ta do d iv erso q ua nd o d es crev em a c on du ta de u ma mo cin ha p obre poderia derrubar. Se a espontaneidade e o desbocamento podem ser
ou de uma senhora elegante. Assim, a arte machadiana da fórmula uni- autoritários e conservadores, como agora sabemos, o formalismo e o

224 225

empetecamento podem ser recursos críti cos, coisa al iás que o autor da
" Ca rta p ra s I ca miab as " s ab ia melho r do qu e ning uém. Ass im, e m luga r
de ver a impostação algo encasacada da prosa das Memórias como
man if es ta çã o d e uma d ef ic iê nc ia ps ico ló gica e h uman a d e M a cha do de
Assis, desejoso de branqueamento, tr at ei de ent endê-Ia como parte da
c ompo siçã o c rítica d e u ma pe rs ona ge m co m f eiçã o d e c la ss e b em d ef i
nida e extraordinário alcance. CONVERSA SOBRE "DUAS MENINAS"*
Enfim, é muito verossímil que os problemas ligados ao preconcei
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to de cor estejam entre os móveis da arte li terária de Machado de A ssis.
Mas, enquanto a evidência não est iver aí, fi ca difícil falar a respei to. O
que não cabe é desconhecer a i mportância de uma obra porque ela não
5/17/2018 t rata os pr oblemas que em nossa opi niSchwarz, Roberto
ão o seu autor t eri a a obri-gação
SequenciasBrasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
de tratar. 1 . B ENTl NH O CO MO NAR RA DO R PA RCI AL

M.: No fi nal de seu li vro há uma defesa enfát ica do reali smo. Você Quando Dom Casmurro f oi p ub lica do , J os é Ver ís simo es cr ev eu
não está querendo fazer como Lukács e mandar todo mundo escrever à um coment ário que não entrava muito em matéria, no qual entretanto
maneira de Balzac?
observava, de passagem, que seria possível não acreditar nas acusações
S. :S e es tou b em lembr ad o, n ão r ec omend ei n enh uma f ór mu la r ea de Be ntin ho a Ca pitu . Pr ov ave lmen te ou tr as p es so as também n otar am
lis ta . M as ind iq ue i q ue a ob ra mac had ia na é p ro fun da men te pa utad a, no a e ve ntua l p ar cialid ad e d as a cus aç ões do n ar ra do r, qu e n o c as o e ra juiz
plano d a f o rma, pe la s iniqü id ade s c en tr ais d a s oc ie da de b ra sileira , e qu e e parte, mas isto não se tornou um elemento de interpretação. Lúcia
sua força vem daí . Ou melhor , procurei mostr ar o trabalho met ódico e
Miguel -Pereir a, num artigo dos anos 50, levanta a mesma hipótese,
inteligente através do qual Machado tratava de buscar, de tornar presen l at eral mente, e t ambém não dá continuidade ao assunto. Digamos que
te e ati va a cont radi ção social no i nt eri or de sua prosa. Isso vai cont ra a
n o g er al, a d es pe ito de ss as d úv id as e sp ar sa s, a de sc onf ia nç a d os leito 
p os iç ão a nti- re alis ta n a ve rs ão co rr en te e ntre n ós , a q ual ac en a c om uma
r es n ão qu es tion ou a p ro bida de d e Be ntin ho, o n amor ad o ac us ado r, mas
e sp écie d e tra ba lh o f or ma l a fa stad o d e c on tr ad iç õe s e xtra -e stétic as , o
a f id elid ade de C ap itu, a moc in ha d emas iad o ind ep en de nte e intelig en 
melhor caminho, na minha opinião, para a irrelevância.
te, além de pobre. Se não me engano houve até um congresso de advo
g ad os p ar a d eb ater , de ntro da s r egr as d a pr of is são , s e Ca pitu e ra o u nã o
culpada. É c la ro q ue u m c ong re ss o d es se s f ar ia as d elíc ia s d e Ma ch ado
d e As sis, q ue d e c as o pe ns ado h avia a rq uite ta do u ma s itua çã o inc er ta ,
estimulando um tipo de discussão apaixonada, um tant o boba e sobre
tudo sem resposta certa possível. Machado quis criar um caso cujo
c ombu stív el f os se o o bs cur an tismo f of oq ueiro do p úblic o: a va liou q ue
uma acusação de adult ér io com provas a favor e cont ra faria cócegas
no s s eu s c ompa tr io ta s, q ue f ic ar ia m d iv id id os , d is cu tind o du ra nte ce m
anos se Capit u era ou não uma trai dora. Foi o que aconteceu. Noutras
palavras, Dom Casmurro tem um lad o d e e nge nho ca hipe rc alculada , de

(*) Resumo deuma exposição feita aogrupo darevista praga em 1997.

226 227
J

romance policial, um recurso manipulativo e meio barato, tratado p rime iro p erío do . Gle ds on pe rc eb eu c la ra me nte tu do is so e e sc re ve u o
p orém d e ma ne ira s ofis tic ad ís si ma e g en ia l. e ss en cia l d o q ue eu p en sa va e sc re ve r.
As si m, nã o é q ue ni ngu ém tiv es se d es con fi ad o do Ca sm urro . Mas Vo cê s v eja m c omo o p ro ce ss o c ríti co é a ss oc ia do e o bj etiv o. Um a
mesmo quem desconfiou não extraiu daí maiores conseqüências. Até vez que um esquema analítico está em andamento, todos que tenham
q ue v eio H el en Ca ldw ell e s olu cio no u a q ue stã o, v erda de q ue s es se nta press upostos mais ou menos parecidos tendem a chegar a resultados
anos mais tarde. Como es trangeira e conhecedora de Shakespeare, ela s eme lh an te s. C on si de ra nd o q ue p or m eu la do e u ta mb ém a prov ei te i d os
ficou incomodada com a leitura patriarcal, torcida e bárbara que a ch ad os d o J ohn , a cho qu e s e t rata d e u m c as o s ug es tiv o d e c ol abo ra çã o
Bentinho faz de Gtelo, e tirou as suas conclusões. Machado, que era c ríti ca. Ali ás , a o l ong o d o p ro ce ss o, no s t orna mos g ra nd es a mig os .
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bom shakespeariano, achou que, ao f azer que Bentinho desse r azão a Co ntin ua nd o o trab alh o de le , o Gl eds on rein te rp re to u o Dom Cas-
a te Io c on tra D es dêm on a, e sta va d eix an do u ma p is ta im po ss ív el d e n ão murro, mostrando que esse romance, mais ainda do que Casa velha, é
s er n ot ad a p or s eu s c omp atriot as ma is i nte li ge nte s. Mas n ing ué m rea  a s ol uç ão e xtrao rd in ária d os p ro ble ma s m on ta do s n a ob ra d a p rime ira
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
giu. Não havia familiaridade suf iciente com Shakespeare, no Brasil, fas e. T udo o q ue a nte s d ei xa va a d es eja r a go ra es tá res olv id o. A c on sis 
para que uma dica dessas fosse um dado de interpretação decisivo. A tência do progresso liter ário de Machado é algo que ass ombr a. Resu
ma líc ia de Mac ha do fic av a s em e fe ito : o p aís n ão e st ava c ult uralme n mi nd o: H ele n Ca ld we ll i nve rte u a le it ura co rrent e, Si lv ia no S an ti ag o
t e ma du ro p ara e la , o qu e n ão d eix a d e s er i nte re ss an te . a ss in alo u a di me ns ão n ac io na l de ss a in ve rs ão , e o J ohn Gle ds on a p lan 
A vira-volta na interpretação de Dom Casmurro, fazendo que o to u n a e strutu ra s oc ia l bras ile ira, a o m os trar e m d eta lh e o s eu e mb as a
réu passasse a ser Bentinho, e não Capitu, foi o mérito de Helen Cald me nto d e c la ss e: al ém d e ma ri do c iu me nt o (âmb it o c on ju ga l) e b ac ha 
well. A mudança é das mais consider áveis, mas foi oper ada em âmbito rel ex-s eminarista (caracter ização cultural e ideológica), Bentinho é
restrito, digamos conjugal. a interesse da professora norte-americana herdeir o, vizinho rico, futuro patr iarca e chefe de clã, o que empresta
es tava centrado nos estr agos do ciúme, no mal que este faz ao amor. ao seu desgoverno temperamental uma lógica e um alcance específi
N a década de 70, Silviano Santiago deu continuidade a essa mes c os , e m q ue e stá e nv olv id a a s oc ie da de e m s eu c on jun to.
ma v irad a, a mp li and o e a profun da nd o a d is cu ss ão , a cres ce nta nd o e le  P or me u la do , ret om ei o q ua dro s oc ia l c arac te riz ad ame nte bras i
me nt os d e c arac te ri za çã o s oc ia l à fig ura do c iu me nto . A lé m d e ma rid o le iro q ue o G le ds on ti nha d el in ea do, e p ro curei e st uda r o s eu di na mis 
d es te mp erad o, Be nt in ho a go ra é a dv og ad o e ex -s em in aris ta . Co m is so , mo interno, em particular as suas relações com o movimento da prosa,
Si lv ia no d av a d ime ns ão n ac io nal a o c as o: trat a-se d a h ip oc ris ia b ra si  u ma d as s ut ile za s má xi ma s d e Mac ha do. A te nta ti va ma is a mbi cio sa d e
leira dos bacharéis e dos seminaristas. meu trabalho está na análise desse movimento, muito impalpável e no
a passo seguinte foi dado por John Gledson. No que me diz res e nta nto mu ito c on si ste nte . a p od er de Mac ha do c omo e sc ri to r v em d aí.
peito - já que estou dando um depoimento - foi um exemplo bonito El e é do no d e u ma p ro sa q ue d es do bra d e ma ne ira in criv elme nt e i nv en 
e interessante de colaboração literária. a Gledson leu muito bem Ao tiva e penetrante, embora oblíqua, uma problemática social ligada ao
vencedor as batatas. A pa rtir d aí e la bo ro u u ma in te rp re ta çã o c omp le sistema específico das diferenças sociais brasileiras. Assim, é impossí
ta me nt e o rig in al d e Casa velha, que me tocou duplamente, porque o vel avançar no estudo da sua escrita sem passar pelo drama social, pela

trabalho era muito bom, e também porque antecipava o que eu tencio drama tu rg ia i mp líc ita , e m e sp ec ia l p ela po si çã o e p elo s i nte re ss es p ar
n av a faz er. Meu p la no e ra e sta be le ce r, n um p rime iro pa ss o, a ló gic a d os ticulares do narrador, considerado como personagem. Em todos os
romances de Machado de Assis da fase inicial e, depois, explorar o romances de Machado de Assis, mas especialmente neste, você só
tema da transição par a a fase dos grandes romances . Casa velha é o a prec ia d evi dam ent e a p ro sa s e p a ss ar a nte s p ela co mp os içã o, p oi s e sta
livro estratégico para estudar essa transição. É uma pequena obra-pri d es lo ca a qu el a. A p ro sa d e B en tin ho foi s em pre ti da c omo u m e xe mp lo
ma, que vinha s endo subestimada, um livro no qual Machado s upera d e s imp lic id ad e e e le gâ nc ia , a q ue no e nt ant o, s e eu e stiv er c erto , é p re 
va, de modo rigoroso e ponto por ponto, as fraquezas da ficção do seu ciso fazer uma restrição capital: vista a situação, é tu do fals o (o q ue lit e-

228 229

rariamente não é um defeito!). Machado compõe paradigmas de ele exploração literária, em verso tanto quanto em prosa, da especificida
gância que são ápices de falsidad e, e é aí qu e reside a ousad ia, a sua ver de das relações sociais brasileiras até aqui praticamente não foi objeto
dade artística. Nenhum patriarca brasileiro foi tão elegante na dicção e de pesquisa. Insisto nisso porque vejo aí um prog rama d e estudos.
na h ipocrisia quanto Bentinho, razão pela qual esta última passou des Não que a crítica brasileira não tivesse po sição social. Uma parte
percebida. Aidéia de aperfeiçoar a falsidade, como parte de um intuito era e talvez ainda seja de esq uerda e progressista, tomando o partido
crítico-destrutivo, é artisticamente pérfida. Por que aperfeiçoar o que dos de baixo no p lano das personagens ou da lin guagem. Acontece que
se quer derrubar? Para derrubar de mais alto? Quando o artista aperfei por alguma razão, sob re a qual valeria ap ena pensar, esse ponto d e vista
çoa uma posição, o público naturalmente pensa que é por coincidir com teve dificuld ade para se tornar produtivo no plano da análise estética.
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ela. Ocorre que em Machado o caso não é este, antes pelo contrário. O É como se ao afirmarem o valor crítico da arte moderna, bem como a
que dá uma idéia do requinte sarcástico da sua composição. Ele fabri importância geral da dominação de classe, da exploração econ ômica e
cou, digamos, uma prosa discreta, distinta, em meios-tons, ideal para ... da hegemonia ideológica, os críticos e professores ficassem impedidos
5/17/2018 confirmar preconceito s co nservadores Schwarz,
e funcionar Roberto -Sequencias
como ideologia no Brasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
de olhar e estudar asformas efetivas que haviam tomado essa mesma
pior sentido da palavra. Um modelo de simplicidade visando esconder crítica, dominação, exploração e hegemonia. Talvez porque a literatu
uma configuração social muito desigual e difícil de defender. Isso é ra não estivesse apontando na mesma direção que os esquemas da
coisa q ue se faça? Po r ou tro lado, ao depurar a pro sa conservadora e ao esquerda? Seja como for, opasso da generalidade bem-intencionada ao
colocá-Ia em circunstâncias indefensáveis, Machado lhe sublinhava os esforço real d e conhecimento é difícil de d ar.
mecanismos, com sarcasmo verdadeiramente máximo. Enfim, pro  Isso não vale só para a esquerda de inspiração social. Valeu tam
curei detectar e analisar movimentos dessa espécie. bém para a esquerda de inspiração lingüística, se é possível chamar
assim a voga estruturalista que sucedeu àvoga marxista. Apartir de cer
to momento, os estudos da linguagem artística modernista passaram a
2. UM PROGRAMA PARA A CRÍTICA LITERÁRIA BRASILEIRA
se governar pela noção de progresso imp lícita no trabalho do s poetas e
críticos concretistas, a qual envolvia um esquema abstrato de moderni
Retomando de outro jeito, são passos críticos que dependem de zação. O que não deixava também de ser uma simpatia inespecífica
uma análise precisa das relações sociais. Aliás, um fato característico p elo progresso, incapaz de penetrar no intrincado de seus problemas.
da crítica brasileira é que nela, freqüentemente de intenção muito Os escritores passavam a ser bons conforme usassem a linguagem de
so cial, p raticamente não há análise de relações so ciais. O p rimeiro no maneira experimental, ou segundo oscacoetes correspondentes. Quan
Brasil que fez análise social minuciosa, como parte íntegra da reflexão to mais experimentais e anti-realistas, mais avançados, ficando pressu
estética, foi Antonio Candido nos ensaios sobre Memórias de um sar- posto um contínuo de modernização - que não existe! - com ponto
gento de milícias e O cortiço, que por isso mesmo abriram perspectivas de chegada na vanguarda européia. Aidéia de qu e esta última fosse um
críticas novas.
processo linear de racionalização da linguagem não resiste à verifica
A sociedade brasileira é evidentemente sui generis, diferente das ção histórica. E muito menos cabimento tem imaginar que Oswald d e
ou tras por causa da p arte que o trabalho escravo teve em sua formação. Andrade estivesse correndo em linha reta para a frente. Oswald opera
Ela tem um sistema de relações sociais próprio, mas não ocorreu à crÍ va uma aliança entre posições avançadas, de inspiração vanguardista
tica que esse sistema tivesse potência estruturante do ponto de vista européia, e outras ligadas ao "atraso" brasileiro. O extraordinário inte
estético. Ora, um bom escritor desenvolve as relações sociais inscritas resse da obra dele não se entende fora dessa mistura, perfeitamente
em seu material- situações, linguagem, tradição etc. - segundo um especificável.
fio próprio, quer dizer, próp rio às relações e próprio ao escritor: um fio Hoje está na moda dizer que as relações sociais são ling uagem, o
que é de livre invenção, mas nem por isso é arbitrário. A retomada e a que certamente é verdade até certo ponto. Para a crítica literária, acho

230 231

I
mais produtiva a verdade inversa, segundo a qual a linguagem - e em h is tór ic o e intelec tu al. Nen huma s ociologia n o B ra sil d eu c on ta d e o pe 
especial a linguagem artística - é ela mesma uma relação social, que r ar c om es ta co ns te laç ão . É da natureza do saudosismo de G ilberto
precisa ser vist a no seu corpo-a-corpo com as out ras, a que trat a de dar Freyre separ ar esses termos. No caso de Cai o Prado J r., que é progres
f igur a. A especifi cação das relações sociais e sobretudo da posi ção sista, t ambém se toma só um l ado. O passado apar ece em sua obr a ape

jt
s oc ia l e nv olvida n o tra to c om a ling ua gem, n a ex pe rime ntaç ão a rtís ti nas como algo a ser superado. Em Machado, não. A constelação de
ca, é um t rabal ho que est á prati camente todo por ser f ei to. Se você per h er an ça c olonial e r ac ion alida de b ur gu es a e stá es ta biliza da e nqu an to

iI
gunt ar qual a posição social da pr osa de Gracil iano Ramos, ninguém p re se nte pr ob le má tico, u m u nive rs o a s er e xp lo ra do e m s imes mo , c om
sabe. Afi rmar que o autor é comunista não quer di zer quase nada. Qual os dois pólos postos em questão, o que é mais real, de certo modo, que
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a posição social da prosa de Guimarães Rosa? o progressismo ou o saudosismo dos dois grandes historiadores. No 115/124

Na críti ca eur opéia a históri a social e o confli to de classes estão B ra sil, o s oc ió lo go c om e ste po nto d e v is ta f ac ulta do p ela o br a mac ha 
-
mais ou menos mapeados. Há terreno comum ent re a consciênci a his diana ainda não existiu.
5/17/2018 tór ic a e a c rítica d e a rte. No Br as il, n ão. Schwarz,
a dian tad a o u mais d if er en ciad a
A b oa liter aturRoberto
a b ra sile ir a -éSequencias
d o q ue o s n os so s h is to riad or es
logo s. A c rítica liter ár ia a qui s e vê diante da ins uf ic iê nc ia
soci ais. D igamos que a versão que Mar x dá par a o século
o r omance r eal ista europeu, com as di ferenças
XIX
mais
e s oc ió 
d os es tu do s

de cada caso. No Brasil


a ju da a ler
lI
Brasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
"

,! 3. OS DESASTRES

Comecei
DA TEORIA LITERÁRIA

a me interessar por crítica literária mais ou menos em


a s ituação é outra: munido de G ilberto Freyre, o crí tico brasilei ro não 1957, no tempo em que oNew Criticism estava ent rando em voga. De
entende Machado de Assis . Pi or ainda se qui ser f azer uma apli cação lá para cá, de tempos em tempos entra em cena uma nova teoria com
d ir eta d e Ma rx . Daí a n ec es sida de d e s e e smiuç ar em c om ind ep en dê n ter minologia e sp ec ia liza da , q ue d es qu alif ica a a cu mulaçã o e r ef le xã o
cia as relações sociais próprias à obra. Em vez de chapar os lugares an ter io re s, mas s em q ue ten ha h avido c rítica ou s up er açã o. I sto f unc io
comuns da sociologia, local ou de outro cont inent e, que raramente se na como um biombo, que baixa do céu, dos Estados Unidos ou da
aplicam sem mai s, é preci so ir ao texto e reconst ituir com as própri as Europa, de repente, e que impede que se veja e aprofunde o que vinha
palavras dele o seu si stema social im pl ícito. Fei to isso, rapi damente s e s ed imen ta nd o e qu e imp or ta a na lisa r. Dian te da d es co ntin uida de
a lg uma c oisa s e dife re ncia. Nos e sc rito re s b on s, o s is te ma s e es tr utur a, de sn ec es sá ria, c omo nã o a ch ar q ue s omos b ar atas ton ta s?
escapa ao quadro previst o e ent ra em terreno conceitualmente novo, É claro que temos de l er a teoria contempor ânea para fi car em di a
capaz de revelações. com o debate, que é sempre signifi cat ivo de alguma coisa. Mas adotar
V ol temos ao caso de Machado. Gi lberto Freyre tem uma descri  os seus t er mos sem mai s aquel a, não. Muito pelo contrário, a ver ifica
ção desenvol vida do que se poderi a chamar a molécula pat riarcal bra ção das concei tuações at uai s a part ir da nossa experiência hist óri ca, a
sileir a, mas ele trata o assunto em veia saudosist a, uma coisa que est á r elativ iza çã o e a c rítica q ue p ode m r es ulta r da í s ão u ma d as c ontribu i
no passado e se está perdendo. Em Machado de Assis esta molécula ções que podemos dar de fato.
também existe, mas ela é diretamente confrontada, o tempo todo e no Um bom exemplo é a teoria do narrador que não é confiável (a
p re sen te, a o pa dr ão d e r ac io na lida de b ur gu es a, d ad o na p ro sa an alític a Retórica daficção d e W ay ne Bo oth) , qu e a ju da a ler M ac ha do d e Ass is ,
tipo século XVIII. V ocê t em aí o universo da dominação e af et ividade poi s mostra que ele f az part e de uma tradição ilustre e pouco conheci
"tradicionais" - a m olécul a pat riarcal- combinado com uma li ngua da. Por outro lado, é certo também que ela atrapalha, pois funciona
gem anal íti ca e raci onal. O s uni versos que em Gil ber to Freyre correm como uma espéci e de gramát ica ger al das posições dos narradores.
separados, um no Brasil, outro na Europa, um no presente, outro no O perando com N a rrador e Lei tor, Confiança e D esconfiança, com ter
passado, em Machado estão i mbr icados, são simult âneos, criando um mos universali stas, el a cega para articulações hist or icament e mais
e spe lha me nto r ec íp ro co , u ma r elativ iz aç ão mútua de g ra nd e a lc an ce e sp ec íf ica s, qu e e stetic amente s ão a s d ec is iv as . Be ntin ho c er ta me nte

232 233

nã o é fi dedigno como nar rador, mas i st o é di zer pouco. A s ua desleal  De po is d e 1 96 4 a v isã o e sp eran ço sa , lig ad a a o p op ulis mo e à s s ua s
d ade n arra tiva tem c oo rd en ad as h is tó rica s e d e c la ss e p re cisa s, q ue p er p ro me ss as , a ca bo u. Da í a a tu alid ad e d e M ac ha do d e A ss is qu an do m os 
ten ce m à c on figu ra çã o s oc ia l b ra sile ira, u m q ua dro d e d omina çã o e ini t ra que não é para acr edit ar em nada que as pessoas be m-post as dizem,
qüida de que é onde ela adquir e o se u al cance pr ópr io. A conste lação mesmo se as pal avras forem elegant es. A vis ão machadiana das r ela
forma l mo de rn a tem c hã o h is tó rico p articu la r. ções de classe, muito cruel e desabusada, de repente ganhava outro
peso. Machado de Assi s não havia si do um escr it or i mport ante no pré
64. Foi este o ano que forneceu a ótica nova, que permite dizer que o
4. MACHADO DE ASSIS E A HISTÓRIA RECENTE autor decisivo brasileiro - o que entendeu as nossas relações de clas
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se - é Machado de Assis e não José de Alencar. Ouvi coisas engraça 116/124
Desenvolvi a maior parte do meu trabalho quando estava na das a respe ito, vindas do Glauber Rocha, que ti nha rai va de Machado.
França, na época da ditadura. Esta me abriu os olhos para certas qua Os escri tores pre feri dos dele eram Eucli des e Alencar , os aut ores épi 
li dades de Macha do de Assi s, não há dúvi da. At é 1964 dominava uma c os , e ntus ia stas , s ofre dores retum ba ntes , n ac io na listas , e nfim tud o q ue
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
visão mui to posi ti va da modernizaç ão. A esse r espeit o é i nter essante a pa rti r da cri se do populis mo apr endemos a consi derar empul hação.
notar que Machado de Assis esteve bastante fora de moda entre a M as n aq ue le tem po , a ntes d a Q ue da , a p olariz aç ão Alen ca r-Ma ch ad o
época del e e a década de 30, quando s aíram os bons es tudos de Augus exis tia , com part idári os de um e de outro. Apesar do arcaí smo, o gosto
t o Meyer e Lúcia Mi guel- Pe reir a, mai s as publ icações sus cita da s pel o d a e po pé ia e d a fus ão p op ular e ra m tema s d a e sq ue rd a. S ó d ep ois c ome 
centenário do escritor, em 39. Mesmo assim, Machado não foi pro çamos a dizer que as coisas não são bem as sim. O ce tici smo machadi a
pr iamente incorpor ado, sal vo na ver tente of ici alis ta. Pa ra fazer uma no s ó pass ou a ser entendi do como acuidade hi stór ica depoi s de 64.
ressalva, é possível dizer que, de um jeito ou outro, Oswald de L ev ei mu ito temp o p ara e sc re ve r Um mestre naperiferia do capi-
Andrade é machadiano, pela desfaçatez do narrador e pela maldade talismo. Estava t erminando a redação no t empo do Collor , cujo gover
dos pastiches. Mas isso ninguém sabia, o próprio Oswald não subli no tinha a ver com a franja crapulosa dos romances machadianos. De
nhava, não era um tema. Como Machado é muito ácido e pouco oti repente me pareceu que eu iri a t ermi nar um l ivr o muito atual . Um l ivro
mi sta , os moder ni st as não gost avam dele. Mári o de Andrade ti nha uma que es tava escreve ndo havia mais de vi nte anos, sobre out ro, es crit o
aver são deci dida pel o Mest re, embora o admi rasse mui to e s oube sse h av ia ma is d e c em, q ue e stav a e m p ro ce ss o d e rejuv en es cime nto.
como ni ngué m que s e tra tava do maior escr itor brasi lei ro. Mas Mári o Em Duas meninas não há, c omo em M achado de Ass is, a questão
s impat izava com o bra sil eiri smo r omânti co, com a queda pela l ingua da elite crápula. No diário de Helena Morley o assunto é um arranjo
gem mai s nat ural, famil iar mesmo quando empol ada, com uma espé s oc ia l b as ta nte s imp átic o, m uito o ca sion al, d ev id o a u m interre gn o e co 
cie de sincer idade naci onali sta, afast ada das conci sões do ceti cismo e nômico que vai se desfaze r ass im que o progress o re tomar . Es tá la nça
do cini smo. Iss o corres ponde à idéi a de que a el it e brasi lei ra, com si n do o t ema do progr esso que não t raz progres so e que não s ó n ão r esolve
ceridade, com boa vontade e com abertura para o povo, que era como c omo tam bé m a grav a m uita c oisa . É u m tema g eral d a h is tó ria b ra sile i
que a sua família, iria arrumar esse país. Era um pouco a maneira com ra de sempr e, que se reapre sentou em 1964 e que, em cert a medida, est á
que Mário e o Modernismo se viam a si mesmos. p ro va ve lme nte s en do ree dita do n es te m ome nto. Ob viame nte m eu liv ri
E ss a foi a s en sibilida de b ra sile ira d omina nte a té 1 96 4. Q ua nd o o s nho não é uma tese especí fica sobre a si tuação polí ti ca atua l, mas t em
militares tomaram o poder, com vasto apoio na elite, veio à frente um u ma relaç ão a lu siva c om a s c arac te rístic as d o p ro gres so d o p aís. T ra ta 
outro sent imento, segundo o qual a si nceri da de e as s impa tias popula s e d o tema d a m od erniza çã o s em c omp ro miss o c om a integ ra çã o n ac io 
re s da cult ura ofici al nã o eram tão confiávei s assi m. Surgia uma nova nal. Um aspecto surpreendente do livro de Helena Morley é que você
visão des il udi da e amar ga da el it e bras ile ira, que no ape rto acei tava sente uma espécie de progresso social e de "humanização" que, por
qualquer negócio. vezes, pode ac ompanhar a falt a de progr esso e mesmo a regr essão eco-

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nômica. Tendemos a uma noção muito economicista do progresso, mas prévi as, pos tas pel a vida prát ica, sobr e as quai s el e tr abalha, o que
s eg un do a q ua l a s c oisa s s ó p od em m elho ra r qu and o h á p ro gres so m ate j usta mente dá a pos sibi li dade de ref let ir s obr e a forma de uma mat éria
r ial . O int eressant e, o sugesti vo nas memóri as de Helena Morl ey é que que não tenha si do obj eto de uma operação art ís tica se parada. Todos os
vemos uma cl ara invol ução econômi ca pe rmi ti ndo que a s ociedade s e que leram O capital sabem que ninguém é mais f ormal ist a ou est rut u
acomode de ma neira bem mais aceit ável. I sso é inter essant e não como ralista que Marx e que ninguém é mais atento que ele à dialética entre
rec eita , ma s p or relativ iz ar a p ro eminê nc ia a bs oluta d o p ro gres so e co  forma e matéria.

nômico. No li vro de Hel ena Morl ey você vê que o moment o de estagna A t eori a crít ica cor rente, ao dizer que f orma é o que o arti sta cr ia e
ção é compatí vel com r eacomodações val iosas . A pressã o do dinheir o impõe, ao pas so que a m atér ia ela mes ma nã o t em forma al guma, é j eju
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d iminu i, faz en do c om q ue o utro s e le me ntos interfira m ma is . A g ra nd e na a esse res peit o. Par a esse pont o de vis ta, é impos sível que o li vro de 117/124
humanidade do li vro tem a ver com i sto. Helena Morley seja bonito, já que ali não há forma. E de fato, a forma
Esse t ipo de lei tur a, em que você expl ora o det alhe e o movimen explí cit a, de pri mei ro plano, é míni ma. São entradas de um diár io, que
5/17/2018 t o d a pros a de maneira a lusi va a o p resent Schwarz, Roberto
e, é um trunfo -Sequencias
da c rít ica de ins Brasileiras
vão [Livro
de uma aCompleto] -slidepdf.com
três páginas, com data em cima, e ponto. Entretanto, ao
piração marxista. Se há correspondência entre a estrutura social e a entrarmos em matéria, que foi o que fiz, veremos que as anedotas têm
estrutura da obra de arte, a dinâmica interna de uma tem a ver com a da organi zação notável , apresent am relaç ões profundas ent re s i, em boa
out ra, e é possível es tudar e es crever t endo em mente as suas relações p arte s em d elib eraç ão, e m s uma , u ma a rq uite tu ra e sp lê nd id a, d en tro d e
d e e xp licita çã o, a profun da me nto, ins ufic iê nc ia , a ntec ip aç ão, a tras o uma absoluta modéstia.

et c. Na mi nha opi nião este é o ângulo capaz de dar c ont a da r elevânci a Como persuadi r di sso o l eit or? Tent ando a paráfr ase dos res ulta
da elabor ação art íst ica, ou mel hor, é o ângul o que int eressa a que m tem dos. El a pode sati sfazer ou nã o, ou pode sat isfaz er só e m part e. A pará 
a c on vicç ão d e q ue a e la boraç ão a rtís tica d e fato tem relevâ nc ia . fr ase pode convencer, por exempl o, quant o à complexi dade da soci e
dade brasileira, mas não quanto à vida complexa do livro, que nesse
caso f uncionará apenas como mat eri al. A minha i ntenção era que fun
5. FORMA OBJETIVA EM MINHA "VIDA DE MENINA" cionas se est eti cament e. Tentei sugeri r um modo de l er apropr iado à
compl exidade de um grande romance. Se o diári o de He lena sus tentar
Escr evi o ensa io sobr e Helena Morl ey porque achei o li vro mui to esta leitura, de tipo cerrado e exigente, ganhei a minha aposta, que
bom. Ele tem qual idade li terá ria alt a, numa forma que não a pr esenta depende justamente da "objetividade da forma" de que estivemos
m aior inten çã o literária . É uma questão int eressa nt e para a crí ti ca. falan do . P ro cu re i e xp licita r n ex os e stru tu ra is d a ma té ria, q ue s ão tam
Fiquei mais interessado ainda quando me convenci de que Helena e b ém forma s q ue n ão foram tra zida s c omp le ta me nte à superfície, não
Capit u são pareci das. Como expli car a semelhança entre um li vro s em elaboradas e, sobretudo, não glosadas. No romance, em geral, a uma
p ro pó sito literário e o utro d e c omp os iç ão e la bo ra da a o má ximo ? A re s certa altura, o narrador glosa as formas, comenta o que aconteceu,
posta passa pela noção de "forma objetiva", segundo a qual a forma subli nha as li nhas pri ncipais . Não há i sso no l ivro de Hel ena Morl ey,
e xiste, s en do o u n ão s en do fru to d e inten çã o a utoral. É uma noção cor  que não é um romanc e. Então, aqui, você depende t otal mente da ati vi

ren te n a tra diçã o h eg elia no -ma rx is ta , e m e sp ec ia l a a le mã , ma s p as sa  dade do l eit or, que busca ou não bus ca ess as r elações. Se buscar , e ve n
vel ment e i ndigest a para o mainstream d a c rítica a tu al. O p re ss up os to t ualmente dir á que o livr o é capaz de dar gr andes emoções es tét icas. Se
geral desse mainstream é que o mundo é um caos e a f orma é posta pelo não buscar , vai i ncorporá- Io de outra for ma, inter essando-s e apenas
a rtis ta , u ma c riaç ão d es te . A ma té ria é informe e o a rtis ta lhe imp õe u ma pel o mater ial. Se j a dit o de pass agem que a exigênci a de uma l eitur a ati 
f orma. As pessoas de tradi ção marxis ta, pel o contrár io, est ão acost u va, que não se l imit e ao padrão passi vo da lei tur a corrent e, é um a spec
madas à i déia de que o p roce sso obj eti vo é el e mesmo for mado. I sto não t o decis ivo da li terat ura moderna, em senti do própri o, aquela que bus
quer dizer que o artista não invente uma forma, mas que existem for- ca o inconformismo.

236 237

6.A COMPARAÇÃO COM "DOM CASMURRO"

A comparação de um livro que não consta do elenco das grandes


obras brasileiras com outro que possivelmente seja o melhor de todos
n atu ra lme nte t em um t ant in ho de p ro vo caç ão . Mas g aran to a v oc ês q ue
o meu propósito principal não foi o de mostrar originalidade. Eu esta
va interessado em explicitar o sistema de relações sociais, pontos de
CONTRA O RETROCESSO
v is ta , regi stros d e di cç ão e tc . q ue foi e ng en drad o p ela h is tória d o p aís e
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que pode tanto animar uma obra artística máxima como organizar o 118/124
diário despretensioso de uma adolescente. É is so q ue c ha me i de " ma té 
r ia brasileira". Vocês notem que no meu estudo esta não aparece como
ponto de partida, mas como r es ultado de observação e objeto de análi
5/17/2018 Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras[Livro Completo]-slidepdf.com
se: ela está lá, em dois livros, de modo muito difer ente, que no entanto Min ha mu lh er e e u h o je le va nta mo s c ed o p ara c omp ra r um a p ont e.
devem a força, todos os dois, à profundidade com que souberam se Ao q ue d iz em s erá a úl tim a p ri vat iz aç ão rea liz ad a no pa ís . A p in gue la
situar diante dela - esta "forma objetiva" - e desenvolvê-Ia. Um foi construída há muitos anos pelo Estado, mais precisamente pelo
resultado s imilar pode ser obtido pela anális e de muitas outr as obras cunhado do prefeito. Ela vai de um lado a outro do córrego e é atraves
i mp orta nte s da c ult ura b ra sile ira, s us pe it o q ue p os sa m s er qu as e t od as . s ada p or p ra tic ame nte t odo mu nd o v ária s v ez es a o d ia . A s ua ut ili dad e
S e for as sim, s eria p os sív el c on clu ir q ue a h is tó ri a do mu nd o mo de rn o e st á fora d e d úv id a. Ta lv ez d e c as o p en sa do , o e di ta l d a v e nd a n ão e xp li
c ri sta li zo u n o Bras il u ma p ro ble má ti ca , p ara ma l e p ara b em, ma is p ara ca s e o g ov erno c os tuma va c obrar p ed ág io d os mo ra do re s. S ab emo s q ue
ma l, qu e te leg uio u c on sc ie nte o u i nc on sc ie nte me nte o s t ra ba lh os d ec i não, mas é claro que a intenção do comprador não pode ser outra. De
sivos de nossa cultura, que a procuram explorar e solucionar de uma min ha p arte , qu e n ão s ou d o ramo , c on fe ss o qu e e st ou m e a pres en ta nd o
forma ou outr a. Nada mais natural, por outro lado, que imaginar que a à l ic ita çã o ma is p or c urio sid ad e. Uma p in gu eI a n ão h á d e s er c ara e p od e
e strut ura h is tóric a d e n os sa s oc ie da de, e m pa rt ic ula r o s s eus a sp ec to s s ervir d e e ntrad a a q ue m e stá à m arge m d a a ti vi dad e e con ômic a mo de r
ma is in su ste ntá ve is , ma s ta mb ém o s ma is s im pá tic os , s eja m o e nc argo
na. Foi a leitura da página de economia dos jornais que me alertou con
d e qu e no s c ou be e xtrair o s en tid o q ue a ca so te nh am os .
tra o pe rig o d efic ar p arado . Ain da a ss im, a h ipó te se de s er d on o d a p on te
me p ertu rba e p arece u m s on ho . Nã o e sta re i repe tin do o p ap elã o d o c ai
pira esperto que comprou um bonde? Anedotas à par te, o que pensar de
minha repentina taquicardia, sem mencionar o surto de caretas indignas,
e m q ue n ão me rec on he ço e q ue me d es eq uili bra o e sp írito ? A pi ngu ela
é p ouca cois a, mas muda tudo, se o n egócio for f eito. As idas e vindas no
município nunca mais serão as mesmas, e também eu sairei alterado.
Ter ei ainda a força de pas sar por alto, de deixar sem comentário a ino
c ên cia d os p ato s? O c api ta l n ão ri e n qua nt o cres ce. Aos patos do mundo
inteiro, aquele abraço! No m eu s onh o, a lé m d e pa ga r, t odo s o s u su ário s
me d arão u m a lô , q ue n ão es ta re i lá p ara rec ebe r, d evi do a os mu ito s a fa 
z eres . Ac ho i ndi sp ens áv el o a lô p elo c on se ntim en to q ue e le e xp rime .
N ão p en so e m mim , ma s n a s aúd e p sic oló gic a d o p ov o, a q ue o c os tu me
da cortesia por ocasião dos pagamentos dará a convicção do próprio

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valor. Se pagam e agradecem, aparecem e existem. Isso no sonho, por Disse à minha mulher, um tanto quanto vaga no que respeita à ordem
que na realidade sou um homem esclarecido, amigo dos fatos, avesso às alfabética - razão pela qual em casa sou eu quem consulta listas tele
finezas com que uns e outros gostam de ornamentar a simplicidade das fônicas e enciclopédias -, que buscasse o termo ela mesma. A humi
coisas. Nunca me convenci por exemplo de que a propriedade fosse o lhação só não se consumou porque ela atirou o dicionário à minha ca
coroamento do mérito. Nem apelo para o destino para explicar a exis beça, deixando-me na testa esta cicatriz, de que sem hipocrisia me
tência dos miseráveis, que considero efeito normal da falta de dinheiro. orgulho e que considero algo de forte que a vida me deu. E aliás devo
Assim, não fujo aos problemas morais difíceis colocados pela privatiza dizer que numa mulher de juízo tão fulminante a insegurança quanto à
ção da ponte: por que eu? Por que não outro? E por que não eu mesmo, ordem convencional das letras, causada embora pelas carências da
não havendo desfeita para os demais? No meu entender, os paradoxos
http://slidepdf.com/reader/full/schwarz-roberto-sequencias-brasileiras-livro-completo escola secundária em nosso calamitoso país, é um traço de adorável 119/124
dajustiça e injustiça desembocam num vale-tudo, o catch-as-catch-can superioridade, a que só um marido trivial não saberia se curvar.
dos anglo-saxões, preferível todavia ao igualitarismo doutrinário de Hoje cedo a minha cegueira era sincera e fui franco ao dizer que
5/17/2018
1793 ou 1917, quando semanifestou a Schwarz,
falta depragmatismo dos latinos minha[Livro
Roberto -SequenciasBrasileiras mulher Completo]
procurava pêlo-slidepdf.com
em casca de ovo. As privatizações esta
e dos eslavos respectivamente. vam terminando porque estavam terminando, ora essa, e neste passo
As perguntas de minha mulher vão noutra direção. Ela quer saber era inevitável que chegássemos tarde à licitação. Assim, nem sempre o
por que sediz que asprivatizações acabaram. Custei aperceber o alcan discernimento é bem recebido, pois há coisas que o ser humano prefe
ce da dúvida. Como sempre nessas ocasiões, a tormenta fechou o céu re ignorar. Nossa guerrilha matutina corria tranqüila e minha mulher
em questão de segundos. A inteligência de minha mulher é rápida e vai me parecia perdida como de costume num mato de suposições e distin
direito a um ponto que nem sempre ela sabe explicar. Eu sou mais aca ções que não fazem diferença, quando senti vacilar o chão. Por mais
dêmico e não argumento mal, porém desconfio que aqui e ali falte que me contrariasse, O argumento caminhou dentro de mim com clare
assunto às minhas dissertações. Muitas vezes nos completamos, ela e za, como se eu estivesse a seu favor. Há momentos em que nós não
eu, ep osso dizer, com am ão na consciência, que não me queixo do esta somos nós. Ato contínuo passei ao obscurantismo deliberado e furioso,
do conjugal. O afeto, a confiança, a cumplicidade sem a qual não tería que entretanto não durou vinte minutos, pois o interesse falou mais alto
mos visitado o Egito nem nos animaríamos a investir na ponte, tudo e reconheci, com admiração espontânea e sem reservas, a qual é um
isso é invulgar e me enche a alma de satisfação. Sei o que a minha vida reflexo caro a meu amor-próprio, que mais uma vez não era eu quem
ganhou com o casamento e o que perderia sem ele. Ainda assim, um tinha razão. Uma coisa é não haver mais nada aprivatizar; outra é a inu
nada muitas vezes desata os elementos. Entre a incompreensão obtusa tilidade de seguir privatizando. Qual seria o nosso caso? É em circuns
e a implicância atilada os canais são múltiplos, e longe de mim a pre tâncias como essa que lamentamos a falta de uma experiência de vida
tensão de saber qual das duas provoca animosidade maior. A questão mais ampla, que permita opinar com propriedade sobre a solidez da
desperta a minha curiosidade, e gostaria de aprofundá-la em outro ordem vigente.
momento, quando não fosse suspeito de argumentar em causa própria. A mercantilização é a tendência de nosso tempo. Entendo que
Seja como for, o fato é que nunca deixei de saudar com pânico e eufo estão comercializando o espaço sideral e submetendo aoregime depro
ria a irrupção em cena dessa outra mulher mais ríspida, de mãos na cin priedade privada a fórmula dos genes, em detrimento do Brasil.
tura, que ri alto e com desplante das razões que alego. Quanto a mim, "Entendo" é maneira de dizer, pois imagino que até poupadores mais
os meus amigos, que de um modo geral são pessoas educadas, ficariam atualizados do que eu não meçam o alcance desta marcha. Em linha
surpresos de ver a determinação selvagem com que nessas ocasiões de com ela, o arrendamento da Rua Central, a terceirização da primeira
beligerância insisto no uso apropriado das noções, aponto erros de missa, nos dias úteis, e apróxima privatização da pingueI apodem mes
raciocínio ou gramática etc. Certa vez, diante de um impasse dessa mo ser os episódios finais de um processo que se completa e não deixa
ordem, me neguei a procurar no dicionário a palavra controvertida. nada de fora. Os céus, a estrutura da vida, a pingueI a, foi-se tudo. Não

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que eu lamente a extensão das operações de compra e venda à totalida te, com benefício geral. No conjunto estas relações participam de uma
de do cosmos, fora e dentro de nós. Como todo mundo, sei que se não forma superior de civilização, contratual e consentida, com meandros
fosse assim seríamos presa da irracionalidade, que leva ao totalitaris de ironia e desprendimento, privação aqui e plenitude adiante, umjogo
mo. A emoção que senti quando mentalmente me alistei entre os possí de embates e reciprocidades que me comove até o âmago, e que, para
veis compradores da ponte liga-se a essa ordem de idéias vitoriosas. Só tudo dizer, resume a minha idéia de humanidade, música e beleza. Sem
a disciplina do mercado imprime razão ao interesse dos indivíduos. Se estas considerações talvez não se entendesse o efeito de ducha fria do
é permitido sonhar, o princípio chegaria à vigência benéfica plena reparo que me esperava. "Mas quem vai pagar o pedágio que tornará
quando a desestatização alcançasse o oxigênio que eles respiram. Vejo rentável a pinguela? Os desempregados?" A pergunta não é descabida,
daqui os narizes se torcendo para o exagero demagógico dessas pala como eu mesmo fui capaz de reconhecer, passado um momento. Trata
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vras, já que apressão domercado normalmente seexerce através depri se de mais uma intuição desassombrada de minha mulher, que procura
vações com efeito menos direto, como por exemplo a fome. Mas o aplicar bem o nosso dinheiro, no que tem razão e o meu apoio. Aí esta
raciocínio não é tão infundado como sepensa, e a raiva que me dá quan va aliás a prova de que a cessação das privatizações pode ser vista de
5/17/2018 Schwarz, Roberto -
do olho as pessoas respirando de graça tem igual só na raiva que meSequenciasBrasileiras [Livro Completo]-slidepdf.com
diferentes maneiras. Por que então o tumulto interior que as formula
daria ter depagar para respirar por minha vez. Dito isso, não estou que ções dessa espécie me causam?
rendo sufocar ninguém, e tenho a certeza de que o pedágio na pinguela Não quero passar por melhor doque sou. Como toda pessoa adian
colocará ordem e sentido no vaivém de meus conterrâneos, que conhe tada, me dou conta do papel determinante da economia na vida moder
cerão o preço de seus caminhos. Deixemos porém os devaneios e trate na, e discordo do idealismo dos socialistas. Não me escapa que a ponte
mos de chegar a tempo à licitação, última oportunidade para que mi será mau negócio se os pedestres estiverem sem dinheiro no bolso, e
nha mulher e eu subamos ao bonde da História e nos alinhemos com a bastou que minha mulher lembrasse esse lado da coisa para que nos
minoria responsável. puséssemos de acordo. Demos até muita risada e de brincadeira calcu
Há coisa mais poética do que um casal que compra uma ponte? Os lamos que na circunstância seria mais educativo derrubar a pinguela.
dois madrugaram cheios de planos e um pouco apreensivos, abriram as Tudo isso é corriqueiro e pouco digno de nota. O que vou submeter ao
persianas da sala, afastaram ascortinas do sonho, puseram-se de acordo leitor entretanto são os pensamentos que me assaltaram no intervalo.
sobre alguns detalhes que estavam pendentes, e agora saem à rua, ao sol Me refiro ao tempo decorrido entre a compreensão do adulto maduro e
da manhã, com o propósito de adquirir um bem. Conhecem a ponte há o instante em que ouvi a pergunta. Com efeito, quando a minha mulher
muito tempo, de cor e salteado, e nesse sentido ela já era sua quase des mencionou os desempregados fiquei em pé de guerra. O que tem a ver
de sempre. Quem saberia dizer quantas vezes a cruzaram, a passeio ou o desemprego com o meu direito à ponte e a uma vida dinâmica, enri
às pressas, juntos ou separados, com terceiros ou em bando? Sem faltar quecida pelos benefícios da modernidade? Ninguém viu os pais de
ao respeito, o papel passado não virá senão oficializar uma intimidade família demitidos! Eles podem não estar desabrigados. Alguém os
antiga. Pois bem, com a compra essas relações todas vão se intensificar. conhece e confirma que não caíram na farra ou coisa pior? Quem são
Aponte agora será propriedade dos dois, a quem deixa mais unidos. Ela eles? Às vezes ficamos de quatro diante de um chavão. Quando a ponte
fará parte íntima deles, também para os outros, que osdefinirão como os estiver comprada, eles talvez me conheçam. E por que falar deles cole
donos dela, pessoas separadas das demais nesse aspecto, que desperta tivamente, como sefossem uma entidade? Mas sou psicólogo o bastan
sentimentos variados. O casal por sua vez precisará dos amigos mora te para sentir o insulto escondido na entonação de um reparo infeliz,
dores de um modo novo e mais complexo, em que a colaboração passa que de resto apóio. O negócio da ponte vai ter mesmo que ser repensa
pelo risco da negativa: quem não coopera não vai ao outro lado, e quem do. Agora a frase sobre a capacidade de pagamento dos desempregados
não vai aooutro lado poupa um tostão. O propósito obviamente não é de não é apenas uma dúvida, por mais objetiva e oportuna que seja; ela é
interditar a passagem, mas de a disciplinar e trazer à decisão conscien- também um sarcasmo, cujas farpas vou enumerar. a) Ela falta com a

242 243

c arida de c ri stã e m rel açã o a os morad ores p ob re s d e n os sa c id ad e, v is  porque o suspeitava de exaltar um sentimento da natur eza sem lugar
tos como pouca coisa. b) Ela me põe como um idiota que não percebeu para a propriedade privada. Vejo na TV como o público vibra com a
o essencial. c) Sugere que a base de meus planos de grandeza é irrisó imp lo sã o d e a rranh a-cé us le pros os , de c uj a in au gu ra çã o co m b and ei
ria. d) Por extensão, ridiculariza o direito do marido à palavra final. rola s as p es so as de me ia - i da de s e rec orda m. Ne ste p ont o min ha mu lh er
Esse último aspecto fica mais clar o se o leitor souber que naquele exa e eu simpatizamos com o povo, como aliás achamos que o melhor da
to momento eu empur rava migalhas de pão com o dedo, de modo a for TV é o momento de desligar. Contam que ao chegar a M anhattan a refu
mar as minhas iniciais sobre a toalha, ao passo que minha mulher lixa giada de guerra Ernestina Roth se r ecusou a dobrar os joelhos e disse,
va as unhas e tinha a sobrancelha esquerda erguida. Explodi. Então só c om i ng ra ti dã o i mpe rd oá ve l, q ue a qui lo qu e tin ha d ia nte d os o lh os e ra
q ue m pa ga é c on su mid or? A b aix ez a de sta de fi ni ção d is pe ns a c ome n um despropósito que não se sustentaria conceitualmente em caso de a
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t ário s. Qu em nã o pa ga o qu e é ? P io r t al ve z, q ue m n ão c on so me fic a di s ,1
humanidade alguma vez se levar a sério. Pois bem, vou à licitação
p ens ad o d e p ag ar? Ne ste ca so c omo fic am a s e ntrad as d o p ro prie tá rio ? assim mesmo. Não sei se quero a pinguela, que vai me dar uma porca
Sem entradas ele não é nada? E nada não será muito otimismo? Apesar ria por não sei quanto tempo, o qual tratarei de prolongar ao máximo, à
I
5/17/2018 do labirinto dos sentimentos, a figur a do Schwarz,
desempregadoRobertopara mim -Sequencias
não Brasileiras
ba la [Livro Completo]
o u c omo for -slidepdf.com
p os sív el , d epo is d o q u e n ão fic o no p aís n em u m min u
anula a distinção entre irmão e freguês. Ainda não investimos o nosso to mais. Não devo esquecer a minha carteir inha de primo da sobrinha

dinheiro e j á estamos pobres. Eu não acho que uma mulher sem quali do prefeito.
fic aç ão p ro fis si on al de ve ss e c orte ja r o a bi smo c om ta nta in sis tê nc ia . E
sem o pedágio a ponte ficará ligada a nosso nome somente à maneira
antiga, pela anedota e a saudade, algo como por exemplo a Rua do Pio
lho ou a Travessa do Sapateiro? Retrocesso não é comigo, e vou me
defender da inadimplência dos despossuídos. Dou de barato a função
matrimonial dos prognósticos econômicos muito negativos, que às
ve ze s p ro je ta m s ob re a s oc ie dad e a fal ta d e s aíd a do c on stran gime nto
conjugal. Os que lembram contam que a aspiração antiga por uma
s oc ie da de s em o primid os n ão pa ss av a d a a mp lifica çã o a bs urda do ma l
estar em família de alguns temperamentos messiânicos. Acho possível.
Mas sustento que o inf luxo contrário também ocorr e. O sopr o que ani
ma os dias de combate em grande estilo em minha casa é uma clarina
da que vem de fora e de mais alto. Como não ver no meu desdém pela
c ra se ma l co loc ad a o d ireit o a o m an do da s c la ss es qu e do mi na m a o rt o
grafia? Quem sabe escr ever, sabe governar . A contr ovérsia violenta
sobre o arranjo das folhas de salada no prato em última análise se refe
re à i nd is cip li na d a m ão -d e-ob ra bras ile ira. A de so rd em q ue flu i e reflu i
e m n os sa s ala d e v is it as é d e na turez a c la ra me nte in su rreci on al. Go sto
d ela . S ão a nt ec ipa çõ es de u m di a p el o q ua l a ns ei o, e m qu e n ós b ra sile i
ros ajustaremos contas fora da regra tacanha do lucro e do juro, com a
liberdade e os movimentos amplos que fazem das evoluções do tuba
rão n o c in ema um es pe tá cu lo in ig ua láv el. C on co rdo p le na me nte c om
o rei q ue ma nd ou e nforca r o ma is q ue ri do d e s eu s p in to re s p ais ag is ta s

244 245

SOBRE OS TEXTOS

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5/17/2018 "SaudaçãoCompleto]
Schwarz,Roberto -SequenciasBrasileiras[Livro honoris causa." Lido na cerimônia em que a Universi
-slidepdf.com
dade Estadual de Campinas concedeu o título de doutor honoris causa
aAntonio Candido, em 1987.A universidade publicou o discurso, a res
posta do homenageado e a apresentação do vice-reitor, Carlos Vogt,
numa plaquete: Antonio Candido & Roberto Schwarz: a homenagem
na Unicamp, Campinas, Unicamp, 1989.
"Sobre a Formação da literatura brasileira." Comentário à expo
sição de Paulo Arantes sobre a idéia de "formação" na obra deAntonio
Candido, exposição feita no quadro da III Jornada de Ciências Sociais

da Unesp, em 1990. Maria Angela D'Incao, E10ísaFaria Scarabôtolo


(orgs.), Dentro do texto, dentro da vida, São Paulo, Duas Cidades,
1992.
"Adequação nacional e originalidade crítica." Trabalho apresen
tado ao colóq uio sobre "La crítica literaria en Latino américa", em
1991, a convite de Carlos Rincón, na Universidade Livre de Berlim.
Novos Estudos-Cebrap, 32, São Paulo, março de 1992.
"Os sete fôlegos de um livro." Participação no seminário dedica
do a "Antonio Candido: pensamento e militância", naUniversidade de
São Paulo, em agosto de 1998. Saiu no volume de mesmo título, publi
cado em São Paulo pelas editoras Fundação Perseu Abramo e Huma
nitas, em 1999.
"Discutindo comA1fredo Bosi." Novos Estudos-Cebrap, 36, São
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cabado de Cacaso sobre a poesia de Francisco Alvim. Novos Estudos
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"Pelo prisma do teatro." Argüição da tese dedoutoramento deIná
Camargo Costa. Saiu como prefácio a Iná Camargo Costa, A hora do
teatro épico no Brasil, São Paulo, Graal, 1996.

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