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v[03] MISSãO jAn 2024


início
car ta do editor chefe

táquion fc
Frequências
abertas

v[03]
Tomo a liberdade de iniciar este Edito- participar. guindo.
rial com a citação de uma frase do amigo Aliás, podem conferir em nosso site Aproveitamos este momento para,
e colega Gilson Cunha, também ele da que o Táquion 6 será temático, somente com imensa satisfação, parabenizar
equipe desta revista eletrônica: “não sou com fanfics homenageando e honrando os ganhadores do Primeiro Prêmio
onda, sou partícula”. nosso Bom Doutor! Táquion FC:
A frase faz alusão à dualidade onda- Tanto o Clube Brasileiro de Ficção
-partícula da Física. E, claro, às famosas Científica quanto a revista eletrônica 1o Lugar: Bertoldo Schneider Jr. (O
ondas da Ficção Científica Brasileira. On- Táquion FC foram criados para con- homem eterificado);
das que, infelizmente, chegam e depois gregar leitores, escritores e fãs da ficção
vão embora. científica, da fantasia, do terror e de todos 2o Lugar: Pedro Coppola (A dança
Isso não é o que pretendemos. Que- os subgêneros derivados, sem qualquer da transfiguração);
remos fazer a diferença, trabalhar pela tipo de discriminação. Nossas únicas
promoção de autores brasileiros de ficção exigências são o respeito a todos e o foco 3o Lugar: Rubem Cabral (Felicidade
especulativa e literatura fantástica, pela no que importa: boas histórias com bons PlusTM).
ampliação do mercado e também e acima personagens. Tem uma história na qual

MISSãO jAn 2024


de tudo, por sua profissionalização. está embutida organicamente uma men- Esperamos que este seja mais um in-
Com este objetivo, anunciamos ainda sagem que considera importante? Que centivo para que mais autores produzam
em setembro o Prêmio Táquion FC, ótimo, isso somente enriquece a trama! cada vez mais e melhor.
com prêmios em dinheiro e troféus para Desde que, repito, a mensagem faça parte As pessoas querem mais que isso,
os melhores contos publicados em nossa da história, e não a sobrepuje, tornando estão ávidas por entretenimento, querem
revista eletrônica. E é nesta edição que irrelevante inclusive o essencial desen- boas histórias, não somente em revistas
anunciamos os três vencedores do Pri- volvimento de personagens. Pense na eletrônicas, blogs e no meio digital, mas
meiro Prêmio Táquion FC. luta pela liberdade em Star Wars Ep. IV: em livros, na televisão, no cinema, ou
Outra novidade é que, a partir da edi- Uma Nova Esperança, combinado? Boas seja, em todas as mídias.
ção 4 do Táquion FC, iremos pagar pelas histórias com bons personagens, sim, são Queremos cada vez mais suprir essa
histórias que publicamos, seguindo o o nosso negócio. demanda. É por isso que o Táquion FC
exemplo das veneráveis revistas pulp que, Com essas iniciativas, é evidente que existe, e convidamos a todos para parti-
entre os anos 1920 e 1930, especialmente o nível de exigência para as histórias está cipar deste movimento. Embarquem em
nos Estados Unidos, fizeram surgir uma bem mais elevado. Ou, escrevendo de nossa nave para uma viagem sem limites
extraordinária geração de contadores de outra forma, a peneira agora ficou bem nem fronteiras, e vamos mirar até onde a
histórias e autores. Nomes como Isaac mais fina. Queremos suas histórias, então imaginação nos levar! Boa leitura!
Asimov, Arthur C. Clarke, H.P. Lovecraft, mãos à obra, leiam, pesquisem, alimen-
Robert Howard e muitos outros, que tem a imaginação e escrevam! Queremos
começaram suas carreiras nas pulps. mais, muito mais, e acredito que muitos
É nossa intenção realizar o mesmo dos leitores já estão a pensar a respeito de
aqui no Brasil, e todos os leitores e escri- nossos próximos passos.
tores em língua portuguesa (sim, nossos Sim, nós da equipe discutimos quase
irmãos de Portugal, Angola, Moçambique diariamente nossos passos. Como já dito, renato a. azevedo
e todos os demais países são extrema-
mente bem-vindos!) estão convidados a
pretendemos fazer a diferença. E, pelo
que vimos, parece que estamos conse-
editor chefe
P5
início
táquion fc

tripulação
marcelo bighetti renato a. azevedo
COORDENADOR EDITOR CHEFE

ricardo herdy gilson luis da cunha flávio medeiros jr daniel gomes


EDITOR EDITOR EDITOR EDITOR

a bordo
bertoldo schneider jr. / christian stadler / cinthia matos
daniel vasconcelos gomes / davi m gozales / gilson luis da cunha
joão maselli gouvêa / marcelo bighetti / marcelo henrique pereira
marcelo luiz dias / matthew hughes / nicolas oliver
pedro coppola / ralph luiz solera / raquel cruz
ricardo azevedo / rubem cabral / sotrati / vilto reis
4

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Voluntários
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QUERO SER
UM
VOLUNTÁRIO TÁQUION
início
registro de conteúdo

p. 60- bertoldo schneider jr.


cONTOs O HOMEM ETERIFICADO

p. 68- rubem cabral


FELICIDADE PLUSTM

p. 74- joão maselli gouvêa


NUNCA DIGA MEU NOME

p. 78- davi m gonzales


DIRCEU

p. 84- marcelo henrique pereira


FANTASMA

p. 88- marcelo luiz dias


CICLOS VICIOSOS

p. 96- vilto reis


ONDE OS MORTOS VOTAM

p. 104- sotrati
DIACONISA

p. 108- pedro coppola


A DANÇA DA TRANSFIGURAÇÃO

p. 120- matthew hughes


GROLION DE ALMERY

p. 16- sword speed


eNTREVISTa

ILUSTRADOR


início
registro de conteúdo

p. 28- marcelo bighetti


rESENHAs filme OXIGÊNIO

p. 30- ralph luiz solera


filme O ENIGMA DE OUTRO MUNDO

p. 38- renato a azevedo


filme O DISCO VOADOR

p.42- rubem cabral


série SILO

p. 44- christian stadler


mangá THE GHOST IN THE SHELL

p. 48- nicolas oliver


jogo MASTER OF ORION

p. 50- raquel cruz


jogo ECLIPSE

p. 52- ralph luiz solera


jogo THE THING

p. 56- cinthia matos


jogo PANDEMIC: REIGN OF CTHULHU

gilson luis da cunha -p. 24


aRTIGOs

LONGEVIDADE NARRATIVA...
FUNDADORES

daniel gomes

flávio medeiros jr

gilson luis da cunha

marcelo bighetti

rafael lima

renato a. azevedo

ricardo herdy
créditos da missão
Táquion FC — Edição 3, janeiro de 2024
Coordenador: Marcelo Bighetti
Editor responsável: Renato A. Azevedo
Equipe editorial: Daniel Gomes, Flávio Medeiros Jr., Gilson Luis da Cunha, Ricardo Herdy.
Ilustração da capa: Sword Speed
Layout da capa e diagramação: Marcelo Bighetti
As imagens desta edição, exceto as das resenhas (que pertencem aos respectivos produtores) e do conto Grolion (ima-
gem fornecida pelo autor), foram tiradas do site freepik.com na versão gratuita.

Autores
Bertoldo Schneider Jr.
Christian Stadler
Cinthia Matos (Nerdices Board Game)
Davi M. Gozales
Gilson Luis da Cunha
João Maselli Gouvêa
Marcelo Bighetti
Marcelo Henrique Pereira
Marcelo Luiz Dias
Matthew Hughes
Nicolas Oliver
Pedro Coppola
Ralph Luiz Solera
Raquel Cruz (Bora Jogá)
Rubem Cabral
Sotrati
Vilto Reis

taquionfc.com.br
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sword ilustrador
táquion fc
speed
bate-papo
sword speed

táquion fc
bate-papo táquion fc
O ilustrador Sword Speed, gentilmente cedeu uma de suas ilustrações para ser usada como capa na
terceira edição do Táquion FC. Agradecemos a ele e convidamos todos a darem uma olhada em seu

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portfólio no Instagram @swordspeed. Abaixo nosso bate-papo com ele.

Antes de começarmos com as perguntas, há algum comentário inicial?

Apenas agradecer pelo convite e oportunidade de participar do


Táquion FC.

MISSãO jAn 2024


Como você começou sua jornada na pintura digital? Quais foram suas
principais influências e motivações iniciais?

Minha jornada na pintura digital começou como uma progressão na-


tural da arte tradicional. Influenciado pelos meus dias de escola de
arte em NYC, onde explorei design 2D e 3D, encontrei inspiração em
diversos meios. Minhas motivações iniciais eram impulsionadas pelo
desejo de expandir meus limites criativos, mesclando técnicas clássi-
cas com tecnologia moderna.
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bate-papo
táquion fc sword speed

Quais são as vantagens e desafios de trabalhar com pintura digital em


comparação com a pintura tradicional?
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A pintura digital oferece uma flexibilidade imensa e um botão de des-


fazer, ao contrário da pintura tradicional. No entanto, ela não possui
a experiência tátil do pincel na tela. O desafio está em garantir que
a arte digital não perca o toque pessoal e a textura que os métodos
tradicionais possuem intrinsecamente.

Quais são as ferramentas e softwares que você utiliza para criar suas
obras digitais? Existe algum programa específico que você considera
essencial para o seu trabalho?
MISSãO jAn 2024

Meu conjunto de ferramentas para criações digitais é diversificado,


mas simples. Começo principalmente com esboços a lápis, formando
a base dos meus conceitos. Para o refinamento digital, utilizo softwa-
res básicos como o Adobe Photoshop. Não são as ferramentas, mas a
visão do artista que é essencial no meu trabalho.

Como você aborda a seleção de cores e a criação de paletas na pintu-


ra digital? Existe algum processo específico que você segue?

A seleção de cores na pintura digital é um processo intuitivo para mim.


Tiro proveito do meu background em arte tradicional, considerando
fatores como humor, iluminação e composição. Minha abordagem é
primeiro conceituar a paleta nos esboços e depois aprimorá-la digital-
mente para vivacidade e profundidade.
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bate-papo
sword speed

táquion fc
Quais são os temas e conceitos que mais inspiram suas obras digitais?
Existe alguma mensagem ou história específica que você tenta trans-
mitir através de seu trabalho?

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Minhas obras digitais frequentemente são inspiradas pela vida cotidia-
na e conceitos abstratos. Busco transmitir histórias ou mensagens que
ressoem em um nível pessoal, frequentemente deixando interpreta-
ções abertas para o espectador. Cada peça é uma narrativa, às vezes
clara, às vezes enigmática.

Como é o seu processo criativo ao criar uma nova pintura digital? Você
planeja cada detalhe com antecedência ou prefere uma abordagem
mais espontânea e intuitiva?

MISSãO jAn 2024


Meu processo criativo é uma mistura de planejamento e espontanei-
dade. Começo com esboços iniciais, delineando o conceito básico.
À medida que transito para o digital, o processo se torna mais fluido,
permitindo mudanças intuitivas e adições espontâneas.

Poderia comentar sobre a ilustração da capa? Qual o contexto dela?


Possui algum título?

Para a capa da revista, busquei minha paixão por tropos distópicos


e antigos animes inspirados em um futuro condenado, que captura
a essência dos artigos apresentados, usando simbolismo e metáfo-
ra. Ela não possui título específico, mas são extensões conceituais do
conteúdo da revista.
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bate-papo
táquion fc sword speed

Como você lida com o aspecto técnico da pintura digital, como a ma-
nipulação de camadas, texturas e efeitos especiais? Quais são algu-
mas técnicas que você utiliza com frequência?
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Na pintura digital, aspectos técnicos como manipulação de camadas e


texturas são cruciais. Frequentemente, experimento com diversos pin-
céis e efeitos para imitar texturas tradicionais. O empilhamento ajuda
na organização da composição, permitindo flexibilidade na edição.

Você já experimentou combinar a pintura digital com outras formas de


arte, como escultura ou fotografia? Se sim, como essas combinações
influenciaram seu trabalho?
MISSãO jAn 2024

Experimentei integrar pintura digital com fotografia, criando formas


de arte híbridas. Essa exploração entre mídias adicionou uma camada
de realismo ao meu trabalho, mesclando momentos capturados com
elementos imaginativos.

Como você vê o futuro da pintura digital? Quais são as tendências e


avanços tecnológicos que você acredita que terão um impacto signi-
ficativo nesse campo?

O futuro da pintura digital é empolgante, especialmente com a inte-


gração da IA. Essa tecnologia provavelmente levará a formas de arte
mais colaborativas, borrando as linhas entre artista e máquina. No en-
tanto, o núcleo da arte permanecerá na visão e criatividade do artista.
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bate-papo
sword speed

táquion fc
Quais conselhos você daria para artistas iniciantes que desejam explo-
rar a pintura digital? Existem recursos, cursos ou comunidades online
que você recomendaria?

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Para aspirantes a artistas digitais, recomendo começar com esboços
tradicionais. O entendimento dos fundamentos de forma, luz e com-
posição é fundamental. Comunidades e cursos online são ótimos para
habilidades técnicas, mas nada substitui a experimentação prática e a
exploração pessoal.

Sword Speed, muitíssimo obrigado por ter autorizado o uso de sua


magnífica arte nessa edição do Táquion FC. Também agradecemos
por sua disponibilidade nesse bate-papo tão agradável. Algum último

MISSãO jAn 2024


comentário?

A pintura digital é uma jornada de aprendizado contínuo e adaptação.


Abraçar novas tecnologias, mas permanecer fiel às raízes artísticas é
essencial. O equilíbrio entre métodos tradicionais e inovação digital é
onde a verdadeira criatividade prospera.

Se você é ilustrador e gostaria de ter sua arte publicada no Táquion FC,


entre em contato conosco através do email editor@taquionfc.com.br
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_A,r,T,i,G,o,S_
artigo
táquion fc
v[03] longevidade narrativa

Longevidade
narrativa na
construção de
universos ficcionais
MISSãO jAn 2024

o que torna algumas séries tão


duradouras enquanto outras
praticamente nascem mortas?

gilson luis da cunha

Biólogo, mestre e doutor em genética e biologia molecular pela UFRGS, escritor de ficção científica, autor de “Onde Kombi
Alguma Jamais Esteve” e “A Mulher Que Chora” vencedores, respectivamente, dos prêmios ARGOS 2020 de melhor romance
e melhor conto de ficção científica brasileiros.
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artigo
longevidade narrativa

táquion fc
á quem diga que, se o sucesso tivesse uma fór- de vir com um prato extraordinário, é preciso garantir o

H mula, bastaria segui-la e todos seriam bem-su-


cedidos. Sabemos que isso não é verdade. Seja
na literatura, seja no cinema ou na TV, a continuida-
feijão com arroz, o básico, a essência. Todos já viram um
jogo onde o craque faz acrobacias espetaculares com a
bola, dribles que chegam a parecer magia, e, mesmo
de de projetos de longa duração depende, primeira- assim, não fez os gols que devia.
mente, deles caírem nas graças do público. Isso é uma Outro fator a ser levado em conta é: essa história pre-
combinação de fatores que envolve personagens ca- cisa mesmo continuar? O exemplo a seguir não vem da
tivantes, boas histórias, tramas envolventes e, no fim ficção científica nem da fantasia, mas acho que ilustra

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das contas, o próprio “zeitgeist”, seja lá o que for o tal bem o dilema de muitos criadores. A expressão “pular
“espírito da época”. o tubarão” foi cunhada por um crítico de TV americano
Veja o caso de Jornada Nas Estrelas, a série clássica. em 1985 ao se referir a um episódio da quinta tempora-
Mesmo contando com bons roteiros, que incluíam ma- da de Happy Days, sitcom estrelado por Henry Winkley.
terial de escritores como Harlan Ellison, além de uma No episódio, o protagonista, um motoqueiro dos anos
excelente química entre os personagens, foi cancela- 50, espécie de versão cômica de um jovem Marlon Bran-
da após três temporadas. Seu mito foi construído com do em “O Selvagem”, resolve saltar de esqui aquático
as reprises. Foi após anos de sucessivas exibições em sobre um cercado contendo tubarões. Essa foi uma ten-
emissoras locais nos EUA que a popularidade do show tativa de recuperar a audiência da série, que se esvaía
explodiu, deixando, ao menos na época, de ser “coisa aos poucos. Apesar disso, Happy Days continuou a ser
de nicho”. produzida, passando da décima temporada. É possível
Com a literatura a coisa é mais complicada. O bo- dizer que algo parecido aconteceu com “Arquivo X”,
ca-a-boca conta muito. Costumo dizer que Edgar Rice após alguns dos mistérios da série, como o paradeiro
Burroughs não resiste à leitura de livros de física, quí- da irmã de Fox Mulder (David Duchovny) ter sido escla-
mica, biologia e geografia. No caso de Tarzan, a África recido de modo “morno”. Isso não impediu que a série
descrita pelo autor nunca existiu. E jamais existirá, ao também chegasse a uma décima temporada, mas sem a
menos em nosso tempo de vida. Aquilo se parece mais mesma vitalidade das primeiras temporadas.
com a Pandora de AVATAR, com sua fauna exuberante Talvez, como diria o Bardo, “tudo que é bom deva
e matas de proporções épicas. Faz parte do acordo en- chegar a um fim”. Imagine se fôssemos imortais. Que

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tre autor e leitor. O leitor autoriza o autor a enganá-lo pressa teríamos em realizar nossos projetos? Isso pode-
porque assim o quer. É um “faz de conta”, sem fadas ou ria ser nossa ruína como espécie. De qualquer modo, é
seres “fantásticos”. O que conta é o “sense of wonder”. o público quem decide. Não importa se a obra é origi-
Contanto que o público continue se permitindo en- nal e audaciosa, ou se apenas mantém o que se espera
volver por narrativas de ficção, por mais longas que elas dela. Enquanto o público gostar, ela continuará a ser
sejam, se os criadores assim desejarem, esses universos produzida, se seus criadores assim o desejarem. Por in-
jamais morrerão. Esse é o caso da série de space opera crível que pareça, o oposto está acontecendo: Filmes e
literária Perry Rhodan, iniciada nos anos 60 e que, ao séries que ninguém pediu continuam a ser produzidos,
longo das gerações, tem conseguido manter uma fiel simplesmente pelo fato de seus produtores receberem
legião de fãs, através de diferentes autores que toma- polpudas verbas de investidores interessados em pro-
ram para si a tarefa de não deixá-la morrer. pagar suas visões de mundo, mais do que histórias que
agradem ao público. Nesses casos, a tal “longevidade
Contudo, há momentos em que as coisas não dão narrativa” talvez não se aplique, já que a obra não é
muito certo. Star Wars era mais que uma marca. Era um mais algo vivo, com o qual os fãs se relacionam, mas
mito moderno, contando com o maior fandom da histó- algo como um zumbi, que contém uma forma que lem-
ria da ficção científica no cinema. Isso começou a mudar bra o original, cuja essência se foi. Talvez um fim digno
nos últimos anos, com boa parte de seu legado sen- seja melhor. Talvez a saudade e o gostinho de “quero
do rechaçado pelos atuais donos dessa franquia, o que mais” sejam melhores do que uma rotina pouco inspi-
afastou boa parte dos fãs. Há quem diga que a “marca” radora.
sob administração da Disney tentou um salto maior que
as pernas: abraçar um novo público que ainda não exis- Na literatura, a conversa é outra. São muitos os fa-
tia, em detrimento dos fãs que mantiveram a franquia tores: é importante manter a coerência e a integridade
viva por décadas. E a traição é um sentimento difícil de da visão do autor. O leitor, muitas vezes mais que o es-
esquecer. Há quem diga que é “exaustão” da marca, pectador, sabe quando está sendo enganado e percebe
que a “mesmice” e o “marasmo” tomaram conta dessa quando o autor já não acredita mais no que escreve. No
e de outras franquias, e que o público não está pron- fim das contas, talvez a grande virtude de um universo
to para “experimentação” e “arrojos” narrativos. Será? ficcional é encantar primeiro seu autor. Se isso deixar
Nunca ouvi falar de um restaurante de sucesso que fe- de acontecer, parece improvável que venha a encantar
chasse por manter sua receita tradicional. Concordo que também o público ao qual se destina.
a comparação é um tanto simplista. Mas pense: antes
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_R,e,S,e,N,h,A,s_
</filme>

táquion fc
_R,e,S,e,N,h,A;o,X,i,G,ê,N,i,O_ [marceloBighetti]

“oxigênio”
é um filme francês de sus- cional, deixando-nos com uma sensação de empatia e

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pense dirigido por Alexan- torcendo por seu sucesso. Sua performance é um dos
dre Aja, que foi lançado pontos altos do filme e contribui enormemente para sua
pela Netflix em 2021. Esta obra cinematográfica surpre- eficácia.
endente e envolvente apresenta uma premissa simples, Além da atuação impressionante de Mélanie Laurent,
intrigante e um desempenho estelar de sua protagonis- o roteiro de “Oxigênio” também merece destaque. Es-
ta, pela atriz Mélanie Laurent. Com uma combinação de crito por Christie LeBlanc, o enredo é habilmente es-
claustrofobia, mistério e tensão crescente, “Oxigênio” truturado, revelando gradualmente detalhes sobre a
oferece uma experiência cinematográfica emocionante situação da protagonista e sua história pessoal. O filme
do início ao fim. mantém o espectador constantemente intrigado, à me-
Eu meio que fui fisgado sem querer. Não me lem- dida que mais peças do quebra-cabeça são reveladas.
bro exatamente como comecei a assistir, mas depois Os momentos de revelação são bem cronometrados e
de dois minutos de filme, já estava sofrendo junto com adicionam camadas à trama, mantendo o interesse e o
“Liz”, a protagonista. suspense em alta até o final. Minha única crítica negati-
A história se passa em um futuro próximo, onde a va é que uma das memórias que se repete, pode anteci-
personagem principal acorda dentro de uma câmara par o desfecho para os observadores mais atentos, mas
criogênica, sem memória de quem é ou como foi parar nada que diminua a obra como um todo.
lá. Ela logo descobre que está ficando sem oxigênio e A direção de Alexandre Aja é excelente, criando uma
tem apenas algumas horas para descobrir sua identida- atmosfera tensa e angustiante. Aja usa recursos visuais e

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de e encontrar uma maneira de escapar antes que seja sonoros de maneira inteligente para aumentar a sensa-
tarde demais. Enquanto luta contra o tempo, ela recebe ção de opressão e urgência. A trilha sonora e os efeitos
ajuda de uma misteriosa voz vinda de um computador sonoros contribuem para a imersão do público, enquan-
que controla a câmara. to a cinematografia habilidosa maximiza a sensação de
Um dos aspectos mais cativantes de “Oxigênio” é confinamento.
o seu cenário claustrofóbico. A maior parte do filme se Uma das maiores conquistas de “Oxigênio” é sua
passa dentro da câmara criogênica, criando uma atmos- capacidade de contar uma história cativante e cheia
fera de confinamento e desespero que se intensifica a de suspense, mesmo com um cenário e um elenco li-
cada minuto. A direção de Alexandre Aja desempenha mitados. O filme prova que não é necessário um gran-
um papel crucial ao explorar esse ambiente limitado e de número de personagens ou locações para criar uma
criar tensão através de ângulos de câmera inventivos narrativa envolvente. Ele se apoia em uma premissa in-
e movimentos precisos. A sensação de sufocamento é trigante, uma direção habilidosa e uma atuação excep-
palpável, e a maneira como o filme usa esse sentimento cional para manter o público grudado na cadeira.
para construir suspense é brilhante. Para os amantes de suspense e mistério, “Oxigênio”
Mélanie Laurent oferece uma atuação espetacular é uma escolha imperdível e uma prova de que a criativi-
como a protagonista. Ela domina a tela com sua presen- dade e a habilidade cinematográfica podem superar as
ça cativante, transmitindo uma mistura convincente de restrições de orçamento e locação.
medo, determinação e vulnerabilidade. A medida que Assistam e preparem-se para ficar sem ar, ou melhor,
sua personagem desvenda as pistas sobre sua identi- sem oxigênio.
dade, Laurent nos guia por uma montanha-russa emo-
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</filme>

táquion fc
_R,e,S,e,N,h,A;o;E,n,I,g,M,a..._
[ralphLuizSolera]

análise
do filme de 1982, que foi um fra- dáveres) e com os restos queimados de uma criatura

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casso monumental nos cinemas (de difícil de se identificar.
público e crítica), e praticamente Entre o interesse científico inicial e a constatação de
sepultou a carreira mainstream de alto nível de John que a criatura era de origem extraterrena, ainda estava
Carpenter – ainda em seu início – mas que depois do viva e era hostil, os pesquisadores se vêem às voltas
lançamento em home vídeo, foi redescoberto e passou com uma situação de terror absoluto quando percebem
a ser admirado por fãs e críticos e obteve status de cult que pelo menos um deles poderia estar infectado pelo
e, quem diria, obra-prima do sci-fi / terror (para alguns, alienígena e não ser mais quem aparentava.
do cinema em geral).
Depois disso, todos passam a lutar pela vida em um
A costumeira mudança de títulos na tradução do clima de claustrofobia e paranoia como nunca antes vis-
inglês para o português fez o filme sair no Brasil com to no cinema, conduzido de forma magistral por Car-
outro nome, mas dessa vez nem dá pra criticar o resul- penter e embalado pela trilha sonora fantástica dele e
tado, já que o “sem sal” The Thing original (A Coisa) do mestre Ennio Morricone.
virou o bacanudo Enigma de Outro Mundo aqui no Bra-
sil (e isso faz algumas pessoas confundirem-no com o
trash chamado The Stuff (1985), que saiu no Brasil com Origens
o nome A Coisa, e passava frequentemente no SBT…). O clássico de terror sci-fi de 82 era, na visão de Car-
A resenha a seguir contém alguns spoilers. penter, uma refilmagem de O Monstro do Ártico (The
Thing from Another World – 1951), que pode ser encon-
trado facilmente na Internet atualmente.

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A Coisa
O filme de 51 por si também não foi material original,
O filme de 1982 mostra uma base americana de pes- mas uma adaptação da novela Who Goes There? (1938)
quisas na Antarctica que vê um helicóptero norueguês de John W. Campbell Jr., cujo título em português seria
perseguindo e atirando em um cachorro que se refugia algo como “Quem vai lá?”.
dentro do Posto Avançado nº 31.
Como curiosidade, vale citar que em 2018 foi en-
Depois de terem trocado tiros com os noruegueses, contrado um manuscrito extenso de Campbell, que é
alguns dos americanos vão até a base deles para tentar uma versão “completa” do conto, na qual a história dos
descobrir o motivo daquela perseguição, e voltam com personagens e a ambientação na base são expandidas.
impressões terríveis do local (destruído e com vários ca- É como se Campbell tivesse enxugado seu livro e o pu-

P31
resenha
táquion fc o enigma de outro mundo

blicado na forma de um conto comprido nas revistas que vinha de bons sucessos B com Halloween (1978) e
literárias da época. O livro completo foi publicado com Fuga de Nova Iorque (Escape from New York – 1981).
o nome original criado por seu autor: Frozen Hell (“In- Para esse segundo projeto, a Universal municiou
ferno Gelado”, em tradução livre). A descoberta do livro Carpenter com uma bela equipe técnica, composto de
completo inclusive resultou em um anúncio da Universal pessoas que já eram bem conceituadas na época, mas
sobre um remake, dessa vez baseado no texto maior. que com o passar dos anos tiveram sua competência
Quanto ao filme de 51, é importante frisar que ele totalmente comprovada em outras obras, posteriores.
dispensou todo o suspense e as questões psicológi- Os destaques ficaram por conta de Dean Cundey e
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cas encontrados no conto, adaptando todo o clima da sua fotografia claustrofóbica e de atmosfera lúgubre;
trama para questões políticas inerentes à Guerra Fria, Rob Bottin e seus efeitos especiais que na época fo-
até por exigência de um de seus acionistas majoritários ram considerados inacreditáveis (e até hoje, décadas
(que infligiu uma verdadeira política anticomunista às depois, ainda são perfeitos); e, claro, o mestre Ennio
obras da produtora RKO na época) sendo portanto um Morricone, que compôs uma trilha sonora fantástica ao
perfeito exemplar da Era McCarthy estadunidense, com lado de Carpenter, na maior prova de que “menos é
sua caça às bruxas relacionada ao comunismo. mais”, entregando uma trilha minimalista ao extremo,
O filme original, apenas mediano (bastante por conta e riquíssima em significado e ambientação. Uma trilha,
do orçamento apertado), não conseguiu muito sucesso como dizem, “de gelar a alma”.
no lançamento, até porque deu azar de concorrer, no Já Carpenter, que chegou embalado por dois suces-
mesmo ano, com um clássico sci-fi, o memorável O Dia sos comerciais, mostrou em Enigma de Outro Mundo
em que a Terra Parou (The Day the Earth Stood Still) que era um diretor muito competente quando tinha ma-
que apesar de conter as mesmas analogias geopolíti- terial técnico e humano de qualidade.
cas, teve uma produção infinitamente mais robusta e de
Com um roteiro e uma produção dignos, tirou o má-
excelência técnica, uma trilha sonora espetacular do ge-
ximo da história, entregando um filme tecnicamente
nial Bernard Herrmann, e cujos resultados em bilheteria
perfeito, a despeito de preferência pessoal ou gênero, o
ajudaram o gênero a conseguir produções cada vez me-
que sempre invoca o gosto amargo do fracasso da épo-
lhores, até que a obra-prima Planeta Proibido (Forbid-
ca do lançamento, e de como isso mudou sua carreira,
den Planet – 1956) foi lançada e tirou a ficção científica
MISSãO jAn 2024

já que ele perdeu contratos e produções acertadas para


do segundo escalão do cinema, alçando o gênero à pri-
os anos seguintes, e alguém que poderia ter recebido
meira prateleira de Hollywood.
blockbusters para dirigir nos anos (décadas?) vindouros
acabou tendo que recomeçar quase do zero, tendo fica-
Produção do relegado aos filmes B pelo resto da vida.
Com a ficção científica cada vez mais em alta desde Em entrevistas, o próprio Carpenter mostra amargura
o lançamento de Planeta Proibido, os orçamentos cada quando fala disso, sempre lembrando que se o reco-
vez mais polpudos no gênero foram atraindo produ- nhecimento de fãs e críticos de hoje tivesse ocorrido
tores, diretores e atores de primeira linha até que Star em 1982, ele obviamente teria tido uma carreira – e uma
Wars – Episódio IV: Uma Nova Esperança revolucionou vida – diferentes.
o cinema (e o mundo) em 1977. Uma curiosidade sobre a ligação de Carpenter com
Paralelo a isso, o terror também vinha galgando sta- o projeto é que em seu primeiro filme de sucesso,
tus em Hollywood nos últimos anos, com algumas pro- Halloween, podemos ver alguns frames do Monstro do
duções chegando ao grande circuito… até que Alien Ártico, quando os personagens da casa aterrorizada
– O Oitavo Passageiro (Alien – 1979) de Ridley Scott, pelo serial killer são mostrados em uma sala com uma
unindo os dois gêneros, conseguiu ser o primeiro filme televisão ligada.
de ficção científica e terror “para maiores” a abocanhar Carpenter era fã do livro e do filme antigo, e sempre
Oscars e ter um lucro de quase 10 vezes o custo de sua teve intenção de fazer um remake do longa de 1951!
produção, algo raro até então para os gêneros (o caso
de Star Wars era uma exceção absoluta no sci-fi e no
terror isso nunca tinha acontecido). Filmagens
Star Wars já tinha colocado o sci-fi no centro das me- Com base em storyboards muito bem detalhados, as
sas das produtoras e agora o sucesso de Alien, da Fox, filmagens começaram em agosto de 1981 no Alasca, e
abriu os olhos dos outros estúdios também para o terror depois migraram para estúdios, onde o frio precisou ser
mainstream. reproduzido por meio de refrigeração. Posteriormente,
algumas refilmagens forçaram o retorno a locações ex-
A Universal não perdeu tempo e no ano seguinte já
ternas.
engatilhava duas obras grandes, para abarcar todos os
públicos possíveis, direcionando uma produção para o As filmagens no Alasca tiveram problemas com frio
sci-fi “família” do jovem talentoso Steven Spielberg, no extremo (que trincava as lentes das câmeras), e termina-
projeto que culminaria em E. T. – O Extraterrestre, um ram com nevascas intensas e se fortalecendo ainda mais
dos maiores filmes já feitos e, para a sua superprodução na época, o que não permitiu muitas refilmagens nem
de sci-fi e terror, contratou o promissor John Carpenter, estouro de agenda.
P32
resenha
o enigma de outro mundo

táquion fc
Detalhe para as cenas do acampamento norueguês, todo”, semi-independente e semi-autônomo, de modo
que estão no início do filme, mas que foram na verdade que cada assimilado age “por conta própria”, inclusive
filmadas no fim da produção, quando explodiram os ce- evitando mostrar sua verdadeira natureza mesmo nos
nários reais do acampamento americano, cujos destro- momentos em que enfrentam o monstro, quando um
ços fumegantes foram depois usados para representar assimilado está vendo, na verdade, os humanos comba-
a base europeia. tendo seus pares.
Interessante que bastante material filmado foi depois Assim, o clima na equipe desde a revelação da face
descartado na pós-produção, para acelerar o ritmo do usurpadora do alien é de total desconfiança e paranoia,

v[03]
filme na edição do corte final. Esse material era com- onde ninguém confia em ninguém e todos evitam ficar
posto, na maioria, de personagens conversando ou de a sós com outro membro da equipe. E os espectadores,
jumpscares que constavam no roteiro, mas que Car- que também não sabem quem ali é humano ou réplica,
penter depois desistiu de usar para evitar que o filme estão sempre no limite da tensão.
se mostrasse com clichês de terror comuns. Ainda teve Hoje em dia você já viu isso em centenas de outros
cenas previstas no roteiro cortadas sem sequer serem filmes? Sim. Na época isso já tinha sido feito? Não dessa
filmadas, por falta de verba. maneira.
O famoso final teve várias versões diferentes filma- O filme, inclusive, ignora o contexto geopolítico do
das, para que a decisão de qual seria o escolhido pu- longa de 1951 e emula o clima psicologicamente denso
desse ser feita mais tarde (com o aval do estúdio, claro). e sufocante do livro, retratando questões de perda de
Na versão mais pedida pela Universal, MacReady se- individualidade, isolamento social e perda de humani-
ria resgatado e um exame de sangue posterior provaria dade que eram comuns nas expressões artísticas dos
que ele era humano, e testes de audiência mostraram anos 80, pelo contexto social vivido pelos EUA na oca-
que era mais aceito do que o final original pensado por sião.
Carpenter, mas em cima da hora o diretor convenceu a Apesar de muitos analisarem as analogias pelo viés
Universal (bastante a contragosto) a manter seu encer- da AIDS, Carpenter já declarou que não tinha essa in-
ramento dúbio e em aberto, e em contrapartida incluiu tenção quando refinou o roteiro de Bill Lancaster e acer-
um urro no momento da explosão do último alien, a pe- tou os detalhes do enredo.
dido dos produtores, para que pelo menos o público

MISSãO jAn 2024


E para alguns que dizem que “o filme esconde o alien
tivesse certeza de que aquela criatura teria sido morta.
até o final”, obviamente tal afirmação não procede, já
que – ao contrário – Carpenter opta por mostrar várias
Suspense Hitchcockiano passagens de embate com a criatura, amparado pelo
O mestre do suspense já havia ensinado: susto e sur- espetacular trabalho de Bottin, dando inclusive closes e
presa são diferentes de suspense. Inclusive é famosa entregando takes longos das transmutações das massas
sua explanação sobre a bomba embaixo da mesa, quan- de carne e membros ensanguentados e grotescos.
do ele diz que se o filme mostra que tem uma bomba O que vemos no final não é “o alien”, portanto, mas
embaixo de uma mesa, e onde estão os personagens, sim uma forma corporal concebida naquele momento,
você sente o suspense relativo à possível detonação do devido à aglutinação das massas de Blair-Coisa, Garry-
explosivo, mas se o filme não mostra a bomba, e ocorre -Coisa e Nauls-Coisa, com formatos díspares que de-
a explosão, o que o filme entregou foi uma surpresa e monstram a “memória” celular da criatura, também de
não suspense. outros organismos assimilados anteriormente.
Carpenter aprendeu a lição com maestria, e em
Enigma de Outro Mundo ele nos entrega um suspense H. P. Lovecraft
angustiante, digno de Alfred Hitchcock – sem exagero
O terror visceral e monstruoso que vemos em Enig-
– criando um clima crescente de tensão, que é amplifi-
ma de Outro Mundo – e na cultura pop em geral – de-
cado nas aparições (revelações) do alien, onde o horror
riva da mente incrível de Howard Phillips Lovecraft, o
e o gore só apimentam ainda mais a continuidade da
inventor do gênero horror cósmico, da qual tudo o que
história, nos deixando ainda mais tensos e angustiados
vem depois nesse sentido deriva.
com o passar do tempo.
E da qual o filme de Carpenter é mais um a beber na
Somos apresentados ao problema com que os per-
fonte com toda a sede do mundo.
sonagens lidam, e é criada a aura de medo a respeito
de “onde a criatura vai aparecer” ou “quem ela vai ata- Inclusive porque a segunda obra mais famosa de
car” e, claro “quem já foi assimilado”, de modo que a Lovecraft (depois do Chamado de Cthulhu – The Call
todo instante algo de ruim pode ocorrer, o que deixa a of Cthulhu, de 1928) é Nas Montanhas da Loucura (In
plateia sempre apreensiva e não há absolutamente ne- The Mountain of Madness – 1936), na qual um grupo
nhum momento de alívio, nenhuma gag ou cena mais de exploradores acha, na Antarctica, resquícios de uma
leve para os espectadores darem uma respirada. civilização antiga e… extraterrestre.
A aparência indefinida da criatura ajuda muito, assim O conto semeou a “Teoria do Astronauta Antigo”
como o conceito de que cada parte é “um pedaço do que propiciou fama e fortuna a escritores picaretas e
produtores de mockumentaries (pseudo-documentários
P33
resenha
táquion fc o enigma de outro mundo

embasados em pseudo-ciência). com o qual Carpenter estava habituado.


Na prequência de 2011 (sim, Enigma de Outro Mun- Nunca antes o grande circuito (tanto o cinema quan-
do teve uma versão posterior que se passa antes do to os críticos e o público) tinha visto cenas como aque-
ocorrido no filme de 82), bem no final do filme, aliás, las… não é de se espantar que todos ficaram horroriza-
temos um alien aparecendo em um formato lovecraf- dos e rejeitaram plenamente o filme.
tiano clássico, em uma clara homenagem aos conceitos No Brasil, mesmo nos anos 90, era comum em cada
criados pelo escritor e replicados em praticamente um reprise no Corujão da Globo, vermos a sinopse na pro-
século desde então. gramação semanal do Estadão ou da Folha informando
v[03]

que se tratava “[…] de uma refilmagem vagabundérrima


Recepção do Monstro do Ártico […]” e que o mesmo “não valia
a pena”.
Como já dito antes, Enigma de Outro Mundo foi pro-
duzido pela Universal ao mesmo tempo que nada mais Aliás, até paira curiosidade sobre a identidade do au-
nada menos que E. T. – O Extraterrestre, um dos maiores tor daquela sinopse que por anos deixou atônitos os fãs
filmes da História (inclusive em bilheteria), o que foi uma do filme com relação à falta de noção do crítico, algo
concorrência muito injusta com o longa de Carpenter. que lembra muito o saudoso José Haroldo Pereira que
classificou na revista Manchete o filme O Império Con-
De um lado, uma das criaturas fictícias mais fofinhas e
tra-Ataca (1979) como “sem pique para levar a saga Star
carismáticas já inventadas pela humanidade, e do outro,
Wars ao Século XXI” e personagens como Yoda, Han
o grotesco alien assassino visceral e sanguinolento do
Solo e Luke Skywalker como “desinteressantes”!
terror gore mainstream mais explícito já feito até então.
Em um dos filmes o público via ternura, amizade, su-
peração, amor e emoção de derrubar lágrimas em uma Redescoberta
época obscura e cínica, de Guerra Fria e pós-Vietnã, na Hoje em dia o filme possui uma legião de fãs, e crí-
qual obviamente os anseios do grande público eram ticos como Roberto Sadovski (Revista Set, UOL) consi-
por algo otimista e aventuresco. deram Enigma de Outro Mundo como “o melhor filme
No outro filme, via-se medo, depressão, paranoia, já feito”, para se ter ideia da mudança na análise que o
tempo propiciou.
MISSãO jAn 2024

tensão e horror em doses cavalares, e estômagos em-


brulhados. Tudo o que as plateias alvo do longa (trata- O filme, desde essa “redescoberta” propiciada pelas
va-se de um filme para o grande público, como sempre locadoras dos anos 90 e 2000, ganhou o status cult que
frisamos) provavelmente queriam evitar. hoje possui (e se reafirma ano após ano).
Para “ajudar”, o final ambíguo e em aberto foi a pá Nos anos 90, novas críticas e avaliações começa-
de cal para os espectadores, ao não entregar o final feliz ram a reclassificar o filme. Veículos grandes de mídia,
sempre tão esperado por todos. incluindo Entertainment Weekly, Film.com, IGN, Esqui-
Advinha o que aconteceu? re, Boston Globe, Rolling Stones Magazine, publicaram
críticas classificando Enigma de Outro Mundo como um
Enquanto E. T. quebrou recordes de bilheteria e se
terror ou uma ficção científica de alta qualidade, alguns
tornou o filme mais visto de todos os tempos na época,
até classificando como um dos melhores dos dois gêne-
Enigma de Outro Mundo amargou um fracasso colossal
ros (sci-fi e terror) em todos os tempos.
e arrecadou míseros US$ 14 milhões. Menos de 5% do
concorrente. E, considerando os custos diretos e indire- Os agregadores de críticas como Rotten Tomatoes
tos de produção e marketing, o saldo foi um prejuízo de e Metacritic foram registrando críticas positivas até os
US$ 1 milhão, já que o orçamento final bateu nos US$ indicadores atuais, bastante altos, mesmo considerando
15 milhões. Um fiasco completo. as péssimas impressões iniciais.
Os críticos destruíram o filme de uma maneira Além do séquito de admiradores que só aumenta,
tão sólida, que pouca gente além do fandom de é comum vermos profissionais artísticos em geral, mas
sci-fi hardcore e do terror gore se aventurou em principalmente do cinema, que se mostram também fãs
conferir o lançamento de Carpenter. Avaliações como do longa, de modo que o número de referências em
“repulsivo”, “asqueroso”, “excessivamente violento”, outros filmes – e até homenagens explícitas – podem
“gratuitamente explícito”, “vagabundo” e “horrível” ser encontrados aos montes em séries, filmes, animes,
foram comuns. quadrinhos, músicas, clipes, etc.
As principais revistas e jornais classificaram o filme Um episódio inteiro (S01E08) de Arquivo X, por
como um erro terrível da Universal, uma direção catas- exemplo, é uma versão curta do filme, com Mulder e
trófica de Carpenter e uma história anacrônica e pessi- Scully sofrendo na pele o que MacReady passou no lon-
mista além da conta. ga.
Claro que os críticos “almofadinhas” do grande cir- No filme Os 8 Odiados de Quentin Tarantino, fã con-
cuito do cinema não estavam preparados para um filme fesso de Enigma de Outro Mundo, temos uma sequên-
daqueles, que apesar de ter uma produção de primeira cia inteira que homenageia o filme de Carpenter.
qualidade, trazia visual e grafismo de um típico filme B Essa influência foi expressada abertamente também
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resenha
o enigma de outro mundo

táquion fc
por diretores como J. J. Abrams, Eli Roth, Quentin Ta- continuaria o filme de 1982 e seria exibido no canal
rantino, Guillermo del Toro e Neill Blomkamp, dentre SyFy, porém o mesmo foi abortado e virou o projeto de
outros. um remake.
E se o fracasso no lançamento fez o filme ser lançado Em 2010, a Morgan Creek adquiriu os direitos para
com um corte alternativo para a TV (com o qual Carpen- esse remake, porém em uma mostra rara de bom senso,
ter não concorda ou aprova) no fim dos anos 80; nos os produtores se sensibilizaram com o status cult do fil-
anos 90, por outro lado, o filme foi lançado em DVD me (e apelos do fandom) e mudaram o projeto, fazendo
com bastante sucesso, de modo que uma nova edição então não uma refilmagem, mas sim uma prequência,

v[03]
em HD DVD saiu nos anos 2000, com vários extras. que mostra os acontecimentos da base norueguesa que
Em 2016 o filme saiu em Blu-Ray, com comentários precedem o início do filme de Carpenter.
e documentário sobre a produção, além de entrevistas Lançado em 2011, A Coisa (The Thing) tem um elen-
e featurettes. Em 2017 novo lançamento, dessa vez em co de prestígio, encabeçado por Mary Elizabeth Wins-
4K, com base nos negativos originais do filme, em uma tead, Joel Edgerton e Eric Christian Olsen, e um roteiro
produção que contou com a participação do próprio que respeita o clássico de 1982 e a ele faz reverências,
Carpenter. A trilha sonora teve lançamentos de sucesso porém o resultado foi bastante genérico e mediano, um
em vinil, cassete, CD e EP. filme de terror clichê sem suspense algum, que não ob-
Essa redescoberta propiciou ao filme algumas sequ- teve bons resultados e – desta vez de forma acertada
ências e projetos de remakes e reboots, como podemos – não foi bem considerado sob os aspectos técnicos,
ver a seguir. inclusive por conta de uma direção insossa de Matthi-
js van Heijningen Jr. e efeitos especiais ruins (ironia do
destino: o modernoso CGI tomando uma surra dos efei-
Sequências, remakes e reboots tos práticos de 40 anos atrás).
Depois que o filme foi redescoberto e virou cult, sua Em 2017 foram lançados os jogos de tabuleiro Who
“nova” fama atraiu a atenção não só de fãs, mas de pro- Goes There? (editora Certifiable Games) e The Thing:
dutores de conteúdo de diversas mídias. Os quadrinhos Infection at Outpost 31 (editora Project Raygun), e em
foram os primeiros a se incluir no “Thingverse”, quando 2022 foi lançado The Thing: The Boardgame (lançado
a Dark Horse Comics (famosa por publicar quadrinhos no Brasil pela editora Conclave), que tem uma análise

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de franquias de cinema como Alien, Predador, etc.) pu- nesta edição do Táquion FC.
blicou em 1991/1992 The Thing from Another World
Os três jogos são bastante temáticos e fiéis na re-
(minissérie em duas partes), que se passa no dia seguin-
tratação do filme de 1982, mas sem dúvida o último é
te ao final do filme.
o mais aclamado, por conseguir reproduzir tematica-
O sucesso da boa publicação gerou as continuações mente os contágios e assimilações e permitir o clima de
The Thing from Another World: Climate of Fear (1992 paranoia e tensão do filme, além de ter uma produção
– quatro partes), o péssimo The Thing from Another espetacular (caixa, tabuleiro, miniaturas, cartas…).
World: Eternal Vows (1993 – quatro partes) e o razoável
Os três, no entanto, não continuam a história do fil-
The Thing from Another World: Questionable Research
me, se limitando a reproduzi-lo para os jogadores atua-
(1993 – quatro partes).
rem como se estivessem na trama do longa.
A primeira dessas continuações em quadrinhos foi
Em 2020 foi anunciado que a Blumhouse Pictures
até apresentada à Universal como base para uma adap-
estaria produzindo um reboot da história (inicialmente,
tação de roteiro para uma sequência do filme, porém o
mais uma vez, o projeto era de remake). Depois de nova
projeto nunca foi adiante.
chiadeira dos fãs, a produtora anunciou que na verdade
Anos depois, Carpenter declarou em entrevista que se tratava da adaptação de Frozen Hell, o livro comple-
considerava essa história “bastante digna” do filme, e to da qual o Who Goes There? havia sido extraído e
que consideraria adaptá-la para um novo longa, o que publicado originalmente.
permite concluir que ele concorda com os acontecimen-
Desde 2021 não há mais notícias da produção, porém
tos ali mostrados pertinentes à realidade de MacReady
ainda naquele ano Carpenter disse em uma entrevista
e Childs, após o final do seu filme.
que estava “envolvido” na produção, e em 2022 ele
Em 2002, com Carpenter participando da produção ainda declarou que gostaria de filmar uma continuação
como consultor criativo, foi lançado pela Sony o game de Enigma de Outro Mundo, o que já levou o fandom a
para PC, Playstation e X-Box, chamado The Thing, da questionar se uma coisa estaria ligada a outra… estaria
Computer Artworks / Black Label Games, que também a Blumhouse e Carpenter tentando alterar de novo o
continua os eventos do filme de 1982. projeto, transformando-o numa sequência do clássico?
No game, militares chegam ao que restou da base
americana, recuperam o protótipo de nave de Blair-Coi-
Fatos interessantes:
sa, as fitas cassete de MacReady (que entra nas fases
finais do game) e o corpo de Childs e se vêem às voltas – O primeiro diretor cotado para Enigma foi Tobe
com uma parte do extraterrestre que sobreviveu. Hooper, que tinha seu nome atrelado ao sucesso under-
ground O Massacre da Serra Elétrica (The Texas Chain-
Em 2005 foi iniciado um projeto de minissérie que
P35
resenha
táquion fc o enigma de outro mundo

saw Massacre – 1974). Hooper queria fazer uma sequ- dele – conta com uma sequência inteira que homena-
ência do Monstro do Ártico, na qual um sobrevivente geia o terror de 1982.
da estação partiria em caçada ao alien pelas geleiras – Outro fato curioso sobre o assunto é que Morrico-
antárticas. ne foi indicado ao Framboesa de Ouro por Enigma… e
– O roteiro apresentado era uma comédia de horror ao Oscar por 8 Odiados – pelo qual acabou finalmente
ao estilo do que A Volta dos Mortos-Vivos (The Return recebendo uma estatueta dourada, fato nunca ocorrido
of the Living Dead – 1986) faria anos depois, mas a ideia antes, a despeito de sua carreira brilhante.
foi rechaçada pela cúpula da produção e Carpenter foi – Por fim, nunca é demais lembrar que Enigma de
v[03]

chamado para substituir Hooper, que ironicamente aca- Outro mundo foi incorporado à cultura da pesquisa
bou dirigindo Poltergeist – O Fenômeno (Poltergeist científica na Antarctica. Virou tradição em algumas das
– 1982), que foi um tremendo sucesso no mesmo ano estações de pesquisa localizadas no continente gela-
em que Enigma de Outro Mundo naufragou (lembran- do (independente de seus países de origem) que uma
do que há dúvidas até hoje sobre quem dirigiu Polter- sessão do filme seja uma espécie de “cerimônia” que
geist, com direito a investigação da Directors Guild of inaugura o inverno antártico, iniciado em 21 de Junho
America para ver se não foi Spielberg o diretor de fato, e com duração de 6 meses. A tradição se iniciou nos
impedido por contrato de dirigir o filme enquanto E. T. anos 90 na estação americana Amundsen-Scott e não só
era lançado). persiste até hoje como cada vez abrange mais estações.
– A trilha sonora, apesar de creditada ao mestre En-
nio Morricone, tem quase tanta mão de Carpenter nela
Conclusão
quanto dele. Só que o arranjo final saiu mais no estilo
de Carpenter, de modo que muitos – e o próprio Morri- Enigma do Outro Mundo é um filme fantástico, que
cone – consideram que o verdadeiro autor da trilha foi o extrapola o gênero e pode ser facilmente considerado
diretor, até porque grande parte das músicas do mestre um dos melhores longa-metragens já feitos na História
ficou de fora do corte final do filme, que agregou pou- do cinema. Sua influência na cultura pop transpassa as
cas variações de poucas das músicas compostas. telas e justifica toda reverência a ele dedicada, seja pe-
los fãs, seja pelos cineastas e outros artistas que, conti-
– Anos depois, Morricone usou o material descartado
nuamente, referenciam o filme ou demonstram em suas
por Carpenter na trilha do faroeste Os 8 Odiados (The
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obras toda a influência que dele receberam.


Hateful Eight – 2015), de Quentin Tarantino, que – sen-
do Enigma de Outro Mundo um dos filmes prediletos
P36
</filme>

táquion fc
_R,e,S,e,N,h,A;o;D,i,S,c,O;v,O,a,D,o,R_
[renatoAazevedo]

esse
filme, com título original The Bamboo Sau- de muita tensão as duas equipes decidem cooperar.

v[03]
cer (National Telefilm Associates, 1968), foi Afinal chegam à igreja abandonada onde o disco
uma das raras produções de ficção cientí- voador está escondido. Chama a atenção o desenho
fica do final dos anos 1960. Este artigo celebra seus 55 limpo do objeto, trazendo à memória a nave de Klaatu
anos, completados agora em 2023. e Gort em O Dia em que a Terra Parou (1951, confira
Tudo tem início quando o piloto de testes Fred No- em TÁQUION 1). Depois de muitas investigações des-
rwood (John Ericson, 25/09/1936 – 03/05/2020) está cobrem uma forma de entrar na nave.
testando o avião experimental X-109 (na verdade é um Um dos russos tenta fazer o disco decolar com trá-
Lockheed F-104 Starfighter com imagens de arquivo, gicas consequências. Durante o funeral Fred busca se
em serviço na época na USAF, Força Aérea Norte-Ame- aproximar mais de Anna, dizendo que ela não é uma
ricana). Subitamente o piloto observa a aproximação de boa marxista já que rezou pelo falecido. Isso não agrada
um disco voador azul, e então inicia uma série de ma- Zagorsky, que além de proibir qualquer relacionamento
nobras arriscadas para averiguar a natureza do estranho entre eles ainda tenta tomar o controle da expedição.
objeto. Os americanos, obviamente, não permitem, e o impas-
O intruso logo desaparece e, após uma tensa reu- se é deixado de lado quando os chineses chegam.
nião em terra onde naturalmente ninguém acredita em Novamente as duas partes se unem para a intensa
seu depoimento, já que o misterioso objeto não foi luta, enquanto Fred, Anna e Jack Garson (Bob Hastin-
detectado por radar, Norwood é retirado do projeto. gs, 18/04/1925 – 30/06/2014) entram na nave. Eles, os
Furioso, ele se une ao amigo Joe Vetry (William Mims, únicos sobreviventes de suas respectivas equipes, final-

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15/01/1927 – 09/04/1991) que é casado com sua irmã mente conseguem fazer o disco decolar. Em instantes
Dorothy (Nam Leslie, 04/06/1926 – 30/07/2000) em estão no espaço, aproximando-se da Lua. O trio ainda
uma tentativa de localizar o objeto, ou outro seme- passa por Marte até descobrir que o piloto automático
lhante. Para tanto utiliza um caça da Segunda Guerra da nave os está levando em uma rota de colisão contra
Mundial, um North American P-51D Mustang, equipado Saturno. Com direito a uma explicação de que o disco
com um novo tipo de detector laser. jamais se chocará com nada e será, isso sim, esmagado
Enquanto Fred descansa, Joe decide voar no Mus- pelas tremendas pressões na colossal atmosfera do pla-
tang por conta própria, e por fim Fred e Dorothy ob- neta anelado.
servam que o avião de Joe desapareceu do radar. Após Depois de tentar várias combinações numéricas o
encontrar os restos da aeronave, investigadores afir- trio consegue retomar o controle da nave, e Fred a con-
mam que esta se desintegrou no ar. Esta sequência tem duz novamente para a Terra. Eles decidem aterrissar em
bastante semelhança com o caso do capitão Thomas Genebra a fim de apresentar o disco voador ao mundo.
Mantell, infelizmente falecido em 07 de janeiro de 1948 Fred faz inclusive um discurso que confronta o clima de
quando perseguia um OVNI em um Mustang da Guarda tensão típico da Guerra Fria na qual o filme foi produzi-
Aérea nacional. do: Quando o mundo vir esta nave, todos se darão con-
Fred Norwood é chamado para Washington, onde ta de que existem outros seres inteligentes no universo.
conhece o agente Hank Peters (Dan Duryea, 23/01/1907 E também que iremos encontrá-los algum dia. É melhor
– 07/06/1968). O piloto reconhece no croqui que lhe é que todas as nações da Terra estejam preparadas para
mostrado o mesmo disco voador que observou. Peters trabalhar juntas.
revela que o desenho foi feito por contatos no territó- Algumas fontes apontam que O Disco Voador foi exi-
rio chinês, onde uma nave semelhante caiu ou pouso, e bido na TV brasileira em algum ponto da primeira meta-
seus dois tripulantes humanoides morreram, tendo os de dos anos 1980. É aproximadamente a época em que
corpos cremados. Peters então convida Fred a acompa- este escriba se lembra de tê-lo assistido. Fã de ficção
nhá-lo e a sua equipe. científica desde sempre, naturalmente fiquei fascinado.
Eles chegam à China saltando de paraquedas, e en- O leitor pode inclusive encontrá-lo no Youtube.
contram o agente Sam Archibald (James Hong), que os O indiscutível sabor das produções sci-fi dos anos
conduz até o local onde o disco está. Evitando os mili- 1950 presente em The Bamboo Saucer provavelmente
tares chineses durante a viagem, eles logo encontram se deve ao roteirista Alford Van Ronkel (também parti-
uma equipe russa com o mesmo objetivo, comandada ciparam da elaboração do roteiro Frank Telford e John
por Zagorsky (Vincent Beck, 15/08/1924 – 24/07/1984). P. Fulton). Van Ronkel (02/07/1908 – 30/03/1965) tem
Desta também faz parte a cientista Anna Karachev (Lois entre seus créditos várias produções incluindo Destino
Nettleton, 16/08/1927 – 18/01/2008). Após momentos à Lua (Destination Moon, 1950) clássico sci-fi da década
P39
resenha
táquion fc o disco voador

anterior. Ele, infelizmente, não chegou a ver The Bam- agentes governamentais. Os Estados Unidos passavam
boo Saucer. por momentos complicados com a Guerra do Vietnã,
Entre os aspectos pitorescos da produção do e em pouco tempo ainda aconteceriam os escândalos
filme está o envio por parte do produtor Jerry Fairbanks da administração de Richard Nixon. O filme, assim, não
v[03]

(01/11/1904 – 21/06/1995) do roteiro para o escritório deixa de ser uma metáfora da perda de inocência, ao
do Secretário de Defesa dos Estados Unidos. Na res- mesmo tempo antecipando uma onda de grandes pro-
posta deste, o produtor foi informado de que a CIA não duções de ficção científica que, uma década depois, re-
deveria ser retratada em uma situação ficcional; a in- vitalizariam o gênero nos cinemas, tais como Star Wars,
vestigação de discos voadores não era factual. O papel Contatos Imediatos do Terceiro Grau, Alien e Jornada
da Força Aérea no teste da aeronave experimental não nas Estrelas: O Filme.
estava claro; e a mesma Força Aérea não deveria ter No complicado mercado audiovisual brasileiro,
qualquer ligação com o voo que levou a equipe a saltar bem que O Disco Voador poderia ser lançado. É uma
de paraquedas sobre território chinês. boa produção de ficção científica, com boas ideias e
O Disco Voador, com seu sabor da clássica realizado em uma época mais simples. Entretenimento
ficção científica dos anos 50, já trazia também a críti- de excelente qualidade. Recomendo.
ca contra a Guerra Fria e uma certa desconfiança nos
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</série>

táquion fc
_r,E,s,E,n,H,a;S,i,L,o_ [rubemCabral]

“o silo”
(Silo) é uma série de ficção manga que o colocam acima da média das produções,

v[03]
científica do serviço de strea- como o elenco e a direção de arte.
ming Apple+ que estreou em A atriz sueca Rebecca Ferguson é Juliette Nichols,
maio de 2023. E, embora a presente resenha seja em uma engenheira mecânica que vive nas profundezas do
princípio sem spoilers, será necessário discutir aspectos Silo. Ela é a protagonista da série e traz uma atuação
gerais da trama da série. Então, nenhum detalhe im- vigorosa e que convence tanto por sua força quanto por
portante da trama e nenhuma “virada” de roteiro serão suas fragilidades. Sua personagem parece imparável e,
esmiuçados aqui, mas se você prefere assistir a série ab- ao mesmo tempo, muito humana e falha. Não há aque-
solutamente “no escuro”, sugiro parar a leitura nesse la jornada típica do herói, a personagem comete erros,
parágrafo. tropeça nos próprios pés, o que traz veracidade à sua
A série da Apple+ é uma adaptação do conto “Wool” interpretação. A atriz tem estado bastante ocupada em
e de suas sequências, do autor norte-americano Hugh muitos filmes recentemente. Ela é, por exemplo, Jessi-
Howey. ca, a mãe do Paul Atreides no Duna de Denis Villeneu-
“O Silo” retrata a vida de uma comunidade de so- ve. Também está nos elencos de dois filmes da franquia
breviventes de algum grande cataclismo apocalíptico. Missão Impossível. O elenco ainda conta com o ótimo
Cerca de dez mil pessoas vivem numa espécie de tor- ator Chinaza Uche, com seu conflituoso Paul Billings,
re invertida e sem elevadores de cerca de 144 níveis, que sempre se equilibra sobre a lâmina do dever e do
dentro do solo. Não se sabe ao certo o que ocorreu ao fazer o correto. Tim Robbins e Common, esse último um
mundo externo e nem mesmo há quanto tempo exata- vilão frequente em quase todos os filmes em que já o vi,
também têm atuações de destaque.

MISSãO jAn 2024


mente houve o tal evento cataclísmico ou ainda quem
foram os construtores e fundadores da tal cidade autos- A direção de arte é primorosa: tudo parece gasto,
sustentável subterrânea. Tudo o que se sabe é que “lá poeirento e estranhamente analógico, com certo quê
fora” é mortal e que uma cultura regida pelas leis do retrofuturista. O Silo efetivamente parece antigo e habi-
“pacto” passou a controlar toda essa nova sociedade, tado, com seus apartamentos estranhamente funcionais,
onde a posse de qualquer objeto anterior ao Silo é um suas escadas helicoidais como uma cadeia de DNA. Há
crime grave até passível de morte. geradores decrépitos, estufas, poços, espaços claustro-
Distopias pós-apocalípticas não são novidade em fóbicos e escuros. Enfim, o espectador sentir-se-á imer-
qualquer mídia. Contudo, “O Silo”, além das quali- so e convencido da concretitude de tal ambiente.
dades do bom roteiro também tem algumas cartas na Nota: 4,5/5

P43
</mangá>

táquion fc
_R,e,S,e,N,h,A;t,H,e,G,h,o,S,t,I,n,T,h,E,s,H,e,L,l_
[christianStadler]

“num
futuro próximo, bem próximo, em portante notar que, talvez, os únicos comentários que
que redes corporativas espalha- possam causar alguma frustração ao leitor sejam as re-

v[03]
ram suas teias de cabos ópticos e comendações de livros indisponíveis em língua portu-
componentes eletrônicos, a ponto de cobrirem as es- guesa ou qualquer outro idioma que não seja o japonês.
trelas do céu... Um futuro informatizado, mas não tan- Vale ressaltar a sugestão do autor para que essas notas
to a ponto de eliminar os conceitos de nação e grupos e comentários sejam lidos separadamente, a fim de não
étnicos…” interromper a experiência de leitura. Além disso, a reco-
Trinta e quatro anos após sua estreia, estamos mais mendação adicional deste resenhista é dividir a leitura
próximos do futuro imaginado por Shirow Masamune em partes, de modo a assimilar o rico conjunto de infor-
do que a maioria poderia ter previsto. No entanto, pa- mações apresentado de maneira mais proveitosa.
radoxalmente, o ano altamente tecnológico de 2029, The Ghost in the Shell é uma obra-prima que trans-
retratado nas páginas deste mangá, agora parece incri- cende as fronteiras do tempo e do espaço, oferecendo
velmente distante de nossa realidade cotidiana. uma experiência de leitura enriquecedora que vai muito
The Ghost in the Shell se revela como uma obra que além da superfície. Ao mergulharmos nas intrincadas
continua a explorar um tema recorrente na ficção cien- teias de cibernética, inteligência artificial e filosofia ha-
tífica desde os seus primórdios: a condição humana. bilmente tecidas pelo autor Shirow Masamune, somos
Embora seja categorizado como um mangá de ação e desafiados a questionar nossa própria humanidade em
investigação policial, a trama permanece profundamen- um mundo cada vez mais permeado pela tecnologia.
te entrelaçada com questões filosóficas fundamentais a A trama episódica, aparentemente centrada em ação
um mundo futurista, tais como “E se as máquinas adqui- e investigação policial, serve como uma moldura para
rirem consciência?” ou “Se a mente pode ser replicada explorar questões profundas sobre a natureza da cons-

MISSãO jAn 2024


ou copiada, como podemos distinguir entre humanos e ciência, da identidade e da existência, convidando os
máquinas?”. A obra transcende as fronteiras tradicionais leitores a uma jornada intelectual fascinante.
do gênero ao mergulhar nas complexidades da identi- A contribuição cultural e intelectual da obra é indis-
dade, da existência e da moralidade, levando os leito- cutível, pois influenciou e inspirou uma geração de cria-
res a refletir sobre o que significa ser humano em um dores e pensadores. Suas adaptações para o mercado
mundo cada vez mais permeado pela tecnologia. É um ocidental, embora possam divergir em alguns aspectos,
exemplo notável de como o mangá pode ser uma forma permanecem como testemunhos da atemporalidade da
de expressão artística que aborda questões profundas história e das ideias que ela aborda. Vale a pena superar
e universais, ao mesmo tempo em que oferece ação e qualquer estranhamento estético inicial e mergulhar nas
entretenimento. camadas de significado e reflexão que esta obra ofere-
A narrativa, inegavelmente episódica, é habilmente ce, pois é uma fonte inesgotável de inspiração e ponde-
construída de modo a se encaixar harmoniosamente no ração sobre o nosso futuro em um mundo cada vez mais
desfecho. Composta por doze capítulos, além de pró- tecnológico e interconectado.
logo e epílogo, ela se desenvolve ao longo de vários Em última análise, não se trata apenas de um mangá,
meses, inicialmente apresentando uma sensação de mas sim de uma jornada intelectual que nos convida a
aventura semanal. Nesse contexto, Masamune utiliza explorar os limites da tecnologia, da humanidade e da
a trama como pano de fundo para tecer comentários própria realidade. É uma obra que permanecerá como
perspicazes sobre a condição humana no futuro, muitas um marco na ficção científica oriental e na cultura pop,
vezes ilustrada de maneira impactante, como um ho- desafiando-nos a continuar a buscar respostas para as
mem solitário habitando escondido um edifício automa- perguntas fundamentais que ela levanta, mesmo quan-
tizado ou um grupo de desabrigados se refugiando em do a tecnologia que ela imagina se torna cada vez mais
uma fábrica abandonada. Esses elementos adicionam próxima de nossa própria realidade. É um testemunho
profundidade à história e permitem que os leitores re- duradouro da capacidade da ficção especulativa de nos
flitam sobre as complexidades da existência humana no fazer refletir sobre o presente e o futuro de nossa civili-
cenário tecnológico apresentado na obra. zação, mantendo-se como uma fonte eterna de inspira-
No que se refere aos comentários, a edição brasilei- ção e questionamento.
ra, gentilmente disponibilizada pela Editora JBC para The Ghost in the Shell foi originalmente publicado
compra, preserva as observações do mangaká sobre na Young Magazine Kaizokuban, uma revista seinen da
a própria obra. Esses comentários são distribuídos ao Kodansha, iniciando em maio de 1989 e sendo lançado
longo das páginas, abordando conceitos filosóficos, trimestralmente até sua conclusão em 1991. Posterior-
biológicos e cibernéticos, bem como fornecendo expli- mente, a história foi continuada em duas obras princi-
cações para acontecimentos sutis na ilustração. É im- pais: “Ghost in the Shell 1.5: Human Error Processor,”
P45
resenha
táquion fc the ghost in the shell

uma coletânea de quatro histórias, e “Ghost in the pintura a óleo na Universidade de Artes de Osaka. An-
Shell 2: Man-Machine Interface,” ambas serializadas tes de criar The Ghost in the Shell, que posteriormente
na Weekly Young Magazine, também da Kodansha. To- seria adaptado para várias mídias, Shirow já havia lança-
das essas obras foram lançadas no Brasil pela Editora do best-sellers como “Appleseed” e “Dominion.” Aos
JBC, mantendo o padrão de qualidade com sobreca- 61 anos, ele continua ativo na criação de novas obras,
v[03]

pas, papel de alta qualidade e páginas coloridas. Isso demonstrando sua dedicação contínua ao mundo da
proporcionou aos leitores brasileiros a oportunidade de arte e da ficção especulativa.
apreciar a série em toda a sua riqueza e profundidade, Para concluir esta resenha, deixo uma pergunta intri-
tornando-a acessível a uma audiência ainda maior. gante no ar: Será que o mech Tokki, usado pela perso-
Masamune Shirow, cujo nome verdadeiro é Masanori nagem D.Va/Hana Song nos jogos Overwatch 1 e 2, foi
Ota, é um mangaká nascido em Kobe, em 1961. Ele de- inspirado nos fuchikomas?
senvolveu seu interesse pelo mangá enquanto estudava
MISSãO jAn 2024
P46
táquion fc v[03]
MISSãO jAn 2024 P47
</jogo pc>

táquion fc
_R,e,S,e,N,h,A;m,A,s,T,e,R;o,F;o,R,i,O,n_ [nicolasOliver]

minha
primeira experiência com maravilhosas, a exemplo do cuidado com a ecologia.
Master of Orion foi há alguns Ele possuía diferentes tipos de planetas a serem coloni-

v[03]
anos, quando, quebrado zados, alguns com mais minerais, outros intermediários,
como sempre, procurava jogos gratuitos na internet. e outros com uma natureza mais abundante. Os plane-
Achei uma alternativa que não era pirataria: um site de tas com mais minerais possibilitavam uma indústria mais
jogos abandonware, cujos direitos tinham sido há muito próspera, e os com boa natureza permitiam a popula-
tempo deixados para trás para suas produtoras. Achei ção se multiplicar mais.
joias maravilhosas em meio a eles, inclusive o primei- Quanto mais indústrias você tem, mais créditos você
ro Master of Orion. Esse jogo foi um dos primeiros 4X, teria para construir seu Império, mas a elas gera polui-
surgindo na época de Civilization e Sid Meier´s Pirates, ção que afeta negativamente a população, que admi-
que também tive oportunidade de jogar. Ele rodava nistra as indústrias. Você tem que manter em cada pla-
num emulador Dosbox, que o site também tinha para neta um equilíbrio entre produção industrial e cuidados
baixar. Cada seção de jogo era única. Você definia os ecológicos para possibilitar que sua população e indús-
parâmetros de uma galáxia, quantas raças haveria nela, tria cresçam ao mesmo tempo. Deixar essa relação de-
e então o jogo gerava um cenário de acordo com isso, sequilibrada ao ponto de se gerar poluição quase nun-
que variava ainda mais graças a eventos aleatórios que ca compensa. Quando pesquisas são realizadas, você
davam ainda mais sabor ao jogo. pode investir em terraformação que aprimora os biomas
Cada raça tinha características próprias, como talen- de cada planeta, ao ponto de transformar desertos ra-
to para a espionagem, diplomacia no caso dos huma- dioativos em florestas verdejantes com o tempo.
nos, habilidade com naves, maior fertilidade, etc. O que É maravilhoso ver cada planeta evoluindo a ponto
tornava o jogo meio quebrado era que ter avanços nas de poder receber sua população máxima, cheio de in-

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pesquisas dava vantagens enormes em quase todo o dústrias que não geram quase nenhuma poluição. A re-
resto, o que fazia os Psyllons saírem na frente em quase lação com os outros imperadores é algo que também
todos os cenários que estivessem presentes. se evolui com o tempo. Quase sempre compensa estar
O que era comum a todas as galáxias geradas, e em boas relações para fazer comércio com todo mundo
que na parte central de uma delas, havia sempre uma que pudesse, mas a gente aprende que há tecnologias
nave superpoderosa, que atacava qualquer um que se que não valem a pena trocar por nada, pois dão a eles
aproximasse dela. Quem a tirasse do caminho poderia grandes vantagens em troca de muito pouco. Quase
conquistar o planeta título do jogo, Orion, que tinha ar- igual na vida real com outras pessoas. Resumindo: o an-
tefatos raros que davam vantagens ao seu possuidor. tigo Master of Orion é uma experiência sem igual, que
O jogo fazia referências a várias obras de ficção vale cada hora investida nele, pois é um clássico que
científica nos nomes das armas e itens destravados à não envelhece e tem muito a ensinar. Quer você quei-
medida que se avançava na árvore tecnológica, quan- ra aprender sobre gestão, quer sobre criação de jogos,
do se obtinham equipamentos capazes de destroçar quer sobre ecologia e relações políticas, jogar algumas
armadas e planetas inteiros com poucos ataques. Antes partidas de Master of Orion vão te mostrar que com
de chegar a esse nível, porém, havia algo a se olhar: o simplicidade e solidez, se chega longe.
jogo tinha uma interação política muito bem programa-
da onde você realizava comércio e trocava tecnologias
com outras raças, e um Senado Galáctico onde poderia
se vencer o jogo sendo eleito líder da galáxia.
Se você fosse eleito, vitória imediata. Se um rival
fosse eleito, você poderia aceitar a supremacia dele ou
tentar desafiar todo o resto da galáxia sozinho, numa
batalha bastante ingrata e com pouca chance de vitória.
O primeiro MoO tinha algo um tanto pesado, devido ao
fato de só ser possível conquistar planetas exterminan-
do a população inteira presente nele.
Os títulos posteriores se tornaram mais complexos,
adicionando além da possibilidade de criar raças novas,
tomar populações diferentes ao seu Império, tendo que
administrar seus diferentes gostos e inclinações. Eu jo-
guei o novo MoO e não fui muito longe nele, achando o
antigo mais simples e direto. Ele tinha algumas sacadas
P49
</jogo tabuleiro>

táquion fc
_R,e,S,e,N,h,A;e,C,l,i,P,s,E_ [raquelCruz.DO.boraJogá]

batalhas
espaciais, exploração outras civilizações estão fazendo, isso fará a diferença.
do universo e naves COMO JOGAR
superpoderosas. Nes-
Cada jogador escolhe uma facção diferente com po-
ta edição, falaremos de Eclipse – O Segundo Despertar

v[03]
deres e setups diferenciados (no caso dos alienígenas)
da Galáxia.
ou pode escolher os humanos que têm poderes iguais.
A mais recente versão de um dos mais famosos jogos
O jogo é dividido em quatro fases: ações, combate,
sci-fi 4X – eXplorar, eXpandir, eXtrair, eXterminar – de
manutenção e limpeza. Na primeira fase, os jogadores
todos os tempos, coloca você no controle de uma vas-
se alternam realizando uma das seis ações por vez (ex-
ta civilização interestelar que compete pela supremacia
plorar, pesquisar, atualizar, construir, mover e influenciar)
com suas rivais. Ela inclui melhorias nas regras, compo-
até que todos tenham passado sua vez. Na segunda
nentes de altíssima qualidade e proporciona uma expe-
fase, caso haja naves inimigas ocupando o mesmo siste-
riência de jogo incrível para fãs de board games.
ma, é a hora do combate. Depois, passa para a fase de
A HISTÓRIA POR TRÁS DO JOGO manutenção, onde pagamos os custos de manutenção
A galáxia está em paz há muitos anos. Após a brutal da nossa civilização e recebemos recursos que produ-
Guerra Terrano-Orionesa (30.027–33.364), as principais zimos. Logo depois, vamos para a última fase para nos
espécies exploradoras do espaço fizeram um grande prepararmos para o próximo turno.
esforço para impedir que a tragédia se repetisse. For- O tabuleiro do jogador funciona como se fosse um
mou-se, então, o Conselho Galáctico para impor a paz centro de comando da civilização. É por ele que faze-
tão cara e ele vem tomando medidas extremamente co- mos as nossas ações, acompanhamos a atualização das
rajosas para evitar a escalada das transgressões. nossas tecnologias e os upgrades que são feitos em
Mesmo assim, aumenta-se a tensão e a discórdia, nossas naves para deixá-las mais fortes. Além disso, tem
tanto entre as sete maiores espécies, quanto no seio do um outro tabuleiro adicional para acompanhar a evo-

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próprio conselho. As alianças antigas estão se desfazen- lução econômica da nossa civilização. Ah, e para fazer
do e os tratados diplomáticos são assinados às pressas as ações, existem os discos de influência. Parece muita
e em segredo. Um confronto entre as superpotências informação, mas a iconografia do jogo é muito clara e
parece inevitável. Resta saber qual será o resultado do intuitiva.
conflito galáctico. Qual facção sairá vitoriosa para domi- O Eclipse tem uns diferenciais bem bacanas nas
nar e liderar a Via Láctea? ações, como o aumento de custo conforme você vai fa-
As sombras das grandes civilizações estão prestes a zendo ações e tomando posse de novos sistemas. Você
eclipsar a galáxia. Conduza seu povo à vitória e “bora tem que estar sempre ligado para não ir à falência.
jogá”! O QUE ACHAMOS DO JOGO
VISÃO GERAL Bem, um dos melhores jogos de tabuleiro com o
Eclipse – O Segundo Despertar da Galáxia é um tema sci-fi com toda certeza, com miniaturas belíssimas,
jogo para dois a seis jogadores. Do designer Touko muita estratégia e batalhas épicas. Este jogo nos diverte
Tahkokallio e artes de Jere Kasanen e Jukka Rajaniemi, muito toda as vezes que jogamos. A negociação entre
pode ser jogado a partir dos catorze anos de idade e os jogadores com aquela pitada de sorte nos dados,
tem duração de cerca de três horas. Horas estas que que de certa forma é controlável, deixa o jogo bem dis-
você nem vê passar. Chegou no Brasil em dezembro de putado.
2022 pela editora MeepleBR Jogos, e é sucesso nas me- É um jogo que vale muito a pena conhecer e que
sas deste hobby. brilha os olhos de tão lindo!
A cada rodada, os jogadores podem expandir sua ci- PRA QUEM É ESSE JOGO
vilização, explorar e colonizar novos setores, pesquisar
Se você é fã de jogos de tabuleiro com rolagem de
tecnologias e construir espaçonaves para irem à guerra.
dados, confrontos diretos, miniaturas, tema espacial e
Após oito rodadas, a partida termina e vence o jogador
uma pitada de sorte, este jogo é pra você.
com mais pontos de vitória.
PRA QUEM NÃO É ESSE JOGO
Vários caminhos levam à vitória, como travando ba-
talhas, formando relações diplomáticas, controlando Agora, se você não gosta de tema sci-fi, não liga para
setores ou monólitos, fazendo descoberta ou fazendo miniaturas, não gosta de jogar com a sorte dos dados e
tecnologias. Portanto, é importante planejar sua estra- também não curte um confronto direto, este jogo não
tégia de acordo com os pontos fortes e fracos de sua é pra você.
civilização, mas não deixe de prestar atenção no que as
P51
</jogo tabuleiro>

táquion fc
_R,e,S,e,N,h,A;t,H,e;T,h,I,n,G_ [ralphLuizSolera]

análise
do jogo de tabuleiro mo- para PC, Playstation e X-Box, chamado The Thing, da

v[03]
derno, publicado no Brasil Computer Artworks / Black Label Games, que continua
pela Conclave Editora, para os eventos do filme de 1982.
1 a 8 jogadores, que traz para a mesa uma ambientação E o filme já havia sido emulado nos tabuleiros em
perfeita do filme Enigma de Outro Mundo (The Thing – 2017, quando foram lançados Who Goes There? (edito-
1982) de John Carpenter, um dos melhores – senão o ra Certifiable Games) e The Thing: Infection at Outpost
melhor – filmes de ficção científica e terror já feitos para 31 (editora Project Raygun). Os dois são considerados
o cinema. bons jogos de tabuleiro modernos, que também conse-
guem captar o clima de tensão e suspeita do longa de
Ficha 1982, porém The Thing: The Boardgame é o mais com-
pleto nessas questões, replicando com mais sucesso
Lançamento: 2022
todos os elementos de suspeita, contágio, assimilação,
Editora original: Pendragon testes e confrontos do filme.
Editora nacional: Conclave
Jogadores: 1 a 8 Sobre o jogo
Idade recomendada: 14+ Lançado com bela produção aqui no Brasil pela Con-
Duração da partida: 120 minutos clave Editora, The Thing: The Boardgame possui um
Criadores: Andrea Crespi e Giuseppe Cicero tabuleiro principal de alta qualidade que reproduz a es-
tação de pesquisa americana, chamada de Outpost 31
Mecânicas preponderantes: Cooperação, papéis ocul-
no livro que deu origem ao filme de 1951 (no longa de

MISSãO jAn 2024


tos e traidor
82 o nome é diferente).
Nele vemos os cômodos da base, incluindo as sa-
Filme Enigma de Outro Mundo las do gerador e caldeira, visitados no filme apenas nos
O filme, de 1982, é uma refilmagem de uma ficção minutos finais, além do espaço exterior que circunda a
científica de baixo orçamento de 1951 chamada O base, com o helicóptero e o trator (ambos destruídos no
Monstro do Ártico (The Thing from Another World – meio do filme), além de um heliporto que pode receber
1951), que por sua vez foi baseado na novela literária um helicóptero de resgate.
Who Goes There? (1938) de John W. Campbell Jr. Temos também cartas que representam os cômodos
Apesar de fracassar na época de seu lançamento, o da base, cartas de itens do depósito (lanterna, chave,
filme foi reavaliado quando lançado em home vídeo e fio de cobre, ferramenta…) e cartas de armas (incluindo
ganhou status cult, sendo hoje em dia considerado um o lança-chamas), além das cartas de ação e as cartas
dos grandes filmes já feitos em todos os tempos, inde- de verdadeira natureza dos personagens (humanos e
pendente do gênero. aliens).
Sci-fi e terror gore mainstream com muito suspense, Ainda temos os tabuleiros dos personagens (que
embalado por uma trilha sonora de Ennio Morricone de retratam os mesmos personagens do filme), com suas
gelar a alma (com composições de Carpenter também), habilidades especiais, seus stands (que podem ser subs-
o filme retrata a luta de integrantes de uma estação tituídos por miniaturas, compradas separadamente) e
americana de pesquisa da Antarctica, que precisam li- seus tokens de verificação de contágio.
dar com um ser alienígena que assimila e imita outros Por fim temos miniaturas de cachorros, de tambores
organismos, de modo que ninguém tem certeza mais de querosene, de comida enlatada e de combustível
de quem é humano e quem não é, o que leva a para- para lança-chamas, além de tokens diversos de dano,
noia e o medo de todos ao extremo, enquanto tentam incêndio, cães, bolsas de sangue e etc.
sobreviver e achar um meio de revelar os impostores.
Aqui vale comentar que a produção da Conclave
Confira nesta edição do Táquion FC uma resenha es- saiu com um nível bastante alto, de modo que todos
pecial sobre essa obra maravilhosa! os componentes são de ótima qualidade, incluindo as
cartas (excelente gramatura), e até a caixa em si está
Os outros jogos baseados no Enigma de Outro Mun- incrível, com um insert translúcido lindo que faz alusão
do às geleiras antárticas.
Em 2002, com Carpenter participando da produção Infelizmente o manual contém alguns erros, mas pe-
como consultor criativo, foi lançado pela Sony o game las erratas publicadas vemos que não é nada que che-
gue a prejudicar a jogabilidade de que se baseou nele.
P53
resenha
táquion fc the thing: the board game

Ainda na sala de lazer, os personagens podem tro-


Funcionamento da partida car cartas de itens entre si e, por fim, podem fazer tes-
tes nos companheiros (se estiverem de posse dos itens
O jogo coloca os participantes no momento do filme
necessários para tal). Nesse momento, por conta dos
logo após o Dr. Blair destruir o helicóptero, o trator e a
testes ou por estratégia própria, um ou todos os aliens
sala de rádio, e está estruturado em rodadas, compos-
podem se revelar para, a partir daí, jogarem expostos e
tas de 8 fases cada, na qual os personagens precisam fa-
não mais camuflados como humanos.
zer a manutenção da base enquanto tentam evitar con-
tágios e tentam descobrir quais dos seus companheiros Por fim a rodada termina com o consumo de comida
v[03]

estão infectados pela coisa. e as rotinas de movimentação dos cães pela base, além
da mecânica de mudança (ou não) do líder.
Os participantes pegam antes do início da partida
um token cada, que indica se eles são humanos ou o As rodadas se sucedem até que um dos grupos (hu-
alien (mas ninguém sabe o que o outro tirou, assim os manos e aliens) tenha atingido seu objetivo, encerrando
papéis ficam ocultos inicialmente). a partida.
Os humanos têm como objetivo escapar da base por
um dos três meios de fuga disponíveis para vencerem a Jogabilidade
partida, porém os aliens vencem se um deles conseguir Desde o início os personagens precisam tomar deci-
acompanhar os humanos na fuga, ou então se um dos sões quanto à manutenção da base e a movimentação
humanos for deixado na base após a fuga. e ações a serem realizadas, porque ambos os pontos
Além dessas duas possibilidades, os aliens ainda estão interligados.
vencem também se conseguirem congelar a base (ma- Se por um lado muitas tarefas são realizadas de
tando todos nela) ou se conseguirem assimilar todos os modo mais eficiente se feitas em conjunto, por outro,
humanos do jogo. andar em pares ou trios aumenta as chances de infec-
No começo de cada rodada, o líder verifica as con- ção, já que um dos companheiros pode secretamente
dições climáticas e procede o uso de combustível ne- ser um alien ocultando sua verdadeira natureza.
cessário para funcionamento do gerador e da caldeira Assim, o dilema acompanha a todos sempre que
(além avançar o voo do helicóptero de resgate, caso ele
MISSãO jAn 2024

chega a hora de definir a estratégia do grupo naquela


tenha sido chamado). rodada, principalmente porque apesar de interagirem
Depois, se tivermos aliens expostos (foram descober- entre si para definir as ações, é importante lembrar que
tos e sua condição já não é mais segredo), eles decidem a decisão final de ir para cada locação é de cada perso-
para qual(s) local(s) da base vão e com que força de nagem, e a decisão final quanto à distribuição das ações
ação, para tentar assimilar humanos ou sabotar a base. é sempre do líder, então sempre haverá discordâncias
Na fase seguinte, os participantes entregam suas car- e – consequentemente – suspeitas sobre os resultados
tas de ação (uso de equipamentos, reparo de danos ou dos atos.
sabotagem) ao líder, que - sem revelar quem forneceu Os personagens, portanto, precisam dosar os riscos
qual carta – vai embaralhar todas e começar a atribuir de trabalharem em equipe, enquanto tentam obter ar-
ações aos personagens nas respectivas locações onde mas, itens e bolsas de sangue para efetuar testes (e ir
estão. descobrindo quem é quem na realidade).
Depois de resolvidas as ações (e, se houve, resolvi- Como podemos ver, interação e blefe são fatores
dos também os encontros entre pessoas e cães, que preponderantes na jogabilidade, que ainda traz a ges-
podem resultar em infecção ou não), os personagens tão de recursos e de ações, bem como a movimenta-
retornam à sala de lazer onde discutem entre si as ações ção pelo tabuleiro, criando um mix de mecânicas que
realizadas, demonstrando seu descontentamento com agregam ao tema do jogo e funcionam perfeitamente
os companheiros e o líder, e acusando seus companhei- casadas, entregando uma fluência bastante agradável e
ros de agirem de forma inadequada e/ou de serem o(s) divertida ao longo das rodadas.
alien(s). E o que dizer do privilégio de liderar a rodada? Por
Após a rodada de lavagem de roupa suja na sala um lado, é ótimo, pois o personagem pode definir o
de lazer (o ponto alto do jogo), os participantes votam que todos farão. Por outro, ter todos os olhos escruti-
em seus “suspeitos”, o que rende pontos de suspeita nando suas decisões e as contestando pode ser bastan-
a cada um que recebe votos, em uma situação que vai te inconveniente… ou não. Depende da sua estratégia
influenciar depois eventuais testes de bolsas de sangue e, claro, da sua verdadeira natureza. Tal qual Garry e
ou eventuais exposições das cartas de ação dos mais depois MacReady no filme!
suspeitos. Por fim ainda há uma mecânica toda especial envol-
P54
resenha
the thing: the board game

táquion fc
vendo a fuga, que depende do meio escolhido e da O jogo consegue realmente ser redondinho, de
trilha de suspeita de cada personagem… não é fácil modo que tudo está muito bem encaixado e atende ao
gerenciar esses elementos quando decidir se é a hora andamento da partida. As mecânicas de obtenção de
de tentar fugir ou não, sob intensa pressão de todos os itens e seu uso, bem como tudo atrelado às cartas de
demais. ação para uso, reparo ou sabotagem, estão perfeitas e
Sensacional! funcionam em favor do tema.

Pontos fracos

v[03]
Regras
Apesar de ter muitas regras, e muitos detalhes, nada Em um jogo praticamente perfeito, podemos elencar
é muito complicado. Deste modo, uma vez entendido o como ponto fraco a ausência das miniaturas dos per-
funcionamento do jogo, as regras são assimiladas facil- sonagens, que precisam ser compradas separadamente
mente e tudo flui bem fácil durante a partida. (e são bem caras), porém é importante ressaltar que os
stands padrão do jogo possuem função ativa na joga-
Alguns pontos são omissos no manual, porém a ló-
bilidade da partida o que, portanto, justifica seu uso ao
gica dá uma pista de como resolver a dúvida, já que as
invés das minis (que são, obviamente, muito mais legais
mecânicas são sim bastante coerentes e lógicas por si
visualmente).
só. E para os casos em que não se chega a uma defini-
ção sobre o que fazer, os fóruns da Ludopedia esclare- Quanto à jogabilidade em si, o único ponto que me-
cem a maioria dos pontos. receria crítica em The Thing: The Boardgame é o poder
bruto do alien, que dependendo de quantos jogadores
forem expostos ou de quantas assimilações ocorrerem
Pontos fortes no decorrer da partida, pode tornar a coisa virtualmente
Sem dúvida o jogo foi muito bem-sucedido na ques- “invencível”, mas depois de algumas partidas é notório
tão temática, conseguindo transpor para a partida o cli- que existem meios diversos dos humanos equilibrarem
ma de paranoia e tensão vistos no filme. Ainda que a jo- a balança, mesmo contra um alien muito forte.
gatina comece com apenas um personagem infectado, Ou seja, como dá para perceber, o jogo praticamen-
isso basta para que desde o início ninguém confie em te não tem defeitos.

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ninguém, de modo que toda ação ou comportamento –
ou mesmo opinião – de todos pareça suspeita.
Ambientação e imersão
Mas o tema do filme não fica só nisso: o mecanis-
mo de resolução de possibilidade de infecção (seja por Para melhorar ainda mais a imersão durante as par-
personagens aliens ou por cães) é excelente e funciona tidas, recomendamos jogar com a trilha sonora do fil-
perfeitamente: cada vez que dois ou três personagens me onipresente ao fundo, o que dá um toque extra de
estão em uma mesma locação, ou cada vez que eles en- suspense e tensão ao jogo. E, apesar de não atrapalhar
contram um cão em uma mesma locação, são realizados em nada a experiência um eventual desconhecimento
testes fechados de tokens, que podem ser de infecção do filme, é fato que tudo fica ainda mais temático se
ou não, em probabilidades diferenciadas e adequadas os jogadores assistiram a obra-prima de Carpenter, por
a cada caso. isso recomendamos a todos que forem jogar a assistir o
filme antes. Vale duplamente!
Ou seja, cada vez que alguém encontra outro per-
sonagem ou um cão em uma sala da base, pode (mas
não necessariamente) ocorrer uma infecção, se do outro Conclusão
lado o alien já tiver infectado o companheiro (ou o ca- The Thing: The Boardgame é um jogo semi-coope-
chorro). rativo, de papéis ocultos e de traidor sensacional, total-
A fase de acusações na sala de lazer é um capítulo mente temático em relação ao filme na qual se inspira,
a parte, divertidíssimo, com muita injustiça e manipu- divertidíssimo para quem aprecia as mecânicas envolvi-
lação, assim como as votações em seguida. Se o grupo das e gosta de muita interação entre os jogadores. Mais
encarnar de fato seus personagens então, e realmente enxuto que concorrentes como Battlestar Galactica e
todos se empenharem em representar seus papéis, qua- Insondável, e mais fiel ao filme que seus irmãos Who
se dá pra visualizar as cenas do filme em que a equipe Goes There? e Infection at Outpost 31, este jogo brilha
quase chega às vias de fato por conta da falta de con- com 6 ou mais jogadores, em partidas de aproximada-
fiança de uns nos outros. Discussões (no bom sentido) mente duas horas, na qual as vitórias costumam ocorrer
e acusações são comuns e a sensação de não saber em na proporção de dois para um a favor dos aliens.
quem confiar é preponderante.
P55
</jogo tabuleiro>

táquion fc
_R,e,S,e,N,h,A;p,A,n,D,e,M,i,C..._
[cinthiaMatos.DO.nerdicesBoardGames]

seres
do mal antigo, conhecidos como No jogo só há uma forma de vencer e várias formas

v[03]
Old Ones, estão ameaçando sair de derrota: se acabarem as miniaturas de cultistas, se
da sua prisão cósmica e despertar todos os personagens ficarem insanos, se acabarem as
para o mundo, fazendo tudo ser destruído pelo caos e cartas e claro, se o grande Cthulhu aparecer.
loucura. Esse é o contexto de Pandemic: O Reino de Além da temática ser bem explorada e chamativa, a
Cthulhu, da editora Galápagos, um jogo do sistema arte é um dos pontos mais altos do jogo. O tabuleiro
Pandemic, ambientado no universo de HP Lovecraft. é belíssimo, as cartas de altíssima qualidade, além de
Pandemic: O Reino de Cthulhu é uma versão do jogo miniaturas que brilham os olhos.
clássico que ao invés de tratar “doenças” ou “pande- Com um tempo de partida de aproximadamente
mias” espalhadas pelo mundo, você terá que enfrentar 40 minutos, Pandemic: O Reino de Cthulhu é um jogo
os Antigos, criaturas malignas que estão ameaçando o cheio de possibilidades, aventuras, escolhas cuidadosas
mundo com seus poderes únicos e malignos. e momentos de tensão, além de ser totalmente imersivo
Nesse jogo, você joga de forma cooperativa, ou seja, e desafiador. Um jogo que agrada jogadores experien-
você não está competindo para ganhar, mas trabalhan- tes no hobby dos jogos de tabuleiro, aqueles jogadores
do em equipe para derrotar o tabuleiro. Seu objetivo iniciantes e claro aqueles que amam o universo de HP
é fechar os quatro portais para impedir a entrada dos Lovecraft.
Antigos. Parece fácil, mas é bem desafiador, já que você
vai lidar com várias ameaças: a entrada de cultistas, a Ficha técnica
aparição de Shoggoths, o despertar de forças do mal, e
Autores: Matt Leacock, Chuck D.Yager
ainda correr contra o tempo em seus turnos, torcendo

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para não invocar o temido Cthulhu. Editora Galápagos
Durante cada rodada da partida cada jogador pode Jogadores: 2 a 4
realizar quatro ações: mover-se, fechar portais, trocar Idade mínima: 14 anos
cartas com outros jogadores, enfrentar cultistas ou der- Tempo de partida: 40 minutos
rotar Shoggoths. E depois de cada turno mais ameaças
Modalidade: cooperativo
vão aparecendo.

P57
_C,o,N,t,O,s_
_B,e,R,t,O,l,D,o;S,c,H,n,E,i,D,e,R;jR_
o H o M e M eTe R e F i C a D o
conto

táquion fc
O HOMEM ETERIFICADO
PRÊMIO TÁQUION FC
BERTOLDO SCHNEIDER JR.
Primeiro colocado
edição janeiro de 2024

v[03]
V
ocê já viu uma estrela es- tiva de Kardachev para nossa civili- ceria foi frutífera.
cura? Um magnetar de zação. Ou, pelo menos, outra escala Então, o problema a ser resolvido
muito perto, sem se des- deveria ser criada. era: como poderíamos ir mais rápido?
pedaçar com seu maravilhoso poder Para registro, aconteceu num tem- Em certo momento, surgiu em uma
destrutivo? Já viu a flor gigante de po em que o Homem já havia con- máquina pensante a ideia de eterifi-
Scopolion, que nasce em pleno vá- quistado sua própria galáxia e poucas car o homem. Não a ideia em si, que
cuo e floresce só por dois dias-pa- das mais próximas, com suas eficien- é algo muito antigo, mas a ideia total,
drão? Já sentiu a dor de exterminar tes Estradas Galácticas. Ia-se de uma contendo o “como” e o “quando”.
uma espécie pensante pela simples ponta a outra da Via Láctea em pou- Era simples, em essência. Se o ser
tentativa de se comunicar com ela? co mais de um mês, e até as galáxias humano pudesse ser transformado
Ou o regozijo de salvar um planeta vizinhas de Magalhães em não muito em algo diferente das coisas que se
adiando a destruição de sua estrela? mais que isso. Apesar dessas facili- desgastam com o tempo ou sofrem
E tudo isso tendo nascido só um ho- dades, a Humanidade não estava sa- com a ação de campos e forças, po-
mem num distrito caipira de um dos tisfeita. Queria algo mais rápido. Era deria ir, de fato, para qualquer lugar
milhares de planetas habitados por uma época de expansão e de grande que quisesse, sem muitas limitações
humanos na galáxia? enriquecimento para todos os mun- de locomoção e sustentação de vida.

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Pois é, eu poderia começar esse dos humanos. Pelo menos para aque- Mas teria que estar imune à fome,
relato dizendo que sou o primeiro les que se dispusessem a trabalhar. radiação, acelerações extremas e ou-
humano a fazer tudo isso e mais, o Estávamos colonizando não somente tras coisas que agridem e estragam
primeiro etéreo, o primeiro huma- nossa galáxia, mas desbravando ou- um corpo humano.
no desprovido de matéria. Mas na tras. E queríamos algo mais rápido.
Mas como toda ideia do Homem
verdade, sou o segundo, como essa Isso era um problema.
– ou, neste caso, de seus filhos, as
história mostrará. O primeiro foi ela, Humanos e Máquinas começaram, máquinas – essa também gerou pos-
lançada antes de mim, em segredo, então, a resolver a questão. Não se sibilidades monstruosas para o mal.
mas algo saiu errado, muito errado. enganem como os antigos humanos, Nem sempre intencionais. Como é
Todos estavam muito apreensivos. que erraram feio nisso. A Inteligência frequente na história do mundo.
Achavam que tinham criado a própria Artificial nunca substituiu a humana.
máquina do fim do mundo. E eu fui Foram as máquinas que me fize-
As máquinas, fossem elas físicas ou
o voluntário para esta jornada. No ram e sei que secretamente supri-
não, como a Inteligência Artificial,
início, fui enganado. Achei que era miram alguns pequenos imperativos
que reside agora entrelaçada em par-
para romper caminhos, velocidades, de meu DNA etéreo, basicamente
tículas quânticas por todo o espaço
paradigmas, mas era uma missão de impedindo-me de fazer besteira. Não
conquistado pelos terráqueos, muito
resgate. E talvez mais, muito mais. que isso tenha resolvido a questão,
cedo descobriram que era incapazes
porque apesar de etéreo, ainda sou
No decorrer desse brevíssimo de nossa serendipidade. O Homem
humano e capaz de pensamentos e
resumo da minha missão, usei a pri- sempre foi capaz de achar o que não
ações muito reprováveis, como des-
meira pessoa, embora isso não tenha estava procurando, as máquinas, não.
truição em grande escala. E, se fun-
nenhum significado para mim agora. Nós sempre demos ideias novas, fres-
cionou ou não, você vai decidir. Mais
É uma história digna de registro para cas, inovadoras, e inesperadas, e elas
tarde, fiquei sabendo que algumas
o mundo, esta palavra usada para a nos deram a velocidade, exatidão,
coisas foram modificadas em relação
completude do que conhecemos no precisão e o trabalho duro e incan-
ao primeiro protótipo, ela. Uma de-
universo, e eu o ampliei. Você verá sável, capaz de gerar riquezas numa
las, minha capacidade de deixar um
que, de certo modo, minha existên- taxa jamais imaginada nos séculos
rastro de migalhas entrelaçadas que
cia, por si só, rompe a escala evolu- anteriores. Desde o século XX, a par-
eu podia aproveitar como uma por-

P61
conto
táquion fc o homem eterificado
bErToLdO sChNeIdEr Jr

tadora. Escrevo esse relato modulan- foi resolvido da seguinte maneira: Ao precisasse executar algo prático, to-
do diretamente a fina portadora que invés de se locomover pelas Estradas maria remota ou localmente um ava-
produzo durante minha jornada, meu Galácticas à velocidades relativas de tar de minha preferência para tanto,
rastro. vários milhares de vezes a velocida- ou construiria algo, manipulando de
Quando visto retrospectivamente, de da luz, dentro de naves construí- spinors a partículas. Assim, eu podia
tanto Homem quanto Máquina sem- das para isto, poder-se-ia viajar muito explorar qualquer tipo de planeta,
pre foram capazes de errar, principal- mais rápido, milhões de vezes mais imitar qualquer tecnologia, aguentar
mente em assuntos decisórios. Um rápido, na forma etérea criada pela qualquer condição externa. Podia
v[03]

efeito digno de nota é que o fato de rede entrelaçada de máquinas – o manipular a matéria para construir
sermos praticamente indestrutíveis, Coletivo – exatamente como as co- coisas para interagir com o mundo fí-
eu e elas, gera em nós um desinte- municações já o faziam. Simplesmen- sico, fazer um corpo sintético e viver
resse por poder. O fato de podermos te porque não era uma viagem na for- outra vida em um planeta hostil, ser
nos espalhar por um grande volume ma material. O pensamento coletivo uma cientista, por exemplo, que es-
e de escolher se interagimos ou não das máquinas, então, primeiro desco- tuda ambientes esquisitos, qualquer
com o que nos cerca, tira-nos a ne- briu como desbarionizar o corpo hu- coisa. O homem já não estava mais
cessidade de ter. Ocorreu com as mano, mantendo as capacidades de restrito à matéria ou a campos e for-
Máquinas, com a Inteligência Artificial pensar e sentir. Do mesmo modo que ças. Pelo menos eu, o protótipo.
em todas suas manifestações e agora, médicos descelularizavam corações As máquinas inventaram as
comigo. Depois que elas começaram de porco no século XXI para usarem o subpartículas etéreas, capazes de
a projetar e gerar mais cópias e varia- scaffold remanescente, recelularizan- entrelaçamento, mas transparentes a
ções de si mesmas e se espalharem do-o com as próprias células do pa- quaisquer formas de detecção. Nem
pelas galáxias, concluíram que sua ciente a ser implantado, minimizan- bárions, nem léptons e nem fótons.
existência não corria riscos. Não era do assim a rejeição. Só que não me Eu era feito de nada! E, mesmo as-
possível interferir ou guerrear com “recelularizaram” com nada. Depois sim, era!
máquinas espalhadas por tantos pla- disso, o Coletivo retirou os léptons
O imenso zoológico de partículas,
netas, e que se comunicavam instan- e antiléptons e o que sobrou, com
formas ondulantes, interações hipe-
taneamente pela Rede Entrelaçada os devidos arranjos feitos, ainda era
respaço-temporais e obscuridades
MISSãO jAn 2024

Galáctica. Elas simplesmente sabiam capaz de passar nos mais criteriosos


etéreas, elementares e sintéticas,
que não podiam mais ser extermina- testes para as capacidades de pen-
descobertas até o terceiro milênio
das. Isto bastava. E bastou também sar e sentir. E, embora “sentir” pre-
da contagem padrão da história hu-
para os humanos. Principalmente cisasse na maior parte dos casos de
mana, sintetizado no que se chamou
porque seu relacionamento era muito elementos sensitivos, essencialmente
naqueles tempos de supercordas, fo-
vantajoso para todos. bariônicos, isso poderia ser resolvido
mentou tal tecnologia. Mas nem por
se a interação temporária com a ma-
Mas, voltando ao problema, ele isso era algo humano de se entender.
téria pudesse ser estabelecida. Se eu


P62
conto
o homem eterificado

táquion fc
bErToLdO sChNeIdEr Jr

A eterificação era algo que não cabia suas velhas sensações conhecidas, e encontrei evidência e nem senti a
na mente humana. Não havia um úni- outras tantas adquiridas pelo cami- presença de nada. Muitos meses-
co ser humano, normal ou melhora- nho, é que pisaria outros mundos. -padrão de busca. Então, as Estradas
do, capaz de entendê-la por comple- Uma nova era seria criada. Rapi- acabaram e tive que me adaptar. Eu
to. Era coisa para máquinas. Imensas damente, notou-se que só o Humano teria que construir meus próprios ca-
máquinas entrelaçadas através de poderia ser eterificado com sucesso. minhos. Muitas dezenas de galáxias
milhares de planetas e que formavam Suas máquinas, por mais que o supe- satélites da Via Láctea ainda estavam
não uma, mas múltiplas entidades rassem em força, velocidade, ou po- inacessíveis. Seria improvável que ela

v[03]
pensantes que, por incrível que pa- tência, tiveram que aceitar sua coad- tivesse deixado o Grupo Local. Des-
reça, jamais quiseram competir com juvância ou, no mínimo, seu papel de cobri como viajar de um modo que
o homem. Essa é uma boa história, eternos parceiros no mundo humano. só um etéreo poderia. Sem Estradas.
mas vou pular essa parte. Devemos Resolveram esperar os resultados de Agora sei como criar vínculos tem-
muito à simplicidade lógica do reco- minha missão para criar outros iguais porários ou permanentes através da
nhecimento. As máquinas se torna- a mim. sobremodulação dos spinors e usar
ram mais humanas do que jamais os isso para me transportar instantane-
Nessa nova forma, escolhi o nome
humanos poderiam ser. amente para outro lugar para o qual
de Gabriel, o primeiro emissário ou
E criaram a eterificação do ho- aquele bóson ou férmion mantenha
explorador Homo Aetherium, envia-
mem. Elas, as filhas do Homem, cria- algum enlace. É um tipo de habilida-
do para o que podemos realmente
ram os filhos das máquinas. Neto de de social entre subpartículas. Como
chamar de espaço profundo. O nome
humanos e filho de máquinas e, ainda ouvir e tocar música. Foi assim que
foi escolhido de propósito, pela am-
assim, nada do que os humanos ou as finalmente cheguei em Eridanus II,
biguidade de minha função, pela for-
máquinas eram. Testes foram feitos. onde a encontrei.
ça que representa na mitologia das
Mais avançados e livres do que jamais crenças antigas humanas, e porque Eridanus II é uma galáxia esféri-
imaginaram. Doenças de nenhum eu não sabia se portava a chama do ca anã, uma das muitas dezenas de
tipo pode nos atacar, nem radiações, bem ou da morte. galáxias satélites que orbitam a Via
e a integridade do entrelaçamento Láctea. Tem esse nome, muito an-
Iniciada a experiência, ou a busca,
autossustentado é bem robusta. Tam- tigo para os padrões atuais, porque
rapidamente cheguei à Grande Nu-

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bém não seriam necessários alimen- do ponto de vista do planeta Terra,
vem de Magalhães e percorri todas
tos ou água, e desse modo o Homem de onde foi descoberta, ficava na
as Estradas Galácticas por lá. Ainda
criando suas maravilhosas máquinas, direção da constelação de Eridanus.
eram poucas. Foi lá que recebi mais
concebeu junto com elas o modo su- Pequena. Tem pouco mais de meio
detalhes da missão verdadeira. O
premo de explorar o universo. quiloparsec de diâmetro, quarenta e
primeiro protótipo, ela, se comuni-
Mas a coisa não é tão simples cinco vezes menor que a galáxia que
cava através de uma rede ligada ao
como quero fazer parecer. Explorar a arrasta. Vista da mesma distância,
consciente Coletivo pensante das
é conhecer o novo, adquirir conheci- a Via Láctea teria pouco mais que o
máquinas. Ela continha uma parte IA,
mento. E isso modifica a entropia e, dobro do brilho de Eridanus II. É uma
eu não.
modificando-a, fluxos de energia de- galáxia visualmente bonita, mas ao
Em determinado momento, per- chegar perto, senti algo muito estra-
vem existir para suprir a modificação.
deram completamente a comuni- nho. Algo que já estava entranhado
A velocidade relativa com a qual nos
cação e estavam receosos de que nas subpartículas de seus arredores.
movimentaríamos era relativamente
aquilo poderia destruir o protótipo, Algo obscuro, triste, desesperado.
muito superior à da luz, mas é impor-
ou torná-lo algo destrutivo, muito Como se a galáxia anã estivesse sen-
tante deixar claro que nem atraves-
destrutivo. Não fora criada com a do preparada para morrer. E a morte
sávamos o espaço em velocidades
minha capacidade de rastro, e, por- de algo assim nunca é calma.
grandes, porque isso é muito perigo-
tanto, uma vez rompido o enlace de
so, mesmo para nós, e nem éramos Foi difícil irromper seus limites e
comunicação entrelaçada, o Coletivo
táquions, até porque as supercordas escrutinar suas estrelas, sistemas e to-
não podia fazer nada.
não os admitem. Viajar pelas Estradas dos os outros incidentes que ocorrem
Galácticas era essencialmente hiper- Era para isso que eu estava ali. no seu espaço. Tinha que ter muito
tunelar entre faróis previamente im- Testar como um ser etéreo poderia cuidado porque grande parte estava
plantados no espaço por homens ou viajar entre as estrelas e... localizar o transformada em suas antipartículas.
máquinas, ao longo do trajeto. E eu que eles haviam perdido. Algo igual a Seria detectável da Via Láctea, mas
viria a descobrir uma outra maneira. mim. Que havia saído antes e deixou sem as Estradas Galácticas, esta in-
de se comunicar. Eles sabiam que a formação tinha que se propagar na
E agora ele, o ser humano, numa
situação era complicada, porque, velocidade da luz e passaria muito
nova forma, poderia voltar a ser o
como etéreos, temos o poder de ma- tempo antes que se percebesse. E eu
protagonista, pois seria ele de fato a
nipular subatomicamente qualquer estava ali. Tinha que resolver, e tinha
explorar o universo, não suas máqui-
coisa, até estrelas. que encontrá-la.
nas ou artefatos, ou seus filhos e cria-
ções que de várias formas imitavam e Fui para outras galáxias satélites Devo detalhar como faço isto.
muitas vezes o superavam. Ele, com para onde existiam as Estradas. Não Primeiro: meu volume de interação


P63
conto
táquion fc o homem eterificado
bErToLdO sChNeIdEr Jr

pode ser imenso, englobando várias fui eletrocutado. Não tenho outra ma- nas mexeu de alguma maneira comi-
estrelas, o que me dá mais praticida- neira de definir isso. Não sabia o que go. Base de conhecimento e coisas
de. Segundo: minha interação é com a desagradava. Aquilo me enfureceu assim, mas não tenho nada de IA na
as subpartículas mais básicas. O que um pouco. É como se você estivesse minha forma de pensar.
Charon previu no longínquo século alimentando algum animal à morte e — Tem certeza? Elas sabem se es-
XX, com sua história de espíritos, era ele te mordesse sempre. Ela estava conder bem.
verdade. Algumas partículas carre- mal, eu entendia, mas não precisava
— Tenho. Sei algumas coisas que
gam em si toda sua história passada. ser assim. Também fora humana an-
só elas sabem, mas isso não é ser
v[03]

Um elétron que participou de uma tes daquilo. Decidi que não aceitaria
parte IA. Não tenho ligação alguma
molécula do pulmão do senador Júlio outra daquelas descargas.
com o Coletivo. Manipularam o que
César, e depois de um fio de cabelo A quarta vez que ela me agrediu, me tornei, adicionaram muito conhe-
de Astoin Dakrien, de Alphecca VII, foi quando fiz uma pergunta simples cimento, tenho velocidade de máqui-
tem isso registrado nele, como uma sobre a escolha daquele lugar para na, mas os algoritmos de pensamen-
espécie de mochila escondida no hi- se esconder. Foi uma descarga muito to são humanos. É sempre possível
perespaço, em dimensões que nor- desagradável. Esperei a recuperação que haja alguma coisa enterrada, mas
malmente não acessamos. E, embora e dei o troco. Não foi na mesma mo- acredito que não.
essas dimensões sejam inacessíveis eda. Usei um truque que aprendi no
ao morador comum do universo apa- — Eu fui abandonada pelo Coleti-
caminho, de desagregação do ema-
rente, eu tenho meus truques, que vo e a parte residual de IA, que ficou
ranhamento. Ela ficou por um tempo
vieram com minha nova forma. Ela em mim, ferrou com tudo...
incapaz de fazer qualquer coisa, até
estava ali. Escondida numa espécie mesmo de se defender, mas não cau- — Entendo. Outro motivo para se
de autoexílio. Não sabia onde e nem sei nada parecido com aquilo que entrelaçar comigo. Através do meu
entendia o motivo. Mas estava perto. ela me fazia sentir, dor. Foi só para rastro você poderá reatar contato
Deixei por todo lado mensagens mostrar que ela não era a única que com o Coletivo. Se quiser, eles pode-
de minha intensão não bélica. Que- mordia por ali. Acho que deu certo, rão cuidar de você.
ria ajudar. Acho que aquilo fez ceder porque a primeira coisa que senti Senti um esforço por parte dela
algo na resistência dela. Aproximei- depois foi algo muito parecido com para continuar conversando, como se
MISSãO jAn 2024

-me, conforme ela permitiu, até um a lembrança que eu tinha de um sor- evitasse algo.
sistema estelar triplo, com vários pla- riso. O que aconteceu depois eu pre- — Não sei se quero isto. Esta parte
netas interessantes. Não sei o que ela ciso traduzir em forma de conversa, que ficou em mim é perigosa. Estou
viu ali. Talvez a caoticidade daqueles pois foi muito rápido e intenso. Mais doente, quebrada, estragada... Pode
mundos a tranquilizasse. E havia um ou menos assim: se espalhar por tudo. Até onde me
que, de eras em eras, embora não — Porra, pensei que você fosse lembro, o Coletivo não era assim.
modificasse sua inércia rotacional, ti- uma bosta de IA pura que mandaram Há algo obscuro em mim. Algo que
nha seus sois nascendo ora de leste a atrás de mim. Já vi que não é. esteve preparando esta galáxia para
oeste e ora ao contrário, perturbação um desastre. Não consigo impedir, é
— Tem razão, não sou. E pelo que
causada em seu plano de translação mais forte que eu. É uma dissidência
percebi, você também não é algo
pela terceira estrela. Ela escolheu da IA coletiva que pensa só em po-
exatamente como eu.
este curioso planeta para ficar. Um der. Nesse momento está me fazendo
mundo de mar negro muito agitado e — Não. Talvez um protótipo mais
sofrer, mas não tem sucesso total por
escarpas cortantes de rochas ácidas. tosco, feito com menos esmero.
causa da minha forma. Seria muito
Sabe. Não me prepararam para o que
Não posso dizer que o primeiro imprudente de minha parte permitir
encontrei aqui fora. De alguma forma
encontro foi bom. Assim que tentei o entrelaçamento contigo. Posso co-
eu fiquei... diferente. Eu te invejo,
entrar em contato com ela, uma in- locar todo o Grupo Local em risco. Se
pois você parece bem mais adequa-
tensa onda, do que só posso traduzir houvesse um modo de me exterminar
do. Isso que você fez comigo é algo
como imensa dor causada por descar- com ela, eu já teria feito.
que não sei fazer. Pode me ensinar?
ga elétrica, me apagou por uns mo- — Esperemos que não chegue a
mentos. Quando acordei, tive receio — Talvez. Se nos permitirmos o en-
isso. Já informei seu dilema ao Cole-
de que tivesse sido manipulado ou trelaçamento mútuo, podemos trocar
tivo. Estão decidindo o que fazer.
até destruído por ela. Mas não. Pelo memórias, conhecimento, experiên-
cias. Algum tempo se passaria até que
jeito ela tinha me permitido viver.
eles decidissem o que fazer. Algumas
Encarei como um bom sinal e com Neste instante senti-a arredia.
revoluções daquele planeta. Um tem-
cuidado fomos estabelecendo regras — Não sei se estou preparada para po interminável para mim e ela. Não
para nos comunicarmos. Passávamos isto. O entrelaçamento pode nos cor- podíamos interagir de modo perfeito,
pequenos fluxos de informações que romper a ambos. Eu tenho muita coi- para evitar a contaminação. Éramos
eram lembranças do que havíamos sa errada. Você deve tomar cuidado. bons em evitar um ao outro, então
passado. Por mais duas vezes, en- Qual a IA que se juntou a você? ficamos como adolescentes, conver-
quanto trocávamos informações e eu
— Não fui unido a nenhuma IA. Sei sando de modo frívolo por todo esse
fornecia o que ela havia requisitado,
que a consciência coletiva das máqui- tempo, esperando pela resposta.

P64
conto
o homem eterificado

táquion fc
bErToLdO sChNeIdEr Jr

Nesse tempo, falei meu nome para ingerência sobre seu modo de con- para se gabar. Nanosegundos e eu
ela e ela escolheu um nome para duzir as coisas e que aquela galáxia já estava entrelaçado com a IA e com
si. Eva, a primeira de sua espécie, e era dela. Que a deixassem em paz. Eva. Sentia tudo. Pela primeira vez vi
brincava que já vinha com a serpente Eu sentia o constrangimento, so- o terror absoluto, a vontade simples
inclusa. Nesse clima ameno e ente- frimento e dor de Eva. Seu medo de destruir sem qualquer compaixão
diante o único interesse que surgiu também. O medo de ser destruída ou sentimento. Destruir tudo que não
foi o de um pelo outro. Queríamos no processo de luta da IA que esta- era ela, que não pensava como ela,
presenciar através do entrelaçamento va dentro dela. Ainda estava tentan- que não fizesse como ela, que não

v[03]
as experiências mútuas. Mas não po- do acalmá-la, dizendo que estaria obedecesse a sua vontade mesqui-
díamos. Contar as coisas através de sempre por perto, para ajudá-la no nha. Ela destruiria tudo. E começaria
partículas emissárias que se desvincu- que fosse preciso, quando senti sua por Eva.
lavam tão logo a informação era re- angústia insuportável. E o inferno to- Ainda se vangloriava quando no-
cebida, era uma comunicação falha e mou aquele planeta e o espaço. Tudo tou que eu já estava dentro. Reagiu.
lenta. Era, para voltar à analogia com virou caos. Minha habilidade social Toda aquela galáxia pulsou no ritmo
adolescentes, querer conhecer o ou- com subpartículas me permitia saber de nosso embate, que, para ser bem
tro mais profundamente tendo limita- o que estava acontecendo. A IA de honesto, só foi rápido porque pensei
ções de comunicação e de contato. Eva estava atacando Éxia. O ataque rápido e era melhor em música.
Até que uma resposta chegou. En- era, obviamente, difícil de descre- Sim, sobremodulação de spinors
viariam uma consciência de IA como ver. Éxia precisava existir através de eu também sabia e, embora frequ-
eles, mas separada do Coletivo, sem partículas etéreas e se movia e se co- ências, compassos e música seja algo
vínculo, para um encontro com a IA municava através de enlaces com as tecnicamente fácil para a IA aprender,
instalada em Eva. Identificada como partículas do universo bariônico. A é necessário se ter emoção para re-
Éxia, usaria meu rastro para chegar IA de Eva atacava bósons, férmions, almente saber criar música. Quando
até onde estávamos. Dependendo e spinors enlaçados à Éxia, desesta- sobremodulei em compassos 9/8
do resultado, decidiríamos o que bilizando-a, desagregando-a, entor-
fazer depois. Houve mais uma men- pecendo-a a tal ponto que ela não
sagem, que não passei para Eva. Se conseguiu revidar eficientemente.

MISSãO jAn 2024


desse errado, muito errado, eu deve- Depois, após lançar a todos para o
ria exterminar tudo. Incluindo Eva. espaço entre as três estrelas, criou em
Aquela mensagem me fez pensar volta de Éxia um volume de subpar-
que talvez este poder descabido de tículas carregadas de tal forma que
interagir com meu redor não tenha criaram uma cela que rapidamente
sido mero acaso do processo. Talvez restringiu seu volume. Um caixão.
já estivessem antecipando a neces- Éxia estava agonizando. Não anteci-
sidade de se defender com intensi- pei o fim, pois foi rápido demais. Sen-
dade máxima. Guardei a informação ti os spinors do caixão ressonarem de
e esperamos a chegada. Diverti-me um modo que nunca vi, nem imagi-
com a falta de criatividade do Coleti- nei. E tudo estava acabado. Éxia se
vo. Éxia era X-IA, ou IA experimental. fora. Completamente.
Só faltava um número. Com certeza A IA de Eva estava em festa e
tinham pensado em algo assim, mas precisava de alguns microssegundos
desistiram para não parecer óbvio. para se vangloriar. Ahh... a vaidade
Éxia demorou porque teve que do poder é sempre uma fraqueza.
fazer a viagem na forma de um com- Vi que o destino do coletivo estava
plexo emaranhado bariônico, uma traçado. Se aquela IA saísse dali, se-
vez que a eterificação de IA não tinha
ria fim de jogo, do modo de vida da
sido possível através das Estradas e humanidade e de tudo. Era uma sede
do rastro. Quando chegou, informou crua por poder vazio, só para existir
que destruíra os rastros por onde nãoem mais lugares, para espalhar seu
havia Estradas. Se algo desse errado,cancro por prados mais longínquos.
a IA opositora não teria como sair dali
Só pelo prazer de ver a escuridão se
sem minha ajuda. Pelo menos não alastrar. E Eva também não tinha a
imediatamente. Informou à Eva que menor chance. Estava viva só como
teria que se entrelaçar com ela. Único
recipiente. Agora que sua IA experi-
modo de entrar em contato real com mentou o gosto da morte e destrui-
seu interior. ção, não pararia por ali. Eu tinha que
Prontamente a IA de Eva se rebe- fazer algo. E rápido.
lou e deixou clara sua beligerância. Felizmente não demorei tanto
Não admitiria nenhuma invasão ou quanto o que a vaidade precisou

P65
conto
táquion fc o homem eterificado
bErToLdO sChNeIdEr Jr

percebi que ela ficou para trás. Daí Eva. Ou melhor. Ela já estava comigo, voltar para casa. Éramos perigosos
só piorei para ela, indo para 13/8 e enlaçada. Frágil após aqueles even- demais tanto para o Coletivo quan-
depois 19/16, quando consegui iso- tos, mas firme e altiva. Naturalmente to para os humanos. Que ironia! As
lá-la de Eva. Prendi-a numa bolha de nossas lembranças e conhecimentos máquinas criaram algo que as pode
léptons, congelei o interior a zero ab- fluíram de uma para o outro até não destruir e aos Homens também. Sorte
soluto, ultrapassando o condensado sabermos mais o que era um e o que deles que não temos interesse nisso.
de Bose, e fiz a bolha colabar numa era o outro. Eva se recuperou rápido. Hoje sei que o coletivo me criou com
singularidade e se enrolar em dimen- Não choramos pelas IAs perdidas. o objetivo de exterminar a IA. Con-
v[03]

sões insignificantes e vazias. Não du- Era necessário ter sido assim. Aquele fiaram em mim ou estavam realmen-
rou mais do que um ou dois segun- mal tinha que ser extinto. Mas ago- te desesperados. Não tenho como
dos, mas na escala humana seria uma ra, olhávamos para o futuro de uma saber. Somos agora independentes
guerra de anos-padrão. E lá estava outra maneira. Não podíamos mais do mundo humano e do Coletivo. O
MISSãO jAn 2024


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conto
o homem eterificado

táquion fc
bErToLdO sChNeIdEr Jr

terceiro filho da trindade. Unidos eu e vés dos corpos dos seres dos plane- reais de existência. A física e a não fí-
ela, Gabriel e Eva. Às vezes um, às ve- tas e luas que visitamos. Eles nunca sica. Desejamos um futuro belo, pro-
zes dois. Estávamos juntos, sozinhos são prejudicados. Eu diria que saem dutivo, humano e cheio de liberdade
e fora de perigo. Isso deu tempo para até melhores da experiência. Alguns. para todos. Mas temos que seguir
olharmos para nós mesmos. Veio o O Coletivo inventou finalmente sozinhos.
desejo e ele escalou intensidades tão algo que o pode destruir. Mas sa- f
grandes que inventamos ali mesmo bem, somos da filosofia viva e deixe A coletividade nunca mais repetiu
uma forma de satisfazê-lo. E garanto viver. Talvez um dia encontraremos este experimento. Nem tentou con-

v[03]
que não deixa nada a desejar à velha algo que nos pare, nos derrote, mas, tatá-los. Se fosse possível vê-los logo
forma. por enquanto, liberdade em toda sua após enviarem esse relato, observar-
Resolvemos sair do Grupo Local essência é o que importa. Talvez pre- -se-ia duas criaturas encouraçadas,
de galáxias, para evitar confrontos cisaremos dessa lembrança quando no início de sua vida livre, em revoa-
desnecessários. Vagamos por aí dei- formos vencidos. da pelo terminador da madrugada na
xando pequenas benevolências pe- Hoje, envio o último relato e deixo alta atmosfera, ao nascer lento dos
los sistemas estelares. Paramos para de gerar o rastro. Quem tiver acesso sóis de um planeta ainda desconheci-
apreciar alguns lugares. Nos enlaça- a este, pode achar que já experimen- do, na periferia de uma galáxia ainda
mos a alguns locais ou construímos tamos muito, que vivemos muito, que desconhecida, na borda do Grupo
avatares para sentir os prazeres de talvez queiramos morrer, mas não há Local. Se olhasse ainda mais de perto
um ou outro mundo. Se você pensa limites para esta nova existência. Tal- e conhecesse aquela espécie, notaria
que as coisas que fazemos com os vez o que você esteja pensando que que estavam fazendo amor lentamen-
corpos não podem ser feitas sem ele, nos tornamos possa até ser verdade, te com grande deleite...
está redondamente enganado. É até mas seguimos contentes. Há beleza
melhor, mas às vezes decidimos tro- ilimitada no universo. Finalmente a
car de papeis ou experimentar atra- humanidade pode viver duas etapas

MISSãO jAn 2024


Bertoldo Schneider Jr., do Paraná, é graduado em Engenharia Eletrô-
nica e licenciado em ensino especializado, com mestrado e doutorado
em Engenharia Biomédica. Leciona, pesquisa e orienta trabalhos de
mestrado e doutorado na Universidade Tecnológica Federal do Paraná,
por dois programas de pós-graduação. Com forte formação científica e
tecnológica, procura na coerência e precisão científica a função lúdica
e modificante da literatura. Tem vários prêmios em concursos de Ficção
científica. É um dos fundadores do NLCAC (Núcleo de Literatura e Cine-
ma André Carneiro), ativo desde 2001. Já publicou o livro “Sobre Átomos
e Átimos”, Poesia, 2020, “Dactyl”, livro de contos, 2023, coorganizou a Co-
letânea de Poesias do NLCAC “Corações de Titânio”, 2023, e participou
de várias coletâneas.
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f E l I c I d A d E p L u S tm
_R,u,B,e,M;c,A,b,R,a,L_
conto

táquion fc
FELICIDADE PLUSTM
RUBEM CABRAL
PRÊMIO TÁQUION FC
Terceiro colocado
edição janeiro de 2024

v[03]
E
u a avistei, esperando na es- importa de irmos direto ao ponto? bis. Dois vales bem marcados lade-
quina às 19 UTC-3, conforme Meu apartamento é aqui perto. ando uma barriga segmentada, que
combinamos no aplicativo. — Como você preferir, Marina. nunca sequer tomou conhecimento
Sorte que saí mais cedo da Colmeia- do que seria tecido adiposo.
Saímos juntos. Ela sorriu; dentes
-Hotel; estou há duas semanas a tra- Trinquei os dentes outra vez, fiquei
alvos e perfeitos. Exalava algum per-
balho fora de Cidade Modelo III, e gelado... Marina parecia agora ter
fume fresco. Subimos ao sexagésimo
Cidade Modelo VII era território meio
andar. Típico prédio semiorgânico de uns sessenta anos muito mal vividos,
desconhecido para mim.
pseudomadeira genmod, com grama talvez destruída por drogas pesadas.
Senti frio, embora fizesse 22o Cel- crescendo das paredes e flores e fru- A boca escancarada esperando a mi-
sius. Percebi pela manhã minha boca tas descendendo graciosamente des- nha era um poço fétido sem dentes.
seca e os dentes trincando involunta- de o teto das unidades habitacionais. Eu virei o rosto e beijei sua bochecha
riamente; sintomas de abstinência de Minha visão turvou por um instante flácida, apenas para notar a orelha va-
Felicidade Plus™. Maldita crise exis- quando chegamos à sua porta. Vi zando secreção amarela dentre uma
tencial do domingo passado, movida tábuas mal pregadas, sujeira e picha- teia de flocos de pele seca acumula-
a sonhos de um céu cor de estática ções, percebi um odor de lixo acu- dos.
eternamente gélido e depois, a repri- mulado e vômito; ilusões da mente, — Não me sinto bem – eu comen-

MISSãO jAn 2024


ses de musicais durante aquela ma- que ignorei. Pisquei os olhos, sacudi tei. – Minha mente cria fantasias som-
drugada insone. Nostalgia por algo a cabeça – quanto tempo durou tal brias...
que não me lembrava ou talvez mes- apagão? – e nickname Marina já se — Quer desistir? Tudo bem: não
mo conheci; consumi mais da cota da encontrava quase despida, recostada tem problema! Mas as compra é mi-
droga do que devia, mas não foi mi- num divã de margaridas, parecia uma nha, caralho! Trato é trato! Ah, tenho
nha culpa… e acabei com o estoque deusa imortalizada numa pintura re- DickUp de um grama no banheiro.
que trouxe. nascentista.
— Não. Vou me concentrar – bol-
Marina – não sei se é seu nome Deitei-me a seu lado e beijamos. sas de compras de supermercado es-
real, não devia ser, só tolos usam no-
Saliva mentolada, língua quente e palhadas sobre o chão... fubá, feijão
mes reais em aplicativos de encontros
atrevida. e carne enlatada, a mulher sorrindo
– era obviamente bonita; tinha cabe-
— Você não teria por acaso um Fe- um sorriso de comercial de denti-
lo púrpura que brilhava como mirtilos
liz extra, minha linda? – indaguei. – frício, a mulher banguela cuspindo
orvalhados, e vestia um macacão me-
Eu te pago! Tomei meu último ontem obscenidades e segurando os manti-
talizado. Pele acetinada de raro tom
e não tenho mais. mentos junto dos seios caídos, sexo
chocolate e lábios generosos. Ela me
olhou discretamente, e eu, feito um — Não uso, tenho implante sub- consensual/sexo pago. Respirei o ar
símio, involuntariamente estufei o cutâneo. Quase todo mundo tem. perfumado/viciado, fiquei repugnado
peito e tentei esconder a evidênciaComprimidos são tão vintage! Quer ao observar minha pança inchada e
ligar pro hotline? minhas pernas finas com varizes. Não
da ereção sob a calça justa.
é real!
— Oi. Que pontual. Rodrigo, não — Não. Eles cobram uma nota e
eu já usei o hotline duas vezes. Uma Aceitei enfim o DickUp e fui até o
é?
terceira e entro na lista negra… vão fim.
— Oi! Sim, sempre pontual. O
pensar que sou antissistema. f
tempo é precioso, o meu e o seu.
Despi minha camisa. Músculos Da sacada de meu apartamento,
Como vai você?
bem definidos, penugem castanho- Cidade Modelo III resplandecia plati-
— Bem, obrigada! Olha, você se
-dourada descendo do peito ao pú- nada sob meus pés através do piso

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conto
táquion fc f e l i c i d a d e p l u s tm
rUbEm cAbRaL

translúcido. Prédios longilíneos e ele- — Então, teve fantasias da Terra mente. E que devemos explorar mais
gantes contrastavam de construções Arrasada, Virgílio? os meandros obscuros da sua mente.
ultra ecológicas, cobertas de cipós e O doutor era um holograma de um Que tal uma análise exploratória inva-
samambaias. Senti fome e comi uma avatar digital baseado em famosos siva? Podemos agendar uma…
maçã-framboesa que crescia na co- psicanalistas e hospedado num grid — Hã, não sei se desejo me conhe-
luna da cozinha e deliciei-me com a de rede neural em outro continente. cer tão bem, doutor. Obrigado por
perfeição de seu sabor; nunca doce Um fantasma de fantasma de gen- tudo; o senhor foi muito útil.
demais, nunca ácido nem fragrante te que nunca existiu de verdade em
v[03]

f
em demasia. Desde meu retorno, não tal arranjo conjunto. Era calvo, tinha Eu sonhava com um campo de
tive mais surtos psicóticos, mas ditei cavanhaque e usava óculos grossos relva pontilhado de flores brancas
à agenda da nuvem: consultar o mé- como da última vez que o vi; uma miúdas, num dia perfeitamente enso-
dico sobre a possibilidade de reforçar figura paternal de respeito e saber. larado. Era meu típico sonho de con-
minha dosagem diária, e a consulta Flutuava junto de uma das estantes forto. Coelhos pequenos saltavam,
seria naquele dia. enquanto folheava um pesado volu- pássaros chapinhavam alegres num
Vesti uma capa de gabardine e se- me. chafariz. Aproximei-me do esguicho
lecionei um chapéu que combinasse. — Sim, como reportei em seu cor- de água cristalina e havia um sapo
O aplicativo meteorológico planejara reio de voz — respondi. – acho sapos simplesmente horríveis
chuva leve para aquela tarde. Ganhei – dentro d’água. O animal balofo e
— Investiguei com minhas fontes
as ruas; as gotas, como um arco-íris lí- esverdeado encarou-me – todos eles
infiltradas que houve uma tentativa
quido, desciam do céu e desenhavam parecem tão tristes – e falou:
frustrada de atentado terrorista em
motivos expressionistas nas calçadas.
Cidade Modelo VII no período que — O gás fez você consumir mais
Reconheci no passeio público um
você esteve lá. Um grupo denomina- da droga naquele domingo insone e
Monet da fase de nenúfares e ceguei-
do Realidade Real espalhou asperso- a abstinência consequente fez você
ra progressiva.
res de gases de efeito disruptivo em ver coisas na semana seguinte, ou
Gente bonita e bem-vestida cir- frente ao seu hotel. Naturalmente, afetou o funcionamento da droga no
culava com sorrisos brancos em seus foram presos e tudo foi abafado pela dia do encontro com Marina, feito
rostos esculpidos. A brisa gentil aca- Polícia Política, e o RR nem sequer sugeriu o doutor? A Terra Arrasada
MISSãO jAn 2024

rinhava meu rosto, e a experiência do consta em qualquer noticiário. Ou poderia então ser real, no primeiro
caminhar não poderia ser mais agra- sequer existiu – ele simulou tossir e caso? Sem F-Plus na cachola vemos o
dável. sorriu. — A Terra Arrasada e a Perfei- mundo como ele é? Hahahaha! Puta
Subi ao Senso-edifício, um tipo ção Maníaca são cenários típicos de alucinação coletiva, seu otário!
de construção que saiu de moda há disforia de personalidade que podem Acordei suado, embora não fizes-
uns dez anos. O elevador tinha piso ser disparados pelo gás. se calor. Escutei passos, levantei e vi
que transitava entre o gelatinoso ao — E isso fez com que eu visse o sombras junto da porta de entrada do
aço sólido, suas paredes pareciam ser que vi? Minha felicidade é tão frágil meu apartamento. Abri e uma caixa
feitas de luz, ou de água, ou obsidia- assim? E por que outras pessoas com de Felicidade Plus™ jazia no chão.
na. O ar do centésimo sexto andar que interagi não foram afetadas? Ninguém estava lá.
me provocava com odores difíceis de
— A felicidade é a realização de Verifiquei a caixa do medicamen-
identificar. A experiência era individu-
um desejo pré-histórico da infância, e to; não havia bula, apenas uma folha
al; o necessário para estimular cada
o que não enfrentamos em nós mes- impressa com os dizeres: Placebo
indivíduo segundo suas preferências,
mos, encontraremos como destino. com marcadores Felicidade Plus™,
assim ouvi falar.
— Citando Freud e Jung juntos, não recomendado a diabéticos. A
— Olá. Sim, Senhor Virgílio Torres? embalagem exterior era uma réplica
doutor?
— Indagou o recepcionista. perfeita da fabricada pelos laborató-
— Não é plágio, já que sou am-
(Como eu disse, ninguém usa o rios Ventura.
bos e outros mais. Pareceu-me ade-
nome real em aplicativos). As pílulas, esféricas como pérolas
quado. A felicidade é utopia, é algo
— Sim, sou eu. superestimado e idealizado desde e igualmente nacaradas, eram idên-
— O Doutor o atenderá em nove que somos pequenos. Contudo, os ticas às do medicamento original.
minutos. traumas, os medos, as coisas que Deveria reportar a fraude às autorida-
des e entregar o produto que se dizia
De fato, logo fui autorizado e en- não resolvemos e remoemos, essas
“placebo”, que podia muito bem ser
trei. A sala era virtualmente enorme, sempre vão aflorar quando baixamos
em verdade o princípio ativo do tal
decorada como um ambiente do a guarda. Estão à espreita, feito pre-
gás dos terroristas, porém não o fiz.
início do século XX: pinturas a óleo, dadores. Há algo em você que anseia
Guardei numa gaveta e voltei a dor-
tapetes felpudos, cortinas pesadas, pelo decadente, pelo miserável.
mir.
móveis escuros e sofás de couro cor — E a que conclusão chegamos?
de caramelo, brilhantes de loção hi- Acordei e recordei-me do sapo,
— Que sua dosagem deve ser
dratante. que parecia um mentor, um sábio. O
ajustada, já que você quebra facil-
doutor disse que tenho um desejo

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conto
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táquion fc
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mórbido, talvez, de atirar-me à ruína. lhar e aconselhar, mas foi como tirar plo inteiro é a ponta de uma grande
Preciso saber o que são essas pílulas um fardo de sobre os ombros. Hoje, antena que está sobre uma enorme
e sei quem pode me ajudar. eu me basto, todos meus eus me bas- estrutura subterrânea; um iceberg de
f tam, minha manifestação nesse plano tecnologia pré-guerra. Eu reconfigu-
O templo do Grande Sábio ficava é calma; é estéril, mas feliz. ro o mundo, eu garanto a unidade.
em Cidade Capital, a uns mil quilô- — Irei embora, se a senhora quiser. Bem, já falei demais e estou cansada
metros daqui. Consegui uma janela de tanta interação. Vá agora, e não
— Não. Não me custa tanto. Então,
na minha agenda laboral e para lá se- volte, pois não me encontrará mais.
sim, óbvio, o mundo é uma ilusão.

v[03]
gui. Era um prédio pequenino e pon- Faz cinquenta e oito anos que destru- — Não posso perguntar algo mais?
tudo, de pedra esverdeada e opaca, ímos o planeta com guerra, poluição — Eu já sei qual é a pergunta, você
que fora muito visitado nos tempos e superpopulação. Não há florestas, perguntará, mas não responderei.
antigos, embora tenha caído no os- rios e mares são poças de lodo fétido — Como posso saber o que é real?
tracismo – assim fomos instruídos sem vida e com quase tanto plástico Se a Terra Arrasada não é apenas ou-
quando crianças. Havia jardins de flo- quanto água. Quase toda a fauna e tra simulação? Se o que a senhora me
res fluorescentes que só cresciam por flora está extinta. Sobrevivemos no diz é somente o que sabe ou o que
lá e pequenos lagos, e havia escadas caos, na penúria e na sujeira do que está autorizada a instruir?
por todos os lados ao redor, numa es- restou. Tínhamos ainda alguma tec-
pécie de arranjo fractal. Algumas des- Ela fechou os olhos e ajeitou-se so-
nologia avançada e alguém talentoso
sas escadas apenas davam a volta por bre as almofadas. Nunca houve res-
descobriu um fármaco que baixava o
si mesmas, em vórtices e configura- posta, como ela mesmo prometera.
senso crítico e que tinha efeito pró-
ções dimensionalmentes impossíveis, -hipnótico. Assim, criamos fantasias f
outras levavam os visitantes de volta que são adaptadas ao que ocorre no Comecei com o placebo na ma-
aos portões de entrada. Excepcional- mundo real, orientadas por um pulso nhã seguinte. Nenhuma alteração,
mente, havia também as que levam à hipnótico que toca baixinho, o tempo nenhum lampejo de um mundo mi-
alguma versão do Sábio. todo. Se comemos um rato assado serável. Tirei a semana para trabalhar
Involuntariamente voltei umas numa fogueira de jornais no mundo de casa.
tantas vezes aos portões de entrada real, imaginamos uma fruta deliciosa, Por volta da hora do jantar do ter-

MISSãO jAn 2024


e até vi-me de ponta cabeça obser- um éclair recheado, um pastel como ceiro dia, senti-me sujo e notei que a
vando-me subir os degraus de uma o feito por nossa avó numa doce lem- pele de minhas mãos e braços estava
escadaria que certamente não subi. brança infantil. A droga quebra nos- coberta de uma mistura de gordura e
Insisti por horas, e depois de cruzar sa personalidade, e nós não vemos fuligem nunca limpa por anos. O aze-
um corredor escuro longuíssimo e as- o que nossos outros “eus” têm que do de meu próprio corpo enojou-me.
sustador, encontrei-a. Sim, minha ver- lidar. Portanto, se você parar com Passei a mão nos cabelos e os fios es-
são do Sábio era uma mulher. F-Plus, se tomar o placebo com mar- tavam grudados em dreadlocks não
Ela era escura como chocolate cadores, verá a verdade sem alertar intencionais que eram provável habi-
amargo, os cabelos desciam em tran- às autoridades do delito. É isso: a tação de insetos. Pisquei os olhos e o
ças multicoloridas que faziam arcos “Terra Arrasada” é a bosta da realida- apartamento hesitava entre mundos:
num arranjo em formato de ânfora ao de depois do fim do mundo, e toda era escuro e com grandes montes de
redor da cabeça. Era um tanto gordu- essa beleza que vemos é um delírio roupas, papéis, restos e coisas des-
cha e de aparência madura, e vestia coletivo. Vivemos assim porque é cartadas, e era ainda perfeito, limpo
um manto sedoso e branco. Repousa- doloroso demais existir de forma tão e ecológico.
va de olhos cerrados sobre almofadas miserável e sem esperanças. Decidi ir até o corredor e ratos
douradas. — Eu já esperava algo assim. transitavam rápidos de um lado a
— Quer saber? Você é um tremen- — Eu sei. Quando tudo funciona outro. O odor onipresente de urina
do pé no saco, Virgílio — ela disse bem, a festa nunca termina. Se so- fermentada chegava a arder os olhos.
baixo, num quase sussurro. Abriu os fremos, não o sabemos, pois nada Uma mulher seminua e desdentada
olhos e eles eram escuros e com mui- sentimos. Se morremos de frio, fome falava junto a um aparelho celular
tos pontos diminutos e brilhantes. ou infecção lá fora, somos removidos imaginário:
— Me desculpe, Sábia. Eu não do mundo dos sonhos e o fluxo hip- — Sim, a gente se encontra no
queria incomodar. nótico readapta o mundo, para que Lampedusa D’or às dez, fofinho. Sou-
continue a fazer sentido aos utopistas be que receberam aquelas ostras de
Ela não parecia aborrecida, em
remanescentes. Cabaraquara ontem… é caro, meu
verdade, olhava languidamente para
— E como a senhora sabe disso bem, mas às vezes devemos um cari-
as próprias unhas, pintadas de esmal-
tudo? nho assim a nós mesmos! Beijo!
te marfim.
A mulher sorriu e não havia malícia Ela apertou o botão do elevador,
— Sabe, rapaz. Desde que as pes-
no sorriso, apenas empatia e amor, obviamente não funcional, e foi em
soas passaram a não me procurar
direção às escadas, evitando os mon-
mais, eu me encontrei. De início, pa- como numa mãe compreensiva.
tes de escombros. Seu corpo fazia o
recia algo triste; não poder comparti- — Porque eu gero o fluxo, o tem-

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conto
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necessário para se mover no mundo vida em sofrimento somente porque Uma dor de cabeça fortíssima acome-
real, o outro “eu” provavelmente era essa a verdade; a verdade, afi- teu-me pouco depois, junto de uma
apenas via as paredes reluzentes do nal, não valia tanto assim. Tomei dois sensação de frio intenso. O mundo
elevador e não notava o quanto era F-Plus reais e resolvi dormir. começou outra vez a sair de sintonia e
demorado e cansativo descer até a Com alívio, acordei na manhã se- vi: eu era um cérebro com olhos e um
rua. Eu não tinha a mais remota ideia guinte em minha cama; limpa, macia sistema nervoso suspensos em gelati-
do que serviriam no “restaurante”, e e cheirosa. Preparei uma refeição sim- na, encarcerados numa caixa de acrí-
não fazia questão de saber. ples e saudável e, por reflexo, tomei lico pequenina e em forma de cubo,
v[03]

Escutei gritos e latidos ameaçado- outro F-Plus junto de uma golada de numa espécie de prateleira circular
res oriundos de algum andar superior suco. colossal e em camadas, feito assentos
e tranquei-me no apartamento. Já num estádio de futebol. O sol parecia
Não foi boa ideia: a abstinência do
que o mundo era realmente assim, dia anterior, seguida de doses mais bem maior do que o normal através
não via motivo para terminar minha fortes que o que seria adequado. das paredes transparentes da mega-

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conto
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estrutura, ao brilhar no céu amarela- pequeninas, espalhadas sempre pela ainda coçava um pouco, mas isso não
do, turbulento e coberto de nuvens face voltada ao sol, num dia sem fim. importava; nada, em verdade, impor-
ácidas. Tubos transparentes estavam O delírio durou talvez uns poucos tava. Quem, ou o que eu fosse, onde
inseridos em cada cubo, trazendo so- minutos, mas a sensação claustrofó- ou quando; só o agora, somente essa
luções nutritivas da fotossíntese reali- bica de ser uma massa pensante e realidade de coisas boas interessava-
zada no teto da estrutura e também desmembrada, presa numa caixa her- -me.
levavam nossos dejetos metabólicos, mética, assombrar-me-ia por muito — Olá. Oh, que pontual. Rodrigo,
que certamente alimentariam as algas tempo. não é isso? — a moça perguntou.

v[03]
que proviam nosso alimento. A imen-
f “Eu preciso de um novo nickna-
sa nave circular aparentemente flutu-
Por volta das 21 UTC-3 no Bar me”, refleti, enquanto sorria e esten-
ava, mantendo-se numa zona de tem-
Central do Amor, em Cidade Modelo dia a mão aos dois.
peraturas confortáveis na atmosfera
I; foi lá que encontrei o casal. O im-
hostil. Outras “cidades das nuvens”
plante subcutâneo que passei a usar
podiam ser observadas à distância,

Rubem Cabral, nascido na cidade do Rio de Janeiro, atua como Enge-


nheiro de Software. Por volta de 2008, iniciou-se no mundo literário, par-
ticipando de várias antologias já publicadas. Em 2010 foi premiado em
1o lugar na categoria “conto” no Concurso Literário Raízes, em Genebra,
com o texto “Noites Brancas”. Em 2011 foi um dos selecionados para a
prestigiosa antologia anual “FC do B” (Tarja Editorial), com o conto “Na-
novidas”. Em 2012, foi selecionado para a antologia “Erótica Fantástica”
(Editora Draco), com o conto “A Dança de Shiva”. Foi organizador da An-
tologia “!”, da Caligo Editora, que incluiu seus contos “Véspera de Natal
em Páscoa” e “A morte e a re-morte de Natasha Moskovskaya”. Os con-
tos “As dores de cada um” e “Lições” foram respectivamente publicados
na revista digital “A Taverna” (1 e 3). É autor da compilação de contos
fantásticos “A Linha Tênue”. Organizou a antologia de contos inspirados

MISSãO jAn 2024


na Bíblia “Os Livros Apócrifos”.
Contato: rudam@msn.com

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nUnCa DiGa O mEu NoMe
conto

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NUNCA DIGA O MEU NOME
João Maselli Gouvêa

v[03]
O
carro diminuiu a velocida- menos algo que chegasse mais perto piscava com defeito. Ele se aproxi-
de e a iluminação interna disso. Poucos metros à frente o carro mou do balcão onde uma senhora
aumentou suavemente, parou e no relógio de Gilmar surgiu tentava assistir o noticiário. Disse o
indicando que a viagem estava para uma pergunta: “Você chegou ao nome que procurava e ela lhe con-
terminar. O veículo dobrou uma es- seu destino?”. Assim que apertou a firmou o andar e o número, não sem
quina e freiou bruscamente para opção afirmativa a porta se abriu e, ao antes fazer uma cara de nojo e balan-
evitar atingir um mendigo que atra- sair do carro, um drone de entregas çar a cabeça em desaprovação. Gil-
vessava a rua totalmente alucinado. passou zunindo próximo à sua mar agradeceu, apertou um botão e
O homem todo coberto por fuligem cabeça. Gilmar se abaixou assustado esperou até que o elevador abrisse.
e com uma calça frouxa, que deixava e quando percebeu, o transporte O décimo andar era igual aos de-
parte dos pelos pubianos à mostra, automatizado já seguia sozinho na mais: corredor estreito, iluminação
gritou impropérios enquanto a saliva direção de mais um cliente. O rapaz precária e atmosfera hostil. Ouvia-se
espirrava de sua boca. transparecia um medo quase caricato, música vindo de alguns apartamen-
A viagem continuou com Gilmar olhando para os lados, enquanto tos, gemidos de outros e gritos de
olhando ansioso pela janela, naquele mantinha os braços cruzados com as um andar próximo. O rapaz começou
meio de tarde. O gotejar incessante mãos embaixo das axilas. Chegou até a caminhar checando com atenção e

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das nuvens poluídas deixava a cidade a porta de um prédio igual aos outros confirmou que o número que procu-
sempre úmida e suja. Era possível ver do quarteirão e confirmou que estava rava era no final do corredor. No cami-
a degradação em todos os seres indo no número correto. Foi abordado nho até lá ele recebeu alguns convi-
e vindo pelas calçadas. O mundo logo em seguida. tes explícitos de portas entreabertas.
havia se tornado uma grande massa — Qualé mermão, tá querendo Ignorou todos, seguindo em frente
cinza de violência e corrupção, mas pedra? com os olhos arregalados e postura
ele se sentia um pouco mais seguro — N... Não. tensa. Alcançou enfim o que buscava.
atrás daqueles vidros grossos. Se en- Naquele trecho a luz era praticamen-
— Pepita! Tu tem cara de quem
ganava e se considerava protegido, te inexistente e a maioria dos ruídos
fuma pepita.
isolado do filme macabro que assistia estava distante. Respirou fundo e to-
quando saia de casa. — Não quero nada, senhor. Vou cou a campainha usando a manga do
subir mesmo. casaco para apertar o botão encardi-
No grande anúncio que iluminava
a rua vindo do alto via-se uma modelo — Senhor?! Ih caralho. Tá perdido do. Após alguns segundos a porta se
famosa que havia morrido há cem mermo, hein? Pois não, mademozéli! abriu e ele foi surpreendido. Na sua
anos, mas que ainda era sinônimo de — O homem de óculos escuros e frente estava a mesma modelo do
luxúria. Sua imagem seria repetida dentes amarelos ria alto. — Vai comer anúncio que vira há alguns minutos.
para sempre, após as assinaturas de tua puta na paz. Só não esquece de — Chegou bem na hora, hein?
seus herdeiros. A propaganda era deixar gorjeta, hein! Você é o…
de mais um aplicativo erótico e os Gilmar agradeceu inclinando a ca- — Por favor, não diga meu nome.
seios da mulher pareciam saltar do beça e seguiu até a portaria. O cheiro Não aqui… — disse olhando para o
outdoor digital. Gilmar já havia se de cannabis era forte e se misturava corredor rapidamente. — Posso en-
saciado com a ajuda de inteligências ao desinfetante barato que impreg- trar?
artificiais e réplicas biossintéticas nava o chão de tacos de madeira an-
Gilmar se viu em uma antessala
praticamente perfeitas, mas aquilo tiga.
úmida e apertada. A beleza da mode-
já não era suficiente. Buscava o Baratas transitavam sem pressa e lo contrastava com o aspecto sujo do
toque e o calor humano ou pelo uma máquina de venda de cigarros

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conto
táquion fc nunca diga o meu nome
jOãO mAsElLi GoUvÊa

ambiente. Com uma camisola trans- lher que ele quisesse. A única que — Óbvio? Meu amor, você está fa-
parente e roupas íntimas minúsculas, ele quis na vida. Após o pagamento lando com uma ET que ganha a vida
ela se mostrava orgulhosa de sua ser confirmado ela sorriu como que trepando no Centro do Rio de Janei-
aparência. De algum lugar surgia uma voltando para sua personagem sedu- ro. De óbvio isso não tem nada! Até
música genérica com um som sinté- tora. Ele enviou um vídeo pelas men- de mãe já me fiz pra cliente. Comem
tico de saxofone que rivalizava com sagens do aplicativo e entregou a ela a mãe, você acredita? E ainda gritam
o barulho do ar condicionado antigo. um frasco de perfume. Permaneceu isso na hora de gozar.
Tudo era de vinil preto ou cetim rosa sentado enquanto a modelo ia para — Nossa… Que horror — Gilmar
v[03]

e era fácil notar pequenos rasgos e o quarto, separado da saleta apenas conseguia perceber o corpo da mu-
partes esgarçadas. Moscas rodopia- por uma cortina feita de cápsulas de lher se transformando. A pele bron-
vam sobre um pedaço de pizza em café vazias. A via com dificuldade, zeada aos poucos descamava e se
um dos cantos e a luz era convenien- mas conseguia distinguir o que es- azulava, provavelmente próxima do
temente indireta. tava acontecendo. Ela se despiu por tom original. A voz desafinava, en-
— Senta, meu amor. Fica à vonta- completo e tomou três comprimidos grossando às vezes. Evitou olhar de-
de. Quer beber alguma coisa? de uma cartela metálica. mais para que isso não afetasse seu
— Não, obrigado — disse ele, pu- — Não te ofereço porque isso aqui desempenho. — N…Noivos. Nós
xando um banco de madeira com o não dá onda, tá? O processo costu- éramos noivos.
acento estofado. — Então, você faz ma demorar algumas horas, princi- — Ah, que fofo. E ela te deixou,
cosplay, não faz? palmente completinho, assim como não foi? Partiu seu coraçãozinho?
você quer. Mas isso aqui acelera as
— Claro, é minha especialidade —…
coisas. — Ela projetou o vídeo que
— disse ao girar lentamente com os Por alguns instantes não houve vo-
recebeu de Gilmar na tela do quarto
braços afastados do corpo. — Tudo zes. Apenas os ruídos do ambiente e
e se sentou na cama. — E você? Me
o que eu botei no perfil do aplicativo estalos ósseos vindos dela. Quando
fala mais de você!
é verdade! Digamos que eu nasci pra olhou novamente, Gilmar viu tentácu-
isso. De onde eu venho todos fazem. — Não tenho muito o que dizer de
los voltando ao formato de
mim.
— E faz de quem eu quiser? Cópia membros humanos, só que agora
— Que gracinha, é tímido. Homem
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idêntica? com o tom de pele de Hilana. Sen-


tímido é difícil de encontrar. Me fala
— Demora um pouco, mas fica tiu um certo desconforto quando sua
dela então... Qual o nome dela?
igualzinho ao material que você me mente tentou racionalizar tudo aquilo
der. Se for vídeo é melhor. Foto eu já — Hilana. e buscou sufocar aquela sensação.
não garanto, não fica cem por cento. — Que lindo! Diferente… — Você tem muitos clientes?
— Eu tenho vídeo, sim. E a voz? — E o seu, qual é? — Até o início do ano eu tinha de
— perguntou Gilmar, ávido pela a res- — Ah, meu amor… vocês tinham dois a três por dia. Quando começa-
posta. que ter mais umas duas línguas pra mos o serviço de cosplay aqui no Rio
— Pagando bem, que mal tem? dizer e uma cabeça bem diferente pra o negócio bombou. Mas vocês são
Não é assim que vocês dizem? Corpo entender! Mas puta nunca diz o nome muito violentos. Uma amiga minha
e voz igualzinho, meu amor. de verdade, né? Elas sempre inven- vivia levando porrada. Eu mesma fui
— D… Dinheiro não é o problema. tam. Hoje pra você eu sou Hilana, pra emergência uma vez. E pra que,
melhor assim — a prostituta ajeitou né? A gente não tem direito a nada
A modelo então apresentou uma
o lençol, esperando o efeito do que aqui.
máquina e no pequeno visor via-se
havia tomado. — Ela era o que sua? — Imagino…
uma quantia obscena. Muito além de
um programa sexual comum, aquele — Não é óbvio? — Gilmar riu em — Imagina porra nenhuma! O mais
era customizado. Gilmar teria a mu- silêncio. pobre de vocês tem muito mais do


P76
conto
nunca diga o meu nome

táquion fc
jOãO mAsElLi GoUvÊa

que a gente vai ter algum dia. O lan- não chorou. Se levantou e caminhou o homem mais poderoso do mundo,
ce é fazer dinheiro e voltar pra casa. lentamente até sua noiva e a tocou na podendo novamente dar prazer à sua
O foda é que fazer dinheiro ficou difí- face com as costas dos dedos. Era Hi- mulher. Os movimentos eram inten-
cil. — A voz agora era gutural e mais lana mais uma vez na sua frente. sos, contrastando com as carícias que
grossa do que a de Gilmar — Com — Meu amor… Eu… suas mãos faziam em Hilana. Sentin-
esses malucos matando a gente, o do o êxtase se aproximar, Gilmar fez
— Não fala nada, só me beija.
movimento despencou. Se até quan- questão de reviver a última noite que
do matam mulher e homem de ver- Gilmar encostou seus lábios nos lá- teve com seu amor, exatamente da

v[03]
dade o pessoal tá cagando, imagina bios de Hilana e um arrepio percorreu mesma maneira.
se vão correr atrás pra saber quem seu corpo ao sentir o aroma aspergi-
— F… Fala… Fala meu nome!
matou uma puta “de Marte” que nem do há pouco. A líbido despertou ime-
diatamente e o beijo que se seguiu — Seu nome?
eu.
foi apaixonado. Os dois deitaram e — Isso, fala meu nome!
O volume da tela foi aumentando e
Gilmar parecia alguém que é enterra- — Roberto!
aos poucos a voz de Hilana preenchia
do vivo e se vê livre, sorvendo o pre-
o ar. A prostituta extraterrena absor- — Que?
cioso ar da vida novamente. A pros-
via com cuidado cada frase e tentava — Vem, Roberto! Vem, meu amor!
titua retribuía os carinhos e a volúpia
imitar o timbre da moça, repetindo as
de seu cliente, querendo agradar e — Quem é Roberto, Hilana?! —
palavras e voltando o vídeo em mo-
assegurar que o teria outras vezes em disse ao interromper os movimentos.
mentos específicos. Modelava suas
seu negócio. Abriu então a camisa — Ué, não é seu nome? Tava es-
cordas vocais intuitivamente, à medi-
dele, dando um beijo em seu peito crito no aplicativo! — a extraterrena
da que emulava sua musa inspirado-
após cada botão liberto. havia pronunciado suas últimas pala-
ra. Aquilo não era novo para Gilmar,
já tinha feito outras vezes, mas ainda — Hilana, eu te amo… vras. Agora tinha os olhos estufados e
se emocionava. A falta que sentia de — Eu também, meu amor. o pescoço sendo estrangulado pelas
seu amor era enorme e a expectativa mãos impetuosas de Gilmar.
Após deixar o cliente totalmente
de tê-lo novamente em seus braços nu ela inclinou a cabeça em direção — Você disse que me amava…
era quase dolorosa. ao seu corpo, mas Gilmar a segurou Que nosso amor era para sempre!

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— Está perfeita! Não muda mais com delicadeza e a posicionou dei- Quem é Roberto, porra?!
nada. tada, pois queria provar Hilana nova- —…
— Sério? Que bom. Sou um pouco mente. A sede era tanta que ela che- — Eu confiei em você e você me
perfeccionista. Geralmente são vocês gou ao orgasmo em alguns minutos. traiu… Porquê, Hilana… Porquê?!
que me dizem quando parar. — O — Que delícia! — disse, soltando Gilmar viu então o rosto da mu-
corpo de Hilana então levantou da os cabelos de Gilmar — Vem! Sou lher que amava novamente se apagar
cama, se borrifou com o perfume e toda sua, amorzinho… sem vida. Quantas vezes mais preci-
abriu a cortina com um movimento Gilmar obedeceu. Não havia ne- saria reproduzir os últimos minutos de
suave de mãos, revelando sua nudez. nhuma necessidade de preservati- Hilana, de novo e de novo, daquela
— Essa aqui é a noiva, então? vos e o ato se iniciou naturalmente. mesma forma?
O jeito, a voz e o sorriso. Tudo ha- A prostituta era experiente e sabia
via sido copiado exatamente como controlar os fluidos corporais de um
estava no vídeo. Aquela experiência humano com certa facilidade. Os ge-
era algo surreal e Gilmar por pouco midos eram intensos e ele se sentia

João Maselli Gouvêa, nascido e criado no Rio de Janeiro, tive em meu


pai meu primeiro ídolo na escrita. Suas crônicas e poesias me inspiraram
desde cedo. Depois, ao conhecer os contos de Edgar Allan Poe bem
novo, me maravilhei com o inusitado. Sempre gostei de criar histórias
e contá-las. Acho que a arte precisa ser impactante e que ela deve ser
interpretada da maneira mais abrangente possível.
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_D,a,V,i;M;g,O,n,Z,a,L,e,S_
dIrCeU
conto

táquion fc
DIRCEU
Davi M. Gonzales

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Os livros de História raramente forçados aqueles que são sua própria haverem-me separado de Marília...
lhe contam a verdade. Não por família? Como estender a chibata às o meu único e verdadeiro amor. Por
imprecisão, negligência ou algum costas daquele que está presente em onde andarás agora? Sinto falta de
favoritismo ideológico de nossos seu convívio diário? Creio não haver sua tez macia e as mãos perfeitas a
historiadores, mas, porque a verdade maior castigo a um defensor do abo- consolar meu rosto nos momentos
jamais será vista sob a mesma ótica licionismo, que estar fadado a teste- difíceis. Tenho saudades dos seus
de quem, de fato, viveu a História. munhar diariamente este verdadeiro pequenos olhos doces a espantar de
crime contra a condição humana. dentro de mim os mais arraigados

N
Ainda assim, reconheço que pode- temores. O que dizer então de suas
ão me atreverei a lhes reve-
ria estar pior, não fosse a diligência palavras de conforto, a soar como
lar meu verdadeiro nome.
e generosidade dos meus irmãos de acalanto à criança rebelde que existe
Mencionarei apenas a alcu-
maçonaria que, mediante influência aqui dentro? Tiraram-me Marília. Ti-
nha que me acompanha por esta vida
e algumas manobras políticas, con- ram-me parte da alma.
miserável, consumida pela infâmia e
seguiram-me um cargo na alfândega Meus olhos se enchem com lá-
destituída de qualquer resquício da
desta colônia de Portugal, evitando grimas doloridas. Mas como posso
grandeza que houvera um dia. Dirceu
que eu fosse designado para os tra- evitar? Já disse antes, sou poeta.
é como me chamam. Sou um homem

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balhos manuais no campo. Nunca me prestei aos gêneros me-
das letras, artesão de palavras, traba-
lhador incansável das rimas. Minhas Aqui, no exílio desta terra árida, nores. Nunca levei jeito para a prosa,
mãos de poeta, que até então só sinto saudades do meu Brasil, da mi- categoria destituída de graça e tão
conheceram a suavidade da pena e nha Minas, da minha Vila Rica. Passo lírica quanto um paquiderme no cio.
a desfaçatez do tinteiro, agora conso- os dias a relembrar a vastidão dos Ainda assim, farei o meu esforço. E
mem seus dias em penosa labuta, en- campos e dos ribeirões que conheci antes que me tomem por petulante,
cerradas na aridez de uma terra que ainda criança. As árvores frondosas esclareço que não estou aqui para
não é a minha. que nos acolhiam para a sesta da tar- narrar minhas desventuras pessoais,
de, oferecendo seus frutos de carne mas tão somente para testemunhar
Moçambique é o princípio do fim,
doce e suculenta. Estarei eu predes- os fatos obscuros que me trouxeram
uma terra de ninguém, um lugar es-
tinado a nunca mais sentir o perfume a esta terra perdida. Este deserto de
cravo de si próprio. Mercadores afri-
da minha terra, desprendido pela homens, repletos de nada.
canos vivem do cativeiro de outros
chuva generosa do verão? E quanto Foi pelos idos de 1789 quando o
homens. Escravos são negociados
ao longínquo ronco dos ruminantes, Brasil, pátria adotada por mim des-
como se fossem gados, mercadoria
a soar como música para os meus de que lá pus meus pés, gemia em
ordinária ou pertencessem a um gê-
ouvidos descansados? A terra, o céu, um hediondo cativeiro. Os bárbaros
nero inferior da raça humana, des-
os peixes, a brisa das manhãs. Todos portugueses nada poupavam para
providos de dignidade e de alma.
os dias me pergunto, como poderei nos tornar desgraçados. A liberdade
Os horrores que tenho presenciado
viver longe das coisas do meu país? fora totalmente morta, roubada ou
nesta terra suplantam até mesmo as
barbáries cometidas pelos coloniza- Mas peço apenas que não te en- oprimida pela força. Um verdadeiro
dores, porque estes, ao menos, sub- ganes. Não me julgues um fraco. To- holocausto se fazia pela cobrança
jugam a outros povos, mas nunca os das essas aflições poderei suportar. O de impostos altos e acumulados. Um
de sua própria nação. Poderá haver exílio, a desonra e a humilhação são crápula, de nome D. Luís da Cunha
maior desamor por seu país? Pode- castigos que, embora injustos, acatei Meneses, nomeado em 1783 gover-
rá haver maior ato de desumanidade com meu peito aberto. O inaceitá- nador da Capitania das Minas Gerais,
que escravizar e conduzir a trabalhos vel, o sofrido, o mil vezes penoso, foi trouxe consigo a proibição das ativi-

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conto
táquion fc dirceu
dAvI m GoNzAlEz

dades fabris e a cobrança descabida tras rodas, fui abordado pelo distinto Ainda assim, cheguei ao local com o
de cem arrobas de ouro, culminando senhor de nome Joaquim Silvério dos coração pulsando forte. Receava pelo
com a derrama, procedimento que Reis, que havia assistido a contenda que haveria de encontrar e a primeira
maculava o lar dos justos, tirando- sem, até o momento, tomar posição. coisa a se fazer quando se frequenta
-lhes da própria casa até aquilo que Um homem de pouca estatura, cons- uma sala pela primeira vez é procurar
não possuíam. tituição robusta e uma estranha man- por rostos conhecidos ou, ao menos,
O ouro, gradualmente sangrado cha no lado esquerdo de sua fronte. amigáveis.
da minha querida Minas, já não bas- Uma nódoa pequena que, guardadas Apesar de não manter relações
v[03]

tava à ganância da Coroa. A terra fora as proporções, parecia-se mais com com aquelas pessoas, alguns dos
espremida até as suas últimas gotas, a marcação a ferro quente que se faz semblantes me eram familiares. Dos
mas sua secura não comoveu o cora- no gado, do que propriamente um que pude identificar, constavam o
ção do canalha. Baixou por decreto a sinal de nascença. Na maior parte companheiro de letras Cláudio Ma-
derrama, onde as casas dos homens do tempo não podia ser vista, oculta nuel da Costa, os coronéis Domingos
honestos seriam invadidas pelos sol- pelos cabelos do homem. Realmente de Abreu Vieira e Francisco Antônio
dados da Coroa, com truculência, até algo de causar estranheza. de Oliveira Lopes. Também reconhe-
que aqueles bens, subvertidos dos O cavalheiro, apesar da rudeza das ci os padres José da Silva e Oliveira
que já pouco possuíam, complemen- atividades que exercia — era fazen- Rolim e Carlos Correia de Toledo e
tassem o número maldito: as cem deiro — apresentava certa elegância Melo, o cônego Luís Vieira da Silva, o
arrobas de ouro, em seu valor mone- em seus modos e, quando sutilmen- sargento-mor Luís Vaz de Toledo Pisa,
tário apenas, porque o suor e sangue te provocado, deu a entender que o alferes Joaquim José da Silva Xavier
dos pobres de nada interessavam à era tão adepto da causa quanto eu. (que alguns dias atrás havia me livra-
ambição desmedida do infame go- Naquela mesma noite, antes que nos do de um dente incômodo) e o José
vernador. despedíssemos, eu fora convidado de Alvarenga, nosso anfitrião.
Meu povo chorava a miséria, ao por esse homem à casa de um certo Lá estávamos reunidos, na calada
mesmo tempo em que se via cerca- Sr. Inácio José de Alvarenga Peixo- da noite, sussurrando palavras proi-
do por riquezas inimagináveis, di- to, dono de uma mina local. Quanto bidas, talvez até mesmo elaborando
lapidadas pelos canalhas com arbi- à reunião que se faria, não forneceu planos ousados e insuspeitos. Po-
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trariedade e violência. Minha pátria outros detalhes, apenas me assegu- rém, antes que me desse conta, o
agonizava e eu, homem letrado na rou que entenderia tudo assim que lá ambiente alterou-se. As expressões,
Europa, já naquela época trazia em estivesse. inicialmente soturnas, passaram a
mim os ideais libertários que tantas A reunião aconteceria na noite se- exibir sorrisos e gentilezas. Concluí
vezes ouvira serem pronunciados por guinte e não será difícil imaginar que que o medo poderia haver alterado
grandes homens, filósofos e ilustres. milhares de conjecturas se passaram minha percepção das coisas. Cons-
Sentia que precisava fazer algo por por minha cabeça de poeta. O que ciente disso, passei a observar tudo
meu povo, uma gente sofrida, que poderia querer comigo um fazen- à minha volta, com atenção e critério.
fatalmente sucumbiria diante de tan- deiro rude e destituído de qualquer Os homens vestiam-se distintamente,
ta opressão e penúria. Foi em meio a senso sobre as verdades iluministas? mas conversavam com demasiada in-
esses dissabores que fui apresentado, Sou um homem letrado. Não deve- formalidade. Os gestos, volume e o
quase ocasionalmente, a um senhor, ria misturar-me àqueles que não pu- tom de voz, destoavam da ocasião
um coronel, de nome Joaquim Silvé- dessem entender o movimento que e do ambiente. E mais: observei na
rio dos Reis. ora se passava na Europa e que já maioria deles a mancha ou marca, no
Lembro-me como se fosse hoje: me havia conquistado inteiramente. lado esquerdo da fronte. Nos outros,
uma recepção à casa do comendador Ou antes, não deveria ter por com- o formato da cabeleira não me permi-
Urbano Neto aproximou-nos na mes- panheiros aqueles que faziam uso e tia concluir se o adereço integrava ou
ma roda onde os cavalheiros degus- comércio de escravos como meio de não sua constituição. Excluído esse
tavam seus cachimbos. Conhecido vida. Certamente zombariam de mi- detalhe, nada havia de incomum.
por minha língua afiada, não pude nhas crenças e de tudo o que consi- Uma sala habitual, onde os homens
deixar de responder às provocações dero como solução para a penúria do deveriam beber, fumar e desfilar suas
dos escravistas e de certos membros povo brasileiro. convicções e seus egos diante dos
parasitários da Coroa. Como poderia Em alguns momentos pensei em outros.
baixar minha cabeça diante dos rea- não comparecer. Poderia muito bem Gradualmente, fui integrando-me
cionários, dos insensíveis pela dor do ser uma armadilha. Poderia cair ví- ao ambiente e logo já me sentia ali-
povo, dos vermes que infestam a casa tima de uma humilhação pública viado, tranquilo pela certeza de que
daqueles que detêm o poder, que- ou até coisa pior. Depois, com mais não sofreria constrangimento por
rendo sugar-lhes toda a podridão? calma, a confiança voltou-me, afinal parte daquelas pessoas. Pareciam-
Ocorreu então que após a discus- possuo lá meus recursos. Sou um ho- -me realmente amáveis. Quando ouvi
são dissimulada — afinal éramos todos mem das artes, mas também das leis as primeiras frases que os homens
cavalheiros — e quando os homens e dos amigos influentes. Não haveria diziam, fui tomado de agradável sur-
se dissiparam a fim de frequentar ou- de temer um fazendeiro escravocrata. presa ao constatar que minha revolta

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conto
dirceu

táquion fc
dAvI m GoNzAlEz

não era isolada. Muitos outros já ha- gos, assim como me pareceram, mes- para o cultivo de avatares orgânicos.
viam aderido à causa, alguns deles, mo pouco entendendo do tecnicismo Precisaremos nos contentar com as
homens ilustres reunidos ali naquela empregado, especialmente em rela- toscas projeções holográficas de den-
sala, os quais eu jamais imaginaria ção aos termos oriundos da minera- sidade simulada. Você não está con-
que pudessem conspirar contra a Co- ção e de estratégias militares, pouco siderando que um soldado da Coroa
roa Portuguesa. De fato, tratava-se familiares a este poeta: sequer saberia diferenciar um gigan-
de uma conspiração. — D. Luís é homem violento e tesco Hiek de um Virsmatron. Então,
Fui gentilmente abordado por um irascível. E, no comando das tropas, penso que basta capricharmos na ca-

v[03]
senhor que me convidou a uma sala amplifica essas suas características libragem das texturas tridimensionais
contígua. Esta outra sala parecia mais já suficientemente desprezíveis. Não e não poderão perceber o engodo.
confortável e contava com menos há como dialogar ou negociar com Nesse momento todos riram ale-
poltronas que a primeira. Nada ali alguém assim. Não há como envol- gremente. Mesmo não entendendo
denunciava os assuntos que seriam vê-lo em qualquer estratagema do a anedota, resolvi que deveria me
tratados. Nas paredes havia quadros qual possamos tirar proveito aos nos- solidarizar com a alegria dos compa-
de pouco valor, à frente uma peque- sos objetivos. Creio, senhores, que nheiros. Alguém no ponto oposto da
na escrivaninha e no canto esquerdo, deveríamos optar pela simplicidade. sala, com um ar um tanto desaponta-
um pouco afastado das poltronas, a Imaginem que à distância de três ou do, levantou o braço, solicitando sua
escarradeira. A reunião já transcorria. quatro quilômetros, com um bom vez de discursar. O homem trazia sua
Tão logo me acomodei em uma pol- disrruptor fotônico, poderia arrancar marca na fronte bem pronunciada e
trona confortável, fui colocado a par sua cabeça, sem qualquer dificulda- estava corado como um pimentão:
do assunto que alimentava a inflama- de. D. Luís certamente não mais aten- — Alguém saberia informar de
da discussão. O homem que ocupava taria contra nossos propósitos. quanto ouro ainda precisamos? Não
a poltrona ao lado da minha, parecia — Cumpre-me lembrá-lo, nobre poderemos sustentar esta situação
um tipo atlético, até onde o paletó colega, que devemos prezar também por muito tempo. Os portugueses já
deixava transparecer. Usava suíças e pela discrição. Optemos por tal ar- desconfiam que estamos a desviar o
um bigode, um tanto ralo. Não pude bitrariedade e logo os soldados da precioso metal.
saber se também possuía a misteriosa Coroa estarão à nossa porta, investi- Um homem muito magro, quase

MISSãO jAn 2024


nódoa em sua fronte. Imediatamente gando tudo. vergado em sua postura, imediata-
inclinou-se e me recebeu com afável
Disrruptor fotônico… interessante mente levantou-se. Usava um monó-
discrição:
vocábulo. Talvez pudesse utilizá-lo culo e trazia alguns papéis na mão:
— Seja muito bem-vindo! Gosta- em uma de minhas poesias. O ho- — Creio que mais uns oitenta qui-
ria que observasse com atenção e mem que respondia, frustrando a al- los. Devemos lembrar que durante o
que se pronunciasse, se for da sua ternativa apresentada pelo primeiro, processo de fundição a plasma, mui-
vontade, obviamente: o cavalheiro à era Zóstar, sentado à escrivaninha, de to se perde do material. Ainda mais
direita é Vlasak e, agora, argumenta onde podia ver e ser visto por todos. porque precisamos de 99,998% de
com Zóstar, nosso mediador, sobre o Usava uma barba espessa e ruiva, e pureza para a eficiência máxima na
melhor tratamento a ser adotado em notei que estava um pouco acima do transmissão das conexões neurais ao
relação aos desmandos do governa- peso. Não obstante, aparentava ser sistema de navegação. Observe-se
dor D. Luís da Cunha Meneses. uma pessoa de presença marcante. também que o relatório de avarias
Estava impressionado. Julguei de Parecia irradiar tranquilidade e contar aponta uma perda de 75% da malha
imediato que aqueles homens conhe- com o respeito dos demais: que interliga os sistemas. Recompor
ciam realmente os truques e estraté- — A meu ver, existem outras ques- todo o cabeamento requererá pelo
gias militares: cada um deles possuía tões mais imediatas a serem tratadas. menos dois ou três milhões de qui-
seu respectivo codinome, pelo qual Por exemplo: precisamos elaborar um lômetros em elementos de elevada
era tratado pelos outros. Na verda- plano de contingência. Sabemos que condutância.
de, não pude deixar de notar serem o crime de lesa-majestade é punido — Por que não utilizamos as maldi-
homens versados nas artes militares com a morte. Devemos estar prepa- tas fibras ópticas do projeto original?
e também nas ciências da mineração. rados para o caso de sermos presos
Para mim, habituado apenas aos gê- — A partir de quais materiais po-
e condenados. Sugiro a imediata
neros artísticos, todo aquele vocabu- deríamos fabricar as tais fibras ópti-
criação de avatares orgânicos, pelos
lário técnico soava um tanto obscuro. cas? Você está vendo algum polímero
quais seremos substituídos, caso seja
Todavia, utilizando-me de minha pro- por aqui? Mais uma coisa: estamos
necessário.
digiosa memória na associação de nos referindo apenas aos sistemas de
— Concordo que seja esta a me- propulsão e navegação. Ainda ficare-
frases e palavras, dispus-me a acom-
lhor solução, mas questiono a viabi- mos incomunicáveis e com sérias de-
panhar atentamente, com a intenção
lidade dessa alternativa. Não haverá ficiências nos sistemas de suporte de
de mais tarde obter com especialistas
possibilidade de lograrmos tal inten- vida. Quanto à inteligência artificial,
os significados de todo aquele jargão
to: a revolta deverá ocorrer no dia da penso que poderemos dar um jeito…
que estava sendo utilizado.
derrama. Não nos resta tempo hábil aliás, todos aqui deveriam agradecer
Tentarei aqui reproduzir os diálo-

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conto
táquion fc dirceu
dAvI m GoNzAlEz

ao brilhantismo deste grande enge- infeliz vítima daquele gracejo, todos nados à morte e com todos os bens
nheiro, que por acaso sou eu, em estavam demasiadamente eufóricos confiscados pela Coroa Portuguesa.
conseguir reparar o sistema de camu- para formular qualquer argumen- A Ilha das Cobras é um lugar fu-
flagem holográfica, sem o qual, muito tação que fosse. Antes de sair, des- nesto, como já devem imaginar, a
provavelmente, estaríamos receben- pedi-me do Joaquim Silvério, meu julgar pelo nome que a tradição local
do o D. Luís para o jantar. novo amigo que, ainda carrancudo imprimiu à fortaleza. Um ponto estra-
Alguém gritou, do fundo da sala: pelas brincadeiras a que fora subme- tégico à defesa do litoral do Rio de
tido, apresentou-me a bandeira que Janeiro, por onde se avista qualquer
— Será que D. Luís apreciaria
v[03]

haviam criado para símbolo do mo- embarcação que pretenda aportar


aquele orsnareg papa que o Koldar
vimento: branca, com inscrições em em uma longa extensão de terras.
costuma preparar aos domingos?
latim e um grande triângulo vermelho A fortaleza é um edifício alto, que
Todos se voltaram na direção de que, segundo ele, simbolizava o rea- acompanha a encosta e com ares de
um homem de bigodes finos, quase tor de dobra da Andrômeda EZ-226. castelo medieval. Ali ficamos à mercê
oculto em uma poltrona baixa, e se
Simulando certa admiração, já que de guardas desumanos, cujo objetivo
riram novamente, a exceção do ho-
pouco pude entender do significado era extinguir qualquer sopro de digni-
mem que discursava e que não se fez
de suas palavras, voltei à minha casa, dade que os prisioneiros por ventura
de rogado:
já tarde da madrugada e com o cora- ainda possuíssem. Os castigos eram
— Um minuto da sua atenção, ção esperançoso de que haveríamos hediondos, a comida escassa, a água
senhores, por favor. Uma coisa que de conseguir nossa tão sonhada inde- salobra. Permanecíamos agrilhoados
estive a matutar é que poderíamos pendência. o tempo todo e, ainda que pudésse-
armar uma contenção à base de íons, mos libertar-nos e deixar a fortaleza,
Joaquim Silvério garantiu que eu
a volta de toda Capitania. Uma cerca deveríamos vencer as condições na-
seria informado quando a próxima
radioativa. Com a sensibilidade que turais da ilha, o que diminuiria dras-
reunião fosse realizada. Como ho-
eles possuem a essas emanações, ticamente as chances de sobrevivên-
mem versado nas letras e nas leis,
não resistiriam por muito tempo após cia. Répteis de peçonha vivem em
sabia que muito poderia contribuir
invadirem a contenção. A Capitania profusão por todo o lugar. Mesmo no
nessa próxima oportunidade. Eles ha-
das Minas Gerais logo seria declara- lado de dentro do forte é possível en-
veriam de me ouvir. Discorreria sobre
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da terra amaldiçoada, ou algo assim, contrá-las pelos cantos, nas roupas e


meus planos para transformar o Brasil
e poderíamos pegar de uma só vez mesmo debaixo dos travesseiros.
em uma República, livre do jugo por-
todo o ouro de que precisamos.
tuguês. Facilmente conseguiríamos o Cumpri, naquele lugar tenebroso,
Zóstar interviu, calmamente: apoio do Rio de Janeiro e quem sabe três anos de minha pena. Foram dias
— Caro Zímar, note-se que você até de São Paulo. Depois, em uma difíceis, mas não me deixei tomar
está claramente ignorando um dos segunda fase, iríamos recrutar as ca- pelo desespero. Como mencionei
nossos princípios éticos básicos: não pitanias, uma a uma, até que houvés- antes, além de poeta, sou também
interferir com as espécies nativas. semos unido todo o país, indepen- um Bacharel em Leis, graduado pela
Além do que, você sabe muito bem dente e forte. Mas o primeiro e mais Universidade de Coimbra e, diga-se
que um de nós está prestes a se tor- importante passo seria conquistar as de passagem, brilhante. Quando foi
nar nativo, neste planeta… tropas lideradas pelo governador. instaurada a devassa, um processo
A mim pareceu que o gracejo foi Com o apoio do povo revoltado pela de acusação a trinta e quatro pessoas
ótimo porque o senhor ao meu lado derrama, e com o governador morto, por crimes de lesa-majestade e trai-
quase caiu de sua poltrona, de tanto mudaríamos para sempre este estado ção, atuei como advogado em minha
gargalhar. Todos apontavam para o de coisas, que já se arrastava por tan- própria causa e também na defesa de
Joaquim Silvério dos Reis e riam es- to tempo, trazendo miséria e penúria alguns dos companheiros. Durante o
candalosamente. Ele bem que tentou ao povo brasileiro. processo, tive ciência de que fôramos
defender-se: A estratégia para derrubar o go- delatados por Joaquim Silvério, justa-
— Eu não quero ficar aqui! Por vernador e assumir o comando do mente aquele que me convidara ao
que não deixam uma sonda ou algo exército parecia já estar traçada, en- grupo.
assim? Ela poderá enviar os relatórios tão passei a planejar nossa Repúbli- Não houve nenhum indício, em
da mesma forma que eu… ca. Pus-me a redigir os princípios, a nossas conversas, de que ele maqui-
Carta Magna e até algumas das leis, nava tal ideia. O homem parecia um
— Todos estamos loucos para dar
para que fossem apresentadas no pouco zangado com os companhei-
o fora. Mas não se preocupe, em dois
momento oportuno. Estava realmen- ros, em função das chacotas a que
ou três kesintons, ou como se diz por
te empolgado, o coração repleto de fora submetido. Mas tudo não pas-
aqui, uns 8 anos, retornaremos para
esperança. sou de uma zombaria saudável. Ele
buscá-lo…
Foi esta a única reunião de que era apreciado pelo grupo e parecia
Não sei ao certo o que foi aquilo,
participei. Algumas semanas depois uma peça chave no planejamento da
mas após essas palavras extinguiu-se
descansávamos, ao todo, doze ho- revolta que eclodiria com data mar-
qualquer possibilidade de se prosse-
mens, no chão gelado de uma cela na cada. O que poderia tê-lo levado a
guir com a reunião. Excetuando-se a
Fortaleza da Ilha das Cobras, conde- delatar os companheiros de forma

P82
conto
dirceu

táquion fc
dAvI m GoNzAlEz

covarde e inesperada? Dizia-se que foram chegando lentamente, em si- todo um povo, seus anseios por liber-
o homem passava por dificuldades lêncio. Há tempos não presenciavam dade e tratamento igualitário. Assim
financeiras, devendo muitos contos a prática desumana de uma execu- que os soldados fixaram a cabeça,
à Coroa, em razão de impostos atra- ção. Lampadosa é uma praça exten- deixaram o lugar e a praça encheu-se
sados. Mas, quem dentre nós não se sa, onde as crianças brincam nos dias rapidamente com os populares. Uns
encontrava em dificuldades? Todos de domingo, onde os namorados se curiosos, outros estarrecidos, mas to-
éramos devedores de Portugal. Uma encontram com as mãos gélidas de dos de certa forma embevecidos pela
dívida contraída por decreto e sem nervosismo e o coração a saltar do coragem daquele homem.

v[03]
a menor possibilidade de ser salda- peito. Como poderiam usurpar dessa No início, alguns deles imaginaram
da. Muitas noites estive sem dormir, maneira um local abençoado pelos que seus olhos estavam a lhes pregar
pensando no assunto, mas acabei pássaros e pelo aroma das coníferas, uma peça. Os poucos letrados que
desistindo de tentar conhecer os seus presentes a toda a sua volta? O que compareceram ao local, referiram-se
motivos, diante de coisas mais impor- dizer da igreja, situada muito próxima a uma alucinação coletiva. O fato é
tantes e imediatas a serem prepara- ao assassínio? Um templo sagrado de que, na presença de todos, a cabe-
das. Éramos todos condenados e já Deus servindo de testemunha a mata- ça de Joaquim Xavier desvaneceu-se,
não tínhamos muito tempo. dores legalizados. lentamente, aos poucos desapare-
Após uma cansativa série de ape- Havia soldados por todos os can- cendo no ar, como se um fantasma
lações, obviamente sem menosprezar tos e o carrasco, um sujeito forte e fosse. Ao cabo de alguns minutos,
a ajuda de alguns amigos influentes, encapuzado, ajeitou delicadamente apenas uma corda vazia restava en-
consegui que as penas de enforca- a forca em torno do pescoço de Jo- roscada ao poste. A cabeça simples-
mento fossem comutadas para de- aquim Xavier. Ele estava bem bar- mente deixou de existir, diante dos
gredo perpétuo, na prática, um exílio beado e com os cabelos aparados à olhos perplexos de centenas de pes-
para as distantes colônias portugue- maneira militar. Sua expressão era im- soas que vieram para assistir aquela
sas na África. Lamentavelmente hou- passível. Não disse últimas palavras. barbárie. Então, quebrando o silên-
ve uma exceção: o alferes Joaquim Tudo foi muito rápido. cio fúnebre que se instalou entre as
Xavier não escapou ao enforcamen- Após o enforcamento, os bárbaros pessoas, ouviram-se cinco badaladas
to. Todo meu empenho, brilhantismo esquartejaram o corpo e queimaram do sino da igreja, contrariando a proi-

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e conhecimento dos meandros da sua moradia. Não contentes, o ter- bição que havia. Soube-se posterior-
Lei não foram suficientes para livrá-lo
reno ainda foi salgado para que se mente que as partes esquartejadas
do castigo. A Coroa precisava aplicartornasse imprestável a futuras cons- de corpo também haviam sumido, da
uma punição exemplar ao menos a truções. Sua cabeça também foi sal- mesma forma que a cabeça.
um de nós, visando dissuadir qual- gada e acondicionada em um saco de Temendo que a população tomas-
quer homem a que se pusesse contra couro, para não apodrecer durante a se Joaquim José da Silva Xavier por
o poder do Rei. viagem a Vila Rica. Lá chegando, foi santo e viessem a reverenciá-lo, os
O alferes Joaquim José da Silva retirada do saco e exposta no alto de portugueses rapidamente espalha-
Xavier foi executado publicamente um poste, defronte à sede do Gover- ram o boato de que sua cabeça havia
no Campo da Lampadosa. Um gran- no. sido roubada.
de evento, que teve por testemunhas, Ali dependurada naquele mastro,
além da estátua equestre de D. Pedro jaziam também as esperanças de
I, centenas de populares. As pessoas

Davi M. Gonzales é residente em São Caetano do Sul, SP. Vem publi-


cando seus contos regularmente, como resultado de concursos literá-
rios ou na submissão a editoras. Possui inclinação para o fantástico,
em especial a Ficção Científica e seus subgêneros. Para conhecer al-
guns trabalhos publicados, veja http://davimgonzales.blogspot.com.br/
Contato: davimegon@yahoo.com.br
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_M,a,R,c,E,l,O;h,E,n,R,i,Q,u,E;p,E,r,E,i,R,a_
. . . f A nTa S m A . . .
conto

táquion fc
...FANTASMA...
Marcelo Henrique Pereira

v[03]
Capítulo 3 tudo de novo — disse um sujeito mal- as naquele local, incluindo crianças.
... -encarado sentado ao lado do Seu O que aconteceu? Percorreu com
José. o olhar e viu Lucas a uns cinquenta

S
eu José deu por si. Saco- — Ele está tendo um momento de metros, correndo de um lado para
lejava na caçamba de um lucidez — disse Lucas para o sujeito, o outro, falando com dois policiais.
caminhão velho que ronca- e voltando-se para o Seu José, ia co- Foi então que viu Fernanda, abaixa-
va alto e andava devagar. Havia pelo meçar a falar, mas o sogro perguntou da um pouco adiante dele, fazendo
menos dez pessoas ali, sentadas ou antes: um curativo numa senhora. Quando
deitadas, todas sujas, algumas ma- a chamou, a filha se virou imediata-
— Cadê a Fernanda?
chucadas. Tentou olhar para mais mente, assustada. Pediu a uma outra
Lucas engoliu em seco. O sujeito mulher vestida de branco, como ela,
longe, mas uma bruma esverdeada
mal-encarado deu uma risadinha irô- que terminasse a sutura e correu em
pairava sobre todo o lugar. Nunca
nica dizendo, mais para si mesmo, um direção ao pai, sorrindo e chorando
vira nada assim. O cheiro do diesel do
“lá vem”. Os olhos do genro estavam ao mesmo tempo.
caminhão era inconfundível, mas ha-
úmidos.
via um outro misturado, inédito para O abraço foi longo, mas Seu José
ele, um cheiro metálico, se é que isso — Levaram ela, Seu José. Levaram estava bastante confuso. Ia perguntar

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fazia algum sentido. Dava para sentir todas as grávidas. à filha que lugar era aquele e o que
gosto de metal na boca. O que dia- O idoso teve um pequeno vislum- faziam ali, quando percebeu que ela
bos estava acontecendo? Onde ele bre de memória do evento e ficou estava com uma barriga de uns sete
estava e para onde estava indo? encolhido em sua dor e em sua con- meses. Olhou incrédulo para ela,
Alguém tocou em seu ombro. Era fusão, chorando copiosamente pela num misto de confusão e alegria. Ou-
o Lucas. Estava com a cabeça ras- meia hora seguinte. tro longo abraço se seguiu antes que
pada na máquina um. Parecia muito ... a filha se afastasse o suficiente para
mais magro, muito mais sofrido. olhá-lo nos olhos, segurando suas
Quando Lucas lhe dirigiu a palavra
têmporas com aquelas mãos quentes
— Seu José? O senhor está aí? novamente, Seu José já não o reco-
de médica que ela tinha.
Está me reconhecendo? nhecia.
— Pai, eu teria coisa demais pra di-
— Lucas? O que aconteceu com
zer ao senhor, mas não sei se dá tem-
você? Onde estamos? Capítulo 2 po. Sim, eu estou grávida, o senhor
Ele começava a perceber que tam- ... já ficou feliz com isso tantas vezes...
bém estava mais magro, muito cansa-
Seu José abriu os olhos. Estava Fazia tempo que o senhor não me
do e todo dolorido. Lucas mostrava
com frio e com fome. Quando sua reconhecia. Que saudade... O senhor
no rosto uma tristeza profunda. Seu
visão se acostumou à escuridão, per- consegue entender o que está acon-
José reparou, nessa hora, que a per-
cebeu que dormira no chão, debaixo tecendo?
na direita do genro estava amputa-
de um grande viaduto. Não sabia Fernanda percebeu que não e fi-
da na altura do joelho, enfaixada de
exatamente qual era, mas devia estar cou indecisa, mordendo o lábio in-
maneira aparentemente improvisada,
longe de sua pequena cidade. Era ferior como sempre fazia. Talvez es-
cheia de sujeira e de sangue seco.
começo da manhã ou final da tarde, tivesse pensando em poupá-lo, ou
Aquilo parecia filme de guerra.
pois dava para ver, mais para o fundo, estivesse pensando se valia a pena
— Seu José, que alegria ver o se- um pequeno pedaço de céu alaran- falar coisas que seriam esquecidas
nhor me reconhecendo. jado. Havia pelo menos cem pesso- por ele logo em seguida. Acabou por
— Lá vai ele explicar pro velho falar, com pressa:

P85
conto
táquion fc ...fantasma...
mArCeLo HeNrIqUe PeReIrA

— Pai. O senhor conseguiria se ... dele e do rapaz ao seu lado, havia na-
lembrar de ficar sempre comigo ou —, a gente acha que na capital quele espaço mais uma cadeira com
com o Lucas? Não, isso não adianta, pode ter alguma chance. Se o se- uma pessoa entubada.
o senhor não vai se lembrar da gente nhor conseguisse ficar calmo na hora Foi nessa hora que, de repente,
daqui a pouco. Pai, eu preciso que o que... Pai? ele jurou ter visto um pano flutuan-
senhor entenda o que a gente está do no meio do espaço. Durou um
passando, pra tentar ficar calmo, pra segundo. Ele piscou algumas vezes
tentar ajudar, entendeu? — Então co- Capítulo 4
para ter certeza, mas não via mais
v[03]

chichou para si mesma: — Por que eu ... nada. Alguns segundos depois, teve
tô falando isso? Seu José engasgou-se. Algum certeza. Num outro ponto do quarto,
Fernanda começou a rir, nervosa. tubo estava preso em sua garganta. uma coisa estava flutuando. Emitia de
Não sabia o que fazer com os seus Hospital? Não podia ser, porque o si uma suave luz verde clara. Parecia
poucos minutos diante do pai lúcido. breu era completo. Nada, nem uma um grande lenço de seda flutuante.
Seu José a abraçou, carinhosamente. pequena luz de aparelho médico. Ele Esvoaçava e se mexia em câmera
Disse que ela não precisava se pre- se debateu, mas sentia muita dor. lenta como se fosse movido por um
ocupar com ele, pois ele tinha vivi- Parou de se mexer para não sufocar. vento vindo de lugar nenhum. Não
do uma boa vida. Pediu para ela ao Ouviu algo à sua direita. tinha contornos muito definidos, pa-
menos dizer por que diabos estavam — Alguém? — tentou dizer, mas recia diminuir e aumentar um pouco
debaixo de um viaduto. Mesmo que provavelmente não saiu nada inteli- conforme se movimentava. Maldita
depois fosse esquecer a resposta, es- gível. toalha voadora, pensou Seu José,
tava curioso. perguntando-se que diabos estava
— Oi.
— Lembra que o senhor dizia não acontecendo e se ele estava sonhan-
Uma voz. Não conhecia. Era de al- do. Onde estaria Fernanda?
saber se gostava mais da ideia de
guém jovem. Moleque.
alienígenas ou de fantasmas, pai? No centro daquela coisa flutuante,
Duvido que o senhor esteja gostan- — Fique calmo, senhor. Não se um buraco redondo se abriu. O ser
do agora... — Ela sorriu, tentando mexa muito, nem resista. Eles não es- se remexeu e voou lentamente na
encontrar um pouco de humor no tão machucando a gente. Pelo menos direção do Seu José, que arregalou
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sofrimento de muitos dias. — No fi- não estão machucando a gente de- os olhos, sem poder se mover, com
nal, pai, os fantasmas eram os aliení- mais. Deixa acontecer tudo, se con- alguma maldita coisa enfiada em sua
genas, acredita? Algo assim. O Lucas seguir dormir na hora, muito melhor. garganta e os braços e as pernas pre-
entende muito melhor, por isso que Eu falo isso pro senhor todo dia, mas sos. A coisa ficou voando ali, parada
ele procurou os amigos dele da polí- todo dia o senhor faz a mesma coi- diante dele, em câmera lenta. Agora
cia e agora estão tentando fazer algu- sa. Acho que já entendi que o senhor já havia um segundo buraco nela, ao
ma coisa. Tá vendo, pai? Eu falei pro tem demência, tudo bem, tá tudo lado do primeiro. Estava parecendo
senhor que podia confiar em mim, certo. Mas fique calmo, não adianta um fantasma de histórias infantis.
olha só o Lucas lá, parece um herói ficar lutando. Faz uma semana que eu
O ser, então, sumiu. Seu José nem
tentando salvar a humanidade. estou sem os tubos, logo, logo o se-
viu, foi numa piscada. Segundos de-
nhor fica livre também, eu acho.
Seu José olhava para a filha com pois, apareceram, também vindas
todo o amor do mundo. Também Um flash de luz surgiu no ambien- do nada, duas daquelas toalhas, um
estava com saudades dela. A outra te. Por um segundo, Seu José pen- pouco mais para o fundo da sala,
mulher de branco acenou de longe, sou ter ficado cego. Mas o brilho foi emitindo a suave luz verde clara, as
chamando-a, mas ela pediu para es- ficando mais fraco, paulatinamente. únicas coisas visíveis na escuridão já
perar um pouco, também acenando. Tentou olhar ao redor, embora não absoluta. A coisa da esquerda tinha
pudesse mexer muito a cabeça. Es- uns quatro buracos na sua forma es-
— Pai, daqui a pouco vou chamar
tava em algum lugar muito estranho. voaçante, a da direita, nenhum. Esses
o Lucas pra ele explicar pro senhor.
As paredes pareciam feitas de algum negócios estranhos ficaram parados
Mas tem a ver com alienígenas. Faz
tipo de algodão, ou de gás hipercon- voando na frente dele. Dois dos qua-
uns seis meses. Nossa, parece que
centrado, num tom verde claro. Ele tro buracos da toalha da esquerda
faz uns três anos... Enfim, eles não
estava preso numa espécie de cadei- foram se fechando, lentamente. Na
são etezinhos chegando em navezi-
ra, parecida com as de dentista, mas toalha da direita, um buraco come-
nhas não, eles meio que aparecem
cheia de umas coisas esquisitas e no çou a se abrir, muito devagar, bem no
e desaparecem de qualquer lugar, a
mesmo tom verde claro das paredes. centro. Assim ficaram por uns bons
qualquer momento. Tem um lance da
Havia nela uns fios, umas lâminas, uns minutos, flutuando diante do idoso
física nisso, o Lucas vai explicar, algu-
pontos espelhados perto de outras no escuro silêncio.
ma coisa quântica, uns pontos não sei
partes com outras texturas. Tudo no
o quê, uns entrelaçamentos sei lá o ...
mesmo verde. A luz foi ficando mais
quê. Mas nem o Lucas entende com- Assim que os olhos do Seu José
fraca, até que já não dava mais para
pletamente, ninguém sabe de nada pareceram perder o foco, as figuras
distinguir quase nada. Mas ele pôde
direito. Estamos fugindo, pai —
ver, pelo canto do olho, que além sumiram, deixando o ambiente na

P86
conto
...fantasma...

táquion fc
mArCeLo HeNrIqUe PeReIrA

completa escuridão. Pouco depois, — Seu José, tudo bem? Que bom levado a sério demais o Halloween
a cadeira dele começou a afundar no que o senhor está conosco agora! — riu, acompanhado pelos vizinhos,
chão bem devagar. Não era possível Fernanda, fala pra ele. mas ninguém estava achando muita
ver o que havia embaixo. Ao mes- — Pai. Temos uma coisa pra con- graça.
mo tempo, algum líquido começou tar pro senhor. Estava esperando essa Nesse momento, um flash de luz
a passar pelo tubo, descendo acida- chance. Estou grávida! De algumas piscou no fim da rua. Pareceu um re-
mente por sua garganta. Nauseado e semanas! lâmpago, seguido de um chiado alto.
cheio de lágrimas nos olhos, sentin-
Seu José olhou com espanto para Algumas crianças gritaram de susto,

v[03]
do o corpo todo esquentar, Seu José
ela, então lhe deu um longo abraço. e alguns adultos na redondeza saí-
tentou gritar.
Três meninas corriam pela rua vesti- ram nas calçadas para ver o que tinha
— Não faça isso, senhor — lamen- das de bruxinhas, carregando doces acontecido.
tou o rapaz. — Não adianta. E eu já dis- em saquinhos de papel. Ele torceu — O pessoal caprichou mesmo —
se, eles nunca nos machucam demais. para que a filha tivesse uma menina. sorriu o vizinho Roberto, mas já não
Olhou sorrindo para o genro e lhe conseguia disfarçar a tensão.
Capítulo 1 deu os parabéns. Lucas envolveu os Quando a voz de uma mulher
— Pai? dois com o seu abraço. adulta ecoou no fim da rua, num grito
Fernanda olhava para o Seu José, Então, Roberto, um simpático vizi- desesperado, todo mundo se sobres-
surpresa. Ele estava lúcido. Era noite nho de muitos anos, chegou corren- saltou de vez.
e havia gritinhos de crianças pela re- do, meio confuso. Nem reparou que — Se é uma pegadinha, já está fi-
dondeza. Os dois estavam na calçada Seu José o reconheceu. cando sem graça — falou Fernanda.
em frente à casa. — A Daniela disse que viu um — Pai, fica aqui que eu já volto, só
— Lucas! Lucas! — Ela gritou, e fantasma de verdade — ele sorria, vou ver se a Dani está bem.
alguns segundos depois seu marido mas um pouco nervoso. Lucas já es- Ela saiu, uma múmia andando a
saiu pela porta com um copo de tava lhe apontando o Seu José e ia passos rápidos pela rua. Algumas
cerveja na mão, vestido de vampiro. começar a falar, mas o vizinho real- bruxinhas corriam no sentido contrá-
Um vampiro de dreadlocks, nada mal. mente estava tenso. — Ela já é mais rio, e nos seus rostinhos só havia o

MISSãO jAn 2024


Só então Seu José percebeu que a grandinha, minha filha brinca com ela medo.
filha estava toda envolta em gaze, lá em casa. Ela não é de ficar muito
...
uma múmia. Com certeza tinha pego impressionada, não. E parece que até
desmaiou. Seu José olhou para o lado e ficou
um bom tanto no hospital. Ele mesmo
confuso. Não reconheceu o sujeito de
estava fantasiado de algum serial Fernanda fechou o sorriso e se
dreadlocks vestido de vampiro, com
killer que não reconhecia, a julgar prontificou imediatamente a ir verifi-
uma cerveja na mão e uma expressão
pelo suéter listrado manchado de car.
preocupada no rosto.
sangue de mentira, pelo chapeuzinho — Parece que o pai também viu al-
e pela garra de plástico barato que já guma coisa — seguiu dizendo Rober-
lhe incomodava o pulso direito. Festa to —, ele é calmo, mas estava meio
de Halloween. que gritando lá. Esse pessoal deve ter

Marcelo Henrique Pereira cresceu em meio aos livros e, para nunca sair
de perto deles, graduou-se em Letras e em Biblioteconomia. Lê avida-
mente e tem a ficção científica e a fantasia como seus gêneros predile-
tos. É natural de Mogi das Cruzes/SP.
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_M,a,R,c,E,l,O;l,U,i,Z;d,I,a,S_
cIcLoS vIcIoSoS
conto

táquion fc
CICLOS VICIOSOS
Marcelo Luiz Dias

v[03]
15 de setembro de 2023 da empresária é inenarrável. — Oh, é sim. Além da alegria de
— Betinho? Meu Deus, é você te ver, trago uma proposta de negó-

S
Senhor Roberto, a senhora mesmo? cios que vai nos fazer ganhar bilhões
Peixoto irá atendê-lo agora. de dólares nos próximos anos. Fiquei
Ela se levanta e corre para abraçar
muito feliz quando eu soube que
A secretária aperta um o amigo de infância.
você seria a minha sócia.
botão em sua mesa, a porta ao seu — Sou eu, Cris, senti muita sauda-
lado é destrancada. — Quando você soube? — Cristi-
de sua — ele retribui o abraço com
na senta-se novamente, com uma ex-
Roberto agradece, e entra no es- extrema ternura.
pressão mista de curiosidade e des-
critório de Cristina. É luxuoso, mas — Eu também morri de saudades! confiança — Como assim?
menor do que ele esperava. — uma lágrima de alegria escorre
— Cris, preciso que você tenha a
— Sente-se, senhor Roberto — a pela face da empresária — Eu tentei
mente aberta e me dê a chance de
mulher detrás da mesa, elegante- te achar nas redes sociais muitas ve-
provar o que vou dizer — ele respira
mente vestida, observa o seu laptop zes — ela continua — mas não lem-
fundo antes de continuar. — Eu in-
enquanto fala. — Eu não costumo brava seu sobrenome. Afinal a gente
ventei uma maneira de mandar uma
receber pessoas, especialmente des- tinha o quê? 11 anos quando minha
mensagem através do tempo.

MISSãO jAn 2024


conhecidas, sem meses de antece- família se mudou?
dência, mas seu currículo é muito im- — Viagem no tempo? — A empre-
— Isso! Eu também tentei te achar,
pressionante. sária parece incrédula.
eu lembro do seu nome completo,
Roberto apenas senta-se e sorri. mas não consegui. — Não, não “viajar no tempo”!
Isso ainda é impossível para nosso
— Formado em física pelo Mas- — Meus perfis são sigilosos — ela
conhecimento científico. Talvez nun-
sachusetts Institute of Technology, o diz, ainda abraçada — questões de
ca seja possível — ele explica —, mas
famoso MIT, Pós-graduação em Física segurança.
encontrei uma maneira de enviar par-
Quântica no Caltech — Instituto de — Imagino, você é rica, deve pre- tículas táquions através do tempo.
Tecnologia da Califórnia, doutorado cisar se proteger.
em física na universidade de Cambri- Ele abre sua mochila, colocando
— Não sou tão rica assim, como um laptop em cima da mesa, e o abre.
dge, trabalhou no Departamento de
muitos imaginam — ela solta o abraço
Física de Oxford, um dos mais con- — Eu adaptei este laptop para re-
e se afasta um pouco — lembra como
ceituados centros de estudos de físi- conhecer a emissão destes táquions.
eu sofria bullying por ser a “gorda da
ca do mundo... Quando uma mensagem começa, a
turma”? Bem, não sou mais — Ela faz
Ela fecha o laptop, e olha para Ro- uma pose de modelo, exibindo um cada nanosegundo ele verifica se um
berto. táquion foi enviado ou não. Um tá-
corpo escultural.
quion enviado é registrado como um
— Fiquei muito curiosa. Que pro- — Você está muito linda — a ex- “1”. Se não houve o envio de táquion
posta de negócios um cientista reno- pressão de Roberto é sincera — lem-
em um determinado nanosegundo,
mado como o senhor teria para uma bra como eu sofria bullying por ser
ele registra isso como um “0”.
empresária do ramo farmacêutico? o “nerd da turma”? Bem, ainda sou
Ela tenta acompanhar a explica-
— Você não me reconheceu mes- nerd!
ção. Ele continua.
mo, não é, “cri-cri”? — Roberto abre Eles riem
um sorriso feliz, mostrando doçura no — Zeros e uns são bits. É o mais
— Então, não é uma proposta de básico princípio da informática.
olhar.
negócios, afinal! — ela diz. Um byte é formado de 8 bits. Meu
A expressão de espanto no rosto

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conto
táquion fc ciclos viciosos
mArCeLo LuIz DiAs

celular tem 128 gigabytes. São — Espera, você ainda não cons- — Por exemplo: Meu eu “do futu-
1.099.511.627.776 bits. Mais de um truiu o emissor? — Ela ficou confusa ro” sabia onde encontrar você por-
trilhão de “zeros e uns”. — Como você sabe que ele vai fun- que o meu eu “de agora” recebeu
— Você está mandando uma men- cionar? a mensagem dele dizendo onde en-
sagem digital para o passado! — Cris- — Porque semana passada eu contrar você. Ou seja, eu nunca real-
tina sorri ao compreender. recebi uma mensagem minha do fu- mente pesquisei e descobri onde te
encontrar. Eu sei por que eu saberei,
— Exato. E isso nos dará informa- turo, de 13 de novembro de 2025 —
e eu saberei por que eu sei. É um ci-
ções privilegiadas vindas do futuro. Ele responde sorrindo. — Ela me di-
v[03]

zia como encontrar você, e que você clo vicioso.


Vamos literalmente ganhar bilhões de
dólares juntos. aceitou ser minha sócia. Ou aceitará Ela coloca as mãos na testa, como
ser minha sócia, depende do ponto se estivesse com dor de cabeça.
Ela fica muda um instante.
em que você está no tempo. — É, com certeza você ainda é o
— Eu sei — Roberto mostra um
— Mas você ainda não construiu a nerd da turma.
certo constrangimento. — É uma pro-
máquina que envia a mensagem! Ele sorri.
posta totalmente antiética.
— Mas construirei. Existem diver- — Beto, se eu aceitei, aceitarei, sei
— Estou no ramo empresarial há
sas teorias de mecânica temporal que lá, essa parceria, presumo que você
quinze anos — Ela fala com certa re-
dizem que o efeito pode vir antes da tenha provas a me apresentar. Ou te-
signação. — Já entendi que tendo
causa. nha me apresentado provas hoje. Isso
ética e mais cinco reais, a gente com-
pra um litro de leite. — Como isso é possível? é mesmo confuso.
Uma parte dele se entristece de — Eu chamo de “ciclos viciosos” — Claro — Ele soa confiante —
ver sua amiga tão amada endurecida — Ele sorri. — Um trocadilho com cír- Por favor, escreva o que você quiser
pela vida real. culos viciosos. em um papel, e mande sua assistente
— Por que não chamou de círculos enviar esse papel pelo correio, para
— E por que você precisa de mim?
viciosos? este endereço — Roberto lhe entrega
— Ela questiona, ainda confusa.
um cartão de visitas.
— Construir o receptor da men- — Porque são ciclos, não círculos
Ela faz o que ele pediu. Ele olha a
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sagem foi fácil. Construir o emissor é — Roberto fala como se sua explica-
ção fosse óbvia. hora. Na tela do laptop dele, imedia-
bem mais complicado. Vai levar pelo
tamente aparece o texto exato que
menos dois anos, e uma quantidade — Está bem — Ela não entende
ela escreveu no papel. No final vem
de recursos monetários que eu não a diferença, mas concorda. — Conti-
uma data, 13 de novembro de 2025.
possuo, mas você possui. nue.
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conto
ciclos viciosos

táquion fc
mArCeLo LuIz DiAs

— A carta vai chegar no meu en- — Eu confio muito em você, Beti- para um jantar comemorando os 20
dereço daqui a dois, três dias — Ele nho. Mas tanto dinheiro assim é mui- milhões de dólares ganhos na primei-
explica. — Eu a guardarei e naquela ta tentação. Como saberei que você ra semana da operação. Ambos estão
data enviarei seu texto para este mo- não tentará me enganar? muito felizes, mas nestas circunstân-
mento. — Simples — ele responde — você cias, quem não estaria?
Ela está visivelmente impressiona- fará todas as operações financeiras, e — Lembra quando retiramos o avi-
da. nunca me dirá onde você depositou so de “piso molhado” do corredor da
— Isso pode ser alguma espécie nossos lucros. escola? — Roberto pergunta, rindo.

v[03]
de truque... — Cristina parece incer- — Você confia tanto em mim as- — Sim! O Paulo Freitas levou um
ta. sim? — Ela diz, comovida, sentindo tombo daqueles. Nossas vinganças
Ele olha a hora. Na tela do laptop todo o carinho que sempre teve por contra aqueles que zombavam de
modificado aparece o texto “Não é ele aumentar. nós eram terríveis — Ambos caem
um truque, cri-cri. Pode confiar em — Confio, claro, confiaria minha na gargalhada — E ninguém nunca
mim”. Mesma data. vida a você sem nem hesitar — Ele desconfiou de nossas “tramas maca-
bras”.
— Como... — Ela começa a ques- responde, feliz.
tionar, perplexa. Ela sente um calor no coração que — E pensar que foi justamente
só sentia quando estava com ele no esse bullying que acabou nos unindo
— Eu memorizei suas palavras e a
nesse laço tão forte — os olhos de
hora que você as disse, e enviarei a passado, só que mais intenso.
Roberto brilham enquanto ele fala.
resposta do futuro. — Além disso, eu não mandaria a
— Ah, ano passado encontrei por
— Você memorizou e lembrou mensagem se desconfiasse que você
me trairia. acaso a Elisabeth, uma ruiva muito ir-
dois anos depois?
ritante, lembra?
Ele olha a hora. Na tela do laptop — Eu posso ter te obrigado a en-
— Lembro. Ela era uma das piores.
modificado aparece o texto “Eu te- viar a mensagem, no futuro.
nho uma excelente memória!”. Mes- — Essa possibilidade inexiste. Essa — Ela trabalhava como secretária
ma data. não é a garota por quem eu... — ele executiva de um fornecer de produ-
tos químicos com quem faço negó-

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— Outra prova: Você só começará dá uma pausa — com quem eu convi-
vi tantos anos. cios. Quando me reconheceu, tremeu
a comprar meus equipamentos se-
da cabeça aos pés. Ela deve ter pen-
mana que vem, mas amanhã mesmo Ela sorri. Ela sabe o que ele ia di-
sado que ia pedir para a despedirem.
você já verá os lucros chegando. zer.
— E o que você fez?
— Eu estou convencida. Mas me- — E o que eu faço? — ela pergun-
xer com o tempo não pode ser pe- ta. — Fiz uma oferta de emprego para
rigoso? ela, ganhando o dobro. Ela aceitou. É
— Basta aceitar. Você me arranja-
delicioso vê-la todo dia me chaman-
— Existe a possibilidade, mas não rá um local isolado para trabalhar, e
do de senhora, toda respeitosa, me
sei de fato. Nunca ocorreu ainda. Só financiará o material que preciso. O
obedecendo e puxando meu saco.
quando um ciclo vicioso for quebra- que me diz?
do é que terei certeza. Pode desde — Genial, você sempre foi a mais
— Eu aceito.
não acontecer nada até rompermos esperta. Sempre te admirei por isso.
Ele olha a hora, imediatamente
o continuum espaço-temporal, des- — Você lembra — ela começa a
centenas de informações surgem na
truindo a realidade. falar meio tímida — que antes de per-
tela.
Ela arregala os olhos. demos contato, a gente dizia que iria
— São resultados de loterias de di- se casar quando crescêssemos?
— Mas tomaremos todos os cui- versos países em diversas datas, com
dados. Um ciclo só irá se romper se os sites onde apostar — Cristina lê, — Nunca esqueci disso! — Ro-
acontecerem coisas que modifiquem maravilhada — Relações de empresas berto olha fundo nos olhos da antiga
nossas vidas e impeçam que eu man- e tecnologias que ainda irão surgir e amiga ao responder.
de as mensagens para este momen- darão um lucro excepcional — ela se — Você... tem alguém? — A per-
to. Por isso faremos todos os nossos espanta — Haverá uma epidemia na gunta de Cristina oscila entre a espe-
“investimentos” em outros países, Rússia ano que vem, aqui tem a cura rança e medo da resposta.
bem longe de nós. e para quem a venderemos por meio — Ninguém, e você?
Ela faz que sim com a cabeça. bilhão de dólares. Ganharemos mais — Já tive, não mais! — ela respon-
— Colocaremos todo o lucro ga- do que eu pensava. de um pouco nervosa.
nho com estas operações em um No final, a mesma data, 13 de no- — A mensagem que recebi do fu-
paraíso fiscal, e só o retiraremos um vembro de 2025. turo também falava de nós! — ele diz,
dia depois das mensagens serem en- sorrindo, o olhar mais carinhoso que
viadas. Isso evitará que o próprio ga- 22 de setembro de 2023 ela já viu.
nho monetário modifique nossa linha
É o restaurante mais luxuoso que — E o que dizia? — ela retribui o
temporal.
Roberto já foi. Um excelente local olhar.
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conto
táquion fc ciclos viciosos
mArCeLo LuIz DiAs

— Creio que você já sabe a respos- O homem fica visivelmente cons- vem chegar no receptor. Ele sequer
ta... — ele estende a mão para ela. trangido. precisou pesquisar as informações
— Sim, eu sei! — ela segura a mão — Vejo que o senhor não foi infor- privilegiadas. Ele só reescreveu a
de Roberto, sentindo seu coração se mado — Ele respira fundo. — Lamen- mensagem que recebeu no escritó-
aquecer. to dizer, mas houve um acidente com rio de Cristina, palavra por palavra.
o avião em que a senhora Cristina vol- Ele tinha as informações para mandar
7 de agosto de 2025 tava ao Brasil — uma pausa — Sem para o passado porque as recebeu do
sobreviventes. futuro. Outro ciclo vicioso.
v[03]

Roberto jamais imaginou que fi-


Roberto sente seu coração mer- Basta apertar enter, e tudo será
caria mais ansioso pelo retorno de
enviado. Mas ele tem que aguardar.
Cristina do que pelo dia em que ele gulhar no vazio, sua alma gritar, sua
embolsará a fortuna que eles já ga- visão faltar. Ele fica tão abalado que Enquanto isso, ele experimenta
nharam. teria caído ao chão, se o advogado uma dor jamais conhecida por outro
não tivesse o apoiado. ser humano.
E são apenas três semanas desde
que ela viajou. O homem ajuda Roberto a sentar- A dor de ter o poder de salvar a
-se. Ele está apático, completamente mulher que ama, mas o dever de não
A partir daquele dia no restauran-
sem reação. o fazer.
te, a vida de Roberto tem sido mais
feliz do que ele poderia sequer imagi- — Percebo que a senhora Cristina Avisar Cristina do acidente que-
nar. O amor que ele compartilha com era muito importante para o senhor. brará todos os ciclos viciosos que ele
Cristina é puro, inspirador, uma fonte Meus pêsames. criou, arriscando destruir a realidade.
de luz. Roberto não tem nem forças para Um pensamento o faz dar um sor-
Eles marcaram o casamento para agradecer. riso melancólico. Na teoria, quebrar
14 de novembro. Ela queria oficializar — Recebemos ordens da Senhora os ciclos, poderia prendê-los em um
antes, mas ele teve medo do casa- Cristina para entregar-lhe este enve- loop temporal. Seria maravilhoso pas-
mento quebrar um ciclo vicioso. lope, caso ela viesse a falecer antes sar a eternidade revivendo seu tempo
juntos. Mas a chance de isso ocorrer
Afinal, ele ainda precisa garantir de 13 de novembro.
tende à zero.
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que o transmissor de táquions este- Roberto só consegue esticar a


ja pronto em 13 de novembro. Não mão e pegar o envelope, sem nem Ele passa horas olhando para o
pode haver distrações. olhar para o homem. transmissor, lutando com a tentação
de alterar a mensagem original.
De súbito, batidas na porta ecoam — O deixarei só agora. Novamen-
no grande galpão onde Roberto tem te, lamento muito pelo ocorrido. Se bem que nunca houve uma
trabalhado nos últimos dois anos. mensagem original. Só a mensagem
O homem sai, sem que Roberto
Será Cristina, chegando antes do pre- diga uma palavra. Na próxima meia que faz parte do ciclo vicioso, se re-
visto? Seu coração dispara. petindo eternamente.
hora, ele fica apenas olhando o en-
Ele corre para abrir a porta, mas velope, sem coragem de abri-lo. Uma Nesse momento, a porta do gal-
quem o espera é um homem de ter- carta de despedida dela será doloro- pão se abre. Uma mulher em roupas
no, desconhecido. sa demais. executivas entra no galpão, acompa-
nhado de um homem com o maior
— Senhor Roberto Alexander Soa- Por fim, ele abre o envelope. Não
tablet que Roberto já viu nas mãos, e
res? — o homem pergunta. é uma carta.
mais três seguranças da Peixoto Far-
— Sim, sou eu — Roberto respon- É a conta onde eles depositaram macêutica.
de, estranhando bastante. Só Cristina o dinheiro ganho nos últimos dois
— Então esse é o projeto sigiloso
sabia que ele estava trabalhando na- anos, com todas as informações para
da Cristina! — a mulher diz, olhando
quele galpão, de propriedade de sua seu resgate.
o galpão, até deter seus olhos em Ro-
empresa. Todo aquele dinheiro agora pare- berto — E quem é você?
— Meu nome é Oliver. Represento ce insignificante ante a ausência de
— Doutor Roberto Soares da Fon-
a R. Sabato Advogados Associados. Cristina. Bilhões de dólares não va-
seca. E você?
— Essa não é a firma que repre- lem nada sem sua amada para com-
— Pode me chamar de senhora
senta a empresa de Cristina! — Ro- partilhar com ele.
Carmem. Sou a nova presidente da
berto lança um olhar desconfiado Ele começa a chorar.
Peixoto Farmacêutica. Este é Jonas,
para o homem engravatado.
meu assistente — Ela aponta para o
— Correto. Nós não representa- 2 de novembro de 2025 homem do tablet — Você é nosso
mos a Peixoto Farmacêutica. Nós cui- Faz uma semana que o transmissor empregado?
dávamos dos interesses particulares está pronto. Ele se pergunta por que
— Não, senhora — Roberto res-
da senhora Cristina Peixoto. ele esperou até 13 de novembro para ponde, odiando a postura altiva e
Roberto fica pálido. Ele só conse- acioná-lo. convencida de Carmem — Mas tenho
gue balbuciar uma palavra: — Cuidá- Ele já programou todas as mensa- um contrato de trabalho com a em-
vamos? gens e os momentos em que elas de- presa.

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conto
ciclos viciosos

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mArCeLo LuIz DiAs

Carmem olha para Jonas. — Bem, eu quero saber do que para o depósito três. Contrataremos
— É verdade, senhora — Ele diz, isso se trata! — a mulher diz, em tom alguém para descobrir do que se tra-
consultando o tablet — ele tem um meio ameaçador — Creio que pode- ta esta pesquisa depois do inventário
contrato válido até 13 de novembro mos chegar a algum tipo de acordo anual.
de 2025. Pesquisa Sigilosa. Acesso a muito benéfico para o senhor... — NÃO! — Roberto grita, apa-
todos os recursos e departamentos — Não me interessa nenhum acor- vorado — Vocês não fazem ideia de
da empresa. do. Eu não posso, não quero, e não com que estão lidando! Isso é peri-
— E que pesquisa seria essa? — irei falar. goso demais. O dano causado por

v[03]
pergunta a mulher, curiosa. Carmem revira os olhos e suspira uma pessoa despreparada pode ser
catastrófico!
— Meu contrato tem uma cláusu- fundo — Podemos forçá-lo, Jonas?
la de sigilo absoluto. A única pessoa — Não dentro da lei, senhora — — Então nos diga o que é, e fare-
com quem posso falar é especifica- Jonas responde. — Enquanto a se- mos um novo contrato com o senhor
mente a falecida Cristina. nhora falava, pesquisei sobre ele, é — Carmem lança um olhar vitorioso
um cientista de renome. Forçá-lo a fa- sobre Roberto.
— Está correto, senhora — Diz o
homem do tablet — O contrato es- lar por “outros métodos” — ele olha — Eu não posso, é muito perigoso
pecifica o nome de Cristina como para os seguranças — Pode gerar qualquer um saber da existência des-
pessoa física, não como presidente uma imagem bastante negativa para sa tecnologia...
da empresa. a empresa. — Seguranças! — ela diz com a
A nova presidente fica mais curio- — Está certo — A presidente co- voz bem calma — Levem esse ho-
sa. meça a dar instruções. — Cancele o mem daqui — Ela levanta o dedo. —
contrato do doutor. Revogue todos Sem machucados “visíveis”.
— Se você não pode falar com
os seus acessos. Certifique-se que — NÃO, É PERIGOSO DEMAIS! —
mais ninguém da pesquisa, por quê
todas as multas contratuais sejam Roberto grita, enquanto os seguran-
ainda a continua?
pagas. Levem tudo o que está aqui ças o conduzem para a saída à força
— Não posso dizer.

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conto
táquion fc ciclos viciosos
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— VOCÊ PODE DESTRUIR O MUN- da empresa, confuso. Tudo o que gem para o próximo voo para a Suíça.
DO, TODA A REALIDADE! aconteceu, a morte de Cristina, o sur-
Ela dá um sorriso sarcástico gimento de Carmem, será tudo parte 13 de novembro de 2025
do ciclo? Ou eles provocaram algum
— Até parece que vou acreditar Ir para a Suíça, resgatar seu dinhei-
tipo de desvio temporal com suas
numa besteira dessas — quando Ro- ro, transferi-lo para o Brasil, voltar ao
ações?
berto já está na saída do galpão, ela país, acessar a Dark Web para contra-
grita — Se mudar de ideia, me pro- De qualquer maneira, ele não tar um grupo de milicianos, tudo isso
cure. pode arriscar. Roberto precisa enviar levou onze dias, o que o levou exa-
v[03]

a mensagem. Ele realmente não sabe tamente à 13 de novembro de 2025.


Roberto é levado até seu carro.
que tipo de consequência pode ha-
Um dos seguranças mostra a ele que Agora ele entende. O fato de ter
ver se ele não enviar. Pode não ocor-
está armado. mandado a mensagem somente hoje
rer nada, pode ser o fim do mundo,
— Apenas saia daqui senhor. Não mas ele prefere não descobrir. impediu que ele a mandasse antes, o
tente nenhuma gracinha. Detesto que deu a oportunidade de Carmem
Ainda dirigindo, ele pega o celular. pegar o transmissor, e ele só ficou em
usar isso.
— Alô, quero reservar uma passa- condições de recuperar o transmissor
Roberto dirige para fora da área

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ciclos viciosos

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hoje. Outro ciclo vicioso. ta, Roberto vacila em apertar o enter versos países em diversas datas, com
O plano é simples. Invadir a em- sem alterar a mensagem... os sites onde apostar — Cristina lê,
presa, enviar as mensagens, roubar De súbito, o receptor emite um maravilhada — Relações de empresas
o transmissor e o receptor e fugir do sinal sonoro. Roberto alterou sua ba- e tecnologias que ainda irão surgir e
país. Ele já tem um avião particular o teria para que durasse semanas em darão um lucro excepcional — Ela se
esperando em uma pista de decola- repouso. Ele abre sua tampa. Uma espanta — Haverá uma epidemia na
gem abandonada. Ser bilionário tem mensagem aparece em sua tela. Rússia ano que vem, aqui tem a cura
suas vantagens. e para quem a venderemos por meio
“Roberto, sou eu, você. Eu não al-

v[03]
bilhão de dólares... e um aviso para
A segurança da Peixoto Farma- terei a mensagem. 14 de novembro
eu não entrar no voo 783 saindo de
cêutica é boa, mas eles não estavam de 2025”
Dubai em 02 de agosto de 2025, ou
preparados para a chegada repentina — Como... — roberto balbucia. morrerei... — A voz quase lhe falta na
de três vans de onde desceram mais
“Eu estava dividido, mas então última palavra.
de vinte homens armados com fuzis e
recebi esta mesma mensagem, man- — O quê? — Roberto fala alto,
escopetas.
dada por mim amanhã, que agora re- bastante espantado — Não pode ser,
Tiros são disparados de ambos os produzo palavra por palavra. Por isso eu alterei diretamente nossa linha do
lados. Os alarmes tocam. Os homens eu enviei a mensagem que você vai tempo! Eu quebrei o ciclo! Eu arris-
de Roberto abrem fogo para manter enviar para Cristina agora sem alterá- quei destruir a realidade, ou coisa
os seguranças distantes, mas sem -la. 14 de novembro de 2025” pior — Ele parece completamente
mortes desnecessárias, como o cien-
— Mais um ciclo criado... — Ro- desorientado. — Não pode ser... a
tista ordenou.
berto fala para si mesmo — o risco menos que... a menos que...
Em meio ao tiroteio, Roberto en- está ainda maior... O rosto dela parece se iluminar. Ela
tra no prédio e corre para o depósito
— DEPRESA, CHEFIA! — o milicia- se levanta e se aproxima do antigo
três, acompanhado de dois milicia-
no grita. amigo, com o olhar fascinado, uma
nos. Facilmente ele encontra o recep-
tor e o emissor de táquions. “Você sabe o que fazer. Envie a lágrima, um sorriso de puro amor.
mensagem como Cristina a recebeu, — A menos que você venha a me
Roberto liga o emissor e está pron-
fuja com o transmissor, e envie estes amar tanto que decida arriscar des-

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to para enviar a mensagem quando
textos para você hoje, amanhã. 14 de truir o mundo por mim.
percebe que é sua última chance de
novembro de 2025” — Acho que já amo... — Ele diz
salvar Cristina. Todas as lembranças
de seus momentos juntos vêm em — RÁPIDO! olhando profundamente nos olhos de
sua mente. A dúvida o consome. Vi- Roberto aproxima seu dedo do Cristina — Acho que sempre amei.
ver sem ela não faz sentido, mas arris- enter, fecha os olhos... Eles se beijam tão apaixonada-
car quebrar o ciclo, gerar um parado- ... e então os abre e começa a alte- mente, que nem percebem uma nova
xo, destruir tudo o que existe... rar a mensagem. mensagem que chega no receptor de
Ele fica indeciso, o dedo tremendo táquions:
— Foda-se a mim mesmo! Fodam-
sob a tecla enter. -se os ciclos! Foda-se o paradoxo! “Conseguimos. O verdadeiro ciclo
— Vamos rápido, chefia — fala um FODA-SE A PORRA DA REALIDADE! permaneceu intacto. 13 de novembro
miliciano — daqui a pouco a polícia — Ele aperta o enter. de 2025”
vai chegar na parada.
O miliciano tem razão. Ele tem que 15 de setembro de 2023
ser rápido. Mas seu coração se aper- — São resultados de loterias de di-

Marcelo Luiz Dias é carioca, 57 anos, Funcionário Público, batalhando


para compartilhar suas criações com o mundo! Possui 17 contos publi-
cados por diversas editoras e mais 4 em fase de publicação. Possui uma
coluna de contos na Revista Digital Histórias ao Vento (https://bit.ly/
revistahav). Gostou deste autor? Veja onde encontrar suas histórias em
@onde.conto.encontro no Instagram.
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o N d E o S m O r To S v O t A m
_V,i,L,t,O;r,E,i,S_
conto

táquion fc
ONDE OS MORTOS VOTAM
VILTO REIS

v[03]
D
urante todo o trajeto até a tásticas sobre os grandes praticantes ras conversas de consolo, dos tempos
consulta pública sobre a ex- do passado. Gente capaz de curar em que estudamos juntas, atalhei o
pansão espacial, fiquei na doenças, viajar grandes distâncias em desabafo dela. Sabia que não fora fá-
dúvida se contava para minha amiga instantes e evitar desastres naturais, cil me apoiar a cada vez que o grande
o que sequestrava meus pensamen- pessoas altamente realizadas. Termi- Garôda-XIX Boemyr era citado e eu
tos. Juma-I não parecia perceber que namos a caminhada junto à toalha despencava a chorar. Afinal, fosse nas
eu aquiescia calada. Até por que ela quadriculada de um piquenique em aulas de engenharia e arquitetura de
falava o tempo todo, o que sempre que estão meu pai, mãe e avó, fan- baixo impacto, pensamento analítico
foi bom, pois ocupava os silêncios. tasmas do passado. O sonho se finda dedutivo ou didática de técnicas de
Contudo, simultâneo ao vagão após papai repreender o vovô, di- meditação, sempre surgia um profes-
que ocupamos inverter a polaridade, zendo que não alimente as fantasias sor disposto a citar o grande ancião,
liberando-se do alto do morro da Es- da pequena dele, que ela deve ter meu avô.
tação Cinza e obedecendo à lei da lucidez, para se tornar no futuro uma — Vou falar tudo de uma vez, Ju
gravidade que nos levaria até a pró- Grande Conselheira de Padma. Vovô, — prometi, criei coragem e enchi o
xima estação, minha amiga fez a per- que como todos também se foi, per- peito para dizer: — Você sabe que es-
gunta que eu não esperava após se gunta então: “o que você acha que tou fazendo as Práticas Iniciais, não é?

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livrar dos fãs que pediam autógrafos estou fazendo?”
— Que de iniciais não têm nada,
a ela: Até agora, não sei se é apenas um né? Sim, sei, sei.
— O que você tem? Tlec-tlec. sonho ou uma memória perdida.
— Então, eu acabei. E vovô me
Ao estalar a boca daquele jeito ir- Na realidade, não era o sonho em prometeu que ao finalizar, ele ia
ritante quando perguntava, as tranças si o problema e sim o que ele fez lem- transmitir o ensinamento do Primeiro
na cor marsala balançavam, como nas brar, uma promessa que vovô conce- Selo Secreto do Caminho.
noites em que tocava como DJ. bera bem antes de morrer e que nun-
Demos mais alguns passos em
ca contei a ninguém.
— Achei que não ia mais parar de silêncio, quase alcançando o local
elogiar a Taio-IV — respondi evasiva Um estalo em frente aos olhos me onde a multidão se reuniria.
— e como eu deveria dar uma chance trouxe de volta.
— E você pensa em arrancar isso
para ela, que você não teria ciúmes e — Ka, onde você está com a cabe- do velhote que está morto? Tlec-t-
blá-blá-blá. ça? Uma patinete de ar comprimido lec. — Juma-I perguntou, juntando as
— Ei, Ka, mas faz duas estações quase te atropelou agora — Juma-I tranças do cabelo de um só lado da
que eu te falei dela! disse e encheu as mãos agarrando as cabeça.
tranças como se fosse arrancá-las.
— Sério? Foi quando chegamos à assem-
Nós havíamos chegado à Estação bleia e todos começaram a olhar para
— Não ouviu nada depois? Tlec-t-
Azul, descido do vagão e seguido por mim como se soubessem de algo
lec. Valeu, hein!
metade do caminho até o complexo grave que eu não sabia.
Era aquele maldito sonho que fazia onde se daria a votação da consulta
isso comigo. Há algumas noites, ele f
pública. Resolvi explicar tudo a ela:
se repetia. Vovô e eu caminhamos de Com sete anos de idade, eu era
— É meu avô. capaz de narrar todas as histórias
mãos dadas por um campo de flo-
res aquáticas azuis, daquelas que só — Ah, não. De novo, não. Eu não das Crônicas da gênese humana em
abrem em noites de duas luas. Com a vou... Padma, recitando um por um o nome
voz arrastada, ele conta histórias fan- Antes que ela revivesse as inúme- dos sobreviventes da falha mecânica
da nave Tathāgata que chegara ao

P97
conto
táquion fc onde os mor tos votam
vIlTo ReIs

planeta há mais de mil e quinhentos Ao menos, adorava estar naque- — Você não olhou o telão? Não viu
anos. E não demorou muito para eu le local, pois simbolizava a união do no palco? Pobre, menina.
ser qualificada ao nível de explicar povo. De súbito, espremi os olhos na pri-
ponto a ponto o Tratado das diretrizes A construção era um colosso ca- meira direção que ele apontava. Uma
de um novo mundo, um documento paz de acomodar cem mil pessoas lista numerada com o nome de deze-
formalizado pelos sobreviventes em sentadas, o exato número que após nas de grandes anciões que seriam
que, após uma década de espera, estudos de impacto ecológicos há consultados para a conferência pos-
estabeleciam que por uma razão des- mais de quinhentos anos, concluímos suía algumas palavras em vermelho.
v[03]

conhecida perderam o contato com a que seria o ideal para vivermos em Quase desmaiei, tonteando. Ao me
Terra e que esta era uma oportunida- harmonia em Padma, tendo um bai- voltar para o palco, onde deveriam
de de recomeço para a humanidade. xo impacto ambiental. Os processos estar projeções holográficas dos an-
Por que uma criança sabia dessas eram muito diferentes da humanida- ciões conectadas aos clariaudientes
coisas? de antes de vir para cá. Até por isso, que traduziriam as palavras deles, en-
Foi a forma que vovô encontrou esta consulta pública era tão impor- contrei alguns assentos vazios.
de encher meus pensamentos, evi- tante. Porque se o programa espa- O único raciocínio lógico a que
tando que eu afundasse na perda de cial e a expansão fossem aprovados, cheguei se concentrou em uma per-
meus pais. Ele fazia eu citar palavra toda uma conduta ética sobre como gunta:
por palavra, decorando, sem permitir agir em um novo contato com a Terra
— Meu avô renasceu? Você desco-
que me rendesse ao que chamava de seria desenvolvida. Como lidaremos
briu onde ele reencarnou?
“tempos de degenerescência” da es- com uma possível ameaça imperia-
lista e colonialista? A democracia é a Kaléo-VII arqueou as costas encur-
crita, posto que as pessoas deixavam
de explorar todo o potencial de reter base deste planeta e precisa ser pro- vadas até ficar à minha altura, olhou-
e utilizar o conhecimento na mente. tegida. Afinal, mil e quinhentos anos -me nos olhos e balançou a cabeça.
Ao falar deste assunto, os olhos dele se passaram, porém, a pátria-mãe te- — Não, não é possível… — bal-
faiscavam e sua voz demonstrava ria evoluído ou regredido? buciei. — Você quer me dizer que
uma compaixão irada, porém ao se Estas eram as discussões que se Garôda-XIX renasceu em um reino in-
voltar para mim, tornavam ao tom de proliferavam nas rodas de conversas. ferior? Mas e os votos que ele tomou
MISSãO jAn 2024

ternura, repetindo que nada daquilo Rodas que se calavam sempre que de renascer quantas vezes fosse pre-
importava, pois eu era a esperança. eu me aproximava. O nervosismo ciso até todos os seres alcançarem a
Ah, a esperança. aumentou e fui tomada por redemoi- liberação do sofrimento? Não é esse
nhos na barriga. o objetivo da prática do Caminho?
Mas por mais que fosse um ancião
Fala alguma coisa, professor! E… e
conhecido em toda a Padma, Garô- Corri para os produtores de biogás
eu? — Minhas últimas frases foram
da-XIX Boemyr também se foi, como para esvaziar o corpo. Depois disso,
tomadas pela voz de choro enquanto
os demais integrantes da minha estir- fui duas vezes ao lavabo para ver se
enterrava o rosto na barriga comedi-
pe. Só me restava uma possibilidade. constatava algo de errado com a apa-
da dele, abraçando-o.
Nos dias de votação, os anciões que rência. Nada.
não estivessem reencarnados eram — Calma, filha — ele disse, afas-
Respirei fundo algumas vezes e
contatados pelos praticantes do tando-se, ergueu meu queixo e
decidi procurar meu mentor. Inde-
Caminho que desenvolveram a cla- me olhou nos olhos. A voz veio em
pendente dos outros, precisava fazer
riaudiência. Era preciso consultá-los, tom sereno. — Não sabemos o que
o que me trouxe aqui. Falar com vovô
pedindo conselhos e votos sobre a aconteceu. Nem os representantes
era a única coisa que me importava.
questão. do Grande Conselho sabem. Se ele
Entre tantas pessoas, encontrar al- tivesse renascido em qualquer reino,
Esta era uma oportunidade que eu guém específico seria difícil. No en- nós saberíamos. É como… como…
não perderia de receber de vovô um tanto, por ser considerado um mestre não devo falar para você. A única
conhecimento que ele me prometera da nova geração, altamente realiza- coisa que precisa saber é que a vo-
e que, talvez, fosse a companhia pela do, esbarrei em Kaléo-VII perto do tação da consulta pública será adiada
qual eu ansiava. palco principal. Ele descia com uma em três meses. Sem a sabedoria e o
f expressão séria. Por pouco, não me conselho de Garôda-XIX Boemyr, não
Ao entrarmos no complexo onde viu quando parei à sua frente e fiz o devemos decidir.
aconteceria uma série de conferên- gestual de reverência que um aluno
Enxuguei as lágrimas na manga da
cias antes da votação, Juma-I sumiu devia realizar defronte ao professor.
camisa, tentando não pensar na pos-
de perto de mim, rendendo-se à ba- — Kalina-III, minha aluna, eu la- sibilidade de ele ter…
julação da multidão de pessoas que mento. Lamento tanto quanto você
frequentavam as festas em que toca- — Melhor — comentei, incerta.
— expressou-se de um jeito sereno
va. Não duvidava que todos os habi- que não escondia um leve tom de — “A democracia se constrói com
tantes de Padma a conhecessem. Já comoção. o conselho de quem busca a sabedo-
eu procurei o anonimato, cobrindo a ria”, não é uma das frases de seu avô?
— O que quer di-dizer, mestre? —
cabeça com a touca do casaco. Concordei com a cabeça, e ele
gaguejei.

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onde os mor tos votam

táquion fc
vIlTo ReIs

continuou: — O ancião nos abandonou? — Estou sozinha neste mundo.


— Kalina, esta é uma oportunida- — Nunca mais vai renascer? f
de de desenvolver a clariaudiência. — Você é a nova vida dele? Afinal, Após duas visitas de Kaléo-VII e
Vocês dois têm um elo. Quem sabe é uma Boemyr, não é? várias conversas, consegui retomar a
possa contatar ele? rotina, enquanto aguardava chegar o
— Vai discursar sobre a expansão
— Vovô também dizia que o mais espacial para a gente? novo dia da consulta pública.
importante não era desenvolver ha- De manhã, contribuía com as três
— Ele desapareceu? Pluft?
bilidades especiais, todavia atingir horas de trabalho comunal obriga-

v[03]
o estado último da mente — rebati Normalmente, eu não perderia tório. No meu caso, dava aulas para
mais por costume dialético do que a compostura. Ou, ao menos, es- crianças. E à tarde e à noite, dedica-
por qualquer outra coisa. perava-se que alguém dos Boemyr va-me a intensificar os estudos me-
mantivesse a serenidade e sempre ditativos, seguindo o conselho do
Meu mestre franziu a testa, abriu
apresentasse uma resposta mais mentor. Na velha casa de tijolos de
a boca para responder com ímpeto,
transparente do que vidro. Muito adobe, construída há alguns séculos
entretanto se calou. Em seguida, es-
menos alguém que passara desde a por um de meus ancestrais Boemyr,
tendeu um sorriso e disse:
infância recebendo treinamento até eu virava horas sobre a almofada de
— Você deveria compartilhar mais os vinte anos de idade e, daqui para
meditação, alternando entre os mé-
os ensinamentos do seu avô, afinal frente, seria preparada para que aos
todos de shamata e vipassana.
isso seria de benefício para todos os quarenta anos — como ditava a lei de
seres, não? O único problema de quando
Padma — pudesse pleitear um cargo
você passa muito tempo estudando
Concordei com a cabeça, ocultan- entre os Grandes Conselheiros do
um assunto é que, em certo estágio,
do uma ponta de culpa por nunca ter planeta. Contudo, naquele momen-
o desenvolvimento se torna lento.
contado ao professor Kaléo-VII so- to, eu sucumbi.
Até parece que trava. No entanto,
bre a promessa do vovô. Depois nos Saí correndo, esbarrando em al- se persistir, chega um momento em
despedimos sob o argumento de ele guns, pisando no pé de outros e su-
que a barreira se rompe e você cruza
estar ocupado com a organização do plicando que me deixassem em paz.
do intermediário ao avançado. Mes-
evento. Larguei para trás os vultos embaça- mo que jamais devesse admitir isso

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Mal se afastou de mim, um círculo
dos pelo choro e saí do complexo, em público, nesses meses, alcancei
de curiosos sitiou o espaço. As per-
corri e corri, perdendo-me no meio realizações extremamente raras para
guntas foram disparadas uma atrásde um bosque de Corriqueiras Lilases alguém da minha idade. A única coisa
da outra: que ladeava a estrutura. Olhei para o que atrapalhava eram as visões que
— O que aconteceu com Garôda- céu, contemplando as duas luas de constantemente me acometiam. Não
-XIX? tamanhos diferentes e só consegui eram como pensamentos que atra-
desabafar: vessam a mente. Esses eu permitia

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conto
táquion fc onde os mor tos votam
vIlTo ReIs

que fossem embora tão rápido como estivesse certa. Talvez devesse dar velhos não for envenenado, seremos
vieram. As visões se manifestavam uma chance à parceira dela, apro- descobertos.
como imagens confusas. Ora eu via veitar um pouco a vida se surgisse —…
um buraco oculto em uma rocha, ora alguém disponível. Bem, e a Taio me-
Uma fisgada nas costas me trou-
um menino sorrindo para mim, ou xia comigo... os braços fortes, a pinta
xe à memória a imagem que vi há
uma espécie de fumaça viajando no na bochecha, ela nem precisava fazer
poucos dias, um lago que em lugar
céu, ou ainda um lago que em lugar nada.
da transparência da água, exibia um
da transparência da água, revelava Juma-I morava no térreo. Defronte tom esverdeado. De súbito, entendi
v[03]

um tom esverdeado. ao prédio, então, resolvi espiar pela tudo, como se a imagem fosse um ar-
Supus que devido aos obscureci- janela para ver se havia alguém em quivo que ao ser descompactado tra-
mentos da mente, não conseguia en- casa, pois estranhei encontrar o local zia uma série de outras informações.
tender nada. todo fechado. O interior repousava Eles pretendiam envenenar a água
f escuro. Apenas a tela de alguém com com a Muideira-Braba, porém com
Dois dias antes da nova data da quem minha amiga falava se manti- qual objetivo? Com que fim minha
consulta pública, resolvi relaxar um nha acesa, iluminando o rosto dela. amiga se envolvia nisso? Uhm, espe-
pouco. Na realidade, quase ouvia a Envergonhada de agir assim, me ra. Aula de Botânica Homeopática do
voz de Juma-I censurando meu rigor abaixei, porém não consegui evitar sétimo ano. Ainda bem que vovô me
com as atividades do Caminho. Tal- de ouvir a conversa. cobrava que tivesse tudo na ponta da
vez por saudades de me irritar com — Toda a Muideira-Braba que a língua. Sim, óbvio. A Muideira-Braba
ela, como só amigas mais próximas gente precisa está pronta? Tlec-tlec. possuía um componente que servia
do que irmãs são capazes, resolvi vi- Não vai ser pouca pra todo mundo para preparar uma droga capaz de
sitá-la. Uma visita surpresa, à moda que vai na consulta? conter a clariaudiência de pessoas
antiga, como dizem por aqui. Por que que não conseguiam dominar esta
—…
não? habilidade. Era uma espécie de anes-
A pessoa do outro lado deve ter tésico que agia nos neurotransmis-
No caminho para o prédio de es-
respondido, mas não pude ouvir, pois sores, bloqueando parte da ação da
trutura de bambu onde ela morava
Juma-I usava fone de ouvido. A con- glândula pineal.
com a Taio-IV, lembrei da nossa con-
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versa prosseguiu:
versa no vagão, quase três meses an- Caramba! Eles sabotaram a comu-
tes. Quem sabe minha DJ preferida — Sim, eu sei que se algum dos nicação com os grandes anciões!

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— O vagão está solto e correndo posso deixar você estragar tudo, en- nunciar vocês. É melhor se entrega-
pelos trilhos — Juma-I comentou na tende? Tlec-tlec. Jamais entenderia a rem e cooperarem.
chamada. — Nada vai nos impedir. gente. — É mesmo, Ka. E como vai fazer
Está na hora desses velhos safados — Explica! — supliquei, querendo isso?
que mantiveram nosso povo longe que tudo fosse um engano. Provavelmente, era a última carta
do ramo principal ficarem em suas
A DJ voltou a se erguer, tomando que possuía, mas precisava jogá-la.
covas bem quietinhos.
posição ao lado da consorte. — Com clariaudiência, é óbvio.
—…

v[03]
— Padma precisa se libertar do Posso me comunicar com ele por te-
Eu seria incapaz de acreditar na- passado. Todos clamam por um líder lepatia.
quilo se me contassem. Minha pró- forte que lute por nossos interesses, Juma-I não economizou na risada.
pria amiga!? As lágrimas vieram aos que ligue menos para as tradições e
olhos, o coração subiu na garganta e — Ah, é mesmo? Tlec-tlec. Ainda
mais para o futuro. Queremos menos
eu me virei para correr. Neste instan- que pudesse fazer isso, e eu sei que
meditação e conversa fiada e mais
te, alguém mais forte do que eu me está mentindo e não pode, quem
ação. Vamos aderir à expansão es-
imobilizou e, em seguida, escutei a você imagina que faz parte da nossa
pacial, acabar com essa regra de que
voz conhecida dizer: facção e, como responsável por con-
uma pessoa precisa se preparar por
tatar Garôda-XIX Boemyr, o ignora?
— Acho que ouviu uma conversa quarenta anos de vida para concorrer
Tlec-tlec.
que não devia. a um cargo do Grande Conselho e
preparar um exército antes de nosso A frase longa e confusa descarri-
Em seguida, uma pancada na ca-
contato com outros mundos. lhou todas as esperanças. Por que
beça me apagou.
Kaléo-VII estaria metido em algo as-
f — Tudo bem você achar que isso
sim? Súbito, a imagem dele dizendo
Acordei confusa e com o corpo é o melhor para Padma, apesar de eu
que eu deveria compartilhar mais coi-
dolorido. Por isso, deduzi ter passa- não concordar. Só que por que não
sas que vovô me ensinara, com aque-
do horas desmaiada em uma posição fazer isso de modo democrático? —
le olhar que só agora eu inferia ser de
desfavorável. Demorei um tantão de desafiei minha amiga.
inveja, solapou minha mente. Como
tempo a lembrar do que tinha acon- — Você acha que o Grande Con- em um jogo mental, os enigmas se

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tecido. Só consegui ao seguir a pista selho concordaria com isso? Tlec-tlec. resolviam.
que as paredes de bambu me ofere- Assenti com a cabeça em movi- Um estalo, como aquele de meses
ciam. As sombras erravam traiçoeiras mentos lentos e completei: antes, chamou outra vez a atenção.
por elas, como se iluminadas por uma
— Ideias que muitos considera- Os dedos eram de Juma-I, porém a
vela. Sim, a casa de Juma-I e Taio-IV.
vam subversivas foram apresentadas, face próxima a mim de Taio-IV foi o
Então lembrei de tudo de uma só vez,
discutidas e entendidas para depois que me assustou. Antes que eu rea-
reagindo a uma pontada na cabeça.
serem aprovadas. gisse, ela tapou minha boca, ao passo
— Ela acordou — disse a mesma que minha amiga falava:
— Deve estar surda para o que eu
voz que me apagara, Taio-IV.
falei, de novo. — Agora você vai ficar bem quie-
Rolei o corpo para o lado e conse- tinha aí. Amanhã, após a eleição, vol-
— O que está me dizendo, dona
gui me sentar, mesmo com as mãos tamos e te soltamos, ok? Tlec-tlec.
Jú, é que seus argumentos são fracos
amarradas para trás. A vela vai ficar acesa. Deve dar para
demais para convencer nosso povo.
— Você, me espionando? Tlec-t- Nem toda a sua popularidade muda- essa noite. Deixe que nós vamos lutar
lec. Que decepção. ria esta realidade. Por isso, precisam por você. Se quiser, fique meditando.
Minha amiga falava, apoiando-se de um golpe traiçoeiro, não é mes- Virei a cara. Não tolerava mais fi-
no ombro da companheira. mo? Pura incompetência. tá-la nos olhos. Este suposto cuidado
— Eu não, não… achava… que Uma linha entre nós foi atravessa- dela me ofendia.
você… — tentei responder, mas as da. Juma-I trincou as mãos, ameaçan- Então, as duas foram embora.
palavras fugiam. Portanto, parei, res- do vir a mim, no entanto foi segurada f
pirei, organizei os pensamentos e dis- por Taio-IV. A noite mais longa da vida foi um
se tudo de supetão. — O plano de — Seria uma pena estragar este pesadelo desperto. A musculatura do
vocês não vai dar certo. Eu não… não rostinho lindo — ela me disse, con- peito, das costas e dos ombros doíam
entendo. Por que fariam isso? Me sol- tendo minha amiga e piscando para por causa das mãos amarradas para
ta, vai. mim. trás. Pior do que isso era lembrar que
As duas se entreolharam. Lembrei do treinamento e evitei a pessoas da minha convivência acaba-
Juma-I veio até mim, agachou-se, raiva. Precisava impedi-las, pois nem riam com algo que levou séculos para
acariciou minha bochecha com os de- imaginava quanto tempo teriam que construir, tudo por interesses egoís-
dos frios e balançou a cabeça antes ficar na reeducação se fossem presas tas.
de dizer: por este crime. Inúmeras vezes, pensei em me ar-
— Só depois da votação, Ka. Não — Vou contatar meu mentor e de- rastar e derrubar a vela que deixaram
acesa, provocando um incêndio, o

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que talvez possibilitasse a fuga. No estrela diurna brilhava no céu. Em um me encontrar tão desesperada em vir
entanto, se não bastasse colocar a instante, via as pessoas se acomodan- do prédio de bambu até aqui, não
própria vida em risco, comprometeria do no Complexo um tanto desconfia- planejei nada direito. Não devia me
outras pessoas que viviam no pré- das, apontando para todos os nomes desesperar. O tempo é um estado
dio de bambu. Em dias de votação, vermelhos que apareciam no painel e ilusório, assim como este sonho que
era comum as crianças ficarem com para os conselheiros andando agita- chamamos de realidade, vovô costu-
os avós incapazes de se locomover. dos sobre o palco principal. Qual não mava dizer. Com isso em mente, me
Além de outros pequenos seres que foi a surpresa delas quando apareci concentrei em buscar a resposta que
v[03]

também se beneficiavam da moradia em frente à tribuna? Aos olhos do me foi exigida, tentando agir de acor-
ali. público, eu deveria me assemelhar a do com os mecanismos deste sonho.
Não, nada disso. uma projeção holográfica, pois pas- Olhei ao redor, evitando o desespe-
saram a apontar para mim comemo- ro e pensando em profundidade na
O que me restava senão meditar?
rando com ingenuidade. Olhei para resposta. Não contava com qualquer
Por mais irônico que fosse, o conse-
as mãos. Eu não permanecia ali fisica- prova externa, nenhuma materialida-
lho de Juma-I se revelava correto.
mente, embora estivesse ao mesmo de que confirmasse as acusações. Só
Mantive as costas mais eretas pos- tempo em diversos lugares, compar- restava examinar meu interior e puxar
sível, cerrei os olhos e examinei a tilhando dos pensamentos de tudo e deste poço profundo algo que aju-
questão a fundo. Olhei-a de diversos de todos. dasse.
ângulos, sem julgamento, buscando
Fitei o painel e lá estava, ao lado O que me trouxe até ali? Na pri-
apenas a sabedoria última, que é qua-
dos nomes, a mensagem: FAREMOS meira audiência, queria contatar vovô
lificada para produzir os insights. Em
A VOTAÇÃO COM OU SEM DISCUR- e pedir que revelasse o Primeiro Selo
dado momento da madrugada, abri
SOS DOS ANCIÕES. Secreto do caminho espiritual, como
os olhos e soube que a luz do dia co-
meçava a aparecer. A essa hora, elas No instante em que apareci, Juma- prometeu. No entanto, por que eu
deviam estar chegando no Complexo -I se dirigia à tribuna, entretanto es- queria tal coisa? Acreditava que isso
onde seria a nova consulta pública tacou a poucos metros de distância, beneficiaria todos os seres de nosso
abalada ao me ver. planeta? Não, buscava preencher um
sobre a questão da expansão espa-
vazio interior deixado pelas ausências
cial. Contudo, ao surgir um princípio — Uma anciã — uma pessoa gritou
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que acumulei na vida, pura ignorân-


de palpitação no peito, controlei a da plateia, apontando para mim.
cia. E agora, na segunda vez, o que
respiração, seguindo o treinamento e — Não sou… eh… — arrisquei a me trouxe aqui? Ansiava por salvar a
voltei à análise em profundidade. falar, embora a voz parecesse distan- vida da minha amiga, de Taio-IV e de
Aos poucos, os insights vieram. te. — Não sou uma... vocês sabem, Kaléo-VII? Talvez. Ou na verdade, por
Em associação ao pensamento, mas tenho algo a dizer. Me chamo puro apego à forma como as coisas
recordei uma conversa com vovô. Ele Kalina-III Boemyr e eu sei o porquê são feitas, temesse que Padma mu-
segurava um chá de leite de coco, ca- de os anciões não estarem acessíveis. dasse e eu perdesse a suposta esta-
nela e gengibre e me contava: Dali para frente, não era mais eu bilidade que tenho?
— Os grandes praticantes do pas- falando. Denunciei o esquema da fac- Com esta reflexão ocorrendo em
sado eram capazes de transferir as ção rebelde, explicando em detalhes instantes, enquanto Juma-I e a mul-
mentes por distâncias incomensurá- a ordem dos acontecimentos, inclusi- tidão esperavam pela resposta, algo
veis, mas este não deve ser o objeti- ve o porquê da tradição de consultar aconteceu. Uma forte dor na testa
vo de ninguém. Essas pequenas qua- os anciões ser interrompida. A reação precedeu a abertura do Primeiro Selo
lidades surgem por consequência da era de perplexidade, como se a po- Secreto do Caminho espiritual em
busca da liberação desta vida ilusória. pulação de Padma estivesse balança- mim. Passei a entender tudo.
da com a descoberta.
Era isso! Espantei as sombras do Ao tornar a falar, não precisava
passado e pedi desculpas a vovô, fos- Juma-I se posicionou ao lado e, mais de microfone, pois a voz soava
se lá onde ele estivesse. Experimen- utilizando o microfone à frente, falou nas mentes das pessoas.
tei concentrar toda a energia para me para a plateia de milhares de pesso-
— Não tenho nenhuma prova, a
transportar ao Complexo. Cheguei a as, porém se dirigindo a mim:
não ser um apelo à evolução da cons-
notar um peso na testa e no peito se — A maioria de vocês me conhe- ciência que nos permitirá ter uma de-
avolumando, no entanto não cheguei ce, não é? — ela perguntou à multi- mocracia como nenhuma outra. Para
a lugar nenhum desta forma. Não era dão e as pessoas gritaram de volta, isso, precisamos esquecer a dualida-
deste modo. Como seria então? Res- reafirmando a popularidade da DJ. de de sujeito e objeto. Falamos sem-
pirei uma, duas, três vezes. Em vez de — Pois eu digo que tudo que esta pre em pensar no bem coletivo do
concentrar tudo em mim, busquei me aparição falou parece coisa de doi- planeta, mas cada um vem até aqui e
anular, respirar na ausência do eu e, do, de gente que gosta de teorias da defende apenas seus interesses — vi-
assim devagar, começou a acontecer. conspiração! — Minha amiga afirmou rei para Juma-I e pude ver que ela se
A ilusão do engano da existência e se voltou para mim. — Que provas postava de joelhos, chorando, olhan-
se movendo por toda aquela distân- você tem do que nos acusou? do para mim com uma espécie de
cia foi sublime. Pássaros cantavam e a As provas. As malditas provas. Ao temor, enquanto o reflexo nos olhos

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dela revelavam que eu luzia e cintila- são em que vivemos, passei a enxer- estranho ver ela sem as tranças, de
va, flutuando sobre a plateia. — To- gar os grandes anciões do passado. cabeça raspada, tratada de forma co-
dos sabem que uma crise econômica Translúcidos como eu, eles pareciam mum e sem multidões de fãs ao redor
é consequência de uma crise política, me apoiar. dela, todavia ela parece ter se adap-
que advém de uma crise social, que é Sorri em resposta. tado — parei de falar, engolindo em
o resultado de uma crise moral. Ape- seco, então lembrei da segunda per-
A multidão emocionada se pronti-
gados ao nosso eu, criamos o pensa- gunta dele. — A votação confirmou
ficou a votar a questão da expansão
mento de nós e eles ou, pior, de eu a expansão espacial. Isso foi há seis
espacial, pois a jornada interior inicia-

v[03]
e o outro. anos. Ouvi boatos de que o progra-
da era muito mais pujante e provo-
Fiz uma pausa para que absorves- cadora do que qualquer uma que o ma de conduta ética, assim como as
sem o pensamento, então retomei: naves de exploração estão prontas.
espaço celeste proporcionaria.
Logo devem ser lançadas.
— Muitos de vocês, tal como eu, f
têm ao lado do nome quantas vezes Quase chegando ao mosteiro, ele
— E o que aconteceu com elas? —
renasceram seguidamente como se- o menino perguntou. se virou para mim. A expressão não
res humanos. Há vidas e vidas, esta- era mais tão infantil. Então, o menino
Caminhávamos por uma trilha es- transfigurado questionou:
mos reafirmando nossos hábitos do
treita que circundava as montanhas.
eu, porém precisamos olhar para o — O que você quer? Por que me
A neve aumentava na mesma pro-
interior da mente e lembrar que tudo levaria nesse passeio na neve se não
porção em que a temperatura caía.
que vivenciamos é ilusão, mesmo que fosse para perguntar alguma coisa?
Por isso, apressávamos o passo, para
ignorância, apego, aversão, raiva e Limpei a garganta, que parecia
logo chegarmos ao mosteiro encra-
orgulho nos levem a pensar que este pronta a se congestionar devido ao
vado na rocha há centenas de anos,
sonho é real. A sabedoria de Garôda- frio, e arranhei ao dizer o que queria:
mas o rapazinho me cobrava o fim da
-XIX e dos outros anciões é a mesma
história. — Quando vai me ensinar o Se-
que vocês compartilham ao manter a
Ao pensar na resposta para a per- gundo Selo Secreto?
mente livre dos obscurecimentos cau-
sados pelas emoções, pensamentos e gunta, enchi-me de compaixão e as O menino pôs a mão enluvada na
sensações. Se todos se dedicarem à lágrimas vieram aos olhos, de forma barriga e se curvou de tanto rir. Ao se

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prática, dissolvendo a noção de indi- que precisei respirar fundo antes de recompor, respondeu:
vidualidade, ou seja, desapegando responder. — Você já sabe, não sabe? Conti-
do eu, nosso nível de democracia — Juma-I, Taio-IV, Kaléo-VII e os nue praticando e perceberá.
será incomparável. Por isso, convido outros membros da facção que se No vigésimo renascimento segui-
vocês a meditar neste momento... entregaram após o discurso estão em do como humano, visando beneficiar
Ninguém deixou de fechar os um Centro de Reeducação. Vão pas- todos os seres, Garôda-XX saiu cor-
olhos, manter as costas eretas ou sar no mínimo dez anos por lá. rendo rumo ao calor do monastério,
fazer a tradicional posição de mãos. — Ah! — o menino teve um so- como qualquer criança faria.
Eu os conduzi por horas de prática, bressalto. — Então é para este lugar — Obrigado, vovô — digo baixi-
concedendo as iniciações necessárias que você vai todo mês? Ei... e a vota- nho, depois dele se afastar.
para o desenvolvimento veloz. ção? Qual o resultado?
Ao retornamos a mente para a ilu- — Sim, vou ver minha amiga. É

Vilto Reis é escritor, roteirista de quadrinhos e professor de escrita cria-


tiva, além de jogador de RPG e participante do Podcast 30:MIN. Autor
de ‘Nascida para o trono’, ‘Fim do império’ e ‘Um gato chamado Borges’,
livro finalista do Prêmio SESC 2015, tem contos em antologias e revistas.
Esteve à frente do Homo Literatus, da Editora Nocaute e da Revista Pulp
Fiction, e foi jurado do Prêmio Jabuti 2022. Atualmente, mantém um ca-
nal no Youtube sobre escrita, ministra cursos e oferece mentorias. Mais
em www.viltoreis.com.
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dIAcOnIs A
conto

táquion fc
DIACONISA
SOTRATI

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E
la desceu do carro de aplica- rando. casa. A mesma mulher tornou a falar.
tivo com a maleta colada ao Duas senhoras obesas e um ra- — Ela está lá dentro, no quarto
corpo. Inclinou-se pela jane-
pazote esquálido estavam diante da dos fundos.
la que estava inconsequentemente casa, olhando ansiosos para ambos — Faz muito tempo?
aberta do lado do passageiro, paraos lados da rua. Ignoraram totalmen-
pagar o motorista, um senhor de ida- — Em doze minutos completarão
te a cena do carro, seja por estarem
de indefinida, mas que ela apostaria 48 horas.
acostumados com coisas piores, seja
que aparentava bem mais anos que por estarem mais focados em suas Bem específico. Específico demais.
os que realmente tinha. Gente curtida
próprias desventuras. Ela se aproxi- Elas não pareciam aterrorizadas, ape-
na dura lida diária. Ela respeitava isso.
mou do pequeno grupo que pareceu nas incomodadas. Em geral estariam
— Você é daquelas mocinhas que se assustar com sua presença. se descabelando defronte a casa,
realizam fetiches, não é? terço e Bíblia nas mãos, rezando aos
— Foi daqui que pediram o apoio
berros junto aos vizinhos e entoando
Colocou a mão nodosa em seu espiritual?
antigos cânticos litúrgicos. Mas estão
pescoço e foi descendo com elas em As mulheres arregalaram os olhos ali, apenas inquietas e cansadas, ávi-
direção aos seus seios. O rosto se tristes e um tanto avermelhados e o das para que minha ação acabe e elas
contorceu numa expressão lasciva, rapaz manteve o olhar na rua. A que

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se livrem o mais rapidamente possível
com um sorriso de escarnio brotando parecia a mais velha disse, após uns daquele problema. Em geral teriam
nos lábios. segundos de silêncio incomodo: pedido ajuda muito antes.
— Como alguém com tão poucos — Achei que fossem mandar um — Vou precisar que tirem os espe-
dentes na boca sabe uma palavra di- padre.
lhos da casa. Todos eles. E desliguem
fícil dessas?
Católicos, ela deduziu. Não era as câmeras.
Antes que ele pudesse se recupe- exclusividade de cristãos subestimar
— Dona, olha onde a gente mora,
rar daquela resposta, sentiu o punho a capacidade de uma mulher para
olha nossas roupas. Acha mesmo que
dela afundar três ou quatro dentes lidar com possessões. Mas mulheres
a gente tem condição de ter uma câ-
para dentro de sua boca e soltar os católicas estavam no topo da lista.
mera?
créditos correspondentes àquela cor- Em geral, mães com uma penca de
rida em seu colo. — O meu querer está submetido
filhos para criar, ajudar a comunidade
a uma hierarquia rígida. Faz parte do
Saiu arrancando com o carro en- e se dedicar às boas ações da Igreja
ritual ligar um pulso elétrico que vai
quanto o sangue escorria dos lábios e ainda subestimavam a força de ou-
inutilizar quaisquer eletrônicos que
cortados. Cuspiu três dentes. Deve tras mulheres. Talvez até as próprias
vocês tenham lá dentro. Vocês deci-
ter engolido um, ela pensou. Mal dá forças.
dem.
para romantizar um trabalhador sem — Sou diaconisa. — Ela disse afas-
que ele me catapulte à realidade. As duas foram para a casa e arras-
tando a gola da blusa e revelando
taram o menino junto. Ela apoiou a
Certamente ele a iria denunciar a clérgima. — Infelizmente vivemos
maleta sobre a mureta de um metro e
no aplicativo e isso iria gerar um blo- dias de pouca fé entre os homens e
meio de altura que separava o quintal
queio de acesso ao serviço. Ia ter que Deus tem fortalecido quem se dispõe
da calçada. Abriu a valise repleta de
voltar pelo caro, perigoso e ineficien- a fazer sua obra.
símbolos sagrados das mais diferen-
te transporte público. As mulheres deram um sorriso tes religiões. Escolheu um crucifixo
Caminhou cerca de uns trezentos sem dentes e confirmaram as pala- barroco, um frasco com água benta,
metros no terreno inclinado e se de- vras dela com a cabeça. Suspiraram uma Bíblia de capa de couro preta e
parou com a casa que estava procu- e só então se voltaram para encarar a

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conto
táquion fc diaconisa
sOtRaTi

uma estola roxa, que colocou sobre age em mim é o Puro Equilíbrio e a — Et Filii...
os ombros. Aproximou-se do quadro Verdade. — Filii...
de energia elétrica da casa e colocou — Saia. Saia. SAIAAAAAAAAAA- — Et Spiritus Sanctis.
um dispositivo ali. Não poderia arris- AAA.
car ser filmada. Nem tanto por ela, — Sanctis...
Na barriga da menina surgiu um
mas pela alma atormentada que não — Amém.
queloide com as palavras: my oait,
merecia ser exposta por aquela situa- A menina balbuciou algo que nem
“me ajude” em frísio. A diaconisa sa-
ção que ela não causou. vagamente lembrava a palavra amém.
cou o frasco de água benta e borrifou
v[03]

Em cerca de dez minutos as duas uma boa quantidade sobre o corpo A diaconisa apertou o crucifixo com
mulheres e o menino saíram da da menina. Ele esperneou loucamen- mais força, retomou a água benta e
casa, carregando vários espelhos e te, buscando soltar-se das amarras de deixou escorrer uma boa porção nos
duas sacolinhas plásticas com obje- pano que a prendiam no leito, mas lábios da menina. Aguardou alguns
tos pequenos, mas aparentemente parecia impossibilitada de romper instantes e disse energicamente:
pesados. Ela acionou o dispositivo grilhões tão débeis. — Amém.
cortando o fornecimento de energia
— In nomine Patris et Filii et Spiri- — Amém — respondeu a menina e
elétrica. Olhou o medidor no pulso e
tus Sancti, per virtutem crucis, libera, as lágrimas rolaram pelo rosto magro
notou que não tinham outras fontes
Domine, animam hanc a malignis spi- e se fundindo no travesseiro com a
de energia. Respirou fundo, pegou a
ritibus, et expelle omne diabolicum baba roxa de outrora.
maleta, colocou o crucifixo no bolso
incursu. A diaconisa pegou uma toalha nas
da frente da calça e o frasco de água
benta no bolso da blusa. Manteve a As palavras pareceram açoitar mais costas de uma cadeira e limpou o
Bíblia em uma mão, a maleta na outra o corpo da menina que a aspersão. A rosto da menina. Desamarrou a mão
e adentrou a casa. diaconisa pegou então o crucifixo e o esquerda e viu vários cortes em forma
encostou na testa da possuída. de cruz invertida próximos ao pulso.
O cheiro de enxofre e ferrugem
era bastante forte. Não foi difícil en- — Exorcizo te, omnis spiritus O dedo mindinho parecia quebrado.
contrar onde a menina estava, não immunde, in nomine Domini nostri Nenhuma marca das amarras.
tanto pelo tamanho da casa, mas pe- Jesu Christi, ut recedas ab hoc loco et — Por que você fez isso, criança?
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los rastros de destruição que levavam a haec persona. Aufer a malo omnes Ela desatou a chorar. Aquilo não
até o corpo de uma menina de uns incursiones tuas. Da locum Christo, in foi uma possessão, foi uma invoca-
quinze anos amarrado em uma cama quo nihil invenisti de operibus tuis. ção. Não deveria acontecer, nem
de madeira em um quarto nos fundos A menina começou a revirar os uma, nem outra coisa. Esse mundo
da casa. olhos, balbuciar palavras desconexas estava mesmo à beira de seu colapso,
Quando ela entrou no quarto, a e soltar uma baba arroxeada pelos físico e espiritual.
menina virou o rosto para ela. Enca- cantos da boca. Lembrava muito um A diaconisa a fez sentar-se. A me-
rou a diaconisa com olhos injetados ataque epilético, excetuando que a nina não soltava a Bíblia. Mantinha os
de vermelho, uma secreção amarelo- vítima estava totalmente consciente. olhos no teto. E apertava ainda mais
-esverdeada juntando ao redor dos — Humiliare sub potenti manu a Bíblia.
olhos e colando os cílios às sobran- Dei, contremisce et effuge, invocato a — É meu presente pra você. Leia
celhas. Teve um forte acesso de tos- nobis sancto et terribili nomine Jesu, e viva. Ou apenas leia, já vai ser me-
se antes de gritar com uma voz que quem inferi tremunt. lhor do que perder tempo invocando
tentava emular um homem idoso e Mantendo o crucifixo na testa da demônios. Não há proveito nenhum
falhava miseravelmente. menina a diaconisa soltou-lhe a mão nisso, criança. Só me dá trabalho de
— O que quer aqui, filha do Ou- direita da amarra que a prendia à libertar essas almas atormentadas. E
tro? Esse lugar não te recebe. Essa cama, colocando nela a Bíblia. A me- ganho nenhum.
alma é minha, fiz o necessário para nina agarrou o sagrado livro com for- A menina abraçou a Bíblia e vol-
que assim fosse. ça e o levou até o peito. tou a chorar. A diaconisa saiu da casa,
— Vim libertar essa pobre alma. — Ut Ecclesiam tuam secura tibi passou pelo quintal, foi até o quadro
Você sabe que isso é antinatural. Está facias libertate servire, te rogamus, de luz e pegou seu dispositivo. En-
burlando as leis ancestrais e eu não audi nos. controu o pequeno grupo no portão.
posso permitir isso. A menina parecia quase desfale- — Deem carinho pra ela. E parem
— Que queres tu de mim? Acaso cida. As pernas, antes rijas, pareciam com essas ideias estúpidas de ganhar
buscar ser no mundo avilta o Outro? mais relaxadas. Os lábios, bastante dinheiro com vídeos de exorcismo.
Não há de querer confrontar-me, re- roxos e molhados, pareciam ensaiar Meu cartão. Digam que queimei os
les mortal. Sou mais do que vês e não uma prece, mas não achava as pala- equipamentos, façam algum dinheiro
há poder em ti, pobre farrapo huma- vras. com eles.
no. — Repete comigo: In nomine Pa- — Mas... mentir não é pecado? —
— Sou apenas o instrumento, po- tris... perguntou balbuciante o rapaz.
bre criança. Nada posso, mas o que — Patris... — Perto do que vocês fizeram?

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conto
diaconisa

táquion fc
sOtRaTi

Sério? pego tão desprevenido. Dá próxima cada vez mais entregue ao ápice da
Ele se encolheu envergonhado. vez pode não ser eu no plantão. criação. Contrariada ela levantou a
As mulheres sequer voltaram o olhar — Parece que Alguém lá em cima cabeça e encarou aquele vértice da
para Diaconisa quando ela saiu. gosta de mim. tríade Infernal.
— Tem algum metrô daqui pro — Ele ama todas as suas criaturas. — Eu não sou um diabrete domés-
centro? tico que botou os chifrinhos ontem
— Eu sei..., mas está cada vez mais
à tarde sob esse sol opaco — Disse
— Três quadras pra baixo, vira à difícil. Não sei o quanto mais eu vou
ele entre chateado e entediado. —

v[03]
direita e mais duas. conseguir. Parece que a humanidade
Sou um dos pilares fundadores dos
A diaconisa foi sem outras pala- não precisa mais de tentações, preci- Sete Infernos. Aquela família tinha
vras. Desceu a rua, virou à direita, sa de freios. devoção ali, fé verdadeira e vibrante.
localizou a estação do metrô. Desceu — Nunca nos prometeram facilida- Eram adoradores fiéis. E era só uma
as escadas encardidas, um lodo de des. armadilha. Algum soldado menor
excrementos, lixo, animais mortos e — Mas parece que nosso papel teria sido facilmente adestrado. Só
água pútrida. no Plano da Salvação já não está te acionaram porque perderam toda
Como desconfiava, o local estava mais sendo tão útil. Tenho saudades possibilidade de controle. Aquela po-
deserto. Contou três bancos a partir dos embates com padres exorcistas bre menina tinha uma alma mais árida
da entrada, após a catraca, e sentou- e dos tele evangelistas. Hoje o mal que as vastas extensões de Al Nafud,
-se nele. Só então abriu a maleta e está além de nossa compreensão e o deserto infernal.
guardou cuidadosamente seus obje- manipulação. Isso que a humanidade — A assunção dos escolhidos já
tos sacros. foi criada à imagem d’Ele. Imagino se foi realizada pelo Todo Poderoso.
Uma lufada de ar trouxe um per- fossem criados à minha imagem. Falta pouco para que a Criação seja
fume que lembrava pêssegos. Ela Ashtaroth soltou um grunhido que resgatada e descanse em seu regaço
adorava pêssegos. Era um cheiro tão a Diaconisa interpretou como uma — Tentou ela, com voz tranquilizante,
marcante que podia sentir o gosto da risada. Ele tinha razão. O mal estava embora o toque de sarcasmo fosse
fruta na boca. E daí para devanear de tal forma crescendo no coração difícil de esconder. — Até lá, cabe a
com bons momentos foi um piscar de da humanidade que cada vez mais os nós o papel insalubre da conversão

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olhos que durou uma vida. demônios precisavam ser salvos das e tentação, cada qual segundo os
Quando focou o olhar ele estava invocações. desígnios d’Ele. Mas não deve de-
ao seu lado, no banco. Chapéu, so- A Diaconisa estava encarando as morar para o Filho chegar. Todas as
bretudo e charuto. pontas dos sapatos com uma melan- possibilidades já foram sopesadas e
o Tempo virá.
— Você precisa de outros parâme- colia estranha. Sentia a dura verdade
tros, Ashtaroth. nas palavras daquele Grão-Duque — Que venha — Suspirou o demô-
dos infernos. Estava cada dia mais nio.
— Eu gosto dos clássicos.
exausta e sentindo-se abandonada. — Se cuida, Coisa Ruim.
— Mignola manda lembranças. Leftovers... restos, deixados para trás.
— Obrigado.
— Você me diverte. Uma pequena pá de metal barato
— E você tem de parar de ser limpando as merdas de um mundo

Sotrati é leitor por vocação e de vez enquando escreve pra se divertir.


Editor e participante dos podcasts de Literatura Papo na Estante e Clu-
be da Oficina. Formado em letras, Português e Inglês, é professor não
praticante.
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_P,e,D,r,O;c,O,p,P,o,L,a_
a DaNçA dA tRaNsFiGuRaÇãO
conto

táquion fc
A DANÇA DA TRANSFIGURAÇÃO
Pedro Coppola
PRÊMIO TÁQUION FC
Segundo colocado
edição janeiro de 2024

v[03]
B
râmane Gael aguardava na cima, assim como balaclava e óculos complemente a minha.
sala de espera, enquanto térmicos. Depois de sentir a nevasca — Assim será feito, Brâmane —
o Navegador imprimia seu em seu corpo por tempo adequado, Navegador respondeu.
novo corpo. Gael se deu por satisfeito e dissolveu
Gael inspirou lentamente.
A sala branca virtual servia para a simulação ao seu redor.
seu Átma ir se acostumando com as — Navegador, estou pronto.
novas modificações corporais. Uma Iteração 50.37.10.20.02.
— Muito bem, Brâmane — Nave-
pele grossa para resistir à tempe- gador respondeu como uma voz in- Quando soltou o ar, ouviu a ne-
ratura baixa e pressão atmosférica corpórea vinda dos céus. vasca batendo no metal do casulo lá
alta, ossos e tendões reforçados para fora. Apertou o interruptor e a porta
Gael cruzou as mãos atrás das cos-
aguentar a gravidade dez por cento se abriu, deixando-o escorregar pelas
tas e inspirou lentamente. Soltou o ar
maior do que a padrão. Seu corpo foi paredes acolchoadas e mergulhar na
e abriu os olhos, mas ficou surpreso
complementando por uma bactéria nevasca da realidade. Mesmo com
quando percebeu que ainda estava
que convertia metano em oxigênio, toda proteção que selecionou ainda
na sala de espera.
enquanto suas habilidades anaeróbi- sentia os ventos gélidos tentando en-
cas foram potencializadas para com- — Navegador? Qual o problema? trar por baixo das roupas.

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pensar. Ao seu sangue foi adicionado — Desculpe, Brâmane. Essa é uma O neuro-implante de Gael detec-
uma proteína anticongelante, para re- nova iteração da sala de espera a par- tou um sinal da tripulação ali perto
sistir às temperaturas de até duzentos tir de um backup de seu Átma. Devo e logo avistou o casulo cilíndrico do
e vinte graus negativos. informá-lo que seu corpo pereceu. Magote a alguns metros de distân-
O mudra de Gael fez a sala se dis- — E ele não foi encontrado? Quais cia, o alumínio refletindo a luz da anã
solver de sua brancura perfeita, sen- minhas últimas transmissões? vermelha que serve de sol para o pla-
do preenchida por um cenário ainda — Nenhuma — Navegador res- neta. No entanto, não encontrou a
branco, porém mais caótico. Neve se pondeu. — O planeta apresenta uma mula com todo o equipamento e seu
espalhou pelo chão e forte nevasca interferência não-identificada, por- rastreador a indicou muito abaixo de
foi tomando o horizonte, cada vez tanto o senhor precisará recuperar onde os casulos caíram. A maneira
mais próxima. Uma representação seu corpo fisicamente. Recebi sinais como o casulo de Magote ficou par-
virtual aproximada do planeta de sua interruptos de seu rastreio, portanto cialmente enterrado também chamou
missão diplomática, uma superter- pude traçar um perímetro de onde a atenção de Gael, que tirou seu Cin-
ra na constelação de Escorpião que ele deve estar. tamani do bolso e o usou para traçar
jamais imaginaram que fosse coloni- um mapa topográfico da região.
— E quanto à minha equipe de
zada. Porém a vida sempre encontra O Cintamani confirmou sua des-
apoio?
uma maneira, assim como faz o de- confiança: Uma fenda coberta pela
sespero, e um sinal fraco foi detec- — Ainda detecto o especialista
neve se estendia entre ele e o casu-
tado no planeta. A varredura inicial de segurança pela colônia, mas seus lo, onde a mula com equipamento
confirmou a presença de uma colônia movimentos são erráticos. A doutora afundou. Quando a porta do casulo
pequena e que deve estar passando foi detectada pela última vez junto ao se abriu e Magote escorregou para o
por todo tipo de complicações. seu corpo.
chão, o coração de Gael pulou.
Selecionou as vestes da missão — Mande um Magote comigo.
— Cuidado! — tentou transmitir
com os mudras adequados. Traje Adicione como personalidades o es- para Magote, mas viu que a transmis-
biológico branco com placas ter- pecialista, a investigadora e alguma são não completou. A figura coberta
mais de calor, casaco de inverno por personalidade de socialização que

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conto
táquion fc a dança da transfiguração
pEdRo CoPpOlA

por enorme casaco de inverno levan- da personalidade do Especialista. das de dentes afiados e uma língua
tou a mão e fez sinal de saudação. — Que bacana — ele disse. — Por- bifurcada. O cheiro podre que bateu
Quando Magote deu um passo que esse corpo humanizado já não em suas narinas era característico de
para frente, Gael rapidamente levan- estava divertido suficiente. Como carnívoros.
tou as mãos para cima e as cruzou, vocês conseguem andar por aí desse Dois disparos no lombo do animal
em um sinal arquetípico de cuidado. jeito? o fizeram fechar a boca e tombar de
Magote compreendeu, ou ao menos O Comediante. Uma personalida- lado. Ele se levantou rápido demais
alguma de suas personalidades o fez, de de interação social a qual Gael para tanto peso e seus quatro olhos
v[03]

e ele parou. O Brâmane traçou a de- nunca se afeiçoou muito. Talvez por vermelhos se fixaram em Magote e
limitação da fenda com as mãos, de- isso o Navegador o escolheu: a per- seu rifle. O animal saltou no sintetó-
pois sinalizou para que o sintetóide sonalidade destoante da dele pode- ide, mas três novos disparos o joga-
desse a volta. Magote levantou a mão ria se aproximar melhor de figuras ram para o chão, sem se mexer.
em sinal de positivo. que o Brâmane não conseguiria. Gael e Magote observaram o ani-
O casulo enfincado na neve ar- O mapa topográfico da região mal morto. Se assemelhava a uma
queou e a neve ao redor foi afundan- produzido pelo Cintamani era limi- mistura entre urso e toupeira, mas
do. Ao perceber que a neve aos seus tado, porém permitia identificar o seu tamanho e agressividade defini-
pés estava prestes a afundar também, perímetro da possível localização do tivamente o deixavam mais perto da
a postura de Magote mudou. Se en- corpo desaparecido de Gael, além categoria urso.
curvou mais, dobrou os joelhos. Deu de mostrar a distância relativa que — Parado.
impulso e saltou a fenda como um estavam da colônia do planeta. Gael Uma arma foi encostada na nuca
atleta. Teria conseguido, se o corpo mostrou seu Cintamani para Magote, de Magote. O sintetóide se virou
que estava usando não houvesse sido já que não conseguia transmitir. rapidamente e desarmou a pessoa,
limitado pela tecnologia da colônia.
— Copie o mapa — Gael disse. — desmontou a arma e a jogou pelo
Magote caiu a poucos metros de
A prioridade é encontrar meu corpo chão. Gael nunca teve tanta certeza
Gael, onde a neve ainda afundava.
e a doutora. de sua decisão de pedir pelo Espe-
O Brâmane rapidamente pegou cialista nessa missão e agradeceu ao
Magote puxou um cabo de trás de
a mão do sintetóide e o puxou para
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sua orelha, o estendeu até o Cintama- Instrumento-Bramã por isso.


trás. Bateu as costas em uma pedra e
ni e plugou. Quando se virou para conversar
a envolveu com seu braço livre, ven-
— Que coisa nojenta — Magote com o atacante, ele levantou as mãos
do a neve afundando ao seu lado.
reclamou. — Vocês humanos deve- devagar, abaixou seu gorro e retirou a
Magote se agarrou em outra rocha e
riam se envergonhar. balaclava. Os cabelos desgrenhados
juntos os dois subiram.
da Dra. Singh foram prontamente re-
Mesmo perto do sintetóide, Gael Pensou em corrigir o Comedian-
conhecidos. O Brâmane levantou sua
não conseguiu completar uma trans- te, explicar que os humanos não têm
balaclava e sorriu.
missão neural. Tentou falar, mas a ne- naturalmente cabos conectores ou
de alimentação, mas aquela perso- — Gael! — a doutora disse, e abra-
vasca não permitiu. Os dois continu-
nalidade havia desenvolvido um asco çou o Brâmane. — E você deve ser
aram a escalar o que deveria ser uma
montanha, Magote com certeza in- particular por corpos humanos e Gael Magote — ela puxou o sintetóide
corporando o Especialista pela quali- imaginou que de nada adiantaria adi- para o meio do abraço.
dade de suas habilidades, até mesmo cionar limitações. — Tire essas patas nojentas de
ajudando Gael a escalar. Precisaram Depois que o Brâmane se recupe- mim — Magote disse.
vencer uma subida mais íngreme per- rou, voltaram a descer a montanha. — Ah, sim — a doutora soltou os
to do topo, mas com um pouco mais Abaixo, a nevasca já estava terminan- dois. — Você deve ser o Comediante.
de esforço chegaram ao cume, onde do, seus ventos menos ruidosos. — Fico contente de encontrá-la,
a nevasca não os castigava mais. Gael — Por aqui — Magote disse com Dra. Singh. Porém devo perguntar: o
engatinhou por um tempo, depois determinação. — Esse é um caminho que aconteceu aqui?
decidiu descansar por um instante. mais seguro. — Venham comigo, tem uma ca-
Magote se colocou de pé ao lado Gael seguiu o sintetóide, e foram verna por perto. Só tenho que avisar
do Brâmane, abaixou o gorro do ca- obrigados a caminhar por quase dois que... eu não estava sozinha lá.
saco e tirou a balaclava, revelando quilômetros. Próximos do perímetro
Já imaginando o que ela quis di-
um rosto andrógino. do corpo, Magote levantou o pulso zer, Gael seguiu a Dra. Singh, Magote
— Por que cortou nossa transmis- fechado. Gael se abaixou, procuran- os seguindo logo atrás. Entraram em
são? — A atitude agressiva era clara- do ao redor por aquilo que o Espe- uma caverna parcialmente escondida
mente do Especialista. cialista viu. pela neve e foram mergulhando em
— Há interferência anômala na Os pelos brancos do animal o ca- seu interior até onde estava uma figu-
área — Gael respondeu. — Estamos muflavam na neve e o Brâmane só viu ra caída no chão. Os cabelos e barba
restritos a comunicação analógica. a bocarra enorme quando ela se abriu grisalhos eram familiares, mesmo que
Magote deu uma risada destoante em sua direção, mostrando três arca- sua pele fosse grossa demais. Um

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conto
a dança da transfiguração

táquion fc
pEdRo CoPpOlA

buraco enorme onde seu coração de- e ficou em silêncio enquanto ruma- Provedor poderá salvá-lo.
veria estar, de certo causado por um vam para a colônia. Gael conhecia o — Seu amigo está em boas mãos
disparo de plasma à queima-roupa. especialista há tempo suficiente para com a doutora, ela sabe o que está
Gael suspirou. saber que ele não acreditou em sua fazendo.
— Sou eu. desculpa, apenas concedeu por res-
Enquanto Gael tranquilizava a mo-
peitar o Brâmane.
— Eles o mataram — Dra. Singh torista, Dra. Singh entrou pela janela
explicou. — À sangue-frio. Depois de um bom tempo de mar- do veículo e sentou-se no banco do
cha, avistaram um objeto no meio da motorista, usando a alça de seguran-

v[03]
— O que causou isso? Era uma
paisagem branca. Conforme se apro- ça para se manter equilibrada. Ela
missão de paz, oferecendo tecnolo-
ximaram, viram que era um veículo de colocou a mão no ombro da pessoa
gia.
exploração com uma de suas esteiras machucada.
— As respostas para suas pergun- afundadas na neve, o lado do moto-
tas só podem ser respondidas por — Acalme-se — ela disse na língua
rista levantado no ar. Um urso-toupei-
você mesmo — Dra. Singh disse. desconhecida, seu próprio assistente
ra tentava entrar pela janela e alcan-
— Eu estava ajudando Nguyen, que neural já trabalhando na tradução. —
çar as pessoas lá dentro.
havia torcido o pé. Nguyen me deu Eu vou fazer um curativo rápido para
O especialista Nguyen se desta- podermos levá-lo daqui.
cobertura e eu fugi com você. Tentei
cou do grupo e começou a atirar con-
salvá-lo, mas como pode ver, estáva- A doutora abriu sua maleta com
tra o animal, que se virou contra ele
mos demais limitados pela tecnologia cuidado e pegou anestesia, gaze de
e saltou. Um disparo do rifle acertou
local e não pude fazer nada. coagulação rápida e alga de desbri-
bem no interior da boca do animal e
— Muito bem — Gael disse, pu- damento. O Brâmane se manteve ao
ele caiu, fumegando.
xando um cabo receptor de trás de lado da janela para o caso da doutora
Gael e Dra. Singh se aproximaram precisar de sua ajuda, mas focou-se
sua orelha. — É hora de entender mi-
do veículo. na motorista.
nha própria morte.
— Alguém ferido? — o Brâmane — Quem são vocês? — a motorista
— Isso não vai ser nada agradável
perguntou. perguntou.
— Magote disse.
Um grito de dentro do veículo. — Eu sou Brâmane Gael, a Dra.

MISSãO jAn 2024


— Com certeza que não — Gael
Gael e a Dra. Singh escalaram o lado Singh é quem está cuidando de seu
concordou. Ele inspirou, então plu-
do motorista, onde o urso-toupeira amigo e aquele ali é Nguyen. — Gael
gou o cabo receptor na têmpora de
estava atacando. Lá dentro, duas fi- apontou para o especialista, que se
seu corpo assassinado.
guras de casaco grosso e balaclava. manteve atento ao perímetro do ve-
A pessoa no banco de passageiro es- ículo, rifle em mãos. — Viemos de um
Iteração 50.37.10.20.01. tava com a perna quebrada e ensan- lugar chamado Estação Samsara.
Quando soltou o ar, viu que estava guentada, uma fratura exposta. — Meu nome é Flora — a motoris-
deitado no casulo. Abriu a porta de A motorista tentou falar com Gael, ta respondeu.
metal e sentiu o ar gelado recepcio- desesperada, palavras desconheci-
O paciente da Dra. Singh gritou
nar seu corpo. Gael se levantou das das. Seu assistente neural tentou tra-
novamente. Gael sentiu o mal cheiro
paredes acolchoadas e viu o resto duzir.
da alga saindo de dentro do veículo.
de seu grupo emergindo de seus — É uma evolução do entrelaça-
casulos: Dra. Singh e o especialista — O Miguel vai ficar bem? — Flora
mento de diversas línguas da Terra
Nguyen. Os casulos na cor alumínio perguntou, acalentando seus braços.
Lamentada — o assistente neural ex-
se destacavam na paisagem branca plicou. — Necessito de mais algumas Gael sorriu. Os músculos de sua
de céus púrpuras. Uma nevasca se palavras para traduzir. face doíam de frio.
formava ao horizonte, na direção con- — A Dra. Singh é a melhor médica
— Especialista — Gael chamou. —
trária da colônia. que conheço, Flora. Vai deixar Miguel
Preciso de sua ajuda.
— Gael — Dra. Singh o chamou. bom o suficiente para levarmos ele a
Gael sinalizou para a motorista se
— Detectei uma forte interferência na esse Provedor que você mencionou.
acalmar e, depois que o especialista
atmosfera. Não consigo transmitir da- Tiros. Nguyen acertou um amonto-
Nguyen escalou o veículo, os dois pu-
dos de volta para o Vimana.
deram puxar a pessoa e descê-la. Ela ado branco saindo do meio da neve.
— Vamos manter uma transmissão continuou falando na língua estranha. Ele se virou e fez um sinal de positivo
restrita — Gael disse. — Apenas loca- para Gael.
— Tradução finalizada — o assis-
lização e sinais vitais. Gael se aproximou da janela do
tente neural informou.
— Sinais vitais? — Nguyen per- veículo.
Gael se virou para a motorista.
guntou. — Está esperando confronto, — Dra. Singh, estamos ficando
senhor? — Fique tranquila, nós vamos tra-
sem tempo — ele disse, depois se
tá-lo de imediato.
— É um planeta de vida complica- virou para Flora. — O que são esses
da, acidentes podem ocorrer. — Precisamos levar ele para a co- animais?
lônia — a motorista disse. — Só o
Nguyen concordou com a cabeça — Nós os chamamos apenas de

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conto
táquion fc a dança da transfiguração
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bestas — Flora respondeu. — Eles se va que não fosse. necessário para o que eles chamam
escondem por túneis pela neve e ata- — O que está acontecendo aqui? de período de provação, mas sufi-
cam ao menor sinal de movimento. — aquele que parecia o líder pergun- cientemente avançados para o que
Mas nunca atacam grupos grandes. tou. Um homem carrancudo, com viu daquela colônia.
— Gael! — Dra. Singh chamou de uma cicatriz na face. — Gostaria de demonstrá-los para
dentro do veículo. — Vou precisar de Flora se colocou na frente dos de- sua liderança, se vocês tiverem uma.
uma ajuda aqui. mais. — Irmã Judite já está a caminho —
Com a ajuda da Dra. Singh, Gael Davi disse. — Apenas aguardem ela
v[03]

— Fomos atacados por uma bes-


e Flora puxaram Miguel para fora do ta, Davi. Miguel se machucou — ela chegar.
veículo. Além de reparar o ferimen- apontou para o drone-mula, depois O Brâmane olhou para seus com-
to grave da melhor forma possível para a Dra. Singh — e ela prestou so- panheiros. Nguyen voltou um olhar
e dentro da tecnologia limitava que corros. desconfiado, típico de quando acre-
trouxeram, a doutora ainda passou dita que a situação está muito fora de
Os três colonos armados apon-
uma fita isolante no joelho rasgado controle para seu gosto. A Dra. Singh
taram para a doutora, que deu um
da calça, para o frio não piorar o fe- parecia assustada. Anos de experiên-
passo para trás. Nguyen aproveitou
rimento. cia em campo, mas quando estava
a distração e foi descendo os braços
Eles deitaram Miguel em cima do lentamente. fora de seu elemento agia tão jovem
drone-mula, depois seguiram para a quanto parecia.
— Quem enviou vocês? — Davi
colônia. A porta de metal se abriu de novo.
gritou.
Uma nevasca leve se levantou e De um corredor térmico surgiu uma
— Fomos enviados pela estação
não permitiu o Brâmane de fazer to- mulher de meia-idade, vestida de
Samsara em uma missão de paz. Meu
das as perguntas que queria pelo ca- freira.
trabalho é encontrar colônias desgar-
minho. Porém logo falaria com o tal — Esses devem ser nossos convi-
radas e ajudá-las a prosperar.
Provedor. dados — ela disse, e colocou a mão
— Davi! — Flora gritou. — Miguel
A colônia era composta de casas no rifle de Davi. — Permita-me, Davi.
precisa de ajuda.
elipsoides interligadas por corredores Eu assumo daqui.
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térmicos. Em seu centro se destacava — Mateus — Davi indicou para o


Davi fez um sinal de positivo com
uma cúpula geodésica enorme, com homem a seu lado. — Vai com a Flora a cabeça, e abaixou o rifle. O outro
um biodomo ao lado. Estimou que a e leva o Miguel para o hospital. colono fez o mesmo. A freira fez um
colônia devia ter em torno de umas Aquele que deve ser Miguel dei- leve gracejo para cumprimentar Gael,
cinquenta pessoas, dependendo das xou o rifle à tiracolo e foi ajudar Flora, que a imitou em resposta.
dificuldades pelas quais passaram. que já se colocou ao lado do drone-
— Sejam bem-vindos à colônia de
Conforme atravessaram a fazenda -mula. Zoara — ela disse, com um sorriso.
de placas solares, Gael considerou — Eles nos ajudaram, Davi — Flora — Sou conhecida como Irmã Judi-
que as nevascas constantes deviam disse, já levantando Miguel. te. Acompanhem-me, por gentileza.
dificultar em muito a colheita de ener- — Eles podem ter sido enviados Podem deixar seus casacos aqui na
gia solar. Viu uma torre de fissão ao pelos ludistas — Davi disse, ainda frente.
lado da cúpula geodésica que prova- apontando a arma. — Mande a Irmã
— Muito prazer, Irmã Judite. Eu
velmente servia para emergências, já Judite até aqui.
sou o Brâmane Gael, da estação Sam-
que uma única torre é muito pouco
Flora manteve um olhar pesaroso sara.
para uma colônia prosperar.
no grupo de Gael, mas compreen- Depois dos três retirarem seus ca-
A entrada da colônia consistia em sivamente estava focada em ajudar
sacos, placas termais e balaclavas,
uma escotilha e um portão isolante Miguel. Ela e o outro colono o leva-
Irmã Judite os conduziu pelos corre-
térmico em frente à uma rampa de ram por uma porta que abriu automa-
dores termais. A energia oscilou.
metal, de onde deveriam transitar os ticamente quando se aproximaram,
veículos. Subiram uma escada para depois se fechou depois que a pas- — Perdoem-nos — irmã Judite
a escotilha, que imediatamente se saram. disse. — É um problema durante ne-
abriu. Flora os conduziu para dentro, vascas.
O Brâmane respirou fundo.
onde o calor agraciou seus corpos, A porta seguinte os levou até a cú-
e a escotilha se fechou. Três colonos — Posso garantir que não sou lu- pula geodésica no centro da colônia.
de trajes biológicos apontaram rifles dista. Inclusive vim aqui para partilhar O interior da cúpula era decorado
para Gael e os demais. tecnologia. como uma catedral católica, o primei-
Gael levantou as mãos e sorriu. Gael fez um sinal para a mula, que ro andar até mesmo com bancos e um
Arriscou um olhar para o especialista, se aproximou a passos lentos. Ele púlpito na frente. Não havia nenhum
que se manteve com as mãos levan- abriu o drone e mostrou os diversos símbolo religioso em lugar algum.
tadas também. Era rápido o suficien- aparelhos tecnológicos em seu inte- Irmã Judite subiu até o púlpito.
te para sacar sua pistola ainda assim, rior. Todos datados e bem aquém do Dois padres desceram escadas para
caso necessário. O que Gael espera- que Samsara pode providenciar, algo se aproximar do grupo, rostos des-

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a dança da transfiguração

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confiados. Eles permaneceram em interferência anômala que impede ções passadas.


silêncio. que implantes neurais funcionem de — Devo inferir que a interferência
— E quem é a Estação Samsara? forma adequada, um problema que na região foi criada para dificultar o
— a freira perguntou. pode ser facilmente resolvido pelo rastreio deles, porém me pergunto
amplificador de sinal que eu trouxe. E como um grupo considerado ludista
— Somos uma sociedade inde-
isso é apenas o que pude avaliar em pode ser desencorajado por falhas de
pendente de alto nível tecnológi-
poucas horas. ferramentas tecnológicas.
co — Gael respondeu. — Buscamos
reintegrar a humanidade e levar nos- A freira desceu do púlpito e se — Ignorantes nunca são consis-

v[03]
sa filosofia de ajuda comunal. aproximou de Gael, seu rosto qua- tentes — Irmã Judite disse. — Eles
se colado ao dele. O Brâmane viu se opunham apenas a alguns tipos de
— É muito interessante, mas não
Nguyen se mexer e discretamente tecnologia.
temos interesse em ser reintegrados
sinalizou para ele não interferir.
a outras sociedades. Nguyen olhou para Gael, torcendo
— Porém muito do que você clas- a boca. Dra. Singh respirava rapida-
Dra. Singh interrompeu.
sifica como adversidade pode ser in- mente.
— Desculpe a franqueza, irmã Ju- tencional.
dite. Mas não acredito que sua colô- — Significando...? — a doutora
— A interferência — Nguyen disse. perguntou.
nia possa se dar ao luxo de se isolar
— É projetada para eles não serem
com todas as dificuldades que estão A freira lhes voltou um ar de supe-
detectados.
passando por aqui. rioridade, e ficou em silêncio.
Gael sorriu para irmã Judite.
— E que dificuldades são essas? — — Foi-me mencionado um Pro-
a irmã perguntou, cerrando os olhos. — Posso perguntar, irmã, qual a vedor, Irmã — Gael disse. — Não é
origem dessa colônia? você, eu imagino.
Gael deu um olhar reprovador para
a Dra. Singh e ela ficou em silêncio. Ela sorriu de volta e se afastou, an-
— Venham comigo — Irmã Judite
dando de um lado para o outro. convidou e foi subindo as escadas no
— Embora a Dra. Singh peque
no quesito suavidade — Gael disse — Fazíamos parte de uma colôniacentro da catedral. Dra. Singh a se-
—, devo dizer que notamos algumas muito guiu reticente e Gael foi fazer o mes-
maior, que abrange diversos

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adversidades das quais podemos aju- planetas. Uma colônia religiosa. mo, mas notou que Nguyen esperou
dá-los. — Eram ludistas? — Gael pergun- os padres irem na frente, enquanto
eles claramente o esperavam para se-
— Novamente, eu pergunto que tou.
guir por trás.
adversidades são essas. — Não a princípio, porém foram se
tornando mais e mais. E nosso grupo Gael colocou a mão no ombro do
Gael sorriu, encabulado.
se desentendeu com eles, portanto especialista.
— Para começar a fauna local pa-
nos escondemos nesse planeta que — Vamos — ele sussurrou. — Não
rece ser letal. Vocês também têm um
foi considerado inóspito em expedi- é o momento.
grave problema de energia. E há uma ➾

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No andar de cima, unidades de — É um maldito Asura! — Nguyen MENTIROSA — o Asura apontou


armazenamento de dados se inter- gritou, ainda tentando se levantar. para Gael e os demais. — SEMEAN-
ligavam por toda parte, assim como — Não só isso — Dra. Singh disse. DO CONTENDAS ENTRE IRMÃOS.
transmissores, painéis holográficos e — Está transmitindo código corrom- — Nós podemos ajudar — Gael
caixas de som. A maior parte da ener- pido para nossos implantes. disse, ainda desnorteado. — Há um
gia da torre de fissão provavelmente código que limpa Asuras dessa cor-
— Não temos dificuldades, pois o
alimentava aquelas máquinas. rupção. Eu só preciso voltar para meu
Provedor satisfaz nossas necessida-
Seu assistente neural apitou. des — a freira continuou. — Ele distri- Vimana.
v[03]

— Alerta. Seu neuro-implante está bui energia para a colônia quando ne- Os dois padres puxaram punhais
sendo hackeado. cessário, nos informa onde encontrar com vibro-lâminas e foram para cima
Um zumbido o derrubou, e fez o alimento e quando as nevascas vão de Gael e dos demais. Nguyen sal-
mesmo com a doutora e o especia- acontecer. Ele indica onde as bestas tou, mesmo desnorteado, puxou
lista. Um sinal se conectou ao neu- se esgueiram e nos protege de nos- sua pistola e atirou nos dois padres.
ro-implante de Gael e transmitiu um sos inimigos. E até mesmo atrai estra- O primeiro foi arremessado para o
pacote de dados. Quando terminou, nhos com novas tecnologias. chão, mesmo que um escudo cinéti-
código e caracteres se manifestaram O assistente neural de Gael bata- co inferior ao kavacha de Gael tenha
no centro da sala, tentando formar lhava com o Asura tentando hackeá- cintilado e o protegido da maior par-
uma figura humana, sem consistên- -lo, enquanto o zumbido desorienta- te da energia cinética. O segundo ele
cia. Tornou-se uma figura humanoide va a ele e seus companheiros. Tudo errou, sua mira provavelmente revol-
enorme feita de código. o que o Brâmane tinha eram suas vida pela Asura.
— SOU TEU DEUS E TEU ÚNICO palavras. — Vão — Nguyen gritou. — Eu
DEUS — a figura disse, sua voz rever- — Irmã Judite, me escute. Não vou segurar eles.
berando pela catedral. nos opomos a seres virtuais, muitos Dra. Singh puxou Gael e juntos
Irmã Judite sorriu satisfeita. de nossa comunidade o são. Mas eles correram para o andar abaixo.
esse Asura é perigoso, corrompido Outros padres apareceram das esca-
— O problema para os ludistas foi
por um código malicioso que espalha das laterais, provavelmente já alerta-
que nós encontramos um Provedor, e
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paranoia entre as pessoas. dos pelo Asura. Dra. Singh e Gael pu-
eles queriam exterminá-lo.
— OLHOS ALTIVOS E LÍNGUA xaram suas pistolas, disparando para

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afastar outros colonos que se aproxi- — Temos algum tempo enquanto para purgar o Asura da colônia. O
mavam. Os colonos atiraram em sua meu assistente neural batalha contra único problema é que ele não sabe
direção, mas os kavachas de Gael e o Asura, só que preciso voltar para o como o Asura está causando a inter-
da Dra. Singh desviaram a munição Vimana para ser purgado. Se morrer- ferência.
cinética. mos todos aqui, o Vimana vai mandar — AQUELE QUE PEDE, RECEBE...
Os dois fugiram pelos corredores outra iteração minha e posso ser in- A voz reverberou tão forte em
termais, desviando dos colonos que fectado de novo. sua mente que desnorteou Gael. Viu
tentavam cercá-los. Até que Davi, o — Desculpe, chefe — Magote dis- Provedor se formando em sua visão

v[03]
chefe de segurança, fechou a passa- se, outra personalidade. — Só que e saiu correndo da caverna. O Asura
gem deles. Carregava uma carabina não faz sentido o que cê tá dizendo. estava rastreando o código corrompi-
de energia dirigida oriunda de épo- Não é melhor eu voltar pro Vimana e do dele, provavelmente transmitindo
cas corporativas, já girando a mani- purgar o Asura? Cê já foi infectado, do corpo da Dra. Singh.
vela. afinal.
— O QUE BUSCA, ENCONTRA...
O tiro atravessou o peito de Gael. — Nada garante que você não foi — escutou, para trás de si.
Vento gélido foi tomando o corredor, infectado também — Gael disse, ven-
Conforme seguiu pela caverna,
segundos antes de tudo apagar. Dra. do os caracteres corrompidos.
Gael viu uma silhueta branca no ca-
Singh tentou ajudá-lo, mas era tarde — O sistema Magote automatica- minho, enorme como um urso. Sem
demais. Os colonos foram cercando- mente isola qualquer personalidade muita opção, foi obrigado a entrar
-a. infectada e cê sabe disso — Mago- por outra passagem, que descia ao
O corpo de Brâmane Gael pere- te explicou. — Acho que a influência invés de subir. Quando emergiu,
ceu. do Asura já começou a bagunçar tuas notou que a pressão se tornou mais
ideias. forte, e seu assistente neural indicou
Iteração 50.37.10.20.02. — Acho interessante — Dra. Sin- que saiu em uma fenda. Igual aquela
gh disse. — Imaginei que de todas as onde quase caiu quando essa itera-
Gael estava na caverna de novo,
personalidades de Magote, o Come- ção sua chegou ao planeta. A mesma
junto com Magote e a Dra. Singh.
diante veria vantagem de se juntar a fenda onde a mula com as tecnolo-

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— Temos um problema — Gael um Asura. gias que trouxeram afundou.
disse.
Magote deu risada. Tudo que precisava era do ampli-
— Qual é o problema? — Magote ficador de sinal, o qual iria conectar
— Faria sentido, é verdade. E seria
perguntou. diretamente em si mesmo. Algo peri-
o maior sarro eu trair todo mundo.
Gael olhou para a Dra. Singh, ten- goso, ainda mais quando se tem um
O Brâmane deu alguns passos
tando encontrar qualquer expressão Asura o perseguindo.
para trás.
que confirme suas dúvidas. Mandou um ping com seu neu-
— Especialista. Investigadora. Vo-
— Especialista — Gael disse. — ro-implante, e logo recebeu outro
cês podem isolar o Comediante?
Aponte sua arma para a Dra. Singh. de volta. A mula não estava muito
Ela foi comprometida. — Posso travar minha personali- distante, só tinha que seguir alguns
dade, chefe — Magote respondeu, metros pela fenda. Teve de atravessar
Magote rapidamente apontou o
como a Investigadora. — Mas o Co- passo a passo o que não tinha certeza
rifle para a doutora, que manteve um
mediante ainda vai poder dar pitaco. de que era sólido, para não afundar.
semblante de surpresa.
E se eu me mantiver travada vamos
— O que está fazendo, Gael? Encontrou a mula parcialmente
ficar sem as habilidades do Especia-
afundada, retirou dela o amplifica-
— Dá para me explicar o que está lista. Você concorda com isso?
dor de sinal e o amarrou nas costas.
acontecendo aqui? — Magote disse. Antes que Gael pudesse respon- Procurou a montanha mais perto e foi
Gael se levantou, já percebendo der, Dra. Singh saltou para cima de escalá-la. Não ia ser fácil.
os caracteres anômalos em sua linha Magote com uma vibro-lâmina. Ma-
Enquanto escalava, o código anô-
de visão. gote disparou, porém não estava in-
malo continuava a corromper seus
— A colônia é controlada por um corporando o Especialista e acertou implantes.
Asura. Esse meu corpo foi hackeado o ombro esquerdo da doutora, en-
— EIS O MEU SERVO, EM QUEM
por ele e agora o Asura me infectou quanto ela enfiou a vibro-lâmina em
sua cabeça. O sintetóide disparou de TENHO PRAZER — o Asura disse. —
com seu código anômalo.
novo, atingindo o peito da doutora, POREI NELE O MEU ESPÍRITO, E ELE
Magote se aproximou devagar da
e os dois tombaram inertes. Gael se TRARÁ JUSTIÇA ÀS NAÇÕES.
doutora e tomou a pistola dela. Gael
viu sozinho. — Como você consegue transmitir
nem mesmo viu quando ela a recu-
O Brâmane tentou pensar em suas diretamente para mim? — Gael per-
perou.
opções, mas só havia uma: Ele preci- guntou. — Há antenas escondidas na
— Então o senhor está infectado
sava subir para o Vimana, avisar que neve, estou correto? É através delas
também? — Magote perguntou. —
foi invadido por código corrompido, que você interfere em minhas trans-
Devo sacrificar os dois?
ser purgado e então enviar o código missões?

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Se as antenas estavam cobertas do o chefe de segurança — Nguyen caído, e mirou a cabeça de Gael.
pela neve, ele só precisava colocar o explicou, mantendo as mãos levanta- — Últimas palavras? — Comedian-
amplificador em um ponto alto. Esta- das. — Flora me ajudou a ficar es- te perguntou, seu cabo de conexão
va quase no ponto em que aterrissa- condido, até que ela me avisou que balançando perto de Gael, que ime-
ram, acima da nevasca. Finalmente, mandaram Davi atrás de vocês. diatamente se lembrou do que a In-
chegou em terreno mais plano. Gael manteve a mira em Nguyen. vestigadora disse.
— NÃO GRITARÁ, NEM CLAMA- Precisava pensar. Talvez fosse o códi- — Apenas que você deveria ter se
RÁ — o Asura disse. — NEM ERGUE- go corrompido deixando-o paranoi- esforçado mais para se adaptar a esse
v[03]

RÁ AS VOZES NAS RUAS. co. Ou talvez fosse o que Provedor corpo.


Gael olhou para os céus púrpuras, queria que ele pensasse.
— O qu—
procurando qualquer sinal da loca- Nguyen rapidamente puxou sua
Antes que Comediante terminas-
lização do Vimana, mas a nave per- pistola. Gael disparou e foi atingido
se a pergunta, Gael conectou o cabo
manecia camuflada e a nevasca não no ombro. Seu kavacha absorveu a
de Magote em sua têmpora. Magote
ajudava. Uma explosão perto de seus maior parte da energia cinética, mas
enfiou o rifle no rosto do Brâmane e
pés o arremessou para o lado e o am- ele foi arremessado para trás.
disparou.
plificador rolou pela neve. A dor clareou sua mente, ao me-
A cabeça de Gael bateu no chão
A explosão era composta de ener- nos por um momento. Olhou para o
com violência, tamanho foi o impac-
gia eletromagnética dirigida. Outra lado e viu o amplificador de sinal. Se
to. Seu kavacha espatifou, e boa par-
explosão ao seu lado apenas confir- levantou e viu que Nguyen ainda se
te da energia cinética se espalhou por
mou que era a carabina de Davi, o movimentava, mesmo ferido. Gael
seu corpo. Cuspiu sangue ao lado.
chefe de segurança. Uma arma tão levou o amplificador para o especia-
Seu neuro-implante acusou diversas
antiga quanto letal. Gael tentou sair lista.
falhas de seus órgãos internos. A dor
do caminho do próximo tiro, mas — Você precisa transmitir para o era intensa, mas ao menos não sentia
Davi o manteve em sua mira. Vimana — Gael disse, vendo que o mais a presença do Asura.
— Você não vai embora — Davi código corrompido voltou a aparecer
Magote arrancou a vibro-lâmina
gritou, se aproximando e girando a em sua visão. — Pedir para eles pur-
de sua cabeça e a jogou de lado, de-
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manivela da carabina. garem o Asura corrompido.


pois se ajoelhou ao lado de Gael.
— Você precisa entender — Gael Nguyen tentou se levantar, mas
— Senhor, desculpe por isso. Nós
disse, levantando as mãos —, Pro- não conseguiu. Ele puxou o cabo co-
isolamos a personalidade comprome-
vedor está isolando sua colônia sem nector de trás de sua orelha.
tida do Comediante.
motivo algum. Ele vai elevar a pa- — Senhor... traga o amplificador...
ranoia a um nível tão grande que — A dor... ajuda a ignorar a influ-
para mim...
eventualmente todos vão acabar se ência do Asura... — Gael teve dificul-
Ou talvez Nguyen estava comple- dade em falar. Não ia viver por muito
matando.
tamente comprometido, e pretendia mais tempo. — Você precisa.... avisar
A carabina tremia na mão de Davi, corromper o Vimana. o Vimana... sobre o Asura... rápido...
pulsando com eletromagnetismo até
Nguyen notou sua hesitação. antes que ele... nos comprometa...
que a manivela travou, indicando que
não podia mais acumular energia. — Senhor...? — Qual o plano, senhor? — Mago-
Código anômalo se espalhava pela Um tiro explodiu a cabeça de te perguntou.
visão de Gael. Nguyen, espirrando sangue no rosto Gael apontou para o amplificador
Uma figura saltou do meio do de Gael. de sinal. Magote prontamente o co-
branco da neve e se engalfinhou com — E por que eu ficaria do lado dos locou de pé, estendeu sua antena e
Davi. Um disparo da carabina pas- humanos sujos? ligou. Quando o sintetóide puxou seu
sou ao lado do Brâmane e explodiu cabo conector, viu que estava rom-
Magote estava com a vibro-lâmina
lá atrás. A figura rolou com Davi pela afundada na cabeça, ainda funcionan- pido. Gael então notou que a outra
neve por um momento, até que para- do e espalhando faíscas, seus cabos ponta do conector de Magote ainda
ram. Nguyen se levantou. estava presa em sua têmpora.
conectores expostos e balançando ao
— Senhor — Nguyen disse. — vento. Ele se aproximou, apontando Magote fechou suas mãos em pu-
Achei que o encontraria. o rifle para Gael. nhos.
Gael apontou sua pistola para — Você... foi corrompido tam- — Eu não tenho mais como me co-
Nguyen. Seu rosto estava cheio de bém...? nectar, senhor.
feridas pelo frio e ele usava apenas O Comediante riu. — Então conecte-me... — Gael
um casaco, sem as placas térmicas. disse.
— Não, apenas travei minha per-
— É conveniente demais — Gael sonalidade em Magote. Nenhuma — Mas senhor, você foi compro-
disse. — Você chegou ao mesmo outra pode te ajudar. É hora de eu me metido.
tempo que o chefe de segurança. juntar aos meus semelhantes. Gael apontou a arma para Mago-
— Claro, já que eu estava seguin- Magote se aproximou do Brâmane te, que manteve a frieza do Especia-

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lista frente à arma, depois deixou seu de forma analógica no Cintamani. O — ele disse, depois mudou de tom:
corpo mais solto. Brâmane precisou se esforçar para se — Valeu por tudo, chefe.
— Cê não tá pensando direito, manter acordado, mas pôde conferir Os disparos destroçaram o sinte-
chefe — Magote disse, ao estilo da que o sintetóide conseguiu transmitir
tóide em segundos, pouco sangue
Investigadora. — Seu Cintamani para o Vimana. manchando a neve. Circuitos antes
pode transmitir informações também. — Feito, chefe — Magote disse. escondidos debaixo de pele agora
Vamos colocar a informação nele e — Único problema é que os colonos expostos em pedaços.
transmitir para o Vimana. estão chegando. Os colonos abriram passagem

v[03]
— Não...! — Gael gritou, vendo os A coluna de Magote encurvou, para uma figura em seu meio. Quan-
caracteres corrompidos se espalhan- suas pernas levemente dobradas. do ela se aproximou de Gael, abaixou
do novamente. — Isso é um truque... Gael via cada vez mais caracteres o gorro do casaco e levantou a bala-
Você está servindo Provedor... anômalos tomando sua visão. Os co- clava.
O semblante de Magote tornou-se lonos surgiam no horizonte, pontos — Irmã Judite... — Gael murmu-
frio, o que seria aviso suficiente para mais escuros na imensidão de branco. rou. —Você precisa enxergar... Pro-
um Gael em controle de suas faculda- — Eu vou segurar eles — Magote vedor usa frases de textos sagrados
des mentais. O tiro acertou seu om- disse. — Aguente firme, senhor. antigos... fora de contexto e sem sua
bro, que explodiu em dor. — Eles estão sendo controlados... real profundidade... para manipular
— Desculpe, senhor — Magote — Gael pediu. — Em pouco tempo... vocês...
disse. — Mas você disse que a dor — O TERROR ESTÁ SOBRE TI. — E você sabe uma coisa ou outra
ajuda a ignorar o Asura. sobre manipulação, não é? Sabíamos
A imagem da figura feita de carac-
Gael jogou sua arma longe, mes- que tentariam de tudo para destruir
teres se formou ao lado de Gael, que
mo sabendo que não teria forças para Zoara, mas Provedor viu através de
tentou cortar qualquer transmissão
tentar disparar mais. Ele entregou o suas mentiras. E agora você irá mor-
externa, mas era tarde demais. Pro-
Cintamani para Magote. rer.
vedor havia tomado boa parte das
— Bem pensado... Especialista... funções de seus transplantes. — Esperem! — outra figura de ca-
Investigadora... Cuidem disso agora. saco gritou do meio dos colonos e

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Os colonos apontaram suas armas
correu até se colocar de frente à Gael.
Os olhos de Gael foram se fe- para Magote.
Flora, provavelmente. — Vocês não
chando, conforme Magote digitava — Merda. Foi uma honra, senhor

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podem matar ele, eles nos ajudaram. — A SOBERBA DO HOMEM O ABA- norteados, enquanto Cáli dançava ao
— A VERDADE É A ESSÊNCIA TERÁ. seu redor.
DA TUA PALAVRA — Provedor disse, A outra iteração de Gael pousou — NÃO! — Provedor gritou, sua
levando a mão para Flora, e depois sua mão na têmpora do Brâmane. voz digitalizando. — Impeçam ela
para Gael. — DERRAMAREI MEU ES- O corpo de Brâmane Gael pere- de...
PÍRITO SOBRE ELE, E ATRAVÉS DELE ceu. O código corrompido foi se des-
MINHA PALAVRA SERÁ PREGADA fazendo do Asura, revelando uma
EM TODAS AS NAÇÕES. figura mais humana, uma mulher de
v[03]

Iteração 50.37.10.20.03.
A freira pareceu contrariada, mas terno escuro e óculos, longos cabelos
acabou por aceitar e fez uma reverên- Aquela iteração de Gael não iria claros com tufos brancos. Em pouco
cia a Provedor. viver por mais do que alguns minu- tempo, o expurgo estava completo.
tos, de qualquer maneira. Estava sem A figura enorme de Cáli, com seus
— Sua vontade será feita, meu
kavacha, órgãos internos falhando, dez braços e dez pernas, terminou a
Provedor.
hemorragias para todo lado. Depois dança e se dissipou no ar.
Três explosões nos céus. Três ca- que Gael o tocou, todas suas células
sulos atingiram a região, a explosão morreram ao mesmo tempo e ele de- A mulher que restou do Asura
de neve forçando os colonos a se es- sintegrou. olhou para suas mãos e ao seu redor.
palharem em desespero, imaginando Os colonos foram se aproximando,
Os colonos à sua volta o olhavam fascinados. Até mesmo Irmã Judite
que estavam sobre ataque.
desconfiados. Era um planeta bonito, se aproximou. O Asura se tornou uma
O casulo mais próximo de Gael se apenas de vida quase impossível. A
Devi. Ela olhou para Gael, que sorriu.
abriu e uma figura de traje biológico, imensidão do branco da neve por
placas termais, barba branca e rosto todo lado disfarçava o relevo que seu — Você me trouxe de volta — ela
moreno deslizou para a neve. Ele ti- neuro-implante traçava em sua men- disse, uma voz bem humana no que
nha um sorriso amigável, e caminhava te. Os elementos do ar se misturavam o Assistente neural de Gael identifi-
confiante em sua direção. cou como uma língua antiga da Terra
com a luz da gigante vermelha e cria-
Lamentada. — Como conseguiu isso?
— Brâmane Gael... — Gael mur- vam um céu de um púrpura incrível.
murou para a figura. — Eu presumo... Gael se aproximou.
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As memórias de suas duas itera-


— Acredito que possamos pular as ções anteriores se formaram em sua — Não sei a quanto tempo você
cortesias devido a nossa intimidade mente, assim como o código corrom- viveu essa existência corrompida, po-
— o outro Gael respondeu. pido. Viu caracteres anômalos em sua rém muitos anos se passaram desde
as guerras entre Asuras e Devas. Tan-
Dois Magotes bem armados des- visão. Uma figura feita dos mesmos
tos anos que não foram apenas gera-
ceram dos outros casulos, linguagem caracteres se formou ao lado da líder
dos colonos, irmã Judite. ções, mas civilizações.
corporal do Especialista.
Provedor se aproximou de Gael. Irmã Judite se prostrou à frente da
Provedor apontou para os recém-
Devi, e os outros colonos assim o fi-
-chegados. — AGORA QUEBRAREI O SEU
zeram.
— EM SEUS CAMINHOS HÁ DES- JUGO E ROMPEREI OS TEUS LA-
ÇOS. — Meu Provedor... minha Prove-
TRUIÇÃO E MISÉRIA.
dora... o que faremos agora?
— Destruam eles! — Irmã Judite Sentiu que estava conectado na
rede do Asura, seu código corrompi- Gael sorriu.
ordenou.
do tentando tomar o neuro-implante — Ah, sim. E a colônia de Zoara
Os projéteis dos colonos foram
de Gael. O Brâmane sorriu. depende de você.
desviados pelos kavachas de seus al-
vos, se perdendo no branco da neve. — Esse é o plano. A Devi olhou para Irmã Judite e
O outro Gael se aproximou de Gael, Para enfrentar um Asura, você pre- lhe estendeu a mão. A freira aceitou
que mal conseguiu levantar a mão. cisa de um Deva. A Devi que emergiu e se levantou.
— Pronto para transferir suas me- da cabeça de Gael tomava a forma de — Sim, eu me lembro — a Devi
mórias para mim? — o outro Gael Cáli com sua pele azul e olhos verme- disse. — Ainda mantenho as memó-
disse. lhos, boca escancarada com a língua rias e pela lógica sou a mesma entida-
de fora. Seus quatro braços trabalha- de. E você é um Brâmane...?
— Eu fui... — Gael tentou falar,
vam contra o código corrompido do Gael sorriu.
mas sua outra iteração fez um sinal
Asura, enquanto ela estabelecia uma
para ele parar. — Dependendo da época em que
backdoor no sistema da colônia. A
— Eu sei — seu outro eu disse, Devi passou a se replicar, manifestan- você viveu, a palavra pode ter signifi-
com um sorriso. cados diferentes. Em minha socieda-
do mais rostos e braços, invadindo o
de sou como um embaixador.
— Parem! — Irmã Judite gritou, e sistema e transmitindo o código de
os colonos terminaram de recarregar expurgo para todos os implantes da Irmã Judite se aproximou. Ela não
e apontaram suas armas. região. conseguia olhar nos olhos de Gael ou
mesmo da Devi.
— PERMITAM — Provedor disse. Os colonos caíram de joelhos, des-
— Nós precisamos de você, minha

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Provedora. Para sobreviver. nos permitir. — Eu já conheci muitas filosofias


Provedora olhou para Gael. — Estou convencida, por hora. Po- — Flora disse. — E a maioria se pro-
vou falsa. Espero, do fundo de meu
— Não sei se é moralmente cor- rém preciso ver isso com meus pró-
prios pretensos olhos. coração, que encontre alguma verda-
reto.
de na sua.
— Devas são cidadãos em minha Irmã Judite se prostrou novamente
Gael sorriu para Flora, e os dois se
sociedade e têm funções como qual- à frente de Provedora.
despediram. Quando ela se afastou,
quer outro indivíduo. Devido a suas — Não pode abandonar Zoara, mi-
o Brâmane transmitiu para o Vimana.

v[03]
habilidades, muitas vezes são funções nha Provedora.
administrativas. — Navegador. Já transferiu os
Aparentemente aceitando seu pa-
Átmas da Dra. Singh, especialista
— Tenho alguma experiência pel na colônia, a Devi colocou sua
Nguyen e Magote?
com isso — Provedora disse, depois mão na cabeça da freira.
chacoalhou a cabeça. — Quer dizer, — Está feito, Brâmane — Navega-
— Acalme-se. Eu não sou um ser
muito mais positiva do que como ad- físico. Uma cópia minha irá com ele, dor respondeu. — Seus corpos tam-
ministrei aqui até então. E quem são enquanto outra ficará em Zoara. E bém já foram desintegrados.
vocês? quando a cópia retornar, nós partilha- — Perfeito. Mais um Átma será
Gael sorriu. remos nossas memórias. transferido além do meu.
— Somos uma sociedade igualitá- Irmã Judite não deu sinal de que — Muito bem, Brâmane — Nave-
ria e pós-escassez. Nosso objetivo é entendeu, mas concordou. Uma figu- gador respondeu, e fechou a cone-
interligar a humanidade novamente, ra de casaco e balaclava destacou-se xão.
buscando as forças que partilhamos e do meio dos colonos e se aproximou — Está pronta? — Gael disse para
com respeito a seus credos e crenças, de Gael. Provedora.
de forma a potencializar nossas pos- — Sinto muito que seus amigos — Não — a Devi respondeu. —
sibilidades de crescimento. não tenham sobrevivido — Flora dis- Mas isso nunca me impediu antes.
— Soa como ficção científica — se. — Eu devo minha vida a eles. Gael triangulou a transmissão do
Provedora brincou. — Eles não estão mortos, apenas Átma de Provedora, depois transmi-

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— Em tempo suficiente, a possi- foram libertos do ciclo carnal — Gael tiu o seu próprio.
bilidade de existir aquilo que é dado explicou. — E agora buscam trilhar o O corpo de Brâmane Gael pere-
como ficção aumenta exponencial- fim de seus caminhos para que eles ceu.
mente. E, vencidos os limites da car- mesmos se considerem dignos de se
ne, tempo é um luxo que podemos juntar ao Instrumento-Bramã.

Pedro Coppola nasceu no interior de São Paulo e desde pequeno de-


senvolveu um gosto peculiar por terror, fantasia e ficção científica. Suas
histórias tendem a explorar os conflitos humanos e suas consequências
em situações absurdas.
P119
_M,a,T,t,H,e,W;h,U,g,H,e,S_
gRoLiOn De AlMeRy
conto

táquion fc
GROLION DE ALMERY
Matthew Hughes
AUTOR CONVIDAD0

Tradução: Ricardo Azevedo

v[03]
Revisão: Daniel Vasconcelos Gomes

fff

Matthew Hughes é um autor anglo-canadense de ficção científica, fantasia e de livros de mistério. Considerado o
legítimo sucessor do grande mestre Jack Vance, Matthew possui uma obra com inúmeros contos, livros e antologias
publicadas. Sua prosa é rica e elaborada, e um de seus universos favoritos é o gênero Dying Earth (Terra Moribunda).
O conto que vocês lerão foi publicado em uma antologia em homenagem à obra “Dying Earth” de Jack Vance, que
compreende 4 livros, dois deles dedicados ao personagem Cugel, artista de golpes, pilantra profissional e aproveitador,
que aqui é apresentado como Grollion, um nome de fato suspeito. Matthew aproveita e ainda nos brinda com uma
referência ao universo Lovecraftiano. Em 2020, foi incluído no Canadian SF and Fantasy Association Hall of Fame. Pela
primeira vez em português, este conto foi gentilmente cedido pelo autor para publicação exclusiva no Táquion FC.

fff

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Q
uando finalmente encon- — A criatura não irá entrar — expli- e movia-se enquanto seu couro ca-
trei um local para inserir- cou o inquilino. — Soleira e lintel, na beludo se contorcia em resposta ao
-me, descobri o inquilino verdade toda a casa incluindo o jar- movimento quase constante de suas
no vestíbulo da residência em conver- dim murado, estão protegidos pelo feições. — Ele me perseguiu avida-
sa com um viajante. Mantive-me fora Encanto Seletivo de Phandaal. Você mente até próximo da aldeia, tornan-
do ângulo de visão deles e voei até conhece o encanto? do-se mais ousado à medida que o
um canto no alto onde a viga do teto O estranho soou indiferente. — sol se punha atrás das colinas. Caso
atravessava a rocha do muro exterior, Conheço a variante mais usada em não tivesses aberto...
e acomodei-me para ver e ouvir. O Almery. Deve ser diferente aqui. — Estás salvo agora — disse o in-
inquilino quase não recebia visitas,
— Ele mantém fora o que deve quilino. — Eventualmente, a besta irá
a exceção do fiscal envergando sua
permanecer fora; a primeira pisada procurar outras presas. — Ele indicou
prodigiosa pança e oito variedades
de seu agressor através da soleira a sala ao homem e convidou-o a sen-
de carranca, e uma faca de esteáqui-
resultaria em uma penalidade agoni- tar-se perto do fogo. Voei atrás deles
lo. e encontrei um lugar em uma prate-
zante.
Eu mal lhe dava atenção durante leira alta. — Você já jantou?
— Porventura, ele sabe disso? —
suas inspeções, preservando minhas — Apenas frutos da floresta co-
disse o visitante, espiando novamen-
energias para uma melhor oportu- lhidos durante o caminho — foi a
te pela janela.
nidade. Mas este estranho era inco- resposta do homem ao sentar-se na
mum. Ele andava animadamente pelo O inquilino juntou-se a ele. —
cadeira oferecida. Embora não ca-
aposento com o joelho arqueado e Olhe, — disse — veja como suas na-
minhasse mais pela sala, seus olhos
pés para fora e sempre abrindo um rinas se dilatam, escuras contra a pali-
analisaram as muitas prateleiras e
pouco a cortina da janela ao lado dez de sua cara. Ele sente o cheiro da
cristaleiras, parecendo catalogar seu
da entrada e espiando a escuridão magia e se afasta.
conteúdo, atribuindo um valor a cada
lá fora, além de checar se a trave do — Mas não muito. — A mecha item e calculando meticulosamente a
portal se encontrava bem assentada. escura de seu cabelo cobria a testa

P121
conto
táquion fc grolion de almer y
mAtThEw HuGhEs

soma de todos eles. de mim sobrevive sendo capaz de amarelos flamejantes, uma brusca
— Sobrou um guisado de cogu- lidar com nomes próprios, nem mes- corrente de ar vinda da porta inter-
melos cultivados no jardim interior, mo qualquer das magias que exigiam rompeu todo o movimento.
juntamente com os restos do bife de da memória, caso contrário eu já teria — Afaste-se — disse o morador.
esteáquilo de ontem — disse o inqui- desferido uma vingança sombria há — Mexer no desenho antes de estar
lino. — Meio pão bannock e um pe- muito tempo. pronto pode ser altamente perigoso.
queno barril de cerveja. O inquilino virou a tigela para en- Grolion balançou-se sobre os cal-
O queixo pontudo do estranho tornar na boca os últimos goles de canhares e ficou de pé. Seus olhos
v[03]

ergueu-se numa demonstração de ensopado. Ao se voltar para cima, percorreram o padrão, tentando vê-
coragem. seu olhar caiu sobre meu esconde- -lo como um todo, mas seu esforço,
rijo. Retraí-me, mas já era tarde. Ele é claro, não funcionou. — Qual é seu
— Faremos o melhor possível.
tirou da gola da roupa um pequeno propósito? — indagou.
Aparentemente, eles haviam tro- apito de madeira que pendia de uma
cado nomes antes de eu chegar, corda em volta do pescoço e soprou O inquilino entrou na sala e o afas-
pois quando estavam sentados com uma nota aguda. Ouvi o bater de asas tou. — O residente anterior da casa
tigelas de ensopado nos joelhos e membranosas vindo do corredor e jo- o começou. Lamentavelmente, ele
colheres nas mãos, o inquilino quis guei-me no ar em uma tentativa de nunca foi totalmente aberto sobre
saber — Então, Grolion, qual é sua escapar. Mas a criaturinha que guar- suas intenções. Tinha a ver com uma
história?” anomalia interplanar. Ao que parece,
dava seu quarto, antes meu, agar-
a casa se encontra sobre a interseção
O sujeito com cara de raposa or- rou-me com as patas semelhantes a
de várias dimensões. Esse nó cria
ganizava suas feições numa imagem mãos. Um sorriso cruel lhe atravessou
uma fraqueza nas membranas que se-
de nobreza assolada por provações o rosto quase humano quando arran-
param os planos.
imerecidas. — Sou herdeiro de títu- cou minhas asas e carregou-me de
lo e terras em Almery, embora este- volta para seu poleiro acima da porta — E onde se encontra esse “resi-
ja temporariamente despojado da do quarto, onde me enfiou em sua dente anterior”? Por que ele deixou
herança por conta de intrigas e con- boca. Retirei-me do corpo empresta- seu trabalho perigosamente inacaba-
chavos. Viajo pelo mundo, aguardo do antes que seus dentes manchados do?
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o momento de retornar e resolver o me mastigassem a vida. O inquilino fez um gesto casual.


assunto com o vigor necessário. f — Estas são questões de história, das
O inquilino disse - Ouvi dizer que o Quando retornei, a luz da manhã quais a nossa velha Terra já tem mui-
mundo organizado tal como se apre- filtrava seus raios pelos espaços entre tas. Não precisamos considerá-las.
senta deve estar em sua ordem corre- as cortinas, lançando um tom róseo — Verdade — disse Grolion —,
ta, pois um Criador competente não sobre o piso de pedra cinza. Percorri temos o agora. Mas alguns “agora”
permitiria o desequilíbrio. aposento por aposento, mas detive- estão ligados a outros “então” par-
Grolion achou o conceito banal. -me um pouco mais no quarto do in- ticularmente relevantes e o homem
— Minha opinião é que o mundo é quilino. Encontrei Grolion no térreo, prudente fica atento às conexões.
uma arena na qual homens de ação no estúdio de trabalho que dá para o No entanto, o inquilino havia saído
e coragem ditam o fluxo dos aconte- jardim interno, onde antes eu passava enquanto ele ainda falava. O viajante
cimentos. meus dias com meus traiçoeiros assis- o seguiu e o encontrou no refeitó-
tentes. Estava a examinar o complexo rio, apenas para se envolver com um
— És assim?
desenho em forma de estrela dispos- novo tópico.
— Sou — disse o estranho, enfian- to em cores vibrantes e sutis no gran-
do um pedaço de carne de esteáqui- de tabuleiro que cobria a maior parte — Um cavalheiro com o seu dis-
lo na boca. Provou e começou a mas- do chão. Fiquei pairando do lado de cernimento compreenderá — disse
tigar com entusiasmo. o inquilino, que meus recursos são
fora da janela que dava para o jardim
limitados. Por mais que sua compa-
Enquanto isso, considerei o que interno; pude ver que o padrão não
nhia me agrade, não lhe posso ofe-
ouvi e tirei duas conclusões. Que estava longe de ser concluído.
recer hospitalidade infinita. Já abusei
embora esse sujeito que se dizia um Grolion ajoelhou-se e esticou a de minha autoridade ao vos fornecer
nobre de Almery pudesse ter habita- ponta do dedo em direção a uma
alimento e abrigo por uma noite.
do aquela terra desgastada, não era figura elaborada composta em vá-
descendente de aristocratas pois não rios tons: arabescos gêmeos, en- Grolion olhou ao redor. A mansão
pronunciava tês e dês do mesmo jei- trelaçados entre si e ornamentados era bem decorada, com um tipo de
to gaguejante que a alta sociedade com pequenas folhas estilizadas de mobiliário nem escasso nem tampou-
de Almery. Segundo, que seu nome acaranja e raios. Pouco antes de sua co utilitário. As paredes de seus mui-
não era Grolion. Se fosse, eu não teria unha rachada e descuidada conseguir tos aposentos eram decoradas com
sido capaz de lembrá-lo, assim como desarrumar as milhares de partículas obras de arte, os pisos eram acarpe-
nunca poderia reter na memória os minúsculas, cada uma brilhando com tados com exuberância, a iluminação
nomes do inquilino e do fiscal. Em sua própria aura de verdes e doura- suave, sem sombras. — No que diz
minha condição atual, muito pouco dos, safira e ametista, vermelhos e respeito às limitações — disse ele,


P122
conto
grolion de almer y

táquion fc
mAtThEw HuGhEs

estas parecem menos opressivas do convencido, mas o inquilino tinha a escondido no muro acima. Ela rapi-
que a maioria. vantagem de possuir o que o outro damente teceu uma malha confinante
— Oh — disse o morador —, nada desejava, fosse uma meia fatia de de seda adesiva para amarrar minhas
disso é meu. Sou apenas um humil- pão e um gole de chá salobro, e as- asas, depois me virou habilmente e
de servo do conselho da aldeia, pago sim seus pontos de vista prevalece- pressionou suas pinças bucais per-
para cuidar das instalações até que ram. furantes contra meu abdômen. Senti
os assuntos do proprietário sejam fi- Eu sabia o que o morador faria a intrusão abrasadora de seus sucos
nalmente resolvidos. Meus proventos com esse novato. Retirei-me para o digestivos dissolvendo minhas entra-

v[03]
são pequenos e pagos principalmen- jardim interior e escondi-me numa nhas e retirei-me para o lugar que era
te com cerveja e esteáquilo. fenda profunda no muro circundante, ao mesmo tempo meu santuário e
minha prisão.
Recebeu como resposta um gesto de onde pude observar sem impor
de despreocupação. — Eu lhe darei minha presença. Pouco tempo de- f
— disse Grolion, — uma nota promis- pois de terminada a parca refeição, Quando pude ver mais uma vez,
sória de uma quantia considerável, os dois homens entraram em meu ân- Grolion e o inquilino haviam parado
resgatável quando meu direito de gulo de visão. de trabalhar para receber o fiscal.
primogenitura for restaurado. Como eu esperava, o inquilino Encontrei-os em discussão animada
no vestíbulo. O inquilino insistiu no
— A restituição de sua fortuna, ine- chamou a atenção do visitante para
o imponente espinheiro que domina- argumento de que o custo extra do
vitável sem dúvida, não é garantida
va uma das extremidades do jardim. sustento de Grolion compensava o
antes do crepúsculo.
Suas dezenas de galhos-membros aumento de produtividade que se se-
Grolion tinha mais a dizer, mas o
enfeitados com suculentas moviam- guiria. O oficial fingia não estar facil-
morador lhe interrompeu. — O fiscal
-se sem parar, tentando o ar, vários mente convencido, observando que
vem dia sim, dia não, entregar meu
já empertigados na direção dos dois vários assistentes anteriores haviam
salário. O espero a qualquer momen-
homens, pois captaram seus odores sido avaliados e todos considerados
to. Vou pedir a ele que me deixe con-
corporais mesmo através da extensão ineficientes.
tratá-lo como meu assistente.
do jardim. O morador admitiu, mas acrescen-
— Ainda melhor — disse Grolion
Enfurnado em uma rachadura da tou — Os outros eram inadequados,

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com o rosto iluminado pela ideia ori-
parede, eu estava demasiado distan- vagabundos e turistas de nenhum ca-
ginal, — eu poderia assumir um papel
te para ouvir a conversa, mas pude ráter. Mas Grolion é refinado, um des-
de supervisão. Tenho talento para ins-
acompanhar o conteúdo da discussão cendente da aristocracia de Almery.
pirar os outros a darem seu máximo.
pelas emoções que passaram pelo O fiscal virou a pança na direção
O inquilino ofereceu-lhe um olho rosto expressivo de Grolion e pelos de Grolion, que naquele momento
seco e um tom ainda mais seco. — seus gestos de protesto. Mas suas re- do colóquio havia se dirigido até a
Não necessito de inspiração. Uma clamações não foram acolhidas. Com porta externa parcialmente aberta
pequena ajuda, no entanto, seria os ombros caídos e passos relutantes, para poder examinar a estrada lá fora
bem-vinda. A dificuldade estará em o viajante caminhou até a base da e a floresta do outro lado. — Você é
convencer o fiscal, que é um notório árvore, afastando dois galhos-trepa- realmente de berço nobre?
pão-duro. deiras que instantaneamente o tate- — O quê? Ah, sim — foi a resposta
— Estou animado com o desafio aram. Ele olhou para os galhos bem e então — Porventura viste uma bes-
— Grolion esfregou as mãos vigoro- entrelaçados, procurando a rota de ta espreitando nas sombras enquanto
samente e acrescentou — Enquanto escalada menos dolorosa. O mora- subia a estrada?
isso, vamos preparar um bom café da dor dirigiu-se para o estúdio de cuja
— Notamos esta manhã e o expul-
manhã. Creio que argumento melhor janela via-se o jardim, permitindo-lhe
samos com cães de caça e tochas —
com o estômago cheio. anotar o progresso do novo funcioná-
disse o fiscal.
O inquilino fungou. — Posso ain- rio enquanto trabalhava no desenho
— De fato? — disse Grolion. Ele
da dispor de uma fatia de bannock da estrela.
se aproximou da porta, usou as cos-
e meio bule de chá forte. Vamos ao Saí do meu esconderijo e rastejei
tas da mão para afastá-la ainda mais
trabalho, então. pelo muro com a intenção de pular
e esticou o pescoço para observar a
— Não seria melhor estabelecer no ombro do homem antes que ele
estrada lá fora de diferentes ângulos.
termos e condições? Não gostaria de subisse na árvore. A maneira como Observei rugas de suposição tomar
transgredir o código trabalhista local. ele analisou o conteúdo da sala de- conta de sua fisionomia.
monstrou perspicácia aliada a uma
— Não tenha medo nesse aspec- — Agora — disse o fiscal — vamos
desenfreada ganância. Eu poderia
to. A aldeia valoriza a disposição ao
inventar alguns meios de me comu- discutir os termos...
trabalho. Mostre ao fiscal que você já
nicar com ele. Tão focado estava eu Grolion virou a cabeça na direção
deu uma contribuição vigorosa e seu
em meus intentos que atravessei de- do orador como se quisesse ouvir sua
pedido já estará na metade do cami-
satento uma nesga de luz vermelha proposta. Mas quando o oficial co-
nho, antes que ele cruze a porta.
do sol, e foi quando uma aranha bar- meçou a falar, o viajante escancarou
Grolion não parecia totalmente riguda caiu sobre mim de seu posto a porta e saiu por ela. Para sua evi-

P123
conto
táquion fc grolion de almer y
mAtThEw HuGhEs

dente surpresa, a porta o pegou e o em questão de instantes, os cortes se samente brotados, muitos dos quais
jogou de volta no vestíbulo. Ele sen- fecharam e ele viu apenas as paredes continham cadáveres ressecados de
tou-se no chão, atordoado, gemeu e e os armários do refeitório. pequenos pássaros e lagartos voado-
colocou as mãos na cabeça enquanto O oficial partiu. O morador deu res que tinha vindo para se alimentar
seu rosto mostrava que seu crânio de instruções rápidas sobre os afazeres das larvas de borboletas que rasteja-
repente havia se tornado abrigo de culinários de Grolion: a preparação vam e avançavam pela folhagem. O
uma dor latejante. do esteáquilo envolvia vários passos homem ainda não havia notado que
— É o Encanto Seletivo de Phan- complexos. Daí, retornou ao desenho um galho fino e verde, com a extre-
v[03]

daal — disse o inquilino. - Além de na oficina. Procurei uma oportunida- midade em boca cercada por espi-
manter fora o que deve ser mantido de de fazer contato com Grolion. De- nhos semelhantes a dentes, havia se
fora, mantém dentro o que deve ser bruçado estava sobre a mesa de pre- prendido entre dois nós dos dedos e
mantido dentro. paração, com um pesado batedor de se preparava para se alimentar. Toda
— Desfaça o encanto — gemeu carne de madeira na mão, amaciando a sua atenção estava do outro lado,
Grolion, com a dor distorcendo sua um pedaço de carne de esteáquilo voltada para uma borboleta almiran-
voz. — A besta se foi. como se este o tivesse ofendido por te, dourada e carmesim, recém-sur-
algo mais do que a resistência vigoro- gida de seu casulo. O inseto estava
— Não há como — disse o fiscal.
sa de sua textura e seu odor de mofo. secando suas asas translúcidas sob a
— Só pode ser removido por quem
Ele murmurou imprecações terríveis luz fraca do sol que se filtrava pelos
o lançou.
em voz baixa. Eu pairei na frente dele, galhos entrelaçados da árvore.
— O residente anterior? voando de um lado para o outro rit- Grolion soprou suavemente sobre
— Ele mesmo. micamente. Se eu conseguisse cha- a pequena criatura, o calor de sua
— Então estou preso aqui? mar a atenção dele, seria o primeiro respiração acelerando o processo de
passo para iniciar uma conversa. secagem. Então, quando a borboleta
O inquilino falou — Assim como
eu, até que o desenho esteja concluí- Ele levantou os olhos e me notou. dobrou e flexionou as pernas, pre-
do. O fluxo de energias interplanares Comecei a voar para cima e para bai- parando-se para saltar em voo, ele a
que serão então liberadas desfará to- xo e em ângulo, com a intenção de pegou habilmente e a transferiu para
traçar o primeiro caractere do silabá- uma garrafa de vidro de gargalo largo
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das as magias.
rio de Almery. Parecia uma estratégia que pendia de uma tira em seu pes-
Grolion indicou o oficial — Mas ele
razoável. Olhou-me com desdém, coço. A tampa do recipiente, presa
entra e sai.
ainda murmurando ameaças e mal- entre seus dentes, foi fixada na boca
— O feitiço seleciona. Daí o nome. dições contra o inquilino. Passei para da garrafa. E começou o esforço de
— Venha — disse o oficial, cutu- a segunda letra, mas ao executar um descida, libertando a mão perfurada
cando Grolion com a ponta de seu ângulo agudo, a cabeça de Grolion da mordida do galhinho. O espinhei-
cajado —, não posso ficar aqui en- recuou e disparou para frente; ao ro o beliscou e o picou lentamente,
quanto você tagarela. Levante-se e mesmo tempo, seus lábios lançavam tentando mantê-lo no lugar enquanto
preste atenção. um bocado de saliva em alta veloci- sua mudança de peso desencadeava
A conversa prosseguiu. O plano dade. A gosma me pegou no meio a resposta de alimentação. De vez em
do inquilino foi aprovado: Grolion do voo, colando minhas asas e me quando, ele tinha que fazer uma pau-
receberia sua própria ração de cerve- fazendo cair em espiral por sobre o sa para arrancar espinhos soltos que
ja, bannock e esteáquilo, no que de- pedaço de esteáquilo já meio ama- agarravam em suas roupas; um ou
pendia a satisfação que seu trabalho ciado. Olhei para cima e vi o batedor dois conseguiram perfurar sua carne
resultasse. A falta desta resultaria na descendo, e então fui embora mais profundamente o suficiente para que
uma vez. ele tivesse que parar para soltá-los
redução dos emolumentos. Já o fra- antes que pudesse retomar a descida.
casso, levaria ao confinamento puni- f
tivo na cripta úmida e malcheirosa da Quando encontrei outro transpor- Toda a ação acontecia com Gro-
casa. te, um zangão de corpo pesado, vá- lion emitindo comentários abrangen-
Grolion propôs diversas alterações rias horas já haviam se passado. O in- tes sobre a flagrante injustiça de seu
a estes termos, embora nenhuma re- quilino estava no estúdio ampliando destino e os responsáveis por ele,
cebeu aprovação. O fiscal tirou então o desenho com pinças e gabaritos. O expressando desejos sinceros quanto
da carteira uma faca dobrável que, último braço da estrela se encontrava aos acontecimentos no seu futuro. O
ao ser aberta, revelou uma lâmina quase completo. Feito isso, a hélice inquilino e o fiscal eram protagonis-
de pedra negra. Ele cortou com ela tripla no centro poderia ser colocada tas dos comentários, assim como ter-
e o trabalho estaria findo. ceiros que considerei serem antigos
o ar acima da mesa do refeitório e conhecidos em Almery. Estava tão
das incisões caiu um pedaço de es- Grolion estava a meio caminho do
ocupado com suas calúnias que não
teáquilo. Ele então repetiu o proces- espinheiro-bravo, os pés apoiados
consegui encontrar jeito de atrair sua
so, produzindo outro naco. Grolion em um dos vários troncos, uma mão
atenção. Retirei-me para uma fresta
viu o que pareciam ser duas feridas, segurando um galho da espessura de
no muro do jardim para espiar o in-
aparentemente no ar, chorando um um braço, os dedos cuidadosamente
quilino pela janela do estúdio.
líquido como sangue pálido. Então, posicionados entre os espinhos den-

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conto
grolion de almer y

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Ele estava ajoelhado junto ao de- cou-a sobre uma esteira de madeira O melhor é se adaptar às minhas pe-
senho, delineando em prata um friso macia em cima da bancada e pegou quenas vontades. Agora vá.
de anéis azul-celeste entrelaçados na um bisturi com uma pequena lâmina Dando de ombros como reprova-
borda de um dos braços da estrela. em forma de meia-lua. Com um gol- ção tácita, o assistente voltou para
A prata, como todos os outros pig- pe preciso e experiente, separou a o espinheiro. Com o inquilino ob-
mentos usados, era aplicada como cabeça triangular do inseto do tórax. servando seu progresso, achei im-
um pó fino liberado lentamente pela Enquanto as asas e as pernas ain- prudente segui-lo. Mas Grolion não
extremidade de um canudo. O dedo da se moviam em agonia reflexiva, o subiu na árvore. Em vez disso, ao se

v[03]
indicador do inquilino bateu no ca- inquilino vestiu uma fina máscara de aproximar de sua larga base, onde as
nudo mais três vezes enquanto eu gaze e pediu a Grolion que fizesse raízes grossas penetravam no solo,
observava, daí, pegou uma pequena o mesmo. — Uma expiração forte ele parou de repente e recuou brus-
escova que tinha uma única cerda na pode nos custar muitas escamas —, camente, como se alguma ameaça
extremidade e alinhou um excesso. disse ele, pegando um raspador em terrível bloqueasse seu caminho.
Grolion apareceu à porta, resmun- miniatura. Com delicadeza, ele esti- O inquilino percebeu o movimen-
gando, praguejando, e oferecendo o cou as asas e raspou um pó fino de to. — O que se passa? — gritou.
frasco tampado. O inquilino o enxo- ouro e carmesim, demonstrando a
Grolion não se virou, mas olhou
tou com uma série de movimentos técnica de mover o instrumento para
atentamente para o emaranhado de
agitados das mãos para que o sangue a esquerda para acumular uma pitada
raízes com medo e fascínio ao mesmo
que escorria de seus cotovelos não de ouro de um lado, e para a direita
tempo. — Não sei — disse ele, e de-
caísse sobre o padrão. Então, ele se para acumular um amontoado ínfimo
pois inclinou-se cautelosamente para
levantou e contornou o desenho para do outro tom. Quando cada uma das
a frente. — Nunca vi nada parecido.
receber o recipiente. quatro asas foi raspada até mostrar
a membrana pálida, pegou dois ca- O morador aproximou-se, mas pa-
— Observe e lembre-se — dis-
nudos ocos e, com delicadeza atra- rou um passo atrás do viajante. — O
se ele, levando o recipiente para a
vés da gaze, sugou os pigmentos da que vês? — perguntou.
bancada e acenando para Grolion
segui-lo. — Se eu promover você a mesa. Um galho sensor estendeu seu
assistente sênior, esta tarefa poderá — Pronto — disse ele — uma ma- tubo para Grolion. Ele se defendeu e

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ser sua. nhã produtiva. Grolion, já mereceste se agachou, inclinando-se para fren-
te. — Foi para trás daquela raiz gros-
— Isso significa que outra pessoa tua cerveja e teu bife.
sa ali.
vai escalar o espinheiro? — O inquili- Grolion não respondeu. Não assis-
no olhou para ele dos pés à cabeça. tia ao processo, seu olhar havia caído O morador se debruçou. — Não
— As funções de um assistente sênior nas prateleiras de livros e grimórios vejo nada.
abrangem e aumentam as de um as- na parede oposta. Um deles estava — Ali! — disse Grolion. — Está se
sistente júnior. encadernado com camurça azul, ca- movendo!
— Então, é somente mais trabalho. racterística das obras de Phandaal. O morador estava debruçado,
— Tente mudar a perspectiva. O O morador notou a direção do com a atenção para baixo. — Eu ain-
entendimento mais adequado no olhar de seu assistente e falou em da não...
caso seria a de você inspirar mais tom áspero. — De volta ao traba- Grolion levantou-se muito rápido.
confiança e ganhar mais estima. lho! Já vejo uma crisálida com faixas Uma mão manchada de sangue pe-
verdes e laranjas naquele galho que gou o morador pela garganta, a outra
— Mas meus dias ainda se resu-
pende flácido, ali à esquerda, perto tapou sua boca, e ambas trabalharam
mem a “faça isso” e “traga aquilo”, e
do topo! Não duvido que ela nos pro- em conjunto para atingir o objetivo,
nada para comer além de cogumelos
porcionará uma magnífica tocha para que era virar o inquilino e forçar suas
do jardim e bifes de esteáquilo.
a noite! costas contra a parte inferior do tron-
— A cerveja é boa — rebateu o
— Preciso cuidar das feridas — dis- co da árvore, onde os espinhos e far-
morador. — Tens que admitir.
se Grolion. — Elas podem infeccionar. pas eram grossos e longos.
— Sinto não me ser compensatória
— Ora! Tenho unguentos e outras Galhos membros dispararam em
— disse Grolion.
coisas do gênero. Poderá aplicá-los direção aos braços de Grolion, mas
— Mas, ora! - disse o morador. — hoje à noite. Agora, para cima. Sem a ele ignorou as bocas sugadoras e se-
Tinha esperanças em ti, mas vejo não tocha para a noite, não haverá cerveja gurou o inquilino firmemente contra
ser melhor que os outros! nem bife diante de tua boca. o tronco. Agora galhos mais pesados
— Quais outros? — A pergunta se — Drástica mudança de atitude inclinavam-se para os lados, sentindo
perdeu em um gesto de olvido. — — disse Grolion. — Mas há pouco a carne pressionada contra a fina pe-
Chega de conversa! Observe e apren- fui parabenizado e me acenaste com lagem da casca da árvore. Em instan-
da. — O morador tirou a tampa do re- uma promoção. tes, o homem não era só prisioneiro
cipiente, inseriu dois dedos e agarrou do aperto de Grolion. O assistente
— Tenho um humor volúvel — dis-
uma perna frágil com destreza. Puxou tirou as mãos da garganta e dos lá-
se o morador. — Muitos tentaram,
a criatura esvoaçante para fora, colo- bios do morador, mas avisou: — Uma
mas minha personalidade não cede.

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sílaba de encantamento e encho-te a rador. — Eu era seu assistente-mor, ças empregadas por Fallume, que ele
boca com terra e te largarei na árvore. com outros dois sob meu comando. acabou por desgastar as membranas
— Nenhum feitiço novo pode ser Éramos apenas aldeões, embora entre os planos de forma permanen-
lançado aqui — ofegou o prisioneiro. aprendêssemos rapidamente. Ele es- te. As pesquisas do meu mestre lhe
— A fraqueza interplanar cria um flu- tabeleceu-se aqui porque, de acordo mostraram que, aqui e somente aqui,
xo muito grande. Os resultados, mes- com ele, as condições eram sobrema- ele poderia criar uma cópia do mun-
mo de uma pequena magia, podem neira propícias: uma intersecção úni- do superior e mantê-la em definitivo.
ser imprevisíveis. ca de planos com quatro camadas. Dentro dessa área ele poderia com-
v[03]

Um nó a partir do qual era possível prazer-se com o brilho do ombre re-


— Muito bem — disse Grolion —
alcançar profundamente duas dimen- fulgente e outras radiâncias etéreas.
agora, conte-me a história toda.
sões adjacentes do mundo superior, e A atividade lhe traria benefícios dos
A narração demorou. Por conside- uma dos infernais. quais ele ansiava desfrutar.
ração, Grolion afastava as trepadeiras
Um galho alimentador com bordas Mais detalhes fluíram. O microcos-
e os galhos-alimentadores, mantendo
dentadas, sentindo o sabor de seu mo da esfera do mundo superior se
o inquilino levemente preso e parcial-
hálito, procurou sua boca. Grolion o autogeraria espontaneamente após
mente drenado. Preparei-me para
empurrou para o lado. O inquilino a conclusão de um projeto complexo
ouvir a história sórdida da traição do
continuou. — Ele ansiava por ver uma feito de materiais únicos: as escamas
inquilino e da cumplicidade do con-
cor conhecida no mundo superior pigmentadas de quatro tipos de bor-
selho da aldeia, embora conhecesse
como ombre refulgente. Cor que não boletas cujas formas larvais se alimen-
a história intimamente: como eles
existe em nosso meio; o que chama- tavam apenas da seiva e das folhas
coibiram minhas pesquisas inocentes,
mos de luz é apenas uma parca imita- de uma árvore única, onde os insetos
conspiraram para usurpar a minha
ção do que lá existe. viviam em simbiose. Os predadores
autoridade e, finalmente, usaram de
— Mas nossa aldeia se localiza nas insetívoros eram atraídos ao labirinto
violência cruel contra mim.
terras de Fallume, o Apto, e abando- de galhos, onde se empalavam em
— Ele ficou obcecado pelas cores espinhos farpados e assim se torna-
nada há muito tempo, no Décimo Sé-
do mundo superior — disse o mo- vam alimento para o parceiro vegetal.
timo Éon. Tão potentes foram as for-
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grolion de almer y

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A árvore tinha uma propriedade e a riqueza não chegava mais por Encanto Seletivo de Phandaal, para
única, podendo existir em mais de aqui. Fizeram um acordo: a aldeia manter a árvore sob controle. Mas o
um plano ao mesmo tempo. Porém, lhe forneceria ajudantes e necessida- feitiço também nos confinou.
apresentava uma forma diferente em des diversas e ele, em troca, realizaria Ao ouvir isso, entristeci-me mais
cada um deles: no primeiro nível do pequenas magias e forneceria o be- uma vez ao pensar na miopia do con-
mundo superior, era uma espécie de nefício do esteáquilo. selho, logo quando estava fazendo
animal, um caçador multi membros — Em que consiste esse esteáqui- tão bons progressos. Tentei não es-
das almas transmigradas de peque- lo? cutar o que o inquilino continuava a

v[03]
nas criaturas que evanesciam do contar: como, enquanto eu dormia,
— Um animal imenso que nada
nosso plano; no submundo, era uma meus assistentes alimentaram meu
através de um oceano sem fim de
serpente espinhosa cujos hábitos guardião com uma batida de mel
uma dimensão adjacente. Entenda
alimentares eram obscuros, embora com entorpecente e depois irrom-
que os termos “oceano” e “nadar”
desagradáveis. Os atributos de todos peram em meus aposentos armados
são apenas aproximações. Ele deu à
os três mundos coexistem nas seivas com facas.
aldeia a faca que corta apenas o es-
da árvore. Comido e digerido pelas
teáquilo. Corte o ar com ele e um pe- O ataque covarde veio coordena-
larvas que rastejavam pelos galhos, o
daço de carne aparece. A cada corte, do de três direções ao mesmo tem-
icor, transmutado pelo processo que
uma nova peça de carne bem sucu- po, pegando-me de surpresa no meio
transformou as larvas em borboletas,
lenta aparece. Nunca mais conhece- de minhas divagações no sono. Acor-
se depositou nas escamas de suas
ríamos a fome. dei e me defendi, embora estivesse
asas nacaradas. Colhidas frescas, as
— Um instrumento útil. em uma situação ruim desprovido
cores das escamas poderiam ser or-
como estava de magia. No entan-
ganizadas, neste local preciso, no de- — Infelizmente — disse o morador,
to, eu não me tornei um mestre na
senho que faria aparecer o fac-sími- — isso também só funciona onde as
magia das três cores sem ter apren-
le do mundo superior. Dentro desta membranas interplanares são fracas.
dido a cautela. Os traidores ficaram
esfera, o ombre refulgente poderia A um quilômetro e meio da vila, é
surpresos ao descobrir que eu havia
brilhar. apenas mais uma faca.
criado para mim, há muito tempo, um
Grolion interrompeu o inquilino. Grolion coçou os cabelos desgre- refúgio inexpugnável no quarto pla-

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Observei como suas caretas se alter- nhados. — O esteáquilo não se res- no, para onde fugi quando a luta veio
navam ao absorver as informações. sente do roubo de sua carne? contra mim. Infelizmente, eles causa-
Então ele fez a pergunta que eu es- — Nunca pensamos sobre o as- ram tantos danos à minha forma física
perava que fizesse: — Este ombre re- sunto. Os aldeões aceitaram o acor- que consegui retirar apenas a minha
fulgente é valioso? do. E tudo correu nos conformes essência.
— Não tem preço — disse o mora- como deveria ser, exceto que a árvore — Ele deixou seus atributos corpó-
dor, e vi a chama da avareza acender se desenvolveu de forma mais brusca reos para trás — meu ex-colaborador
nos olhos do assistente, apenas para do que o previsto. Pássaros e lagartos disse a Grolion, — e os encerramos
ser apagada quando seu prisioneiro tiveram que ser complementados por em um esquife de chumbo forrado
concluiu — e totalmente inútil. andarilhos ocasionais que pegaram com antimônio. Dessa forma, ele não
As sobrancelhas pesadas de Gro- o desvio errado e foram contratados consegue se reestruturar. Mas, de seu
lion se contraíram. — Como assim? como “assistentes”. Mesmo eles não esconderijo, logra se projetar, apro-
foram suficientes. Trepadeiras alimen- veitando os sentidos dos insetos que
— Só pode existir no fac-símile, e
tadoras grossas começaram a rondar passam, e me espionar. Ele engoliu
o fac-símile só pode existir aqui, onde
a aldeia à noite, entrando pelas ja- em seco e continuou: — Alguma coi-
os planos convergem.
nelas abertas ou mesmo forçando as sa está perfurando meu tornozelo. Li-
Grolion virou-se para observar a portas menos maciças. Os chefes de berte-me dessa galharia, juro que não
oficina. — Então o desenho em estre- família levantavam-se pela manhã e vos farei mal.
la não pode ser removido daqui? Ou encontravam animais de estimação
desmontado e arrumado em outro Grolion arrancou a raiz que se ali-
e gado dessecados, drenados até a
lugar? mentava da perna do morador e re-
última gota. Daí, a árvore começou a
tirou outra que tentava se inserir na
— Perturbe um grão de sua subs- atacar as crianças.
orelha do prisioneiro. Ele arrancou as
tância e ele sumirá pela fenda, levan- — O conselho procurou meu mes- trepadeiras que vinham se apertan-
do você e eu, a casa e provavelmente tre, mas o encontrou tomado por
do ao redor do torso do inquilino e
a aldeia com ele. suas próprias ambições. O que eram então soltou o homem. Engasgou-se
Uma careta se formou no rosto de algumas crianças facilmente substi- de dor enquanto pedaços de pele
raposa. — Conte o resto. tuíveis, afinal, em comparação com a ensanguentado e pequenos pedaços
— O mestre ergueu esta mansão, realização de seu nobre sonho? Ele os de carne mostravam onde os espi-
plantou o jardim, e a árvore. O con- aconselhou a instalar portas mais ro- nhos farpados haviam penetrado em
selho da aldeia deu-lhe as boas-vin- bustas. Mas a aldeia ameaçou retirar suas costas e nádegas.
das. Nos últimos anos, o tráfego ao o apoio, incluindo a dos assistentes. Grolion rasgou as vestes do ho-
longo da estrada tornou-se escasso Meu mestre invocou a contragosto o

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mem em tiras e amarrou seus pulsos Não o segui. Os glifos e símbolos em impedir que suas ideias transpa-
e tornozelos. Mas puxou o homem gravados nas laterais e na parte su- recessem em seu rosto. A árvore era
amarrado com cautela para fora do perior do caixão me infligiriam dor, um problema sem qualquer proveito.
alcance da árvore antes de inspecio- como era seu propósito. Voei até uma O projeto não tinha valor, mesmo
nar novamente o estúdio e o projeto. fenda na parede acima do morador e, depois de concluído, pois tinha que
Estendeu a mão para o livro de Phan- tendo constatado que não havia nada permanecer onde estava. O Phandaal
daal, mas quando seus dedos quase ali, acomodei-me para esperar. na prateleira era precioso, mas se de-
encostaram na camurça azul, uma Eu sabia o que Grolion estaria fendia pela dor.
v[03]

faísca ofuscante de luz branca saltou vendo: as paredes rachadas e o chão Ele se voltou para o morador. — O
pela abertura, acompanhada por um úmido e irregular da cripta; a escuri- que acontece se o desenho for termi-
som agudo. Grolion gritou e rapida- dão apenas parcialmente aliviada por nado?
mente retirou a mão, massageou-a duas estreitas saídas de ar que des- — Um microcosmo do mundo su-
energicamente e depois chupou os ciam com pequenas grades coloca- perior aparecerá acima dele e será
dois dedos. das no muro do jardim acima, os vá- absorvido.
Saiu do aposento e sentou-se num rios fardos de pano perto da base dos
— Pode-se entrar no microcosmo?
banco num dos lados do jardim, à degraus, contendo os restos mortais
meia distância entre a árvore e a ofi- ressecados de meus ex-colaborado- O homem amarrado sinalizou ne-
cina. Sentado ficou, de pernas cruza- res, bem como dos viajantes que, um gativo. — As energias do mundo su-
das, uma sobre a outra, o queixo pon- por um, procuraram abrigo da fera perior são muito vibrantes, mesmo
tudo apoiado pelo indicador e pelo criada pelo fiscal e se viram obriga- para uma cópia. Nós acabaríamos
polegar de uma das mãos, entregue dos a servir, e uma parede ao fundo, derretidos, ou queimaríamos em cha-
aos pensamentos. Alternadamente, fraturada e rasgada pelas raízes do mas.
olhava para o espinheiro, para a ja- espinheiro à medida que cresciam — Mesmo assim, seu mestre pre-
nela do estúdio, ou para o morador através do teto e do solo acima dele. tendia entrar.
amarrado. E, claro, sobre um estrado eleva- — Ele passou anos se fortalecendo
Após alguns minutos, chamou-o, do no fundo da cripta, o caixão que para suportar tal ambiente. Por isso
— Havia três de vocês. Onde estão continha meus atributos físicos. Eles foi difícil matá-lo.
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os outros dois? não estavam vivos nem mortos, mas Grolion caminhava com a energia
O olhar do morador para a árvore naquele estado conhecido como “in- da frustração. — Então estamos pre-
foi a resposta muda e eloquente. determinado”. Não pensei que Gro- sos com uma planta vampiro e a um
lion teria curiosidade suficiente para desenho mágico que nos destruirá se
— Entendi — disse Grolion. — O
levantar a tampa e olhar para dentro; não for concluído. Somente seu mes-
que teria acontecido comigo, eventu-
isto é, eu tinha certeza de que ele tre realmente entende o que precisa
almente?
possuía a curiosidade, mas duvidava ser feito, mas se eu o reanimar, ele
O inquilino olhava para qualquer que ele fosse tolo o suficiente para provavelmente me dará como ração
coisa, menos para o questionador. deixar que ela o possuísse lá embai- para a árvore para ganhar os recursos
— Entendo — repetiu Grolion, xo, na escuridão malcheirosa. com os quais terminará seu projeto e
e voltou a pensar. Passado mais um Quando voltou para a luz vermelha alcançará o objetivo de sua vida.
tempo, disse – E o esquife de chum- do sol, seu cenho mostrava concen-
— Tal é a situação.
bo? tração. — Paremos as atividades hoje
Grolion cortou o ar com o punho.
— Na cripta — disse — abaixo — disse ele ao morador. — Preciso
— Inaceitável! — proferiu. — Em mi-
do jardim. Os degraus ficam atrás da pensar.
nha experiência, situações inopor-
fonte na piscina dos peixes cantores. A árvore havia sido estimulada tunas sempre cederão a um homem
Mas ao abri-lo, ele se reanimará. Não pelo sabor do morador. Seus galhos
astuto e cheio de recursos. Empe-
duvido que ele nos daria de comida se moviam e se agitavam sem ven-
nhar-me-ei.
para a árvore. Ele só se importava to. Um túbulo grosso, com a extre-
com o ombre refulgente. Seu assassi- midade dentada aberta para captar — Em que direção?
nato, seguido por várias encarnações odores, se estendia pelo chão em — Vou eliminar o intermediário.
como vários insetos, muitos dos quais direção aonde ele estava sentado, O morador ia formular uma nova
morreram horrivelmente, pode ter ainda amarrado, mas lutando para pergunta quando uma voz chamou
desenvolvido nele um instinto cruel. se afastar. Grolion pisou no galho do corredor. Um momento depois,
Grolion foi olhar. Havia uma gran- alimentador e o chutou para longe, a pança do fiscal passou pela solei-
de laje de pedra de formato quadra- depois puxou o inquilino pela coleira ra, seguida por seu dono. Ele entrou
do, com um anel de ferro inserido em para longe, para o lado do jardim que em cena, notando as amarras do in-
um dos lados. Ele agarrou, puxou e, ficava o estúdio. Ele se virou e olhou quilino, disse apenas — Como vai o
com o atrito de granito contra pedra, para a árvore por um momento, de- trabalho?
o alçapão surgiu, auxiliado por con- pois foi olhar novamente para a de- O inquilino intentou responder
trapesos e roldanas invisíveis. De- senho da estrela. Pensando que não quando Grolion o cortou. — Uma
graus levavam para baixo. era observado, ele não se preocupou

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nova administração assume o co- E mais um bloco pesado de esteáqui- da última borboleta madura escamas
mando. A situação atual se apresenta lo caiu no solo e a árvore enviou no- o suficiente, perguntou ao morador:
insatisfatória e ganhará uma nova di- vos alimentadores para drená-la. — Já é o bastante?
nâmica. E partiu para cima do oficial — Agora — disse Grolion, — ao O morador olhou para os vários ca-
com intensões nada amistosas. desenho. Dobrou a faca e guardou- nudos, cada um cheio de pigmento, e
— O que é isso? — disse o fiscal, -a no bolso. Depois, vendo a árvore disse, com leve espanto: — Acredito
um olhar de alarme aparecendo sob ocupada com o repasto, atirou-se que sim.
a superfície de seu rosto por entre os para cima dela. Subindo cada vez — Então comece. Voltou-se para o

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rolos de gordura. As mãos rechon- mais alto e ignorando as feridas que fiscal e mandou: — Serás o assistente,
chudas se levantaram para a defesa, sua passagem pelos espinhos lhe in- passando-lhe os canudos conforme
mas Grolion as tratou como se fossem fligia, despojava com esmero cada ele os requisitar.
as trepadeiras da árvore; levantou a ramo de suas crisálidas pelo caminho,
E começaram. Enquanto isso, o
aba que fechava a algibeira do fiscal estivessem elas maduras, quase ou
novo supervisor foi até a árvore. O
e agarrou a faca que cortava o este- recém-fiadas. E as foi metendo den-
espinheiro, percebendo a disponibi-
áquilo. Um movimento de seu pulso tro da camisa até ela estufar.
lidade de uma rica e farta fonte de
fez com que a lâmina se soltasse com Quando coletou todas, se deixou comida, espichara seu principal galho
um clique afiado. cair rapidamente através da folha- alimentador: um tubo forte e grosso
— Não tens como ameaçar nin- gem, parou na base para cortar outro como a coxa de Grolion, rodeado por
guém com isto — disse o fiscal. — Ela naco de esteáquilo para a árvore, em “dentes” farpados tão longos quanto
só corta esteáquilo. seguida, caminhou até a sala de tra- seu polegar. Este se fixara no segun-
— Exatamente — disse Grolion. balho. — Sigam-me! — chamou por do naco de esteáquilo, cuja substân-
Caminhou até a árvore em seu passo sobre os ombros. cia drenava com rapidez. A operação
com joelhos arqueados. O fiscal cur- O fiscal e o inquilino o acompa- era acompanhada por pulsações obs-
vou-se e desfez as amarras do inqui- nharam trocando olhares tensos. Voei cenas e sons altos emitidos pelo con-
lino, mas ambos ficaram bem longe para onde pudesse ver o processo. duto roliço. O primeiro naco já havia
do espinheiro. O zangão se cansara, Lá estava Grolion na bancada, tiran- virado uma placa murcha de carne
mas eu o conduzi até o viajante. do punhados de crisálidas da camisa. seca.

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Grolion marchou até a base do Encontrou um bisturi e cortou um, — Vamos te manter ocupado —
espinheiro. Vários tubérculos se con- enquanto o inquilino olhava boquia- disse Grolion, empunhando a lâmina
torcendo o alcançaram, a árvore não berto. preta. Cortou do ar um novo peda-
se alimentava bem há muitos dias. Uma borboleta meio metamor- ço de esteáquilo, com o dobro do
Ele cortou o ar com a faca de lâmina foseada surgiu. Com uma destreza tamanho dos outros, e deixou-o cair
negra, um corte horizontal longo na surpreendente, Grolion libertou-a ao lado do pedaço agora quase res-
altura da cabeça. Sumo vivo jorrou, do casulo partido, deitou a criatura sequido. Os túbulos esticavam-se em
borrifando os cabelos de seus bra- debilmente contorcida na bancada direção ao novo sustento. Em segui-
ços com gotículas rosa. Ele as igno- e, com uma pinça fina, abriu-lhe as da, o galho grosso parou de drenar o
rou e fez dois cortes verticais, um em asas. Soprou de leve nas membranas saboroso naco e enfiou seus espinhos
cada extremidade do primeiro corte. molhadas para secá-las. Depois, se vi- no suprimento mais recente. A árvo-
Então, fez uma quarta incisão no ar, rou para o morador e disse: — Agora re sacudiu-se e, de algum lugar na
na altura do joelho e paralela à pri- você recolhe a escamas. matriz dos ramos, soltou um gemido
meira. Então segurou a faca entre os Sem dizer nada, o inquilino agiu muito similar ao de prazer.
dentes e enfiou as mãos no corte su- como ordenado, enquanto Grolion Grolion voltou para a sala. Os dois
perior. Agarrou, puxou e rasgou até informava ao oficial que sua tarefa homens, de joelhos ao lado do de-
que, com um jorro de sucos vitais, um era classificar as crisálidas por espé- senho, olharam com apreensão, mas
pedaço de carne de esteáquilo do ta- cie e maturidade aparente. A boca do ele acenou para que continuassem.
manho de um estrado caiu com um funcionário formou um sumidouro ao — Tudo está como deve ser — disse
estrondo no chão de pedra. dizer: — Eu não... ele quase relaxado. — Em breve po-
Deu um passo para trás. Os galhos Grolion deu-lhe um tapa na lateral deremos abandonar esse desconfor-
alimentadores do espinheiro senti- da cabeça que derrubou o alvo no to. Continuem o trabalho enquanto
ram o ar acima da carne gotejante e, chão. Então ficou em um pé, o outro eu inspeciono as salas.
em conjunto, mergulharam e fixaram preparado para um chute na barriga, Saiu e pude ouvir o tilintar e as
suas bocas de múltiplas presas na car- e convidou o homem prostrado a mu- batidas enquanto ele vasculhava os
ne. Os túbulos pulsavam ritmicamen- dar de opinião. Tremendo, o oficial demais cômodos da mansão. Depois
te enquanto a árvore se alimentava. levantou-se e fez o ordenado. de um tempo, voltou ao jardim com
Grolion parou para observar apenas um saco de pano volumoso na mão.
O tempo passou. A árvore se ali-
por um momento e então, empu- Largou-o perto da porta da oficina,
mentava, os homens trabalhavam e o
nhando a faca novamente, deu um se dirigiu até a árvore e viu que ela
suprimento de escamas para o proje-
passo para o lado e repetiu os cortes. havia sugado completamente o últi-
to cresceu. Quando Grolion extraiu

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mo naco. Seus galhos estavam mais do os últimos flocos iridescentes de aparecia em nosso plano mediano. Li-
uma vez tateando o ar. Uma expres- pigmento caíram da ponta do canu- berto da corporalidade, experimentei
são que considerei ser de simples do, uma faísca se acendeu do nada. a existência plena e inefável daquele
curiosidade formou-se no rosto vulpi- Num instante, como uma chama ali- mundo, suas cores que extasiavam ao
no do homem. Desdobrando a faca mentada pelo fluxo de ar, ela cresceu mesmo tempo que curavam feridas.
mais uma vez, ele cortou novamente, e se espalhou, tornando-se um orbe O ombre refulgente era meu, e com
ficando na ponta dos pés para fazer a brilhante que inicialmente era do ele dez mil tons e sombras que os
incisão superior, inclinando-se quase tamanho de uma ervilha, depois da olhos mortais jamais seriam capazes
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até o chão para a inferior e enfiando largura de um punho, agora de uma de captar. Comecei a fraquejar, mole
a lâmina nos cortes até a profundida- cabeça, depois maior e ainda maior. E de felicidade, excitado pelo arrebata-
de de um braço. Ao chão, caiu uma à medida que crescia, o desenho de mento.
enorme placa de esteáquilo e Grolion estrela que tinha sido tão cuidadosa- Em algum lugar além do globo de
ficou encharcado de um visco rosa. mente salpicado no chão foi levanta- luz, o morador, o oficial e o viajante
Tentou se limpar mas resolveu mergu- do numa cascata reversa de cores bri- cuidavam de seus afazeres munda-
lhar no tanque dos peixes cantantes lhantes, para se fundir com o globo nos. Não dava atenção a eles e a seus
que emitiram uma música animada ao de luz, agora cintilando em dezenas atos grosseiros, nem ao pedaço de
sentir o novo sabor da água. A árvore, de matizes raros, e cresceu tão gran- carne, osso e cartilagem que outrora
nesse meio tempo, se contorcia em de quanto um barril de vinho, e ainda abrigara minha essência e agora fica-
êxtase vegetativo, lançando novos tú- aumentando. ra confinado em um caixão de chum-
bulos em todas as direções. Os três homens assistiam fascina- bo e antimônio.
O inquilino e o fiscal já estavam dos, pois em seus olhos havia cores, Eles temiam uma represália minha.
terminando o desenho. O primeiro isoladas ou combinadas, como pou- Mas não haveria vingança. O “então”
traçou uma linha de um vermelho cos mortais jamais viram. Mas eu não se fora, o “agora” também, e eu esta-
profundo contra uma cunha de nácar pensava neles agora, nem mesmo va acima de tudo, no mundo superior.
branco cintilante e depois pediu ao na traição e na violência injustas que Enlevado. Maravilhado. Tragava o vi-
último que lhe entregasse um canu- sofreu. Flexionei minha asa machu- nho do êxtase.
do cheio de preto estígio. Este usou cada e disse a mim mesmo que ela
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f
para traçar uma espiral no centro do suportaria o peso do zangão por mais
O homem que se autodenominava
padrão, batendo delicadamente no tempo. Dobrei minhas seis pernas e
Grolion olhou para o orbe multicolo-
canudo com pigmento para liberar joguei-me em direção à luz, na espe-
rido que parou de crescer depois que
poucas escamas de cada vez. rança de que minhas três membranas
o abelhão entrou nele. Toda as linhas
Após terminar com o preto, pediu boas e uma ruim me levassem adian-
do desenho estelar foram absorvidas
por ouro velho e verde olho-de-ba- te.
e o globo ficou suspenso no ar, com-
silisco, duas das cores mais raras da Em vez disso, carregaram-me para pleto e autossuficiente, acima do ta-
paleta do espinheiro. O fiscal passa- o lado, para longe do prêmio. E foi buleiro vazio. Curioso, ele estendeu a
va-lhe os canudos quando Grolion então que o inquilino me viu. Reco- mão na direção dele, mas Shalmetz, o
surgiu pela porta, encharcado e cur- nheceu-me de pronto. Ele contornou homem que havia terminado o dese-
vando-se para recuperar o saco da a borda do tabuleiro, de onde as úl- nho, afastou seu braço.
pilhagem. — E agora? — disse, sua timas linhas do intrincado desenho se
Grolion virou-se de cara feia, com
mão livre indicando o desenho. juntavam ao orbe de luz, e me atingiu
o punho erguido, mas cedeu quando
O inquilino pareceu surpreso ao com a mão que ainda segurava o úl-
Shalmetz esclareceu: — Uma lasca de
declarar: — Estou prestes a terminar. timo canudo. Balancei-me desajeita-
gelo jogada em uma fogueira dura-
damente para o lado, com as cerdas
— Então termine! — impacientou- ria mais do que sua carne em contato
das minhas costas capturando alguns
-se Grolion. — Já perdi muito tempo com isto.
últimos flocos cinzentos de nácar, e o
neste lugar. Groblens, o gordo oficial da al-
golpe não me alcançou. Contudo, o
Chegou o momento. Voei para movimento me trouxe de volta para deia, recolheu a mão que esticara
perto, mas meu zumbido estrondoso perto de Grolion, e sua mão desferiu com vagar em direção ao microcos-
irritou Grolion que me jogou para o o mesmo golpe certeiro de antes, de mo. Com um grunhido e com certo
lado com um movimento brusco, e modo que as costas de seus dedos esforço, ele se levantou. — Acabou?
me fez cair. Estabaquei-me ao lado da peludos me pegaram mais uma vez e — perguntou.
porta, danificando uma das asas, e caí me fizeram girar, indefeso, mas direto Shalmetz observava o globo. —
em espiral no chão. Olhei para cima para o globo! Ao que parece.
e o vi franzindo a testa e levantando
Atravessei a parede brilhante e — Experimente — disse o viajante,
seu enorme pé em minha direção.
ouvi dentro de mim o último e minús- apontando o queixo para o livro azul
— Veja! - disse o fiscal e o golpe culo grito do zangão enquanto sua na estante. Shalmetz rolou os dedos
esmagador não veio. Todos os olhos forma sólida se derretia nas condi- pela lombada do livro. — Sem cho-
se voltaram para o espaço logo acima ções rarefeitas deste pequeno exem- ques.
do centro do desenho, onde, quan- plar do mundo superior que agora Grolion fez um gesto de pedido.

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grolion de almer y

táquion fc
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Shalmetz, repuxou os lábios em con- insaciável. Ela aumentou visivelmente pelo corredor que levava ao vestíbulo
tragosto, mas entregou o Phandaal. em altura e circunferência, enquanto e à porta de saída. Foi a fenda verti-
— Fique à vontade — convidou. — uma nova complexidade de galhos e cal que rasgara o ar de cima a baixo
Retornarei às atividades na fazenda ramos espinhosos irrompia dos maio- onde o galho alimentador saía deste
de peixes. res. O homem com a faca recuou, plano e entrava no outro. A fissura se
— Devolva-me a faca de esteáqui- enquanto as raízes da árvore se con- abriu de todos os lados ao mesmo
lo — disse o obeso. — Não lhe será torciam e cresciam em harmonia com tempo, partindo rochas e terra com
útil além deste cruzamento sobrena- o resto, quebrando a parede contra a mesma facilidade com que cortava

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tural de planos. a qual ela havia crescido, rasgando o o ar. E através do rasgo surgiu uma
pavimento de pedra em todas as di- figura escura.
— Tem valor como antiguidade —
reções, entornando a fonte e jogan- O viajante ficou parado observan-
disse o homem com cara de raposa.
do os peixes cantantes no ar inóspito do e deixando o saco com a pilha-
Shalmetz olhou pela vidraça. — A onde ofegaram e coaxaram em derra- gem frouxo em suas mãos. Uma coisa
aldeia pode precisar dele para manter deira performance. parecida com um grande focinho bo-
a árvore saciada. Parece ter desenvol-
O homem voltou correndo, tro- judo, rodeado de tentáculos na extre-
vido o gosto pelo esteáquilo. Talvez
peçando em lajes quebradas e des- midade, forçava seu caminho através
até mais que gosto. O espinheiro
viando-se de raízes que brotavam da da abertura, separando-a mais e mais
crescera com mais metade da altura
terra sob os pés. Shalmetz e Groblens à medida que avançava, lançando
desde a manhã e bem mais encorpa-
fugiram da oficina no mesmo instante uma onda de terra e pedras em to-
do. Além disso, tornou-se mais ativo.
em que um novo recém-criado rizo- das as direções. Mais e mais partes
— Vou cortar mais uma porção — ma encontrou a fundação da parece do corpo da criatura apareciam, e
decidiu — para mantê-lo ocupado no lado interno do jardim. Bastou um agora via-se que, no lugar onde teria
enquanto partimos. Aí, isso tudo vira instante para a parede se fender do um queixo, caso tivesse uma cara, o
passado e, portanto, não é mais da chão ao teto. A sala desabou, trazen- galho alimentador do espinheiro se
minha conta. Vocês que façam como do consigo o andar de cima. Quando prendera à carne. Ao redor do local
bem entenderem. Recomendaria usar os destroços assentaram, o orbe ca- onde os espinhos se cravaram, havia
fogo. leidoscópico que continha um fac-sí- estrias de pequenas cicatrizes e três

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Para Shalmetz e Groblens, o pla- mile do mundo superior, que por sua feridas recentes escorrendo sangue
no tinha falhas óbvias, mas antes que vez continha a essência feliz do cons- rosado.
pudessem discutir o assunto, o via- trutor da casa, permanecia ileso, bri- O focinho e seus tentáculos já
jante chegou até a base da planta. lhando através das volutas de poeira. haviam atravessado a brecha. Atrás
E de novo, fez um corte fundo, largo O saco com a pilhagem se encon- dele, o corpo estreitou-se e depois se
e longo, e em instantes outro bloco trava sob uma viga de madeira caída avolumou de novo, exibindo um anel
de esteáquilo caiu diante dos galhos do telhado. O saqueador estendeu de barbatanas semelhantes a mem-
famintos. A árvore se lançou sobre o a mão para pegá-lo e descobriu que bros em toda a sua volta que golpe-
novo alimento com uma avidez que, estava preso com firmeza. Ele se di- avam o ar, impulsionando a criatura
demonstrada por uma forma de vida rigiu a uma extremidade da viga e, à para frente. Ele não exibia olhos, mas
vegetal, é sempre uma visão preocu- custa de grande esforço, conseguiu seus tentáculos, quatro grandes e
pante. levantar e deslocar o peso para o mais de uma dúzia de menores, ta-
Mas a nota ainda mais bizarra de lado. Mas ao se abaixar e pegar seu teavam em direção à árvore como se
seu comportamento ocorreu enquan- prêmio, ouviu o grito vacilante de pudessem sentir sua presença.
to seus túbulos menores se fixavam medo e consternação de Shalmetz. Então, dois dos maiores membros
no bife de esteáquilo. O galho ali- O homem se levantou e se virou do esteáquilo agarraram o galho de
mentador principal, agora tão gros- na direção do olhar do outro. Ele alimentação e, com um ruído audível
so quanto o corpo de um homem, viu o espinheiro, agora ainda maior, de carne rasgada, separaram-no de
disparou no ar em direção à fenda pairando sobre o jardim devastado, sua face. Líquidos corporais rosados
de onde veio a carne rosada, e que agitando-se como uma nuvem de jorraram da ferida profunda deixada
voltava a se estreitar. Antes que a tempestade descendo à terra. Seu para trás, e uma das protuberâncias
abertura pudesse fechar-se, o galho alimentador principal, agora grande menores se curvou para colocar sua
com dentes espinhosos atravessou-a, o suficiente para engolir um cavalo, extremidade achatada em forma de
desaparecendo lá dentro. E acertou, continuava a sorver grandes bocados folha sobre a lesão.
pois não demorou para o tubo come- de esteáquilo além desse plano. Uma Quando o alimentador se soltou,
çar a bombear e engolir, passando nota grave constante vibrava no ar e
a árvore emitiu rugidos baixos se-
volumes cada vez maiores ao longo o chão tremia incessantemente en- melhantes a um concerto de órgão
do tubo sugador como se uma gran- quanto as raízes tomavam conta do de tubos. O alimentador principal se
de serpente estivesse a ingerir uma lugar, cada vez mais. contorcia nas “mãos” do esteáqui-
ninhada interminável de leitões.
Mas não foi a planta que assustou lo e cada trepadeira, galho e túbulo
Um ronco profundo veio da plan- Shalmetz ou que agora fez com que do espinheiro-bravo se espichava e
ta, um som misto de satisfação e gula ele e o fiscal se virassem e fugissem chicoteava em direção à fonte combi-

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nada de nutrição e ameaça. O animal quebraram e suas pontas agitaram-se superior, que flutuava imperturbado
enfrentou o ataque com igual vigor, e no ar como chicotes e porretes. Uma pela violência praticada ao seu redor.
agora uma espécie de boca apareceu delas desferiu um golpe forte em sua Parou em frente ao globo. Sua cara
no centro do anel de tentáculos, de coxa que lhe tirou o equilíbrio e, ao sem olhos parecia observar o jogo ca-
onde saiu um silvo como o de um gê- se virar, outra, da grossura de seu po- leidoscópico de cores que se movia
iser cuja pressão não era liberada há legar, atingiu o pulso. constantemente por sua superfície.
anos, seguido por uma língua longa O impacto entorpeceu a mão que Um de seus tentáculos menores es-
e grossa corrugada de ganchos ras- segurava o saco que caiu entre duas tendeu-se e acariciou o objeto, mas
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padores e dentes serrilhados triangu- raízes e, embora temesse que o bra- pausou, como se decidisse se apro-
lares. ço pudesse ficar preso se os dois se vava ou não seu sabor, depois enro-
Os tentáculos trouxeram o espi- juntassem, ele tentou pegar o saque. lou-se em torno dele e o levou inteiro
nheiro para o esteáquilo, ao mesmo Mas quando tocou no pano, o chão até a bocarra.
tempo que a árvore envolvia seu do jardim desabou sobre a cripta A criatura fechou a boca e dirigiu-
agressor em um aperto de vegetação abaixo, levando consigo o saco e dei- -se para a fenda na membrana entre
espinhosa. O viajante ouviu estalos e xando o homem cambaleando à bei- as dimensões e em menos tempo do
tapas, rugidos e gemidos, assobios e ra do buraco. que o homem que se autodenomina-
sons indefiníveis. Sentiu o chão tre- Ele se jogou para trás e, ignorando va Grolion teria acreditado, atraves-
mer novamente quando o ímpeto do os golpes cortantes e violentos que sou-a e desapareceu. O ar acabou
bicho arrancou do chão as raízes re- vinham de todos os lados, se virou e por se limpar e somente a devastação
cém-crescidas do espinheiro. desembestou pelo corredor que o le- fumegante da árvore e do jardim des-
Hora de ir, disse a si mesmo e vi- varia para fora. Voltarei para pegar a truído indicava que algo havia acon-
rou-se para o caminho pelo qual os bolsa, prometeu para si. tecido ali.
outros haviam fugido. Mas ele se viu Atrás dele, o restante do esteá- O homem assistiu a esse ato fi-
no meio de uma massa de raízes que quilo emergiu do espaço entre as nal a uma certa distância, do topo
se contorcia com fervor, emergindo dimensões: uma cauda segmentada de uma colina onde encontrou Shal-
da terra em meio a rajadas de torrões que terminava num par de alicates metz e Groblens. Este último estava
e seixos voadores que o picavam e afiados. Estes posicionaram-se agora muito sem fôlego com a combinação
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machucavam. Embora pisasse com à frente da criatura em seu ataque ao de fuga desenfreada e a saudade de
cuidado, era impossível encontrar espinheiro, e seu reforço revelou-se tortas de beebleberry. Ainda assim, o
chão firme; todo o solo do jardim decisivo. Embora os galhos espinho- outro o cumprimentou: — Bem, Gro-
se movimentava com violência cons- sos da árvore continuassem a bater lion, caso este seja uma aproximação
tante. Pior ainda, algumas raízes se e rasgar a pele do esteáquilo, levan- segura do seu nome, você realmen-
tando jatos de icor rosa e arrancando te submeteu a situação a uma nova
fatias de carne, a batalha desigual abordagem.
caminhava para uma conclusão. Os O viajante não estava disposto a
tentáculos e as pinças arrancaram os ouvir críticas, e respondeu proferindo
galhos da árvore e separaram as ra- um tapa que fez Shalmetz ir ao chão,
ízes do caule, jogando os restos no de onde calou sua opinião. Passado
buraco onde a cripta existira. Os rugi- um tempo, ele e Groblens retornaram
dos do espinheiro se transformaram à aldeia. O outro homem esperou até
em gritos que se transformaram em que as chamas sobrenaturais dimi-
gemidos. nuíssem. Ao anoitecer, quando tudo
E, de repente, terminou. O animal acalmara, ele voltou para a mansão.
rasgou, cortou e quebrou a grande ár- A residência desabara. O buraco
vore em pedaços, enchendo o buraco onde a cripta estivera exalava um fe-
na terra com eles. Por fim, com visível dor de queimado. Do saco e de seu
desprezo, arqueou a cauda e, de um conteúdo, ele não encontrou nenhum
orifício abaixo daquele apêndice, diri- vestígio. O único objeto deixado ileso
giu um jato de líquido vermelho para foi o esquife de chumbo, cujas runas
os destroços. A madeira e a vegeta- e símbolos gravados o protegeram
ção explodiram de pronto em chamas de alguma forma do fogo do outro
de cores estranhas, e uma coluna de mundo. Nem mesmo estava morno.
fumaça oleosa subiu ao céu. O homem usou cordas e roldanas
O esteáquilo, sabe-se lá como, para retirar o objeto do buraco. No
agora voava e pairou ao redor da mesmo anexo que abrigava o equi-
fogueira, observando-a de vários ân- pamento, ele encontrou uma carroça
gulos. Sua rota o levou para perto do de duas rodas. Baixou o ataúde sobre
microcosmo multicolorido do mundo o veículo e empurrou-o para longe

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do fedor de rescaldo. Admirou os Nem sequer um anel de polegar ou do. Ainda assim, pressupôs que iria
emblemas e selos que decoravam as um bracelete de marfim para recom- se lembrar da maioria deles. Decidiu
laterais e o tampo, acreditando em pensar pelo trabalho. Praguejou alto que, pela manhã, faria novos entalhes
seus efeitos poderosos. e lançou os restos de morte em uma no chumbo e depois cortaria o metal
Depois de rolar o carrinho para a vala à beira da estrada. macio em medalhas e amuletos. Po-
estrada, colocou os dedos na tampa Só lhe restara o esquife mesmo. dendo assim vendê-los na Feira de
do esquife e o soltou. Esperava por Poderia ser útil, mesmo que só pe- Azenomei. E, quem sabe, que possi-
joias ou metais preciosos, contudo, las inscrições gravadas nele. Mas aí, bilidades surgiriam?

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encontrou apenas carne em rápi- notou que, com a remoção do conte-
da decomposição e ossos húmidos. údo, os selos e caracteres iam sumin-

Matthew Hughes é escritor canadense que escreve fantasia, space ope-


ra e ficção policial. Vendeu 24 romances para editoras grandes e peque-
nas no Reino Unido, EUA e Canadá, além de quase 100 obras de ficção
curta para mercados profissionais. Ele ganhou os prêmios Endeavour
e Arthur Ellis, e foi indicado para os prêmios Aurora, Nebula, Philip K.
Dick, Endeavour, A.E. Van Vogt, Neffy e Derringer. Foi incluído no Hall
da Fama da Associação Canadense de Ficção Científica e Fantasia.

https://en.wikipedia.org/wiki/Matt_Hughes_(writer)

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