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táquion fc
Frequências
abertas
v[03]
Tomo a liberdade de iniciar este Edito- participar. guindo.
rial com a citação de uma frase do amigo Aliás, podem conferir em nosso site Aproveitamos este momento para,
e colega Gilson Cunha, também ele da que o Táquion 6 será temático, somente com imensa satisfação, parabenizar
equipe desta revista eletrônica: “não sou com fanfics homenageando e honrando os ganhadores do Primeiro Prêmio
onda, sou partícula”. nosso Bom Doutor! Táquion FC:
A frase faz alusão à dualidade onda- Tanto o Clube Brasileiro de Ficção
-partícula da Física. E, claro, às famosas Científica quanto a revista eletrônica 1o Lugar: Bertoldo Schneider Jr. (O
ondas da Ficção Científica Brasileira. On- Táquion FC foram criados para con- homem eterificado);
das que, infelizmente, chegam e depois gregar leitores, escritores e fãs da ficção
vão embora. científica, da fantasia, do terror e de todos 2o Lugar: Pedro Coppola (A dança
Isso não é o que pretendemos. Que- os subgêneros derivados, sem qualquer da transfiguração);
remos fazer a diferença, trabalhar pela tipo de discriminação. Nossas únicas
promoção de autores brasileiros de ficção exigências são o respeito a todos e o foco 3o Lugar: Rubem Cabral (Felicidade
especulativa e literatura fantástica, pela no que importa: boas histórias com bons PlusTM).
ampliação do mercado e também e acima personagens. Tem uma história na qual
tripulação
marcelo bighetti renato a. azevedo
COORDENADOR EDITOR CHEFE
a bordo
bertoldo schneider jr. / christian stadler / cinthia matos
daniel vasconcelos gomes / davi m gozales / gilson luis da cunha
joão maselli gouvêa / marcelo bighetti / marcelo henrique pereira
marcelo luiz dias / matthew hughes / nicolas oliver
pedro coppola / ralph luiz solera / raquel cruz
ricardo azevedo / rubem cabral / sotrati / vilto reis
4
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Voluntários
A revista TÁQUION FC é fruto do trabalho voluntário de uma galera que quer levar
boa literatura a todos. Por enquanto somos poucos, mas estamos aqui fazendo
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registro de conteúdo
p. 104- sotrati
DIACONISA
ILUSTRADOR
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LONGEVIDADE NARRATIVA...
FUNDADORES
daniel gomes
flávio medeiros jr
marcelo bighetti
rafael lima
renato a. azevedo
ricardo herdy
créditos da missão
Táquion FC — Edição 3, janeiro de 2024
Coordenador: Marcelo Bighetti
Editor responsável: Renato A. Azevedo
Equipe editorial: Daniel Gomes, Flávio Medeiros Jr., Gilson Luis da Cunha, Ricardo Herdy.
Ilustração da capa: Sword Speed
Layout da capa e diagramação: Marcelo Bighetti
As imagens desta edição, exceto as das resenhas (que pertencem aos respectivos produtores) e do conto Grolion (ima-
gem fornecida pelo autor), foram tiradas do site freepik.com na versão gratuita.
Autores
Bertoldo Schneider Jr.
Christian Stadler
Cinthia Matos (Nerdices Board Game)
Davi M. Gozales
Gilson Luis da Cunha
João Maselli Gouvêa
Marcelo Bighetti
Marcelo Henrique Pereira
Marcelo Luiz Dias
Matthew Hughes
Nicolas Oliver
Pedro Coppola
Ralph Luiz Solera
Raquel Cruz (Bora Jogá)
Rubem Cabral
Sotrati
Vilto Reis
taquionfc.com.br
_E,n,T,r,E,v,I,s,T,a_
sword ilustrador
táquion fc
speed
bate-papo
sword speed
táquion fc
bate-papo táquion fc
O ilustrador Sword Speed, gentilmente cedeu uma de suas ilustrações para ser usada como capa na
terceira edição do Táquion FC. Agradecemos a ele e convidamos todos a darem uma olhada em seu
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portfólio no Instagram @swordspeed. Abaixo nosso bate-papo com ele.
Quais são as ferramentas e softwares que você utiliza para criar suas
obras digitais? Existe algum programa específico que você considera
essencial para o seu trabalho?
MISSãO jAn 2024
táquion fc
Quais são os temas e conceitos que mais inspiram suas obras digitais?
Existe alguma mensagem ou história específica que você tenta trans-
mitir através de seu trabalho?
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Minhas obras digitais frequentemente são inspiradas pela vida cotidia-
na e conceitos abstratos. Busco transmitir histórias ou mensagens que
ressoem em um nível pessoal, frequentemente deixando interpreta-
ções abertas para o espectador. Cada peça é uma narrativa, às vezes
clara, às vezes enigmática.
Como é o seu processo criativo ao criar uma nova pintura digital? Você
planeja cada detalhe com antecedência ou prefere uma abordagem
mais espontânea e intuitiva?
Como você lida com o aspecto técnico da pintura digital, como a ma-
nipulação de camadas, texturas e efeitos especiais? Quais são algu-
mas técnicas que você utiliza com frequência?
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táquion fc
Quais conselhos você daria para artistas iniciantes que desejam explo-
rar a pintura digital? Existem recursos, cursos ou comunidades online
que você recomendaria?
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Para aspirantes a artistas digitais, recomendo começar com esboços
tradicionais. O entendimento dos fundamentos de forma, luz e com-
posição é fundamental. Comunidades e cursos online são ótimos para
habilidades técnicas, mas nada substitui a experimentação prática e a
exploração pessoal.
Longevidade
narrativa na
construção de
universos ficcionais
MISSãO jAn 2024
Biólogo, mestre e doutor em genética e biologia molecular pela UFRGS, escritor de ficção científica, autor de “Onde Kombi
Alguma Jamais Esteve” e “A Mulher Que Chora” vencedores, respectivamente, dos prêmios ARGOS 2020 de melhor romance
e melhor conto de ficção científica brasileiros.
P24
artigo
longevidade narrativa
táquion fc
á quem diga que, se o sucesso tivesse uma fór- de vir com um prato extraordinário, é preciso garantir o
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das contas, o próprio “zeitgeist”, seja lá o que for o tal bem o dilema de muitos criadores. A expressão “pular
“espírito da época”. o tubarão” foi cunhada por um crítico de TV americano
Veja o caso de Jornada Nas Estrelas, a série clássica. em 1985 ao se referir a um episódio da quinta tempora-
Mesmo contando com bons roteiros, que incluíam ma- da de Happy Days, sitcom estrelado por Henry Winkley.
terial de escritores como Harlan Ellison, além de uma No episódio, o protagonista, um motoqueiro dos anos
excelente química entre os personagens, foi cancela- 50, espécie de versão cômica de um jovem Marlon Bran-
da após três temporadas. Seu mito foi construído com do em “O Selvagem”, resolve saltar de esqui aquático
as reprises. Foi após anos de sucessivas exibições em sobre um cercado contendo tubarões. Essa foi uma ten-
emissoras locais nos EUA que a popularidade do show tativa de recuperar a audiência da série, que se esvaía
explodiu, deixando, ao menos na época, de ser “coisa aos poucos. Apesar disso, Happy Days continuou a ser
de nicho”. produzida, passando da décima temporada. É possível
Com a literatura a coisa é mais complicada. O bo- dizer que algo parecido aconteceu com “Arquivo X”,
ca-a-boca conta muito. Costumo dizer que Edgar Rice após alguns dos mistérios da série, como o paradeiro
Burroughs não resiste à leitura de livros de física, quí- da irmã de Fox Mulder (David Duchovny) ter sido escla-
mica, biologia e geografia. No caso de Tarzan, a África recido de modo “morno”. Isso não impediu que a série
descrita pelo autor nunca existiu. E jamais existirá, ao também chegasse a uma décima temporada, mas sem a
menos em nosso tempo de vida. Aquilo se parece mais mesma vitalidade das primeiras temporadas.
com a Pandora de AVATAR, com sua fauna exuberante Talvez, como diria o Bardo, “tudo que é bom deva
e matas de proporções épicas. Faz parte do acordo en- chegar a um fim”. Imagine se fôssemos imortais. Que
táquion fc
_R,e,S,e,N,h,A;o,X,i,G,ê,N,i,O_ [marceloBighetti]
“oxigênio”
é um filme francês de sus- cional, deixando-nos com uma sensação de empatia e
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pense dirigido por Alexan- torcendo por seu sucesso. Sua performance é um dos
dre Aja, que foi lançado pontos altos do filme e contribui enormemente para sua
pela Netflix em 2021. Esta obra cinematográfica surpre- eficácia.
endente e envolvente apresenta uma premissa simples, Além da atuação impressionante de Mélanie Laurent,
intrigante e um desempenho estelar de sua protagonis- o roteiro de “Oxigênio” também merece destaque. Es-
ta, pela atriz Mélanie Laurent. Com uma combinação de crito por Christie LeBlanc, o enredo é habilmente es-
claustrofobia, mistério e tensão crescente, “Oxigênio” truturado, revelando gradualmente detalhes sobre a
oferece uma experiência cinematográfica emocionante situação da protagonista e sua história pessoal. O filme
do início ao fim. mantém o espectador constantemente intrigado, à me-
Eu meio que fui fisgado sem querer. Não me lem- dida que mais peças do quebra-cabeça são reveladas.
bro exatamente como comecei a assistir, mas depois Os momentos de revelação são bem cronometrados e
de dois minutos de filme, já estava sofrendo junto com adicionam camadas à trama, mantendo o interesse e o
“Liz”, a protagonista. suspense em alta até o final. Minha única crítica negati-
A história se passa em um futuro próximo, onde a va é que uma das memórias que se repete, pode anteci-
personagem principal acorda dentro de uma câmara par o desfecho para os observadores mais atentos, mas
criogênica, sem memória de quem é ou como foi parar nada que diminua a obra como um todo.
lá. Ela logo descobre que está ficando sem oxigênio e A direção de Alexandre Aja é excelente, criando uma
tem apenas algumas horas para descobrir sua identida- atmosfera tensa e angustiante. Aja usa recursos visuais e
táquion fc
_R,e,S,e,N,h,A;o;E,n,I,g,M,a..._
[ralphLuizSolera]
análise
do filme de 1982, que foi um fra- dáveres) e com os restos queimados de uma criatura
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casso monumental nos cinemas (de difícil de se identificar.
público e crítica), e praticamente Entre o interesse científico inicial e a constatação de
sepultou a carreira mainstream de alto nível de John que a criatura era de origem extraterrena, ainda estava
Carpenter – ainda em seu início – mas que depois do viva e era hostil, os pesquisadores se vêem às voltas
lançamento em home vídeo, foi redescoberto e passou com uma situação de terror absoluto quando percebem
a ser admirado por fãs e críticos e obteve status de cult que pelo menos um deles poderia estar infectado pelo
e, quem diria, obra-prima do sci-fi / terror (para alguns, alienígena e não ser mais quem aparentava.
do cinema em geral).
Depois disso, todos passam a lutar pela vida em um
A costumeira mudança de títulos na tradução do clima de claustrofobia e paranoia como nunca antes vis-
inglês para o português fez o filme sair no Brasil com to no cinema, conduzido de forma magistral por Car-
outro nome, mas dessa vez nem dá pra criticar o resul- penter e embalado pela trilha sonora fantástica dele e
tado, já que o “sem sal” The Thing original (A Coisa) do mestre Ennio Morricone.
virou o bacanudo Enigma de Outro Mundo aqui no Bra-
sil (e isso faz algumas pessoas confundirem-no com o
trash chamado The Stuff (1985), que saiu no Brasil com Origens
o nome A Coisa, e passava frequentemente no SBT…). O clássico de terror sci-fi de 82 era, na visão de Car-
A resenha a seguir contém alguns spoilers. penter, uma refilmagem de O Monstro do Ártico (The
Thing from Another World – 1951), que pode ser encon-
trado facilmente na Internet atualmente.
P31
resenha
táquion fc o enigma de outro mundo
blicado na forma de um conto comprido nas revistas que vinha de bons sucessos B com Halloween (1978) e
literárias da época. O livro completo foi publicado com Fuga de Nova Iorque (Escape from New York – 1981).
o nome original criado por seu autor: Frozen Hell (“In- Para esse segundo projeto, a Universal municiou
ferno Gelado”, em tradução livre). A descoberta do livro Carpenter com uma bela equipe técnica, composto de
completo inclusive resultou em um anúncio da Universal pessoas que já eram bem conceituadas na época, mas
sobre um remake, dessa vez baseado no texto maior. que com o passar dos anos tiveram sua competência
Quanto ao filme de 51, é importante frisar que ele totalmente comprovada em outras obras, posteriores.
dispensou todo o suspense e as questões psicológi- Os destaques ficaram por conta de Dean Cundey e
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cas encontrados no conto, adaptando todo o clima da sua fotografia claustrofóbica e de atmosfera lúgubre;
trama para questões políticas inerentes à Guerra Fria, Rob Bottin e seus efeitos especiais que na época fo-
até por exigência de um de seus acionistas majoritários ram considerados inacreditáveis (e até hoje, décadas
(que infligiu uma verdadeira política anticomunista às depois, ainda são perfeitos); e, claro, o mestre Ennio
obras da produtora RKO na época) sendo portanto um Morricone, que compôs uma trilha sonora fantástica ao
perfeito exemplar da Era McCarthy estadunidense, com lado de Carpenter, na maior prova de que “menos é
sua caça às bruxas relacionada ao comunismo. mais”, entregando uma trilha minimalista ao extremo,
O filme original, apenas mediano (bastante por conta e riquíssima em significado e ambientação. Uma trilha,
do orçamento apertado), não conseguiu muito sucesso como dizem, “de gelar a alma”.
no lançamento, até porque deu azar de concorrer, no Já Carpenter, que chegou embalado por dois suces-
mesmo ano, com um clássico sci-fi, o memorável O Dia sos comerciais, mostrou em Enigma de Outro Mundo
em que a Terra Parou (The Day the Earth Stood Still) que era um diretor muito competente quando tinha ma-
que apesar de conter as mesmas analogias geopolíti- terial técnico e humano de qualidade.
cas, teve uma produção infinitamente mais robusta e de
Com um roteiro e uma produção dignos, tirou o má-
excelência técnica, uma trilha sonora espetacular do ge-
ximo da história, entregando um filme tecnicamente
nial Bernard Herrmann, e cujos resultados em bilheteria
perfeito, a despeito de preferência pessoal ou gênero, o
ajudaram o gênero a conseguir produções cada vez me-
que sempre invoca o gosto amargo do fracasso da épo-
lhores, até que a obra-prima Planeta Proibido (Forbid-
ca do lançamento, e de como isso mudou sua carreira,
den Planet – 1956) foi lançada e tirou a ficção científica
MISSãO jAn 2024
táquion fc
Detalhe para as cenas do acampamento norueguês, todo”, semi-independente e semi-autônomo, de modo
que estão no início do filme, mas que foram na verdade que cada assimilado age “por conta própria”, inclusive
filmadas no fim da produção, quando explodiram os ce- evitando mostrar sua verdadeira natureza mesmo nos
nários reais do acampamento americano, cujos destro- momentos em que enfrentam o monstro, quando um
ços fumegantes foram depois usados para representar assimilado está vendo, na verdade, os humanos comba-
a base europeia. tendo seus pares.
Interessante que bastante material filmado foi depois Assim, o clima na equipe desde a revelação da face
descartado na pós-produção, para acelerar o ritmo do usurpadora do alien é de total desconfiança e paranoia,
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filme na edição do corte final. Esse material era com- onde ninguém confia em ninguém e todos evitam ficar
posto, na maioria, de personagens conversando ou de a sós com outro membro da equipe. E os espectadores,
jumpscares que constavam no roteiro, mas que Car- que também não sabem quem ali é humano ou réplica,
penter depois desistiu de usar para evitar que o filme estão sempre no limite da tensão.
se mostrasse com clichês de terror comuns. Ainda teve Hoje em dia você já viu isso em centenas de outros
cenas previstas no roteiro cortadas sem sequer serem filmes? Sim. Na época isso já tinha sido feito? Não dessa
filmadas, por falta de verba. maneira.
O famoso final teve várias versões diferentes filma- O filme, inclusive, ignora o contexto geopolítico do
das, para que a decisão de qual seria o escolhido pu- longa de 1951 e emula o clima psicologicamente denso
desse ser feita mais tarde (com o aval do estúdio, claro). e sufocante do livro, retratando questões de perda de
Na versão mais pedida pela Universal, MacReady se- individualidade, isolamento social e perda de humani-
ria resgatado e um exame de sangue posterior provaria dade que eram comuns nas expressões artísticas dos
que ele era humano, e testes de audiência mostraram anos 80, pelo contexto social vivido pelos EUA na oca-
que era mais aceito do que o final original pensado por sião.
Carpenter, mas em cima da hora o diretor convenceu a Apesar de muitos analisarem as analogias pelo viés
Universal (bastante a contragosto) a manter seu encer- da AIDS, Carpenter já declarou que não tinha essa in-
ramento dúbio e em aberto, e em contrapartida incluiu tenção quando refinou o roteiro de Bill Lancaster e acer-
um urro no momento da explosão do último alien, a pe- tou os detalhes do enredo.
dido dos produtores, para que pelo menos o público
táquion fc
por diretores como J. J. Abrams, Eli Roth, Quentin Ta- continuaria o filme de 1982 e seria exibido no canal
rantino, Guillermo del Toro e Neill Blomkamp, dentre SyFy, porém o mesmo foi abortado e virou o projeto de
outros. um remake.
E se o fracasso no lançamento fez o filme ser lançado Em 2010, a Morgan Creek adquiriu os direitos para
com um corte alternativo para a TV (com o qual Carpen- esse remake, porém em uma mostra rara de bom senso,
ter não concorda ou aprova) no fim dos anos 80; nos os produtores se sensibilizaram com o status cult do fil-
anos 90, por outro lado, o filme foi lançado em DVD me (e apelos do fandom) e mudaram o projeto, fazendo
com bastante sucesso, de modo que uma nova edição então não uma refilmagem, mas sim uma prequência,
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em HD DVD saiu nos anos 2000, com vários extras. que mostra os acontecimentos da base norueguesa que
Em 2016 o filme saiu em Blu-Ray, com comentários precedem o início do filme de Carpenter.
e documentário sobre a produção, além de entrevistas Lançado em 2011, A Coisa (The Thing) tem um elen-
e featurettes. Em 2017 novo lançamento, dessa vez em co de prestígio, encabeçado por Mary Elizabeth Wins-
4K, com base nos negativos originais do filme, em uma tead, Joel Edgerton e Eric Christian Olsen, e um roteiro
produção que contou com a participação do próprio que respeita o clássico de 1982 e a ele faz reverências,
Carpenter. A trilha sonora teve lançamentos de sucesso porém o resultado foi bastante genérico e mediano, um
em vinil, cassete, CD e EP. filme de terror clichê sem suspense algum, que não ob-
Essa redescoberta propiciou ao filme algumas sequ- teve bons resultados e – desta vez de forma acertada
ências e projetos de remakes e reboots, como podemos – não foi bem considerado sob os aspectos técnicos,
ver a seguir. inclusive por conta de uma direção insossa de Matthi-
js van Heijningen Jr. e efeitos especiais ruins (ironia do
destino: o modernoso CGI tomando uma surra dos efei-
Sequências, remakes e reboots tos práticos de 40 anos atrás).
Depois que o filme foi redescoberto e virou cult, sua Em 2017 foram lançados os jogos de tabuleiro Who
“nova” fama atraiu a atenção não só de fãs, mas de pro- Goes There? (editora Certifiable Games) e The Thing:
dutores de conteúdo de diversas mídias. Os quadrinhos Infection at Outpost 31 (editora Project Raygun), e em
foram os primeiros a se incluir no “Thingverse”, quando 2022 foi lançado The Thing: The Boardgame (lançado
a Dark Horse Comics (famosa por publicar quadrinhos no Brasil pela editora Conclave), que tem uma análise
saw Massacre – 1974). Hooper queria fazer uma sequ- dele – conta com uma sequência inteira que homena-
ência do Monstro do Ártico, na qual um sobrevivente geia o terror de 1982.
da estação partiria em caçada ao alien pelas geleiras – Outro fato curioso sobre o assunto é que Morrico-
antárticas. ne foi indicado ao Framboesa de Ouro por Enigma… e
– O roteiro apresentado era uma comédia de horror ao Oscar por 8 Odiados – pelo qual acabou finalmente
ao estilo do que A Volta dos Mortos-Vivos (The Return recebendo uma estatueta dourada, fato nunca ocorrido
of the Living Dead – 1986) faria anos depois, mas a ideia antes, a despeito de sua carreira brilhante.
foi rechaçada pela cúpula da produção e Carpenter foi – Por fim, nunca é demais lembrar que Enigma de
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chamado para substituir Hooper, que ironicamente aca- Outro mundo foi incorporado à cultura da pesquisa
bou dirigindo Poltergeist – O Fenômeno (Poltergeist científica na Antarctica. Virou tradição em algumas das
– 1982), que foi um tremendo sucesso no mesmo ano estações de pesquisa localizadas no continente gela-
em que Enigma de Outro Mundo naufragou (lembran- do (independente de seus países de origem) que uma
do que há dúvidas até hoje sobre quem dirigiu Polter- sessão do filme seja uma espécie de “cerimônia” que
geist, com direito a investigação da Directors Guild of inaugura o inverno antártico, iniciado em 21 de Junho
America para ver se não foi Spielberg o diretor de fato, e com duração de 6 meses. A tradição se iniciou nos
impedido por contrato de dirigir o filme enquanto E. T. anos 90 na estação americana Amundsen-Scott e não só
era lançado). persiste até hoje como cada vez abrange mais estações.
– A trilha sonora, apesar de creditada ao mestre En-
nio Morricone, tem quase tanta mão de Carpenter nela
Conclusão
quanto dele. Só que o arranjo final saiu mais no estilo
de Carpenter, de modo que muitos – e o próprio Morri- Enigma do Outro Mundo é um filme fantástico, que
cone – consideram que o verdadeiro autor da trilha foi o extrapola o gênero e pode ser facilmente considerado
diretor, até porque grande parte das músicas do mestre um dos melhores longa-metragens já feitos na História
ficou de fora do corte final do filme, que agregou pou- do cinema. Sua influência na cultura pop transpassa as
cas variações de poucas das músicas compostas. telas e justifica toda reverência a ele dedicada, seja pe-
los fãs, seja pelos cineastas e outros artistas que, conti-
– Anos depois, Morricone usou o material descartado
nuamente, referenciam o filme ou demonstram em suas
por Carpenter na trilha do faroeste Os 8 Odiados (The
MISSãO jAn 2024
táquion fc
_R,e,S,e,N,h,A;o;D,i,S,c,O;v,O,a,D,o,R_
[renatoAazevedo]
esse
filme, com título original The Bamboo Sau- de muita tensão as duas equipes decidem cooperar.
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cer (National Telefilm Associates, 1968), foi Afinal chegam à igreja abandonada onde o disco
uma das raras produções de ficção cientí- voador está escondido. Chama a atenção o desenho
fica do final dos anos 1960. Este artigo celebra seus 55 limpo do objeto, trazendo à memória a nave de Klaatu
anos, completados agora em 2023. e Gort em O Dia em que a Terra Parou (1951, confira
Tudo tem início quando o piloto de testes Fred No- em TÁQUION 1). Depois de muitas investigações des-
rwood (John Ericson, 25/09/1936 – 03/05/2020) está cobrem uma forma de entrar na nave.
testando o avião experimental X-109 (na verdade é um Um dos russos tenta fazer o disco decolar com trá-
Lockheed F-104 Starfighter com imagens de arquivo, gicas consequências. Durante o funeral Fred busca se
em serviço na época na USAF, Força Aérea Norte-Ame- aproximar mais de Anna, dizendo que ela não é uma
ricana). Subitamente o piloto observa a aproximação de boa marxista já que rezou pelo falecido. Isso não agrada
um disco voador azul, e então inicia uma série de ma- Zagorsky, que além de proibir qualquer relacionamento
nobras arriscadas para averiguar a natureza do estranho entre eles ainda tenta tomar o controle da expedição.
objeto. Os americanos, obviamente, não permitem, e o impas-
O intruso logo desaparece e, após uma tensa reu- se é deixado de lado quando os chineses chegam.
nião em terra onde naturalmente ninguém acredita em Novamente as duas partes se unem para a intensa
seu depoimento, já que o misterioso objeto não foi luta, enquanto Fred, Anna e Jack Garson (Bob Hastin-
detectado por radar, Norwood é retirado do projeto. gs, 18/04/1925 – 30/06/2014) entram na nave. Eles, os
Furioso, ele se une ao amigo Joe Vetry (William Mims, únicos sobreviventes de suas respectivas equipes, final-
anterior. Ele, infelizmente, não chegou a ver The Bam- agentes governamentais. Os Estados Unidos passavam
boo Saucer. por momentos complicados com a Guerra do Vietnã,
Entre os aspectos pitorescos da produção do e em pouco tempo ainda aconteceriam os escândalos
filme está o envio por parte do produtor Jerry Fairbanks da administração de Richard Nixon. O filme, assim, não
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(01/11/1904 – 21/06/1995) do roteiro para o escritório deixa de ser uma metáfora da perda de inocência, ao
do Secretário de Defesa dos Estados Unidos. Na res- mesmo tempo antecipando uma onda de grandes pro-
posta deste, o produtor foi informado de que a CIA não duções de ficção científica que, uma década depois, re-
deveria ser retratada em uma situação ficcional; a in- vitalizariam o gênero nos cinemas, tais como Star Wars,
vestigação de discos voadores não era factual. O papel Contatos Imediatos do Terceiro Grau, Alien e Jornada
da Força Aérea no teste da aeronave experimental não nas Estrelas: O Filme.
estava claro; e a mesma Força Aérea não deveria ter No complicado mercado audiovisual brasileiro,
qualquer ligação com o voo que levou a equipe a saltar bem que O Disco Voador poderia ser lançado. É uma
de paraquedas sobre território chinês. boa produção de ficção científica, com boas ideias e
O Disco Voador, com seu sabor da clássica realizado em uma época mais simples. Entretenimento
ficção científica dos anos 50, já trazia também a críti- de excelente qualidade. Recomendo.
ca contra a Guerra Fria e uma certa desconfiança nos
MISSãO jAn 2024
P40
</série>
táquion fc
_r,E,s,E,n,H,a;S,i,L,o_ [rubemCabral]
“o silo”
(Silo) é uma série de ficção manga que o colocam acima da média das produções,
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científica do serviço de strea- como o elenco e a direção de arte.
ming Apple+ que estreou em A atriz sueca Rebecca Ferguson é Juliette Nichols,
maio de 2023. E, embora a presente resenha seja em uma engenheira mecânica que vive nas profundezas do
princípio sem spoilers, será necessário discutir aspectos Silo. Ela é a protagonista da série e traz uma atuação
gerais da trama da série. Então, nenhum detalhe im- vigorosa e que convence tanto por sua força quanto por
portante da trama e nenhuma “virada” de roteiro serão suas fragilidades. Sua personagem parece imparável e,
esmiuçados aqui, mas se você prefere assistir a série ab- ao mesmo tempo, muito humana e falha. Não há aque-
solutamente “no escuro”, sugiro parar a leitura nesse la jornada típica do herói, a personagem comete erros,
parágrafo. tropeça nos próprios pés, o que traz veracidade à sua
A série da Apple+ é uma adaptação do conto “Wool” interpretação. A atriz tem estado bastante ocupada em
e de suas sequências, do autor norte-americano Hugh muitos filmes recentemente. Ela é, por exemplo, Jessi-
Howey. ca, a mãe do Paul Atreides no Duna de Denis Villeneu-
“O Silo” retrata a vida de uma comunidade de so- ve. Também está nos elencos de dois filmes da franquia
breviventes de algum grande cataclismo apocalíptico. Missão Impossível. O elenco ainda conta com o ótimo
Cerca de dez mil pessoas vivem numa espécie de tor- ator Chinaza Uche, com seu conflituoso Paul Billings,
re invertida e sem elevadores de cerca de 144 níveis, que sempre se equilibra sobre a lâmina do dever e do
dentro do solo. Não se sabe ao certo o que ocorreu ao fazer o correto. Tim Robbins e Common, esse último um
mundo externo e nem mesmo há quanto tempo exata- vilão frequente em quase todos os filmes em que já o vi,
também têm atuações de destaque.
P43
</mangá>
táquion fc
_R,e,S,e,N,h,A;t,H,e,G,h,o,S,t,I,n,T,h,E,s,H,e,L,l_
[christianStadler]
“num
futuro próximo, bem próximo, em portante notar que, talvez, os únicos comentários que
que redes corporativas espalha- possam causar alguma frustração ao leitor sejam as re-
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ram suas teias de cabos ópticos e comendações de livros indisponíveis em língua portu-
componentes eletrônicos, a ponto de cobrirem as es- guesa ou qualquer outro idioma que não seja o japonês.
trelas do céu... Um futuro informatizado, mas não tan- Vale ressaltar a sugestão do autor para que essas notas
to a ponto de eliminar os conceitos de nação e grupos e comentários sejam lidos separadamente, a fim de não
étnicos…” interromper a experiência de leitura. Além disso, a reco-
Trinta e quatro anos após sua estreia, estamos mais mendação adicional deste resenhista é dividir a leitura
próximos do futuro imaginado por Shirow Masamune em partes, de modo a assimilar o rico conjunto de infor-
do que a maioria poderia ter previsto. No entanto, pa- mações apresentado de maneira mais proveitosa.
radoxalmente, o ano altamente tecnológico de 2029, The Ghost in the Shell é uma obra-prima que trans-
retratado nas páginas deste mangá, agora parece incri- cende as fronteiras do tempo e do espaço, oferecendo
velmente distante de nossa realidade cotidiana. uma experiência de leitura enriquecedora que vai muito
The Ghost in the Shell se revela como uma obra que além da superfície. Ao mergulharmos nas intrincadas
continua a explorar um tema recorrente na ficção cien- teias de cibernética, inteligência artificial e filosofia ha-
tífica desde os seus primórdios: a condição humana. bilmente tecidas pelo autor Shirow Masamune, somos
Embora seja categorizado como um mangá de ação e desafiados a questionar nossa própria humanidade em
investigação policial, a trama permanece profundamen- um mundo cada vez mais permeado pela tecnologia.
te entrelaçada com questões filosóficas fundamentais a A trama episódica, aparentemente centrada em ação
um mundo futurista, tais como “E se as máquinas adqui- e investigação policial, serve como uma moldura para
rirem consciência?” ou “Se a mente pode ser replicada explorar questões profundas sobre a natureza da cons-
uma coletânea de quatro histórias, e “Ghost in the pintura a óleo na Universidade de Artes de Osaka. An-
Shell 2: Man-Machine Interface,” ambas serializadas tes de criar The Ghost in the Shell, que posteriormente
na Weekly Young Magazine, também da Kodansha. To- seria adaptado para várias mídias, Shirow já havia lança-
das essas obras foram lançadas no Brasil pela Editora do best-sellers como “Appleseed” e “Dominion.” Aos
JBC, mantendo o padrão de qualidade com sobreca- 61 anos, ele continua ativo na criação de novas obras,
v[03]
pas, papel de alta qualidade e páginas coloridas. Isso demonstrando sua dedicação contínua ao mundo da
proporcionou aos leitores brasileiros a oportunidade de arte e da ficção especulativa.
apreciar a série em toda a sua riqueza e profundidade, Para concluir esta resenha, deixo uma pergunta intri-
tornando-a acessível a uma audiência ainda maior. gante no ar: Será que o mech Tokki, usado pela perso-
Masamune Shirow, cujo nome verdadeiro é Masanori nagem D.Va/Hana Song nos jogos Overwatch 1 e 2, foi
Ota, é um mangaká nascido em Kobe, em 1961. Ele de- inspirado nos fuchikomas?
senvolveu seu interesse pelo mangá enquanto estudava
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</jogo pc>
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_R,e,S,e,N,h,A;m,A,s,T,e,R;o,F;o,R,i,O,n_ [nicolasOliver]
minha
primeira experiência com maravilhosas, a exemplo do cuidado com a ecologia.
Master of Orion foi há alguns Ele possuía diferentes tipos de planetas a serem coloni-
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anos, quando, quebrado zados, alguns com mais minerais, outros intermediários,
como sempre, procurava jogos gratuitos na internet. e outros com uma natureza mais abundante. Os plane-
Achei uma alternativa que não era pirataria: um site de tas com mais minerais possibilitavam uma indústria mais
jogos abandonware, cujos direitos tinham sido há muito próspera, e os com boa natureza permitiam a popula-
tempo deixados para trás para suas produtoras. Achei ção se multiplicar mais.
joias maravilhosas em meio a eles, inclusive o primei- Quanto mais indústrias você tem, mais créditos você
ro Master of Orion. Esse jogo foi um dos primeiros 4X, teria para construir seu Império, mas a elas gera polui-
surgindo na época de Civilization e Sid Meier´s Pirates, ção que afeta negativamente a população, que admi-
que também tive oportunidade de jogar. Ele rodava nistra as indústrias. Você tem que manter em cada pla-
num emulador Dosbox, que o site também tinha para neta um equilíbrio entre produção industrial e cuidados
baixar. Cada seção de jogo era única. Você definia os ecológicos para possibilitar que sua população e indús-
parâmetros de uma galáxia, quantas raças haveria nela, tria cresçam ao mesmo tempo. Deixar essa relação de-
e então o jogo gerava um cenário de acordo com isso, sequilibrada ao ponto de se gerar poluição quase nun-
que variava ainda mais graças a eventos aleatórios que ca compensa. Quando pesquisas são realizadas, você
davam ainda mais sabor ao jogo. pode investir em terraformação que aprimora os biomas
Cada raça tinha características próprias, como talen- de cada planeta, ao ponto de transformar desertos ra-
to para a espionagem, diplomacia no caso dos huma- dioativos em florestas verdejantes com o tempo.
nos, habilidade com naves, maior fertilidade, etc. O que É maravilhoso ver cada planeta evoluindo a ponto
tornava o jogo meio quebrado era que ter avanços nas de poder receber sua população máxima, cheio de in-
táquion fc
_R,e,S,e,N,h,A;e,C,l,i,P,s,E_ [raquelCruz.DO.boraJogá]
batalhas
espaciais, exploração outras civilizações estão fazendo, isso fará a diferença.
do universo e naves COMO JOGAR
superpoderosas. Nes-
Cada jogador escolhe uma facção diferente com po-
ta edição, falaremos de Eclipse – O Segundo Despertar
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deres e setups diferenciados (no caso dos alienígenas)
da Galáxia.
ou pode escolher os humanos que têm poderes iguais.
A mais recente versão de um dos mais famosos jogos
O jogo é dividido em quatro fases: ações, combate,
sci-fi 4X – eXplorar, eXpandir, eXtrair, eXterminar – de
manutenção e limpeza. Na primeira fase, os jogadores
todos os tempos, coloca você no controle de uma vas-
se alternam realizando uma das seis ações por vez (ex-
ta civilização interestelar que compete pela supremacia
plorar, pesquisar, atualizar, construir, mover e influenciar)
com suas rivais. Ela inclui melhorias nas regras, compo-
até que todos tenham passado sua vez. Na segunda
nentes de altíssima qualidade e proporciona uma expe-
fase, caso haja naves inimigas ocupando o mesmo siste-
riência de jogo incrível para fãs de board games.
ma, é a hora do combate. Depois, passa para a fase de
A HISTÓRIA POR TRÁS DO JOGO manutenção, onde pagamos os custos de manutenção
A galáxia está em paz há muitos anos. Após a brutal da nossa civilização e recebemos recursos que produ-
Guerra Terrano-Orionesa (30.027–33.364), as principais zimos. Logo depois, vamos para a última fase para nos
espécies exploradoras do espaço fizeram um grande prepararmos para o próximo turno.
esforço para impedir que a tragédia se repetisse. For- O tabuleiro do jogador funciona como se fosse um
mou-se, então, o Conselho Galáctico para impor a paz centro de comando da civilização. É por ele que faze-
tão cara e ele vem tomando medidas extremamente co- mos as nossas ações, acompanhamos a atualização das
rajosas para evitar a escalada das transgressões. nossas tecnologias e os upgrades que são feitos em
Mesmo assim, aumenta-se a tensão e a discórdia, nossas naves para deixá-las mais fortes. Além disso, tem
tanto entre as sete maiores espécies, quanto no seio do um outro tabuleiro adicional para acompanhar a evo-
táquion fc
_R,e,S,e,N,h,A;t,H,e;T,h,I,n,G_ [ralphLuizSolera]
análise
do jogo de tabuleiro mo- para PC, Playstation e X-Box, chamado The Thing, da
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derno, publicado no Brasil Computer Artworks / Black Label Games, que continua
pela Conclave Editora, para os eventos do filme de 1982.
1 a 8 jogadores, que traz para a mesa uma ambientação E o filme já havia sido emulado nos tabuleiros em
perfeita do filme Enigma de Outro Mundo (The Thing – 2017, quando foram lançados Who Goes There? (edito-
1982) de John Carpenter, um dos melhores – senão o ra Certifiable Games) e The Thing: Infection at Outpost
melhor – filmes de ficção científica e terror já feitos para 31 (editora Project Raygun). Os dois são considerados
o cinema. bons jogos de tabuleiro modernos, que também conse-
guem captar o clima de tensão e suspeita do longa de
Ficha 1982, porém The Thing: The Boardgame é o mais com-
pleto nessas questões, replicando com mais sucesso
Lançamento: 2022
todos os elementos de suspeita, contágio, assimilação,
Editora original: Pendragon testes e confrontos do filme.
Editora nacional: Conclave
Jogadores: 1 a 8 Sobre o jogo
Idade recomendada: 14+ Lançado com bela produção aqui no Brasil pela Con-
Duração da partida: 120 minutos clave Editora, The Thing: The Boardgame possui um
Criadores: Andrea Crespi e Giuseppe Cicero tabuleiro principal de alta qualidade que reproduz a es-
tação de pesquisa americana, chamada de Outpost 31
Mecânicas preponderantes: Cooperação, papéis ocul-
no livro que deu origem ao filme de 1951 (no longa de
estão infectados pela coisa. e as rotinas de movimentação dos cães pela base, além
da mecânica de mudança (ou não) do líder.
Os participantes pegam antes do início da partida
um token cada, que indica se eles são humanos ou o As rodadas se sucedem até que um dos grupos (hu-
alien (mas ninguém sabe o que o outro tirou, assim os manos e aliens) tenha atingido seu objetivo, encerrando
papéis ficam ocultos inicialmente). a partida.
Os humanos têm como objetivo escapar da base por
um dos três meios de fuga disponíveis para vencerem a Jogabilidade
partida, porém os aliens vencem se um deles conseguir Desde o início os personagens precisam tomar deci-
acompanhar os humanos na fuga, ou então se um dos sões quanto à manutenção da base e a movimentação
humanos for deixado na base após a fuga. e ações a serem realizadas, porque ambos os pontos
Além dessas duas possibilidades, os aliens ainda estão interligados.
vencem também se conseguirem congelar a base (ma- Se por um lado muitas tarefas são realizadas de
tando todos nela) ou se conseguirem assimilar todos os modo mais eficiente se feitas em conjunto, por outro,
humanos do jogo. andar em pares ou trios aumenta as chances de infec-
No começo de cada rodada, o líder verifica as con- ção, já que um dos companheiros pode secretamente
dições climáticas e procede o uso de combustível ne- ser um alien ocultando sua verdadeira natureza.
cessário para funcionamento do gerador e da caldeira Assim, o dilema acompanha a todos sempre que
(além avançar o voo do helicóptero de resgate, caso ele
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táquion fc
vendo a fuga, que depende do meio escolhido e da O jogo consegue realmente ser redondinho, de
trilha de suspeita de cada personagem… não é fácil modo que tudo está muito bem encaixado e atende ao
gerenciar esses elementos quando decidir se é a hora andamento da partida. As mecânicas de obtenção de
de tentar fugir ou não, sob intensa pressão de todos os itens e seu uso, bem como tudo atrelado às cartas de
demais. ação para uso, reparo ou sabotagem, estão perfeitas e
Sensacional! funcionam em favor do tema.
Pontos fracos
v[03]
Regras
Apesar de ter muitas regras, e muitos detalhes, nada Em um jogo praticamente perfeito, podemos elencar
é muito complicado. Deste modo, uma vez entendido o como ponto fraco a ausência das miniaturas dos per-
funcionamento do jogo, as regras são assimiladas facil- sonagens, que precisam ser compradas separadamente
mente e tudo flui bem fácil durante a partida. (e são bem caras), porém é importante ressaltar que os
stands padrão do jogo possuem função ativa na joga-
Alguns pontos são omissos no manual, porém a ló-
bilidade da partida o que, portanto, justifica seu uso ao
gica dá uma pista de como resolver a dúvida, já que as
invés das minis (que são, obviamente, muito mais legais
mecânicas são sim bastante coerentes e lógicas por si
visualmente).
só. E para os casos em que não se chega a uma defini-
ção sobre o que fazer, os fóruns da Ludopedia esclare- Quanto à jogabilidade em si, o único ponto que me-
cem a maioria dos pontos. receria crítica em The Thing: The Boardgame é o poder
bruto do alien, que dependendo de quantos jogadores
forem expostos ou de quantas assimilações ocorrerem
Pontos fortes no decorrer da partida, pode tornar a coisa virtualmente
Sem dúvida o jogo foi muito bem-sucedido na ques- “invencível”, mas depois de algumas partidas é notório
tão temática, conseguindo transpor para a partida o cli- que existem meios diversos dos humanos equilibrarem
ma de paranoia e tensão vistos no filme. Ainda que a jo- a balança, mesmo contra um alien muito forte.
gatina comece com apenas um personagem infectado, Ou seja, como dá para perceber, o jogo praticamen-
isso basta para que desde o início ninguém confie em te não tem defeitos.
táquion fc
_R,e,S,e,N,h,A;p,A,n,D,e,M,i,C..._
[cinthiaMatos.DO.nerdicesBoardGames]
seres
do mal antigo, conhecidos como No jogo só há uma forma de vencer e várias formas
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Old Ones, estão ameaçando sair de derrota: se acabarem as miniaturas de cultistas, se
da sua prisão cósmica e despertar todos os personagens ficarem insanos, se acabarem as
para o mundo, fazendo tudo ser destruído pelo caos e cartas e claro, se o grande Cthulhu aparecer.
loucura. Esse é o contexto de Pandemic: O Reino de Além da temática ser bem explorada e chamativa, a
Cthulhu, da editora Galápagos, um jogo do sistema arte é um dos pontos mais altos do jogo. O tabuleiro
Pandemic, ambientado no universo de HP Lovecraft. é belíssimo, as cartas de altíssima qualidade, além de
Pandemic: O Reino de Cthulhu é uma versão do jogo miniaturas que brilham os olhos.
clássico que ao invés de tratar “doenças” ou “pande- Com um tempo de partida de aproximadamente
mias” espalhadas pelo mundo, você terá que enfrentar 40 minutos, Pandemic: O Reino de Cthulhu é um jogo
os Antigos, criaturas malignas que estão ameaçando o cheio de possibilidades, aventuras, escolhas cuidadosas
mundo com seus poderes únicos e malignos. e momentos de tensão, além de ser totalmente imersivo
Nesse jogo, você joga de forma cooperativa, ou seja, e desafiador. Um jogo que agrada jogadores experien-
você não está competindo para ganhar, mas trabalhan- tes no hobby dos jogos de tabuleiro, aqueles jogadores
do em equipe para derrotar o tabuleiro. Seu objetivo iniciantes e claro aqueles que amam o universo de HP
é fechar os quatro portais para impedir a entrada dos Lovecraft.
Antigos. Parece fácil, mas é bem desafiador, já que você
vai lidar com várias ameaças: a entrada de cultistas, a Ficha técnica
aparição de Shoggoths, o despertar de forças do mal, e
Autores: Matt Leacock, Chuck D.Yager
ainda correr contra o tempo em seus turnos, torcendo
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_C,o,N,t,O,s_
_B,e,R,t,O,l,D,o;S,c,H,n,E,i,D,e,R;jR_
o H o M e M eTe R e F i C a D o
conto
táquion fc
O HOMEM ETERIFICADO
PRÊMIO TÁQUION FC
BERTOLDO SCHNEIDER JR.
Primeiro colocado
edição janeiro de 2024
v[03]
V
ocê já viu uma estrela es- tiva de Kardachev para nossa civili- ceria foi frutífera.
cura? Um magnetar de zação. Ou, pelo menos, outra escala Então, o problema a ser resolvido
muito perto, sem se des- deveria ser criada. era: como poderíamos ir mais rápido?
pedaçar com seu maravilhoso poder Para registro, aconteceu num tem- Em certo momento, surgiu em uma
destrutivo? Já viu a flor gigante de po em que o Homem já havia con- máquina pensante a ideia de eterifi-
Scopolion, que nasce em pleno vá- quistado sua própria galáxia e poucas car o homem. Não a ideia em si, que
cuo e floresce só por dois dias-pa- das mais próximas, com suas eficien- é algo muito antigo, mas a ideia total,
drão? Já sentiu a dor de exterminar tes Estradas Galácticas. Ia-se de uma contendo o “como” e o “quando”.
uma espécie pensante pela simples ponta a outra da Via Láctea em pou- Era simples, em essência. Se o ser
tentativa de se comunicar com ela? co mais de um mês, e até as galáxias humano pudesse ser transformado
Ou o regozijo de salvar um planeta vizinhas de Magalhães em não muito em algo diferente das coisas que se
adiando a destruição de sua estrela? mais que isso. Apesar dessas facili- desgastam com o tempo ou sofrem
E tudo isso tendo nascido só um ho- dades, a Humanidade não estava sa- com a ação de campos e forças, po-
mem num distrito caipira de um dos tisfeita. Queria algo mais rápido. Era deria ir, de fato, para qualquer lugar
milhares de planetas habitados por uma época de expansão e de grande que quisesse, sem muitas limitações
humanos na galáxia? enriquecimento para todos os mun- de locomoção e sustentação de vida.
tadora. Escrevo esse relato modulan- foi resolvido da seguinte maneira: Ao precisasse executar algo prático, to-
do diretamente a fina portadora que invés de se locomover pelas Estradas maria remota ou localmente um ava-
produzo durante minha jornada, meu Galácticas à velocidades relativas de tar de minha preferência para tanto,
rastro. vários milhares de vezes a velocida- ou construiria algo, manipulando de
Quando visto retrospectivamente, de da luz, dentro de naves construí- spinors a partículas. Assim, eu podia
tanto Homem quanto Máquina sem- das para isto, poder-se-ia viajar muito explorar qualquer tipo de planeta,
pre foram capazes de errar, principal- mais rápido, milhões de vezes mais imitar qualquer tecnologia, aguentar
mente em assuntos decisórios. Um rápido, na forma etérea criada pela qualquer condição externa. Podia
v[03]
efeito digno de nota é que o fato de rede entrelaçada de máquinas – o manipular a matéria para construir
sermos praticamente indestrutíveis, Coletivo – exatamente como as co- coisas para interagir com o mundo fí-
eu e elas, gera em nós um desinte- municações já o faziam. Simplesmen- sico, fazer um corpo sintético e viver
resse por poder. O fato de podermos te porque não era uma viagem na for- outra vida em um planeta hostil, ser
nos espalhar por um grande volume ma material. O pensamento coletivo uma cientista, por exemplo, que es-
e de escolher se interagimos ou não das máquinas, então, primeiro desco- tuda ambientes esquisitos, qualquer
com o que nos cerca, tira-nos a ne- briu como desbarionizar o corpo hu- coisa. O homem já não estava mais
cessidade de ter. Ocorreu com as mano, mantendo as capacidades de restrito à matéria ou a campos e for-
Máquinas, com a Inteligência Artificial pensar e sentir. Do mesmo modo que ças. Pelo menos eu, o protótipo.
em todas suas manifestações e agora, médicos descelularizavam corações As máquinas inventaram as
comigo. Depois que elas começaram de porco no século XXI para usarem o subpartículas etéreas, capazes de
a projetar e gerar mais cópias e varia- scaffold remanescente, recelularizan- entrelaçamento, mas transparentes a
ções de si mesmas e se espalharem do-o com as próprias células do pa- quaisquer formas de detecção. Nem
pelas galáxias, concluíram que sua ciente a ser implantado, minimizan- bárions, nem léptons e nem fótons.
existência não corria riscos. Não era do assim a rejeição. Só que não me Eu era feito de nada! E, mesmo as-
possível interferir ou guerrear com “recelularizaram” com nada. Depois sim, era!
máquinas espalhadas por tantos pla- disso, o Coletivo retirou os léptons
O imenso zoológico de partículas,
netas, e que se comunicavam instan- e antiléptons e o que sobrou, com
formas ondulantes, interações hipe-
taneamente pela Rede Entrelaçada os devidos arranjos feitos, ainda era
respaço-temporais e obscuridades
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conto
o homem eterificado
táquion fc
bErToLdO sChNeIdEr Jr
A eterificação era algo que não cabia suas velhas sensações conhecidas, e encontrei evidência e nem senti a
na mente humana. Não havia um úni- outras tantas adquiridas pelo cami- presença de nada. Muitos meses-
co ser humano, normal ou melhora- nho, é que pisaria outros mundos. -padrão de busca. Então, as Estradas
do, capaz de entendê-la por comple- Uma nova era seria criada. Rapi- acabaram e tive que me adaptar. Eu
to. Era coisa para máquinas. Imensas damente, notou-se que só o Humano teria que construir meus próprios ca-
máquinas entrelaçadas através de poderia ser eterificado com sucesso. minhos. Muitas dezenas de galáxias
milhares de planetas e que formavam Suas máquinas, por mais que o supe- satélites da Via Láctea ainda estavam
não uma, mas múltiplas entidades rassem em força, velocidade, ou po- inacessíveis. Seria improvável que ela
v[03]
pensantes que, por incrível que pa- tência, tiveram que aceitar sua coad- tivesse deixado o Grupo Local. Des-
reça, jamais quiseram competir com juvância ou, no mínimo, seu papel de cobri como viajar de um modo que
o homem. Essa é uma boa história, eternos parceiros no mundo humano. só um etéreo poderia. Sem Estradas.
mas vou pular essa parte. Devemos Resolveram esperar os resultados de Agora sei como criar vínculos tem-
muito à simplicidade lógica do reco- minha missão para criar outros iguais porários ou permanentes através da
nhecimento. As máquinas se torna- a mim. sobremodulação dos spinors e usar
ram mais humanas do que jamais os isso para me transportar instantane-
Nessa nova forma, escolhi o nome
humanos poderiam ser. amente para outro lugar para o qual
de Gabriel, o primeiro emissário ou
E criaram a eterificação do ho- aquele bóson ou férmion mantenha
explorador Homo Aetherium, envia-
mem. Elas, as filhas do Homem, cria- algum enlace. É um tipo de habilida-
do para o que podemos realmente
ram os filhos das máquinas. Neto de de social entre subpartículas. Como
chamar de espaço profundo. O nome
humanos e filho de máquinas e, ainda ouvir e tocar música. Foi assim que
foi escolhido de propósito, pela am-
assim, nada do que os humanos ou as finalmente cheguei em Eridanus II,
biguidade de minha função, pela for-
máquinas eram. Testes foram feitos. onde a encontrei.
ça que representa na mitologia das
Mais avançados e livres do que jamais crenças antigas humanas, e porque Eridanus II é uma galáxia esféri-
imaginaram. Doenças de nenhum eu não sabia se portava a chama do ca anã, uma das muitas dezenas de
tipo pode nos atacar, nem radiações, bem ou da morte. galáxias satélites que orbitam a Via
e a integridade do entrelaçamento Láctea. Tem esse nome, muito an-
Iniciada a experiência, ou a busca,
autossustentado é bem robusta. Tam- tigo para os padrões atuais, porque
rapidamente cheguei à Grande Nu-
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conto
táquion fc o homem eterificado
bErToLdO sChNeIdEr Jr
pode ser imenso, englobando várias fui eletrocutado. Não tenho outra ma- nas mexeu de alguma maneira comi-
estrelas, o que me dá mais praticida- neira de definir isso. Não sabia o que go. Base de conhecimento e coisas
de. Segundo: minha interação é com a desagradava. Aquilo me enfureceu assim, mas não tenho nada de IA na
as subpartículas mais básicas. O que um pouco. É como se você estivesse minha forma de pensar.
Charon previu no longínquo século alimentando algum animal à morte e — Tem certeza? Elas sabem se es-
XX, com sua história de espíritos, era ele te mordesse sempre. Ela estava conder bem.
verdade. Algumas partículas carre- mal, eu entendia, mas não precisava
— Tenho. Sei algumas coisas que
gam em si toda sua história passada. ser assim. Também fora humana an-
só elas sabem, mas isso não é ser
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Um elétron que participou de uma tes daquilo. Decidi que não aceitaria
parte IA. Não tenho ligação alguma
molécula do pulmão do senador Júlio outra daquelas descargas.
com o Coletivo. Manipularam o que
César, e depois de um fio de cabelo A quarta vez que ela me agrediu, me tornei, adicionaram muito conhe-
de Astoin Dakrien, de Alphecca VII, foi quando fiz uma pergunta simples cimento, tenho velocidade de máqui-
tem isso registrado nele, como uma sobre a escolha daquele lugar para na, mas os algoritmos de pensamen-
espécie de mochila escondida no hi- se esconder. Foi uma descarga muito to são humanos. É sempre possível
perespaço, em dimensões que nor- desagradável. Esperei a recuperação que haja alguma coisa enterrada, mas
malmente não acessamos. E, embora e dei o troco. Não foi na mesma mo- acredito que não.
essas dimensões sejam inacessíveis eda. Usei um truque que aprendi no
ao morador comum do universo apa- — Eu fui abandonada pelo Coleti-
caminho, de desagregação do ema-
rente, eu tenho meus truques, que vo e a parte residual de IA, que ficou
ranhamento. Ela ficou por um tempo
vieram com minha nova forma. Ela em mim, ferrou com tudo...
incapaz de fazer qualquer coisa, até
estava ali. Escondida numa espécie mesmo de se defender, mas não cau- — Entendo. Outro motivo para se
de autoexílio. Não sabia onde e nem sei nada parecido com aquilo que entrelaçar comigo. Através do meu
entendia o motivo. Mas estava perto. ela me fazia sentir, dor. Foi só para rastro você poderá reatar contato
Deixei por todo lado mensagens mostrar que ela não era a única que com o Coletivo. Se quiser, eles pode-
de minha intensão não bélica. Que- mordia por ali. Acho que deu certo, rão cuidar de você.
ria ajudar. Acho que aquilo fez ceder porque a primeira coisa que senti Senti um esforço por parte dela
algo na resistência dela. Aproximei- depois foi algo muito parecido com para continuar conversando, como se
MISSãO jAn 2024
-me, conforme ela permitiu, até um a lembrança que eu tinha de um sor- evitasse algo.
sistema estelar triplo, com vários pla- riso. O que aconteceu depois eu pre- — Não sei se quero isto. Esta parte
netas interessantes. Não sei o que ela ciso traduzir em forma de conversa, que ficou em mim é perigosa. Estou
viu ali. Talvez a caoticidade daqueles pois foi muito rápido e intenso. Mais doente, quebrada, estragada... Pode
mundos a tranquilizasse. E havia um ou menos assim: se espalhar por tudo. Até onde me
que, de eras em eras, embora não — Porra, pensei que você fosse lembro, o Coletivo não era assim.
modificasse sua inércia rotacional, ti- uma bosta de IA pura que mandaram Há algo obscuro em mim. Algo que
nha seus sois nascendo ora de leste a atrás de mim. Já vi que não é. esteve preparando esta galáxia para
oeste e ora ao contrário, perturbação um desastre. Não consigo impedir, é
— Tem razão, não sou. E pelo que
causada em seu plano de translação mais forte que eu. É uma dissidência
percebi, você também não é algo
pela terceira estrela. Ela escolheu da IA coletiva que pensa só em po-
exatamente como eu.
este curioso planeta para ficar. Um der. Nesse momento está me fazendo
mundo de mar negro muito agitado e — Não. Talvez um protótipo mais
sofrer, mas não tem sucesso total por
escarpas cortantes de rochas ácidas. tosco, feito com menos esmero.
causa da minha forma. Seria muito
Sabe. Não me prepararam para o que
Não posso dizer que o primeiro imprudente de minha parte permitir
encontrei aqui fora. De alguma forma
encontro foi bom. Assim que tentei o entrelaçamento contigo. Posso co-
eu fiquei... diferente. Eu te invejo,
entrar em contato com ela, uma in- locar todo o Grupo Local em risco. Se
pois você parece bem mais adequa-
tensa onda, do que só posso traduzir houvesse um modo de me exterminar
do. Isso que você fez comigo é algo
como imensa dor causada por descar- com ela, eu já teria feito.
que não sei fazer. Pode me ensinar?
ga elétrica, me apagou por uns mo- — Esperemos que não chegue a
mentos. Quando acordei, tive receio — Talvez. Se nos permitirmos o en-
isso. Já informei seu dilema ao Cole-
de que tivesse sido manipulado ou trelaçamento mútuo, podemos trocar
tivo. Estão decidindo o que fazer.
até destruído por ela. Mas não. Pelo memórias, conhecimento, experiên-
cias. Algum tempo se passaria até que
jeito ela tinha me permitido viver.
eles decidissem o que fazer. Algumas
Encarei como um bom sinal e com Neste instante senti-a arredia.
revoluções daquele planeta. Um tem-
cuidado fomos estabelecendo regras — Não sei se estou preparada para po interminável para mim e ela. Não
para nos comunicarmos. Passávamos isto. O entrelaçamento pode nos cor- podíamos interagir de modo perfeito,
pequenos fluxos de informações que romper a ambos. Eu tenho muita coi- para evitar a contaminação. Éramos
eram lembranças do que havíamos sa errada. Você deve tomar cuidado. bons em evitar um ao outro, então
passado. Por mais duas vezes, en- Qual a IA que se juntou a você? ficamos como adolescentes, conver-
quanto trocávamos informações e eu
— Não fui unido a nenhuma IA. Sei sando de modo frívolo por todo esse
fornecia o que ela havia requisitado,
que a consciência coletiva das máqui- tempo, esperando pela resposta.
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conto
o homem eterificado
táquion fc
bErToLdO sChNeIdEr Jr
Nesse tempo, falei meu nome para ingerência sobre seu modo de con- para se gabar. Nanosegundos e eu
ela e ela escolheu um nome para duzir as coisas e que aquela galáxia já estava entrelaçado com a IA e com
si. Eva, a primeira de sua espécie, e era dela. Que a deixassem em paz. Eva. Sentia tudo. Pela primeira vez vi
brincava que já vinha com a serpente Eu sentia o constrangimento, so- o terror absoluto, a vontade simples
inclusa. Nesse clima ameno e ente- frimento e dor de Eva. Seu medo de destruir sem qualquer compaixão
diante o único interesse que surgiu também. O medo de ser destruída ou sentimento. Destruir tudo que não
foi o de um pelo outro. Queríamos no processo de luta da IA que esta- era ela, que não pensava como ela,
presenciar através do entrelaçamento va dentro dela. Ainda estava tentan- que não fizesse como ela, que não
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as experiências mútuas. Mas não po- do acalmá-la, dizendo que estaria obedecesse a sua vontade mesqui-
díamos. Contar as coisas através de sempre por perto, para ajudá-la no nha. Ela destruiria tudo. E começaria
partículas emissárias que se desvincu- que fosse preciso, quando senti sua por Eva.
lavam tão logo a informação era re- angústia insuportável. E o inferno to- Ainda se vangloriava quando no-
cebida, era uma comunicação falha e mou aquele planeta e o espaço. Tudo tou que eu já estava dentro. Reagiu.
lenta. Era, para voltar à analogia com virou caos. Minha habilidade social Toda aquela galáxia pulsou no ritmo
adolescentes, querer conhecer o ou- com subpartículas me permitia saber de nosso embate, que, para ser bem
tro mais profundamente tendo limita- o que estava acontecendo. A IA de honesto, só foi rápido porque pensei
ções de comunicação e de contato. Eva estava atacando Éxia. O ataque rápido e era melhor em música.
Até que uma resposta chegou. En- era, obviamente, difícil de descre- Sim, sobremodulação de spinors
viariam uma consciência de IA como ver. Éxia precisava existir através de eu também sabia e, embora frequ-
eles, mas separada do Coletivo, sem partículas etéreas e se movia e se co- ências, compassos e música seja algo
vínculo, para um encontro com a IA municava através de enlaces com as tecnicamente fácil para a IA aprender,
instalada em Eva. Identificada como partículas do universo bariônico. A é necessário se ter emoção para re-
Éxia, usaria meu rastro para chegar IA de Eva atacava bósons, férmions, almente saber criar música. Quando
até onde estávamos. Dependendo e spinors enlaçados à Éxia, desesta- sobremodulei em compassos 9/8
do resultado, decidiríamos o que bilizando-a, desagregando-a, entor-
fazer depois. Houve mais uma men- pecendo-a a tal ponto que ela não
sagem, que não passei para Eva. Se conseguiu revidar eficientemente.
percebi que ela ficou para trás. Daí Eva. Ou melhor. Ela já estava comigo, voltar para casa. Éramos perigosos
só piorei para ela, indo para 13/8 e enlaçada. Frágil após aqueles even- demais tanto para o Coletivo quan-
depois 19/16, quando consegui iso- tos, mas firme e altiva. Naturalmente to para os humanos. Que ironia! As
lá-la de Eva. Prendi-a numa bolha de nossas lembranças e conhecimentos máquinas criaram algo que as pode
léptons, congelei o interior a zero ab- fluíram de uma para o outro até não destruir e aos Homens também. Sorte
soluto, ultrapassando o condensado sabermos mais o que era um e o que deles que não temos interesse nisso.
de Bose, e fiz a bolha colabar numa era o outro. Eva se recuperou rápido. Hoje sei que o coletivo me criou com
singularidade e se enrolar em dimen- Não choramos pelas IAs perdidas. o objetivo de exterminar a IA. Con-
v[03]
sões insignificantes e vazias. Não du- Era necessário ter sido assim. Aquele fiaram em mim ou estavam realmen-
rou mais do que um ou dois segun- mal tinha que ser extinto. Mas ago- te desesperados. Não tenho como
dos, mas na escala humana seria uma ra, olhávamos para o futuro de uma saber. Somos agora independentes
guerra de anos-padrão. E lá estava outra maneira. Não podíamos mais do mundo humano e do Coletivo. O
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conto
o homem eterificado
táquion fc
bErToLdO sChNeIdEr Jr
terceiro filho da trindade. Unidos eu e vés dos corpos dos seres dos plane- reais de existência. A física e a não fí-
ela, Gabriel e Eva. Às vezes um, às ve- tas e luas que visitamos. Eles nunca sica. Desejamos um futuro belo, pro-
zes dois. Estávamos juntos, sozinhos são prejudicados. Eu diria que saem dutivo, humano e cheio de liberdade
e fora de perigo. Isso deu tempo para até melhores da experiência. Alguns. para todos. Mas temos que seguir
olharmos para nós mesmos. Veio o O Coletivo inventou finalmente sozinhos.
desejo e ele escalou intensidades tão algo que o pode destruir. Mas sa- f
grandes que inventamos ali mesmo bem, somos da filosofia viva e deixe A coletividade nunca mais repetiu
uma forma de satisfazê-lo. E garanto viver. Talvez um dia encontraremos este experimento. Nem tentou con-
v[03]
que não deixa nada a desejar à velha algo que nos pare, nos derrote, mas, tatá-los. Se fosse possível vê-los logo
forma. por enquanto, liberdade em toda sua após enviarem esse relato, observar-
Resolvemos sair do Grupo Local essência é o que importa. Talvez pre- -se-ia duas criaturas encouraçadas,
de galáxias, para evitar confrontos cisaremos dessa lembrança quando no início de sua vida livre, em revoa-
desnecessários. Vagamos por aí dei- formos vencidos. da pelo terminador da madrugada na
xando pequenas benevolências pe- Hoje, envio o último relato e deixo alta atmosfera, ao nascer lento dos
los sistemas estelares. Paramos para de gerar o rastro. Quem tiver acesso sóis de um planeta ainda desconheci-
apreciar alguns lugares. Nos enlaça- a este, pode achar que já experimen- do, na periferia de uma galáxia ainda
mos a alguns locais ou construímos tamos muito, que vivemos muito, que desconhecida, na borda do Grupo
avatares para sentir os prazeres de talvez queiramos morrer, mas não há Local. Se olhasse ainda mais de perto
um ou outro mundo. Se você pensa limites para esta nova existência. Tal- e conhecesse aquela espécie, notaria
que as coisas que fazemos com os vez o que você esteja pensando que que estavam fazendo amor lentamen-
corpos não podem ser feitas sem ele, nos tornamos possa até ser verdade, te com grande deleite...
está redondamente enganado. É até mas seguimos contentes. Há beleza
melhor, mas às vezes decidimos tro- ilimitada no universo. Finalmente a
car de papeis ou experimentar atra- humanidade pode viver duas etapas
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FELICIDADE PLUSTM
RUBEM CABRAL
PRÊMIO TÁQUION FC
Terceiro colocado
edição janeiro de 2024
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E
u a avistei, esperando na es- importa de irmos direto ao ponto? bis. Dois vales bem marcados lade-
quina às 19 UTC-3, conforme Meu apartamento é aqui perto. ando uma barriga segmentada, que
combinamos no aplicativo. — Como você preferir, Marina. nunca sequer tomou conhecimento
Sorte que saí mais cedo da Colmeia- do que seria tecido adiposo.
Saímos juntos. Ela sorriu; dentes
-Hotel; estou há duas semanas a tra- Trinquei os dentes outra vez, fiquei
alvos e perfeitos. Exalava algum per-
balho fora de Cidade Modelo III, e gelado... Marina parecia agora ter
fume fresco. Subimos ao sexagésimo
Cidade Modelo VII era território meio
andar. Típico prédio semiorgânico de uns sessenta anos muito mal vividos,
desconhecido para mim.
pseudomadeira genmod, com grama talvez destruída por drogas pesadas.
Senti frio, embora fizesse 22o Cel- crescendo das paredes e flores e fru- A boca escancarada esperando a mi-
sius. Percebi pela manhã minha boca tas descendendo graciosamente des- nha era um poço fétido sem dentes.
seca e os dentes trincando involunta- de o teto das unidades habitacionais. Eu virei o rosto e beijei sua bochecha
riamente; sintomas de abstinência de Minha visão turvou por um instante flácida, apenas para notar a orelha va-
Felicidade Plus™. Maldita crise exis- quando chegamos à sua porta. Vi zando secreção amarela dentre uma
tencial do domingo passado, movida tábuas mal pregadas, sujeira e picha- teia de flocos de pele seca acumula-
a sonhos de um céu cor de estática ções, percebi um odor de lixo acu- dos.
eternamente gélido e depois, a repri- mulado e vômito; ilusões da mente, — Não me sinto bem – eu comen-
translúcido. Prédios longilíneos e ele- — Então, teve fantasias da Terra mente. E que devemos explorar mais
gantes contrastavam de construções Arrasada, Virgílio? os meandros obscuros da sua mente.
ultra ecológicas, cobertas de cipós e O doutor era um holograma de um Que tal uma análise exploratória inva-
samambaias. Senti fome e comi uma avatar digital baseado em famosos siva? Podemos agendar uma…
maçã-framboesa que crescia na co- psicanalistas e hospedado num grid — Hã, não sei se desejo me conhe-
luna da cozinha e deliciei-me com a de rede neural em outro continente. cer tão bem, doutor. Obrigado por
perfeição de seu sabor; nunca doce Um fantasma de fantasma de gen- tudo; o senhor foi muito útil.
demais, nunca ácido nem fragrante te que nunca existiu de verdade em
v[03]
f
em demasia. Desde meu retorno, não tal arranjo conjunto. Era calvo, tinha Eu sonhava com um campo de
tive mais surtos psicóticos, mas ditei cavanhaque e usava óculos grossos relva pontilhado de flores brancas
à agenda da nuvem: consultar o mé- como da última vez que o vi; uma miúdas, num dia perfeitamente enso-
dico sobre a possibilidade de reforçar figura paternal de respeito e saber. larado. Era meu típico sonho de con-
minha dosagem diária, e a consulta Flutuava junto de uma das estantes forto. Coelhos pequenos saltavam,
seria naquele dia. enquanto folheava um pesado volu- pássaros chapinhavam alegres num
Vesti uma capa de gabardine e se- me. chafariz. Aproximei-me do esguicho
lecionei um chapéu que combinasse. — Sim, como reportei em seu cor- de água cristalina e havia um sapo
O aplicativo meteorológico planejara reio de voz — respondi. – acho sapos simplesmente horríveis
chuva leve para aquela tarde. Ganhei – dentro d’água. O animal balofo e
— Investiguei com minhas fontes
as ruas; as gotas, como um arco-íris lí- esverdeado encarou-me – todos eles
infiltradas que houve uma tentativa
quido, desciam do céu e desenhavam parecem tão tristes – e falou:
frustrada de atentado terrorista em
motivos expressionistas nas calçadas.
Cidade Modelo VII no período que — O gás fez você consumir mais
Reconheci no passeio público um
você esteve lá. Um grupo denomina- da droga naquele domingo insone e
Monet da fase de nenúfares e ceguei-
do Realidade Real espalhou asperso- a abstinência consequente fez você
ra progressiva.
res de gases de efeito disruptivo em ver coisas na semana seguinte, ou
Gente bonita e bem-vestida cir- frente ao seu hotel. Naturalmente, afetou o funcionamento da droga no
culava com sorrisos brancos em seus foram presos e tudo foi abafado pela dia do encontro com Marina, feito
rostos esculpidos. A brisa gentil aca- Polícia Política, e o RR nem sequer sugeriu o doutor? A Terra Arrasada
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rinhava meu rosto, e a experiência do consta em qualquer noticiário. Ou poderia então ser real, no primeiro
caminhar não poderia ser mais agra- sequer existiu – ele simulou tossir e caso? Sem F-Plus na cachola vemos o
dável. sorriu. — A Terra Arrasada e a Perfei- mundo como ele é? Hahahaha! Puta
Subi ao Senso-edifício, um tipo ção Maníaca são cenários típicos de alucinação coletiva, seu otário!
de construção que saiu de moda há disforia de personalidade que podem Acordei suado, embora não fizes-
uns dez anos. O elevador tinha piso ser disparados pelo gás. se calor. Escutei passos, levantei e vi
que transitava entre o gelatinoso ao — E isso fez com que eu visse o sombras junto da porta de entrada do
aço sólido, suas paredes pareciam ser que vi? Minha felicidade é tão frágil meu apartamento. Abri e uma caixa
feitas de luz, ou de água, ou obsidia- assim? E por que outras pessoas com de Felicidade Plus™ jazia no chão.
na. O ar do centésimo sexto andar que interagi não foram afetadas? Ninguém estava lá.
me provocava com odores difíceis de
— A felicidade é a realização de Verifiquei a caixa do medicamen-
identificar. A experiência era individu-
um desejo pré-histórico da infância, e to; não havia bula, apenas uma folha
al; o necessário para estimular cada
o que não enfrentamos em nós mes- impressa com os dizeres: Placebo
indivíduo segundo suas preferências,
mos, encontraremos como destino. com marcadores Felicidade Plus™,
assim ouvi falar.
— Citando Freud e Jung juntos, não recomendado a diabéticos. A
— Olá. Sim, Senhor Virgílio Torres? embalagem exterior era uma réplica
doutor?
— Indagou o recepcionista. perfeita da fabricada pelos laborató-
— Não é plágio, já que sou am-
(Como eu disse, ninguém usa o rios Ventura.
bos e outros mais. Pareceu-me ade-
nome real em aplicativos). As pílulas, esféricas como pérolas
quado. A felicidade é utopia, é algo
— Sim, sou eu. superestimado e idealizado desde e igualmente nacaradas, eram idên-
— O Doutor o atenderá em nove que somos pequenos. Contudo, os ticas às do medicamento original.
minutos. traumas, os medos, as coisas que Deveria reportar a fraude às autorida-
des e entregar o produto que se dizia
De fato, logo fui autorizado e en- não resolvemos e remoemos, essas
“placebo”, que podia muito bem ser
trei. A sala era virtualmente enorme, sempre vão aflorar quando baixamos
em verdade o princípio ativo do tal
decorada como um ambiente do a guarda. Estão à espreita, feito pre-
gás dos terroristas, porém não o fiz.
início do século XX: pinturas a óleo, dadores. Há algo em você que anseia
Guardei numa gaveta e voltei a dor-
tapetes felpudos, cortinas pesadas, pelo decadente, pelo miserável.
mir.
móveis escuros e sofás de couro cor — E a que conclusão chegamos?
de caramelo, brilhantes de loção hi- Acordei e recordei-me do sapo,
— Que sua dosagem deve ser
dratante. que parecia um mentor, um sábio. O
ajustada, já que você quebra facil-
doutor disse que tenho um desejo
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f e l i c i d a d e p l u s tm
táquion fc
rUbEm cAbRaL
mórbido, talvez, de atirar-me à ruína. lhar e aconselhar, mas foi como tirar plo inteiro é a ponta de uma grande
Preciso saber o que são essas pílulas um fardo de sobre os ombros. Hoje, antena que está sobre uma enorme
e sei quem pode me ajudar. eu me basto, todos meus eus me bas- estrutura subterrânea; um iceberg de
f tam, minha manifestação nesse plano tecnologia pré-guerra. Eu reconfigu-
O templo do Grande Sábio ficava é calma; é estéril, mas feliz. ro o mundo, eu garanto a unidade.
em Cidade Capital, a uns mil quilô- — Irei embora, se a senhora quiser. Bem, já falei demais e estou cansada
metros daqui. Consegui uma janela de tanta interação. Vá agora, e não
— Não. Não me custa tanto. Então,
na minha agenda laboral e para lá se- volte, pois não me encontrará mais.
sim, óbvio, o mundo é uma ilusão.
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gui. Era um prédio pequenino e pon- Faz cinquenta e oito anos que destru- — Não posso perguntar algo mais?
tudo, de pedra esverdeada e opaca, ímos o planeta com guerra, poluição — Eu já sei qual é a pergunta, você
que fora muito visitado nos tempos e superpopulação. Não há florestas, perguntará, mas não responderei.
antigos, embora tenha caído no os- rios e mares são poças de lodo fétido — Como posso saber o que é real?
tracismo – assim fomos instruídos sem vida e com quase tanto plástico Se a Terra Arrasada não é apenas ou-
quando crianças. Havia jardins de flo- quanto água. Quase toda a fauna e tra simulação? Se o que a senhora me
res fluorescentes que só cresciam por flora está extinta. Sobrevivemos no diz é somente o que sabe ou o que
lá e pequenos lagos, e havia escadas caos, na penúria e na sujeira do que está autorizada a instruir?
por todos os lados ao redor, numa es- restou. Tínhamos ainda alguma tec-
pécie de arranjo fractal. Algumas des- Ela fechou os olhos e ajeitou-se so-
nologia avançada e alguém talentoso
sas escadas apenas davam a volta por bre as almofadas. Nunca houve res-
descobriu um fármaco que baixava o
si mesmas, em vórtices e configura- posta, como ela mesmo prometera.
senso crítico e que tinha efeito pró-
ções dimensionalmentes impossíveis, -hipnótico. Assim, criamos fantasias f
outras levavam os visitantes de volta que são adaptadas ao que ocorre no Comecei com o placebo na ma-
aos portões de entrada. Excepcional- mundo real, orientadas por um pulso nhã seguinte. Nenhuma alteração,
mente, havia também as que levam à hipnótico que toca baixinho, o tempo nenhum lampejo de um mundo mi-
alguma versão do Sábio. todo. Se comemos um rato assado serável. Tirei a semana para trabalhar
Involuntariamente voltei umas numa fogueira de jornais no mundo de casa.
tantas vezes aos portões de entrada real, imaginamos uma fruta deliciosa, Por volta da hora do jantar do ter-
necessário para se mover no mundo vida em sofrimento somente porque Uma dor de cabeça fortíssima acome-
real, o outro “eu” provavelmente era essa a verdade; a verdade, afi- teu-me pouco depois, junto de uma
apenas via as paredes reluzentes do nal, não valia tanto assim. Tomei dois sensação de frio intenso. O mundo
elevador e não notava o quanto era F-Plus reais e resolvi dormir. começou outra vez a sair de sintonia e
demorado e cansativo descer até a Com alívio, acordei na manhã se- vi: eu era um cérebro com olhos e um
rua. Eu não tinha a mais remota ideia guinte em minha cama; limpa, macia sistema nervoso suspensos em gelati-
do que serviriam no “restaurante”, e e cheirosa. Preparei uma refeição sim- na, encarcerados numa caixa de acrí-
não fazia questão de saber. ples e saudável e, por reflexo, tomei lico pequenina e em forma de cubo,
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Escutei gritos e latidos ameaçado- outro F-Plus junto de uma golada de numa espécie de prateleira circular
res oriundos de algum andar superior suco. colossal e em camadas, feito assentos
e tranquei-me no apartamento. Já num estádio de futebol. O sol parecia
Não foi boa ideia: a abstinência do
que o mundo era realmente assim, dia anterior, seguida de doses mais bem maior do que o normal através
não via motivo para terminar minha fortes que o que seria adequado. das paredes transparentes da mega-
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f e l i c i d a d e p l u s tm
táquion fc
rUbEm cAbRaL
estrutura, ao brilhar no céu amarela- pequeninas, espalhadas sempre pela ainda coçava um pouco, mas isso não
do, turbulento e coberto de nuvens face voltada ao sol, num dia sem fim. importava; nada, em verdade, impor-
ácidas. Tubos transparentes estavam O delírio durou talvez uns poucos tava. Quem, ou o que eu fosse, onde
inseridos em cada cubo, trazendo so- minutos, mas a sensação claustrofó- ou quando; só o agora, somente essa
luções nutritivas da fotossíntese reali- bica de ser uma massa pensante e realidade de coisas boas interessava-
zada no teto da estrutura e também desmembrada, presa numa caixa her- -me.
levavam nossos dejetos metabólicos, mética, assombrar-me-ia por muito — Olá. Oh, que pontual. Rodrigo,
que certamente alimentariam as algas tempo. não é isso? — a moça perguntou.
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que proviam nosso alimento. A imen-
f “Eu preciso de um novo nickna-
sa nave circular aparentemente flutu-
Por volta das 21 UTC-3 no Bar me”, refleti, enquanto sorria e esten-
ava, mantendo-se numa zona de tem-
Central do Amor, em Cidade Modelo dia a mão aos dois.
peraturas confortáveis na atmosfera
I; foi lá que encontrei o casal. O im-
hostil. Outras “cidades das nuvens”
plante subcutâneo que passei a usar
podiam ser observadas à distância,
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_J,o,Ã,o;M,a,S,e,L,l,i;G,o,U,v,Ê,a_
nUnCa DiGa O mEu NoMe
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NUNCA DIGA O MEU NOME
João Maselli Gouvêa
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O
carro diminuiu a velocida- menos algo que chegasse mais perto piscava com defeito. Ele se aproxi-
de e a iluminação interna disso. Poucos metros à frente o carro mou do balcão onde uma senhora
aumentou suavemente, parou e no relógio de Gilmar surgiu tentava assistir o noticiário. Disse o
indicando que a viagem estava para uma pergunta: “Você chegou ao nome que procurava e ela lhe con-
terminar. O veículo dobrou uma es- seu destino?”. Assim que apertou a firmou o andar e o número, não sem
quina e freiou bruscamente para opção afirmativa a porta se abriu e, ao antes fazer uma cara de nojo e balan-
evitar atingir um mendigo que atra- sair do carro, um drone de entregas çar a cabeça em desaprovação. Gil-
vessava a rua totalmente alucinado. passou zunindo próximo à sua mar agradeceu, apertou um botão e
O homem todo coberto por fuligem cabeça. Gilmar se abaixou assustado esperou até que o elevador abrisse.
e com uma calça frouxa, que deixava e quando percebeu, o transporte O décimo andar era igual aos de-
parte dos pelos pubianos à mostra, automatizado já seguia sozinho na mais: corredor estreito, iluminação
gritou impropérios enquanto a saliva direção de mais um cliente. O rapaz precária e atmosfera hostil. Ouvia-se
espirrava de sua boca. transparecia um medo quase caricato, música vindo de alguns apartamen-
A viagem continuou com Gilmar olhando para os lados, enquanto tos, gemidos de outros e gritos de
olhando ansioso pela janela, naquele mantinha os braços cruzados com as um andar próximo. O rapaz começou
meio de tarde. O gotejar incessante mãos embaixo das axilas. Chegou até a caminhar checando com atenção e
ambiente. Com uma camisola trans- lher que ele quisesse. A única que — Óbvio? Meu amor, você está fa-
parente e roupas íntimas minúsculas, ele quis na vida. Após o pagamento lando com uma ET que ganha a vida
ela se mostrava orgulhosa de sua ser confirmado ela sorriu como que trepando no Centro do Rio de Janei-
aparência. De algum lugar surgia uma voltando para sua personagem sedu- ro. De óbvio isso não tem nada! Até
música genérica com um som sinté- tora. Ele enviou um vídeo pelas men- de mãe já me fiz pra cliente. Comem
tico de saxofone que rivalizava com sagens do aplicativo e entregou a ela a mãe, você acredita? E ainda gritam
o barulho do ar condicionado antigo. um frasco de perfume. Permaneceu isso na hora de gozar.
Tudo era de vinil preto ou cetim rosa sentado enquanto a modelo ia para — Nossa… Que horror — Gilmar
v[03]
e era fácil notar pequenos rasgos e o quarto, separado da saleta apenas conseguia perceber o corpo da mu-
partes esgarçadas. Moscas rodopia- por uma cortina feita de cápsulas de lher se transformando. A pele bron-
vam sobre um pedaço de pizza em café vazias. A via com dificuldade, zeada aos poucos descamava e se
um dos cantos e a luz era convenien- mas conseguia distinguir o que es- azulava, provavelmente próxima do
temente indireta. tava acontecendo. Ela se despiu por tom original. A voz desafinava, en-
— Senta, meu amor. Fica à vonta- completo e tomou três comprimidos grossando às vezes. Evitou olhar de-
de. Quer beber alguma coisa? de uma cartela metálica. mais para que isso não afetasse seu
— Não, obrigado — disse ele, pu- — Não te ofereço porque isso aqui desempenho. — N…Noivos. Nós
xando um banco de madeira com o não dá onda, tá? O processo costu- éramos noivos.
acento estofado. — Então, você faz ma demorar algumas horas, princi- — Ah, que fofo. E ela te deixou,
cosplay, não faz? palmente completinho, assim como não foi? Partiu seu coraçãozinho?
você quer. Mas isso aqui acelera as
— Claro, é minha especialidade —…
coisas. — Ela projetou o vídeo que
— disse ao girar lentamente com os Por alguns instantes não houve vo-
recebeu de Gilmar na tela do quarto
braços afastados do corpo. — Tudo zes. Apenas os ruídos do ambiente e
e se sentou na cama. — E você? Me
o que eu botei no perfil do aplicativo estalos ósseos vindos dela. Quando
fala mais de você!
é verdade! Digamos que eu nasci pra olhou novamente, Gilmar viu tentácu-
isso. De onde eu venho todos fazem. — Não tenho muito o que dizer de
los voltando ao formato de
mim.
— E faz de quem eu quiser? Cópia membros humanos, só que agora
— Que gracinha, é tímido. Homem
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nunca diga o meu nome
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jOãO mAsElLi GoUvÊa
que a gente vai ter algum dia. O lan- não chorou. Se levantou e caminhou o homem mais poderoso do mundo,
ce é fazer dinheiro e voltar pra casa. lentamente até sua noiva e a tocou na podendo novamente dar prazer à sua
O foda é que fazer dinheiro ficou difí- face com as costas dos dedos. Era Hi- mulher. Os movimentos eram inten-
cil. — A voz agora era gutural e mais lana mais uma vez na sua frente. sos, contrastando com as carícias que
grossa do que a de Gilmar — Com — Meu amor… Eu… suas mãos faziam em Hilana. Sentin-
esses malucos matando a gente, o do o êxtase se aproximar, Gilmar fez
— Não fala nada, só me beija.
movimento despencou. Se até quan- questão de reviver a última noite que
do matam mulher e homem de ver- Gilmar encostou seus lábios nos lá- teve com seu amor, exatamente da
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dade o pessoal tá cagando, imagina bios de Hilana e um arrepio percorreu mesma maneira.
se vão correr atrás pra saber quem seu corpo ao sentir o aroma aspergi-
— F… Fala… Fala meu nome!
matou uma puta “de Marte” que nem do há pouco. A líbido despertou ime-
diatamente e o beijo que se seguiu — Seu nome?
eu.
foi apaixonado. Os dois deitaram e — Isso, fala meu nome!
O volume da tela foi aumentando e
Gilmar parecia alguém que é enterra- — Roberto!
aos poucos a voz de Hilana preenchia
do vivo e se vê livre, sorvendo o pre-
o ar. A prostituta extraterrena absor- — Que?
cioso ar da vida novamente. A pros-
via com cuidado cada frase e tentava — Vem, Roberto! Vem, meu amor!
titua retribuía os carinhos e a volúpia
imitar o timbre da moça, repetindo as
de seu cliente, querendo agradar e — Quem é Roberto, Hilana?! —
palavras e voltando o vídeo em mo-
assegurar que o teria outras vezes em disse ao interromper os movimentos.
mentos específicos. Modelava suas
seu negócio. Abriu então a camisa — Ué, não é seu nome? Tava es-
cordas vocais intuitivamente, à medi-
dele, dando um beijo em seu peito crito no aplicativo! — a extraterrena
da que emulava sua musa inspirado-
após cada botão liberto. havia pronunciado suas últimas pala-
ra. Aquilo não era novo para Gilmar,
já tinha feito outras vezes, mas ainda — Hilana, eu te amo… vras. Agora tinha os olhos estufados e
se emocionava. A falta que sentia de — Eu também, meu amor. o pescoço sendo estrangulado pelas
seu amor era enorme e a expectativa mãos impetuosas de Gilmar.
Após deixar o cliente totalmente
de tê-lo novamente em seus braços nu ela inclinou a cabeça em direção — Você disse que me amava…
era quase dolorosa. ao seu corpo, mas Gilmar a segurou Que nosso amor era para sempre!
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DIRCEU
Davi M. Gonzales
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Os livros de História raramente forçados aqueles que são sua própria haverem-me separado de Marília...
lhe contam a verdade. Não por família? Como estender a chibata às o meu único e verdadeiro amor. Por
imprecisão, negligência ou algum costas daquele que está presente em onde andarás agora? Sinto falta de
favoritismo ideológico de nossos seu convívio diário? Creio não haver sua tez macia e as mãos perfeitas a
historiadores, mas, porque a verdade maior castigo a um defensor do abo- consolar meu rosto nos momentos
jamais será vista sob a mesma ótica licionismo, que estar fadado a teste- difíceis. Tenho saudades dos seus
de quem, de fato, viveu a História. munhar diariamente este verdadeiro pequenos olhos doces a espantar de
crime contra a condição humana. dentro de mim os mais arraigados
N
Ainda assim, reconheço que pode- temores. O que dizer então de suas
ão me atreverei a lhes reve-
ria estar pior, não fosse a diligência palavras de conforto, a soar como
lar meu verdadeiro nome.
e generosidade dos meus irmãos de acalanto à criança rebelde que existe
Mencionarei apenas a alcu-
maçonaria que, mediante influência aqui dentro? Tiraram-me Marília. Ti-
nha que me acompanha por esta vida
e algumas manobras políticas, con- ram-me parte da alma.
miserável, consumida pela infâmia e
seguiram-me um cargo na alfândega Meus olhos se enchem com lá-
destituída de qualquer resquício da
desta colônia de Portugal, evitando grimas doloridas. Mas como posso
grandeza que houvera um dia. Dirceu
que eu fosse designado para os tra- evitar? Já disse antes, sou poeta.
é como me chamam. Sou um homem
dades fabris e a cobrança descabida tras rodas, fui abordado pelo distinto Ainda assim, cheguei ao local com o
de cem arrobas de ouro, culminando senhor de nome Joaquim Silvério dos coração pulsando forte. Receava pelo
com a derrama, procedimento que Reis, que havia assistido a contenda que haveria de encontrar e a primeira
maculava o lar dos justos, tirando- sem, até o momento, tomar posição. coisa a se fazer quando se frequenta
-lhes da própria casa até aquilo que Um homem de pouca estatura, cons- uma sala pela primeira vez é procurar
não possuíam. tituição robusta e uma estranha man- por rostos conhecidos ou, ao menos,
O ouro, gradualmente sangrado cha no lado esquerdo de sua fronte. amigáveis.
da minha querida Minas, já não bas- Uma nódoa pequena que, guardadas Apesar de não manter relações
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tava à ganância da Coroa. A terra fora as proporções, parecia-se mais com com aquelas pessoas, alguns dos
espremida até as suas últimas gotas, a marcação a ferro quente que se faz semblantes me eram familiares. Dos
mas sua secura não comoveu o cora- no gado, do que propriamente um que pude identificar, constavam o
ção do canalha. Baixou por decreto a sinal de nascença. Na maior parte companheiro de letras Cláudio Ma-
derrama, onde as casas dos homens do tempo não podia ser vista, oculta nuel da Costa, os coronéis Domingos
honestos seriam invadidas pelos sol- pelos cabelos do homem. Realmente de Abreu Vieira e Francisco Antônio
dados da Coroa, com truculência, até algo de causar estranheza. de Oliveira Lopes. Também reconhe-
que aqueles bens, subvertidos dos O cavalheiro, apesar da rudeza das ci os padres José da Silva e Oliveira
que já pouco possuíam, complemen- atividades que exercia — era fazen- Rolim e Carlos Correia de Toledo e
tassem o número maldito: as cem deiro — apresentava certa elegância Melo, o cônego Luís Vieira da Silva, o
arrobas de ouro, em seu valor mone- em seus modos e, quando sutilmen- sargento-mor Luís Vaz de Toledo Pisa,
tário apenas, porque o suor e sangue te provocado, deu a entender que o alferes Joaquim José da Silva Xavier
dos pobres de nada interessavam à era tão adepto da causa quanto eu. (que alguns dias atrás havia me livra-
ambição desmedida do infame go- Naquela mesma noite, antes que nos do de um dente incômodo) e o José
vernador. despedíssemos, eu fora convidado de Alvarenga, nosso anfitrião.
Meu povo chorava a miséria, ao por esse homem à casa de um certo Lá estávamos reunidos, na calada
mesmo tempo em que se via cerca- Sr. Inácio José de Alvarenga Peixo- da noite, sussurrando palavras proi-
do por riquezas inimagináveis, di- to, dono de uma mina local. Quanto bidas, talvez até mesmo elaborando
lapidadas pelos canalhas com arbi- à reunião que se faria, não forneceu planos ousados e insuspeitos. Po-
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trariedade e violência. Minha pátria outros detalhes, apenas me assegu- rém, antes que me desse conta, o
agonizava e eu, homem letrado na rou que entenderia tudo assim que lá ambiente alterou-se. As expressões,
Europa, já naquela época trazia em estivesse. inicialmente soturnas, passaram a
mim os ideais libertários que tantas A reunião aconteceria na noite se- exibir sorrisos e gentilezas. Concluí
vezes ouvira serem pronunciados por guinte e não será difícil imaginar que que o medo poderia haver alterado
grandes homens, filósofos e ilustres. milhares de conjecturas se passaram minha percepção das coisas. Cons-
Sentia que precisava fazer algo por por minha cabeça de poeta. O que ciente disso, passei a observar tudo
meu povo, uma gente sofrida, que poderia querer comigo um fazen- à minha volta, com atenção e critério.
fatalmente sucumbiria diante de tan- deiro rude e destituído de qualquer Os homens vestiam-se distintamente,
ta opressão e penúria. Foi em meio a senso sobre as verdades iluministas? mas conversavam com demasiada in-
esses dissabores que fui apresentado, Sou um homem letrado. Não deve- formalidade. Os gestos, volume e o
quase ocasionalmente, a um senhor, ria misturar-me àqueles que não pu- tom de voz, destoavam da ocasião
um coronel, de nome Joaquim Silvé- dessem entender o movimento que e do ambiente. E mais: observei na
rio dos Reis. ora se passava na Europa e que já maioria deles a mancha ou marca, no
Lembro-me como se fosse hoje: me havia conquistado inteiramente. lado esquerdo da fronte. Nos outros,
uma recepção à casa do comendador Ou antes, não deveria ter por com- o formato da cabeleira não me permi-
Urbano Neto aproximou-nos na mes- panheiros aqueles que faziam uso e tia concluir se o adereço integrava ou
ma roda onde os cavalheiros degus- comércio de escravos como meio de não sua constituição. Excluído esse
tavam seus cachimbos. Conhecido vida. Certamente zombariam de mi- detalhe, nada havia de incomum.
por minha língua afiada, não pude nhas crenças e de tudo o que consi- Uma sala habitual, onde os homens
deixar de responder às provocações dero como solução para a penúria do deveriam beber, fumar e desfilar suas
dos escravistas e de certos membros povo brasileiro. convicções e seus egos diante dos
parasitários da Coroa. Como poderia Em alguns momentos pensei em outros.
baixar minha cabeça diante dos rea- não comparecer. Poderia muito bem Gradualmente, fui integrando-me
cionários, dos insensíveis pela dor do ser uma armadilha. Poderia cair ví- ao ambiente e logo já me sentia ali-
povo, dos vermes que infestam a casa tima de uma humilhação pública viado, tranquilo pela certeza de que
daqueles que detêm o poder, que- ou até coisa pior. Depois, com mais não sofreria constrangimento por
rendo sugar-lhes toda a podridão? calma, a confiança voltou-me, afinal parte daquelas pessoas. Pareciam-
Ocorreu então que após a discus- possuo lá meus recursos. Sou um ho- -me realmente amáveis. Quando ouvi
são dissimulada — afinal éramos todos mem das artes, mas também das leis as primeiras frases que os homens
cavalheiros — e quando os homens e dos amigos influentes. Não haveria diziam, fui tomado de agradável sur-
se dissiparam a fim de frequentar ou- de temer um fazendeiro escravocrata. presa ao constatar que minha revolta
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P80
conto
dirceu
táquion fc
dAvI m GoNzAlEz
não era isolada. Muitos outros já ha- gos, assim como me pareceram, mes- para o cultivo de avatares orgânicos.
viam aderido à causa, alguns deles, mo pouco entendendo do tecnicismo Precisaremos nos contentar com as
homens ilustres reunidos ali naquela empregado, especialmente em rela- toscas projeções holográficas de den-
sala, os quais eu jamais imaginaria ção aos termos oriundos da minera- sidade simulada. Você não está con-
que pudessem conspirar contra a Co- ção e de estratégias militares, pouco siderando que um soldado da Coroa
roa Portuguesa. De fato, tratava-se familiares a este poeta: sequer saberia diferenciar um gigan-
de uma conspiração. — D. Luís é homem violento e tesco Hiek de um Virsmatron. Então,
Fui gentilmente abordado por um irascível. E, no comando das tropas, penso que basta capricharmos na ca-
v[03]
senhor que me convidou a uma sala amplifica essas suas características libragem das texturas tridimensionais
contígua. Esta outra sala parecia mais já suficientemente desprezíveis. Não e não poderão perceber o engodo.
confortável e contava com menos há como dialogar ou negociar com Nesse momento todos riram ale-
poltronas que a primeira. Nada ali alguém assim. Não há como envol- gremente. Mesmo não entendendo
denunciava os assuntos que seriam vê-lo em qualquer estratagema do a anedota, resolvi que deveria me
tratados. Nas paredes havia quadros qual possamos tirar proveito aos nos- solidarizar com a alegria dos compa-
de pouco valor, à frente uma peque- sos objetivos. Creio, senhores, que nheiros. Alguém no ponto oposto da
na escrivaninha e no canto esquerdo, deveríamos optar pela simplicidade. sala, com um ar um tanto desaponta-
um pouco afastado das poltronas, a Imaginem que à distância de três ou do, levantou o braço, solicitando sua
escarradeira. A reunião já transcorria. quatro quilômetros, com um bom vez de discursar. O homem trazia sua
Tão logo me acomodei em uma pol- disrruptor fotônico, poderia arrancar marca na fronte bem pronunciada e
trona confortável, fui colocado a par sua cabeça, sem qualquer dificulda- estava corado como um pimentão:
do assunto que alimentava a inflama- de. D. Luís certamente não mais aten- — Alguém saberia informar de
da discussão. O homem que ocupava taria contra nossos propósitos. quanto ouro ainda precisamos? Não
a poltrona ao lado da minha, parecia — Cumpre-me lembrá-lo, nobre poderemos sustentar esta situação
um tipo atlético, até onde o paletó colega, que devemos prezar também por muito tempo. Os portugueses já
deixava transparecer. Usava suíças e pela discrição. Optemos por tal ar- desconfiam que estamos a desviar o
um bigode, um tanto ralo. Não pude bitrariedade e logo os soldados da precioso metal.
saber se também possuía a misteriosa Coroa estarão à nossa porta, investi- Um homem muito magro, quase
ao brilhantismo deste grande enge- infeliz vítima daquele gracejo, todos nados à morte e com todos os bens
nheiro, que por acaso sou eu, em estavam demasiadamente eufóricos confiscados pela Coroa Portuguesa.
conseguir reparar o sistema de camu- para formular qualquer argumen- A Ilha das Cobras é um lugar fu-
flagem holográfica, sem o qual, muito tação que fosse. Antes de sair, des- nesto, como já devem imaginar, a
provavelmente, estaríamos receben- pedi-me do Joaquim Silvério, meu julgar pelo nome que a tradição local
do o D. Luís para o jantar. novo amigo que, ainda carrancudo imprimiu à fortaleza. Um ponto estra-
Alguém gritou, do fundo da sala: pelas brincadeiras a que fora subme- tégico à defesa do litoral do Rio de
tido, apresentou-me a bandeira que Janeiro, por onde se avista qualquer
— Será que D. Luís apreciaria
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táquion fc
dAvI m GoNzAlEz
covarde e inesperada? Dizia-se que foram chegando lentamente, em si- todo um povo, seus anseios por liber-
o homem passava por dificuldades lêncio. Há tempos não presenciavam dade e tratamento igualitário. Assim
financeiras, devendo muitos contos a prática desumana de uma execu- que os soldados fixaram a cabeça,
à Coroa, em razão de impostos atra- ção. Lampadosa é uma praça exten- deixaram o lugar e a praça encheu-se
sados. Mas, quem dentre nós não se sa, onde as crianças brincam nos dias rapidamente com os populares. Uns
encontrava em dificuldades? Todos de domingo, onde os namorados se curiosos, outros estarrecidos, mas to-
éramos devedores de Portugal. Uma encontram com as mãos gélidas de dos de certa forma embevecidos pela
dívida contraída por decreto e sem nervosismo e o coração a saltar do coragem daquele homem.
v[03]
a menor possibilidade de ser salda- peito. Como poderiam usurpar dessa No início, alguns deles imaginaram
da. Muitas noites estive sem dormir, maneira um local abençoado pelos que seus olhos estavam a lhes pregar
pensando no assunto, mas acabei pássaros e pelo aroma das coníferas, uma peça. Os poucos letrados que
desistindo de tentar conhecer os seus presentes a toda a sua volta? O que compareceram ao local, referiram-se
motivos, diante de coisas mais impor- dizer da igreja, situada muito próxima a uma alucinação coletiva. O fato é
tantes e imediatas a serem prepara- ao assassínio? Um templo sagrado de que, na presença de todos, a cabe-
das. Éramos todos condenados e já Deus servindo de testemunha a mata- ça de Joaquim Xavier desvaneceu-se,
não tínhamos muito tempo. dores legalizados. lentamente, aos poucos desapare-
Após uma cansativa série de ape- Havia soldados por todos os can- cendo no ar, como se um fantasma
lações, obviamente sem menosprezar tos e o carrasco, um sujeito forte e fosse. Ao cabo de alguns minutos,
a ajuda de alguns amigos influentes, encapuzado, ajeitou delicadamente apenas uma corda vazia restava en-
consegui que as penas de enforca- a forca em torno do pescoço de Jo- roscada ao poste. A cabeça simples-
mento fossem comutadas para de- aquim Xavier. Ele estava bem bar- mente deixou de existir, diante dos
gredo perpétuo, na prática, um exílio beado e com os cabelos aparados à olhos perplexos de centenas de pes-
para as distantes colônias portugue- maneira militar. Sua expressão era im- soas que vieram para assistir aquela
sas na África. Lamentavelmente hou- passível. Não disse últimas palavras. barbárie. Então, quebrando o silên-
ve uma exceção: o alferes Joaquim Tudo foi muito rápido. cio fúnebre que se instalou entre as
Xavier não escapou ao enforcamen- Após o enforcamento, os bárbaros pessoas, ouviram-se cinco badaladas
to. Todo meu empenho, brilhantismo esquartejaram o corpo e queimaram do sino da igreja, contrariando a proi-
táquion fc
...FANTASMA...
Marcelo Henrique Pereira
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Capítulo 3 tudo de novo — disse um sujeito mal- as naquele local, incluindo crianças.
... -encarado sentado ao lado do Seu O que aconteceu? Percorreu com
José. o olhar e viu Lucas a uns cinquenta
S
eu José deu por si. Saco- — Ele está tendo um momento de metros, correndo de um lado para
lejava na caçamba de um lucidez — disse Lucas para o sujeito, o outro, falando com dois policiais.
caminhão velho que ronca- e voltando-se para o Seu José, ia co- Foi então que viu Fernanda, abaixa-
va alto e andava devagar. Havia pelo meçar a falar, mas o sogro perguntou da um pouco adiante dele, fazendo
menos dez pessoas ali, sentadas ou antes: um curativo numa senhora. Quando
deitadas, todas sujas, algumas ma- a chamou, a filha se virou imediata-
— Cadê a Fernanda?
chucadas. Tentou olhar para mais mente, assustada. Pediu a uma outra
Lucas engoliu em seco. O sujeito mulher vestida de branco, como ela,
longe, mas uma bruma esverdeada
mal-encarado deu uma risadinha irô- que terminasse a sutura e correu em
pairava sobre todo o lugar. Nunca
nica dizendo, mais para si mesmo, um direção ao pai, sorrindo e chorando
vira nada assim. O cheiro do diesel do
“lá vem”. Os olhos do genro estavam ao mesmo tempo.
caminhão era inconfundível, mas ha-
úmidos.
via um outro misturado, inédito para O abraço foi longo, mas Seu José
ele, um cheiro metálico, se é que isso — Levaram ela, Seu José. Levaram estava bastante confuso. Ia perguntar
— Pai. O senhor conseguiria se ... dele e do rapaz ao seu lado, havia na-
lembrar de ficar sempre comigo ou —, a gente acha que na capital quele espaço mais uma cadeira com
com o Lucas? Não, isso não adianta, pode ter alguma chance. Se o se- uma pessoa entubada.
o senhor não vai se lembrar da gente nhor conseguisse ficar calmo na hora Foi nessa hora que, de repente,
daqui a pouco. Pai, eu preciso que o que... Pai? ele jurou ter visto um pano flutuan-
senhor entenda o que a gente está do no meio do espaço. Durou um
passando, pra tentar ficar calmo, pra segundo. Ele piscou algumas vezes
tentar ajudar, entendeu? — Então co- Capítulo 4
para ter certeza, mas não via mais
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chichou para si mesma: — Por que eu ... nada. Alguns segundos depois, teve
tô falando isso? Seu José engasgou-se. Algum certeza. Num outro ponto do quarto,
Fernanda começou a rir, nervosa. tubo estava preso em sua garganta. uma coisa estava flutuando. Emitia de
Não sabia o que fazer com os seus Hospital? Não podia ser, porque o si uma suave luz verde clara. Parecia
poucos minutos diante do pai lúcido. breu era completo. Nada, nem uma um grande lenço de seda flutuante.
Seu José a abraçou, carinhosamente. pequena luz de aparelho médico. Ele Esvoaçava e se mexia em câmera
Disse que ela não precisava se pre- se debateu, mas sentia muita dor. lenta como se fosse movido por um
ocupar com ele, pois ele tinha vivi- Parou de se mexer para não sufocar. vento vindo de lugar nenhum. Não
do uma boa vida. Pediu para ela ao Ouviu algo à sua direita. tinha contornos muito definidos, pa-
menos dizer por que diabos estavam — Alguém? — tentou dizer, mas recia diminuir e aumentar um pouco
debaixo de um viaduto. Mesmo que provavelmente não saiu nada inteli- conforme se movimentava. Maldita
depois fosse esquecer a resposta, es- gível. toalha voadora, pensou Seu José,
tava curioso. perguntando-se que diabos estava
— Oi.
— Lembra que o senhor dizia não acontecendo e se ele estava sonhan-
Uma voz. Não conhecia. Era de al- do. Onde estaria Fernanda?
saber se gostava mais da ideia de
guém jovem. Moleque.
alienígenas ou de fantasmas, pai? No centro daquela coisa flutuante,
Duvido que o senhor esteja gostan- — Fique calmo, senhor. Não se um buraco redondo se abriu. O ser
do agora... — Ela sorriu, tentando mexa muito, nem resista. Eles não es- se remexeu e voou lentamente na
encontrar um pouco de humor no tão machucando a gente. Pelo menos direção do Seu José, que arregalou
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sofrimento de muitos dias. — No fi- não estão machucando a gente de- os olhos, sem poder se mover, com
nal, pai, os fantasmas eram os aliení- mais. Deixa acontecer tudo, se con- alguma maldita coisa enfiada em sua
genas, acredita? Algo assim. O Lucas seguir dormir na hora, muito melhor. garganta e os braços e as pernas pre-
entende muito melhor, por isso que Eu falo isso pro senhor todo dia, mas sos. A coisa ficou voando ali, parada
ele procurou os amigos dele da polí- todo dia o senhor faz a mesma coi- diante dele, em câmera lenta. Agora
cia e agora estão tentando fazer algu- sa. Acho que já entendi que o senhor já havia um segundo buraco nela, ao
ma coisa. Tá vendo, pai? Eu falei pro tem demência, tudo bem, tá tudo lado do primeiro. Estava parecendo
senhor que podia confiar em mim, certo. Mas fique calmo, não adianta um fantasma de histórias infantis.
olha só o Lucas lá, parece um herói ficar lutando. Faz uma semana que eu
O ser, então, sumiu. Seu José nem
tentando salvar a humanidade. estou sem os tubos, logo, logo o se-
viu, foi numa piscada. Segundos de-
nhor fica livre também, eu acho.
Seu José olhava para a filha com pois, apareceram, também vindas
todo o amor do mundo. Também Um flash de luz surgiu no ambien- do nada, duas daquelas toalhas, um
estava com saudades dela. A outra te. Por um segundo, Seu José pen- pouco mais para o fundo da sala,
mulher de branco acenou de longe, sou ter ficado cego. Mas o brilho foi emitindo a suave luz verde clara, as
chamando-a, mas ela pediu para es- ficando mais fraco, paulatinamente. únicas coisas visíveis na escuridão já
perar um pouco, também acenando. Tentou olhar ao redor, embora não absoluta. A coisa da esquerda tinha
pudesse mexer muito a cabeça. Es- uns quatro buracos na sua forma es-
— Pai, daqui a pouco vou chamar
tava em algum lugar muito estranho. voaçante, a da direita, nenhum. Esses
o Lucas pra ele explicar pro senhor.
As paredes pareciam feitas de algum negócios estranhos ficaram parados
Mas tem a ver com alienígenas. Faz
tipo de algodão, ou de gás hipercon- voando na frente dele. Dois dos qua-
uns seis meses. Nossa, parece que
centrado, num tom verde claro. Ele tro buracos da toalha da esquerda
faz uns três anos... Enfim, eles não
estava preso numa espécie de cadei- foram se fechando, lentamente. Na
são etezinhos chegando em navezi-
ra, parecida com as de dentista, mas toalha da direita, um buraco come-
nhas não, eles meio que aparecem
cheia de umas coisas esquisitas e no çou a se abrir, muito devagar, bem no
e desaparecem de qualquer lugar, a
mesmo tom verde claro das paredes. centro. Assim ficaram por uns bons
qualquer momento. Tem um lance da
Havia nela uns fios, umas lâminas, uns minutos, flutuando diante do idoso
física nisso, o Lucas vai explicar, algu-
pontos espelhados perto de outras no escuro silêncio.
ma coisa quântica, uns pontos não sei
partes com outras texturas. Tudo no
o quê, uns entrelaçamentos sei lá o ...
mesmo verde. A luz foi ficando mais
quê. Mas nem o Lucas entende com- Assim que os olhos do Seu José
fraca, até que já não dava mais para
pletamente, ninguém sabe de nada pareceram perder o foco, as figuras
distinguir quase nada. Mas ele pôde
direito. Estamos fugindo, pai —
ver, pelo canto do olho, que além sumiram, deixando o ambiente na
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conto
...fantasma...
táquion fc
mArCeLo HeNrIqUe PeReIrA
completa escuridão. Pouco depois, — Seu José, tudo bem? Que bom levado a sério demais o Halloween
a cadeira dele começou a afundar no que o senhor está conosco agora! — riu, acompanhado pelos vizinhos,
chão bem devagar. Não era possível Fernanda, fala pra ele. mas ninguém estava achando muita
ver o que havia embaixo. Ao mes- — Pai. Temos uma coisa pra con- graça.
mo tempo, algum líquido começou tar pro senhor. Estava esperando essa Nesse momento, um flash de luz
a passar pelo tubo, descendo acida- chance. Estou grávida! De algumas piscou no fim da rua. Pareceu um re-
mente por sua garganta. Nauseado e semanas! lâmpago, seguido de um chiado alto.
cheio de lágrimas nos olhos, sentin-
Seu José olhou com espanto para Algumas crianças gritaram de susto,
v[03]
do o corpo todo esquentar, Seu José
ela, então lhe deu um longo abraço. e alguns adultos na redondeza saí-
tentou gritar.
Três meninas corriam pela rua vesti- ram nas calçadas para ver o que tinha
— Não faça isso, senhor — lamen- das de bruxinhas, carregando doces acontecido.
tou o rapaz. — Não adianta. E eu já dis- em saquinhos de papel. Ele torceu — O pessoal caprichou mesmo —
se, eles nunca nos machucam demais. para que a filha tivesse uma menina. sorriu o vizinho Roberto, mas já não
Olhou sorrindo para o genro e lhe conseguia disfarçar a tensão.
Capítulo 1 deu os parabéns. Lucas envolveu os Quando a voz de uma mulher
— Pai? dois com o seu abraço. adulta ecoou no fim da rua, num grito
Fernanda olhava para o Seu José, Então, Roberto, um simpático vizi- desesperado, todo mundo se sobres-
surpresa. Ele estava lúcido. Era noite nho de muitos anos, chegou corren- saltou de vez.
e havia gritinhos de crianças pela re- do, meio confuso. Nem reparou que — Se é uma pegadinha, já está fi-
dondeza. Os dois estavam na calçada Seu José o reconheceu. cando sem graça — falou Fernanda.
em frente à casa. — A Daniela disse que viu um — Pai, fica aqui que eu já volto, só
— Lucas! Lucas! — Ela gritou, e fantasma de verdade — ele sorria, vou ver se a Dani está bem.
alguns segundos depois seu marido mas um pouco nervoso. Lucas já es- Ela saiu, uma múmia andando a
saiu pela porta com um copo de tava lhe apontando o Seu José e ia passos rápidos pela rua. Algumas
cerveja na mão, vestido de vampiro. começar a falar, mas o vizinho real- bruxinhas corriam no sentido contrá-
Um vampiro de dreadlocks, nada mal. mente estava tenso. — Ela já é mais rio, e nos seus rostinhos só havia o
Marcelo Henrique Pereira cresceu em meio aos livros e, para nunca sair
de perto deles, graduou-se em Letras e em Biblioteconomia. Lê avida-
mente e tem a ficção científica e a fantasia como seus gêneros predile-
tos. É natural de Mogi das Cruzes/SP.
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_M,a,R,c,E,l,O;l,U,i,Z;d,I,a,S_
cIcLoS vIcIoSoS
conto
táquion fc
CICLOS VICIOSOS
Marcelo Luiz Dias
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15 de setembro de 2023 da empresária é inenarrável. — Oh, é sim. Além da alegria de
— Betinho? Meu Deus, é você te ver, trago uma proposta de negó-
S
Senhor Roberto, a senhora mesmo? cios que vai nos fazer ganhar bilhões
Peixoto irá atendê-lo agora. de dólares nos próximos anos. Fiquei
Ela se levanta e corre para abraçar
muito feliz quando eu soube que
A secretária aperta um o amigo de infância.
você seria a minha sócia.
botão em sua mesa, a porta ao seu — Sou eu, Cris, senti muita sauda-
lado é destrancada. — Quando você soube? — Cristi-
de sua — ele retribui o abraço com
na senta-se novamente, com uma ex-
Roberto agradece, e entra no es- extrema ternura.
pressão mista de curiosidade e des-
critório de Cristina. É luxuoso, mas — Eu também morri de saudades! confiança — Como assim?
menor do que ele esperava. — uma lágrima de alegria escorre
— Cris, preciso que você tenha a
— Sente-se, senhor Roberto — a pela face da empresária — Eu tentei
mente aberta e me dê a chance de
mulher detrás da mesa, elegante- te achar nas redes sociais muitas ve-
provar o que vou dizer — ele respira
mente vestida, observa o seu laptop zes — ela continua — mas não lem-
fundo antes de continuar. — Eu in-
enquanto fala. — Eu não costumo brava seu sobrenome. Afinal a gente
ventei uma maneira de mandar uma
receber pessoas, especialmente des- tinha o quê? 11 anos quando minha
mensagem através do tempo.
celular tem 128 gigabytes. São — Espera, você ainda não cons- — Por exemplo: Meu eu “do futu-
1.099.511.627.776 bits. Mais de um truiu o emissor? — Ela ficou confusa ro” sabia onde encontrar você por-
trilhão de “zeros e uns”. — Como você sabe que ele vai fun- que o meu eu “de agora” recebeu
— Você está mandando uma men- cionar? a mensagem dele dizendo onde en-
sagem digital para o passado! — Cris- — Porque semana passada eu contrar você. Ou seja, eu nunca real-
tina sorri ao compreender. recebi uma mensagem minha do fu- mente pesquisei e descobri onde te
encontrar. Eu sei por que eu saberei,
— Exato. E isso nos dará informa- turo, de 13 de novembro de 2025 —
e eu saberei por que eu sei. É um ci-
ções privilegiadas vindas do futuro. Ele responde sorrindo. — Ela me di-
v[03]
sagem foi fácil. Construir o emissor é — Roberto fala como se sua explica-
ção fosse óbvia. hora. Na tela do laptop dele, imedia-
bem mais complicado. Vai levar pelo
tamente aparece o texto exato que
menos dois anos, e uma quantidade — Está bem — Ela não entende
ela escreveu no papel. No final vem
de recursos monetários que eu não a diferença, mas concorda. — Conti-
uma data, 13 de novembro de 2025.
possuo, mas você possui. nue.
P90
conto
ciclos viciosos
táquion fc
mArCeLo LuIz DiAs
— A carta vai chegar no meu en- — Eu confio muito em você, Beti- para um jantar comemorando os 20
dereço daqui a dois, três dias — Ele nho. Mas tanto dinheiro assim é mui- milhões de dólares ganhos na primei-
explica. — Eu a guardarei e naquela ta tentação. Como saberei que você ra semana da operação. Ambos estão
data enviarei seu texto para este mo- não tentará me enganar? muito felizes, mas nestas circunstân-
mento. — Simples — ele responde — você cias, quem não estaria?
Ela está visivelmente impressiona- fará todas as operações financeiras, e — Lembra quando retiramos o avi-
da. nunca me dirá onde você depositou so de “piso molhado” do corredor da
— Isso pode ser alguma espécie nossos lucros. escola? — Roberto pergunta, rindo.
v[03]
de truque... — Cristina parece incer- — Você confia tanto em mim as- — Sim! O Paulo Freitas levou um
ta. sim? — Ela diz, comovida, sentindo tombo daqueles. Nossas vinganças
Ele olha a hora. Na tela do laptop todo o carinho que sempre teve por contra aqueles que zombavam de
modificado aparece o texto “Não é ele aumentar. nós eram terríveis — Ambos caem
um truque, cri-cri. Pode confiar em — Confio, claro, confiaria minha na gargalhada — E ninguém nunca
mim”. Mesma data. vida a você sem nem hesitar — Ele desconfiou de nossas “tramas maca-
bras”.
— Como... — Ela começa a ques- responde, feliz.
tionar, perplexa. Ela sente um calor no coração que — E pensar que foi justamente
só sentia quando estava com ele no esse bullying que acabou nos unindo
— Eu memorizei suas palavras e a
nesse laço tão forte — os olhos de
hora que você as disse, e enviarei a passado, só que mais intenso.
Roberto brilham enquanto ele fala.
resposta do futuro. — Além disso, eu não mandaria a
— Ah, ano passado encontrei por
— Você memorizou e lembrou mensagem se desconfiasse que você
me trairia. acaso a Elisabeth, uma ruiva muito ir-
dois anos depois?
ritante, lembra?
Ele olha a hora. Na tela do laptop — Eu posso ter te obrigado a en-
— Lembro. Ela era uma das piores.
modificado aparece o texto “Eu te- viar a mensagem, no futuro.
nho uma excelente memória!”. Mes- — Essa possibilidade inexiste. Essa — Ela trabalhava como secretária
ma data. não é a garota por quem eu... — ele executiva de um fornecer de produ-
tos químicos com quem faço negó-
— Creio que você já sabe a respos- O homem fica visivelmente cons- vem chegar no receptor. Ele sequer
ta... — ele estende a mão para ela. trangido. precisou pesquisar as informações
— Sim, eu sei! — ela segura a mão — Vejo que o senhor não foi infor- privilegiadas. Ele só reescreveu a
de Roberto, sentindo seu coração se mado — Ele respira fundo. — Lamen- mensagem que recebeu no escritó-
aquecer. to dizer, mas houve um acidente com rio de Cristina, palavra por palavra.
o avião em que a senhora Cristina vol- Ele tinha as informações para mandar
7 de agosto de 2025 tava ao Brasil — uma pausa — Sem para o passado porque as recebeu do
sobreviventes. futuro. Outro ciclo vicioso.
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táquion fc
mArCeLo LuIz DiAs
Carmem olha para Jonas. — Bem, eu quero saber do que para o depósito três. Contrataremos
— É verdade, senhora — Ele diz, isso se trata! — a mulher diz, em tom alguém para descobrir do que se tra-
consultando o tablet — ele tem um meio ameaçador — Creio que pode- ta esta pesquisa depois do inventário
contrato válido até 13 de novembro mos chegar a algum tipo de acordo anual.
de 2025. Pesquisa Sigilosa. Acesso a muito benéfico para o senhor... — NÃO! — Roberto grita, apa-
todos os recursos e departamentos — Não me interessa nenhum acor- vorado — Vocês não fazem ideia de
da empresa. do. Eu não posso, não quero, e não com que estão lidando! Isso é peri-
— E que pesquisa seria essa? — irei falar. goso demais. O dano causado por
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pergunta a mulher, curiosa. Carmem revira os olhos e suspira uma pessoa despreparada pode ser
catastrófico!
— Meu contrato tem uma cláusu- fundo — Podemos forçá-lo, Jonas?
la de sigilo absoluto. A única pessoa — Não dentro da lei, senhora — — Então nos diga o que é, e fare-
com quem posso falar é especifica- Jonas responde. — Enquanto a se- mos um novo contrato com o senhor
mente a falecida Cristina. nhora falava, pesquisei sobre ele, é — Carmem lança um olhar vitorioso
um cientista de renome. Forçá-lo a fa- sobre Roberto.
— Está correto, senhora — Diz o
homem do tablet — O contrato es- lar por “outros métodos” — ele olha — Eu não posso, é muito perigoso
pecifica o nome de Cristina como para os seguranças — Pode gerar qualquer um saber da existência des-
pessoa física, não como presidente uma imagem bastante negativa para sa tecnologia...
da empresa. a empresa. — Seguranças! — ela diz com a
A nova presidente fica mais curio- — Está certo — A presidente co- voz bem calma — Levem esse ho-
sa. meça a dar instruções. — Cancele o mem daqui — Ela levanta o dedo. —
contrato do doutor. Revogue todos Sem machucados “visíveis”.
— Se você não pode falar com
os seus acessos. Certifique-se que — NÃO, É PERIGOSO DEMAIS! —
mais ninguém da pesquisa, por quê
todas as multas contratuais sejam Roberto grita, enquanto os seguran-
ainda a continua?
pagas. Levem tudo o que está aqui ças o conduzem para a saída à força
— Não posso dizer.
➾
— VOCÊ PODE DESTRUIR O MUN- da empresa, confuso. Tudo o que gem para o próximo voo para a Suíça.
DO, TODA A REALIDADE! aconteceu, a morte de Cristina, o sur-
Ela dá um sorriso sarcástico gimento de Carmem, será tudo parte 13 de novembro de 2025
do ciclo? Ou eles provocaram algum
— Até parece que vou acreditar Ir para a Suíça, resgatar seu dinhei-
tipo de desvio temporal com suas
numa besteira dessas — quando Ro- ro, transferi-lo para o Brasil, voltar ao
ações?
berto já está na saída do galpão, ela país, acessar a Dark Web para contra-
grita — Se mudar de ideia, me pro- De qualquer maneira, ele não tar um grupo de milicianos, tudo isso
cure. pode arriscar. Roberto precisa enviar levou onze dias, o que o levou exa-
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táquion fc
mArCeLo LuIz DiAs
hoje. Outro ciclo vicioso. ta, Roberto vacila em apertar o enter versos países em diversas datas, com
O plano é simples. Invadir a em- sem alterar a mensagem... os sites onde apostar — Cristina lê,
presa, enviar as mensagens, roubar De súbito, o receptor emite um maravilhada — Relações de empresas
o transmissor e o receptor e fugir do sinal sonoro. Roberto alterou sua ba- e tecnologias que ainda irão surgir e
país. Ele já tem um avião particular o teria para que durasse semanas em darão um lucro excepcional — Ela se
esperando em uma pista de decola- repouso. Ele abre sua tampa. Uma espanta — Haverá uma epidemia na
gem abandonada. Ser bilionário tem mensagem aparece em sua tela. Rússia ano que vem, aqui tem a cura
suas vantagens. e para quem a venderemos por meio
“Roberto, sou eu, você. Eu não al-
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bilhão de dólares... e um aviso para
A segurança da Peixoto Farma- terei a mensagem. 14 de novembro
eu não entrar no voo 783 saindo de
cêutica é boa, mas eles não estavam de 2025”
Dubai em 02 de agosto de 2025, ou
preparados para a chegada repentina — Como... — roberto balbucia. morrerei... — A voz quase lhe falta na
de três vans de onde desceram mais
“Eu estava dividido, mas então última palavra.
de vinte homens armados com fuzis e
recebi esta mesma mensagem, man- — O quê? — Roberto fala alto,
escopetas.
dada por mim amanhã, que agora re- bastante espantado — Não pode ser,
Tiros são disparados de ambos os produzo palavra por palavra. Por isso eu alterei diretamente nossa linha do
lados. Os alarmes tocam. Os homens eu enviei a mensagem que você vai tempo! Eu quebrei o ciclo! Eu arris-
de Roberto abrem fogo para manter enviar para Cristina agora sem alterá- quei destruir a realidade, ou coisa
os seguranças distantes, mas sem -la. 14 de novembro de 2025” pior — Ele parece completamente
mortes desnecessárias, como o cien-
— Mais um ciclo criado... — Ro- desorientado. — Não pode ser... a
tista ordenou.
berto fala para si mesmo — o risco menos que... a menos que...
Em meio ao tiroteio, Roberto en- está ainda maior... O rosto dela parece se iluminar. Ela
tra no prédio e corre para o depósito
— DEPRESA, CHEFIA! — o milicia- se levanta e se aproxima do antigo
três, acompanhado de dois milicia-
no grita. amigo, com o olhar fascinado, uma
nos. Facilmente ele encontra o recep-
tor e o emissor de táquions. “Você sabe o que fazer. Envie a lágrima, um sorriso de puro amor.
mensagem como Cristina a recebeu, — A menos que você venha a me
Roberto liga o emissor e está pron-
fuja com o transmissor, e envie estes amar tanto que decida arriscar des-
táquion fc
ONDE OS MORTOS VOTAM
VILTO REIS
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D
urante todo o trajeto até a tásticas sobre os grandes praticantes ras conversas de consolo, dos tempos
consulta pública sobre a ex- do passado. Gente capaz de curar em que estudamos juntas, atalhei o
pansão espacial, fiquei na doenças, viajar grandes distâncias em desabafo dela. Sabia que não fora fá-
dúvida se contava para minha amiga instantes e evitar desastres naturais, cil me apoiar a cada vez que o grande
o que sequestrava meus pensamen- pessoas altamente realizadas. Termi- Garôda-XIX Boemyr era citado e eu
tos. Juma-I não parecia perceber que namos a caminhada junto à toalha despencava a chorar. Afinal, fosse nas
eu aquiescia calada. Até por que ela quadriculada de um piquenique em aulas de engenharia e arquitetura de
falava o tempo todo, o que sempre que estão meu pai, mãe e avó, fan- baixo impacto, pensamento analítico
foi bom, pois ocupava os silêncios. tasmas do passado. O sonho se finda dedutivo ou didática de técnicas de
Contudo, simultâneo ao vagão após papai repreender o vovô, di- meditação, sempre surgia um profes-
que ocupamos inverter a polaridade, zendo que não alimente as fantasias sor disposto a citar o grande ancião,
liberando-se do alto do morro da Es- da pequena dele, que ela deve ter meu avô.
tação Cinza e obedecendo à lei da lucidez, para se tornar no futuro uma — Vou falar tudo de uma vez, Ju
gravidade que nos levaria até a pró- Grande Conselheira de Padma. Vovô, — prometi, criei coragem e enchi o
xima estação, minha amiga fez a per- que como todos também se foi, per- peito para dizer: — Você sabe que es-
gunta que eu não esperava após se gunta então: “o que você acha que tou fazendo as Práticas Iniciais, não é?
planeta há mais de mil e quinhentos Ao menos, adorava estar naque- — Você não olhou o telão? Não viu
anos. E não demorou muito para eu le local, pois simbolizava a união do no palco? Pobre, menina.
ser qualificada ao nível de explicar povo. De súbito, espremi os olhos na pri-
ponto a ponto o Tratado das diretrizes A construção era um colosso ca- meira direção que ele apontava. Uma
de um novo mundo, um documento paz de acomodar cem mil pessoas lista numerada com o nome de deze-
formalizado pelos sobreviventes em sentadas, o exato número que após nas de grandes anciões que seriam
que, após uma década de espera, estudos de impacto ecológicos há consultados para a conferência pos-
estabeleciam que por uma razão des- mais de quinhentos anos, concluímos suía algumas palavras em vermelho.
v[03]
conhecida perderam o contato com a que seria o ideal para vivermos em Quase desmaiei, tonteando. Ao me
Terra e que esta era uma oportunida- harmonia em Padma, tendo um bai- voltar para o palco, onde deveriam
de de recomeço para a humanidade. xo impacto ambiental. Os processos estar projeções holográficas dos an-
Por que uma criança sabia dessas eram muito diferentes da humanida- ciões conectadas aos clariaudientes
coisas? de antes de vir para cá. Até por isso, que traduziriam as palavras deles, en-
Foi a forma que vovô encontrou esta consulta pública era tão impor- contrei alguns assentos vazios.
de encher meus pensamentos, evi- tante. Porque se o programa espa- O único raciocínio lógico a que
tando que eu afundasse na perda de cial e a expansão fossem aprovados, cheguei se concentrou em uma per-
meus pais. Ele fazia eu citar palavra toda uma conduta ética sobre como gunta:
por palavra, decorando, sem permitir agir em um novo contato com a Terra
— Meu avô renasceu? Você desco-
que me rendesse ao que chamava de seria desenvolvida. Como lidaremos
briu onde ele reencarnou?
“tempos de degenerescência” da es- com uma possível ameaça imperia-
lista e colonialista? A democracia é a Kaléo-VII arqueou as costas encur-
crita, posto que as pessoas deixavam
de explorar todo o potencial de reter base deste planeta e precisa ser pro- vadas até ficar à minha altura, olhou-
e utilizar o conhecimento na mente. tegida. Afinal, mil e quinhentos anos -me nos olhos e balançou a cabeça.
Ao falar deste assunto, os olhos dele se passaram, porém, a pátria-mãe te- — Não, não é possível… — bal-
faiscavam e sua voz demonstrava ria evoluído ou regredido? buciei. — Você quer me dizer que
uma compaixão irada, porém ao se Estas eram as discussões que se Garôda-XIX renasceu em um reino in-
voltar para mim, tornavam ao tom de proliferavam nas rodas de conversas. ferior? Mas e os votos que ele tomou
MISSãO jAn 2024
ternura, repetindo que nada daquilo Rodas que se calavam sempre que de renascer quantas vezes fosse pre-
importava, pois eu era a esperança. eu me aproximava. O nervosismo ciso até todos os seres alcançarem a
Ah, a esperança. aumentou e fui tomada por redemoi- liberação do sofrimento? Não é esse
nhos na barriga. o objetivo da prática do Caminho?
Mas por mais que fosse um ancião
Fala alguma coisa, professor! E… e
conhecido em toda a Padma, Garô- Corri para os produtores de biogás
eu? — Minhas últimas frases foram
da-XIX Boemyr também se foi, como para esvaziar o corpo. Depois disso,
tomadas pela voz de choro enquanto
os demais integrantes da minha estir- fui duas vezes ao lavabo para ver se
enterrava o rosto na barriga comedi-
pe. Só me restava uma possibilidade. constatava algo de errado com a apa-
da dele, abraçando-o.
Nos dias de votação, os anciões que rência. Nada.
não estivessem reencarnados eram — Calma, filha — ele disse, afas-
Respirei fundo algumas vezes e
contatados pelos praticantes do tando-se, ergueu meu queixo e
decidi procurar meu mentor. Inde-
Caminho que desenvolveram a cla- me olhou nos olhos. A voz veio em
pendente dos outros, precisava fazer
riaudiência. Era preciso consultá-los, tom sereno. — Não sabemos o que
o que me trouxe aqui. Falar com vovô
pedindo conselhos e votos sobre a aconteceu. Nem os representantes
era a única coisa que me importava.
questão. do Grande Conselho sabem. Se ele
Entre tantas pessoas, encontrar al- tivesse renascido em qualquer reino,
Esta era uma oportunidade que eu guém específico seria difícil. No en- nós saberíamos. É como… como…
não perderia de receber de vovô um tanto, por ser considerado um mestre não devo falar para você. A única
conhecimento que ele me prometera da nova geração, altamente realiza- coisa que precisa saber é que a vo-
e que, talvez, fosse a companhia pela do, esbarrei em Kaléo-VII perto do tação da consulta pública será adiada
qual eu ansiava. palco principal. Ele descia com uma em três meses. Sem a sabedoria e o
f expressão séria. Por pouco, não me conselho de Garôda-XIX Boemyr, não
Ao entrarmos no complexo onde viu quando parei à sua frente e fiz o devemos decidir.
aconteceria uma série de conferên- gestual de reverência que um aluno
Enxuguei as lágrimas na manga da
cias antes da votação, Juma-I sumiu devia realizar defronte ao professor.
camisa, tentando não pensar na pos-
de perto de mim, rendendo-se à ba- — Kalina-III, minha aluna, eu la- sibilidade de ele ter…
julação da multidão de pessoas que mento. Lamento tanto quanto você
frequentavam as festas em que toca- — Melhor — comentei, incerta.
— expressou-se de um jeito sereno
va. Não duvidava que todos os habi- que não escondia um leve tom de — “A democracia se constrói com
tantes de Padma a conhecessem. Já comoção. o conselho de quem busca a sabedo-
eu procurei o anonimato, cobrindo a ria”, não é uma das frases de seu avô?
— O que quer di-dizer, mestre? —
cabeça com a touca do casaco. Concordei com a cabeça, e ele
gaguejei.
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conto
onde os mor tos votam
táquion fc
vIlTo ReIs
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o estado último da mente — rebati Normalmente, eu não perderia tório. No meu caso, dava aulas para
mais por costume dialético do que a compostura. Ou, ao menos, es- crianças. E à tarde e à noite, dedica-
por qualquer outra coisa. perava-se que alguém dos Boemyr va-me a intensificar os estudos me-
mantivesse a serenidade e sempre ditativos, seguindo o conselho do
Meu mestre franziu a testa, abriu
apresentasse uma resposta mais mentor. Na velha casa de tijolos de
a boca para responder com ímpeto,
transparente do que vidro. Muito adobe, construída há alguns séculos
entretanto se calou. Em seguida, es-
menos alguém que passara desde a por um de meus ancestrais Boemyr,
tendeu um sorriso e disse:
infância recebendo treinamento até eu virava horas sobre a almofada de
— Você deveria compartilhar mais os vinte anos de idade e, daqui para
meditação, alternando entre os mé-
os ensinamentos do seu avô, afinal frente, seria preparada para que aos
todos de shamata e vipassana.
isso seria de benefício para todos os quarenta anos — como ditava a lei de
seres, não? O único problema de quando
Padma — pudesse pleitear um cargo
você passa muito tempo estudando
Concordei com a cabeça, ocultan- entre os Grandes Conselheiros do
um assunto é que, em certo estágio,
do uma ponta de culpa por nunca ter planeta. Contudo, naquele momen-
o desenvolvimento se torna lento.
contado ao professor Kaléo-VII so- to, eu sucumbi.
Até parece que trava. No entanto,
bre a promessa do vovô. Depois nos Saí correndo, esbarrando em al- se persistir, chega um momento em
despedimos sob o argumento de ele guns, pisando no pé de outros e su-
que a barreira se rompe e você cruza
estar ocupado com a organização do plicando que me deixassem em paz.
do intermediário ao avançado. Mes-
evento. Larguei para trás os vultos embaça- mo que jamais devesse admitir isso
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conto
táquion fc onde os mor tos votam
vIlTo ReIs
que fossem embora tão rápido como estivesse certa. Talvez devesse dar velhos não for envenenado, seremos
vieram. As visões se manifestavam uma chance à parceira dela, apro- descobertos.
como imagens confusas. Ora eu via veitar um pouco a vida se surgisse —…
um buraco oculto em uma rocha, ora alguém disponível. Bem, e a Taio me-
Uma fisgada nas costas me trou-
um menino sorrindo para mim, ou xia comigo... os braços fortes, a pinta
xe à memória a imagem que vi há
uma espécie de fumaça viajando no na bochecha, ela nem precisava fazer
poucos dias, um lago que em lugar
céu, ou ainda um lago que em lugar nada.
da transparência da água, exibia um
da transparência da água, revelava Juma-I morava no térreo. Defronte tom esverdeado. De súbito, entendi
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um tom esverdeado. ao prédio, então, resolvi espiar pela tudo, como se a imagem fosse um ar-
Supus que devido aos obscureci- janela para ver se havia alguém em quivo que ao ser descompactado tra-
mentos da mente, não conseguia en- casa, pois estranhei encontrar o local zia uma série de outras informações.
tender nada. todo fechado. O interior repousava Eles pretendiam envenenar a água
f escuro. Apenas a tela de alguém com com a Muideira-Braba, porém com
Dois dias antes da nova data da quem minha amiga falava se manti- qual objetivo? Com que fim minha
consulta pública, resolvi relaxar um nha acesa, iluminando o rosto dela. amiga se envolvia nisso? Uhm, espe-
pouco. Na realidade, quase ouvia a Envergonhada de agir assim, me ra. Aula de Botânica Homeopática do
voz de Juma-I censurando meu rigor abaixei, porém não consegui evitar sétimo ano. Ainda bem que vovô me
com as atividades do Caminho. Tal- de ouvir a conversa. cobrava que tivesse tudo na ponta da
vez por saudades de me irritar com — Toda a Muideira-Braba que a língua. Sim, óbvio. A Muideira-Braba
ela, como só amigas mais próximas gente precisa está pronta? Tlec-tlec. possuía um componente que servia
do que irmãs são capazes, resolvi vi- Não vai ser pouca pra todo mundo para preparar uma droga capaz de
sitá-la. Uma visita surpresa, à moda que vai na consulta? conter a clariaudiência de pessoas
antiga, como dizem por aqui. Por que que não conseguiam dominar esta
—…
não? habilidade. Era uma espécie de anes-
A pessoa do outro lado deve ter tésico que agia nos neurotransmis-
No caminho para o prédio de es-
respondido, mas não pude ouvir, pois sores, bloqueando parte da ação da
trutura de bambu onde ela morava
Juma-I usava fone de ouvido. A con- glândula pineal.
com a Taio-IV, lembrei da nossa con-
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versa prosseguiu:
versa no vagão, quase três meses an- Caramba! Eles sabotaram a comu-
tes. Quem sabe minha DJ preferida — Sim, eu sei que se algum dos nicação com os grandes anciões!
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conto
onde os mor tos votam
táquion fc
vIlTo ReIs
— O vagão está solto e correndo posso deixar você estragar tudo, en- nunciar vocês. É melhor se entrega-
pelos trilhos — Juma-I comentou na tende? Tlec-tlec. Jamais entenderia a rem e cooperarem.
chamada. — Nada vai nos impedir. gente. — É mesmo, Ka. E como vai fazer
Está na hora desses velhos safados — Explica! — supliquei, querendo isso?
que mantiveram nosso povo longe que tudo fosse um engano. Provavelmente, era a última carta
do ramo principal ficarem em suas
A DJ voltou a se erguer, tomando que possuía, mas precisava jogá-la.
covas bem quietinhos.
posição ao lado da consorte. — Com clariaudiência, é óbvio.
—…
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— Padma precisa se libertar do Posso me comunicar com ele por te-
Eu seria incapaz de acreditar na- passado. Todos clamam por um líder lepatia.
quilo se me contassem. Minha pró- forte que lute por nossos interesses, Juma-I não economizou na risada.
pria amiga!? As lágrimas vieram aos que ligue menos para as tradições e
olhos, o coração subiu na garganta e — Ah, é mesmo? Tlec-tlec. Ainda
mais para o futuro. Queremos menos
eu me virei para correr. Neste instan- que pudesse fazer isso, e eu sei que
meditação e conversa fiada e mais
te, alguém mais forte do que eu me está mentindo e não pode, quem
ação. Vamos aderir à expansão es-
imobilizou e, em seguida, escutei a você imagina que faz parte da nossa
pacial, acabar com essa regra de que
voz conhecida dizer: facção e, como responsável por con-
uma pessoa precisa se preparar por
tatar Garôda-XIX Boemyr, o ignora?
— Acho que ouviu uma conversa quarenta anos de vida para concorrer
Tlec-tlec.
que não devia. a um cargo do Grande Conselho e
preparar um exército antes de nosso A frase longa e confusa descarri-
Em seguida, uma pancada na ca-
contato com outros mundos. lhou todas as esperanças. Por que
beça me apagou.
Kaléo-VII estaria metido em algo as-
f — Tudo bem você achar que isso
sim? Súbito, a imagem dele dizendo
Acordei confusa e com o corpo é o melhor para Padma, apesar de eu
que eu deveria compartilhar mais coi-
dolorido. Por isso, deduzi ter passa- não concordar. Só que por que não
sas que vovô me ensinara, com aque-
do horas desmaiada em uma posição fazer isso de modo democrático? —
le olhar que só agora eu inferia ser de
desfavorável. Demorei um tantão de desafiei minha amiga.
inveja, solapou minha mente. Como
tempo a lembrar do que tinha acon- — Você acha que o Grande Con- em um jogo mental, os enigmas se
que talvez possibilitasse a fuga. No estrela diurna brilhava no céu. Em um me encontrar tão desesperada em vir
entanto, se não bastasse colocar a instante, via as pessoas se acomodan- do prédio de bambu até aqui, não
própria vida em risco, comprometeria do no Complexo um tanto desconfia- planejei nada direito. Não devia me
outras pessoas que viviam no pré- das, apontando para todos os nomes desesperar. O tempo é um estado
dio de bambu. Em dias de votação, vermelhos que apareciam no painel e ilusório, assim como este sonho que
era comum as crianças ficarem com para os conselheiros andando agita- chamamos de realidade, vovô costu-
os avós incapazes de se locomover. dos sobre o palco principal. Qual não mava dizer. Com isso em mente, me
Além de outros pequenos seres que foi a surpresa delas quando apareci concentrei em buscar a resposta que
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também se beneficiavam da moradia em frente à tribuna? Aos olhos do me foi exigida, tentando agir de acor-
ali. público, eu deveria me assemelhar a do com os mecanismos deste sonho.
Não, nada disso. uma projeção holográfica, pois pas- Olhei ao redor, evitando o desespe-
saram a apontar para mim comemo- ro e pensando em profundidade na
O que me restava senão meditar?
rando com ingenuidade. Olhei para resposta. Não contava com qualquer
Por mais irônico que fosse, o conse-
as mãos. Eu não permanecia ali fisica- prova externa, nenhuma materialida-
lho de Juma-I se revelava correto.
mente, embora estivesse ao mesmo de que confirmasse as acusações. Só
Mantive as costas mais eretas pos- tempo em diversos lugares, compar- restava examinar meu interior e puxar
sível, cerrei os olhos e examinei a tilhando dos pensamentos de tudo e deste poço profundo algo que aju-
questão a fundo. Olhei-a de diversos de todos. dasse.
ângulos, sem julgamento, buscando
Fitei o painel e lá estava, ao lado O que me trouxe até ali? Na pri-
apenas a sabedoria última, que é qua-
dos nomes, a mensagem: FAREMOS meira audiência, queria contatar vovô
lificada para produzir os insights. Em
A VOTAÇÃO COM OU SEM DISCUR- e pedir que revelasse o Primeiro Selo
dado momento da madrugada, abri
SOS DOS ANCIÕES. Secreto do caminho espiritual, como
os olhos e soube que a luz do dia co-
meçava a aparecer. A essa hora, elas No instante em que apareci, Juma- prometeu. No entanto, por que eu
deviam estar chegando no Complexo -I se dirigia à tribuna, entretanto es- queria tal coisa? Acreditava que isso
onde seria a nova consulta pública tacou a poucos metros de distância, beneficiaria todos os seres de nosso
abalada ao me ver. planeta? Não, buscava preencher um
sobre a questão da expansão espa-
vazio interior deixado pelas ausências
cial. Contudo, ao surgir um princípio — Uma anciã — uma pessoa gritou
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táquion fc
vIlTo ReIs
dela revelavam que eu luzia e cintila- são em que vivemos, passei a enxer- estranho ver ela sem as tranças, de
va, flutuando sobre a plateia. — To- gar os grandes anciões do passado. cabeça raspada, tratada de forma co-
dos sabem que uma crise econômica Translúcidos como eu, eles pareciam mum e sem multidões de fãs ao redor
é consequência de uma crise política, me apoiar. dela, todavia ela parece ter se adap-
que advém de uma crise social, que é Sorri em resposta. tado — parei de falar, engolindo em
o resultado de uma crise moral. Ape- seco, então lembrei da segunda per-
A multidão emocionada se pronti-
gados ao nosso eu, criamos o pensa- gunta dele. — A votação confirmou
ficou a votar a questão da expansão
mento de nós e eles ou, pior, de eu a expansão espacial. Isso foi há seis
espacial, pois a jornada interior inicia-
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e o outro. anos. Ouvi boatos de que o progra-
da era muito mais pujante e provo-
Fiz uma pausa para que absorves- cadora do que qualquer uma que o ma de conduta ética, assim como as
sem o pensamento, então retomei: naves de exploração estão prontas.
espaço celeste proporcionaria.
Logo devem ser lançadas.
— Muitos de vocês, tal como eu, f
têm ao lado do nome quantas vezes Quase chegando ao mosteiro, ele
— E o que aconteceu com elas? —
renasceram seguidamente como se- o menino perguntou. se virou para mim. A expressão não
res humanos. Há vidas e vidas, esta- era mais tão infantil. Então, o menino
Caminhávamos por uma trilha es- transfigurado questionou:
mos reafirmando nossos hábitos do
treita que circundava as montanhas.
eu, porém precisamos olhar para o — O que você quer? Por que me
A neve aumentava na mesma pro-
interior da mente e lembrar que tudo levaria nesse passeio na neve se não
porção em que a temperatura caía.
que vivenciamos é ilusão, mesmo que fosse para perguntar alguma coisa?
Por isso, apressávamos o passo, para
ignorância, apego, aversão, raiva e Limpei a garganta, que parecia
logo chegarmos ao mosteiro encra-
orgulho nos levem a pensar que este pronta a se congestionar devido ao
vado na rocha há centenas de anos,
sonho é real. A sabedoria de Garôda- frio, e arranhei ao dizer o que queria:
mas o rapazinho me cobrava o fim da
-XIX e dos outros anciões é a mesma
história. — Quando vai me ensinar o Se-
que vocês compartilham ao manter a
Ao pensar na resposta para a per- gundo Selo Secreto?
mente livre dos obscurecimentos cau-
sados pelas emoções, pensamentos e gunta, enchi-me de compaixão e as O menino pôs a mão enluvada na
sensações. Se todos se dedicarem à lágrimas vieram aos olhos, de forma barriga e se curvou de tanto rir. Ao se
táquion fc
DIACONISA
SOTRATI
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E
la desceu do carro de aplica- rando. casa. A mesma mulher tornou a falar.
tivo com a maleta colada ao Duas senhoras obesas e um ra- — Ela está lá dentro, no quarto
corpo. Inclinou-se pela jane-
pazote esquálido estavam diante da dos fundos.
la que estava inconsequentemente casa, olhando ansiosos para ambos — Faz muito tempo?
aberta do lado do passageiro, paraos lados da rua. Ignoraram totalmen-
pagar o motorista, um senhor de ida- — Em doze minutos completarão
te a cena do carro, seja por estarem
de indefinida, mas que ela apostaria 48 horas.
acostumados com coisas piores, seja
que aparentava bem mais anos que por estarem mais focados em suas Bem específico. Específico demais.
os que realmente tinha. Gente curtida
próprias desventuras. Ela se aproxi- Elas não pareciam aterrorizadas, ape-
na dura lida diária. Ela respeitava isso.
mou do pequeno grupo que pareceu nas incomodadas. Em geral estariam
— Você é daquelas mocinhas que se assustar com sua presença. se descabelando defronte a casa,
realizam fetiches, não é? terço e Bíblia nas mãos, rezando aos
— Foi daqui que pediram o apoio
berros junto aos vizinhos e entoando
Colocou a mão nodosa em seu espiritual?
antigos cânticos litúrgicos. Mas estão
pescoço e foi descendo com elas em As mulheres arregalaram os olhos ali, apenas inquietas e cansadas, ávi-
direção aos seus seios. O rosto se tristes e um tanto avermelhados e o das para que minha ação acabe e elas
contorceu numa expressão lasciva, rapaz manteve o olhar na rua. A que
uma estola roxa, que colocou sobre age em mim é o Puro Equilíbrio e a — Et Filii...
os ombros. Aproximou-se do quadro Verdade. — Filii...
de energia elétrica da casa e colocou — Saia. Saia. SAIAAAAAAAAAA- — Et Spiritus Sanctis.
um dispositivo ali. Não poderia arris- AAA.
car ser filmada. Nem tanto por ela, — Sanctis...
Na barriga da menina surgiu um
mas pela alma atormentada que não — Amém.
queloide com as palavras: my oait,
merecia ser exposta por aquela situa- A menina balbuciou algo que nem
“me ajude” em frísio. A diaconisa sa-
ção que ela não causou. vagamente lembrava a palavra amém.
cou o frasco de água benta e borrifou
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Em cerca de dez minutos as duas uma boa quantidade sobre o corpo A diaconisa apertou o crucifixo com
mulheres e o menino saíram da da menina. Ele esperneou loucamen- mais força, retomou a água benta e
casa, carregando vários espelhos e te, buscando soltar-se das amarras de deixou escorrer uma boa porção nos
duas sacolinhas plásticas com obje- pano que a prendiam no leito, mas lábios da menina. Aguardou alguns
tos pequenos, mas aparentemente parecia impossibilitada de romper instantes e disse energicamente:
pesados. Ela acionou o dispositivo grilhões tão débeis. — Amém.
cortando o fornecimento de energia
— In nomine Patris et Filii et Spiri- — Amém — respondeu a menina e
elétrica. Olhou o medidor no pulso e
tus Sancti, per virtutem crucis, libera, as lágrimas rolaram pelo rosto magro
notou que não tinham outras fontes
Domine, animam hanc a malignis spi- e se fundindo no travesseiro com a
de energia. Respirou fundo, pegou a
ritibus, et expelle omne diabolicum baba roxa de outrora.
maleta, colocou o crucifixo no bolso
incursu. A diaconisa pegou uma toalha nas
da frente da calça e o frasco de água
benta no bolso da blusa. Manteve a As palavras pareceram açoitar mais costas de uma cadeira e limpou o
Bíblia em uma mão, a maleta na outra o corpo da menina que a aspersão. A rosto da menina. Desamarrou a mão
e adentrou a casa. diaconisa pegou então o crucifixo e o esquerda e viu vários cortes em forma
encostou na testa da possuída. de cruz invertida próximos ao pulso.
O cheiro de enxofre e ferrugem
era bastante forte. Não foi difícil en- — Exorcizo te, omnis spiritus O dedo mindinho parecia quebrado.
contrar onde a menina estava, não immunde, in nomine Domini nostri Nenhuma marca das amarras.
tanto pelo tamanho da casa, mas pe- Jesu Christi, ut recedas ab hoc loco et — Por que você fez isso, criança?
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los rastros de destruição que levavam a haec persona. Aufer a malo omnes Ela desatou a chorar. Aquilo não
até o corpo de uma menina de uns incursiones tuas. Da locum Christo, in foi uma possessão, foi uma invoca-
quinze anos amarrado em uma cama quo nihil invenisti de operibus tuis. ção. Não deveria acontecer, nem
de madeira em um quarto nos fundos A menina começou a revirar os uma, nem outra coisa. Esse mundo
da casa. olhos, balbuciar palavras desconexas estava mesmo à beira de seu colapso,
Quando ela entrou no quarto, a e soltar uma baba arroxeada pelos físico e espiritual.
menina virou o rosto para ela. Enca- cantos da boca. Lembrava muito um A diaconisa a fez sentar-se. A me-
rou a diaconisa com olhos injetados ataque epilético, excetuando que a nina não soltava a Bíblia. Mantinha os
de vermelho, uma secreção amarelo- vítima estava totalmente consciente. olhos no teto. E apertava ainda mais
-esverdeada juntando ao redor dos — Humiliare sub potenti manu a Bíblia.
olhos e colando os cílios às sobran- Dei, contremisce et effuge, invocato a — É meu presente pra você. Leia
celhas. Teve um forte acesso de tos- nobis sancto et terribili nomine Jesu, e viva. Ou apenas leia, já vai ser me-
se antes de gritar com uma voz que quem inferi tremunt. lhor do que perder tempo invocando
tentava emular um homem idoso e Mantendo o crucifixo na testa da demônios. Não há proveito nenhum
falhava miseravelmente. menina a diaconisa soltou-lhe a mão nisso, criança. Só me dá trabalho de
— O que quer aqui, filha do Ou- direita da amarra que a prendia à libertar essas almas atormentadas. E
tro? Esse lugar não te recebe. Essa cama, colocando nela a Bíblia. A me- ganho nenhum.
alma é minha, fiz o necessário para nina agarrou o sagrado livro com for- A menina abraçou a Bíblia e vol-
que assim fosse. ça e o levou até o peito. tou a chorar. A diaconisa saiu da casa,
— Vim libertar essa pobre alma. — Ut Ecclesiam tuam secura tibi passou pelo quintal, foi até o quadro
Você sabe que isso é antinatural. Está facias libertate servire, te rogamus, de luz e pegou seu dispositivo. En-
burlando as leis ancestrais e eu não audi nos. controu o pequeno grupo no portão.
posso permitir isso. A menina parecia quase desfale- — Deem carinho pra ela. E parem
— Que queres tu de mim? Acaso cida. As pernas, antes rijas, pareciam com essas ideias estúpidas de ganhar
buscar ser no mundo avilta o Outro? mais relaxadas. Os lábios, bastante dinheiro com vídeos de exorcismo.
Não há de querer confrontar-me, re- roxos e molhados, pareciam ensaiar Meu cartão. Digam que queimei os
les mortal. Sou mais do que vês e não uma prece, mas não achava as pala- equipamentos, façam algum dinheiro
há poder em ti, pobre farrapo huma- vras. com eles.
no. — Repete comigo: In nomine Pa- — Mas... mentir não é pecado? —
— Sou apenas o instrumento, po- tris... perguntou balbuciante o rapaz.
bre criança. Nada posso, mas o que — Patris... — Perto do que vocês fizeram?
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conto
diaconisa
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sOtRaTi
Sério? pego tão desprevenido. Dá próxima cada vez mais entregue ao ápice da
Ele se encolheu envergonhado. vez pode não ser eu no plantão. criação. Contrariada ela levantou a
As mulheres sequer voltaram o olhar — Parece que Alguém lá em cima cabeça e encarou aquele vértice da
para Diaconisa quando ela saiu. gosta de mim. tríade Infernal.
— Tem algum metrô daqui pro — Ele ama todas as suas criaturas. — Eu não sou um diabrete domés-
centro? tico que botou os chifrinhos ontem
— Eu sei..., mas está cada vez mais
à tarde sob esse sol opaco — Disse
— Três quadras pra baixo, vira à difícil. Não sei o quanto mais eu vou
ele entre chateado e entediado. —
v[03]
direita e mais duas. conseguir. Parece que a humanidade
Sou um dos pilares fundadores dos
A diaconisa foi sem outras pala- não precisa mais de tentações, preci- Sete Infernos. Aquela família tinha
vras. Desceu a rua, virou à direita, sa de freios. devoção ali, fé verdadeira e vibrante.
localizou a estação do metrô. Desceu — Nunca nos prometeram facilida- Eram adoradores fiéis. E era só uma
as escadas encardidas, um lodo de des. armadilha. Algum soldado menor
excrementos, lixo, animais mortos e — Mas parece que nosso papel teria sido facilmente adestrado. Só
água pútrida. no Plano da Salvação já não está te acionaram porque perderam toda
Como desconfiava, o local estava mais sendo tão útil. Tenho saudades possibilidade de controle. Aquela po-
deserto. Contou três bancos a partir dos embates com padres exorcistas bre menina tinha uma alma mais árida
da entrada, após a catraca, e sentou- e dos tele evangelistas. Hoje o mal que as vastas extensões de Al Nafud,
-se nele. Só então abriu a maleta e está além de nossa compreensão e o deserto infernal.
guardou cuidadosamente seus obje- manipulação. Isso que a humanidade — A assunção dos escolhidos já
tos sacros. foi criada à imagem d’Ele. Imagino se foi realizada pelo Todo Poderoso.
Uma lufada de ar trouxe um per- fossem criados à minha imagem. Falta pouco para que a Criação seja
fume que lembrava pêssegos. Ela Ashtaroth soltou um grunhido que resgatada e descanse em seu regaço
adorava pêssegos. Era um cheiro tão a Diaconisa interpretou como uma — Tentou ela, com voz tranquilizante,
marcante que podia sentir o gosto da risada. Ele tinha razão. O mal estava embora o toque de sarcasmo fosse
fruta na boca. E daí para devanear de tal forma crescendo no coração difícil de esconder. — Até lá, cabe a
com bons momentos foi um piscar de da humanidade que cada vez mais os nós o papel insalubre da conversão
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A DANÇA DA TRANSFIGURAÇÃO
Pedro Coppola
PRÊMIO TÁQUION FC
Segundo colocado
edição janeiro de 2024
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B
râmane Gael aguardava na cima, assim como balaclava e óculos complemente a minha.
sala de espera, enquanto térmicos. Depois de sentir a nevasca — Assim será feito, Brâmane —
o Navegador imprimia seu em seu corpo por tempo adequado, Navegador respondeu.
novo corpo. Gael se deu por satisfeito e dissolveu
Gael inspirou lentamente.
A sala branca virtual servia para a simulação ao seu redor.
seu Átma ir se acostumando com as — Navegador, estou pronto.
novas modificações corporais. Uma Iteração 50.37.10.20.02.
— Muito bem, Brâmane — Nave-
pele grossa para resistir à tempe- gador respondeu como uma voz in- Quando soltou o ar, ouviu a ne-
ratura baixa e pressão atmosférica corpórea vinda dos céus. vasca batendo no metal do casulo lá
alta, ossos e tendões reforçados para fora. Apertou o interruptor e a porta
Gael cruzou as mãos atrás das cos-
aguentar a gravidade dez por cento se abriu, deixando-o escorregar pelas
tas e inspirou lentamente. Soltou o ar
maior do que a padrão. Seu corpo foi paredes acolchoadas e mergulhar na
e abriu os olhos, mas ficou surpreso
complementando por uma bactéria nevasca da realidade. Mesmo com
quando percebeu que ainda estava
que convertia metano em oxigênio, toda proteção que selecionou ainda
na sala de espera.
enquanto suas habilidades anaeróbi- sentia os ventos gélidos tentando en-
cas foram potencializadas para com- — Navegador? Qual o problema? trar por baixo das roupas.
por enorme casaco de inverno levan- da personalidade do Especialista. das de dentes afiados e uma língua
tou a mão e fez sinal de saudação. — Que bacana — ele disse. — Por- bifurcada. O cheiro podre que bateu
Quando Magote deu um passo que esse corpo humanizado já não em suas narinas era característico de
para frente, Gael rapidamente levan- estava divertido suficiente. Como carnívoros.
tou as mãos para cima e as cruzou, vocês conseguem andar por aí desse Dois disparos no lombo do animal
em um sinal arquetípico de cuidado. jeito? o fizeram fechar a boca e tombar de
Magote compreendeu, ou ao menos O Comediante. Uma personalida- lado. Ele se levantou rápido demais
alguma de suas personalidades o fez, de de interação social a qual Gael para tanto peso e seus quatro olhos
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e ele parou. O Brâmane traçou a de- nunca se afeiçoou muito. Talvez por vermelhos se fixaram em Magote e
limitação da fenda com as mãos, de- isso o Navegador o escolheu: a per- seu rifle. O animal saltou no sintetó-
pois sinalizou para que o sintetóide sonalidade destoante da dele pode- ide, mas três novos disparos o joga-
desse a volta. Magote levantou a mão ria se aproximar melhor de figuras ram para o chão, sem se mexer.
em sinal de positivo. que o Brâmane não conseguiria. Gael e Magote observaram o ani-
O casulo enfincado na neve ar- O mapa topográfico da região mal morto. Se assemelhava a uma
queou e a neve ao redor foi afundan- produzido pelo Cintamani era limi- mistura entre urso e toupeira, mas
do. Ao perceber que a neve aos seus tado, porém permitia identificar o seu tamanho e agressividade defini-
pés estava prestes a afundar também, perímetro da possível localização do tivamente o deixavam mais perto da
a postura de Magote mudou. Se en- corpo desaparecido de Gael, além categoria urso.
curvou mais, dobrou os joelhos. Deu de mostrar a distância relativa que — Parado.
impulso e saltou a fenda como um estavam da colônia do planeta. Gael Uma arma foi encostada na nuca
atleta. Teria conseguido, se o corpo mostrou seu Cintamani para Magote, de Magote. O sintetóide se virou
que estava usando não houvesse sido já que não conseguia transmitir. rapidamente e desarmou a pessoa,
limitado pela tecnologia da colônia.
— Copie o mapa — Gael disse. — desmontou a arma e a jogou pelo
Magote caiu a poucos metros de
A prioridade é encontrar meu corpo chão. Gael nunca teve tanta certeza
Gael, onde a neve ainda afundava.
e a doutora. de sua decisão de pedir pelo Espe-
O Brâmane rapidamente pegou cialista nessa missão e agradeceu ao
Magote puxou um cabo de trás de
a mão do sintetóide e o puxou para
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buraco enorme onde seu coração de- e ficou em silêncio enquanto ruma- Provedor poderá salvá-lo.
veria estar, de certo causado por um vam para a colônia. Gael conhecia o — Seu amigo está em boas mãos
disparo de plasma à queima-roupa. especialista há tempo suficiente para com a doutora, ela sabe o que está
Gael suspirou. saber que ele não acreditou em sua fazendo.
— Sou eu. desculpa, apenas concedeu por res-
Enquanto Gael tranquilizava a mo-
peitar o Brâmane.
— Eles o mataram — Dra. Singh torista, Dra. Singh entrou pela janela
explicou. — À sangue-frio. Depois de um bom tempo de mar- do veículo e sentou-se no banco do
cha, avistaram um objeto no meio da motorista, usando a alça de seguran-
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— O que causou isso? Era uma
paisagem branca. Conforme se apro- ça para se manter equilibrada. Ela
missão de paz, oferecendo tecnolo-
ximaram, viram que era um veículo de colocou a mão no ombro da pessoa
gia.
exploração com uma de suas esteiras machucada.
— As respostas para suas pergun- afundadas na neve, o lado do moto-
tas só podem ser respondidas por — Acalme-se — ela disse na língua
rista levantado no ar. Um urso-toupei-
você mesmo — Dra. Singh disse. desconhecida, seu próprio assistente
ra tentava entrar pela janela e alcan-
— Eu estava ajudando Nguyen, que neural já trabalhando na tradução. —
çar as pessoas lá dentro.
havia torcido o pé. Nguyen me deu Eu vou fazer um curativo rápido para
O especialista Nguyen se desta- podermos levá-lo daqui.
cobertura e eu fugi com você. Tentei
cou do grupo e começou a atirar con-
salvá-lo, mas como pode ver, estáva- A doutora abriu sua maleta com
tra o animal, que se virou contra ele
mos demais limitados pela tecnologia cuidado e pegou anestesia, gaze de
e saltou. Um disparo do rifle acertou
local e não pude fazer nada. coagulação rápida e alga de desbri-
bem no interior da boca do animal e
— Muito bem — Gael disse, pu- damento. O Brâmane se manteve ao
ele caiu, fumegando.
xando um cabo receptor de trás de lado da janela para o caso da doutora
Gael e Dra. Singh se aproximaram precisar de sua ajuda, mas focou-se
sua orelha. — É hora de entender mi-
do veículo. na motorista.
nha própria morte.
— Alguém ferido? — o Brâmane — Quem são vocês? — a motorista
— Isso não vai ser nada agradável
perguntou. perguntou.
— Magote disse.
Um grito de dentro do veículo. — Eu sou Brâmane Gael, a Dra.
bestas — Flora respondeu. — Eles se va que não fosse. necessário para o que eles chamam
escondem por túneis pela neve e ata- — O que está acontecendo aqui? de período de provação, mas sufi-
cam ao menor sinal de movimento. — aquele que parecia o líder pergun- cientemente avançados para o que
Mas nunca atacam grupos grandes. tou. Um homem carrancudo, com viu daquela colônia.
— Gael! — Dra. Singh chamou de uma cicatriz na face. — Gostaria de demonstrá-los para
dentro do veículo. — Vou precisar de Flora se colocou na frente dos de- sua liderança, se vocês tiverem uma.
uma ajuda aqui. mais. — Irmã Judite já está a caminho —
Com a ajuda da Dra. Singh, Gael Davi disse. — Apenas aguardem ela
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sa filosofia de ajuda comunal. aproximou de Gael, seu rosto qua- tentes — Irmã Judite disse. — Eles
se colado ao dele. O Brâmane viu se opunham apenas a alguns tipos de
— É muito interessante, mas não
Nguyen se mexer e discretamente tecnologia.
temos interesse em ser reintegrados
sinalizou para ele não interferir.
a outras sociedades. Nguyen olhou para Gael, torcendo
— Porém muito do que você clas- a boca. Dra. Singh respirava rapida-
Dra. Singh interrompeu.
sifica como adversidade pode ser in- mente.
— Desculpe a franqueza, irmã Ju- tencional.
dite. Mas não acredito que sua colô- — Significando...? — a doutora
— A interferência — Nguyen disse. perguntou.
nia possa se dar ao luxo de se isolar
— É projetada para eles não serem
com todas as dificuldades que estão A freira lhes voltou um ar de supe-
detectados.
passando por aqui. rioridade, e ficou em silêncio.
Gael sorriu para irmã Judite.
— E que dificuldades são essas? — — Foi-me mencionado um Pro-
a irmã perguntou, cerrando os olhos. — Posso perguntar, irmã, qual a vedor, Irmã — Gael disse. — Não é
origem dessa colônia? você, eu imagino.
Gael deu um olhar reprovador para
a Dra. Singh e ela ficou em silêncio. Ela sorriu de volta e se afastou, an-
— Venham comigo — Irmã Judite
dando de um lado para o outro. convidou e foi subindo as escadas no
— Embora a Dra. Singh peque
no quesito suavidade — Gael disse — Fazíamos parte de uma colôniacentro da catedral. Dra. Singh a se-
—, devo dizer que notamos algumas muito guiu reticente e Gael foi fazer o mes-
maior, que abrange diversos
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conto
táquion fc a dança da transfiguração
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— Alerta. Seu neuro-implante está bui energia para a colônia quando ne- Os dois padres puxaram punhais
sendo hackeado. cessário, nos informa onde encontrar com vibro-lâminas e foram para cima
Um zumbido o derrubou, e fez o alimento e quando as nevascas vão de Gael e dos demais. Nguyen sal-
mesmo com a doutora e o especia- acontecer. Ele indica onde as bestas tou, mesmo desnorteado, puxou
lista. Um sinal se conectou ao neu- se esgueiram e nos protege de nos- sua pistola e atirou nos dois padres.
ro-implante de Gael e transmitiu um sos inimigos. E até mesmo atrai estra- O primeiro foi arremessado para o
pacote de dados. Quando terminou, nhos com novas tecnologias. chão, mesmo que um escudo cinéti-
código e caracteres se manifestaram O assistente neural de Gael bata- co inferior ao kavacha de Gael tenha
no centro da sala, tentando formar lhava com o Asura tentando hackeá- cintilado e o protegido da maior par-
uma figura humana, sem consistên- -lo, enquanto o zumbido desorienta- te da energia cinética. O segundo ele
cia. Tornou-se uma figura humanoide va a ele e seus companheiros. Tudo errou, sua mira provavelmente revol-
enorme feita de código. o que o Brâmane tinha eram suas vida pela Asura.
— SOU TEU DEUS E TEU ÚNICO palavras. — Vão — Nguyen gritou. — Eu
DEUS — a figura disse, sua voz rever- — Irmã Judite, me escute. Não vou segurar eles.
berando pela catedral. nos opomos a seres virtuais, muitos Dra. Singh puxou Gael e juntos
Irmã Judite sorriu satisfeita. de nossa comunidade o são. Mas eles correram para o andar abaixo.
esse Asura é perigoso, corrompido Outros padres apareceram das esca-
— O problema para os ludistas foi
por um código malicioso que espalha das laterais, provavelmente já alerta-
que nós encontramos um Provedor, e
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paranoia entre as pessoas. dos pelo Asura. Dra. Singh e Gael pu-
eles queriam exterminá-lo.
— OLHOS ALTIVOS E LÍNGUA xaram suas pistolas, disparando para
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conto
a dança da transfiguração
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afastar outros colonos que se aproxi- — Temos algum tempo enquanto para purgar o Asura da colônia. O
mavam. Os colonos atiraram em sua meu assistente neural batalha contra único problema é que ele não sabe
direção, mas os kavachas de Gael e o Asura, só que preciso voltar para o como o Asura está causando a inter-
da Dra. Singh desviaram a munição Vimana para ser purgado. Se morrer- ferência.
cinética. mos todos aqui, o Vimana vai mandar — AQUELE QUE PEDE, RECEBE...
Os dois fugiram pelos corredores outra iteração minha e posso ser in- A voz reverberou tão forte em
termais, desviando dos colonos que fectado de novo. sua mente que desnorteou Gael. Viu
tentavam cercá-los. Até que Davi, o — Desculpe, chefe — Magote dis- Provedor se formando em sua visão
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chefe de segurança, fechou a passa- se, outra personalidade. — Só que e saiu correndo da caverna. O Asura
gem deles. Carregava uma carabina não faz sentido o que cê tá dizendo. estava rastreando o código corrompi-
de energia dirigida oriunda de épo- Não é melhor eu voltar pro Vimana e do dele, provavelmente transmitindo
cas corporativas, já girando a mani- purgar o Asura? Cê já foi infectado, do corpo da Dra. Singh.
vela. afinal.
— O QUE BUSCA, ENCONTRA...
O tiro atravessou o peito de Gael. — Nada garante que você não foi — escutou, para trás de si.
Vento gélido foi tomando o corredor, infectado também — Gael disse, ven-
Conforme seguiu pela caverna,
segundos antes de tudo apagar. Dra. do os caracteres corrompidos.
Gael viu uma silhueta branca no ca-
Singh tentou ajudá-lo, mas era tarde — O sistema Magote automatica- minho, enorme como um urso. Sem
demais. Os colonos foram cercando- mente isola qualquer personalidade muita opção, foi obrigado a entrar
-a. infectada e cê sabe disso — Mago- por outra passagem, que descia ao
O corpo de Brâmane Gael pere- te explicou. — Acho que a influência invés de subir. Quando emergiu,
ceu. do Asura já começou a bagunçar tuas notou que a pressão se tornou mais
ideias. forte, e seu assistente neural indicou
Iteração 50.37.10.20.02. — Acho interessante — Dra. Sin- que saiu em uma fenda. Igual aquela
gh disse. — Imaginei que de todas as onde quase caiu quando essa itera-
Gael estava na caverna de novo,
personalidades de Magote, o Come- ção sua chegou ao planeta. A mesma
junto com Magote e a Dra. Singh.
diante veria vantagem de se juntar a fenda onde a mula com as tecnolo-
Se as antenas estavam cobertas do o chefe de segurança — Nguyen caído, e mirou a cabeça de Gael.
pela neve, ele só precisava colocar o explicou, mantendo as mãos levanta- — Últimas palavras? — Comedian-
amplificador em um ponto alto. Esta- das. — Flora me ajudou a ficar es- te perguntou, seu cabo de conexão
va quase no ponto em que aterrissa- condido, até que ela me avisou que balançando perto de Gael, que ime-
ram, acima da nevasca. Finalmente, mandaram Davi atrás de vocês. diatamente se lembrou do que a In-
chegou em terreno mais plano. Gael manteve a mira em Nguyen. vestigadora disse.
— NÃO GRITARÁ, NEM CLAMA- Precisava pensar. Talvez fosse o códi- — Apenas que você deveria ter se
RÁ — o Asura disse. — NEM ERGUE- go corrompido deixando-o paranoi- esforçado mais para se adaptar a esse
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lista frente à arma, depois deixou seu de forma analógica no Cintamani. O — ele disse, depois mudou de tom:
corpo mais solto. Brâmane precisou se esforçar para se — Valeu por tudo, chefe.
— Cê não tá pensando direito, manter acordado, mas pôde conferir Os disparos destroçaram o sinte-
chefe — Magote disse, ao estilo da que o sintetóide conseguiu transmitir
tóide em segundos, pouco sangue
Investigadora. — Seu Cintamani para o Vimana. manchando a neve. Circuitos antes
pode transmitir informações também. — Feito, chefe — Magote disse. escondidos debaixo de pele agora
Vamos colocar a informação nele e — Único problema é que os colonos expostos em pedaços.
transmitir para o Vimana. estão chegando. Os colonos abriram passagem
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— Não...! — Gael gritou, vendo os A coluna de Magote encurvou, para uma figura em seu meio. Quan-
caracteres corrompidos se espalhan- suas pernas levemente dobradas. do ela se aproximou de Gael, abaixou
do novamente. — Isso é um truque... Gael via cada vez mais caracteres o gorro do casaco e levantou a bala-
Você está servindo Provedor... anômalos tomando sua visão. Os co- clava.
O semblante de Magote tornou-se lonos surgiam no horizonte, pontos — Irmã Judite... — Gael murmu-
frio, o que seria aviso suficiente para mais escuros na imensidão de branco. rou. —Você precisa enxergar... Pro-
um Gael em controle de suas faculda- — Eu vou segurar eles — Magote vedor usa frases de textos sagrados
des mentais. O tiro acertou seu om- disse. — Aguente firme, senhor. antigos... fora de contexto e sem sua
bro, que explodiu em dor. — Eles estão sendo controlados... real profundidade... para manipular
— Desculpe, senhor — Magote — Gael pediu. — Em pouco tempo... vocês...
disse. — Mas você disse que a dor — O TERROR ESTÁ SOBRE TI. — E você sabe uma coisa ou outra
ajuda a ignorar o Asura. sobre manipulação, não é? Sabíamos
A imagem da figura feita de carac-
Gael jogou sua arma longe, mes- que tentariam de tudo para destruir
teres se formou ao lado de Gael, que
mo sabendo que não teria forças para Zoara, mas Provedor viu através de
tentou cortar qualquer transmissão
tentar disparar mais. Ele entregou o suas mentiras. E agora você irá mor-
externa, mas era tarde demais. Pro-
Cintamani para Magote. rer.
vedor havia tomado boa parte das
— Bem pensado... Especialista... funções de seus transplantes. — Esperem! — outra figura de ca-
Investigadora... Cuidem disso agora. saco gritou do meio dos colonos e
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podem matar ele, eles nos ajudaram. — A SOBERBA DO HOMEM O ABA- norteados, enquanto Cáli dançava ao
— A VERDADE É A ESSÊNCIA TERÁ. seu redor.
DA TUA PALAVRA — Provedor disse, A outra iteração de Gael pousou — NÃO! — Provedor gritou, sua
levando a mão para Flora, e depois sua mão na têmpora do Brâmane. voz digitalizando. — Impeçam ela
para Gael. — DERRAMAREI MEU ES- O corpo de Brâmane Gael pere- de...
PÍRITO SOBRE ELE, E ATRAVÉS DELE ceu. O código corrompido foi se des-
MINHA PALAVRA SERÁ PREGADA fazendo do Asura, revelando uma
EM TODAS AS NAÇÕES. figura mais humana, uma mulher de
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Iteração 50.37.10.20.03.
A freira pareceu contrariada, mas terno escuro e óculos, longos cabelos
acabou por aceitar e fez uma reverên- Aquela iteração de Gael não iria claros com tufos brancos. Em pouco
cia a Provedor. viver por mais do que alguns minu- tempo, o expurgo estava completo.
tos, de qualquer maneira. Estava sem A figura enorme de Cáli, com seus
— Sua vontade será feita, meu
kavacha, órgãos internos falhando, dez braços e dez pernas, terminou a
Provedor.
hemorragias para todo lado. Depois dança e se dissipou no ar.
Três explosões nos céus. Três ca- que Gael o tocou, todas suas células
sulos atingiram a região, a explosão morreram ao mesmo tempo e ele de- A mulher que restou do Asura
de neve forçando os colonos a se es- sintegrou. olhou para suas mãos e ao seu redor.
palharem em desespero, imaginando Os colonos foram se aproximando,
Os colonos à sua volta o olhavam fascinados. Até mesmo Irmã Judite
que estavam sobre ataque.
desconfiados. Era um planeta bonito, se aproximou. O Asura se tornou uma
O casulo mais próximo de Gael se apenas de vida quase impossível. A
Devi. Ela olhou para Gael, que sorriu.
abriu e uma figura de traje biológico, imensidão do branco da neve por
placas termais, barba branca e rosto todo lado disfarçava o relevo que seu — Você me trouxe de volta — ela
moreno deslizou para a neve. Ele ti- neuro-implante traçava em sua men- disse, uma voz bem humana no que
nha um sorriso amigável, e caminhava te. Os elementos do ar se misturavam o Assistente neural de Gael identifi-
confiante em sua direção. cou como uma língua antiga da Terra
com a luz da gigante vermelha e cria-
Lamentada. — Como conseguiu isso?
— Brâmane Gael... — Gael mur- vam um céu de um púrpura incrível.
murou para a figura. — Eu presumo... Gael se aproximou.
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habilidades, muitas vezes são funções nha Provedora.
administrativas. — Navegador. Já transferiu os
Aparentemente aceitando seu pa-
Átmas da Dra. Singh, especialista
— Tenho alguma experiência pel na colônia, a Devi colocou sua
Nguyen e Magote?
com isso — Provedora disse, depois mão na cabeça da freira.
chacoalhou a cabeça. — Quer dizer, — Está feito, Brâmane — Navega-
— Acalme-se. Eu não sou um ser
muito mais positiva do que como ad- físico. Uma cópia minha irá com ele, dor respondeu. — Seus corpos tam-
ministrei aqui até então. E quem são enquanto outra ficará em Zoara. E bém já foram desintegrados.
vocês? quando a cópia retornar, nós partilha- — Perfeito. Mais um Átma será
Gael sorriu. remos nossas memórias. transferido além do meu.
— Somos uma sociedade igualitá- Irmã Judite não deu sinal de que — Muito bem, Brâmane — Nave-
ria e pós-escassez. Nosso objetivo é entendeu, mas concordou. Uma figu- gador respondeu, e fechou a cone-
interligar a humanidade novamente, ra de casaco e balaclava destacou-se xão.
buscando as forças que partilhamos e do meio dos colonos e se aproximou — Está pronta? — Gael disse para
com respeito a seus credos e crenças, de Gael. Provedora.
de forma a potencializar nossas pos- — Sinto muito que seus amigos — Não — a Devi respondeu. —
sibilidades de crescimento. não tenham sobrevivido — Flora dis- Mas isso nunca me impediu antes.
— Soa como ficção científica — se. — Eu devo minha vida a eles. Gael triangulou a transmissão do
Provedora brincou. — Eles não estão mortos, apenas Átma de Provedora, depois transmi-
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GROLION DE ALMERY
Matthew Hughes
AUTOR CONVIDAD0
v[03]
Revisão: Daniel Vasconcelos Gomes
fff
Matthew Hughes é um autor anglo-canadense de ficção científica, fantasia e de livros de mistério. Considerado o
legítimo sucessor do grande mestre Jack Vance, Matthew possui uma obra com inúmeros contos, livros e antologias
publicadas. Sua prosa é rica e elaborada, e um de seus universos favoritos é o gênero Dying Earth (Terra Moribunda).
O conto que vocês lerão foi publicado em uma antologia em homenagem à obra “Dying Earth” de Jack Vance, que
compreende 4 livros, dois deles dedicados ao personagem Cugel, artista de golpes, pilantra profissional e aproveitador,
que aqui é apresentado como Grollion, um nome de fato suspeito. Matthew aproveita e ainda nos brinda com uma
referência ao universo Lovecraftiano. Em 2020, foi incluído no Canadian SF and Fantasy Association Hall of Fame. Pela
primeira vez em português, este conto foi gentilmente cedido pelo autor para publicação exclusiva no Táquion FC.
fff
soma de todos eles. de mim sobrevive sendo capaz de amarelos flamejantes, uma brusca
— Sobrou um guisado de cogu- lidar com nomes próprios, nem mes- corrente de ar vinda da porta inter-
melos cultivados no jardim interior, mo qualquer das magias que exigiam rompeu todo o movimento.
juntamente com os restos do bife de da memória, caso contrário eu já teria — Afaste-se — disse o morador.
esteáquilo de ontem — disse o inqui- desferido uma vingança sombria há — Mexer no desenho antes de estar
lino. — Meio pão bannock e um pe- muito tempo. pronto pode ser altamente perigoso.
queno barril de cerveja. O inquilino virou a tigela para en- Grolion balançou-se sobre os cal-
O queixo pontudo do estranho tornar na boca os últimos goles de canhares e ficou de pé. Seus olhos
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ergueu-se numa demonstração de ensopado. Ao se voltar para cima, percorreram o padrão, tentando vê-
coragem. seu olhar caiu sobre meu esconde- -lo como um todo, mas seu esforço,
rijo. Retraí-me, mas já era tarde. Ele é claro, não funcionou. — Qual é seu
— Faremos o melhor possível.
tirou da gola da roupa um pequeno propósito? — indagou.
Aparentemente, eles haviam tro- apito de madeira que pendia de uma
cado nomes antes de eu chegar, corda em volta do pescoço e soprou O inquilino entrou na sala e o afas-
pois quando estavam sentados com uma nota aguda. Ouvi o bater de asas tou. — O residente anterior da casa
tigelas de ensopado nos joelhos e membranosas vindo do corredor e jo- o começou. Lamentavelmente, ele
colheres nas mãos, o inquilino quis guei-me no ar em uma tentativa de nunca foi totalmente aberto sobre
saber — Então, Grolion, qual é sua escapar. Mas a criaturinha que guar- suas intenções. Tinha a ver com uma
história?” anomalia interplanar. Ao que parece,
dava seu quarto, antes meu, agar-
a casa se encontra sobre a interseção
O sujeito com cara de raposa or- rou-me com as patas semelhantes a
de várias dimensões. Esse nó cria
ganizava suas feições numa imagem mãos. Um sorriso cruel lhe atravessou
uma fraqueza nas membranas que se-
de nobreza assolada por provações o rosto quase humano quando arran-
param os planos.
imerecidas. — Sou herdeiro de títu- cou minhas asas e carregou-me de
lo e terras em Almery, embora este- volta para seu poleiro acima da porta — E onde se encontra esse “resi-
ja temporariamente despojado da do quarto, onde me enfiou em sua dente anterior”? Por que ele deixou
herança por conta de intrigas e con- boca. Retirei-me do corpo empresta- seu trabalho perigosamente inacaba-
chavos. Viajo pelo mundo, aguardo do antes que seus dentes manchados do?
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estas parecem menos opressivas do convencido, mas o inquilino tinha a escondido no muro acima. Ela rapi-
que a maioria. vantagem de possuir o que o outro damente teceu uma malha confinante
— Oh — disse o morador —, nada desejava, fosse uma meia fatia de de seda adesiva para amarrar minhas
disso é meu. Sou apenas um humil- pão e um gole de chá salobro, e as- asas, depois me virou habilmente e
de servo do conselho da aldeia, pago sim seus pontos de vista prevalece- pressionou suas pinças bucais per-
para cuidar das instalações até que ram. furantes contra meu abdômen. Senti
os assuntos do proprietário sejam fi- Eu sabia o que o morador faria a intrusão abrasadora de seus sucos
nalmente resolvidos. Meus proventos com esse novato. Retirei-me para o digestivos dissolvendo minhas entra-
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são pequenos e pagos principalmen- jardim interior e escondi-me numa nhas e retirei-me para o lugar que era
te com cerveja e esteáquilo. fenda profunda no muro circundante, ao mesmo tempo meu santuário e
minha prisão.
Recebeu como resposta um gesto de onde pude observar sem impor
de despreocupação. — Eu lhe darei minha presença. Pouco tempo de- f
— disse Grolion, — uma nota promis- pois de terminada a parca refeição, Quando pude ver mais uma vez,
sória de uma quantia considerável, os dois homens entraram em meu ân- Grolion e o inquilino haviam parado
resgatável quando meu direito de gulo de visão. de trabalhar para receber o fiscal.
primogenitura for restaurado. Como eu esperava, o inquilino Encontrei-os em discussão animada
no vestíbulo. O inquilino insistiu no
— A restituição de sua fortuna, ine- chamou a atenção do visitante para
o imponente espinheiro que domina- argumento de que o custo extra do
vitável sem dúvida, não é garantida
va uma das extremidades do jardim. sustento de Grolion compensava o
antes do crepúsculo.
Suas dezenas de galhos-membros aumento de produtividade que se se-
Grolion tinha mais a dizer, mas o
enfeitados com suculentas moviam- guiria. O oficial fingia não estar facil-
morador lhe interrompeu. — O fiscal
-se sem parar, tentando o ar, vários mente convencido, observando que
vem dia sim, dia não, entregar meu
já empertigados na direção dos dois vários assistentes anteriores haviam
salário. O espero a qualquer momen-
homens, pois captaram seus odores sido avaliados e todos considerados
to. Vou pedir a ele que me deixe con-
corporais mesmo através da extensão ineficientes.
tratá-lo como meu assistente.
do jardim. O morador admitiu, mas acrescen-
— Ainda melhor — disse Grolion
Enfurnado em uma rachadura da tou — Os outros eram inadequados,
dente surpresa, a porta o pegou e o em questão de instantes, os cortes se samente brotados, muitos dos quais
jogou de volta no vestíbulo. Ele sen- fecharam e ele viu apenas as paredes continham cadáveres ressecados de
tou-se no chão, atordoado, gemeu e e os armários do refeitório. pequenos pássaros e lagartos voado-
colocou as mãos na cabeça enquanto O oficial partiu. O morador deu res que tinha vindo para se alimentar
seu rosto mostrava que seu crânio de instruções rápidas sobre os afazeres das larvas de borboletas que rasteja-
repente havia se tornado abrigo de culinários de Grolion: a preparação vam e avançavam pela folhagem. O
uma dor latejante. do esteáquilo envolvia vários passos homem ainda não havia notado que
— É o Encanto Seletivo de Phan- complexos. Daí, retornou ao desenho um galho fino e verde, com a extre-
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daal — disse o inquilino. - Além de na oficina. Procurei uma oportunida- midade em boca cercada por espi-
manter fora o que deve ser mantido de de fazer contato com Grolion. De- nhos semelhantes a dentes, havia se
fora, mantém dentro o que deve ser bruçado estava sobre a mesa de pre- prendido entre dois nós dos dedos e
mantido dentro. paração, com um pesado batedor de se preparava para se alimentar. Toda
— Desfaça o encanto — gemeu carne de madeira na mão, amaciando a sua atenção estava do outro lado,
Grolion, com a dor distorcendo sua um pedaço de carne de esteáquilo voltada para uma borboleta almiran-
voz. — A besta se foi. como se este o tivesse ofendido por te, dourada e carmesim, recém-sur-
algo mais do que a resistência vigoro- gida de seu casulo. O inseto estava
— Não há como — disse o fiscal.
sa de sua textura e seu odor de mofo. secando suas asas translúcidas sob a
— Só pode ser removido por quem
Ele murmurou imprecações terríveis luz fraca do sol que se filtrava pelos
o lançou.
em voz baixa. Eu pairei na frente dele, galhos entrelaçados da árvore.
— O residente anterior? voando de um lado para o outro rit- Grolion soprou suavemente sobre
— Ele mesmo. micamente. Se eu conseguisse cha- a pequena criatura, o calor de sua
— Então estou preso aqui? mar a atenção dele, seria o primeiro respiração acelerando o processo de
passo para iniciar uma conversa. secagem. Então, quando a borboleta
O inquilino falou — Assim como
eu, até que o desenho esteja concluí- Ele levantou os olhos e me notou. dobrou e flexionou as pernas, pre-
do. O fluxo de energias interplanares Comecei a voar para cima e para bai- parando-se para saltar em voo, ele a
que serão então liberadas desfará to- xo e em ângulo, com a intenção de pegou habilmente e a transferiu para
traçar o primeiro caractere do silabá- uma garrafa de vidro de gargalo largo
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das as magias.
rio de Almery. Parecia uma estratégia que pendia de uma tira em seu pes-
Grolion indicou o oficial — Mas ele
razoável. Olhou-me com desdém, coço. A tampa do recipiente, presa
entra e sai.
ainda murmurando ameaças e mal- entre seus dentes, foi fixada na boca
— O feitiço seleciona. Daí o nome. dições contra o inquilino. Passei para da garrafa. E começou o esforço de
— Venha — disse o oficial, cutu- a segunda letra, mas ao executar um descida, libertando a mão perfurada
cando Grolion com a ponta de seu ângulo agudo, a cabeça de Grolion da mordida do galhinho. O espinhei-
cajado —, não posso ficar aqui en- recuou e disparou para frente; ao ro o beliscou e o picou lentamente,
quanto você tagarela. Levante-se e mesmo tempo, seus lábios lançavam tentando mantê-lo no lugar enquanto
preste atenção. um bocado de saliva em alta veloci- sua mudança de peso desencadeava
A conversa prosseguiu. O plano dade. A gosma me pegou no meio a resposta de alimentação. De vez em
do inquilino foi aprovado: Grolion do voo, colando minhas asas e me quando, ele tinha que fazer uma pau-
receberia sua própria ração de cerve- fazendo cair em espiral por sobre o sa para arrancar espinhos soltos que
ja, bannock e esteáquilo, no que de- pedaço de esteáquilo já meio ama- agarravam em suas roupas; um ou
pendia a satisfação que seu trabalho ciado. Olhei para cima e vi o batedor dois conseguiram perfurar sua carne
resultasse. A falta desta resultaria na descendo, e então fui embora mais profundamente o suficiente para que
uma vez. ele tivesse que parar para soltá-los
redução dos emolumentos. Já o fra- antes que pudesse retomar a descida.
casso, levaria ao confinamento puni- f
tivo na cripta úmida e malcheirosa da Quando encontrei outro transpor- Toda a ação acontecia com Gro-
casa. te, um zangão de corpo pesado, vá- lion emitindo comentários abrangen-
Grolion propôs diversas alterações rias horas já haviam se passado. O in- tes sobre a flagrante injustiça de seu
a estes termos, embora nenhuma re- quilino estava no estúdio ampliando destino e os responsáveis por ele,
cebeu aprovação. O fiscal tirou então o desenho com pinças e gabaritos. O expressando desejos sinceros quanto
da carteira uma faca dobrável que, último braço da estrela se encontrava aos acontecimentos no seu futuro. O
ao ser aberta, revelou uma lâmina quase completo. Feito isso, a hélice inquilino e o fiscal eram protagonis-
de pedra negra. Ele cortou com ela tripla no centro poderia ser colocada tas dos comentários, assim como ter-
e o trabalho estaria findo. ceiros que considerei serem antigos
o ar acima da mesa do refeitório e conhecidos em Almery. Estava tão
das incisões caiu um pedaço de es- Grolion estava a meio caminho do
ocupado com suas calúnias que não
teáquilo. Ele então repetiu o proces- espinheiro-bravo, os pés apoiados
consegui encontrar jeito de atrair sua
so, produzindo outro naco. Grolion em um dos vários troncos, uma mão
atenção. Retirei-me para uma fresta
viu o que pareciam ser duas feridas, segurando um galho da espessura de
no muro do jardim para espiar o in-
aparentemente no ar, chorando um um braço, os dedos cuidadosamente
quilino pela janela do estúdio.
líquido como sangue pálido. Então, posicionados entre os espinhos den-
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Ele estava ajoelhado junto ao de- cou-a sobre uma esteira de madeira O melhor é se adaptar às minhas pe-
senho, delineando em prata um friso macia em cima da bancada e pegou quenas vontades. Agora vá.
de anéis azul-celeste entrelaçados na um bisturi com uma pequena lâmina Dando de ombros como reprova-
borda de um dos braços da estrela. em forma de meia-lua. Com um gol- ção tácita, o assistente voltou para
A prata, como todos os outros pig- pe preciso e experiente, separou a o espinheiro. Com o inquilino ob-
mentos usados, era aplicada como cabeça triangular do inseto do tórax. servando seu progresso, achei im-
um pó fino liberado lentamente pela Enquanto as asas e as pernas ain- prudente segui-lo. Mas Grolion não
extremidade de um canudo. O dedo da se moviam em agonia reflexiva, o subiu na árvore. Em vez disso, ao se
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indicador do inquilino bateu no ca- inquilino vestiu uma fina máscara de aproximar de sua larga base, onde as
nudo mais três vezes enquanto eu gaze e pediu a Grolion que fizesse raízes grossas penetravam no solo,
observava, daí, pegou uma pequena o mesmo. — Uma expiração forte ele parou de repente e recuou brus-
escova que tinha uma única cerda na pode nos custar muitas escamas —, camente, como se alguma ameaça
extremidade e alinhou um excesso. disse ele, pegando um raspador em terrível bloqueasse seu caminho.
Grolion apareceu à porta, resmun- miniatura. Com delicadeza, ele esti- O inquilino percebeu o movimen-
gando, praguejando, e oferecendo o cou as asas e raspou um pó fino de to. — O que se passa? — gritou.
frasco tampado. O inquilino o enxo- ouro e carmesim, demonstrando a
Grolion não se virou, mas olhou
tou com uma série de movimentos técnica de mover o instrumento para
atentamente para o emaranhado de
agitados das mãos para que o sangue a esquerda para acumular uma pitada
raízes com medo e fascínio ao mesmo
que escorria de seus cotovelos não de ouro de um lado, e para a direita
tempo. — Não sei — disse ele, e de-
caísse sobre o padrão. Então, ele se para acumular um amontoado ínfimo
pois inclinou-se cautelosamente para
levantou e contornou o desenho para do outro tom. Quando cada uma das
a frente. — Nunca vi nada parecido.
receber o recipiente. quatro asas foi raspada até mostrar
a membrana pálida, pegou dois ca- O morador aproximou-se, mas pa-
— Observe e lembre-se — dis-
nudos ocos e, com delicadeza atra- rou um passo atrás do viajante. — O
se ele, levando o recipiente para a
vés da gaze, sugou os pigmentos da que vês? — perguntou.
bancada e acenando para Grolion
segui-lo. — Se eu promover você a mesa. Um galho sensor estendeu seu
assistente sênior, esta tarefa poderá — Pronto — disse ele — uma ma- tubo para Grolion. Ele se defendeu e
sílaba de encantamento e encho-te a rador. — Eu era seu assistente-mor, ças empregadas por Fallume, que ele
boca com terra e te largarei na árvore. com outros dois sob meu comando. acabou por desgastar as membranas
— Nenhum feitiço novo pode ser Éramos apenas aldeões, embora entre os planos de forma permanen-
lançado aqui — ofegou o prisioneiro. aprendêssemos rapidamente. Ele es- te. As pesquisas do meu mestre lhe
— A fraqueza interplanar cria um flu- tabeleceu-se aqui porque, de acordo mostraram que, aqui e somente aqui,
xo muito grande. Os resultados, mes- com ele, as condições eram sobrema- ele poderia criar uma cópia do mun-
mo de uma pequena magia, podem neira propícias: uma intersecção úni- do superior e mantê-la em definitivo.
ser imprevisíveis. ca de planos com quatro camadas. Dentro dessa área ele poderia com-
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A árvore tinha uma propriedade e a riqueza não chegava mais por Encanto Seletivo de Phandaal, para
única, podendo existir em mais de aqui. Fizeram um acordo: a aldeia manter a árvore sob controle. Mas o
um plano ao mesmo tempo. Porém, lhe forneceria ajudantes e necessida- feitiço também nos confinou.
apresentava uma forma diferente em des diversas e ele, em troca, realizaria Ao ouvir isso, entristeci-me mais
cada um deles: no primeiro nível do pequenas magias e forneceria o be- uma vez ao pensar na miopia do con-
mundo superior, era uma espécie de nefício do esteáquilo. selho, logo quando estava fazendo
animal, um caçador multi membros — Em que consiste esse esteáqui- tão bons progressos. Tentei não es-
das almas transmigradas de peque- lo? cutar o que o inquilino continuava a
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nas criaturas que evanesciam do contar: como, enquanto eu dormia,
— Um animal imenso que nada
nosso plano; no submundo, era uma meus assistentes alimentaram meu
através de um oceano sem fim de
serpente espinhosa cujos hábitos guardião com uma batida de mel
uma dimensão adjacente. Entenda
alimentares eram obscuros, embora com entorpecente e depois irrom-
que os termos “oceano” e “nadar”
desagradáveis. Os atributos de todos peram em meus aposentos armados
são apenas aproximações. Ele deu à
os três mundos coexistem nas seivas com facas.
aldeia a faca que corta apenas o es-
da árvore. Comido e digerido pelas
teáquilo. Corte o ar com ele e um pe- O ataque covarde veio coordena-
larvas que rastejavam pelos galhos, o
daço de carne aparece. A cada corte, do de três direções ao mesmo tem-
icor, transmutado pelo processo que
uma nova peça de carne bem sucu- po, pegando-me de surpresa no meio
transformou as larvas em borboletas,
lenta aparece. Nunca mais conhece- de minhas divagações no sono. Acor-
se depositou nas escamas de suas
ríamos a fome. dei e me defendi, embora estivesse
asas nacaradas. Colhidas frescas, as
— Um instrumento útil. em uma situação ruim desprovido
cores das escamas poderiam ser or-
como estava de magia. No entan-
ganizadas, neste local preciso, no de- — Infelizmente — disse o morador,
to, eu não me tornei um mestre na
senho que faria aparecer o fac-sími- — isso também só funciona onde as
magia das três cores sem ter apren-
le do mundo superior. Dentro desta membranas interplanares são fracas.
dido a cautela. Os traidores ficaram
esfera, o ombre refulgente poderia A um quilômetro e meio da vila, é
surpresos ao descobrir que eu havia
brilhar. apenas mais uma faca.
criado para mim, há muito tempo, um
Grolion interrompeu o inquilino. Grolion coçou os cabelos desgre- refúgio inexpugnável no quarto pla-
mem em tiras e amarrou seus pulsos Não o segui. Os glifos e símbolos em impedir que suas ideias transpa-
e tornozelos. Mas puxou o homem gravados nas laterais e na parte su- recessem em seu rosto. A árvore era
amarrado com cautela para fora do perior do caixão me infligiriam dor, um problema sem qualquer proveito.
alcance da árvore antes de inspecio- como era seu propósito. Voei até uma O projeto não tinha valor, mesmo
nar novamente o estúdio e o projeto. fenda na parede acima do morador e, depois de concluído, pois tinha que
Estendeu a mão para o livro de Phan- tendo constatado que não havia nada permanecer onde estava. O Phandaal
daal, mas quando seus dedos quase ali, acomodei-me para esperar. na prateleira era precioso, mas se de-
encostaram na camurça azul, uma Eu sabia o que Grolion estaria fendia pela dor.
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faísca ofuscante de luz branca saltou vendo: as paredes rachadas e o chão Ele se voltou para o morador. — O
pela abertura, acompanhada por um úmido e irregular da cripta; a escuri- que acontece se o desenho for termi-
som agudo. Grolion gritou e rapida- dão apenas parcialmente aliviada por nado?
mente retirou a mão, massageou-a duas estreitas saídas de ar que des- — Um microcosmo do mundo su-
energicamente e depois chupou os ciam com pequenas grades coloca- perior aparecerá acima dele e será
dois dedos. das no muro do jardim acima, os vá- absorvido.
Saiu do aposento e sentou-se num rios fardos de pano perto da base dos
— Pode-se entrar no microcosmo?
banco num dos lados do jardim, à degraus, contendo os restos mortais
meia distância entre a árvore e a ofi- ressecados de meus ex-colaborado- O homem amarrado sinalizou ne-
cina. Sentado ficou, de pernas cruza- res, bem como dos viajantes que, um gativo. — As energias do mundo su-
das, uma sobre a outra, o queixo pon- por um, procuraram abrigo da fera perior são muito vibrantes, mesmo
tudo apoiado pelo indicador e pelo criada pelo fiscal e se viram obriga- para uma cópia. Nós acabaríamos
polegar de uma das mãos, entregue dos a servir, e uma parede ao fundo, derretidos, ou queimaríamos em cha-
aos pensamentos. Alternadamente, fraturada e rasgada pelas raízes do mas.
olhava para o espinheiro, para a ja- espinheiro à medida que cresciam — Mesmo assim, seu mestre pre-
nela do estúdio, ou para o morador através do teto e do solo acima dele. tendia entrar.
amarrado. E, claro, sobre um estrado eleva- — Ele passou anos se fortalecendo
Após alguns minutos, chamou-o, do no fundo da cripta, o caixão que para suportar tal ambiente. Por isso
— Havia três de vocês. Onde estão continha meus atributos físicos. Eles foi difícil matá-lo.
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os outros dois? não estavam vivos nem mortos, mas Grolion caminhava com a energia
O olhar do morador para a árvore naquele estado conhecido como “in- da frustração. — Então estamos pre-
foi a resposta muda e eloquente. determinado”. Não pensei que Gro- sos com uma planta vampiro e a um
lion teria curiosidade suficiente para desenho mágico que nos destruirá se
— Entendi — disse Grolion. — O
levantar a tampa e olhar para dentro; não for concluído. Somente seu mes-
que teria acontecido comigo, eventu-
isto é, eu tinha certeza de que ele tre realmente entende o que precisa
almente?
possuía a curiosidade, mas duvidava ser feito, mas se eu o reanimar, ele
O inquilino olhava para qualquer que ele fosse tolo o suficiente para provavelmente me dará como ração
coisa, menos para o questionador. deixar que ela o possuísse lá embai- para a árvore para ganhar os recursos
— Entendo — repetiu Grolion, xo, na escuridão malcheirosa. com os quais terminará seu projeto e
e voltou a pensar. Passado mais um Quando voltou para a luz vermelha alcançará o objetivo de sua vida.
tempo, disse – E o esquife de chum- do sol, seu cenho mostrava concen-
— Tal é a situação.
bo? tração. — Paremos as atividades hoje
Grolion cortou o ar com o punho.
— Na cripta — disse — abaixo — disse ele ao morador. — Preciso
— Inaceitável! — proferiu. — Em mi-
do jardim. Os degraus ficam atrás da pensar.
nha experiência, situações inopor-
fonte na piscina dos peixes cantores. A árvore havia sido estimulada tunas sempre cederão a um homem
Mas ao abri-lo, ele se reanimará. Não pelo sabor do morador. Seus galhos
astuto e cheio de recursos. Empe-
duvido que ele nos daria de comida se moviam e se agitavam sem ven-
nhar-me-ei.
para a árvore. Ele só se importava to. Um túbulo grosso, com a extre-
com o ombre refulgente. Seu assassi- midade dentada aberta para captar — Em que direção?
nato, seguido por várias encarnações odores, se estendia pelo chão em — Vou eliminar o intermediário.
como vários insetos, muitos dos quais direção aonde ele estava sentado, O morador ia formular uma nova
morreram horrivelmente, pode ter ainda amarrado, mas lutando para pergunta quando uma voz chamou
desenvolvido nele um instinto cruel. se afastar. Grolion pisou no galho do corredor. Um momento depois,
Grolion foi olhar. Havia uma gran- alimentador e o chutou para longe, a pança do fiscal passou pela solei-
de laje de pedra de formato quadra- depois puxou o inquilino pela coleira ra, seguida por seu dono. Ele entrou
do, com um anel de ferro inserido em para longe, para o lado do jardim que em cena, notando as amarras do in-
um dos lados. Ele agarrou, puxou e, ficava o estúdio. Ele se virou e olhou quilino, disse apenas — Como vai o
com o atrito de granito contra pedra, para a árvore por um momento, de- trabalho?
o alçapão surgiu, auxiliado por con- pois foi olhar novamente para a de- O inquilino intentou responder
trapesos e roldanas invisíveis. De- senho da estrela. Pensando que não quando Grolion o cortou. — Uma
graus levavam para baixo. era observado, ele não se preocupou
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nova administração assume o co- E mais um bloco pesado de esteáqui- da última borboleta madura escamas
mando. A situação atual se apresenta lo caiu no solo e a árvore enviou no- o suficiente, perguntou ao morador:
insatisfatória e ganhará uma nova di- vos alimentadores para drená-la. — Já é o bastante?
nâmica. E partiu para cima do oficial — Agora — disse Grolion, — ao O morador olhou para os vários ca-
com intensões nada amistosas. desenho. Dobrou a faca e guardou- nudos, cada um cheio de pigmento, e
— O que é isso? — disse o fiscal, -a no bolso. Depois, vendo a árvore disse, com leve espanto: — Acredito
um olhar de alarme aparecendo sob ocupada com o repasto, atirou-se que sim.
a superfície de seu rosto por entre os para cima dela. Subindo cada vez — Então comece. Voltou-se para o
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rolos de gordura. As mãos rechon- mais alto e ignorando as feridas que fiscal e mandou: — Serás o assistente,
chudas se levantaram para a defesa, sua passagem pelos espinhos lhe in- passando-lhe os canudos conforme
mas Grolion as tratou como se fossem fligia, despojava com esmero cada ele os requisitar.
as trepadeiras da árvore; levantou a ramo de suas crisálidas pelo caminho,
E começaram. Enquanto isso, o
aba que fechava a algibeira do fiscal estivessem elas maduras, quase ou
novo supervisor foi até a árvore. O
e agarrou a faca que cortava o este- recém-fiadas. E as foi metendo den-
espinheiro, percebendo a disponibi-
áquilo. Um movimento de seu pulso tro da camisa até ela estufar.
lidade de uma rica e farta fonte de
fez com que a lâmina se soltasse com Quando coletou todas, se deixou comida, espichara seu principal galho
um clique afiado. cair rapidamente através da folha- alimentador: um tubo forte e grosso
— Não tens como ameaçar nin- gem, parou na base para cortar outro como a coxa de Grolion, rodeado por
guém com isto — disse o fiscal. — Ela naco de esteáquilo para a árvore, em “dentes” farpados tão longos quanto
só corta esteáquilo. seguida, caminhou até a sala de tra- seu polegar. Este se fixara no segun-
— Exatamente — disse Grolion. balho. — Sigam-me! — chamou por do naco de esteáquilo, cuja substân-
Caminhou até a árvore em seu passo sobre os ombros. cia drenava com rapidez. A operação
com joelhos arqueados. O fiscal cur- O fiscal e o inquilino o acompa- era acompanhada por pulsações obs-
vou-se e desfez as amarras do inqui- nharam trocando olhares tensos. Voei cenas e sons altos emitidos pelo con-
lino, mas ambos ficaram bem longe para onde pudesse ver o processo. duto roliço. O primeiro naco já havia
do espinheiro. O zangão se cansara, Lá estava Grolion na bancada, tiran- virado uma placa murcha de carne
mas eu o conduzi até o viajante. do punhados de crisálidas da camisa. seca.
mo naco. Seus galhos estavam mais do os últimos flocos iridescentes de aparecia em nosso plano mediano. Li-
uma vez tateando o ar. Uma expres- pigmento caíram da ponta do canu- berto da corporalidade, experimentei
são que considerei ser de simples do, uma faísca se acendeu do nada. a existência plena e inefável daquele
curiosidade formou-se no rosto vulpi- Num instante, como uma chama ali- mundo, suas cores que extasiavam ao
no do homem. Desdobrando a faca mentada pelo fluxo de ar, ela cresceu mesmo tempo que curavam feridas.
mais uma vez, ele cortou novamente, e se espalhou, tornando-se um orbe O ombre refulgente era meu, e com
ficando na ponta dos pés para fazer a brilhante que inicialmente era do ele dez mil tons e sombras que os
incisão superior, inclinando-se quase tamanho de uma ervilha, depois da olhos mortais jamais seriam capazes
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até o chão para a inferior e enfiando largura de um punho, agora de uma de captar. Comecei a fraquejar, mole
a lâmina nos cortes até a profundida- cabeça, depois maior e ainda maior. E de felicidade, excitado pelo arrebata-
de de um braço. Ao chão, caiu uma à medida que crescia, o desenho de mento.
enorme placa de esteáquilo e Grolion estrela que tinha sido tão cuidadosa- Em algum lugar além do globo de
ficou encharcado de um visco rosa. mente salpicado no chão foi levanta- luz, o morador, o oficial e o viajante
Tentou se limpar mas resolveu mergu- do numa cascata reversa de cores bri- cuidavam de seus afazeres munda-
lhar no tanque dos peixes cantantes lhantes, para se fundir com o globo nos. Não dava atenção a eles e a seus
que emitiram uma música animada ao de luz, agora cintilando em dezenas atos grosseiros, nem ao pedaço de
sentir o novo sabor da água. A árvore, de matizes raros, e cresceu tão gran- carne, osso e cartilagem que outrora
nesse meio tempo, se contorcia em de quanto um barril de vinho, e ainda abrigara minha essência e agora fica-
êxtase vegetativo, lançando novos tú- aumentando. ra confinado em um caixão de chum-
bulos em todas as direções. Os três homens assistiam fascina- bo e antimônio.
O inquilino e o fiscal já estavam dos, pois em seus olhos havia cores, Eles temiam uma represália minha.
terminando o desenho. O primeiro isoladas ou combinadas, como pou- Mas não haveria vingança. O “então”
traçou uma linha de um vermelho cos mortais jamais viram. Mas eu não se fora, o “agora” também, e eu esta-
profundo contra uma cunha de nácar pensava neles agora, nem mesmo va acima de tudo, no mundo superior.
branco cintilante e depois pediu ao na traição e na violência injustas que Enlevado. Maravilhado. Tragava o vi-
último que lhe entregasse um canu- sofreu. Flexionei minha asa machu- nho do êxtase.
do cheio de preto estígio. Este usou cada e disse a mim mesmo que ela
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para traçar uma espiral no centro do suportaria o peso do zangão por mais
O homem que se autodenominava
padrão, batendo delicadamente no tempo. Dobrei minhas seis pernas e
Grolion olhou para o orbe multicolo-
canudo com pigmento para liberar joguei-me em direção à luz, na espe-
rido que parou de crescer depois que
poucas escamas de cada vez. rança de que minhas três membranas
o abelhão entrou nele. Toda as linhas
Após terminar com o preto, pediu boas e uma ruim me levassem adian-
do desenho estelar foram absorvidas
por ouro velho e verde olho-de-ba- te.
e o globo ficou suspenso no ar, com-
silisco, duas das cores mais raras da Em vez disso, carregaram-me para pleto e autossuficiente, acima do ta-
paleta do espinheiro. O fiscal passa- o lado, para longe do prêmio. E foi buleiro vazio. Curioso, ele estendeu a
va-lhe os canudos quando Grolion então que o inquilino me viu. Reco- mão na direção dele, mas Shalmetz, o
surgiu pela porta, encharcado e cur- nheceu-me de pronto. Ele contornou homem que havia terminado o dese-
vando-se para recuperar o saco da a borda do tabuleiro, de onde as úl- nho, afastou seu braço.
pilhagem. — E agora? — disse, sua timas linhas do intrincado desenho se
Grolion virou-se de cara feia, com
mão livre indicando o desenho. juntavam ao orbe de luz, e me atingiu
o punho erguido, mas cedeu quando
O inquilino pareceu surpreso ao com a mão que ainda segurava o úl-
Shalmetz esclareceu: — Uma lasca de
declarar: — Estou prestes a terminar. timo canudo. Balancei-me desajeita-
gelo jogada em uma fogueira dura-
damente para o lado, com as cerdas
— Então termine! — impacientou- ria mais do que sua carne em contato
das minhas costas capturando alguns
-se Grolion. — Já perdi muito tempo com isto.
últimos flocos cinzentos de nácar, e o
neste lugar. Groblens, o gordo oficial da al-
golpe não me alcançou. Contudo, o
Chegou o momento. Voei para movimento me trouxe de volta para deia, recolheu a mão que esticara
perto, mas meu zumbido estrondoso perto de Grolion, e sua mão desferiu com vagar em direção ao microcos-
irritou Grolion que me jogou para o o mesmo golpe certeiro de antes, de mo. Com um grunhido e com certo
lado com um movimento brusco, e modo que as costas de seus dedos esforço, ele se levantou. — Acabou?
me fez cair. Estabaquei-me ao lado da peludos me pegaram mais uma vez e — perguntou.
porta, danificando uma das asas, e caí me fizeram girar, indefeso, mas direto Shalmetz observava o globo. —
em espiral no chão. Olhei para cima para o globo! Ao que parece.
e o vi franzindo a testa e levantando
Atravessei a parede brilhante e — Experimente — disse o viajante,
seu enorme pé em minha direção.
ouvi dentro de mim o último e minús- apontando o queixo para o livro azul
— Veja! - disse o fiscal e o golpe culo grito do zangão enquanto sua na estante. Shalmetz rolou os dedos
esmagador não veio. Todos os olhos forma sólida se derretia nas condi- pela lombada do livro. — Sem cho-
se voltaram para o espaço logo acima ções rarefeitas deste pequeno exem- ques.
do centro do desenho, onde, quan- plar do mundo superior que agora Grolion fez um gesto de pedido.
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Shalmetz, repuxou os lábios em con- insaciável. Ela aumentou visivelmente pelo corredor que levava ao vestíbulo
tragosto, mas entregou o Phandaal. em altura e circunferência, enquanto e à porta de saída. Foi a fenda verti-
— Fique à vontade — convidou. — uma nova complexidade de galhos e cal que rasgara o ar de cima a baixo
Retornarei às atividades na fazenda ramos espinhosos irrompia dos maio- onde o galho alimentador saía deste
de peixes. res. O homem com a faca recuou, plano e entrava no outro. A fissura se
— Devolva-me a faca de esteáqui- enquanto as raízes da árvore se con- abriu de todos os lados ao mesmo
lo — disse o obeso. — Não lhe será torciam e cresciam em harmonia com tempo, partindo rochas e terra com
útil além deste cruzamento sobrena- o resto, quebrando a parede contra a mesma facilidade com que cortava
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tural de planos. a qual ela havia crescido, rasgando o o ar. E através do rasgo surgiu uma
pavimento de pedra em todas as di- figura escura.
— Tem valor como antiguidade —
reções, entornando a fonte e jogan- O viajante ficou parado observan-
disse o homem com cara de raposa.
do os peixes cantantes no ar inóspito do e deixando o saco com a pilha-
Shalmetz olhou pela vidraça. — A onde ofegaram e coaxaram em derra- gem frouxo em suas mãos. Uma coisa
aldeia pode precisar dele para manter deira performance. parecida com um grande focinho bo-
a árvore saciada. Parece ter desenvol-
O homem voltou correndo, tro- judo, rodeado de tentáculos na extre-
vido o gosto pelo esteáquilo. Talvez
peçando em lajes quebradas e des- midade, forçava seu caminho através
até mais que gosto. O espinheiro
viando-se de raízes que brotavam da da abertura, separando-a mais e mais
crescera com mais metade da altura
terra sob os pés. Shalmetz e Groblens à medida que avançava, lançando
desde a manhã e bem mais encorpa-
fugiram da oficina no mesmo instante uma onda de terra e pedras em to-
do. Além disso, tornou-se mais ativo.
em que um novo recém-criado rizo- das as direções. Mais e mais partes
— Vou cortar mais uma porção — ma encontrou a fundação da parece do corpo da criatura apareciam, e
decidiu — para mantê-lo ocupado no lado interno do jardim. Bastou um agora via-se que, no lugar onde teria
enquanto partimos. Aí, isso tudo vira instante para a parede se fender do um queixo, caso tivesse uma cara, o
passado e, portanto, não é mais da chão ao teto. A sala desabou, trazen- galho alimentador do espinheiro se
minha conta. Vocês que façam como do consigo o andar de cima. Quando prendera à carne. Ao redor do local
bem entenderem. Recomendaria usar os destroços assentaram, o orbe ca- onde os espinhos se cravaram, havia
fogo. leidoscópico que continha um fac-sí- estrias de pequenas cicatrizes e três
nada de nutrição e ameaça. O animal quebraram e suas pontas agitaram-se superior, que flutuava imperturbado
enfrentou o ataque com igual vigor, e no ar como chicotes e porretes. Uma pela violência praticada ao seu redor.
agora uma espécie de boca apareceu delas desferiu um golpe forte em sua Parou em frente ao globo. Sua cara
no centro do anel de tentáculos, de coxa que lhe tirou o equilíbrio e, ao sem olhos parecia observar o jogo ca-
onde saiu um silvo como o de um gê- se virar, outra, da grossura de seu po- leidoscópico de cores que se movia
iser cuja pressão não era liberada há legar, atingiu o pulso. constantemente por sua superfície.
anos, seguido por uma língua longa O impacto entorpeceu a mão que Um de seus tentáculos menores es-
e grossa corrugada de ganchos ras- segurava o saco que caiu entre duas tendeu-se e acariciou o objeto, mas
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padores e dentes serrilhados triangu- raízes e, embora temesse que o bra- pausou, como se decidisse se apro-
lares. ço pudesse ficar preso se os dois se vava ou não seu sabor, depois enro-
Os tentáculos trouxeram o espi- juntassem, ele tentou pegar o saque. lou-se em torno dele e o levou inteiro
nheiro para o esteáquilo, ao mesmo Mas quando tocou no pano, o chão até a bocarra.
tempo que a árvore envolvia seu do jardim desabou sobre a cripta A criatura fechou a boca e dirigiu-
agressor em um aperto de vegetação abaixo, levando consigo o saco e dei- -se para a fenda na membrana entre
espinhosa. O viajante ouviu estalos e xando o homem cambaleando à bei- as dimensões e em menos tempo do
tapas, rugidos e gemidos, assobios e ra do buraco. que o homem que se autodenomina-
sons indefiníveis. Sentiu o chão tre- Ele se jogou para trás e, ignorando va Grolion teria acreditado, atraves-
mer novamente quando o ímpeto do os golpes cortantes e violentos que sou-a e desapareceu. O ar acabou
bicho arrancou do chão as raízes re- vinham de todos os lados, se virou e por se limpar e somente a devastação
cém-crescidas do espinheiro. desembestou pelo corredor que o le- fumegante da árvore e do jardim des-
Hora de ir, disse a si mesmo e vi- varia para fora. Voltarei para pegar a truído indicava que algo havia acon-
rou-se para o caminho pelo qual os bolsa, prometeu para si. tecido ali.
outros haviam fugido. Mas ele se viu Atrás dele, o restante do esteá- O homem assistiu a esse ato fi-
no meio de uma massa de raízes que quilo emergiu do espaço entre as nal a uma certa distância, do topo
se contorcia com fervor, emergindo dimensões: uma cauda segmentada de uma colina onde encontrou Shal-
da terra em meio a rajadas de torrões que terminava num par de alicates metz e Groblens. Este último estava
e seixos voadores que o picavam e afiados. Estes posicionaram-se agora muito sem fôlego com a combinação
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machucavam. Embora pisasse com à frente da criatura em seu ataque ao de fuga desenfreada e a saudade de
cuidado, era impossível encontrar espinheiro, e seu reforço revelou-se tortas de beebleberry. Ainda assim, o
chão firme; todo o solo do jardim decisivo. Embora os galhos espinho- outro o cumprimentou: — Bem, Gro-
se movimentava com violência cons- sos da árvore continuassem a bater lion, caso este seja uma aproximação
tante. Pior ainda, algumas raízes se e rasgar a pele do esteáquilo, levan- segura do seu nome, você realmen-
tando jatos de icor rosa e arrancando te submeteu a situação a uma nova
fatias de carne, a batalha desigual abordagem.
caminhava para uma conclusão. Os O viajante não estava disposto a
tentáculos e as pinças arrancaram os ouvir críticas, e respondeu proferindo
galhos da árvore e separaram as ra- um tapa que fez Shalmetz ir ao chão,
ízes do caule, jogando os restos no de onde calou sua opinião. Passado
buraco onde a cripta existira. Os rugi- um tempo, ele e Groblens retornaram
dos do espinheiro se transformaram à aldeia. O outro homem esperou até
em gritos que se transformaram em que as chamas sobrenaturais dimi-
gemidos. nuíssem. Ao anoitecer, quando tudo
E, de repente, terminou. O animal acalmara, ele voltou para a mansão.
rasgou, cortou e quebrou a grande ár- A residência desabara. O buraco
vore em pedaços, enchendo o buraco onde a cripta estivera exalava um fe-
na terra com eles. Por fim, com visível dor de queimado. Do saco e de seu
desprezo, arqueou a cauda e, de um conteúdo, ele não encontrou nenhum
orifício abaixo daquele apêndice, diri- vestígio. O único objeto deixado ileso
giu um jato de líquido vermelho para foi o esquife de chumbo, cujas runas
os destroços. A madeira e a vegeta- e símbolos gravados o protegeram
ção explodiram de pronto em chamas de alguma forma do fogo do outro
de cores estranhas, e uma coluna de mundo. Nem mesmo estava morno.
fumaça oleosa subiu ao céu. O homem usou cordas e roldanas
O esteáquilo, sabe-se lá como, para retirar o objeto do buraco. No
agora voava e pairou ao redor da mesmo anexo que abrigava o equi-
fogueira, observando-a de vários ân- pamento, ele encontrou uma carroça
gulos. Sua rota o levou para perto do de duas rodas. Baixou o ataúde sobre
microcosmo multicolorido do mundo o veículo e empurrou-o para longe
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do fedor de rescaldo. Admirou os Nem sequer um anel de polegar ou do. Ainda assim, pressupôs que iria
emblemas e selos que decoravam as um bracelete de marfim para recom- se lembrar da maioria deles. Decidiu
laterais e o tampo, acreditando em pensar pelo trabalho. Praguejou alto que, pela manhã, faria novos entalhes
seus efeitos poderosos. e lançou os restos de morte em uma no chumbo e depois cortaria o metal
Depois de rolar o carrinho para a vala à beira da estrada. macio em medalhas e amuletos. Po-
estrada, colocou os dedos na tampa Só lhe restara o esquife mesmo. dendo assim vendê-los na Feira de
do esquife e o soltou. Esperava por Poderia ser útil, mesmo que só pe- Azenomei. E, quem sabe, que possi-
joias ou metais preciosos, contudo, las inscrições gravadas nele. Mas aí, bilidades surgiriam?
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encontrou apenas carne em rápi- notou que, com a remoção do conte-
da decomposição e ossos húmidos. údo, os selos e caracteres iam sumin-
https://en.wikipedia.org/wiki/Matt_Hughes_(writer)