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Paolo Grossi

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( HISTORIA DA PROPRIEDADE
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( e outros ensaios
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( Tradução do texto "A propriedade e as propriedades na oficina do
historiâdor": Luiz Ernani Fritoli/professor UFPR
( Revisão técoica: Ricardo Marcelo Fonseca/professor UFPR e pesqui
( sador CNPq
Tradução dos textos "A formação do jurista e a exigência dc um
( hodierno'repensamento' epistemológico", "Absolutismo jurídico (ou da
riqueza e da liberdade do historiador do direito)" e "Pensamento jurídico":
Ricardo Marcelo Fonseca/professor UFPR e pesquisador CNPq
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( Êio de Jonoiro o Sõo Poulo r Reclfe
( 2006 ffii
( PUCRS/BCE
( 'B'f"'§Xii"'ii'Ef,$J'
llililllilililil[il
0.838.891-9
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( Todos os direitos reservâdos à
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Cot$eLh0 Edilorial:

Arnâldo Lopes Süssckind Presidente


-
Carlos AIbeío Menezes Dircito
Caio Tícito (it nenoriant) Apresentação (por Ricardo Marcelo Fonseca).......................VII
I-uiz Emygdio F. dâ Rosa Jr.
Celso dc Albuquerque Mello (it1 üenoria,tl) Nota âos civilistas brusileiros
Ricârdo PeÍeiÍa Lirâ [por Luiz Eàson Fachin)........XVII
Ricârdo Lobo Torres Introdução à edição brasileira
Vicente de Paulo BârÍetto ...................XIX
Revi sao Tipogtáica : C.islina Lopes A propriedade e as propriedades na oficina do historiador.......
Capa. Sheila Neves
l
A formaçáo do jurista e a exigência de uma reflexão
Edioraçãa Eletúnica: TopTextos Ediçôcs Gráficas Ltdâ.
epistemológica inovadcra............
IÍ! oitz Absolutismo jurídico (ou: da riqueza e da liberdade
historiador do direito)
do
g5
.................

CIP-BÍasil. Calalogação na-fonte .........................,.....123


Sindicato Nacional dos Edilorcs de Livros. RJ.
Pensamento jurídico....................... ........... l3g
GÍossi. Paolo
C I 37h H istóriâ da propÍiedadc e oulros ensaios / PaoÍo Grossi.- tradução
de: Luiz Ernani Friloli e Ricardo MâÍcelo Fonsecu
de: Ricrrdo Mrícelo Fonseca.
- Revisão récÍica
Rio de Janeiro: Renovar- 2006.
146p. ; 21 cm
-

ISBN 85-7147-567-9
....

l. História da propriedÂde Brasil. L Tíurlo.


-
cDD 346.81015
Proibidâ a reprodução (Lei 9.610/98)

t - 3|ofra Impresso no BÍasil


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APRESENÍ%.ÇÁO (
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"Grossi lo ha sabido hacer, y nos ensefra,
haciéndo-Lo, cómo hay que hace o" (
Francisco Tomás y Valiente (
(
l. É realmente alvissareiro o processo de publicação dos (
escritos de Paolo Grossi no Brasil, iniciado no ano de 2004
com o livro Miro logias jurídicas da modernidade (trad, Arno (
Dal Ri Junior, ed. Fundação Boiteux), que prosseguiu com (:
Primeira Lição sobre direito {trad. Ricardo Marcelo Fonseca,
ed. Forense, 20061 e âgorâ tem continuidade com este í
História àa propriedade e outÍos ensaios, com prinrorosa (
publicação pela Editora Renovar. E isto por várias razões, entÍe (
as quais destaco uma: este momento coincide com um sopro
de vitalidade dos estudos histórico-jurídicos no Brasilr onde
(
- (
I Nos anos Íecentes assistimos à publicâção de trabalhos (para dar (
somente alguns exemplos: os de Airton Seelaender, Antonio Carlos (
Wolkmer, Arno Dal Ri Junior, José Reinaldo de Lima Lopes, Laura
Beck Varela, somando-se a eles alguns autores que nâo são propriamen (
te da disciplina histórico jurídica mas que com ela mantém um (
diálogo responsável e competente- como por exemplo Gilberto
-, provenientes das faculdades de
Bercovici, além de diversos estudiosos (
História que têm contribuído tanto para o enÍiquecimento da área) que
(
elevaram os patamares da discussão acadêmica brasileira na disciplina.
Foi no bojo deste processo que ocorreram a partir de 2005 os congres (
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( a bibliografia específica é ainda muito rarefeita. A nossa chamando de absolutismo jurídico2. Creio, porém, certamen-
( tradição cultural e universitária que sempre foi apegada te correndo o risco de reducionismos, ser possível fazer uma
ao estudo do direito romano - últimos anos apercebeu-
nos pequena reformulação nestâ divisão, modificando.se tão-só o
( -
se da necessidade de ampliar os horizontes teóricos temporais primeiro dos "eixos", mas concordando com os dois últimos.
( e dar-se conta da imprescindível utilidade de uma abordagem Acredito que desta forma facilita-se a compreensão do "con-
( do tipo histórico para a compreensão e a crítica da instância tinente teórico" onde viaja Paolo Grossi3:
jurídica. Essa análise diacrônica, desde que se abandone Em primeiro lugar, um primeiro eixo importante é sua
( aquela pretensáo de somente desenterrar defuntos, como reflexão sobre o direito medieval. Sobretudo após a publicação
( numa arqueologia para curiosos que só quer mostrar lances do hoje já clássico "Lordine giuridico medievale"{ (que veio
de "erudição" passadista, pode ser decisiva para o estudioso a público na Itália no ano de 1995), é impossível deixar de
( e pâra o estudante: o passado do direito é um referencial reconhecer que qualquer discussão histórico-jurídica sobre o
( fundamental para o conhecer, pârâ operar e para criticar o medievo jurídico não pode ser feita sem passar por Paolo
direito, e a história do direito Grossi, o que o coloca, em termos de autoridade no tema,
( -
desde que seja manejada de
ao Iado de Francesco Calasso (autor do também clássico
modo metodologicâmente arejado é uma área específica
( -
do saber jurídico que oferece respostas (mas sobretudo faz Medioeuo del diritu, de 1954), mestre â quem Grossi deve
( novas perguntas) que outras formas de análise teorética do tanto respeito, mas também com quem polemiza com auto-
direito não aicançam. E nesse contexto a contribuição meto- ridades. E, de fato, é em grande pârte a partir da compreensão
( das importantes especificidades do direito medieval (que,
dológica e as ricas abordagens da obra de Paolo Grossi são
( exemplares, são como uma lufada de ar fresco num poráo há
segundo o autor, era uma civilização jurídica por excelência)
que, por contrâste, sâo desvendadas as vicissitudes do direito
( rnuito tempo fechado e empoeirado.
moderno (sem que isso signifique, por óbvio, que o autor faça
2. São tantas as decisivas contribuiçóes teóricas de Paolo
( Grossi no debate historiográfico-jurídico que seria impossível
uma leitura "retrospectiva" e preparatória do presente a pârtir
( abordá-las em poucâs páginas. Francisco Tomás y Valiente, na
do passado; em Grossi o passado é respeitado em sua radical
especificidade). Para Grossi a era medieval não é um "período
( cerimônia que concedeu o doutorado honoris causa a Grossi
no ano de 1994 na Universidad Àutónoma de Madrid, enu-
( merou-as como sendo as seguintes: a) instituiçóes, conceitos 2 TOMÁS Y VALIENTE, Francisco. Laudatío a Paolo Grossi "in"
( e princípios do ordenamento (ius canonicum) da Igreja cató- CAPPELLINI, Paolo et alíi. De la ilustracíón al liberalismo-. sympo-
( licâ primitiya e medieval; b) a propriedade, as propriedades, sium en honor al profesor Paolo Grossi. Madrid: Centro de Estúdios
os moclos de possuir, os domínios, as coisas; e c) a funçáo da constitucionales, I 995, p. 31.
{ ciência jurídica e o juristâ dentro do que há tempos se vem 3 Faz-se â ressalva de que é impossível "esquemâtizar" a rica e prolí-
( fica produção do nosso autor, certamente fugidia a classificaçóes e
enquadramentos simplistâs como também cheiâ de nuances e temát!
( sos brasileiros de história do direito, promovidos pelo IBHD (lnstituto câs que estão fora destes grandes "eixos".
( Brasileiro de História do Direito), que passaram a alavancar a produçâo q L'ordine giuriàico medieuale. Roma-Bari: Laterza, 1995, hoje na
e o diálogo dos acadêmicos brasileiros com grandes nomes europeus da 12" edição na ltália e traduzido com muito sucesso editorial à língua
( área, além de contribuir para dar uma certa "coesão" àqueles que espanhola, pela Marcial Pons em 1996.
{ peüsâm com seriedade a história do direito no Brasil. s ldem, pp.29/35.

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Bi:LIOTECA CEIITPÂL
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titiva que era escravizada pela autoridade dos cócligos. Essc
negro" da histórià ou um mero intervalo entre a Roma momento radical inaugura os tempos modernos do direito e (
Clássica e o Renascimento europeu: tratou-se, isso sim'
de
e sobretudo pâra o direlto definitivamente deixa para trás (num processo histórico que (,
rrm neríodo lertilíssimo, inclusive obviamente não foi linear e nem liyre de irnensas Íupturâs e
i".iI.irriÁ"*. na âssim chamada baixa ldade Média)' em (
ciôncia jurídica contraclições) aquela centralidade do saber jurídico e do
à'r" iãio..J""i rer o florescimento de uma
jurista que tanto câracterizâram o "Antigo Regime". AssirI, (
J-iÀ"i"aitt,*r,-.o- fin"r" e requinte teóricos,-e, acima de a instância jurídica (sobretudo o assim chamado direito pri- (
tudo, loi possível verificar uma experiência histórica em,9ue vado), que antes se exprimia comq ciência, a partir de então
o direito não se fazia impor por um poder político' A,ldade se exprime como poder. (
Média é a época em que o direito não é apreendrdo e Finalmente o terceiro "eixo" (que é tomado sem qrre
i"*rt"ã.i, fiira. pela política, é uma época em que.o direito {
tenha sido considerada uma ordem cronológica ou de irr.rpor- (,
se exerce, se aplica e se impoe independentemente do
L'stâdo
é, enfim' a épocâ dc tânciâ nâ obra do professor florentino) é constituído pela
(então inexistánte na história européia); (.
análise do tema historiográfico da propriedade. Talvez seja a
'ium direito sem Estado"o.
problernática de pesquisa mais freqüente nos textos desse (
A nartir daoui se compreende uma outra noção funda- autor, e, provavelmente, a que mais penetrou nas discussóes
mentai Je Grolsi [o segundo "eixo"): a de "Absolutismo (
itâliânas e européias. E não sem razão: desde as análises da
Jtrrídico". Trata-se daquele processo histórico pelo qual .o (
propriedade na reflexão franciscana (onde a passagern para
direito passou no final ào sécúlo XVIII e sobretudo início do
;;1" kIX l; que coincide portânto com as revoluções uma noção moderna de propriedade se entrevê talvez pela (
;;;;;;.à; r', ioJifi..co"t'napoleônicas) segundo o qual primeira vezs) e da segunda escolásticae, até chegar nas
reflexões setecentistas pré-revolucionárias de Pothierl0, (r
o direito Dassâ a ser vincuÍado ao Estado, lenômeno que o
empobrece e o reduz, transformando-o em mero apêndice Grossi foi capaz de captâr como ninguém as especificidades (
do poder político. Nunca a política e o direito estiverâm tão da propriedade moderna (que se torna a "projeção da sombra (
,i"é"t^aoi fato esse qtrá t.o,,*" conseqüências funestas soberana do sujeito sobre a coisa"ll) na sua diferença radical
(r
-
nara a ciência iurídica e para os iuristas, já que' desde entao pâra com o modelo medieval, demonstrando como a socie-
i'" e* n.and"'parte âté hoie) o direito foi visto como algo dade moderna passa â ser uma sociedade proprietária. Não (
i"ait..t""t rn"lt" ligrdo *íiÍo mais ao Estado (ou ao poder) (
il q;; tt;rá; I toãi"d"d", 9ue- é n1 verdade o referente I Usus facti: La nozione di proprietà nella inaugurazione dell'età
necessário do fenômeno iurídico'. A lunçáo criâtrva.e lnter- nuova, "in" Quaàerni Fiorentiri per la Storia del Persiero Ciurídico
(
pretativâ do iurista foi abortada e substituída pela mera Moàerno, I (1972), p. 287 . (
iáp"iiç;" J" áogrrt, âtravés de uma exegese pobre e repe- 9 La propÍietà nel sistema privatistico della Seconda Scolastica, "in" (
G ROS S I, Paolo (a cura di). La seconàa scolastica nella formazione del
diritto priua.to moderno. Milano: Giuffrê, 1973, p. I 1 7 e segs. (
ã Un dni* Stato (la nozione di autonomia come fundamento l0 Un paradiso per Pothier: Robert Joseph Pothier e la proprietà 'mo-
".nra
áaf . àrii*-"". gt*iài.j -edi.v,te, "ir-" Quaderní Fiorentíú
per La
derna', "in" Quaàerni Fiorentini per la Storía àe Pensiero Gíuríàíco
(
Storia de Pensierobiuridico Moderno, )O{V (1996), p 267 Moderno, XIV ( 1985), p. 401. (
7 GROSSI, Pllr,lo. Prima tezione di diri"o Româ-Bâri" Latetz^' r I
GROSSI, Paolo. L'inaugurazione delLa proprietà moderna. Napoli:
zOOf, p. fí'f"" .aição brasileira: GROSSI, P Primeita liçao sobre Guida Editori, 1980, p. 23.
(
lireiro. Rio de Janeiro: forense, 2006, p. I l) (
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( r\o- a\.r:ô I-runcisco Tol::ás y Valiente diz qtre
"Crossi cs el antes referida, sobie elà.afirmou, com ênfase que se pode
lT. bem compreender/ que sê "en el tópico incendio imaginário
( ;r,n d, la propieda.l
' 3.l,isroriadr,,r
]rrt" livro quc o'leiior agora tenr em rlrãÔs contempia, se me concediera el don de salvar solo una obra de Paolo
(;
cle certo moclo, os três "eixos" temáticos do autor ântes Grossi, elegiría ésta, estas sessenta páginas de pensamiento
( rt'fcriclos, sendo por isso un'ra interessante suma da vastíssima j_urídico puro, este diamante, por lo demás incombustible "r6.
( ,lr,',.iu.to ao autór italiano O primeiro texto, "A propriedade E aqui, segundo o ex-juiz da Corte Constitucional espanhola,
i ,., ,r,,orl"J",lc. na ,'li,.ina do historiador", [o1 çs' riro que â vâstâ reflexão grossiana sobre este tema está mais bem
( ,ri;in.l,,,.ni" Ilu f,no de 1985 para llln c\.('nlo ocorriJo enl representada, ;:eflexão que "es mucho más que la historia de
( S'':n,r, r, riJo sido Pusteriorrnente prrblicldoI nt's Qtr';''lerttt unos conceptos, o de unas instituciones jurídicas determina-
l- i,,r, ttrritti oer la S'toria àal Pcnsiero Ciuridi' o Modcrnot' " das. Su maestria consíste en situar la propiedad ["lato sensu")
( 1992,' .onpôs uma coletânea cle tcxtos intitulacla "ll en el centro de la mentalidad y la cultura jurídica de cada
( "r,
à.:r,"i,ri" ,l f"."t!';, publicada pelo Eclitora Giuffrà, de Milão'i época y en descubrir las raíces prejurídicas de cada forma de
( F. r,t,rto m,ris iong,,, Jcnso c inrportlntc ilcsta colctàne' propiedad o de dominio y e[ ritmo lento como cada menta-
Tr:,drrz.iJ., pala dirersos idiontrs, este es\rito, em alErln5 lidad se ha ido formando en torno a la figura medular de cada
(' sr:ntidos, aonal"nr" os tântos estudos de nosso arttor sobre o sistema jurídico, que es su modo de entender la relación del
( t.,,,o ,1 , nroprl"drde (as propricdades) e sobrc as l'orrnas dc hombre com las cosas"l7. Esta tradução para a língua portu-
rtaJón1ic3 minuciosamente revisada pelo âutor, como todos os
1.ors'rir. i t.rnci:co Tomás y Vliiente, na cetimônia
guesa
( -
outros textos foi elaborada pelo professor Luiz Ernani
( -
Fritoli, do departamento de Línguas Estrangeiras Modernas
2 1-OI\'1ÁS Y VALIENTE, Francisco. I'audatío a Paolo Grossi, p' 34' da UFPR, com revisáo técnica de Ricardo Marcelo Fonseca.
( r

li Lâ proprietà e 1e proprietà nell'officina dello storico, "rn" Quademi O segundo texto (",A' formação do jurista e a exigência
( Fiorettiiri per la Stu;ía-de Pensiero Giuridico Modemo, XVII Il988), de uma reflexão epistemológica inovadora") é o mais recente
( p. 359 de todos: foi escrito em 2003 e sua tradução ao português já
tr Os 'Qrr.rclerni Fiorentini" foram funclados por Paolo Crossi e;n foí publicada no Brasil pela Reuista da Faculdade àe Direito
( l:a72 e coirstitrLem hoie unr clos periódicos mâis in)poÍtantes rla Eurol;a da IIFPRIE, antes mesmo de ter sido publicado em sua língua
-. c certrncnte u p"iiír,1i.o mais importante nas áreas da história tlo
( ( lirejto e mesmo nâ teoria do direito- Por vor:ação, todaviâ [colno
consta original nos Quaàerni Fiorentinits. É um grande texto de
., r.rrr,i-s lrrtr.r.LLll('li.l..lo priln(iro nrrnrer' J, r rcv 5ta é mcr( àdr I'or síntese, em que são recuperadas suas discussões sobre a
(
i,,,, in,',' n .liáloB. cnlre iuri'ta. hi"rorrr'lor's (lo 'l rÍilo' Je un' l'do'
( c v) eur' n.ut:r.'lo dircito positiv.', de 'tttro' Crossi loi " Êdilol
!lü5t- r -r.ô lico 1,,,r ?0 .,rros, qrrando, em 2002 1'es'orr e't rs [rrn'i'e' a r6 TOMÁS Y VALIENTE, Laudatío a Paolo Grossi, p. 36.
l'. lro, r.r 'nerr'hr^ cil"Llrc de sua e'.ola e nl{ lc':oI no Jl''ll(-ll )t ldem, p. 34/35.
( llorr'ntilo. PiLra uma avaliação do impâcto e da importânciâ dcstâ re I 18 GROSSI, Paolo. A formação c1o juristâ e a exigência cle un hodier-
...I' r,. .i'rr. i,r jurrJi,:r crrrofei.r, "elr'e AIBALADFIÔ' P'l-'" lier
!
no 'repensamento' epistemôlógico "in" Retista t1a Faatldade de Dírei.
(
r.,.."2..\l{)NlO,( l:rr'.rAlvarezStile[itrettttn" V' rnt ' trr' o lir-''le to da UFPll, ano 2004, n" 10, p. 5/25 (tradução Ricardo Marcelo
( los Qt«tr.lerrtÍ Fiorentiú per la Storia del l'etsiero Cin-ídico Mc'dt:rtLr' l-onseca).
lu{:rtlricl: lirliciolcs LiAM, 2000 r9 CROSSI, Paolo. La forrnazione del giurista e lesigenza di um odier-
{ no ripensâmento epistemológico "in" Quademi liorentini per ki storia
1: CROSSI, P ac:lc:. ll dor.ninio e lc co.te: peÍcezioni m'':clievali e moder
( le dci rliritti reali. N'lilano: Cirrffrê, 1992. del pensiero giuridtco modento, XXXII (2003J, pp. 25153.
(
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(
noção de 'absolutismo jurídico', amplamente explorada sob (
oDerâÇáo redutivâ ocorrida na ciência
direito pelo fenó-
do
vários ângulos nos inúmeros textos que compõem este livro
do saber j,uridlcg 1os
H;;"-ã; .oaiii.rçao, sobre o prpelquando de 1998. Aqui a idéia da codificação celebrada pela
(
a" 'absolulismo iurídico'- o dlíelto e se- - (
'--.". poder para que finalmente o autor exponha
retórica burguesa como ápice de racionalidade e superação
^1,".1.^a." oelo - *: d-" de um direito injusto e obscuro é analisada no seu ade- (
:'['Ji J#. i;i;"T"ip'. r"ã'Ààt" fori ada
' po^Yf
1",'
jurídico'"' vislumr'rr-
-
quado berço histórico, sendo desveladas também as perdas e
il]r,o.àao. dã direiiol sobre o fenômeno o amesquinhamento ocorrido no papel dos juristas e na (
deve. refletir mais-a
i i']rãrr"--';;iân.iâ otd"n'*""tal queaqui é com o dlrerro própria ciência jurídica. Nesta aqálise, assim, que leva na (
.*i"ara" que o Estado O contraponto (de traços devida conta a complexidade do processo, é assinalada a
:; ;;";" o direito comum europeu tortemente
distância cada vez maior que foi se abrindo entre o direito e
(l
especilicidade (nem sempre
il.ii;;;;), qr" fa, sobt"ss'ir a seu a lei Por fim' as forças históricas que Ihe subjazem, forças históricas que (
::H;;il; àiàito .od"'no no trato com o nosso sempre lhe serviram de'linfa sub.iacente' (para usar uma (
de seus últimos
ffi; ;á; feito em vários projeção escritos-'
para,a reflexáo expressáo cara âo âutor), mâs que na modernidade fnos
historiador permite-se uma {: f f::l-
das vLctssttudes tempos do'absolutismo jurídico') foram progressivamente
(
t" l,t,..rndà repensâr o papel do iuristâ diânte (
p'rtir d'
:'J"::ffiIin;-"I,;;;;ã",leitura privilegiada óticado abandonando o dÍreito, foram sendo cada vez mais despreza-
do dirãito, uma
' que comPreendâ os parâoo- das pelo juristâ, que se tornâ mais e mais um âutistâ, preo- (
Li.to.i"do,
I,i."á, .á*or.-idadeatual diante da vigência de um modelo cupado com o referente político do direito (o Estado) e com
(
;-
iempos históricos iá nassados' a coerência interna de um sistema normativo desprendido
iü"d. jur-ídico (
o terceiro texto desta tol"iân"t ("Absolutismo. direito")'
dos valores da sociedade.
e d" libe'dade do historia'l:lr do Por fim, o quarto texto desta coletânea ("Pensamento (
;,;;;;;";
-*-u"*"rà'it.a"rido publicudo no Brasil2l' veio a lume jurídico"), ainda inédito em português, foi publicado origi-
"
.; capíiulo introdutório à coletânea publi- nalmente como verbete pârâ umâ Enciclopédia na França, e (
:1il;i;;; 'rÀssolutismo giuridico,e diritto priva- depois nos Quaderni Fiorentini no ano de 198823. Trata-se (
:;à';';;';;; á" I998, texto caminha em senttclo de uma primorosa síntese de vários pontos relevantes do
;;ã...-D; certa mâneirâ, este (
pensâmento grossiano, que ao mesmo tempo pressupóem e
aqui está a essência da discussão sobre a
oi*f"fíà" *i".ior: complementam as reflexóes ânteriores: vê-se o resgate do (
direito como instância profundamente enraizada na história, (
d: como instância ordenamental de importância crucial para a
2s;;bli*çao
z0 A pu Drr(a'tdu E *(e também
."emplar
"'"'t''''-"'--ú;"iudoil:t:t1;3q:,::t;"::::1; (
da obrc grossiana 5e encontram- so .* ,., prima lezione ài organização da sociedade (e não como instância "a-histórica"
t:^;^ sobre
:--. tíçao );roir^\
:;r::i"úã'i,""'à:;;d;.;' ;;il;;ã' ;"" Primeira
-^L*" àireito)' apartada da vida, como a divisáo moderna entre "Estado x (
mencioáado no início deste texto' Sociedade Civil" às vezes sugere); vê-se o direito enquânto
jurídico (ou: da riqueza e da hberda- instância social, e náo política, e, como conseqüência, Grossi (
li"àtiôstr, Paolo, Absolutismo
áo d'ireito) "in'R""i'ta i)ireito c7' 2
(200s) (trad
:: ;'X';;';à;; (
Ri.rrdo M"r..lo Fonsec")' (
;'ãffi;;i;il;'an'â'" ;"i"
"'tt""ot.':i',T:
cYlgi:"-çX'ià,'1"J:,':
Ai dirità) in"
23 GROSSI, Paolo. Pensiero giuridico (appunti per uma 'voce' enci-
:íJl:i".í"' ffi .; iliü "

-G.Rosll;1""]l
r'ai't'* pivato Milano: Giuffrê' 1998' pp
clopedica) "io" Quaderni fíorentini per la storía del pensiero gíuridico
X\,/ll (1988), p. 263.
(
Tf,Ttiti'àr"ír"írir"7 moderno,
(
l/l l.
(
(
(
I
operâ um resgate do direito como instância autônoma da
realidade, e que joga um papel central na sua organização e
no seu funcionamento. A partir daí, o 'pensamento jurídico'
é apreciado na sua especificidade, na sua relação com estratos
profundos da realidade (realidade que também é, ela mesma,
jurídica), o que naturalmente tornâ fora de propósito certas
visóes sobre o fenômeno jurídico e sobre o pensamento
lurídico forjadas na modernidade segundo as quais o direito
seria entidade estranha e alheia ao social. Mais umâ vez NOTA AOS CNILISTAS
com o foco histórico-jurídico o papel do saber do direito-
- BRASILEIROS
e o papel do jurista são redignificados. Com isso, o exílio
empobrecedor no qual a scientia iuris (e seus profetas) foram
levados nos últimos duzentos anos pode ser reavaliado criti-
cârnente. Texto, portanto, de enorme caÍga metodológica e
de valor inestimável para quem pensa o direito. A teoria crítica do Direito Civilbrasileiro contemporâneo,
4. Finalmente, alguns registros de gratidão absolutâmente vocacionada pelo ofício do repensar e desnudar p"ràdig,rr"r,
necessários: ao professor Luiz Edson Fachin, jurista sensível acolhe sobremaneira enriquecida a importante contribuição
e cntusiastâ do projeto desde o início, além de ter contribuído
adicional que agorâ emerge da iniciativa do Professor Ricardo
na revisão técnica da tradução. Ao professor Luiz Ernani Marcelo Fonseca. Acedi prontamente âo projeto nascido em
Fritoli, mestre da língua e da literatura italiana, pela solida- Florença e que abre, ainda mais, as portas da reflexão jurídica
riedade e pela competênciâ com que abraçou o trabalho de
no Brasil à imensa e fenomenal obra de Paolo Grossi por meio
tradução do primeiro texto desta coletânea. Áos professores
da Editora Renovar.
Luiz Guilherme Marinoni e Sergio Said Staut Junior, pela
preciosa ajuda na delicada tarefa de transplantar alguns termos Falam por si só os textos do mestre italiano que fez de
técnicos das suas respectivas áreas para a língua portuguesa. seu métier lições de ensino e de pesquisa para nós todos,
Aos editores da Reuista da Faculàade de Direito àa UFPR e estudantes e estudiosos de todos os países. Sem eclipsar o
da Reuista Direito GV pela autorizaçâo parâ que p.udessem simbólico câptado no trânscurso histórico, ofertam um elenco
compor estâ coletânea textos antes ali publicados. A editora inigualável de questões, problematizações e respostas possi
Renovar, por encâmpar todo o projeto. E, sobretudo, ao veis aos dilemas presentes do governo jurídico das relaçóes
professor Paolo Grossi, preocupado desde os anos 1980 com sociais, especialmente após a vigência do Código Civil desde
un.ra interlocução com os juristas brasileiros, pela sua afabi- lZ de janeiro de 2003. E de especial celebração o enconrro
lidade, disponibilidade e,generosidade. entre a doutrina civilística brasileira contemporânea já
afastada dos dogmas tradicionais e vincada por uma princi- -
Ricardo Marcelo Fonseca piologia axiológica de índole constitucional e o pensamento
Professor de história do direito da UFPR.
de Paolo Grossi contido nesses ensaios sobre - a propriedade.
Pesquisador do CNPq. Pós-doutorado na
Comparece do alto de sua autoridade intelectual pâra siste-
Università degli Studi di Firenze, Itália.
(
(
(
mâtizâr e conte)dualizâr o pilar dâs titularidades no tríplice (
vértice fundante do Direito Privado, composto, ainda, pelo
(
trânsito jurídico e pelo projeto parental.
Muito distantes do estilo postiço dos manuais de repeti- (
ção, adequados para engessârem, no eco e na obscuridaàe, o (
saber e o sabor do novo Direito Civil, os textos traduziáos
se fundam numa visáo concisa, sóbria e original. Cor.rjugan-r
(
forma e conteúdo com a nobreza daqueles que são harmãni- (
c.os na originalidade e naturais na espontaneidade com a qual (
desatam os nós do objeto histórico investigado. TNTROD_Uç_Ão a EDrÇÃo
Um de seus grandes ensinamentos é o alertâ para estar (
atento à sedução contida no discurso jurídico do "livro de
BRASILEIRA (
ponto expediente e protocolo", parocliando aqui Manuel (
Bandeira quando se yoltava contra o lirismo conredido e os
puristas ao dizer num poeria-manifesto: "Abaixo os puris- (
tas/..../ náo quero mais saber do lirisrno que não é libertáção". Uma dri plice satisfacâo r (
Eis aí a diferençâ entre a inovação, ousadia e produção on te,,, r
crítica e a reprodução burocrática do conhecimento; c her- ".,"",:rl.
rorque ",
q
"
.",i,
u

se trata de ",,
g,,;l ::":ii
r
:;"::: il,c
p ra
(
uma
tradusão
"*."lant",lro*oui,ln .
dado que no primeiro campo pode estâr â forcâ, como executada em parte pelo (
quem me lis, ,r';;';fãir"rrl181 R;"tao Marcelo Fonseca a
ocorreu, entre nós, com Joaquim José da Silva Xavier, o col
(
Tiradentes; e que no segundo horizonte entreguista e acultu- ao mesmo tcmpo, um
rado pode estar â recompensa remissiva como se deu com
víncL.rro de profunda
,,r.".I::i*;, (
" é
este voiume
Joaquim Silvério dos Reis, transformado em fidalgo real, e f:r3r:ligame
_, sólido um fiel testemunho não .:1,".r! (
depois detentor de cargo aclministrativo.
do cultural 'l': somente (t
"r,..,l."il"'íil::'.-:
(,raslrelros, i.[#,":lfl.:
Impende decidir, na encruzilhada, o caminho a seguir. Í:.1,:::: .^":H:i.rflT:';â3: J:Xl::
Faz poucas décadas que a doutrina contemporânea do Direito mas tâmbém do atual â renascinrento dos estuclos
(
histórtco-1uríclico;
;'i;i,-.,.i
Civil Brasileiro elegeu, na teoria críticâ de perlil constirucio- t""scimen to no qual Ricarrro (.t
nal, a senda de um novo olhar, cuja mirada se reforça, cada ,r.."to Éon.".r"".J';[:"j'j' ,
como protaSonista. (,
vez mais, com contributos e aportes da estirpe indelével de . . us artigos, que aqui ." ro;l:fo.tftul:elegantemente
Paolo Grossi. Bem haja o sonho que houve por bern trans- zidos em ürg;
;;r-;;"#iesentam tradLr- (\
tormar-se em reaIidade. "*" - nc,.i
mcorevât
pr i
-,,1,
jh;;:i[ú :::ji];:: "?:":l Í,., 1 - .*
e rnoderno àquela
ot
{,
Curitiba, 21 de abril de 2006.
tantos eruditos dedicados
j
-umificâr;;; ;;r; .;: (.
a reur coreciona
r e.câta logar clados
Luiz Edson Fachin res, .nr, ;;; ;;;' ;;.']r'
pa rt icu Ia
()
compreendê-los' em um de problematizá- Ios c
Professor Titular de Direito Civil da UFPR
.Por detrás
,r,t'-fl'"' .

a",r", !rir#'l1t't;co historiográfico


,-resRiro
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.u I.,.,r .o.,.irã*;;il::i:'::1;:T:i:,jfi ";:,".,*il:l:,: (i
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( -l o r.i' t
(
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que consiste em dois resgâtes fundâmentais: recuperâr o )r.,1't''
( direito para a dimensáo vital de toda civilização histórica, não
( instrumento de aparatos de poder, mas de ordenamento da
sociedade, e por isso seu precioso instrumento de resgate;
( recuperar a história jurídica para sua função central de cons-
( ciência crítica de todo juristâ, inclusive do cultor do direito
( positivo. Este último é exõessivamente tomâdo pelo objeto
de seu conhecimento o direito atualmente vigente num
( certo espaço político - e arrisca a não perceber que se trata
(
-
unicamente só de um ponto no interior de uma longa linha A PROPRIEDADE E AS
histórica; a separação do ponto para fora da linha tem, como
t PROPRIEDADES NA OFICINA
custo cultural, a sua absolutização, a sua mitificação. O
( historiador, que percebe a linha e seu sentido, é, por vocação DO HISTORIADOR-
( própria, um relativizador e um desmistificaclor, e é portanto
o colnpanheiro insubstituível que restitui a cada norma jurí-
( dica, a cada instituto jurídico, a sua real medida no terreno
( relativo da história.
( É corn esta mensagem cultural que gostaria de prosseguir
a interlocuçáo já iniciada com os juristas brasileiros, graças à
( obra generosa de Ricardo Fonseca, com a tradução da minha
( "Primeira lição sobre direito".
(
Paolo Grossi
(

(
( ' Publica-se aqui a Conferência proferida em Siena, no outono de
1985, no âmbito do Congresso Nacional da Sociedade ltaliana de His-
( tória do DiÍeito, que teve por tema: "A propriedade e as propriedades".
(.
O caráter introdutório destas páginâs impóe que as anotaçóes sejam
parcas e reduzam-se a esclarecer ambigüidades (e as citaçôes apenas
( acenadas) do texto ou a fornecer mínimas integrâçôes essenciâis. O tex-
to reflete fielmente a conferência proferida no âmbito do Congresso;
( somente o título, que no progrâma difundido na época se apÍesentava
( geneÍicamente como "Considerações intÍodutórias" âos trabalhos da se-
( çáo medievalista e modernista, foi substancialmente modificado.

(
(
(
(
(
(
(
l. A propriedade propriedades: uma reconsiàeracào teó_
e as
(
rica e seu significado para o historiador do díreiro.'- 2. A abre-se o nosso Congresso: a propriedade e as proprieda-
propríedade e as propriedades: a cultura do pertencimento e rles. Todo jurista sabe e é até mesmo supérfluo rácordá- (
os condicionamentos monoculturais para o hiitoriador ào di- lo que tal título foi -tomado diretamente da feliz intitu-
reito. 3. A propriedade e as propriedades: condicionamen- - de uma consistente conferência de Salvatore pugliâtti
laçã-o
(
-
rcs de. arquet-ipos culturaís. A apropriaçào indiuidtel e seu (
proferidâ há cerca de trintâ anos2, mas talvez não sela su-
moàelo napoleônico-pandectístico.
- 4. A propried«de
propricdades entre isolantentos técnico.ju)ídicos
e as
e suloca-
pérfluo retomarmos o problema do significado hjsiórico (
que aí se encerra e a virada radical no devir da reflexão
mentos economicisras.
- 5. História das proprieàades e his- (
tória agrária. 6. A história àas proprieilaàes e seu reszate civilística italíana da qual foi então símbolo e sinal. Tratar-
- das propiedades e t'õnres cadartraisl . -- 7.
jurídica. Historía se-á somente de pôr um ponto final que seja válido a não (
Uma t riLha a ser percàrida: a propríedqde como mentalida- restringir a riqueza transbordante de um longo e complexo (
de jundica. - L A hístóría dàs propriedades sob o sísno da
itinerário histórico (que é exatamente o nosso objeto), mas (
descontinuíàade:'medieual' e'm'odirno como uniuerãs àis-
quando muito justâmente ilq,.i"rr, .
tintos. 9. Oficiru meàieual.
- profunda.
mentalidade - i0.útil,
I 1. Domínio
O domínio titiL: uma - a exaltar-lhe
-complexidade, os diversos comportamentos para ^ clir.nas
di-
(
- sistema do direiiopropriedade
in re aliena no âmbito do comum.
e iura
A versos. (
inauguração de uma propieàade 'moderna, . - 12.
I 3 . Para uma Tanto é verdade que a primeira pergunta, à qual deve-
-
deliniçao do 'moàemo' ta propríedaàe: simp\icidade (
e absta- mos umâ resposta imediata, é até que ponto estâ não inó-
çdo. - 14. A procura d.o'moden.to' tn proDriedade. Akumas cua intitulação seja conveniente ao hisloriâdoÍ do direito (
corsiderações sobre o quadriuio do séc. XVI .'l)m aceno nícessá-
io: Pothier no cerne àe um lular comum. 1 5. À orocura àn medieval e moderno que indâgue sobre as relações de per- (
'moàento na propnedade. O;CodeNapoleón,: - um palimpsesto tencimento, em que medida sejâ sufocante (isto é, desisto- (
juidico. .- 16. A procura do'moderno' nn propriedade. O ricizante), quanto ele se possa valer dela sem poluir a cor_
nouo modelo técnico da Pandectística reção da própria abordagem metodológica.
(
O título náo é inócuo, porque náo é ocasional, e não se
extingue tampouco em um agradável ioso de Dâlâvrâs (
l.Não será inútil começar, parâ toÍnar frutuosas estas Tem, ao.contrário, caráter projãtual, progrãmático.
palâwas introdutórias de esclarecimento, justamente do tí- euan- (
do, em ly5l, em meio ao terceiro congresso nacional dc
tulo sintético sob o qual, por vontade dos organizadores, direito agrário, dele fez-se decididamJnte portador, pu_ (
giiatti apresentava aos congressistas o resuitado de uma (
longa reflexão pessoâl e, âo mesmo tempo, levava a termo
\ Traduz-se aqui como "cadastrais" o termo ítaLiano ,,catastali,', que
(
signífica "re\atioos ao catasto", que é o inventário geral, para fins fis- (
cais, das propriedades imobiliáriâs existentes em um municípioi é tâm- 2 P UG LIAT'II, S. La proprietà e le propríetà (con rigt@rdo pq.rtica (
bém o nome do órgão que registra, âtuílizâ e conservâ tal inventário. Lare alla proprietà terriera). ln Atti àeL lerzo congresio na.ional" di
"Catâsto" equivale, em português brasileiro, a "registro de imóveis',, e diritto agrarío - Palermo, l9-23 ottobre 1952, Àiilano, 1954; agora (
nesse sentido será usado o termo "cadastro" no âmbito do presente também em PUGLIATTI, S. La propríetà nel nuouo dirino. Milino,
texto. [N. T.]
t
1954, p. I 45 e segs.
(
2 (
(
(
(
(
(
(
( jeito da noção de propriedade, tentava-se uma construçáo
com um arranjo admirável a reviravolta que, por mérito seu
( e de Enrico Finzi, havia-se produzido na doutrina italiana pârtindo de elementos objetivos e conseqüentemente
-
{ dos anos Trinta3.
-
relativizada.
Ali havia brotado a ihtuição elementar de que era hora Se esta foi a operação culturalmente validíssima
( -
- é o conteúdo cultural ao qual
dos nossos civilistas, e se este
de olhar a relação entre homem e coisas náo mais do alto do
( ,.- " - .: )'-"{ sujeito, mas sim pondo-se ao nível das coisas e observando devemos sempre nos referir quando repetimos a fórmula
it
( de baixo tal relação, sem preconceitos individualistas e (como fazemos nós neste congresso), um problema se colo-
com uma disponibilidade total para ler as coisas sem lentes ca para o historiador e uma pergunta se impóe: pode para
( ele, além de também parâ â civilística mais recente, elevar-
deformântes. E as coisas haviam revelado serem estruturas
( não genéricas mas específicas, com disposições específicas se um tal título a tendência e cânone de seu trabalho cien-
( e diversificadas que exigiam diversas e peculiares constru- tífico? Certamente sim, ao menos no que se atém à instân-
çoes jurídicas, se estas últimas quisessem ser congeniais e cia metodológica fundamental que o permeia, e que pode
(,,.. não aviltantesa. A partir dos diversos estatutos dos bens se reduzir-se a uma relativizaçáo e desmitificação da proprie-
'ro\',
( t'"' '" havia chegado à edificaçáo de mais propriedades, cada uma dade moderna. O historiador náo pode deixar de sentir-se
( das quais tinha uma fundaçáo estrutural, isto é, na secreta à vontade diante dessa extraçáo da propriedade de seu se-
realidade dos fatos naturâis e econômicos. O que aqui im- cular recinto sacral, dessa sua imersão no profano das coisas
( porta notâÍ é que, pela primeira vez após a ênfase do indi- obrigando-a a fazer as cohtas/ já fora do cofre protetor do
( vidualismo possessivo, operâva-se um deslocamento do su- sujeito, com as cÍuezâs dos fatos naturais e econômicos.
( E o convite a relativizar noção e instituto que ele pode
plenamente e sem temor colher como mensagem desta fér-
( til reconsideração teóricâ, que quer ser sobretudo profana-
3 Um momento epifânico de particular relevo para a renovaçáo em
curso da nossa civilística foi o primeiro congresso nacional de direito ção de um simulacro e recuperação para a história de um
( agrário de 1935, no âmbito do qual colocam-se as conferências de En- modelo absoluto. Sobre isso o historiador não pode não
rico FINZI, Diritto di proprietà e disciplina della produzione, e di Sal- cÕnsentir; para ele 'propriedade' deve ser somente um ar-
( vatore PUGLIATTI, Interesse pubblico e ínteresse priuato nel àíritto di tifício verbal para indicar a solução histórica que um orde-
( proprietà. Expressáo de um mesmo estado de ânimo e das mesmas cor-
nâmento dá ao problema da relaçáo jurídica mais intensa
rentes cultuÍais, vejâ-se, no mesmo âmbito congressual, em estÍeita
( conexáo com as conferências de Finzi e de Pugliatti, a de Tullio ASCA-
entre um sujeito e um bem, ou, em outras palavras, a res-
RELLI, L'importanza dei criteri tecnici neLla sistemazione delLe discípli- posta à questão central sobre â consistência mínima do
{ e giurítiiche e iL diritto agrat-io. 'meu' jurídico; soluções e respostas que são duplamente
(.
+ Um suporte filosófico aa sensibilíssimo esforço técnico-jurídico multíplices, segundo os vários climas históricos e segundo
dos nossos civilistas chegaria, ex post, de Giuseppe CAPOGR SSI, os vários conteúdos que um mesmo climâ histórico dá
I
com um ensaio que teve enorme ressonância no§ ano§ Cinqüentâ, ./4gri- àquele invólucro aberto e disponível que convencional-
( coltura, díritto, proprietà (1952), no qual ao dominante subletivismo
mente identificamos como propriedâde.
exasperado tentâ-se contÍâpoÍ uma visão mais complexa e harmônica
de um mundo jurÍdico no qual não pode caber às coisas a única tarefa
A pluralização proprietária, entendida como resultado
de objeto passivo de vontades freqüentemente arbitráÍias e irracionais. de uma liberatória instância relativizadora, é aqui sinônimo
(
(. 1

(
(
(
(
de historicização', recuperaçáo ao devir clas coisas mortais nólogos e sociólogos para as civilizações asiáticas, aÍricanirs (
claquilo que uma refinada ideologia havia projetado sobre o e americanas, é todo um pulular vivo à nossa atcncão
clc (
pináculo mais alto de um templo sacro. cultlrrâs próprias a planetas jurídicos diver.sos onde nao c,
tanto a terra que pertence ao homem mas antes o homerl (
2. Feita esta necessária introdução, faz-se mister porém à teÍrâ, onde a apropriação individual parecc
invcncão des_
(
ir adiante. Deter-se a este grau de avanço metodológico conhecida ou disposição marginal. Seiundrriarnenic, tr*_ (
realmente náo bastaria para evitar ao historiador alguns gra- uem para o quâdrânte europeu é um horizonte dclrrasiada_
ves riscos de índole cultural sobre os quais é oportuno parar mente vlnculâdo à oficialidad,e dominante: há toclo unr
(
e demorar-se no esforço de desimpedir o caminho de àquí- complexo de realidades sepultadas, vivíssimas (
vocos desviantes que, em um terreno como o nosso, são na montanha medievais mas que conseguent, "";;;p;..: (
nio cbstrnt..,
freqüentes e insidiosos. Tomar consciência deles é já acer- hostilidades, co_ndenaçóes, brutalizaçõãs, ; ;.;;;,;;_r;
târ a estrada para evitáJos.
i;: (
tactas, até nós, formas primordiais de organização
aon-ruri
O primeiro risco é o de um pesado condicionamento tária de uma teJra, nas quais nâo é somcnte o esprrito (
incli_
monocultural: o nosso título, mesmo com todas as suas vidualista que falta mas até mesmo o próprio esoú.ito (
pluralizaçóes, leva impresso o apelo embaraçante a um uni- nro-
prietário. Pretendcmos nos referir ao'fenómcno _,ri,irc, (
verso 'proprietário', e propriedade é sempre um mínimo de extenso na Itália como em todas as regiões da Eur.,oa
pertencimento, de poderes exclusivos e dispositivos confe- oci- (
dental e oriental que podemos de n]odo ,pr;ri;;;r;:
ridos a um determinado sujeito pela ordem jurídica. Falar genérico, com uma - boa dose de arbítrio, quullfi.r..o_o (
somente de propriedade, mesmo que no plural, significa 'propriedade coletiva'.
ficar bem fechado no nicho de uma cultura do pirten- Í
cimento individual. E esse é um horizonte demasiado es- nao- Fique claro que corrr este termo usurl rnas irnprciprio
evo,camos n.em a imagem de uma propriedade-não.rn_
(
treito. dlvrduat Io condomínio rradicionai), nc- á da prooricdac]c (
Nenhuma dúvida de que aquiesteja o eixo e o'segredo' dc uma_pessoa jurídica, -es-o p,.iúii.a, ,;;1;-;,,-;;
da história jurídica da Europa àcidenial e que esta histórir (
tstado (que seria^sempre individual, mesmo que não lieadÍr
tenha sido vivida principalmente como vicissitudes de a um indivíduo fisicamente existentel, .r.'ri,n ,,lr;:i; (
'proprietários'e luta pela 'propriedade', mas nenhuma dú-
vida igualmente de que reduzir a esta dimensáo a multifor-
antitético àquilo que nós ocidentais hábiturl.err"
eni"n_ (
demos por propriedade, um csquema de ordenacão
me relação homem-bens tem o sentido cle uma deplorável da re_ (
redução à miséria. í
Entretanto, é um horizonte europeu; mas desde Maine (
e de Laveleye em diantes, graças às frestas abertas por et- (1871), Lea.uru on the Early History oí Institutions (1g75),
Disserta-
tions on Early l-aw and Culom (lgg3) que abriram i
p"." r r"r.", rÁ (
culturâ,romanísticâ européia ma janela para o mundo rntejro. Dc
Emile de IÁVELEYE deve ser- recordado, embora com (
,oa. .". i"",
5 A referência é aos estudos inovadores de Henry Sumner MAINE, gem de defeiros metodológicos que particu la rizam_
fr" r,ruf,.r.l"l.
f í.
sobretudo ,,{,?c;en, Law (1861), Village Communíties of East and West arorrunacto votume Dp la proptiété et de sés "
Jorues primílir,.§ ( I g7a). (
6 (
(
(
(
laçáo homem-terra caracterizado por escolhas de fundo, de elevada em seu êxtase individualista, contemplou-a com a
toão invertidas em relação ao fio condutor aparente da nos' mesma suspeita curiosidade com a qual um naturalista ana-
sa história. Pensamos, neste momento, somente para res' lisa um monstrinho sobre sua mesâ de experiências, sigi-
tringir o olhar à região italiana, naquela vasta gama de estru- lou-a como uma "anomalia', e dela sentiu repugnânciâ';
turai fundiárias, hoje prevalentemente restritâs ao arco al- não repugnância mas umâ individualista intolerância conti-
pino e à dorsal apenínica, que encontram uma construçáo nuou á cit.ular na civilística do séc. )O(, sobre um perfil
pa rad igmática nas assim chamadas'propriedades'comuns interpretâtivo que de Bonelli chega diretamente a Salvalo-
de coniortes co-herdeiros, em que a titularidade náo é nem re Romano, onde, sem se preocupar com uma possivel ln-
do individuo nem do ente mas da concatenâçáo incessânte serção em outros universos culturais, afirma-se que a assim
das gerações dos consortes. chamada propriedade coletiva náo realiza um esquema pro-
Pois bem, essa assim chamada propriedade coletiva, em prietário iomente pela incapacidade desses juristâs de âd-
toda sua forma, tem em meio a mil variaçôes, segundo mrtir o aviltamento coletivo do poder dispositivor.
-
os lugares, os tempos e as causas mais diferentes uma O historiador, que náo nutre repugnâncias e que, ao
-
plataforma comum; e ó a de ser garantia de sobrevivência contrário, faz da compreensáo uma sua atitude profissio-
para os me*bros de uma comunidade plurifamiliar, de ter nal, não pode certamente unir-se ao coro dos lógicos e dos
um valor e uma funçáo essencialmente alimentares, em ideólogos, mâs tem o dever de assinalar que, nessas estru-
que o conteúdo fundamental é um gozo condicionado do turas coletivas, a noção do 'meu' jurídico chega a tornar-se
b.*, .o,.,-, .* indiscutível primado do objetivo sobre o sub- de tal modo vá a ponto de colocar em dúvida a legitimidade
jetivo: primado da ordem fenomênica, que deve ser respei- de um único recipiente 'propriedade' tão grânde c laceado
tado a todo custo, sobre o indivíduo; da ordem comunitária que chega a novamente compreendê-los. Continue-sc a ta-
cristalizaçáo da objetividade histórica em relaçáo ao lar de 'as propriedades' como convençáo verbal até inserir
-
-indivíduo. Aqui não somente â dimensão potestâtiva é rare- em suas fronteiras também as formas históricas de 'pro-
feita ao máximo, tanto é que náo se encarna jamais em um priedades coletivas', mas tenha-se ao menos consciência de
jus disponendi, mas até mesmo a própria dimensão apro- que dentro daquelas fronteiras náo corre um território uni-
priativa se destempera até se tornar vã. A apropriação aqui,
no sentido tradicional do termo, cai somente indiretamen-
te sobre o produto do fundo que serve para a sobrevivência
quotidiana de um núcleo unifamiliar, mas nunca investe o 6 Seja-nos consentido remeteÍmo-nos ao que tivemos ocasião de es-
crever em "(Jn ahro moào di possedere L'emersione di forme aherna'
fundo. tive di propríetà aILa coscienza
-
giuridica postunitaria. Milano, I 9 77, p.
Essa assim .1r262dx-:lpropriedade coletiva' é uma pro- l9l e segs. (mas principalmente pp. 196- 199).
priedade? Temos certeza de usar legitimamente um tal ter- 7 De Custâvo BONELLI é exemplar o ensaio sobre I concetti di co'
mo parâ a sua descrição? Ou estamos diante de um esque- nutione e di persoutlità netla teorica delle società commerciali ( 1 903).
ma ordenador que parte de premissas opostas, e, Portanto, De Salvatore ROMANO lembramos suas reflexóes Sulla nozione di
irredutíveis também em uma propriedade relativizada no proprietà dese\volvidas na primeira assembléia clo Instituto cle direito
âgrário intemacional e comparado de Florença (1960).
mais extenso dos plurais? A velha civilística do séc- XIX,
(
(.
8

(
(
(
Í
sentação da validade suprema, o ápice expressivo de uma (
forme, mas variadÍssimo e heterogêneo, e não se cometa a
ingenuidade imperdoável de crer que tudo se esgote no Dusca do bem social. No interior do universo fechado {
do
universo do pertencimento segundo o grande rio aparente pertencimento há o perigo imânente do condicionantentcr (
da oficialidade dominante. Significaria sucumbir a um con- por parre de um arquétipo pesadíssimo.
dicionamento monocultural e empobrecer as complexida- Olhemos por um mômento em contra_luz nosso I
des da história que, hoje mais do que ontem, náo sabe re- "4" propriedade e "âs" propriedades: um singular títulô. e rrnr
(
nunciar à dialética enriquecedora entre culturas diversas, plural estranhamente associados, pelo menos na Iinguagem (
entre culturas oficiais e culturas sepultadas. habitual da ciência jurídica italianà; se não em opo.riE"]
oo (
O nosso título, com o seu premente apelo ao 'próprio', menos_ em função abertamente diâléticâ. U,,
,ing,,ir ir_
ao 'meu', náo deve vendar nossos olhos e nos fazer conside- milhado e depauperado por aquele plural, mas qrã ,r;u J., (
rar exclusiva uma paisagem jurídica pela razáo simplista de saparece nele; um plural que adquire seu significaclo (
mais
que ela nos está próxima e é familiar. Viver internamente pleno somente se confrontado com e referrndo-se àqtrele (
ao universo do pertencimento, como é o nosso destino, singular. Um instituto, em sumâ/ do qual se deve sublinhar
(
sem abrir ideais janelas para o exterior, apresenta o risco a.relatividade, mas que é sempre uma relatividade incom-
não somente de nos fazer considerar única aquela que é pleta, porque aquele plural é iempre obrigado n.1.,,.t...,
simplesmente uma solução histórica dominante, mas de contas com aquele singular, sempre sobre;quelar " DroDnc_
nos fazer considerá-la a melhor possível, com a conseqüen- dades gravo a sombra anreaçadorà da propriedade.
i,,,,J,ln.
te condenação de qualquer outra solução como anômala e mente ao universo do pertencimento tomou forma no cur_
inferior. so da idade moderna
- e sobretudo
xões e na práxis do século XIX _
se cristalizou nr, .,.,fl"_
um sinquiar arouérino
3. E toca-se aqui um segundo risco cultural náo menos jurídico,.que poderírmos quallficar _ por""nquun,u,
ú"ln
grave pâra o historiador do direito. entendido, salvo rrm posterior retor.,o a ele paia precisá_lo
Talvez nenhum discurso jurídico seja talvez tão per- melhor
meado de bem e de mal, tão temperado por visóes mani- -napoleônico-pandectístico, isto e,'.,rnn' noçao á"
propriedade não somente resolvida na apropriação inclivi-
queístas quânto o que versa sobre a relação homem-bens. dual mas em uma apropriação de conteúàos particulan.,en_
Porqrre são tão grandes os interesses em jogo que inevita- te potestativos.
velmente as escolhas econômico-jurídicas são defenclidas Estamos, com este arquétipo um arquétipo qrrc pcsâ
no-fundo aá u-'U"rn .Jr"._
pelâs couraças não deterioráveis das conotações éticas e re- ainda sobre nossos ombros
ligiosas. A soluçáo histórica tende a tornar-se ideologia fa- -, estâríamos a repetir coisas
terizado funil histórico, e não
zendo um clamoroso salto de nível, e o modesto instituto deveras conhecidas sobre sua formação. R"tà.n"ri"rno.
jurídico que é conveniente tutor de determinados interes-
mentâlmente, para nossâ comodidadã, ,o, fundr.n"nto,
ses de ordem e de classe, é subtraído à relatividade do devir
que fizeram de um instituto o modeJo co-prctir.i.o o,r"
e conotado de caráter absoluto. O instituto, de coagulo so-
sabemos. Vive no social mas afunda no ético, flr,r,
cia[, corre sempre o rÍsco de tornar-se um modelo, a repre- nolu_

l0 1l
I, rídico mas pesca no intrâ-subjetivo graças à operação luci- dentro de nós e tivesse se tornado uma segunda natureza. E
( díssima da consciência burguesa que, de Locke em diante, o risco é o de olhar inconscientemente mais freqüente-
lundou todo o àominium rerurn sol:re o dominium suí e viu mente do que -
conscientemente, mâs são as motivações in-
(
a propriedade das coisas como manifestação externa conscientes as culturalmente mais preocupântes toda
qualitativamente idêntica daquela propriedade intra-
- -
realidade histórica com as únicas lentes que temos no bol-
-
subjetiva que todo eu tem de si mesmo e de seus talentos, so, e inevitavelmente de deformá-la e desfocá-la; risco que
propriedade esta absoluta porque correspondente à não é desmentido mas talvez valorizado pelo título do nos-
natulal vocação- do eu- a conseivar e a enrobustecer o si. Em so congresso.
outras palavras, um meu que, como veremos depois, tornâ- Ora, se uma mentâlidâde "proprietária" pode ser con-
se inseparável do mim e que inevitavelmente se absolutiza. genial ao historiador da experiência jurídica moderna, se
E o êxito de uma visáo não harmônica do mundo mas essâ mesmâ mentalidade pode ser não irremediavelmente
agradavelmente antropocêntrica segundo uma bem defini- nociva para uma pesquisa sobre o Renascimento jurídico
da tradição culturai que, exasperando o convite marcado que culturalmente encontra seu momento de validade em
nos textos sagradíssimos das antigas tábuas religiosas a do- modelos romanísticos de legitimaçáo, uma tal mentalidade
lninâÍ a terra e a exercitar o domínio sobre as coisas e sobre corre o risco de constituir uma armadilha letal para o pes-
as criaturas inferiores, legitimava e sacralizava a insensibili- quisador da sociedade e do clireito da alta idade média.
dade e o desprezo pela realidade não-humana.
E debateram-se e se debatem dentro da armadilha, sem
Destes alicerces especulativos nasce aquela visão indi-
possibilidade de sair dela, aqueles historiadores do direito
vidualista e potestativa de propriedade que comumente
que tentaram a reconstruçáo das situaçóes reais altomedie-
chamamos a "propriedade moderna", um produto histórico
vais partindo, como pode falazmente parecer natural, do
que, por ter se tornado bandeira e conquistâ de uma classe
sujeito, do esquemâ individualista da propriedade, talvez
inteligentíssima, foi inteligentemente camuflado como
desperdiçando-se em doutas buscas de termos como pro-
uma verdade redescoberta e que quando os juristas, tardia-
prietas e dominíum nos mais remotos arquivos e nos mais
mente, com as análises revolucionárias e pós-revolucioná-
rias na França, com as pandectísticas na Alemanha, tradu- obscuros textos legais, quando o único procedimento de
zem com o auxílio do instrumental técnico romano as intui- limpeza metodológica teria sido o de livrar a mente de sua
ultrapassada forma de abordagem mental, que mede o real
çóes filosófico-po1íticas em regras de direito e organizam-
nas,. de respeitável consolidaçáo histórica se deformou em segundo sua correspondência com o esquema da proprie-
conceito e valor: não o produto de uma realidade mutável dade individual.
tal como foi se cristalilando, mas o cânone com o qual me- Para o alto medievo um tal procedimento tem a mesma
dir a mutabilidade da realidade. sensatez do botânico que procura frutos tropicais nos cam-
Historicizar o arquétipo é exigência óbvia e elementar pos mediterrâneos. A alta idade média é uma grande civili-
para o historiador do direito, e seria algo bastante acessível zação possessória, em que o adjetivo possessório deve ser
se êsse aiquétipo não tivesse passado de trás de nós para
entendido náo em sentido romanístico mas na sua acepção

(
12 l3
(

(
(
(
{
mento de incompreensão, porque são outros os vínculos {
finzianas de conotaçáo de um mundo de fatos nem formal entre sujeito e bens que emergeÍr a níveljurídico e com os (
.,.- ofi.irl, porém-munido de efetividade e de incisivida- quais se constroem as relaçóes que os juristas chamam (
ã". S.- pr"i"rrçr, estatais estorvantes, sem hipotecas cul- reâis, isto é, radicadas in re. Aqui o problema central náo é
iuruis, u àficira-altomedieval reduz a propriedade a mero o vínculo formal e exclusivo sancionado pelos livros fundiá- (
signo cadastral e constrói um sistema de situaçóes reais rios, o pertencimento do bem a alguém; é a efêtividacle (
túd.do nâo no dominiuífi e tampouco nos dominía mas sobre o bem prescindindo das suas formalizações. Podernos (
Lm múltiplas posições de efetividade econômica sobre o tarnbém dizer que é a'posse'do bem, se repetimo-lo,
porque o equívoco seria demasiàdo grande- pretender - (
bem.t - contÍâpos-
É o reino da efetividade, enquânto desaparece o velho mos nos referir a uma dimensão de factualidade (
ideal clássico da validade, isto é, da corresponclência com ta a um reino estático de formas oficiais.
(
modelos e tipos. Náo arquiteturas e formas sâpientemente
fré-con st ituídas mas um brotar desordenado
e vivo de 4. O nosso inventário de riscos culturais para o histôriâ- (
i,tu.çóes rústicas, náo filtradas por nenhuma peneira ctrl- dor da propriedade ainda náo terminou. Nos pontos prece- (
turrlique se impõe com base em fatos primordiais que são dentes a preocupaçáo saliente era constituída pelo empo-
t1
a aparência, o exercício, o gozo. E, no centro do orclenâ- brecimento de quem, sub.jugado por uma cultura do per-
não mais o sujeito com as pró- tencimento, ou, pior ainda, subjugado muito freqüente- (
-arrto " dai rur. atençóes, mas a coisa com âs suas natu- mente por um certo modelo individualista de pertenci- (
prias votiçóes e presunçóes,
i.i. ,"grri ,".r.irr, fotç" que impressiona toda forma jurí- mento, resolve tudo em uma história de propriedade com
t
dic", ,'Íiás constitutiva de toda forma jurídica' uma operação por demais redutiva do rico patrimônio his-
(
Íemos aqui invenções numerosíssimas de institutos no- tórico.
vos e tambóÀ sistem;tizaçóes do enorme material de cu- Perigos náo menores o historiador clas formas proprie- (
nho novo, mâs estas invenções e sistematizaçôes nunca
sao tárias encontrâ também internamente àquelas experiências (
propriedade' que sobre tais formas se estruturaram e confiaram a própria
fens"das'do ponto de visla da 9.::ol".T' (
oroprietário como esquema interpretativo é sentido multo solidez; e sáo perigos de signo oposto mas igualmente desis-
peÍmanece toricizântes. (
Douco e a propriedade, sem ser desmentida,
Lm andaimã inêrte sobre o qual convergem.com âutonomra Demasiado freqüentemente a abordagem do historia-
(
olltras forcas, oue são precisamente as produtoras do oroe- dor do direíto foi formalista. Em outras palavras, foi-se
ár-"n,o Érn'.iesci-ento. Para o historiador do direito as aproximando daquele complicado nó de motivações que é (
mesmo que o plura- (
iL",.i ao pertencimento individual - a propriedade com a mesma cândida desenvoitura com a
iir.-o. uà máximo pode até mesmo tornâr-se instru-
- qual se pode analisar um dos tantos institutos inócuos da (
vida jurÍdica, por exemplo o contrato de depósito, o pacto
de retrovenda, a assistência litiscon s orc ial, e assirn por (
o termo posse
8 Possessório na acepção com a qual este âdjetivo etratado sobre
diante; como se o discurso pudesse se esgotar no âmbito da I
sáo usados pelo civilista Enrico FINZI no seu
clássico
'l grâmática do jurista, da movimentação do refinado instru- (
possesso dei diritti (1915).
(
l5
l4 (
(
(
mento técnico do seu laboratório usual. E discorreu-se so-
estrutuÍação de elaboradas organizaçóes da civilizaçáo mer-
mente sobre o instituto propriedade; pior ainda, discorreu-
cantil evoluída e da civilização industrial em que o capita-
se somcnte sobre o termo dominium/proprieta.s, separando
lismo maduro oferece, sobretudo no campo societário, vis-
e isolando com o mesmo cuidado de um histologista.
tosas e refinadas cisões entre propriedâde e empresa, entre
Que o jurista não deponha jamais suas lentes e, para titularidade de um pertenciminto [capital) e poder de ges-
dizê-lo mais severâmente, tampouco seu estatuto episte-
tão, empenhando o pesquisador em análises jurídicas que
mológico aliás, muito menos diante de afloramentos
-
- plurivocais, pluridimensionais, podem ser tecnicâmente pontuais somente enquanto regis-
complexos, é uma exigên-
trarem corretamente os comp[icados arranjos econômicos
cia elementar de identidade; mas é inconsciente vendar os
por trás disso (o pensamento volta-se, claramente, -parâ o
olhos em relaçáo a todo o resto quando todo o resto
- mundo das sociedades anônimas, nâs quais uma civilizaçáo
forçâs estruturâis, idealidades, ideologias, comportamen-
capitalista bâstante evoluída influiu profundamente-sobre
tos culturais preme tanto ao ponto de plasmar o institu-
- os velhos esquemas proprietários com inovações profundas
to jurídico e de ter a funçáo de insuprimível elemento in-
sobre o tecido econômico e sobre as formas jurídicas, que
terpretativo da sua própria constituiçáo jurídica.
perturbaram â estátíca quietude da propriedade secular)s.
A propriedade é seguramente também um problema Se o formalismo jurídico é um inimigo a ser batido por-
técnico mas nunca é somente, no seu contínuo emaranhar-
que o mundo das propriedades não é jamais um mundo de
se com todo o resto, um problema técnico: por debaixo, os
grandes arranjos das estruturas; por cimâ, as grandes certe- formas ressecadas em uma técnica, existe também o perigo
zas antropológicas põem sempre a propriedade no centro de signo oposto que amortece e desfoca o diagnóstico jurí-
de uma sociedade e de uma civilidade. A propriedade náo dico em um economicismo pesâdo para acompanhar umâ
consistirá jamais em uma regrinha técnica mas em uma res- mal-entendida solicitaçáo de concretude; e olha-se progra-
posta ao eterno problema da relaçáo entre homem e coisas,
da fricção entre mundo dos sujeitos e mundo dos fenôme-
nos, e aquele que se propóe â reconstruir suâ história, longe
-r maticamente somente os fatos isolados e, dado que os fatos
são sempre marcados por um inevitável particularismo,
particuliriza-se o olhar ao ponto de perder a visão do con-
de ceder â tentaçóes isolacionistas, deverá, ao contrário, junto e a percepção do tecido ideal que, de modo igual-
tentar colocá-la sempre no interior de uma mentalidade e mente inevitável mesmo que invisível, liga os fatos e con-
de um sistema fundiário com funçáo eminentemente inteÍ- sente umâ sua compreensáo autenticamente historiográ-
pretativa. fica.
Mentalidade de como interagem o sujeito e os fenôme- Nos laços de um tal mal-entendido me parece que te-
nos, mentalidade da força e do papel âtribuídos a um e âos nha caído um perito conhecedor do medievo jurídico, Gui-
(
outros nâ visão do todo.'Sistema resultante do conjunto das do Astuti, quando, alegrando-se, anos atrás, pela fresca pu-
( formas de pertencimento medidas dentro do complexo de
( todas as formas organizativas do reâl econômico/ que se
reduzirá para o medievalista a formas organizativas do cul- I O pensamento volta-se aThe Modern Corporation and Pritate
Property (1923) de BERLE e MEANS, o breviário norte americâno
tivo e da produção agrária, para o modernista também da
deste tipo de análise.

t6
t7
(

(
(
blicação do cartuiário de uma grande abâdia benedirina pria da velha historiografia franco-alemã do século XIX, cle (
a de São Pedro de Perúgia -
riia de atos privados inerentes matriz positivista, e da qual um testemunho nada desprezí
à gestáo da bem organizada- companhia monástica, exprime vel mas muito carâcterístico são, na Itália, as eminentes {
a convicção de que uma história da propriedade fundiária pesquisas de Pier Silverio Leichtrr. (
na Itália poderá dizer-se realmente factível somente quan- Não é a soma mecânica das tesselas que nos dará o sen- (
do tiver sido reconstruída a história de todas or a-p."rm tido de um mosaico, mas a sua fusão em um desenho. E é
agrárias, e que portanto o historiador do clireito é chamado
(
sobretudo sobre o desenho que se mede a intuição do hi:_
até aquele momento a uma tal reconstrução laboriosa, mi- toriâdor, aquele saber intuitivo que o separâ, poiobietivo e (
nuta e particularíssimalo. privilégio adquirido, da falange àor.rrditor. E re há c".rn_ (
Não digo que isso se possa e, aliás, se deva fazer; mente um desenho também no particular, os seus trâÇos (
-
mas sustentar que seja a única estrada - cc-
a tomar signiFica tornam-se principalmente evidentes nas grandcs Iinhas
der à tenração nrdemente positivistâ que identifica a pro- perspectivas. Que nâo seja esta a estrada das gencralizaçoes (
priedade com um mecanismo organizaiivo e a reduz àquela e.dos discursos vazios, bastaria o grande exemplo de úarc (
que é somente uma suâ projeção no nível dos bens; que Bloch para demonstrá-lo, indagadór de estrrdo, ser".os, d" (
reduz o trabalho do historiador a um amontoado quântita- modo algum sentado em nuvens idealistas
tivo de dados, colno se a completude cle uma reconstrução -as bem ligadÀ
a sua cátedra de arquivo e de biblioteca, qr" pr,n.oi."._
(
historiográfica dependesse da soma de uma miríade de es- ponder plenamente ao seu 'métier d,histôrien, nos cloou (
tudos particulares. aquelas sínteses iluminantes, das quais todos nos nutrimos (
Bem vindos os estudos histórico-econômicos e históri- e que são validíssimas, p.."n"-.nte válidas, não obstante
co-jurídicos sobre as grandes massas patrimoniais indi- o gÍânde vôo que percorrem (vôo feito às vezes de corâgem
(
viduais deste ou daquele ente eclesiástico (as únicas que e de provisoriedade) porque sustenradas pela inturção"so_ (
conseguimos hoje documentar, ao menos para a idade me- berana que supera o particular, escava sob ., ,upeifíci"., (
dia), e que o hiitoriador mantenha be- atertas sobre sua reencontra linhas e nexos que o erudito nâo tinha [nem
mesa de trabalho as páginas desses beneméritos explorado-
(
nunca teráJ olhos capazes de perceberr2.
res, mas saiba que o problema historiográfico da proprieda- Ao atomismo daquele jurista que reconstrói con.r csco_ (
,_
de náo se resolve com uma adição dé muitas úoidug"nt lastrca trieza o instituto na sua aridez e inexpressividade (
atomísticas porque esse problerna não se esgota em uma técnica.e não se poe perguntas ulteriores, separando-o _ (
organização das estruturâs. Caso contrário, ficamos ancora- desvitalizando-o
dos à noção estrutural de propriedade fundiária, que é pró- - do daquele
trâpóe-se o âtomismo
todo que lhe preme em torno, con.
que anula o jurídico sob a
(
(
(
10
.,,\STUTI, G. La struttura delln proprietà t'ondiaria - Aspetti a tt Srudi sulla proprietà fondiaria nel medioeuo f1903 071
pr.oblemi storico-giurídící. In: Atti àella prirna assembLea d.ell,lstítuto .li t2. No que diz respeito à história da propriedacle [undiáría pensamos (
dtrttto agrario internazionale e comparato ài Firenze
aprile 196O. Milano, 1962, vol. I, p. 37. - Firenze 4-g sobrerudo,em La socié.té Íéodale (1939_40) , r^ t", ,ororri
ur- o)liii" (
naux ae L'htstoire rurale Jrançaíse (1931).
(
l8
I9
(
(
(
(
manta dos fâtos estruturais. E, ao contrário, mais do que das superfícies cultivadas, para outros o escasso progresso
para qualquer outra ordem do direito, precisaria o jurista técnicà das culturas, paÍa outros ainda a debilidade do
que analisa historicamente as propriedades de uma dúplice modo de produção feudal; há quem invoca a crise demográ-
consciência, porque as propriedades náo seráo nem pode- fica em seguida â carestias e epidemias, e há quem ama
rão ser jamais criaturas de uma dimensáo simplisticamente insistir nos movimentos dos preços e das rendas. Com um
inseríveis em compartimentos pré-fabricados. resultado freqüentemente bastante frágil: exploraçóes re-
lativas a um restrito ambiente regional ou até mesmo em-
5. Debrucemo-nos ainda um pouco sobre esse abraço presarial que sofrem uma elevação a modelo, pesquisas ba-
das estruturâs ao qual, em um passado remoto por entu- seadas em fatos partículares que são indevidamente gene-
siasmos positivistas, em um passâdo pÍóximo por inquieta- ralizadas; escâssez de dados provenientes de uma docu-
çóes paleomarxistas, atiramo-nos inteiramente. mentação inadequada a fornecer estatísticasr que é chama-
Foi um estímulo que nasceu do pesadelo do formalis- da a sustentâr conclusóes desproporcionais; e sempre do-
mo, c fbi sem dúvida um banho salutar. Hoje teriâ porém minante a ingênua ilusáo positivista da descoberta do me-
chegado o momento de medir os fáceis entusiasmos à luz canismo monocausal a ser sublinhado na página de um livro
( de uma consciência epistemológica mais complexa. Em de ciência com a mesma desenvoltura do iornalista à procu-
(
nossa opinião o gosto nem sempre vigiado e fiscalizado pela ra de glória fácil que estampa na primeiia página das efe-
história agrária, isto é, pela história do fato técnico e econô- mérides o pré-fabricado culpado a ser oferecido como re-
mico cultivo-produção, gosto que marcou e talvez ainda feiçáo à multidão. Freqüentemente uma fantasmagoria de
marque â historiografia européia, conferiu a esta alguns hipóteses claudicantes envolvida porém pelo paroxístico
grandes méritos mas também a viciou por um defeito fun- apelo ao dado concreto mesmo que este seja, na falta de
darnental de surdez em reIação aos valores e forças dissimi- outro, o fragmento de rm chronicozr fantasioso, ou unr
lares; como juristas, gostâríâmos entáo de convidar a uma dado toscamente episódico.
naior cautela os historiadores do direito que ali viram a Pois bem digamo-lo com franqueza o historiador
possibilidade quâse taumatúrgica de revigoramento e tam-
- -
náo pode náo sentir um senso vivíssimo de desconforto ao
bém de regeneração. ler estas palafíticas páginas, que pretenderiam ser historio-
Enquanto para as idades mais próximas a salvaçáo está gráficas. E o desconforto nasce do fato de sentiJas por de-
na enorme riqueza de um pontual material arquivístico, inais permeadas pelo gosto perverso do episódico e do fato
para a idade média o panorâma é desconcertante. Feita de constâtar o salto de nível que se atribui àquela realidade
com ânimo disponível a leitura dos tantos volumes de his- episódica. Mesmo querendo positivisticamente [ou mate-
(
tória agrária da alta e tatda idade média, daí emerBe para o rialisticamente) manter o próprio olhar âo nível das estru-
( pobre leitor um quâdro bastânte confuso. O cânone meto- turas, sente-se a falta de fôlego quando se vê a total ausên-
( clológico é sempre o de ligar deterministicamente a mudan- cia de uma tentativa que compreenda as relaçóes e o modo
çâ social, o florescimento, a crise aos precisos fatos estrutu- de produçáo para organizar a diáspora dos dados no âmbito
rais. Será para uns a sobreposição em relaçáo à quantidade de seu natural tecido de civilizaçáo e para, assim, dele ope-

20 2l
(
(
(
rar uma compreeilsáo autenticamente historiográfica. Ter- nâs situâções de força dos cedentes ou dos concessionários (
se-ia então desejado uma segunda árdua, mais difí-
cil mas decisiva
- maisa enorme
tentâtiva: a de atrelar massa de
foram pouco a pouco identificados como os motivos sub-
terrâneos do modificar-se das estruturas proprietárias. Não
(

grãos de poeira - ao plano das mentalidades e dos costumes;


(
seríamos nós a negáJo. É necessário conirdô dar um passo
mâs somente râramente a história agrária medieval, sub- adiante e tornâr mais complexo e mais tranqüilizante o pa- (
traída às mãos do tecnólogo e entregue às mãos de um his- norama histórico, que sofre de vínculos demasiado deter- (
toriador de categoria, teve uma tal boa sorte. ministâs. O munclo das situaçóes reais, por aquela sua pura (
Justamente por essas carências ela não está em condi- expressáo de escolhas fundameriiais do sujeito e da comu-
çóes de oferecer ao historiador do direito o auxílio que se- nidade, não pode ser reduzido a mecânica conseqLiência dc
(
ria de se esperar. Certamente oferece sempre uma mina de certos fatos técnicos, econômicos ou até mesmo demográ- (
dados desenterrados das fontes mais variadas, e dados ficos; exige, âo contrário, ser inserido, como há po,,.õ.. (
úteis, com os quais se pode contar mas nos quais faz-se bem dizla, em uma mentalidade, em um costume.
em náo confiar inteiramente. (
Tomemos como exemplo o regime medieval das pro-
O historiador do direito, quando faz a história das situa- priedades, que domina [ao menos no nível jurídico) aié o (
çóes reais, não pode não ficar insatisfeito com esse seu íe- século XIX: pois bem, nós estamos convenciclos áe que (
chamento no seio de um enredo de estruturas, no seio de
uma paisagem agrária. Colhe-se de tal modo somente o
seja, sem dúvida, fruto de uma demanda das estruturas,
mas que tenha adquirido força, sugestão, capacidade incisi_
(i
Iado externo do seu devir, em que as formas de gestáo e de L
va exâtamente porque expressão fiel de uma mentalidade,
pertencimento sáo justamente sobretuclo organizaçóes fun- porque radicado na ossatura dos operadores e não escrito (
diár ias e em que â dimensáo jurídica se dissolve na econô-
superficialmente em suâ pele. Isto somente explica pcrsis- (
micâ âté o ponto de confundirem-se; mas resta na sombra
tências vigorosas até bem além do terreno das lorças cco_ (
aquilo que gostaríamos cle chamar a história interna do ins-
nômicas e sociais que também haviam concorrido a plasmá-
tituto, um terreno que empenha o jurista em primeira pes- (
lo; ou a constância de certas orientações malgraclo a varie-
soa c que não é nem artifício nem imposição, mas sim uma
dade e diversidade das áreas espaciais. Se ern zonas intirna- (
dimensáo da história de sempre, Íresmo que nenr sempre
facilmente perceptíve1t3. mente impregnadas por vestígios feudais, como a França do (
Procuremos nos explicar. Abandonos e colonizaçôes de Centro-Norte e a Alemanha, a mentalidade que quer pre- (
terrâs, crises produtivas, crises demográficas, alternâncias miar as situações efetivas se encarnará no esquema das re-
(
nure íetda|, na Itália a mesma mentâliclade produzirá aque-
les frutos singulares que são a enfiteuse meáieval, a locação (
l3 Nâo será fácil perceber essa dimensão nâ práxis da alta idade mé- a longo prazo, os contratos agrários conslletudiná.ios, or- (
dia, pelas suas carências culturais levada à fusáo entre fato e direito, e dens jurídicas muito diversas mas atribuíveis, pela mesma (
em que o diÍeito mais do que construçáo formal é mentalidacle; será, ao mentalidade circulante, ao denominador comum daquilo
contrário, íácil em experiências que, pela sua força especulativa, confi- que os juristâs chamam de dominio diuiso. (
ram à reflexáo científica uma posiçáo dominante.
(
(
22 23
(
(
(
(
(
( I
( A essa primeira sacrossânta consicleração devemos po-
Os volumes de história agrária aquele bastante co- imediatamente umâ outra, que convalida
( nhccicLo e difundido de Abelra, por- exemplo, sáo redun-
rém acrescentar
e reclama um comportamento crítico: sob um outro aspec-
( dantes de longas exposiçóes das curvas das rendas fundiá- to o recurso não vigilante à história agrária pode dcmons-
( rias e cl,:s preços dos produtos agrícolas. Dados certamente trâr-se desviânte, poÍque um olhar demasiado particulari-
náo plivos de interesse, mas que suscitam uma legítima zado sotrre daclos técnico-agrários e sobre o aspecto exter-
( perguntâ para o historiador do direito: até que ponto ti- no (organizativo-factual) da propriedade corre o risco cle
( i-,hai,r,-,r',r poder incisivo sobre a plataforma consuetudiná- fazcr perder de vista a dinrensáo jurídica da ordem real.
r ia à quai estâvam l.rá séculos solidarnente ancorados pro-
(
§t'
d' pr iedade, direitos reais, relaçóes de concessão fundiária? A
Mâs atençáo: náo pretcnclernos re exunar nem o cadá-
vcr da veil.ra Isolierung nem rccair na arnadilha do forma-
( )
traclição jurídica e o costume sociai, para serem compro- lismo. Queremos somentc reivindicar uma inabdicável
l
il)"^ {r,'u
t
nretidos na sua urdidura compactíssima e na sua comprova- identidade ao historiador do direito, ao seu ofício, ao seu
( ...\' .Í,,)' da imperrrcabilitlade, precisam que ttrn intciro complexo conhecimento científico; uma identidacle sobre a qual so-
( \)' ,!\: de foryas incida continuan.rente sobre a n.ientalidade cole-
tiva.
mente se funda a cidadania intelectual e a sua utilidade
já o dissemos antes de não
social. EIe tem o dcver
( Paradoxalmente mas com a verdadc da qual todo - imerso no social, mas tem tam-
Qt,
- esquecer que o jurídico está
( paradoxo é portador poderíamos dizer que a orclem fun- bém o dcver de igual intensidade de reconstruir
-
diária de um certo momento histórico é nluito rnais aquilo - -
que circula invisír,el no ar daquele momento, do que aquilo
( que r,:sulta inscrito entre os sinais scnsíveis da paisagern
agrár ia. gida ao interior daquele universo especílico que é o clireito.
( O qr-ral certamente não é nem umâ nuvem sobre a cidade
6. Um relevante ponto metodológico que en-rerge é a nem Lrnl exercício retórico dos juristas; o qual certamente
exigência de um recurso crítico ao reservatório da história ó iraagcm da sociedade mas da qual não espelha torrencial-
( agrária. Não creia o historiador do direito ali encontrar a mente a realidade indistinta e global, mas sim certos valo-
( panacéia capaz de satisfazer suas aspiraçóes. Dado que pro- res lristoricamente consolidados, autonomamente conside-
priedarle é sobretudo mentalidade, o cúmulo de dados téc- rados e interpretados à luz de um alfabeto e de unla gramá-
( nico-agrários pode aliás, em determinados contextos, ter tica que constituem uma verdadeira e própria repre-
( função, ou poÍ contrâste ou por estranheza ou por não- sentaçáo técnica. A propriedade dos juristas ê um quid
( coincidência em relaçáo àquela, de elemento historiografi- qualitativamente diferente náo porque os juÍistâs o pensâm
l
camente desviantc. I
diferente mas porque colhem do nó emaranhado e compli-
( l
cado da propriedade somente certos aspectos e não outros;
( Ii a propriedade dos juristas é sobretudo poder soáre a coisa,
( l{ Wilheln ABDI.. Agrarhrísen, urà Agrarlzonjunletur' Eine Ges-
chichte d,:r Land wtd Drnàhrungswirtschat't Mitteleutopas seít den ho'
enquanto a propriedade dos economistas é sobretudo ri-
( h,:n M ittt:Laber (1935).
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qúezal Íenda àa coisa. E quando se misturam indevidamen- a particular abordagem cognoscitiva da realidade c clela (
te os dois perfis, sem cautelas, sem respeito pelas indivi- construtivâ que é o direito. A isso retornaremos em breve,
dualidades objetivas de uma e da outra, resulta um discurso (
quando retomarmos tâmbém o tema da propriedacle corno
obscuro e equívoco, que no plano científico náo beneficia mentalidade, mas não queremos agora eximir_nos cle um (
realmente a ninguém. aceno fugaz que pode funcionar como iluminador corolário (
Eis a página de um historiador da economia que, com e chancela a tudo o que foi dito sobre o tema da história (
alguma inconsciência, maneja a gramática dos juristas: "fa- agrfuia.
lando de propriedade privada, pretendemos levar em conta (
mais o aspecto econômico do que o estritamente jurídico; , Exprimimos desconfiança a respeito das estâtísticas e
das curvas que ela nos mostra, e procuramos motivat cssa (
ou seja, cremos poder definir como propriedade todas as desconfiança. Valerão como motrvação ulterior e concretâ (
Íormas de posse plena e exclusiva da terra, mesmo que esta algumas considerações sobre uma fónte típica da histOria (
última seja gravada por vínculos e ônus, que, a rigor, deve- agrária, a qual por encârnâr-se em instrumentos juríclicos
riam tornar impossível a transformação da simples posse poderia parecer adequada às necessidacles do hiitoriador (
em uma verdadeira e plena relaçáo jurídica de proprieda- do direito. Pretendemos nos referir aos cadastros imobiliá_ (
de"rs. Frase privada de rigor no momento em que misturâ rios. A referênciâ é tanto mais necessária já que se trâtâ cle (
indevidamente noção econômica e noçáo jurídica, quando fontes que tiveram e têm uma conspícuá uàloriraçao pã.
presume fixar linhas definidoras inferidas mais desta do parte da historiografia econômica (de modo particirlai da (
que daquela, e que é digna de um único comentário de escola bolonhesâ), e recentemente suscitaram um interes_ (
parte de um jurista: manejar validamente uma gramática se geral e uma diligente atenção. (
consiste em conhecer as regras e aplicáJas e não em repetir Como conjunto de operaçõcs direcionadas à averieua.
(
termos e noçôes no vazio ou sem propósito. A dimensão ção da consistência e renda dos bens, sern Íalar clo efciiun
jurídica não é nem esotérica nem reservada, mas, pressu- percebirnenlo desta, para fins dc imposição de tributos ool (
pondo um secular estatuto epistemológico, exige nas mãos parte dos poderes públicos, o cadistro-imobiliário c ior. (
do operador o instrumental, justamente definidor, prepa- malmente um procedimento jurídico mas com finalidade e
conteúdos exclusivamente econômicos. É óbrio ou" ,.,"rr"
(
rado por umâ trâdição científica consolidada.
âmbito se fale dc propriedade e de proprierários, rrnra e (
Sem esquecer todo o resto, é necessário fundar e cen-
outros pensados e colocados porém na eifera das relações (
trar o discurso histórico-jurídico em um observatório autô-
econômicas náo como nomenclaturâ precisa e rigorosa ãon_
nomo que exalte essa gramática e sobretudo naquelas fon- (
seqüente a qualidades juridicamente relevanteJmas como
tes que estejâm em condições de exprimir completâmente marca de uma substância econômica a ser âtingida tributâ_ (
riamente; de modo que propriedade chega a iãentificar_se (
com uma noção conceitualmente genérica, mesnro que (
ts F. CAZZOIA. La propietà terriera nel Polesine di S. Giorgío di economicamente consistente, de detençâo da riqueza tirn
Ferrara nel secolo XI4. Milano, 1970, p. 6. diária e percepção da renda, uma noção que não tem nacla (
(
26 (
27
(
(
(
(
(
(
( a corrpartilhar com o poder construído pelos juristâs como pode contentâr-se em conhecer o montante da renda domi-
eixo da ordem jurídica. ,iul qr.- efetivamente a percebe, e, se por parte de al-
( gumâ" personalidade sensível se insiste na necessidade me-
E como fonte genérica os cadastros imobiliários reve-
( tódica "de deixar bem claro o que é a propriedade e o que
lam a sua inadequaçáo para o historiador do direito. Quan-
( do Porisini nos informa que no cadastro imobiliário de Ra- significa dispor dela"2o, é porém de todo compreensível
( vena, do século XVI, não se faz distinção entre propriedade que ele defina como satisfâtória "aos fins do conhecimento
e direitos reais limitadosr6, isso deve ser interpretado como
econômico" o cádâstramento geral dos bens "ao possuidor
( real: pleno proprietário ou enfiteuta, usufrutuário etc."2l, a
uma tendência a assimilar as duas faixas de situaçóes jurídi-
( partir do momento em que, para ele, aquilo que preme é
cas, ou é mais simplesmente umâ confusão do oficial de
"identificar não tanto a figura jurídica do proprietário, mas
( registro que, in con scientemente mâs também legitima-
sim a pessoa ou o agregado de pessoas que percebem â ren-
( mente, ao menos do seu ponto de vista, operou uma grande
da dominial".
generalização? Quando Imberciadori, a propósito do cadas-
( Essa identificaçáo faltante porque irrelevante e por-
(
tro imobiliário de Siena de 1316, refere que a dicçáo usual
tanto nem desejada nem
-
procurada pelo oficial de registro
é "habet possessionem "rT, ou quando Anselmi, para um ca-
( interessa, ao contrário, ao jurista, diante do qual as fon-
dastro imobiliário do final do século XV, assinala que "aqui -tes cadastrais aparecem como descriçáo muito freqüente-
( a propriedade é definida cadastralmente com a dicção 'ha
mente grosseiras e confusas. Pontualizam bem aquilo que
( terra"'18, qual é a feição jurídica a ser dada a estas vaguíssi-
importa do ponto de vista estimativo, isto é, a renda real-
mas figuras?
a Dever-se-á dizer somente que tem feiçáo econômica mente percebida e a condição de gozo do bem, mas a des-
( mas não jurídica, no sentido de que se tratâ de figuras pen-
criçáo do grâu de pertencimento é sumário (ha, habet), e o
jurista torna a perguntar-se infinitamente, sem ter uma res-
( sadas e resolvidas para além de qualquer gramáticâ jurídicâ
mesmo elementar. O economista, mesmo qualificando as posta, se se trâta de pleno proprietário ou de utilista, de
( usufrutuário ou enfiteuta, ou de uma forma de locatário a
fontes cadastrais como "um instrumento rico e infido"rs,
( longo prazo: náo se trâtâ de decorações nominais mas de
( situaçôes diversas das quais descendem e às quais estáo li-
r6 G. PORISINI. La proprietà terriera nel Comune ài Rauenna dalla gadas conseqüências jurídicas diversas. O jurista, se quiser
( metà del seco[o XVI ai giomi nostri. Milano, 1963, p. 12, n. 12. corresponder pienamente ao seu ofício, deve ir muito além
( l7 I. IMBERCIADORI. Il catasto senese del 1316. li Archíuio 'Vitto- e muito mais a fundo.
río Scialoja', VI (1939), p. 154.
( r8 S. .ANSELML lnsedia*enti, agricohura, proprietà nel ducato roue-
( rcsca: la catast:azi(.,ne deL 1489- 1490. h Quaàerni storici, 28 (197 5),
p. 70, n.133. [No original 'ha terra', entÍe aspas, que traduzido significa 20 M. BERENGO . A proposito di proprietà fondiaria. ln Riuista sto-
( 'tem terra', N.T.] ríca ítaliana, DOO(Il (1970), p. 2l e segs.
( l9 R. ZANGHERI. Catasti e storia delta proprietà terríera. Torino, 2t R. ZANGHERI. La proprietà terriera e Le origini àel RisorginÉnto
) 980, p. VIL nel BoLognese. I. 1789-18O4, Bologna, lg6l, p. 80.
(
( 28
(
(
(
7. F azer das .propriedades um elemento da paisagem
gresso internacional sobre as relações entre história
histórica grâçâs aos instrumentos da história agrária é por- social e
dimensão jurÍdica, levava-nos a sublinhar intensa*ente
tanto meritório desde que se evite o risco de dispersar na
(para que os ouvidos dos amigos da nouuelle
variedade da paisagem a limpidez da dimensão jurídica, histoire cr.rten,_
clessem) uma possível percepçáo do direito . ao inrtituio
que não é nem pressão nem invenção mas uma realidade
jurídico com^o mentalidade, fiàlmente
ôntica a ser individuada e posta en.l evidência. Acrescenta- .1" u-n
mos também, insistindo em temas já acenados, desde que
mentalidade22. "*p..r.iro.
entre os mil fatos que compóem âquela paisagem não se Acrescente-se um esclarecimento que concerne pro_.1
à
perca de vista o reticulado de linhas portântes, que não é priedade: nela, talvez mais do que em qualquer
outro listl_ I
tangível, que corre aliás subterrâneo ou circula invisível no tuto do direito, exalta-se e se exâsperâ o que se está clizen_
i
d.o jurídico, porque ela, .à,rp.náo , ,."-.
ar, mas que, náo por isso está menos presente e incumben- Í:,:f.1, *p",
llciâl clas formas, liga-se n ecessariamente, por urn lado. a, l_ i
te como força de um certo clima histórico.
uma antropologia, a uraa visâo do homem no rnrndo,
A propriedade, as propriedades dissemos acima e pori
repetimos agorâ como âxioma respeitável
- antes de ser
outro/ em graça de seu vínculo estreitíssimo com
interessesi
paisagem sáo mentalidades. A hipótese de - trabalho é tão vitais de indivíduos e de classes, a uma ideologia
À o;"_l
priedade é, por essas insuprimíveis raízes, mas
difícil quanto sugestiva mâs talvez seja a trilha segura a per- dã qu..,'rri-,
quer ourro instituto, mentalidade, aliás mentalidàde
coÍrer por parte do historiador do direito. .,r.,_,
funda. O historiador, habituado à corrida t";;.;;;;"
Se a mentalidade é aquele complexo de valores circu-
cial, no campo das relaçóes de pertencimento
àJ;;f
lantes em uma área espacial e temporal capaz, pela sua vi- e reais é obri_
gado a um reparo objetivo: mudam as p"irrg";;g;ár;;,
talidade, de superar a diáspora de fatos e episódios espalha-
pâssam âs ordens sociais mm o
dos e de constituir o tecido conectivo escondido e constan- -arrno .nántalúade à"s vezes
persiste; às vezes, freqüentemente, há uma
te daquela área, e deve portanto ser colhido como realicla- sua Dermanên_
cia até alem daqueles que podiam parecer a r.
de unitiva, o seu terreno é sem dúvida congenial e familiar oll,rà nan
penetrânte os termos naturâis do seu campo de
âo juristâ, um intelectual dominado, devido a sua nâturezâ ação.
(porque ajusta sempre as contas com o nível dos valores),
pÕr umâ íntima tensão à sincronia e ao sistema, isto é, à
unificação orgânica dos dados.lCom olhar prevalentemente 22 Referirno-nos ao congresso sobre ,História social
e drmensão iurí_
dica', realizado em Ftorcnça em 26-22 de ab,,lde
sincrônico, já que os valores tendem â permear a globalida- iggi ;;; ,;;;;;
de da experiênciâ, com atitude prevalentemente sistemáti- 11-e-s11ye1re
Lrnzio Violante .ler
a,inrÍodusão gerâl aos trabalhos e a Ja. qr"i a"
e Mario Sbriccoli âs âpresentâçóes ftrndamentois.
a;;i
ca, já que os valores tendem a permanecer e a cristalizar-se, 'Anais' foram publicados junto ao editor Os
Giuffré cle M;ir;;;;,;;;:
o jurista se sente à vontade quase em casa, dir-se-ia mo segundo volume da Biblioreca ,,per la storia
- - d.l p.nri.- 0i,,,"i."
no terreno das mentalidades; é aí que o jurídico tem suas moderno", ct. CROSSI, paolo (a cura di). Sroria ,"[i,t"
)ii"",j,',,"i,i
raízes. \Consideração que, alguns meses atrás, em um con-
g*r:!n:: sríumenti d'indâgine e iporesi di lavoro (ârti dell,incorrro
"
di
stuclio. l-irenzc, 26t27 aprile I9g5J. Milano:
Ciufírê, I9g6.
30
3t
pede antes de mais nada o seu ser direito, regra obse.rvada
Se por experiência jurídica entendemos, na esteira do
à respeitada porque aderente às fontes mais vivas de um
filósofo23, um modo harmônico e homogêneo de sentir,
cost;me, d. i.erç^s religiosas, de certezas sociais' Somen-
conceber, viver o direito, poder-se-ia com segurança pensar
te tudo isso podeixplicir o conspícuo retardo da constru-
em uma propriedade espelho da experiência e naturalmen- qual é necessá-
ção ju rídica de uma nova propriedade, pela
te reclusa no nicho conveniente por ela representada. Mas
rio esperar o século dezenove, e, ainda nesse m.aduro trag-
quen.r refletisse deste modo sensatÍssimo demonstraria náo
ment; da idade moderna, levando consigo ambivalências,
levar em consideraçáo a realidade submersa das mentalida-
contradições, incertezâs. Os valores são, certâmente, histo-
des em que razoável e irracional, consciente e inconsciente
ricamenti variáveis, mas a sua é variação lenta, trabalhosa,
se compenetram reciprocamente. uma certâ invençáo jurídica
náo indolor; e o seu produto
A idéia paradoxal e, à primeira vista, desconcertante de -
do pertencimento, no nosso caso o sistema medieval das
uma história imóvel, que constatamos enunciada e defen- propriedades continua a viver quase alem.de sua vida
dida com vigor e convicção no seio da mais recente e pers- -
nutrr"l; ,.rp"nteando entre as estruturas e chegando até
picaz reflexáo historiográficaza, náo surpreende o historia-
mesmo a condicionar-lhe o devir, mas sobretudo aninhan-
dor do direito. E não tanto, como diria um dos demasiados
do-se nas consciências.
fáceis detratores que se aninham no rebanho dos não-juris-
Se assim é, se propriedade é sobretudo uma certâ men-
tas, porque o historiador-juristâ é reconstrutor de formas mais em geral o mundo das
talidade proprietáiia, se
esclerosadas e de oficialidades rígidas, quanto porque ele -
situações reais é especular de radicações
-que vão- muito
deve quotidianamente âjustar as contas com as mentalida-
além do jurídico, até mesmo na zona insondável do pré-
des, porque o direito é fisiologicamente uma mentalidade
conscienie; se âssim é, é óbvio que se ponha para o historia-
afundada na consciência social.
dor do direito, homem de dupla consciência, uma dúplice
O historiador da cultura ê da sociedade em geral não exigência no que diz respeito a suas fontes. Elas deverão
deveria perder a ocasiáo para uma reflexáo realista: que no
dila=tar-se até consentir a historicização dos dados jurídicos,
universo jurídico as formas sáo freqüentemente somente as
mas deverão sempre verificâr-se e âjustar o foco no terreno
pontâs emergentes de um gigantesco edifício submerso, que parece mais estreitô mas que é somente mais repou-
um edifício construído sobre valores e que a esses valores -sadà. àeca.,tado das escolhas técnicas. Entre estas duas
-
tensóes, que correm às vezes em sentido contrário e que
sáo, de quilquer maneira, culturalmente bastante diversifi-
23 Somente para o eventual leitor náo-jurista especificâmos aqui que cadas, eitá ô pobre operador curvado sob o peso de um
a referência é a G iuseppe Capograssi, um dos protagonistas da filosofia fardo grande demais para seus ombros.
jurídicâ italiana do séc. )O(, por nós já mencionado na nota 3.
Como poderia o historiador das origens de uma pro-
24 L'histoire ímmobile é o título da aula inaugural de Emmanuel LE priedade moderna, explorando entre idade média e idade
ROY IADURIE realizada em 30 de novembro de I973 no Collêge de
France. Le Roy Ladurie refere a expÍessão a um contexto bem diferen- nova, deixar de lado as análises daquele perspicaz antropó-
te do nosso, colhendo outras imobilidades. A instância metodológica de logo de ontem que é o teólogo? A teologia voluntâristâ dos
revisáo de velhos lugares-comuns é todavia çonsoante.

3Z

B!L1 !-iÕi'E ôA ÜTIITR"AL


(
(
(
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séculos XIV e XV, ântes, a Segunda Escolástica espanhola, própria pesquisa, essencial mâs preparâtório. Do enrara-
depois, oferecer-lhe-áo preciosos elementos para seguir o nhado das mentalidades é a jurídica que ele quer evocâr, e (
escondido fio de fuiadne que desde as velhas propriedades é a uma propriedade como construção jurídica que ele quer (
jurídicas conduz invisível mâs seguro à nova propriedade chegar no seu itinerário cle compreensão. Tudo deverá ser (
das cartas constitucionais do séc. XVIII e dos códigos do verificado naquele terreno específíco das arquiteturas téc-
séc. XIX. E como, igualmente, poderia o mesmo historia- nicas às quais nos referíamos pouco antes e nas fontes capa-
(
dor seguir mais tarde o mesmo fio secreto se não aprofun- zes de mostrar com nitidez as linhas de tâis ârquitetrlrâs. (
dasse e fizesse suas as intuições e os diagnósticos da filoso- Entáo, não um isolamento de fontes jurídicas quase (
fia política anglo-francesa? Será o individualismo possessi- como se somente nelas se condensâsse o universo clo histo-
vo dos séculos XVII e XVIII sumariamente identificável (
riador do direito, mas uma abordagem inevitável a elas
nas pontas emergentes de Locke e dos Fisiocratas que/ re- como momento de verificaçáo e de identificaçáo clo pró- (
colhenclo as críticas erosivas de precedentes filões teológi- prio objeto cognoscitivo e do próprio mecanismo de conhe-
cos, interpretando o sentido das reviravoltas culturais e fa-
í
cimento. Segundo as diversas sociedades e civilizaçócs his-
zendo seu o desenho projetual de ordens emergentes, côns- (
tóricas seráo maiormente utilizáveis ora atos legislativos,
truirá lentamente um novo modelo antropológico da rela- ora atos notariais, ora âtos judiciais, ora reflexóes doutri- (
çáo sujeito-fenômenos, homem-bens, o único que, agindo nais. Se o intérprete do alto medievo, diante do resseca (
no nível da mentalidacle, poderá permitir que se dissolva e mento da reflexão jurídica, refugiar-se-á sobretudo na rica (
se expulse do fundo das consciências o nó górdio das men- e iluminante práxis documental e judiciária, o indagaclor do
talidades precedentes fazendo aflorar, no final, uma cons- Rcnâscimento jurídico colocará na scíentia íuris À centro (
t rução jurídice renovada. dos seus interesses. Sempre fará bem todavia o historiador (
A gama das fontes náo pode náo ser grande e variada a não isolar esta ou âquela fonte, na tentativâ de obter de (
para acompanhar esta legítima ânsia de compreensáo que uma mensagem coral a própria voz da experiência na sua
está no coração do ofício de historiador, e nela encontrarão globahdade. (
lugar sem dúvida os dados oferecidos pela história agrária c Mesmo com estas elementares cautelas de método, (
cadastral em direção aos quais freamos o incontrolável en- mesmo nesse espírito tendencialmente onicomprecnsivo, (
tttsiasmo do jurista e os quais não estarão en'r condiçôes, como fonte príncipe para reconstruir umâ ment;lidacle jLr-
pela sua nâtureza, de oferecer nada além de uma contri- (
rídica eleva-se â ciênciâ; de modo reduzido no Estado de
buição relativa para uma reconstruçáo segundo â óticâ pro- direito moderno, em que ela foi expropriada do ofício cie (
posta. produzir ou de colaborar a produzir iuris, de (
Mas, então, colocamo-nos talvez em contradição com modo -
pleno - a reguLa
nos ordenamentos não legalistas em que à or-
âs nossas conclusões precedentes? Não nos parecer porque
(
dem dos juristâs está entregue o ônus e o privilégio da pro-
é claro que o trabalho do historiador do direito, no momen- duçáo e da adequação. Sempre, todavia, a ciência ó, en- (
to em que olha os fatos econômicos, reflexões teológicas, quanto consciência reflexa, especular das mentaltdades cir- (
análises politológicas, é somente um primeiro estágio da culantes. (
(
34
35 (
(
(
1
(
(
( Náo gostaríamos portanto que as diferenças, emersas rentemente mais árida está, de algum modo, conectado,
( muito recentemente em respeitáveis testemunhos da his- imediatamente ou mediatamente, com as grândes instân-
( toriografia jurídica italiana, preocupadas com os êxitos às cias da sociedade, para afirmá-las ou para negáJas, para re-
vezes não felizes dos últimos refluxos idealistas, tornas- cebêlâs ou para contrastá-las; e sempre a técnica é filtro e
( proteção, escritâ com duas tintas, uma das quais a ideo-
sem-se um comportamento cético em relaçáo à capacidade
( da análise científica de ser expressiva da experiência na sua lógica pode ser lida com dificuldade somente-pela bra-
( vivacidade, já que "a multiforme vida do direito" não pode vura do- observador que dá consistência ao que pârece plano
deixar de fugir e ser aliás estranha às "âbstrâtâs arquitetu- a uma primeira leitura apressada. Se a página técnica do
( cientista é lida contra a luz, sejâ pela sua contribuição cog-
ras teóricas inventadas pelos jurisconsultos"2s.
( Que a doutrina tenha às vezes pecado por abstraçáo, noscitiva, seja também pela meta-cognoscitiva; se é inseri-
( esterilidade, destaque da sociedade e da cultura é um fato da em um tecido coral, ela é a fonte primária da qual o
( náo desmentível, mas náo devemos nos fixar em aspectos historiador do direito deve ao menos partir.
patológicos para condenar genericamente e injustamente a Tudo isso é exaltado ao máximo grau na grande refle-
( xão doutrinal na qual se encarna o direito comum clássico,
dimensão mais pontual do direito no seu fazer-se história.
Recordemo-nos que a ciência une para o historiador das desde os Glosadores aos Comentaristas tardios, do século
propriedades dois aspectos extremâmente positivos: é re- onze ao dezesseis; por dois motivos elementares: porque é
veladora de toda a aventura técnica da construção jurÍdica, ciência produzida no centro da cidade terrena, nela bem
que nas tramas da análise científica se desenrola e se cum- inserida, empenhada como está na construção das arquite-
( pre com plenitude; é reveladora com particular sonorida- turas jurídicas da sociedade e a isso expressamente predis-
( de, dentro da urdidura do discurso técnico, de bem defini- postâ; porque, se por formalismo entendermos a criação de
( das escolhas ideológicas. um castelo de formas intelectualmente probantes e convin-
O essencial é que o historiador fuja da opinião indivi- centes mas privo de uma correspondência na eficácia das
( dual, esteja atento âo exigir da doutrina que seja voz de forças históricas, é esta umâ doutrina náo ainda captuÍada
( uma ordem, ame estender-se nas realidades corais em que pelas lisonjas do formalismo. Ou, se há também nela a ten-
se reduz ou se extingue o risco de abstraçáo e de isolamen- taçáo perene da construção de uma dogmática pura, é sem-
(
to. Nesse caso, o discurso mais enraizado na técnica apa- pre superada porque sempre permeada por um forte espí-
( rito realista, por aquela salutar exigência de comparaçáo
( com a realidade que foi a válvula de salvação de muitas
( 2s Assim Ennio CORTESE. Nel ricorlo àíAnto o Era. Unapíoposta aventuras dos juristas na história. O problema da vigência
per la datazione àeltn 'Carà de logu' d'Arborea. h Quaderni sardi di das fontes romanas e as soluçóes inventadas pelos doutores
( stori4, 3 (luglio l98l giugno 1983), p. 25. Do mesmo Autor veja-se na crise da abordagem entre aquelas fontes remotas e a
( -
também Stona del diritto italiano. ln Cinquanta anti di esperíenza realidade quotidiana medieval e protomoderna o demons-
giuriàica in ltalia. Milano, 1982, p. 821. Cf. também U. NÍCOLINI. tram. Demonstram que eles não sáo personagens livres de
(
Per uta maggiore concretezza rcgli studi stoico-giuridici. b Studí in condicionamentos formalistas mas têm recuÍsos de desini-
( onore di Biondo Biondt, III, Milâno, 1963, p. 22 e segs.

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36 37
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biçáo, de fantasia, de consciência histórica tais que os supe- do com segurança às concretas ordens jurídicas
que consti_
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râm, ou ao menos que os imunizam, constituindo cordóes tuem a diferenciada rs5po.,, ao, ora.'rrÀ"n
i;.";ir;;r;.", (
umbilicais que náo podem ser cortâdos com a realidade ""ipor das relações reais. Tantas,propriedades, (
:_u-l_r.oo,:Ta _
efetiva. dizer
-que se assrm quantâs são as experiências jtrridifas
sucederam no tempo. E aqui cai (
está fig"a."p";;;;;;;r',.
B. Com a pequena bagagem de coisas úteis garimpada um-a ulterior especificação, que (
ã"
nas páginas precedentes podemos nos impelir a tentar se- cttsclr rso "ãrlã'rir.r (
guir a linha de um desenvolvimento e a traçâr sumariâmen- Se ilusória é a busca de um terrilo quâse
como se tivesse (
te o itinerário, levando sempre âo menos um grãozinho de a virtude evocariva (que não tem),
.ãá -".;;;l;;;r;;_.
metódica perspicácia na palma da mão: que a história do ntars lnsldrosâ, e rastejante _ é (
uma mera cOntinuiCiade dc
pertencimento e das relaçóes jurídicas sobre as coisas é ne- r (rr rnas. L.,e um ponto
de vista soci;rl a história do Ociclenrc (
cessariamente marcada por umâ profunda descontinuida- eurôpeu nunca subverteu o baluarte
a, propri.ara" i,ràiri
de; necessariamente, já que propriedade é sobretudo men- d^uai; o próprio_alto medievo,
mesmo com um di]atar_se de
(
talidade. Ou seja, náo se reduz nuncâ a uma pura forma e a tormas de gestão coletivas e individuais (
na.,-.,..,.r.i"r;,,i.
um puro conceito mas é sempre uma ordem substancial, mânteve uma idéia formai de p.opri"J;;;l;á;,á;.1
.#: (
um nó de convicçóes, sentimentos, certezâs especulativas, do pertencer E pode_se, ;.,-, i;;;;,,,
interesses rudes, tanto que seria imprudentíssimo e até il?I:1r-""1"g,jlmante
rrLamente pensâr na continuidade no (
- uma registro forrnal de
mesmo risível quem tentasse seguir, nesse terreno, unr.larifúndio desde a idade .lárri*,
;r.;;à;;; (
-
história de termos, de palavras. idad.e barbárica, até o Renascimeii;â;ré*t;
,;ar""
dã;".'""' (
"Propriété, propriétaire: que voilà appliqués au Moyen , E esta uma continuidade satisfatória
Age des mots lourds d'équivoques", advertiu-nos Bloch em do direito?.E se satisfará, em particular, fr.. "lri.àri"a", (
'propriedade', cm reduzir o historiador da
anos já distantes mas com uma advertência que clevenros o seu'obl",o Àir,à.iãe;;i;;;;,; (
tomar e fazer nossa ainda hoje como advertência geral que signo cadastralz Ou não deverá ,_óti_. (
ver. se, por âcaso, junto a uma propriedade
p.ãp.i";ü;; ;;;
exrrapola as fronteiras da complexa realidade medieval26. ior.ol ,",,i"." (
Quem quisesse confiar nas palavras - e houve quem qui- mals oesvltalizadâ e exautorada não
emergem,rbrt,inlm
sesse iria colecionar insensatâmente invólucros vazios para,proprietárias munidas de
uma visto"sa .t",i"là^ã")
(
que a -história âpressou-se, por conta própria, a encher de P^ara^a,caracterizaçáo da,propriedade,
á rigr" .à.r,rrf'. (
conteúdos os mais variados sem se preocupar com conti- um tâto pressuposto. propriedadãé
nuidades verbâis. Parâ o historiador o essencial é náo dei-
::T"n,.
(uqo (-aso, poder sobre a coisa, dc fato. errr (
e poderíamos tranqüilarnen_
xar-se enredar por identidades formais enganosas, chegan- te defini-la como.a situação a" p'.à.. (
ar.ái, ; ,;,:d,;l;:"
o^"- tutelado pelo ordenamento rra maneira (
:]_"-: q.uât mris in-
sirurçâo o ordenamenro aito_edieual (
26 M. BLOCH. Village et seipvurie: queLques observatiorc de métho- l.^1ir ^ atenção e, por conseqüênci., u trr.l.
co,,le_
de à propos d'une étude sur la Bourgogne . ln Ann ales d'his toire é cononí - llr",
rntensa.'Â 1l..o0.,u
propriedade_signo, ou ao conjunto
r.,ri, (
que et socíale,lX (1937), p. a97. d" .iru^i0""
(
38
(
39
(
(
(
de efetividade sobre o bem (que se chamem geuere, on camos justamente como 'propriedade' ?ara. continuar no
uestitura), nas quais está condensada uma vastâ gama de uso insirumental desse esquema mental, o historiador da
poderes? 'propriedade'- que deve sempre ser historiadorao menos
Não há dúvida de que o ordenamento opta pelas segun- I
'áas propriedades'-, recusando-se a isolar a relaçao tor-
das, e com essâ opção sofre uma contradição insanável: na como dizíamos acima, a
I -rlÁ"ni. proprietária, alargando,
separaçáo (que é também oposição) entre forma oficial e nrónria análise a todo o sistema fundiário, construirá' deve-
l
substância efetiva, tutela como proprietários ordens que iá const.uir a história da'propriedade' na idade média cen-
não são formalmente tâis, respeitando a sua função de pro- trando a pesquisa em u- cúmulo de objetos que um forma-
tagonistas da vida econômica. A resposta jurídica do orde- Iista miopeminte excluiria. Mas o formalista se arriscaria a
namento altomedieval está nesse deslocamento da atençáo marcâr somente uma genealogia ininterrupta de titulares
e da tutela, e aqui sua voz é significativa para o historiador do bem, e lhe seria preclusa a história dos poderes mats
das relaçóes reais e também da própria relaçáo de pertenci- intensos sobre aquele mesmo bem, que é o que nós
juristas
mento: aquelâ tutela, antes informe e factual, é o primeiro convencionalmente àntendemos por história proprietária'
passo que se insere em um itinerário que desembocará su- Desembaraçar-se de toda abordagem formalista, de-
cessivamente no conferir uma dignidade formalmente pro- sembaraçar-se do enganador da continuidade. pode
prietária às substâncias econômico-jurídicas já percebidas "rto*o
ser a ú.,i"ca operaçáo de limpeza intelectual para colher e
como proprietárias. seguir o formar-se, sobre o tronco dos fatos econômico-so-
Provavelmente tinha mais umâ vez razão o engenho cià-is, da nova experiência jurídica. Aqui, respeito à descon-
agudíssimo de Bloch, um náo-jurista permeado de senso tinuidade qu". àir.r."rpãito à originalidade dos fatos his-
jurídico, quando confessava em uma das tantâs cintilantes tóricos.
resenhas disseminadas nos primeiros volumes das suas 'An- História descontínua, então, a ser concebida como mar-
nales': "je n'aime guêre appliqué au moyen âge le mot'pro- cada por diferentes universos profundamente carâcteriza-
priétê'"27 . Tinha razão em não amar essa indicaçáo equívo- dos e solidamente demarcados, levando porém em conta a
câ porque causa de possíveis desorientaçóes e porque náo advertência de que estes marcos, sendo os mârcos entre
adequada a descrever um material histórico demasiado di- duas mentalidades, conservam territórios nos quâ-is os tra-
verso. Todavia, como nós, também Bloch, nos seus traba- aliás a formar as
ços do passado permanecem e continuam
lhos medievalísticos, acabava por falar de 'propriedade', ionsciências, faiendo do novo universo uma realidade in
mesmo que como referência convencional, como um modo limine conlÍàditória, portadora de valores de sinal oposto'
para que todos pudessem entender que o problema em São enraizamentos lentos a extinguir-se que nada têm a ver
questáo era o da realidade máxima, o que nós hoje identifi- com um problema de continuidade: em uma seqüela de
experiências descontínuas há estagnações, imobilidades;,o
zz À frase está contida em uma breve resenha a um volume de histó-
,eiho .ontinrra a proceder quase por inércia em nível de
mentalidade história imóvel dizíamos mesmo que o
riâ dâs instituiçóes monásticâs. Cf. AnnaLes d'histoire économique et -
clima histórico náo esteja mais em -
condições de nutrir
sociale, YIII ( 1936), p. 51.

40 4l
(
(
(r
um clima de uma humildade total. O ordenamento se espe- {
aqueles valores jurídicos, inapelavelmente condenados à
morte. Isso explica, como já reconhecemos, porque o com- lha nas coisas, constrói-se do ponto de vista das coisas, e (
para o coração delas desloca-se o momento vitâi. O luríclico (
pletamente'moderno' da propriedade se concretize so-
não é mais o conjunto de formas supra-ordenadas segu:rdo
mente no tardo século dezenove, quando a experiência his- (
um projeto de soberania, mas o conjunto de modestos in-
tórica e jurídica da idade média já parece há alguns séculos
dumentos marcados por uma absoluta aderência plástica à (
uma existência transcorrida: porque somente entáo a cul-
tura jurídica tem as forças conscientes e inconscientes para
realidade objetiva, formas incapazes de separar-sc das es- (
truturas, aliás na mais pronta disponibilidade a suportá-lâs.
livrar-se de uma mentalidade mesmo já sepultada. (
E uma civilização do direito sem modelos culturais bem
definidos, em que o território do jurídico (
de ser
9. A parte da ordem jurídica das relaçôes reâis que con-
vencionalrnente poderíamos chamar de medieval se deli- uma arquitetura de linhas claras e rigorosas - longe
mescla-se (
neia com nitidez quando, ao ruir do velho edifício estatal sem fronteiras precisas com o factual, e por ele - é permea- (
romanô e da cultura jurídica que the era simbioticamente do. Não será mais, como na idade clássica, a dimensão c{a
(
conexa, âo esfacelo social, à crise da produção econômica, validade, isto é, a correspondência a um arquétipo, a medir
ao encolher-se do comércio, ao esvaziar-se das cidades; a juridicidade de um dado, mas acima de tudo a sua efeti-
(
quando, nesse vazio que a nascente civilização demora a vidade, isto é, a sua intrínseca capacidade de incidir sobre (
preencher, inverte-se a relação homem-natureza e novos a realidade prescindindo de comparações com modelos (
valores fundantes começam a deixar sua marca no mundo ideais e culturais.
jurídico. (
Como pano de fundo desse primado do objetivo e do
As coisas, antes oprimidas pela vontade dominadora do efetivo, que mais e mais se afirma e consolida, está o tÍiun- (
sujeito, agigantâm-se e tornam-se os elementos essenciais fo e o império das situações ligadas à efetividade. Enquanto (
de uma paisagem que apresentâ sempre menores traços da as titularidades abstratas sofrem aviltamentos e marginaii- (
ação humana; coisas inacessíveis nas suas enormes propor- zaçóes, todo exercício sobre a coisa desde que dotado de
ções, mas que devem ser respeitadas a todo custo porque -
um mínimo de autonomiâ, isto é, desde que seja uma situa-
(
condiçóes elementares de sobrevivência em um mundo
çáo dotada de uma corposa efetividade encontra aqui a (
sua revalidação. A1iás, todo exercício no -
onde a sobrevivência é o duro problema de cada dia. O (
seu estender-se no
sujeito, desprovido de vontade incisiva, encolhido no inte-
tempo se carrega de uma força tal a ponto de consentir,lhe (
rior da realidade cósmica como tessela de um grande mo- uma clara incidência no âmbito do direito âté o território
saico, sepultado na concha protetora de sufocantes ordens (
sensível do jurídico que é a realidade: todo exercício, quase
micro-comunitárias, depõe toda veleidade imperativa e so- (
como expressáo das mais escondidas exigências econômi-
fre o complexo de forças que do exterior se projetam sobre
cas da coisa, tende a fincar raízes, a compenetrâr-se com (
ele.
ela em uma única realidade vital. Do ponto de vista jurícii- (
Forças e regrâs primordiais escritas sobre as próprias
coisas serão o cânone construtivo da nova civilização em co, tende a deixar a esfera das relações relativas e a'reali-
(
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43
42 (
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(
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{
( zar-se'. O exercício de poderes sobre a coisa, de expropria-
forças prorr.rotoras a aparência, o gozo, o exercício, isto é, as
( ção substancial daqueles poderes, tornâ-se-o também for- presenÇâs vivas no âmbito da dinrensão factual; rccusa-sc
( malmente, e a linha divisória entre exercício e titularidade
ou ó incapaz a invcntar cânones ârtificiosos de cluali-
(.
se ofusca, enquanto o ordenamento oferece ao sujeito -ficação c registra- corn hurniidadc a carga normativa de to
exercente, em nome de superiores exigências obletivas, a
clos estcs fatos. Não se dcsnrente o donúnium do antigcr
( própria investidura da juridicidade.
titLrlar cailastral, mls elc ó clcsvitalizado por csvainrento,
( O sistema das situações reais que se acomoda e se mo- clcixarclo qllc, sem eversões clanrorosas, sem clamorosas
dela sobre essas mentalidades e sobre essas forças estrutu-
( revoluçocs culturais, scja cxpropriado clos porlcres enr-
rais fou que, paru dizer de modo historicamente mais rico,
( por elas é pretendido e provocado) não pode não levar em 1,rcenclt-clores por qrrem náo é proprietíu'io mas ó o gcstor
da eir r pr--sa.
( si traços peculiaríssimos, afirmando a sua conjunção a um
É o pedido âutêntico c1a vida econômica, e é con-
planeta bem diferente do clássico. Não um edifício pirami- "rr"
( ccdido. Â revolução cultural cxiste mâs cstá escondida, clis-
dal, monolítico, que encontrâ o seu ápice substancial e for-
( sinruJada, fruto náo cle um rnovimento ou de um progrilnra
mal naquele modelo de validade que é o dominium (no
( quai, no fundo, resolve-se), mas um acúmulo torrencial de rras de uma oficina secuiar que está operando, dc geração
situações emergentes, náo filtradas e não modeladas atra- enr gcracão, no vazio criado pcio desfaceio clo mundo anti-
( go, sobre o único terreno verdadeiranenle, nlesmo qLre sLt-
yés de nenhuma peneira oficial, transbordantemente plura-
( lista, no qual o que conta mais do que a titularidade tilrnente, destrutivo: o da mentalidade.
(
-
proprietária, que subsiste mas que está sepultâda e sufoca- É uma mentalidadc nova que o historiaclor contempla,
( da são os mil exercícios efetivos já definitivamente rea- forjada por mii artifícios cscondidos pelos instrumcntos os
- na consciência
lizados comum e tornados socialmente e rnais rudes, tabeliáes e juízes na melhor das hipótescs, e
(
economicamente os protagonistas da experiência28. mais freqiientemente operadores não nomeaclos e desqrta-
( O baricentro do sistema se como sistema pode ser liÍlcados, cada unr dos quais contribuiu insensivclmente,
(
-
qualificada uma realidade torrencial se desloca necessa- rnais inconscientemente do que conscientcn)ente, paÍâ in-
riamente para formas diferentes da -propriedade. Que se- verter a ampuiheta de unra/or,namentís. urna mentaliclade
( jam chamadas geuere oú saisine ot uestitura segundo as ângulosan.lente proprietáriâ côrro e romerla foi substituída
( diferentes línguas e culturas, uma é a plataforma constante por lrma civiiizaçáo 'possessória', à qual é de todo indife-
( e unitária que emerge, e uma é a idéia essencial que aflora rente a idéia dc uma relação dc validade (rnesmo porclue
constântemente: o ordenamento assume como próprias falta o nrodeio errr relação ao qual operar- comparâçóes e
( t.
( mcdidas) e que é, ao contrário, don'rinada por un'r vigoroso
princípio dc efetividade.
(
zg Ttntamos delinear esse conjunto de escoihas no nosso curso sobre Civilizaçáo'possessória'neste e somente nestc
( Le sitLLazioni reali neLl'esperienza giuridica meàíeuale, Padova, i 96 8. A scntido: ciumenta guardiá do frescor inreciiato dos fatos,- a
-
clc rcnretemos o leitor para uma documentação adequada.
( cles confia rrrn papel primário e entregâ a sua face típica.
( 41
(
(
(
(
(
(
I
Seráo uma, dez, cem, inúmeras figuras que emergem do Para bem entender usamos uma desenvolta e banalizan, (
vivo da experiência, mais intuídas que pensadas, mal esbo- te terminologia declaradamente romanística e portanto in- (
çadas ao invés de desenhadas com cuidado, fatos normâti- sâtisfatória parâ câracterizâr uma cultura tão pouco roma-
vos repletos de conteúdos econômicos que dessa economi-
(
nística e tão pouco 'proprietária'. Para nós, que estamos
cidade prepotente retiram a própria normatividade. Uso, ainda marcados a fogo pela interpretâçáo e imobilização
(
exercício, gozo: situações que exprimem com vivacidade, jusromanística do mundo social, o uso de - uma tal terrni_ (
com a sua carnalidade, a familiaridade do homem com as -nologia tem a função de sublinhar que
as novas siruaçóes (
coisas, o seu mesclar-se e o seu viver com elas. E o ordena- factuais não se colocam de fora mas sim no interior da di-
mento leva essâ impressáo, de maneira talvez desfocada n-rensão do 'real', dimensão que continuamos â pensar
(
mas com uma aderência total, sem construções rigorosas e como subdividida em propriedade e direitos reais sobre (
definidas. coisas alheias. Mas (
O que conta, nessa paisagem jurídica ern que os fatos - digamo-lo mesnro
que o usâmos instrumentalmente
nô momento em
é linguagem incorreta (
predominâm, é obviamente o seu sempre mais intenso des- e, pior ainda, é incorreta â atitude- do subjacente pensa_
tacar-se, o seu agigantar-se justamente no nível do direito. mento que esquematiza e reduz um planeta diverso e clis_
(
Ontem relegados ao limbo da irrelevância, hoje não se con- tânte nas malhas estreitas e anti-históricas daquilo qrre nos (
tentâm em ter conquistado uma cidadania entre as t'ormae é culturalmente familiar. Como seria incorreto pensar I gd_ (
iaris respeitadas e observadas mas obtêm o ingresso no sa- were-uestítura. como ' direito real' enquanto ela, para além
crário jurídico das situaçóes reais, ou seja, no mais escondi- (
de projetos individuais, resolve-se como um fatÁ objetivo
do e ciumento dos territórios, aquele em que somente a (que é, ao mesmo tempo, aparência, uso, gozo, a*", .í. jo l (
mentalidade oferece a chave de acesso. Àpârênciâ, uso, radicado na coisa já que munido de efetivid;de e, conro ral, (
gozo, exercício, ontem pertencentes ao efêmero e ao quo- eficazmente tutelado pelo ordenamento. O,reai,aqui sá
tidiano, que somente em ciÍcunstâncias excepcionais ti-
(
divide em ordens lato sensz possessórias como expressóes
nham conseguido arranhar o monolito do ordenamento de uma civilização 'possessiva', onde
(
clássico todo cimentado e fortificado de validade, tornâm- repetimos pela úl_
tima vez -
possessório vale como economicamentc (
cialmentc-efetivo; está a carâcterizar a atençáo do ordena-
se nos séculos altomedievais, insensivelmente, do quarto e so_
(
século em diante, no Ocidente, primeiro nas zonas provin-
mento pelâ dimensão da efetividade o r.i.ro _ no seu (
ciais mais excêntricas e depois em todo lugar, a fonte e a "
interior
- tudo aquilo que a essa dimensão diz respeito.
de
substância de um número muito amplo e aberto de ordens (
jurídicas atípicas, todas arquitetonicamente pouco defini-
I0. O descobrimento de autênticas forças estruturâis e (
das, constituindo elas expressão imediata de forças estru-
o fazer delas um eixo cardinal da nova ordeà e ope."çao
turâis, mas todas marcadas por um intenso enraizâmento àe
iura in re, uma oficina de práticos, que se movem privados de inibi_
no rea[, todas, em suma bem entendido
todas -- bem entendido - admitidas a
-
dividir os despojos çóes e com clarividência no tecido vivà da experiência.
do velho dominium.
- Sem arquétipos culturais na mente, pobres de traàiçõ", ,r.,-

46 47
A testemunha loquaz cla continuidade2s é o dominiunt
teriores mas não pobres de sensibilidade, o juiz e o tabelião utile, inyençâo especular da jurisprudência do Renascimen-
da alta idade média modelam sobre o vi.,rá d" ,"r;;;il" to jurídico nos seus vícios e nas suas virtudes.
pl asti císsima figuras j urídi cas grossei ras r,
di.r,"ntà".", Olhemo-lo um pouco mais de perto, porque estâmos
mas, inchadas de fatos .o,ro " a"
e carregadas diante de um fruto histórico bastante significativo: a reali-
"ra.n Das
dade, historicamente muito vivazes. "feiiui_
cãisas se Iiberauu clade inculta e estorvante, constituída pelo fato complexo
um emaranhado de instâncias concretas e dava corpo a uma 'exercício-gozo'na sua efetividade e autonomiâ, é recober-
orden-r jurídica aderentíssima, não pensada, não ta pelos panos solenes e inadequados do domÍnio; conro
.irt"rnoti-
-' -"
zada, não esquematizada, mas aderêntíssim;.
seria um camponês vestido bufâmente com um traje de
Um rosto que não muda quando uma mais rica circula_ cerinrônia. Há de que sorrir para quem olhar a operação
ção de homens e de idéias e uma maior intensidáde da vida côm um sutil gosto estético e com iluminística suficiência,
conrunitária gera uma nova possibilidade de compreensão e làcherlich, risível, julga o instituto Anton Friedrich Thi-
e
utrlrzaçao e, conseqüen ternente, um reflorescirr_rento baut escrevendo sobre o domínio útil um ensaio famoso
de
modelos culturais e, juntamente, d" inrt.u-.,lto, inte._ justamente nâ passagem para o século dezenove3o. Quem
pretativos e inventivos romanos; quando, no centro olhar com olhos suficientemente historicizados percebe e
desse
patrimônio de ântigos acessórios, torna a exibir_se
o dorli- valoriza, ao contráriô, nesse monstrinho formal um feixe de
niunr, repropondo-se como supremo nrodelo cle Iegitima motivos históricos.
ção dc roda ordem jurídica reai e, trluez _ fun..,r]nroÀl Nenhuma dúvida de que o domínio útil leve inscrita na
trzaçao de toda a história jurídica ocidcntal _
mais sim- sua figura uma íntima contrâdiçáo: um substantivo e um
plesrnente, de toda ordem jurídica.
adjetivo mal combinados. O substantivo refere-se ao reino
As lbrças liberadas da pluri_secular oficina altomedie_ da soberania imperiosa do indivíduo, às capacidades expan-
.
vât, tornadas mentalidade circulante, adquiriram porém sivas da vontade, enquanto o adjetivo arrasta aquela capaci-
uma sua.incoercibilidade, e será o esquem i do domii.ium dade a uma esfera que náo se lhe adapta, a um nível nrais
a
suportá las em toda sua impetuosidade e a ser por elas
iiti_
mâmente modificado. O mundo jurídi.o pelo são
empirismo dos iaboratórios aJtomedievais,"uo.àdo long" j" ..tor_ 29 Náo se entenda mal este teroro: aqui se fala de continuidâde inter-
nar a.sepultar-se no subsolo estrutural do qual Ie havia nâmente a uma mesmâ experiência jurídica, internamente a um mesmo
ori_
ginado, é_entâo repensado pelos honúnes rrri d" universo cultural, o medieval, que tem nos dois momentos temporal-
nÀ"n *i- mente subseqüentes da alta e da baixa idade média someute dois parti-
ura, jurídica cidadãos, mestres, teóricos _ em termos
oe don nlum;- m.âs neqse revestimento do corpo social
culares arranjos de um mesmo universo histórico. Náo há portalto con-
está trâdição âlguma com a rcjeição do arriscado cânone pseudo,metódico
a veste que se dobra e se rasga para recobri_io
adequada_ da suposta continuidade entre universos históricos, entre experiências
mente; sinal de que a civilização construída na alta'idJe jurídicas diversas.
média não tem negações, mas continllâ unitariamente. 30 A. F. J. THIBAUT. Uber dominiun direct m und utíle. h Versu-
mesmo enriquecendo-se e complicando_se sob o perfil che über einzetne Theile àer Theorie d.es Rechrs, Aalen, 1970 (rist.
cul_
tural. anast.), P- ll, p. 78.

19
48
(
(
(
baixo de terrestridade quotidiânâ em que as coisas são usa- repensado'romanisticamente' em termos de àominium.
das e gozadas mai em que náo é correto falar de virtude, de Onde o dominiu;rn é forçado e traído para constrangê-lo a
(
soberania, de capacidade. Nenhuma dúvida, de fato, de receber aquilo que mais preme ao ordenamento salvar, isto (
que se o gozo pode estar no interior do conteúdo do domí- é, a obtenção das situaçóes efetivas de gozo e exercício a (t
nio [mesmo que conteúdo marginal), à noção de gozo seja partir clas esferas mais sensíveis do real.
com certeza estranhâ a idéia de domínio.
(t
E por isso que a noçáo de domínio útil tem uma sua
Cremos que o historiador deva levar em boa conta esse história e pré-história: formalmente nasce como responsá- ('
tecido heterogêneo composto por duas tramas desarmôni- vel invenção da ciência jurídica dos Glosadores, substan- ('
cas e incoerentes; é, de fato, como sinal de contradição que cialmente vive já nas intuiçóes da práxis altomedieval mes- (
o domínio útil revela toda a sua intensíssima historiiidaàe. mo que pensada e vivida em um universo cultural em que
E a intuiçáo altomedieval que continua em um momento ao àominium certâmente não dizia respeito o papel cle es- (
não mais privado de condicionamentos culturais e que, âo quema interpretativo prevalente da realidade. O inrportan- (
contrário, com eles deve, de um modo ou de outro, ajustar te â ser notado é que o citado deslocamento de atenção do (
as contas. As soluções da práxis romano-bárbara tinham ordenamento da titularidade ao exercício com o conse-
simplicidade e sobriedade porque a comunidade e os ope- qüente agigantamento social e jurídico de fatos econôrnicos (
radores não tinham necessidade de verificá-las senáo na antes inominados e não tutelados tornou-se, na escavação (
efetividade da experiência quotidiana. Em um clima de plurissecular, mentalidade, e que o jurista novo, assir:r qrre (
reencontro de refinadas fundações culturais, como é o do se apresenta como cientistâ com o século XII ao pros-
Renascimento jurídico, a verificação se complica, torna-se cênio da Europa ocidental, -sente a exigência de-salvaguar-
(
dúplice, deve ser feita não somente com a màntalidade cir- dar adequadamente aquela mentalidade fornecendo-lhe a (
culante na experiência mas também com os modelos cultu- única armadura cultural de comprovada robustez, orr seja, (
rais que a experiência em si desenterrou como seu momen- repensando-a em termos pseudo-romanísticos. A1iás, aclue-
to de validade. O direito romano e o seu documento mais
(
les fatos sáo para ele tão relevantes, têm diante dele unra
augusto e sacrâl, o Corpm justinianeo, constituem em carga táo normativa, que se elevam náo à nobilitação de (t
um mundo onde o poder político continua a ser vivido - não uma genérica realidade mas ao sumo apogeu do dornínio, (,
como Estado mas sim de modo incompleto, não totalizan- inserem-se no coraçáo da idéia proprietária provocando ob- (,
te, e continua por isso a ser incapaz de construir modelos viamente â rupturâ do antigo pertencer unitário e propon-
de validade a indispensável plataforma do uma renovada noção de pertencimento: se cio mundo (r
- mesmo que freqüentementedeseja
qual referir-se,
autoridade à
nada mais tornâ ao âuge uma leitura no prisma da propriedade, os (
que um prego fincado na parede com o único objetivo de fatos concernentes à utilitas podem e devem encarnâr urnâ (
ter um ponto fixo ao qual âmârrar um fio longuíssimo e propriedade.
substancialmente autônomo: o domínio útil é o fruto dessa Um ponto deve ser sublinhado mais uma vez para não (
já indispensável contaminação entrê o plano dá êfeiividacle entrar em um pântano de equívocos: a teoria do clornínio (
e o da validade, é o conjunto clas certezas altornedievais . útil (e, conseqiienteme nte, do dominio àiuiso) não é tm (
(
50 5l (
(
(
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I
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(
divertimento Iivresco ou o inócuo jogo alquímico que Se entre temporâl e eterno: é escândalo porque estrânha
( esgola no interior de um Iaboratóno, nem o seu produto é àquela culiura, dela intiman.rente diferente; é escândalo
( un"t flatus uocis ou uma decoração floral. E principalmente e somente pela sua diuersidadei â pôbrezâ de
luita-ente
( o ingresso prepotente de uma mentalidade profunda na ur_ Francisco é um espinho no organismo vivo da cultura e da
didura de uma tradiçáo jurídica até ch"gui , domináJa e espiritualidade medievais, plena como é de pressentimen-
(
distorcê-la. O_ domínro útil, ao extremo áo procedimerto tos, cheiâ sobretudo em ceÍtas suas correntes extrenlas
( cogloscitivo dos juristas, é realmente, antes ainda que ex_ -
de futuros desenvolvimentos da e spir itu aliclade cristá,
( pediente técnico, um esquema antropologico conr dois sig- -projetada, em sumâ, no futuro e não expressiva da koiné da
Ilrrcaoos essenclals. idade média latina. A concepção de que a corposidade du
. Em primeiro lugar, como toda teoria de propriedade
dividida, testemunha de um sistema de direitos r"ri..o.,._
donünium seja uma sirnples nranilestação exterior de algo
que é já completo no interior do sujeito, iá que o dontinitmt
truído partindo das coisas, não desviando jamais o olhar das nâ sua natuÍezâ mais genuína é i.nt aníntus, uma vontade,
coisas, conferindo um máximo de relevância às coisas: se o um âto interior, tudo isto é a intuição profunda da idade
sujeito, na sua unicidade, pede sob medida um dominium nova, enr cujos primeiros pâssos a reflexão franciscana se
unitário e inscindível (que é o que se cunha em toda cultura coloca relevantíssima, mas é realmente estranho à visáo
individualista), a coisa, na sua complexidade estrutural, na medieval das relações jurídicas homem-coisas que vênr ex-
s.ua e,tratificação de substantia e de ,{1íliras, in)póe pressivanrente à tôna na criaçáo do donínio útil3l.
diver.ificações proprietárias segundo as diversas dimensô_ L)m dominium mesclado de terrestridade, um gozo
es em que se articula. Portanto, falar de domínio direto e que, por suas forças internas (isto é, por autonomia e efeti-
de,clomínio ritil significa sobretudo u-, vidade) torna-se dontinium e que, enquanto tal, não é a
"bo.dage-
rndividualista de grande humildade em relação ".,ti_,
aiealidade ocasional, mesmo que feliz, experiência realizada na mesa
i
( cósmica, um certo método cognoscitivo, umà determinada do alquiniista jurídico, mas é bandeira, projeto e programa
antropologia. i
) de uma scíentia iuris perfeitamente inseridâ ell.l seu tem-
(
.Em segundo lugar, com aquele seu apelo
'comoostentado à po, perteitamente compenetrada na tarefâ de traduzir em
( ulilllas assinâ]a um dominium'entendido conteúdo e termos e esquemas jurídicos os vâlores da mentalidade cir-
( asslnaia a conseqüente incapacidade de conceber a proprie_ culante.
dade conro relaçio purr. A civilizaçâo medreval, da'primei_ O domínio útil é, ântes de tudo, â traduçáo en1 termos
(
râ conro da segunda idade média, toda e sempre inciinada a jurídicos de uma mentalidade. É a mentalidade do primado
( criar_pontes entre carne e espírito, a enarania valores para do efetivo, é a mentalidade'possessória'do alto medievo
( torná-los hunranamente sensíveis, é incapaz por própria
índolc de conceber'tanto uma pobreza - quanto
( -
un.ra propriedade interiorizada. A impiedosa"b.oiuta
e generosa po- 3l Procuramos sublinhar a grande contribuição cla especulaçáo fran-
( hreza de Francisco, tão desencarnáda, é escãndalo oai, ciscânâ para uma renovada antropologia propÍietária em Usus facti -
( urna cultura fundada na harmônica firsão enrre céu e rÉrra, La nozione di proprietà nell'ínaugurazione dell'età nuoua, i Qtadetni
íiorentini pc./ la storia det pensiero giuridico uoderno, I (1972).
(
( 52 53

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que domina âindâ como imperiosâ constituiçáo material do I l. Uur tal cliscurso se legitima no pressuposto de c1r:c
(l
(
mundo dos Glosadores e dos Comentaristas. Mais além, ao o donrÍnio útil seja escavado no território mais sensívcl do
fundo, um modelo agrário e náo urbano de dominium, em pertencimento e represente uma propriedade. Não fàrá (
que o princípio romanístico pelo qual se tem propriedade (l
somente na relaçáo entre um sujeito e uma res corporaLis
parece, de fato, especificar-se na relaçáo entre sujeito e
mal debruçarmo-nos um pouco sobre um ponto tão qLlaliÍl_
cant(. pâra liberar nosso caminho de ulleriores eolri\ ocos.
Referimo-nos, mas Fazemo-lo somcnte porcs_
(l
(
terra, res frugifera por excelênciâ e por excelência fonte de t rriprrlos, írugazmente a um possível eqtrívoco',"rrni_
toda utilitas. Aplicável também aos bens imóveis mais va- nológico. -e Recentemente, -,com um excesso de zelo pserrdo- (
riados, o domínio útil evoca todavia sobretudo uma paisa- rigorista, pretendeu-se de algrrns quc reservassern o l ern.to (
gem agrária abundante cle concessóes agrárias, com uma propriedadc unicamente à assjm charnada pr.rpriec{ade rr._,-
forte dialética entre o depositário da titularidade proprie- (
derna, negando-g, por exemplo, às várias for-as
tária e o exercente da empresa agrícola sobre o bem-terra. -"dicuai,
de dontiníumr.r. E u m_ pseudo-problema e trata_se de pscu- (
Dir-se-á: mas por que perturbar esse (para alguns obs- do-rigor: não há dúvida de que os dominla medievais nouco (
curo)32 nível das mentalidades e não deter-se principal- tenhanr a compartilhar com a propriedade moderna e clrre
mente nâ análise concreta e discreta de um jogo entre es-
(
pela sua qualificação o proprio termo,propriedade,
não cs_
trutura e formas jurídicas? É o resultado tétnico, é o ter teja imune de ambigüidades; nem há igualmente drivida (
de
resolvido em dominium a situação do concessionário-em- que nenhum àominium nem o dirãto nem o ttil _ re_ (
presário, que nos convence disso. A tensão proveniente das paesente a propriedade.- Os dominia constituem
estruturas pode deslocar a atençáo do ordenamento do
norénr (
sempre uma propriedade, sáo sempre uma respostâ à pro_
proprietário cadâstrâl ao concessionário, pode determinar cura daquele momento mais intánso do p".ien.i-ánlo (
o aumento dos poderes deste em relâçáo àquele. Que po- que, cõii, as suas já assinaladas descontinujdades, é porónr (
rém esta gama de poderes atribuídos configure, no âmbito o fio condutor queliga o domíníuta clássico, osàontíiin (
C,os
de um ordenamento que repropóe como modelo técnico Closadores, a propriedade dos pandectista s. Os do,,,ir'iià
supremo o dominium, um conteúdo proprietário, e consin- medievajs são o mesmo problema, e têm o mesmo cjenouri_ (
ta a emersão de tm àominium concorrente, esta é circuns- nedor comum problernátrco dr propriedrde de Winrls_ (
tância que se motiva no interior do universo do direito e cheid;.aqui está o continuun que nos permite usar instru_ (
das certezas nele circulantes, mesmo que imediatamente mentalmente um termo .o-r-. 0 descontínuo cstá, ao
depois a sua emersáo se reverta ao exterior sobre as estru- contrário, no conteúdo das soluçócs que todâ civilize.io
(
turas. A gama de poderes, em suma/ torna-se dominium modela sob medida. Será, de qr"iqu., n,odo, .urr"rir.irllÀ (
somente se se insere na mentalidade jurÍdica circulante. (
.l-. (
:r^^1:la ll's recentíssimâs pesquisas de um jovern civilisLa, O
5,(-OZZÂ FAVA: La i o n e p ro p rip ar ia cli i oben.
t Josepl, porhicr (
32 Cf .J. LEGOFF. La meita\ità: una storia ambigua.In Fare storia.
.so.luz
\1980),, It probleno della p.roprietà nell,opera di Jean Domri
A cura di J. Le Goff e P. Nora. Torino, 1974. beni e le lottle giuridiche dí appafiencnza (l9g?).
119g0,;; / (
(
54
55
(
(
(
(
(
(
(
( lalal clc propri<'clacle tambénr para o mLrndo clo Renasci-
nrcnto nredicvai, com a única condição de que nãr.) se quei- girnizaram em Canerino para discutir o conteúdo nrínirro
ra t{lnrar própria a todo c[sto Lrma só rcsposta histórica cla propricdaclera; após a indiscutívcl recuperação da pro-
( r nroclt:rn:r e se pretenda projctá-1r indiscriminadarncn pri.-dade do paraíso clas noçóes éticas, após a renovâda
( te no srio das or.rtras cxperiências l.ristírricas. i-, trancliiila- :ltcÍrçaio âos L'statutos divelsificados dos bens, apiis a intcn
(
nrcntc, continllarenlos il vcr os do»tinia na histírria c1a pro- sa, bâstânte intensa, trrtela a nrrritos exercícios sollre as coi
priccirtcle e â co]ller enr cada donirriLnt urn conteúclo rníni- sas conr prejuízo da titrrlariclade cla coisa (pense-se na ri-
( irio Lru niáxinro clc prrtprieclacle. gcntc rlisciplina do ar.rendarrent,.l rura)), é lícito c aliás ob-
( Clontt-r'rclo nrínirno dl proprir:dade: eis,nos diantc dc rigâtório falar de clelirnitação clc conlins porque a borrrsca
(
Ltrn problcnra nrais consistente de unr ponto cle vistr histó podc tcr crtirpaclo e conlrindido as velhas tcrn.rinaçÕes trâ-
r-ico'jLn ídir:o e clrre nns introcluz ao nó rlo clorrír.rio útil conro clicionais. Mrrito cliverslntcntc na civilização clo Ilcrls.i
(
Ir-sPr11'i3jg. (,lnr problcnra grâ\rc L'rirgcnlc t:nr todos aclrre nrcnto jurídico medievâI, cluando a atitude cla or.lenr jllrr
( It's or clcnurrentos 11uc, partindo do estatLlto da coisa, co clica tinha não poucas assorâncias e coincidôncias cor.rr a
( lhcnr l proprictl:rr1e conro urna cntidade fr-acionável, c qrrc at Lr al.

( lror isso aclmitem a lcgitintidadc dc ntais clc r.lln proprictir- A certeza medieval cle clue o r/orninianr náo cai do sujc i-
rio insistcntc sohrc a nresma coisa; problenta porérn inexis- to sobrc a coisa mas nasce da coisa, e a suâ conseq(iente
( terltc, corro é óbvio, nas culturas jtrríclicas rigorosanrcnte d cssacra I ização; a hipótese de mais propriedacles ltraciona-

( inciiviclLrllistas, por exempl,: na ron'rano-clássica e na brrr- das sobrc â lnesrra coisa, cadâ unta tendo como objcto rrma
(
guesa uroder-na, porclue aqui a propriedade construída so, detcnlinada fração de poderes sobre a coisa, não pode dci-
bl'c o sLrjeito é tão caractcrizada pelas suas fundações ético- . xar de tornar mais instável e mais vaga a fronteire entÍe
( políticxs a ponto de não tcr nada a compaltilhar não cligo ' proprieclade e direito rcal limitaclo, c é aliás até mesmo
( t:onr as situaçócs dc simples dL'tenção mas sirr cont toclas as inraginávcl urra osmose entre urna e outro; e há quenr, conr
( oirtr.ts situaçÕes reais. Unr lbisnto insrrpcrár,el separa a autoritlade, sustentou quc todo ius in re encarna ulrr ,/o,,li-
tlualidadt- da prirneira (sempre eticamentc anintada) da de n'ir.rnr aos olhos do jurista teórico e prático do direito
( tocias as outras/ qllc sc colocânr semprc no inais ntoclesto comu ntl5.
-
( ní,,t'l rlos irrstrunlcntos econôntico-jurídicos do vivcr clLtoti- Se rirna tal hipótese dcve ser rejeitada (e clisso vcremos
( diano. Nestas culturas a frontcira entre uma e as outras é os motivos em um momento), det,e-se porém admitir qllc
rrnr sinal claro, e incorrÍindíveis aprl'scntam-se os dois ter- o problemâ é aqui n.rais árdno dotninia e iura in re
( r-itórios. A interrogação sobre onde acabc o tcrreno de unr constituindo ^ào
corrro é no rnoderno direito civil uma
( diri:ltLr real linritaclo e ondc comece o cla propricdade é até - -
( nresnro lnsensato, logicanrerrtc inr propon ír,el.
N{rritrt cliverslrnente lioje, ncstes anos que estamos :l l{cfcrirno nos a: Crisi tlello slato sociale e conÍenuto ntítímo della
( proprietà Atti del conuegno Catterino 27-28 naggio 1982, N.rpoli,
atllâilnente vivendo, e teln historicârncnte um senticlo pro- -
( I q83
fLrndo o encolrtLo 11ue, ainda ontem, os r.rossos civilistas or.-
(
:s Assim no ensaio de Helmrrt COING, Z r F,i{cnlumslehre dcs llar,
tolrrs. In ZSS RÀ, LXX []953).
( :6
(
(
(
(
(
(
(
antítese lógica, mas exprimindo uns e outros, de algum vidão predial são domínios mas somente do próprio izrs, não (
modo, rrma participaçáo na esfera geral da propriedade, conseguindo incidir sobre a crosta dura e resistente da coi- (
aparecern sustentados por uma tensão que os âcomuna. sa; o seu àominium rei incorporalis , situação que só generi-
camente e impropriamente pode ser qualificada como do-
(
Isto é indubitavelmente verdade e é aliás um traço dis-
tintivo <la análise medieval dos direitos reais. Mas deve ser minium, porque se subtrai ao segredo essencial de toda (
feita uma distinção essencial: nem todo ius in re é elevado propriedade autênticâ, aquilo que acima chamávamos exa- (
a àominium, mas sim somente aqueles que incidem direta- tamente, com umâ conotaçáo porern mais sociológica que
(
tnente ou sobre a globalidade da coisa (como a proprieda-
de), ou sobre dimensóes particulares da coisa (como a en-
jurídica, a abordagem frontal do sujeito com a realidade
cósmica, aquele segredo que consente a um operador não-
qualificado de agigantar-se, em certas circunstâncias, à pro-
(l
(l
litàuse, a superfície, as concessóes fundiárias a longo prazo,
a própria locação a longo prazoJ; poÍ outro lado é ensina-
mênto recebido dos doutores do clireito comum náo elevar
porção de rm dominus; dominus utilis, talvez, mas ainda
assim, de algum modo dominus rei, rei corporalis3'.
(l
(
a àominíum uma servidáo predial ou uma servidáo pessoal, Acima dessa consciência antropológica e sociológica os
já que estas serão confináveis no rol dos iura in re aLiena. juristas tecem as suas urdiduras técnicâs e constroem tânt (
0 conteúdo mínimo para que se tenha dominium ê a bém tecnicamente a dimensão proprietária sem desrrrentir (
existência de um poder, não importa se pequeno ou grân- as do utilista. Ele terá os atributos que ao donrinzrs eram
reconhecidos por uma tradiçáo ântiga e augusta: uma rel (
de, mas autônomo e imediato sobre a res corporalis. O do'
ninium àeve de fato empenhar e investir frontalmente o uinàicatio como instrumento de tutela processual (dife (
sujeito e um fragmento cle cosmos, porque somente com rentemente do usufrutuário munido somente de uma acÍio (
isso pode-se atuar um mecanismo autenticamente apro- confessoria), a propriedade na invenção do tesouro, a aqui-
priativo: apropria-se da coisa somente se existe essa abor- sição dos frutos por separação, a possibilidade de constitu ir
(
dagcrn frontal. Em uma tal civilizlção de situaçôesjurídicas servidão e outros direitos reais sobre a coisa, e assim por (
encarnadas, propriedade é somente o diálogo sem interme- diante. E falando dele far-se-á sempre referência ao princí- (
diários entre os dois universos supremos, sujeito e objeto, pio, romano e romanístico, excogitado para a propriedade:
'duorum vel plurium in solidum dominium esse non potcst', (
caracterizaclos na sua corporeidade que lhes consente o
contato conl a nâturezâ primordial; enfiteuse, superfície, testemunhando a convicção de mover-se no interior da di- (
contrâtos agrários consuetudinários, concessão precária, lo- mensão proprietária. PôÍtanto, não um lustro na lapeia do (
cação a longo prazo serão dominia porque situações que melhor terno, mas uma son-ra de poderes autenticamente
proprietários.
(
empenham a res. Doninia relativos à utilitas rei, dominia
utilía mas dominia. Diversâmente para cada tipo cle servi- (
dáo, que nunca compromele a res em sua essência consti- (
tutiva, que se projeta do exterior sobre a coisa qualifican-
36 Esse emaranhado de problemas será abordado e desenvolvido em
um volume que sairá proximamente pela editorâ GiufÍrê de Milão, (
do-se somente como izs in re aliena estrânha à idéia de
pertencimento do bem. Usufrutuário e titular de uma ser-
com o título: Propietà e àíriní reali fra i segtí deLl'età nuoua. lN.'f .: (
este livro nunca foi publicado].
(
5-q
(
58
(

:
(
(
(
( mais de validade. Na linha de um tal programa não expres-
Un.ra última consideraçáo necessária antes de concluir:
( so, umâ oficina européia de juristas, trabalhando ininter-
quem conhece a fundo as obras dos grandes doutores e pe-
ruptamente do século doze ao quinze, cunha e organiza
( ritos da tarda idade média poderia insinuar, para desmentir
uma idéia e um instituto, a propriedade dividida, que re-
( a firrneza das linhas precedentes, que os testemunhos sa-
presentâ a realização de uma coerência dúplice: âo Patri-
pienciais sobre o domínio útil são muitos, variados e tarn-
( mônio que na própria subconsciência esses artífices refina-
bénr contraditórios. Para os intérpretes o domínio ritil é
dos levam consigo como herança dos humildes ârtífices da
( donriniunt e a ele se iigam as conseqüências típicâs e naru-
idade média; ao patrimônio ideal que ciÍcula no ar inscrito
( rais do donúniun r; ao mesÍno tempo, exprimem-se também
no costume e Íeclamado pelas estruturas.
perpJexidades e se chega às vezes a negâr â um certo clomí-
( Para o historiador a aquisição fundamental é que o do-
nio útil (não aquele dizia,se entáo que "contrâriâtur mínio útil não é um divertimento dos juristas, produto de
( directo", mas aquele-que "subordinatur- directo"J o caráter laboratório merecedor somente de análises escolásticas; é
( de uerum dominiun. Em unt caleidoscópio tão variado cada antes a cúspide saliente de um grande proieto cientílico
rrm pocle puxar um bom número de fontes doutrinais para que pretende desenhar figuras jurídicas em perfeita coe-
(
o seu lado, mâs uma coisa historiograficamente se impóe: rência com a mentalidade circulante. Se o domínio útil não
( deixar as escolhas simples ou a simples opinião, para fazer se constituísse disso, teria morrido no dia seguinte a sue
( aqui)o clue todo historiador do direito deveria, isto é, inse- 1 fabricação, assim como nascem e moÍrem tantos artifícios
rir aquelas escolhas e aquelas opinióes no âmbito da mais da alquimia jurídica. Sobreviveu porém, e bem clém dos
ampla arquitetura sistemática que o coro doutrinal (o direi termos dâ experiência medieval, tornando-se hóspede in-
to conrun-r é realidade coral) pretende edificar, colher o cômodo de textos legislativos, doutrinais e judiciais por
( sentido da arquitetura, dar-se conta do projeto jurí<lico do boa parte da primeira idade moderna, quase até ontem;
( qual essa interpretatio é portadora- Ou se faz isso, ou então somente ontem, no encontro recentíssimo dedicado aos
toda pesquisa fica historiograficamente comprometida por problemas mais espinhosos do odierno pertencimento, um
( civilista de extrâordinária sensibilidade como Pietro Res-
defeito de diagnóstico jurídico.
( A rellexão sobre o domínio útil está, de fato, necessa- cigno pôde insistir na relevância da noção de dominio di-
( riame rlte, sob o signo da contrâdição porque o domínio útil uiso3l .

é, ele mesmo, sinal de contradição, um dos tantos dcsses Como esquema antropológico tarda a morrer e, para
( além da persistência e da mudança dos regimes positivos,
sapientes que, mesmo sensíveis à efetividade das instâncias
( do próprio tempo, reconheciam nas construçóes do direito pode mudar somente quando as certezâs antropológicas
( româno o próprio momento de validade. Crucificado entre que o provocaram e sustentaram se dispuserem a mudar.
a l.^tr a r'ígida do texto e; novidade transbordante dos fatos,
Mas o historiador e o historiador do direito em particu-
( -
um intérprete individual pode se tornar presa fácil de dúvi-
( das e reconsideraçóes. O importante é a tensão coral domi-
( nada pela exigência de conrpreensão dos fatos novos, deter- 37 P. RES CI G NO . Introduzione a Crísí àello stato sociaLe e contenuto

( minada a sacrificar em non.re da efetividade os nexos for- mifliuo della proprietà. Op. cit., pp. XII-XIII.

( 6l
( 60

(
(
(
(
(
Iar
(
sabe bem que tais certezas, radicadas nos ossos, ani-
-
nhadas nos recessos mais escondidos da consciência social,
Náo é tarefa nossa repercorrer nesta sede a história cla
(
propriedade moderna; após ter tentado extrair o segredo
têm uma sua im permeabilidade e resistência que vence so- (
do pertencimento medieval, estaremos agora contentes de
bre as mutações sociais e políticas mesmo violentas, sobre
os abalos da realidade econômica, sobre as crises ideoló. tentar responder a uma pergunta que nos pusemos acima- (
gicas. onde está o 'moderno' da propriedade? E quando podere- (
mos colher a inauguração de uma propriedade 'moderna'?
(
12. Se o domínio útil é a ponta saliente de um projeto A operaçáo 'propriedade moderna', que acabamos de
jurídico, se esse projeto tem solidez e clarividência porque deixar para trás (mesmo que logo depois tenhamos come- (
se funda na n.rentalidade fortemente sedimentada, e por çado a rediscuti-la do começo ao fim), tem uma nâturai (
isso profunda, de uma comunidade histórica, ter-se-á umâ
sincronia com a mais ampla renovaçáo antropológica que dá
vida a uma civilizaçâo 'moderna'; sincronia óbvia depois das
(
página realmente nova na história da propriedade somente
quando uma nova mentalidade juríclica se tiver consoli- premissas nas quais temos repetidamente insistido. E te m (
seu começo nâquele século táo repleto de antecipações que (
dado.
é, para o historiador e para o jurista, o século XIV.
Urna página é girada em um momento, mas é o último (
ato de um longo e lento processo de erosão, às vezes ciaro, Em seu seio crises das estruturas e despertar antropoló-
gico aparecem em misteriosa sintonia e se desposam alter- (
às vezes oculto, porque o tempo das mentalidades é de lon-
ga duração, uma dimensáo temporal em que dias, meses e
nadamente em umâ singular plenitude do tempo histórico. (
anos são unidades irrelevantes e em que irrelevantes são
Na desilusáo, que já serpenteia, em direção às coisas (
aquelas coisas que traíram o homem não lhe garantindo -
também coroâçóes e deposições, declaraçóes de guerra e (
mais a sobrevivência (e aí a história agrâría é imprescin-
tratados de paz, batalhas vencidas ou perdidâs; em que o -
momento é mais marcado oor viscosidades e resis(ências
dível reconhecê-lo oferece-nos dàdos iluminantes] (
- de uma ordem que sobre as coisas
rompe-se a estabilidade - (
do que por velocidades rpi"r.rdrr. A nova antropologia
havia fundado o próprio edifício. O sujeito, fortalecido nas
substitui com fadiga a precedente já profundamente entra- (
suas internas capacidades por séculos de altíssimo floresci-
nhada na consciência sociâI, e, dessa descida às consciên-
cias individuais, tornada cultura, atitude de pensamento,
mento sapiencial, tem um estímulo dúplice e duplamente (
intenso, do interior e do exterior, a procurar fundaçóes no- (
sentimento coletivo, costume: todos materiais difíceis de
vas e sobretudo a procuráJas dentro de si, ajustando as
arranhar. (
contas exclusivamente com ele mesmo.
É u- p.ocesso de renovaçáo que levâ cinco séculos, do (
O segredo do novo está todo aqui. Tanto quanto o orde-
XIV ao XIX, e que somente em seu êxito final obtén: a nâmento medieval unitariâmente, no primeiro e no se- (
gundo medievo, na -oficina de empíricos que não havia so-
inversão de um sentido, a reviravolta da mentalidade: so-
nlente na metade do século XIX o fruto, já maduro, desta-
frido desmentidos e aliás tinha sido valorizàda pela reflexão
(
ca-se do ramo, mas â progressiva mâturação teve uma dura-
dos doutores tinha tentâdo construir um siitema objeti- (
ção plurissecular. -
vo de propriedades, construíndo-as a partir das coisas é so- (
(
62
63 (
(
(
(
(
(
( o qual se debruçam e mpenhadíssimos, em vários te iPos,
bre as coisas, reprodutor fiel cla trama complexa clas coisas,
( assinr a orclem nâscente da idade nova sc volta em direção t"ólogu. das correntes neotéricâs pré-l-rumanistas e hun'ra-
( oposta, to.la tes:r a desmantelar as figrrras jurídicas do ri:al nistas, filósofos e poiitólogos do liberalisnro ciássico; a sc-
em nnrâ desesperada busca de autonornia. Às velhas pro- gunda, se tcm algumas antccipaçóes (o que verenlos enl trnl
( iro,rento) nigu-ot proposíçóes teor.áticâs já no século
pricdldes estavarn no rcal, escritas nele e nele lidas e trans-
( critas corrr hunrildadc; o novo encontrará no real somcnte
"-
clezesseis, começará a Í1uir expedita e contínua bem nlajs
( rrrna rrranifcstação externa, urn câmpo de ação eficaz pelo tarde, sobretudó.o-, grande reflexão pandectística c1o
( .iLre potencialmente já existe no intcrior do sujeito e que século clez.oito, qr:ando, calcado no modelo antropológictl
prclc sorrrcntc para exprirnir-se e concretizar-se. A proprie- já há ternpo rlefinido, desenhar-se-á unr completo e rigoro-
( duclt' tor na-se um càpÍtulo da história da transÍbrnração hu- so modelo jurídico, e a novâ propriedade, de prestigioso
( rnanística gcr al, ce rtanrente náo o último, aliás urn dos mais desenho consignaclo no álburn dos juristas, assumirá tan-
( rclcvantcs, um dos pontos de compromisso da nova espe- bém a srrbstância de uma ordern organizadora da vicla quo-
cLrlação. E não surpreende que, enqr:anto a mentaiidade tidr an a.
(
jrirídica continua a desenhar e aplicar âs figurâs tradicionais
( da velha ordem que persiste e ainda por rnuito tempo per- 13. Recentemente, muito recentementc, aiguns lovens
( sistir'Ír, as primeir as intuiçóes do novo não sejarrr legíveis nas civilistas italianos interrogaram-se sobre a iinha divisória
páginas misoneístas dos jurisconsu)tos, nras nas pré-figura- essencial entre pertencimento medieval e pertencimcnto
(
ções cla nova ordem das qlrais cstão replctas as:'eflexóes moderno, centrando â atenção na exclr-r sividade, no ser cste
( clos teólogos e dos filósofos. A clcs ó confiada:r erosáo clas últiino fundamentalmente urn direito exclusivo, ius celeros
( vclhes lertezls antropológicas c a criação de novas, e serão excludendi3s . Mais atrás, tradicionalmentc, era sobre o ab-
( elcs a clelinear aquela renovada antropologia c1o pertenci solutisrno, isto é, sobre a variedade c intensiclade cios pode-
nrento qrre terá a fi.rnção de insrrbstitrrívc1 suportc pa|a a res conferirlos ao proprietário, que se dirigia o olhar.
( frrtrr rl m enta liclade ju rídica. Enr nossa opinião estâinos, tanto em umâ como na ou-
( A história da propriedade jurídicâ nroderna tem um sell tra hipótcse, diante de duas trilhas precárias de pesquisa: a
( aLLrso sut)terÍâneo e um manifesto, or1/ se sc prcfcrir, unra propriedade moderna r.rão pocle c(lnsistir enr ser mais abso-
pró lristória e urra prolo-história: l priricira consiste err lutisnro ou mais exclusividacle. Estaríamos, de fato, ainda
( cm um teÍreno merâmentc quântitativo, a partir do rno-
unra capilar anáiise de não-juristas toda voltada a definir
( rrnr rcnovado rrroclelo antropológico c politológico, aclueie mento em que propriedade quer dizer sempre e em todo
( tluc hojc, conr lrasc fcliz e l:em âceita, costumâ-se chanar, contexto um nrínimo cle absoir:tisrno c de exciusividade,
nio incolretamente, de individualismo possessivnss, sobrc sob pena de não ser propriedade. O domínio útil captado
(
(
:ls I)o título, fcliz t--tarnbóm accrtado, dc um trabalho de Cl. B. 39 Assim em Cesare SALVI no seu belo volume sobre Le immissioní
( índustriali (1979) e em Oberdan Tommaso SCOZZAFAYAemI beni
l\lAClPIIIRSON, The Political Theory of Possessiue Int)iuiàua[istn
( Ilohltc.; to Lctcl* (\967). e Le forme gíuridiche di appartenenza (1982).

(
( b1

I
(
(
(,
no sentido medieval consiste ele também em umâ certâ missivo instrumentos nrais congeniais e uma inteira rea- (,
gâma de poderes e em uma certa dose de exclusividade; -
lidade jurídica pensada e resolvida por um observatório a (
nem poderá encontrâr-se nesse plano o traço de separação ele não estranho, aliás a ele interior. A propriedade, que (,
entre o utilistâ e o incrivelmente diverso, qualitativamente renegâ as soluçóes medievais do pertencimento e que po-
diverso, proprietário moderno. Esse traço se existe demos convencionalmente qua[ificar como moderna, é de- (:
náo poderá - -
deixar de aderir a sua natureza, concernir a sua senhada a partir do observatório privilegiado de um sujeito (t
intrínseca constituição. E de fato é a urdidura constitutivâ presunçoso e dominador, é emanação das suas potenciali-
do direito que marca a colocação em dois diferentes uni- dades, é instrumento da sua soberania sobre a criação: umâ
versos culturais. marca rigorosamente subjetivâ a distingue, e o mundo dos
A propriedade_ medieval é uma entidade complexa- c íenômenos, na sua ob.letividâde, é somente o terreno sobr e
composta, tanto que parece até mesmo indevido o uso da- o qual a soberania se exercita; não uma realidade condicio-
quele singular: tântos poderes autônomos e irnediatos So- nânte com as suas pretensões estruturais, mas passivarnen-
bre a coisa,diversos em qualidade segundo as dimensões ã.a te conclicionada.
cóisa que os provocou e legitimou, cada um dos quais en- A quem nos perguntasse qual seu traço carâcteÍístico,
cârnâ um conteúdo proprietário, um domínio (o útil e o não invocaríamos nem a idéia de potestas plena nem a de ius
direto), e ôujo.feixe compreensivo reunido por acaso em excludendi; ao contrário, proclamaríamos alto e forte que,
um só sujeito pode fazer dele o titular da propriedade so- enquânto o medieval da propriedade consistia na organiza-
bre a coisa. Fique bem clâro que essa propriedade não é çáo da sua complexidade e na valorização da sua natureza
porém uma realidade monolítica, a sua unidade é ocasional composta, já o moderno da propriedade está todo no des-
e precária, e cada fraçáo leva em si a tensão â tornar-se cobrimento da sua simplicidade. A estrada que leva a uina
autônoma e â força para realizar o desmembramento; nem propriedade âutenticâmente moderna corre sustentada e
sáo necessários somente âtos de disposição para provocá- orientada pela consciência cada vez mais viva de que ela é
lo, mas freqüentemente mesmo simples atos de adminis- um corpo simples, unilinear, a estrutura mais simples pos-
tração clo proprietário (por exemplo, em certas condiçócs, sível; a meta é uma simplicidade absoluta.
âté um contrâto agrário) podem leva.r à divisáo em muitas
A simplicidade não é um dado exterior, não é quantida-
fraçóes da unidade composta- Essa relativa subjetividade,
de mas qualidade essencial. Quando, no tardo século XVI,
essa unidade táo frágil, têm motivaçóes precisas, e nós as
o jurisconsulto batavo-alemão Giphanius, em um ambiente
conhecemos: vêm à tona na vontade do ordenamento de
denso de influências humanísticas, afirma que o dominiutn
construir o pertencimento partindo da coisa e de condicio-
redescoberto na sua unidade é simplexao; quando, en.r
ná-lo às exigências desta. - -
Começará a erosão de um tal edifício técnico quando
começar lentamente a faltar-lhe a visão antropológica que .to De Hubrecht van GIFFEN (1534-1604), 'der deustsche Cujas',
lhe serve de fundamento e de legitimação primeira, quando veja-se In quatuor líbros Institutíonum iuris ciuíLis lustiflianí principis
o sujeito reclamar para si e o ordenamento lhe será per-
- conmelltaríus . .. t Argentorati, 1629, in lib. ll, | - de reruu diuisione §.

66 6,i
(
(
(
( pleno
-século
XIX, o pandectista Bõcking se compraz em lificado, mas psicologicamente caracterizado pela vontade,
( identificar o Eigenthum como ,,das einfichste unmittel- wollende Person.
barstc Verhâltniss der wollenden person,,ar, afirmam de tal
( Que sentido tem essa referência à psique do agente,
rr.rodo explicitamente o seu pertencimento â um mesmo esse ingresso impudico do jurista no ânimo do proprietário?
( henrisfério histórico e â uma mesma ininterrupta linha re- O sentido de informar-nos com sinceridade que estamos
( flexiva. Uma iinha reflexiva que se desenvolvÉ unitária clo em um hemisfério oposto ao que produziu o domínio útil e
( século XV_I ao XIX, mas que conclama a suâ ruptura em que as suas soluções não podem deixar de ser antitéticas
relação às fontes jurídicas medievais. àquelas que encaÍnam no domínio útil: a propriedade, de
( A rnarcada idéia da simplicidade não é de fato inócua dimensão das coisas tornou-se dimensão do agente; ao in-
( mas tent um supremo reievo teórico: separa o pertenci_ vés de identificar-se grosseiramente no bem-objeto, procu-
( rnento do condicionamento da complexiàade das coisas, râ no interior do sujeito a sua identificaçáo primeira; por
faz dela o espelho não rnais da compiicada realidade feno_ isso tornou-se "der materiell-befugte Wille des subjektiven
(
mênica rnas sim da unicidade do sujeito, desvincula-a da lndividuums in betreff des S achindividuums "a2,
( Não é esta a sede para repercorrer âtravés de que eta-
sua projeçáo objetiva para ligá-la indissoluvelmente a ele. A
pas teologia voluntarista tardo-medieval, antes; da
( simpiicidade testemunha a escolha de tirar o dominium das - dapolítica
filosofia jusnaturalistâ, depois tenha-se conse-
( variações do contingente para tornáJo absoluto no âmbito - a intuição mais
do sujeito, inserindo-o o mais possível no interior dele. guido esse vistoso resultado. Certo é que
( profunda da idade nova consiste na interiorizaçáo do domi-
Vem em mente o capítulo imprescindível dos velhos
( tratados escolásticos de teologia dogmática que reuniant a nium, e a noção mais revolucionária está na velha mas reno-
( sua. análise da Divindade na ponrualização ,dê simplicitate
vadâ e tornada prepotente idéiâ do dominium szi. Este
lrel , em que se conseguia, graças à qualidade significante princípio, que aparentemente mostra-se como o resmungar
(
dc, sínryLicitas, fazer de Deus uma pura essência abissal_
de uma rançosa fórmula escolástica, torna-se, pela carga
( exasperada da qual é recheado e pela centralidade que vem
mente separada dos comprometimentos da existência. É
( a assumir, a pedra angular da cultura filosófico-político-ju-
um processo semelhante de absolutizaÇão e de purificacão
ao qual é submetida a propriedade, e tem razão Éocking àm
rídica da idade moderna, um topos que corre intacto, mal-
(
centrar o discurso no sujeito, e náo em um sujeito não"qua_ grado os muitos acidente de percurso, desde os teólogos
( franciscanos a Locke, a Mercier de la Riviêre. O seu signifi-
( cado é preciso: um indivíduo que se descobre essencial-
(
mente proprietário, que descobre a sua vocação proprietá-
Singrloruz (INST. 2, I , I l). Um outro texto significativo é, ifl EveÍ- ria no fundo de seus mecanismos mais âutenticâmente nâ-
( hard van BRONCHORST, Centuriae àuae miscellanearum iurk con_
trouersiarum sioe Enantiosan§ln et conciLiationes earundem. Hanoviae,
( assertio)OO(VlII (p. 105): "unum tantum et simplex est dominium"_ 42 B. W. LEIST.Ileber die Natur des Eigenthums. Jena, 1859 (Cizi-
( aI E. BOCKING . Pand.ekten des rômbchen pri)atechts, ll, l_eípzig, listische Stuàien auf dem Cebíete dogmatischer Analyse, H. 3), p. 56 e
1855, p. 6. p.59.
(
(
68
(
(
(
turais, que interpieta como divisóes proprietárias do si ges- _ Noçáo simples, portanto, a propriedade, como é sim-
tos e comportamentos instintivos de índole primordial. ples uma virtude, uma vontade, umá intenção, um ato inte-
O dominium sui como regra do universo interno do mi- rior. O procedimento liberâtório colocado em ato oela crrl-
crocosmo significa que ele é dominus por designação de tura moderna desagrega-a das coisas para agregá.la ao inrrl-
Deus e da natureza, que o dominium náo precisa das enti- subjetivo; e uma segunda aquisição, ao lado da sirrrplicidr_
dades externas senáo para manifestar-se sensivelmente de, junta-se a ela e a ela é tonseqüenre. Sinrplicidadc qucr
mas que é já in interíore homine uma realidade ontológica dizer também purificação extrema da relação, que, direr
que conseguiu se livrar do empecilho dos conteúdos rnais
completa, que toda manifestação náo poderá deixar de ser
variados para fazer dela aquilo (ue, co. r tcrrninrrlogir dos
coerente com essâ primeira propriedade naturalíssima e
teólogos voluntaristas, poder-se-ia de[ini r como úna-1o I pn -
congenialíssima que cada um leva no seio. O dominium tor-
tia. A propriedadc já é, ncsta versão tão exasperadanrcntc
na-se indiscutível e faz do sujeito um personagem fortale-
subjetivista, uma capacidade, clpacidade cle envoluer e do-
cido no interior de uma carga agressiva que o projeta domi- minar todo conteúdo, rejeitando portânto todo conteúdo
nadoramente sobre o mundo. O clominium, todo domi' como contribuição à sua qüididade. O conteúclo já é so-
rzia»r, mesmo o d.ominíum rerum, |ustamente por esse seu mcnte Lrnr acidente, que nuncâ está em üondicôes de r..pel -
nascer nos recessos do ânimo, por esse seu identificar-se cutir sobre a subsrància da relnç56. Ao lado a ârrá( -' d.l
com o mim mais escondido, Iegitima-se e se colore de car'á- simplicidade, eis o segundo tra(o tipificador- da propriecla-
ter absolrrto. de nova: a abstração.
Na confusão inevitável mâs lucidamente consciente, Uma relação pura, nào aviltada pelos fatos, mcsmo oue
-
deliberada, aliás deliberadamente acentuada entre o normalnrentc disponível âJs farôs, em virrude da.rrg,r de
'meu' e o 'mim' a propriedade tendia elevar-se- de plano: extrovcrsáo que lhe e própria, sern relerência ao coltelido,
como dimensão do sujeito náo podia náo conotar-se de eti- perteltam("nte 661'genial àquelc indivíduo absrrr(u, rcm
cidade e das noçóes éticâs âdquiria o caráter absoluto. No cârne e osso, que vem paralelamente se deÍ,inindo corno
mesmo rnomento em que se cumpria esse processo de apo- momento determinante da interpretação burguesu do
teose, maturâva-se o destaque definitivo de todos os outros rnundo socirl. E se dclincia corno idrir r,ipre,na in, d,,nti.
direitos reais: estruturas organizadoras da realiclade econô- niun sine zlsa, versáo invertida do veiho domínio útil, enr
n-rica e repletas de conteúdos econômicos, estes; dimen- que rm dominiurz acolhido corno vontade, como anin.Lus,
sões e quase virtudes do sujeito, e portanto que não devem pode tranqtiilamente sepârar-se dos Íàtos da vida quoticlia,
ser poluídas por conteúdos econômicos, aquela. Duas na e ser imune a eles.
radicaçóes em mundos fundamentalmente diferenciados: O projeto jurídico revela finalmente a sua urdidura sa-
dois institutos com funçóes diametralmente divergentes: piente e refinada: no plano do dircito r'râ consignrcl,, ro
novo nomo oeconomtcus
está se tornando cada vez mais distante o tempo em que
to - personagcm/ rcpctirnus, abst rt_
um instrumento ágil e fungível, Iegitimado nos valo_
àominium e ius in re eram associados conforme uma mes-
res-supremos e inatacáveis a pârtir do exterior, ideologica
ma qualidade, e a sua relação se resolvia na da fração com a
mente não aproximável dils pl-ccedcntes soluçoes mctlie.
soma.
vais porque frulo daquetc complexo de forças sint rónic:s

10 it
que constituem a cultura moderna e a experiência jurídica ainda muito para dele liberar a mentalidade do jurista (e
1Íroderna. boa parte das futuras Codificaçóes e a legião pandectista o
A propriedade: um instituto bem no centro do projeto; dernonstram), mas é certo que do século XVi ao XIX há
ela mesma coração e substância do proleto. Aqui a obsessáo todo um aflorar de divisóes: não mais em harmonia com âs
incclit'val e atLral para o seu conteúdo mínimo náo terl sen- bases teoréticas do sistema, na nova propriedade o princí-
tido; é um problema que se pôe para os direitos reais limi- pio da corporeidade do objeto resta somente como a hipo-
tados, cada unr dos quais leva em si um próprio fardo de teca da pesadâ herança romanística.
terrestridade econômica mas que não tem razáo de ser para
uma entidade tão desencarnadâ. Mesmo o postulado da de que simplicidade e abstra-
I4. Não nutÍimos dúvidas
corporeidade do objeto, que as fundaçóes romanas e a viru-
lenta tradição romanística pareciam duravelmente cimen- ção, na sua interdependênciâ e conseqüencialidade, consti-
tàr, nlesmo esse assunto, entre os mais resistentes à morte tuam o 'segredo' de uma propriedâde bem inserida no 'mo-
na história jurídica ocidental, náo poderá não ser arrebata- derno' e dele especular; a sua 'modernidade', entendendo
do pela nova metafísica da propriedade. As profundas râzó- com tal expressão a sua acentuada historicidade em um
cs sobre as quais discorremos de um contato necessá- definido uniu.rto cultural e portanto o seu inconfundível
rio-entr e sujeito e mundo físico,-que tinham convencido a caráter, está sobretudo nessas duas qualidades. Hâverá
jurispludência medieval a respeitar formalmente e subs- também outras coisas que concorreráo para a formação do
tâncialmente a regra antiga, dissolvem-se à medida em que fruto histórico maduro, mas todo o resto vem depois; de-
ganha terreno o topos do domi niwn sui, um mecanismo de pois vêm, em nossa opiniáo, também a extensáo dos pode-
autocontrole e de genérico domínio reconduzido ao esque- res e a força exclusiva. Nem se diga que pontuâlizando a
ma rigorosamente jurídico da propriedade e tendo por ob- simplicidade e abstração do direito oferecemos dele fei-
jeto realidades impalpáveis como virtudes e tâlentos da çóes juridicamente pouco relevantes. Ao contrário, sáo
as
pess o a. únicas que são inerentes à estruturâ do direito e nos forne-
É um dos grandes temas do debate jurídico do século cem uma análise interna. Acrescentamos: uma análise qua-
XVI, em uma doutrina que sente a desenvoltura e os con- litativa. E é, também pela configuraçáo estritamente técni-
trastes do quadrívio no qual naturalmente se coloca: basta co-jurídica, um passo adiante, tanto em relaçáo a uma aná-
remeter o ouvinte ao trabalhoso comentário de Mariano lise interna meramente quantitâtiva (como é o caso do ca-
(
Socini, o jovem, à 1. Naturaliter do título 'de acquirenda ráter absoluto), quanto em relação a uma análise externa
( possessione' do Digesto, prolixo, atormentado, cheio de in- que n.rede somente sua eficácia (como é o caso da exclusi-
( certezâs e também delpressentimentosa3. Será necessário vidade).
(
(
,t: De Mariano SOCINI, ojovem (1482-1556), veja-se nos Conlren- raliter" citada no texto e na nota faz referência à expressáo "lex Na-
(.
raria (Venetiis, 1575) a intet?retotío in §. NihiL commune, l. N aturali- turaliter", tratando-se de menção a um contentário de M. Socini a uma
( rer, Jf. de acquirenda possessione (D. 4l,2, 12, l). [N. T.: a "1. Natu- lex do Digesto).

(.
72 13
{
(
(
(
(
(,
Resta-nos tentar uma resposta à última pergunta que contra na França o seu terreno eleito, que é ainda quantita- (
sentimos premer: quando, desde a crise e o desfacelo da tiva mas que será grave de conseqüências também no ân.rbi- (
mentalidade medieval, desenhou-se com nitidez no hori-
l
to da mentalidade: a cada vez mais marcacla expropriação (
zonte histórico uma tal figurajurídica? Sabemos que foi um
l
dos poderes do senhor direto por parte do enfiteutâ âté o
ponto de fazer deste último o substancial 'propriétaire' da (
itinerário longo e trabalhoso e que foi, antes, a conquista de
uma antropologia sensibílissima consignada nas páginas dos coisa. Um tal processo consuetudinário, que está em ato há (
teólogos e dos filósofos. Quando se assim é o direito tempos nos territórios onde o feudo arraigou-se mais pro-
registrou fielmente ideologias e
-
idealidades -
novas e forjou fundamente, parece concluído no século XVI e a própria
{

ciência jurídica (um exemplo eloqüente é Dumoulin) dele (


a nova ferramenta tecnicamente acabada, verificando-a no
cadinho das consolidadas mentalidades pré-jurídicas? toma conhecimento; no plano dos fatos e no da qualiÍicação (
Acreditamos que nunca como em uma tâl investitação é uma etapa não irrelevante para a reconquista (mesrno que (
â pressa antecipadorâ seja fonte de lugares-comuns e de somente quantitativa) da unidade do domíníumaa .
Ao lado, os humanistas lustram e expõem arquétipos (
anti-históricas enfatizações; nunca, como nesta invesl-igâ-
clássicos que a jurisprudência medieval havia sepultado e (
ção, o historiador do direito, consciente de seu pesadíssimo
trâtamento de almas, tenha necessidade de uma dupla conturbado sob o martelar de sua interpretação evolutiva. (
atenção, ao pré-jurídico, no qual as revoluções culturais se É uma dimensáo lúdica, isto é, de altíisimo jogo intelec-
tual, que pela primeira vez é posta em ação por luristas, (
cumprem e no qual toma primeira forma a criatura 'pro-
priedade' irredutível a esquemas unicâmente técnicos, e ao uma dimensáo completamente estranha ao tradicional di- (
jurídico, isto é, às arquiteturas construídas com base em reito comum segundo o qual o direito é vida vivida de rrrr.r (
um bem deíinido estatuto científico, que são as únicas a povo e a ciência não é pensável senão como contribuição
operativa à vida [e nunca contemplação lúdicaJ. Pela pri-
(
assinâlâr sem equívocos a passâgem de uma genérica men-
meira vez a ciência jurídicâ tem um carszs formalmente e (
talidade a uma específica mentalidade jurídica. Dúplice
atenção que se faz necessária justamente pâra não conti- substancialmente exegético: diferentemente de glosadores (
nuar a incorrer nos equívocos dos quais esteve até âgoÍa e comentaristas que escondiam o rosto nos esquemas exe-
(
repleta a investigação histórico-jurídica no tema proprieda- géticos para ter as mãos livres para construir o ordenamen-
de, por demais condicionada pelâ histó(iâ constitucional do to prescindindo da substância dos textos interpretados e (.

insrituto e demasiadamente desatentâ sob o perfil do co- em harmonia com a vitalidade dos fatos ciÍcunstantes e co- (
nhecimento técnico. metendo entáo a mâior das traições romanísticas, a inter- (
Falamos pouco acima de pressentimentos da doutrina pretatio dos humanistas, historicista e portanto rigorosa-
(
jurídica do século XVI e da extrema complexidade de um
verdadeiro quadrívio científico; onde a imagem do quadrí- (
vio pretende evocar particularmente â idéia de um divisor
44 Tivemos ocasiáo de detalhá-lo em um nosso recente ensaio. CÍ. P.
(
GROSSI. Un paradiso per Pothier-Robert-l oseph Pothier e la proprietà
de águas bastante contrastado e aglomerado. Antes de mais 'modema'. In Quaderní fíotetttini per la storia del pensielo giuridico (
nada, sobressai uma circunstância, que é geral mas que en- mod.erno,l4 (1985), p. 406 e segs.
(
75
(
74
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B!!:l l-,le IrriA'Júl.r IlÁL
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(
iÊrt tr§ô§
lrentc romanística, resolve-se em exegese. O morieio ela- distraída (quando náo tendenciosa) da densa obra do juris-
boraclo neste escritório do século XVI culto e rcírinado é consulto orleanense sobre 'domaine de propriété': em nos-
rlgo a mais do que o clesenfe rrujamento de uma vtlha fer- sa opinião/ ele tem unicamente o mérito, não pequeno, de
ranrcntli, é aliás pleno de singuiares consonâncias e rcpleto organizâr lucidamente aquele conjunto de conquistas, de
cle frrturas prefrguraçõcs, rnas é mais rrnr moclelo cultural intuiçóes, de certezas âcumuladâs no curso da história jurí-
clo rlrrt- operativo, e nessâ redutora dimcnsão deve ser coio- dica francesa mas que sáo já tais e náo embÍionalmente
cado l'. no direito consuetudinário do -século XVI. Anti-histód-
Ao lado e nrais significativamente do nosso ponto de
-co é deformar como profeta clarividente quem foi e tâlvez
-
vista iristórico-juríclico se entrevê um desconfor-to qrrc quisesse ser somente o último jurista do antigo regime e o
scrpcnteia no ânbito dos - próprros jurjstas operâtivos, ao redâtoÍ fiel de seu testamento jurídico47.
nrcnos nos nris sensívcis, ou naqueles viventes em terre-
nos clc fronteira oncle o embasarnento da trac{ição é desgas- 15. Dir-se-á de parte de muitos que esta busca ansiosa
t r,lu 1 ,'r lrnra ('xpr'Ticn( ia pratir lr í r oünos, it iva ,",,.,ua- do 'moderno' na história da construçáo juÍídica da proprie-
cão: o caso de Zasius, para o qual cremos ter chamado "n, mui- dade, constelada, do século XIV ao XVIII, de intuiçóes e
to rccententente â âtcnção dos estudiososa6, é extrema- presságios mâs náo enriquecida por um novo modelo técni-
nrentc instrtrtivo, c exemplar cla luta cntre velho c novo, da co, náo poderá não arrestaÍ-se com o Code ciuil napoleôni-
pror:Lrra de novas ordens culturais e sócio-econômicas, clas co e aí ressaÍcir-se plenâmente das desilusóes e insâtisfa-
contladições, em suma, que abarrotam o século dezesscis. ções de que o historiador do direito que olhe com as suas
-
lentes específicas o itineráÍio precedente e olhe-o sem se
Àlénr clcssa constatâção cia complexidacle dc uma virada
hist(r'ica não nos palece que historiograficamente se possa contentar com fáceis e superficiais sonoridades toÍnou
objetiva experiência. -
ir.: o nrodelo técnico-jur-ídico operâtivo de propricdadc ó
l, rr rr.*nt, rrr,'nh:,1,'. Mesmo ao custo de que a alguns nossâ atitude pareça
[,irrr vel]to rcfrão, recententcnte retomado com vivaci- deliberadamente excêntrica e ávida de originalidade, gosta-
rlrcle, clLris identilicar ern Pothier o homo nuuus, o prirlciro ríamos de convidar a uma análise do Code ciuil qrse nâo
honrenr de u lâ rlova margem. Anticluado Iugar-corrrurrr abra máo poÍ um só momento nem de uma orientaçáo de
rr:l ,1.1.'dc "el)L tiçôcs in,.orrscientt,s de a.serÇór-s prt.,,- prudência cÍíticâ lou seja, consciência de encontrar-se
.lrr.t : r' sobr. trrdu originldo p,,r llr)a lcit,rrr apr,,.:rdl c diante de um nó, um problema, mais do que de um conjun-
( to de dados já inteiramente dissolvidos e resolvidos), nem
de uma observação pÍâzerosamente jurídicâ [ou seja, capaz
( de distinguir os mecanismos constíutivos postos em ativi-
'ts Sobr-r: r.ssc .onjunto de problcmas não podernos fazer nacla e nao
( sar: ranr(,ter o leiLor ao lir,ro crn preparação, r1o clual se f:rz nrcnção ne dade pelo conhecimento jurídico com os instrumentos
( r,rt;r lti
.i l'. (iltOSSL Crndus itr datniLio Zasirs e la tcoriut tleL dotnhio
( tLiL iso lt QtLndenLi liortntiú per la storíct del pensiero gnrritjico moder-

( ;ro. 1.1 ( l!)85). 47 GROSSI, P. Un paradiso per Pothier. Op. cit., passim.

( 77
7{l
(
(
(
científicos própríos). Estamos reâlmente convencidos de escavações da filosofia lockiana e fisiocrática venham a de-
que, diante de uma análise feita assim, o Código, quase sembocar no Código. O problema para o historiador do di-
como se fosse um palimpsesto ântigo, pode revelar uma reito é porém um outro: até que pontô a adesão ao renova-
dupla escritura, e oferecer-nos um iestemu.rho historica- do modelo filosófico-político conseguiu exorcizar e expul-
mente interessante, mais do que de uma definitiva con- sar a velha mentalidâde jurídica? Ou não se criou uma jus-
quista, de um persistente contraste de mentalidades e da taposição, aquilo que imaginativamente chamamos o pa-
resistência de uma mentalidade retro-datada.
limpsestoT Windscheid, algumas décadas depois, teriâ con-
O nosso temor é o de que o jurista fique ofuscado por sentido sobre a quantidade e intensidâde impensáveis dos
aquele maldito artigo 544, que, com o seu triunfalismo,
poderes proprietários sobre o bem, mâs ter-se-ia resguar-
tanto contentou a retórica burguesa do século XIX, a ponto
dado de tentar distingui-los; têJo-ia considerado incoeren-
de consentir aos futuros juristas identificar nele a face da
te, inútil e ridículo.
nova propriedade jurídica. Nós gostaríamos que, pâcâta-
E que para ele o legislador napoleônico é ainda homem
mente e sem nenhum pré-conceito, olhasse-se um pouco
de fronteira, tem os seus pés nâ terra bem assentada do
mais profundamente a sistemática do Código no que diz
velho regime em que se formou e educou, enquanto as suâs
respeito aos diÍeitos reais e a própria estrutura do artigo
mãos estão cheias de coisas novas. A redescoberta da uni-
544. O palimpsesto emergirá com suficiente nitidez.
dade da propriedade, filosófica e política ântes, também
Comecemos pelo segundo ponto, Imputamos a uma
jurídica de I790 em dianteae, náo cancelou, porém, com-
leitura acrítica do artigo o casulo retórico a que o problema
pletamente, a tradicional articulação do domínio em um
histórico-jurídico da propriedade foi consignado, mas foi
ius disponendi e em um íus utendi, fruto de uma cultura
afirmação injusta: mais do que de todo o texto do artigo,
diversa e de uma visáo obietiva do pertencimento, que/
encheram-se-nos os ouvidos com a hipérbole vibrante que
partindo de pressupostos antitéticos aos dos juristas napo-
revestia "de la maniàre la plus absolue" os conteúdos dos
leônicos, havia hipotizado como legítima a própria divisão
poderes proprietários, e náo se pretendeu nada mais. Náo
do domínio. E resta, no seio d o artigo 544, a idéia destoante
há dúvida, porém, de que o mesmo ârtigo contém clara-
de uma propriedade como soma de poderes, como resulta-
mente uma dupla escritura; de um lado agiganta-se ao infi-
do da adiçáo de um gozar e de um dispor, que deveria ter
nito a galhardia dos poderes; do outro esboça-se, âtenuan-
tornado aceitável o já inaceitável e não-aceito princípio da
do, uma lista de poderes determinados: gozaÍ e dispor.
divisáo da propriedade.
Duas álmas, duas mentalidadel duas escrituras: não há Se alguém dissesse que queremos ler demais e que ex-
dúvida de que os compiladores do Código e o texto do ar- cedemos nesta intervenção analítica, socorre a nossa avalia-
tigo tenhâm-se embebedado da retórica oitentaenovistaa8
ção a mesma ordem sistemática do Código do qual brota
da nova propriedade liberada e náo há dúvida de que as

,ls Ou seja, como é sabido, com o decreto l5 de março de 1790 sobre


48 "Ottantanovarda", no original, ó termo cunhado pelo autor. IN.T.] a aboliçío do regime senhorial.

78
(
(
(
( rr)âis de uma confirmâção. Tomemos otítulo de todo o li-
vro scgundo'Dos bens e das diferentes morliÍicações cla ponda à pluralidade de dimensóes da ciência jurídica fran-
( cesa dos primeiros anos do século dezenove conflrma-o
propr-ieclade', em que estão comprcendirlos o tcma da pro-
( tâmbém üm olhar mesmo sumário àquela densa mâssa de
1:r'icclade e os do usufruto, do uso, das várias espécies de
( scrvidão predial. Emerge, âo menos em nível sistemático, juristas que vive sob o guarda-chuva do Código e é, repre-
rrnra noção dc servidão como'modificâção da proprredade' sentativo da cultura jurídica que o produziu A escola Írân-
(
cluc ó rctro datada. A Wincischerd náo viria jarnais crn men- cesa da exegese em todo o seu desenvolvimento desde Del-
-Laurent
(
te pcnsar errr unra n'rodificaçâo da propriedade por lbrça de vincourt a continua a revelar a duplicidade dos
( um direito real limitaclo; o clireito real iirritado, clralqucr dois níveis em conflito, o das declarações programáticas e o
direito leal, cnl uma tipicidade rigorosa e em um núrnero da engenharia jurídica. Como assinalamos em outro lugar'"'
(
reduziclíssimo, é inraginado c construído corno algo de ex- a ideo*logia náõ consegue âinda imprimir-se completamente
( em todo o edifício jurídico sobrestante e delinear um.mo-
tcrno à proprierlade, que do exterior podcrá comprin.rir-1he
( c cLrnclicionar-lhe â eficáciâ 1nâs quc náo podcrá jarrais in- delo completo. Incónscientemente a velha mentalidade -
(. cidir cur srla estrutura, modificá-la. A idéia de modificação, que é ainaa âquela bâstante sedimentada, e por isso bastan-
qlle ó estruturai, evoca, ao contrário, a de um drreito rcal te compenetiada, do direito comum - continua a fazer
(
.lue sc destâcâ do tecido unitário mas composto da proprie- emergii uma noçáo composta de propriedade, uma indis-
( dade, e que por graçâ desse destacar-se modifica esse tcci- tinção qualitativâ entre propriedade e direito Íea[, um ato
( c{o. Aqui também o pâlimpsesto é evidente. constitutivo de direito reà1 limitado que é qualificado
como desmembramento e o direito real que é tomado
( Que queremos, então, dizerT Que o Código é um pro-
rluto de ântigo regime? Certantentc não. Quercmos so- como fÍaçáo, como fraçáo sepârâda do feixe total que so-
( rentc constatâr que sob o tretlular das novas bandeiras a mente na sua soma é ã propriedade.
( velha mcntalidade juríclica encarnada enl uma certa cons-
tr ução clo sistema cios direitos reais não foi de todo âpâga- 16. Onde finalmente a grande espera pela cunhagem de
(
rla, e coexiste desarmonicamente com a nova ideologia oi- um modelo técnico coerénte com aquele ideológico se
( aolaca é com â Pandectística alemã, e as antecipaçôes do
tentaenovistâ da qual claramente o Código é portaclor; tal-
( vez mais no nível inconsciente (que ó o típico das mentali- parágrafo precedente ao labor doutrinal do príncipe dos
cladesJ, todavia os velhos esquemas interpretativos e cons- pandictistàs fizeram-no claramente entrever. Aqui a pro-
l'
trutivos, os velhos arsenais técnicos, demonstrâm a suâ ex- priedade se torna a criâtuÍa jurídica congenial ao homo.oe'
( conomicus de uma sociedade capitalista evoluída: um ins-
traordjnária aderôncia aos ossos e ao coaação desses /zorni
( nes noui, e o sistema do direito codificaclo revela algurnas trumento ágil, conciso, funcionálíssimo/ caÍacterizado por
( signilicativas desfiaduras, algumas não desnrentíveis incoe- simplicidadi e abstrâção. Simples como é o sujeito, reali-
râncias.

( Quc esta leitura cm diversas camadas do Código náo so Cf. Tradizioni e moàelli nella sistemazione post'unitaria della pro'
r, jl:ornente lruto de rrm engenhoso artifício mas (orres- príetà. \n Quaàerni fiorentini per la stoúa àel pensiero giuriàico moder-
( no,5/6(1976/77), p.216 e segs. e p. 223 esegs.
( 8(l
81
(
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dade unilinear sobre a qual se modela e da qual é como que que finalmente, com essa grande operaçáo doutrinal, a so-
t
a sombra no âmbito dos bens; abstrata como o indivíduo ciedade burguesa pode conclamar que tem também no pla- (
liberado da nova cultura, do qual quer ser uma manifesta- no jurídico uma propriedade autenticamente burguesa, {
ção e um meio validíssimo de defesa e de ofensa. É nesta que guardou no sótão/ após muitos séculos, o modelo téc- (
transcriçáo ao sujeito que ela reclama a sua unidade e a sua nico medieval, e o substituiu por um novinho em folha.
indivisibilidade: una e indivisível como ele, porque como Como a afirmação de uma liberdade e de uma igualda-
ele é síntese de virtude, capacidade e poderes. Uma trans-
criçáo táo aderente a ponto de pârecer quase uma fusão: a
propriedade é somente o sujeito em ação, o sujeito à con-
de formais tinham sido os instrumentos mais idôneos para
garantir ao homo oeconomiczs a deSigualdade de fato das
fortunas, assim essa propriedade 'espiritualizada' teria se
il
quista do mundo. Idealmente, as barreiras entre mim e
meu caem,
Síntese de poderes, não tem nada a compartilhar com
concretizado, poÍ gÍâça das suas ilimitadas possibilidades
transíormistas, na pedra filosofal da civilizaçáo capitalista:
a mais pobre, a mais desencarnada das construções jurídi-
Íl
poderes individuais sobre a coisa: é um poder supremo de
qualidade diversa que os compendia a todos e os supera
pondo o instituto que a encarna acima clas grosseiras forças
cas ter-se-ia demonstrado um meio eficientíssimo para
transformar tudo em ouro, instrumento pontual para todo
tipo de mercantilização.
Íl
econômicas; de sua natureza sintética adquire o traço in- Franz Wieacker, investigador agudo do pensamento ju-
confundíve1 da simplicidade. O direito real limitado é aqui rídico do século XIX e talvez o pÍimeiro historiador do di-
somente um acidente que pode interferir na sua vida, po- reito que tenhâ trazido à luz o vínculo entre Pandectística
rém sempre do exterior e sempre e somente sobre a proje-
çáo da eficácia sem nenhuma possibilidade incisiva sobre o
monolito proprietário. À propriedade e o ius in re aliena
peÍtencem a dois universos sustentados por razões diversas
e sociedade econômica da revoluçáo industrial, está con-
vencido da incapacidade, para uma massa de 'romanistâs'/
de "dar-se conta desse acordo secreto com a sociedade de
il
seu tempo"sl. ConvicÇão, se nos consente'o ilustre e caro
e opostas; são, sobre o plano lógico e histórico, dois dados
ântitéticos.
Síntese de poderes, não tem um conteúdo deterntiná-
amigo, que nos parece pleonástica ou, pior ainda, inútil. A
sintonia é indubitavelmente no nível subterrâneo das men-
talidades, naquele fio condutor que corre mais no subcons-
il(l
vel e repugna-lhe toda definição conteudista. A sua abstra- ciente do que no consciente. Certo é que, com o subsídio
(t
ção é total: abstrato é seu sujeito titular e abstrata é a sua
linha mestra com umâ capacidade ilimitada de tolerar os
conteúdos mais variados; daí o ridículo de quem começasse
-
e também com alguns obstáculossT oferecido pelo
- íl
a listar poderes.
Essa construçáo jurídica sem ambigüidades, descen-
sr F. WIEACKER, Pandettistica e ríuoLtzione industriale (1968-69).
Agorain Diritto pritato e società industriale. Napoli, 1983 (trad. Ital. :l(l
dente razoavelmente em todos os seus aspectos das pre-
missas programáticas de índole ético-política, é um mérito
histórico da Pandectística madura; um mérito objetivo por-
De G. Liberati), p. 84.
sz A traclição romanística pesa, condicionante, sobretudo no que cliz
respeito ao objeto da propriedade. Windscheid se sente no dever de
(l
ensinar sem uma perplexidade: "Eigentum bezeichnet, dass jemandem

82
rl
(l
(
(t
fungibilíssimo instrumental romano, eles conseguem ple-
nâmerrte o resultado relevante de romper com o passado,
não somente elaborando invençóes técnicas, mas substi-
tuindo uma cultura jurídica à velha. A fronteirâ enrre on-
tem e hoje torna-se um confim cle todo firme e o 'moderno'
do direito adquire completude especulativa.
A aventura do pertencimento pode, para o historiador,
dizer-se concluída. A crise que atingiu o abstrakte Eigen-
tum dos pandectistas desde a reflexão civilista entrã as
duas guerras e que inicia com a reimersão da propriedade A FORMAÇÁO DO JURISTAE
em meio às coisas e a redescoberta das propriedades, é um A EXIGENCIA DE UMA REFLEXAO
itinerário que chega ininterrupto até nós, que estamos ain- EPI STEMOTÓGICA I NOVADORA
da vivendo e que sentimos queimar sobre nossa pele.
Para o historiador é tempo de arrestar-se. E não porque
não tenha paiavras apropriadas a dízer: a face antigà deite
presente em formação e deste futuro que se peifilu lhe
consentiriam uma plena cidadania no canteiro de obras api-
nhado. É que ele não se sente à vontade diante de u-a
situação mutilada e incompleta; ele, habituado à completu-
1 .O título desta comunicação náo é meu, mas do incan-
de de uma existência vivida até o extremo; e diante da rixa
sável e admirável organizador do nosso encontro; porém é
descomposta sente repugnância pelos transportes emocio-
título muito oportuno quândo coloca em questão a existên-
nais que atenuam a limpidez do olhar; ele, habituado a ler
cia de uma dimensão epistemológica que deve ser enfren-
serenamente nos corpos mortos os princípios perenes da
vida. Deixará o seu cantinho sombrio assim que a borrasca tada com urgência, seja pelo do cientista do direito, seja
pelo do docente chamado a ensinar disciplinâs jurídicas em
se tiver aplacado, e o fundo das coisas se fará de novo trans-
parente. nível universitário. Pesquisa científica e ensino, se não se
quiser trâir â verdadeira essência da Universidade, estão de
fato numa relaçáo de índefectível simbiose.
Alguém, cansâdo e não sem razão dos demasiados
- -
apelos, e, freqüentemente de forma vazia, às imponentes
pâlavras que sáo 'epistemologia' e 'epistemológico', poderá
considerar que haja também aqui um ornamento retórico
ou, pior, um tributo aos lugares comuns. Mas eu o tranqui-
eine (kôrperliche) ache eigen ist" (Lehrbuch des pandektenrechts , B. I
S

Frankirrt am Main, 1906e, § I 67, p. g56l. lizaria. Para nós, nesse momento, tal apelo somente tem o

84
(
(
(
(
cessidades das massas populares quanto a veIha monarquia
sentido de sublinhàr a exigência de um compromisso cultu- (
ral que o jurista tem consigo mesmo e que náo pode-ser do antigo regime.
(
proteladoienáo com o grâve risco de mumificar a sua iden- O problema histórico jurídico, para o qual algur.rs histo-
riadores do direito incrivelmente não se mostrâm ainda ad- (
iidod" de atenuar (ou até mesmo perder) o seu próprio
"
papel social. É necessário, em suma/ hic et nunc, um "re- vertidosl, está exatamente em apresentâr-se este ideário (
p.rr..-"nto" metodológico fundamental pelo do jurista, geral como sistema perfeito e completo de verdades geo- (
qr. po.rn sacudi-lo de uma sonolência que,, na ltália, pren- métricas: como o quírrico e o físico do século XVIII leram,
(
graças à reconquistada capacidade de seus olhos, as regras
de-o e envolve-o há pelo menos duzentos airos.
e em boa parte ainda hoje, malgra- objetivas e eternâs que subjazem à natureza das coisas e as (i
Há duzentos anos
-
do a percepçáo de algumas consciências vivas e cultural- cleterminam, analogamente os extirpadores do decrépito e (l
mentÀ vigilantes durante o decorrer no século )O( - o ju- sufocante aparato pré-revolucionário puderam colocar a (
rista viveu e vive docilmente o papel que lhe foi destinado claro, depois de uma obra absolutamente liberatória, a or-
(
pelo poder político, completamente inclinado a um breviá- dem natural e essencial de uma sociedade política2. O pro-
(
,io dà ,.td"d". indiscutíveis esculpidas por aquele poder
por meio de um de típo tábua sagrada de Moisés: o.Estado, (
ao-o ."ptarantante e intérprete da vontade popular, com t Uma não edificante, ainda que - infelizmente para ele - claríssima (
o conseqüente corolário do primado da lei como voz do demonstração é oferecida por Ugo Petronio, o qual, malgrado que o
tema propriamente não o consentisse, âproveitou da sua introduçáo â (
Estado e obviamente como manifestação genuína da vonta-
de geral; o extremâmente rígido princípio da legalidade; o
umâ Íecente reedição do Código Napoleônico de processo civil para (
vomitar muito fel contra a minha tentâtiva de yalorar historiografica-
extiemamente rígido e efetivado princípio da divisáo dos mente certos fundamentos jurídicos da idade burguesa à luz de uma
(
poderes, com a absoluta reserva ao poder legislativo (isto é, desapaixonada consciência crítica e finalmente depositando os habi- (
político) da produção do direito. tuais obséquios litúrgicos a pesados e nâo mais suportáveis lugares co-
muns- Trata-se de um rancoroso e raivoso ataque, em páginas manifes-
(
Não existem incoerências nesta construçáo, que se as-
tamente escritas sob o influxo de maus humores e que revelam uma (
semelha a um teorema de geometria nas suas linhas perfei- ligação mais com as vísceras do escritor do que com sua dimensáo críti-
tas. Tudo torna perfeitamente, se náo fosse por aquele ca; páginas que, na sua hostilidade e na sua incapacidâde diâlética, de-
(
axioma de fundo, que tudo sustenta e que reveste o caráter nunciam uma inaceitável ideologizaçáo e uma forçada parcialidade, (
da suprema ficção a apoiar uma atentâ estratégia política: a que, porém, denunciam como também para alguns historiadores do
(
direito raciocinar criticamente sobre certos fundamentos (ou pretensos
identificaçáo entre Estado e sociedade civil, a identificaçáo
tais) seja assimilado como profanaçáo de um lugar santo. Aditemos com (
do conteúdo da lei na vontade geral. Suprema ficçáo, por- prazer ao leitor como exemplo disso a supracitada introduçáo de Petro-
que nunca o Estado é capaz de exprimir toda a complexida- nio e o convidamos a constatâr pessoalmente com uma leitura impar-
(
áe e riqueza da sociedade, ainda menos um Estado mono- çial: I Codicí Napoleonici - T. I - Codice di procedura cioile, 1806, (
classista e extremamente elitista como aquele saído da re- introd. di U. Petronio, Milano, Giuffrê,2000.
(
voluçáo burguesa de 89, táo longe dos interesses e das ne- 2 O leitor âtento àdveÍte iogo que, no nosso texto, reproduz-se qua-
(
86
37 (
(
(
(
(
(
( do que um recipiente vazio e que somente os conteúdos
( biema está, pois, num conjunto de princípios e regrâs que podia* -"recei a observação dos destinatários Diante de
se ap.esentam náo como solução para a França do final do àlgurnr, imotivadas expreisões de obséquio à lei, concla-
( século XVIII, mas sim como projetados para a eternidadê e ,nãdr. .orn sincera convicção ainda na metade do século
( estendíveis a todos os lugares como percepção de uma ver- )O(, eu me permiti recordai o amaríssimo episódio das leis
( dade objetiva e portadores de uma justiça intrínseca. Há italianas de i938 sobre a tutela da raça ariana, extÍema-
(
mais: princípios sacralizados malgrado a sua íntima secula- mente iníquas como toda medida que se inspire no racis-
ridade, e portanto patrimônio intangível em relação ao qual mo, e nâs quais a forma legislativa rÁo fazia desaparecer e
( é devido um ilimitado respeito. Devo confessar: eu náo en- ,e- *es-o atenuava a inaceitabiiidade de um conteúdo
( contrei jamais posturas assim autenticamente devocionais odioso para a comum e estabelecida consciência4.
( como aquelas dos movimentos revolucionários e pós-revo- O problema histórico-jurídico está todo aqui: flacrença
lucionários do final do século XVIII e do século XIX; um difusa de conquistas últimas e eternas, na fixaçáo de uma
( rebanho de devotos empenhado em gestos de devoção, in-
dogmática imobilizadora, na indiscutibilidade de certas ca-
( capaz de um juízo crítico das conquistas feitas. que é absolutamente metodológico
teg-orias; o problema
( Tomemos por exemplo um destes princípios cardeais, -
na ães-historicização de todo um material histori-
( a legalidade; é fáci1 constatar que se transformou imediata- --está
císsimo, respeitável fruto de vicissitudes históricas, e por
mente em legolatria3. Cada manifestação jurídica, contan- isso discutível, e portanto entregue ao devir do tempo e à
( to que fosse legislativa, contanto que fosse proveniente do sua usuÍâ.
( órgáo depositário da soberania estatal, era tida como justa
O pior é que, se um tal resúltâdo é compreensível como
( e passívei de total obediência, quase como se o legislador
estratAgia atenta do poder político moderno para controlar
fosse uma espécie de rei Midas, hábil a transformar em
( toda a áimensão jurídica tida já como indispensáve1 ao seu
ouro tudo aquilo que tocava. Em toda a idade moderna re-
( pÍóprio exercício eficiente, o é muito menos a aceitaçáo
petirâm-se genuflexões imotivadas à lei, sem que se desse
( conta da consideração elementar de que e1a nada mais era
i"r...nt" dos juristas, a sua abdicaçáo a um papel âtivo,
aliás a sua contiibuiçáo para a legitimar a entrega do direito
( nas máos dos detentores do poder.
( O pior ainda de modo mâis grave é que essâ pas-
( se lcxluâLn]ente o título de um célebre libelo politológico-econôntico - -
sividade psicológica, essa posiçáo renunciante, náo se veri-
clo lrsiocrata fratcês Paul-Pierre Le Mercier de 1a RiviêÍe'L'ordre natLr-
( rcl et esseltiel des sociétés politiques' (1767J
( 3 Sobre esta pâssâgem e sobÍe â construçáo moderna dc tura verda-
cleir a r: prripria 'mitologia jurídica' vejam-se as nossas reÍlexôes colti.las q Refletimos ouma nossa amarga 'comemotação' dos sessenta anos
( enr: Mirologie gíuriàiche della modernità, Milano, Giuffrà, 2001. [N. das feis de 38. Cfr. Quaàerni Fiorentini per la sroria del pensiero .giur.i.'
'L: ErLiçrio brasileira: GROSSI, Paolo. Mitologias lwídicas daMotier- dico moderno, 27 (1998) - Pagina introduttiva (a sessanta annt dqLLe
(
uidade,Trad. Atoo Dal Ri Junior. Florianópolis, Ed. Fundaçáo Boiteux, Ieggí razziali italiane del 1938),
(. 2 00,11 .

(
( fJIJ

(
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fica apenas no jurista do século XIX embebido do triunfa- da que limita o raio de ação dos juristas e nem sequer lhe (
lismo pós-revolucionário e ressurgimentals, mas se a cons- consente o direito de desenvolver o papel que lhe é natural (
tata quase intâcta no espírito do jurista hodierno, o qual no ordenamento da sociedade.
vítima de uma pesada influência de dois séculos -
persiste Eis porque se deve tomar como bem-vindo o convite (
-
em não tiÍar as lentes deformantes que the foram postas implícito (
- a qualnonáotítulo
contido â uma renovada tomacla
sobre o nariz há duzentos anos atrás e em tomar por con- de consciência, -
pode ser encaminhada senão re- (
quistas inalienáveis aquilo que era um fruto de uma indébi- pensando criticamente certas fundações (ou pietensas tâis)
(
ta expropriação. do nosso saber, começando por colocáJas no seio histórico
O jurista atual a referência é à maioria e náo àqueles e do feixe de motivações históricas quc as geraram c verifi- (
-
espíritos livres e arrojados é doente de decrepitude, é canclo se, já impróprias â atual situação estrutural e à atuai (
-
cada vez mais velho, e é sobretudo consumido por uma reflexão científica, náo devam ser objeto de escolhas mais
(
enfermidade sutil que desde sempre foi seu vício oculto, a conscientes.
preguiça, a preguiça intelectual. Em uma conferência por (
mim proferida na 'Accademia dei Lincei' sobre o tema in- 2. Ainda hoje, ao jurista normal parece natural o nexo (
candescente da globalizaçáo jurídica, eu não pude fazer entre direito e poder político concebido sem hesitação (
menos que evocar a esplêndida imagem hegelianâ dos filó- como um vínculo necessá.rio: o direito náo pode ser senão
sofos que se assemelham à coruja que evita a luz do dia e produto de quem exercita poderes soberanos, é por isso (
que se alça em vôo somente no crepúsculo, aplicando-a à provido de autoridade, garantindo-se a observância da par- (
pálida figura do jurista preguiçosamente operânte em umâ te da comunidade dos súditos; manifesta-se em regras ge- (
coberta zona de sombra, sem dúvida protetora mas tâm- rais, abstratas, rígidas, e com relação à sua formação a co-
bém vinculantíssima6. munidade não é chamada a dar nenhuma contribuição, trâ- (
O historiador do direito, sabedor de seu papel de ser a tando-se de comandos insuscetíveis de elasticidade e que (
consciência críticâ dentro de uma faculdade de direito, reclamam uma purâ e simples obediência. E não há dúvida (
tem o dever cultural de recordâr que, no início, havia so- de que no mais das vezes seja assim: atos de império prove-
nientes do alto porque pensados e definidos a partir cle (
mente â prudente estrâtégia de uma ordem social e politi-
camente vencedora; que, se de conquista se tratou, tratou- cima, passivamente suportados por uma massa disforme e (r
se sempre de um produto histórico, e que chegou o mo- anônima de destinatários. (r
mento de tirar das costas uma cârga demasiadâmente pesa- De tudo isso deriva uma visão absolutamente potestati-
va do direito, que faz da produção das normas jurídicas um
(,
rigoroso monopólio do aparato estatal, pertencendo o di- (
5 'Rissorgimento'é o movimento nacionalista italiano pela unifica- reito à categoriâ dos arcana imperíi e dos instrulnent& im- (,
XIX [N. do T. ].
çáo e formaçáo do Estado ocorrido no século perii.
6 P. GROSSI. C lobalizzaziorc, diritto, scienza giuidica, Á Aui del-
Isso náo pode ser desmentido. O historiador tem, po-
(,
Accaàeuía Nazionqle dei Lincei, CCCIC (2002), p. 491 ss. (mas
ler
(,
também em Foro I taliano, maío2002,Y, l5l). rém, o dever e a responsabilidade de acrescentar que aquilo
(t
90 9l
(t
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(
(
(
(
( que nos aparece como natural, ou seja/ como conexo à na-
pais, está visivelmente se desmanchando particularmente
tureza mesma do direito, é apenas o fruto de uma transfor-
{ no campo do direito privado onde as mudanças sociais e
maçáo que este sofreu em um tempo histórico e em um
( econômicas, mas ainda mais as mirabolantes novidades da
espaço geográfico bem delimitados. Para nos explicarmos
técnica em contÍnuo arranque, fÍeqüentemente relegam a
( melhor, é transformaçáo que se verificou somente no ápice
um paleolítico jurídico as previsões contidas em tão respei-
da idade moderna e na Europa continental. Aquilo que
tâdos quanto inutilizáveis textos legislativos, fazendo-nos
pode nos parecer natural é todavia historicamente relativo;
assistir âo seu progressivo esvaziamento pela obra de uma
con'lo se dizia mais acima, é nada mais do que o resultado
diligente auto-regulaçáo dos privadosT. Mas o processo de
de uma sagaz estratégia da classe burguesa, cônscia da rele-
erosão é geral e não poupa nem mesmo regióes estritamen-
vância do direito para um exercício completo de poder e
te ligadas ao exercício da soberania e portanto submetidas
resolvida a controlá-lo.
até recentemente a uma legalidade muito rigorosa: o exem-
É táo verdadeiro tudo isso que a era precedente me-
dieval e pós-medieval - o
e que, na mesma era burguesa,
plo de uma zona penalista completamente coberta pela
- do common law, graças ao nexo sombra da lei é rachada pelo florescimento na cultura juri
planeta separado e paralelo
dica européia-continental com um diferente papel para au-
de continuidade com os valores medievais, delineiam e
constroem sobre outras bases as próprias ordens jurídicas. toridade estatals.
Nestâs expeÍiências, numa visão mais pluralista das fontes
do direito, a tarefa da individualizaçáo das regras jurídicas
e da sua contínua adequaçáo é prevalentemente confiada a
7 Disso tratamos na nossa aula inaugural às atividades da 'Escola de
especializaçâo para as profissôes legais'da Universidade de Florençar Il
( uma ordem de juristas empenhada em fixar e câtegorizâr dirítto tra norma e applicazione. Il ruolo del giurista rcLl'attuale società
( tecnicâmente as indicaçóes provenientes de uma platafor- italiana, em Uniuersità degli Studi di Firenze - Facohà di Giurispru-
ma consuetudinária subjacente, sobretudo mestres de di- detza - Scuola di specializzazíone per le prolessioni legali - lnaugura-
(
reito na Europa continental pré-revolucionária, sobretudo zione dei corsi d'insegnamento deLl'anao accademico 20Ol /2002, Firen-
( juízes além da Mancha e, mais tarde, nas várias colônias ze, lmprima Unigral 2002 (mas também em Quaderni Fíorentini per
inglesas. La storia del pensíero giuridico moderno 30 (2001) como também em
(
Adquirir plena consciência da historicidade e relativi- Rassegna Forense, )OOÕ/ (2202)).
(
dade de um ideário jurídico que se assenta sobre nossas s As palavras sâo tomadas quase inteiÍamente de um perspicaz en-
( saio de R. ORI-ÀNDI, Giustizia penale e ruolo dello Stato: um rapporto
costas é táo elementar quanto liberatório; se aquele ideário
foi, em boa parte, um expediente político, será mais fácil in crisi, em Il Mulino, LI (2002), p. 863 ss. Para um vasto exame do
( debate atual e para uma Iúcida pontuação em relaçáo também com a
dele se liberar.
( degradação dos órgáos parlamentares contempoÍâneos veja-se F. PA-
E disso temos absoluta necessidade hoje quando o mo- LAZZO, Riserua di legge e diritto penale moderno, em Stuàium iuris,
( nopólio do Estado está colocado em crise por uma prolife- 1996. É de se ler também o repensamento crítico de M. VOGLIOTTI,
( raçáo e fragmentação de fontes produtoras, seja no plano La'rhapsodie': fécondité d'urc métaphore littéraire pour repenser l'écri-
oficial quanto naquele da efetividade cotidianâ. À rígida ture juridique contemporaine. Une lrypothàse de trauail pour Ie champ
( penal, ern Reuue interdisciplinaire d'etuàes juridiques, 2001 . 46, p.
visão potestativa do direito, indiscutível para os nossos
( 142 ss, conjuntamerte às preciosas consideraçóes comparatistas de E.

( 92
93
(

(
O movimento'em âto, inarrestável em uma civilizaçáo completa no momento em que a autoridade dela se separa;
sempre mais complexa e sempre mais desterritorializada o seu processo de formação é já inteiramente completo c
como a atual e a dà um futuro próximo, de todo modo que com relação a isso nem mesmo pode de algum modo con-
se lhe queira avaliar, tem a qualidade de barrar mas tâm- tribuir o seu inserir-se no tecido da experiência. Em suma,
bém de retificar um processo de perniciosa desnaturação a nesta visão, a interpretação/aplicação coloca-se como qual-
qual o direito se encontrou submetido nos países -de ciuil quer coisa de externa e náo já a fase de um procedimento
law', o ius concebido como iussum, o universo jurídico que in fieri; e o papel do intérprete/aplicador é reduzido obvia-
se exprime de modo acabado como universo de comandos' mente ao mínimo. Em um ordenamento com base rigida-
mente potestativa o intérprete/aplicador tem uma posição
3. Náo se trata de fazer exercícios lexicais; a desnatura- de substancial passividade com um papel meramente cog-
ordenâmentô noscitivo. O único sujeito legitimado a querer é o titular do
çáo é profunda. O direito não é colhido como
á" .oii.drde mas ântes como instrumento de poder, e pro- comando, e este querer é depositado no texto autoritário.
fundas sáo as conseqüências. E estamos na segunda conseQüência, que é igualmente
O comando, de fato, é o modo com o qual uma autori- de grande in-rportância. O comando traz consigo â preten-
dade manifesta a própria superioridade. No comando a co- sáo de ser obedecido, mas deve poder ser conhecido; não só
munidade dos associados coloca-se necessâriamente em isso, mas deve imobi[izar-se em um escrito pâra expulsar
um nível mais baixo, sem envolvimento algum: porquê o toda pretensão de inobservância.
comando é fruto da vontade do superior, a qual já é perfeita O comando tende inevitavelmente â se tornar ,eÍro, a
e completa no momento em que se manifesta ao exteriÔr' encerrâr-se em um pedaço de papel onde todos possam
Do que decorre a primeira conseqüência de grande re- lêlo e onde esteja a salvo de todas as transformações que
incidem no nível da experiência, num texto que seja o n.rá-
levo: aquilo que conta em um ordenamento de base potes-
ximo possível inelástico de tal modo a impedir âs repercus-
tâtiva é restringir a atençáo ao ato de vontade imperativa,
sóes clas turbulências externas; textualidade do moderno
discernir o seu ionteúdo, talvez o clareando graças à análise
direito continental europeu, bem simbolizacla pelo texto
de como e por quais motivos se formou. As colunas de Hér-
mais fechado e acabado que se possa iuraginar, qual seja o
cules desta atençáo, porém, sáo bem fixas, e colocam-se Código, que é a invenção dos modernos, da sua presunção,
em torno ao ato de manifestaçáo; aquém disso existe so- da sua espasmódica vontade de controlar a dimensão jtrrí-
mente uma vida histórica do comando na sociedade, que é dica.
absolutamente irrelevante. Porque de controle se trâtâ, e de controle muito rigoro-
Descendo â um assunto mais específico e mais signifi- so. A codificaçáo tende de fato a cobrir cadâ território dâ
cativo, nesta visáo o direito é uma realidade que está já experiência jurídica, sem deixar de lado aquelas relações
cotidianas entre os particulares no exercício da vida priva-
da sobre os quais a ordem burguesa vencedora quer coman-
GMNDE, Príncipio di LegaLità e diritto giurisprudetuziale: un'antino' dar e sobretudo aqueles institutos extremamente vitais da
mia? , em Polírica àel diitto , X)(YII (1 996) , p 469 ss. .

95
94
constituição tácita de uma sociedade burguesa que são a E de uma nerwra absolutista sem dúvida se trâta, por-
propriedade individual e o conrrato igualmente individual. que o sistema jurídico se torna fechado: afirmaçáo de.um
Não é sem significado que a primeira e mais exemplar obra rigido monismo jurídico com o desaparecimento das velhas
codificadora aquela francesa de Napoleão I tome o fontes tradicionais [costumes, jurisprudência prática, juris-
seu impulso em- I 804 exâtàmente a pârtir do Code - Ciuil, prudência teórica), primazia da lei no vértice de uma escala
regulaçâo de um direito civil que os monarcas âbsolutos do hierárquica e, em boa substânciâ, solidão da lei bem acima
ântigo regime tinham concretamente respeitado na sua das outras manifestaçôes já completamente desvitalizadas,
urna bimilienária de tecido consuetudinário. idealizaçáo âliás, mitificação de um legislador pensa-
-
do sem vícios e sem mácula, -
onipôtente e onisciente e por-
E o Código, todo código, é necessariamente muito mi-
nucioso, com uma previsão anâlítica de cada enquadramen- tânto incontestável.
to legal possível, com o desenho de cada instituto traçado Que se esteja tratando de absolutismo jurídico e de ab-
detalhadamente de modo a freqüentemente fornecerlhe solutismo fundado sobre um inatacável fundamento mítico
uma definiçáo e descer cada vez mais a ponto de fixar as o demonstra a extremâ dificuldade com a qual se consolí-
mais minuciosas ossâtrrrâs- dou na Europa continental o fecundo princípio de um con-
Falei muitas vezes de absolutismo jurídico para subli- trole da ação do legislador. Em um pequeno livro dedicado
nhar o interesse todo novo do poder político burguês sobre a assinalar os traços mitológicos da nossa cultura jurídica
o direitoe: o liberalismo econômico pretende controlar a moderna náo deixei de sublinharr I a pertinaz rejeiçáo e por-
dimensão jurídica para garantir plenamente os valores so- tanto a incrível tardeza com a qual o princípio se afirmou
bre os quais é fundada sua constituiÇáo não escrita, valores em uma França novecentista herdeira e defensora ainda
na metade do século vinte
-
do velho pÍojeto jacobino; um
de liberdade econômica que teriam encontrado apoio segu-
ro não sobre as àéclarations ainda entendidas como aéreas
- de tamanha crença (em ou-
projeto cujo objeto foi passível
conclamaçôes filosófico-políticasr0, mas nos artigos enclau- tras palavras: mitificado) a ponto de indentificar, pela de
surântes de um texto normativo. parte de um ilustre representante da gauche francesa, a ins-
tituição de um 'Conseil Constitutionnel' âté mesmo com
um 'coup d'état permanent', com umâ espécie de mina de-
g Comecei a disso falar em 1988, quando se iniciou em toda a Euro- flagradora do sacro edifício do Estado inaugurado com a
pa um grande rumor em vista do bicentenário de 1989 com uma prodi- tomada da Bastilhar2.
galidade geral de retórica apologéticâ. Cft. Epicedio per I'assolutismo Não estava errado François Mitterrand pois era dele
giuridico (dietro gli'Atti' diium convegno milanese e alhr ricerca di que se falâva duas linhas acimâ -
segni), agora em Assolutismo gíuridico e diritto prira,to, Milano Giuf- -: para uma construçáo
pensada e sabiamente projetâdâ como uma fortaleza inex-
frê, 1998. O meu itineráÍio de reflexão pode ser seguido lendo-se a
introdução colocada na coletânea ora citada: Ancora sull'assolutismo
giuridico (ossia: della ricchezza e della libertà delLo storico del diritto).
10 Como é, por exemplo, no art, l7 da 'Déclaration'de 1789, que tt Mitologie giurídiche della modernirà, cit. p. 75 ss.
afirma a inviolabilidade e a sacralidade do direito de propriedade. r2 F. MITTERRÀND, Le coup d'état perrnanent, Paris, Plon, 1964.

97
96
(
(
(r
pugnável pelo exterior, o princípio de um controle consti- rar todo o jurídico na vontade do legislador, de deter o pro-
tucional representa uma brecha que afeta proÍLndamente cesso de produção no momento de expressão da vontade e
aquelas estruturas; é sobretudo o castelo de crenças que é de murnificálo em um texto rígido, arrisca de desmentir a
sacudido, ou seja, aquele complexo harmônico de mitos sua humanidade, socialidade, politicidade, historicidade;
que tinham tornado indiscutíveis a suâ fundação e tinha arrisca portanto a ser artifício nesse sentido específico, não
desarmado psicologicamente os possíveis invasores. Aque- mais no sentido de realidade náo fenomênica.
le controle fazia precipitar terra abaixo do seu Olimpo o E é imediato um outro risco: o estranhamento das for-
legislador, todo legislador, e tornâva tudo discutível; em ças vitais circulantes nâ experiênciâ, forças em contínuo
outras palavras, o dessacralizava. devir e portanto intolerantes a qualquer imobilizaçáo que
Mas tornemos ao castelo normativo muito bem murado seja. Quis-se controlar a dimensão jurídica, e se a deixou
graças ao cimento revolucionário jacobino; em vista da sua bem controlável fixando a sua origem no alto e a sua conso-
construÇão assinalamos até agora duas conseqüências gra- lidação na carapâça dura de um texto, mâs se â separou
ves, a indiferença pelo momento interpretativo/aplicativo
muito freqiientemente do fluxo contínuo da sociedade.
e a rigorosa textualidade, duas pedras angulares do edifício.
Quercrnos adicionar uma terceirâ e uma quârr.a, que po 4. Impóe-se um resgate para o direito; um resgate, to-
dem ser consideradas todavia dois aspectos da uma só con-
davia, que se poderá conseguir plenamente somente se se
seqüência. Esse direito cunhado dessa forma pecava pela
artificialidade e se carâcterizâva pelo seu substancial estra- enrobustecer a nossa consciênciâ críticâ e, em vista desse
nhamento ao movimento e ao devir social. enrobustecimento, consigâmos colocarmo-nos num obser-
Artificialidade. É claro que o direito, todo o direito, é vatório liberado de crenças indiscutíveis e das liturgias cul-
artifício porque criaçâo dos homens para os homens, por- tuÍâis que desembocam naqueles lugarês cornuns que são o
que fruto da história e certamente náo escrito em umâ na- pântano asfixiante de todo homem de cultura. Em outras
turezâ cósmica pré-humana. Tivemos tambóm, no longo palavras e tornâmos às linhas iniciais e âo título clessa
caminho da reflexão jurídica e o historiador sabe bem
-
conferência se se fizer aquele banho epistemológico
disso -
tentativas de ler tramas jurídicas na própria natu- que o jurista-,mais desperto sem dúvida começou a fazer,
-,
reza fenomênica, mas devem ser consideradas nem mais mas que deve se estender à sonolenta maioria silenciosa
nem menos como resultado da ingenuidade -e da imatu- ainda imersa numa cômoda preguiça.
ridade cultural- dos generosos proponentes. O direito per- E se deverá partir da conclusáo assinalada com firmeza
tence, ao contrário, à história; suas mârcâs são a humanida- nas páginas precedentes: que a ligaçáo necessária entre po-
de, a socialidade, a politicidade entendida lato sensu, a his- der/direito, que uma visão potestativâ do direito é histori-
toricidade. Quando porém aqui se assinala como conse- camente relativa, é fruto da estratégia do arranjo sócio-po-
qüência grave a artificiâlidade, pretende-se denunciar um lítico operante em um certo clima histórico, e que o dirci-
castelo de preceitos técnicos que, em vista de seu entrin- to, para além dos tantos empobrecimentos ocasionais que o
cheiramento de comandos, em face do empenho de encer- historiador náo tem dificuldade em colher e enumerar, é na

98 99
sua.essência algumâ coisa de bem diverso de um expedien- condicionante, inclusive o assim chamado Estado democrá-
te do poder, de um instrumento de poder. tico-parlamentar.
E julgamos que seja necessário voltar a nos prendermos Ó deslocamento do eixo do Estado para a socíedade
à. salutar intuição de quem, no curso do séculó )O(, soube não constitui um desmentido de que o Estado é sempre o
destacar o dtreito do abraço constringente do Estado e o normal produtor do direito (mas com pâpel decrescente
recolocou no seio materno da sociedàde, pois dela é ex- em uma realidade histórica sempre mâis aberta à globaliza-
pressão fiel e completa. O direito pertence rlaturalmente à
çáo), mas sim um resgate para o direito de todas as forçâs
sociedade, porque é uma dimensão insuprimível com a ág.nt"r .ru sociedade.tm ,*a aula inaugural florentina de
qual a sociedade vive a sua história; diria mais: como di- uno. atrás eu quis colocar-me ao lado do homem
mensão_ ordenadoÍa, o direito se propõe como salvação his- "l-gun,
cúnum com suas Peremptórias desconfiançâs com relação
tórica da sociedade, a qual se exprime em civilização, em ao direito, declarando explicitamente que com ele concor-
tantas diversas fases das civilizaçôes históricas, ,ã-.r,t. daval3: é que aos seus olhos o direito se apresentâva sempre
porque_ é também jurídica, somente porque pode contar sob as vesies potestâtivâ e sancionatóÍia do juiz, do oficial
com a força historicamente vencedora do àireiio. de polícia, do exator de um imposto; é que ele sempre se
O leitor compreende logo que essa abordagem é exata_ dava conta da existência do direito somente no momento
mente a oposta daquela da genuína modernidade na Euro- da violaçáo, isto é, no seu muito vistoso momento patológi-
pa continental: ali o esforço de controle leva a condensar, a .o, e.,qr]arto era difícil percebêlo na fisiologia social, n-o
tormalizar, a separar jas e facta, a erguer umâ grande mu- desenvàlvi-ento da sua vida cotidiana, embora incrustada
ralha entre jus e Íacta entregando as únicas chaús das por_ de manhã à hoite'por uma infinidade de atos jurídicos'
tas nas mãos dos detentores do poder, elevados à condiçáo A nossa cultura passada criou divisões muito espessas
de representantes de uma vontade geral; aqui se insiste so- entre o social e o jurídico, deixando de lado não somente o
bra a onticidade do direito para toãa a sociedade, onde o honrem comum mas também o jurista teórico e prático, em
difícil vocábulo de molde grego, Ionge de ser uma pompa relaçáo ao sentido do pertencimento do segundo a pura e
sapiencial, é mais a palavra expressiva a significar iu" .ru_ simples fisiologia do primeiro. E necessário um resgate, um
"
turalidade, a sua coessencialidade; e dado que a sociedade resgate que não pode mais esperarla. E nem se tema a dis-
contrário daquela criatura muito simples que é o Es_
-.ao
tado moderno é estruturalmente pluraÍ e complexa, o
direito que lhe -é especular nao podeiá deixar de iegistrar
essa qualidade,_não poderá se propor senáo como piural e
tz Cft. Scienza giuriàica e legislazione ne\La esperienza attuale deL
diritto, q\te o juÍistâ pode ler hoie em Rivista di diritto civile, XLIII
complexo. Onde cháme-se a atenção pluralidade
- o registro fiele
(r ee7)
complexidade não-significam caos mas antes i,1 É'tolrr" esse resgate que se [unda uma minha -recêm publicada -
da diversidade tentâtivâ de iÍriciaçâo à compreensâo do direito Prima lezione di dirit'
rnantém nas suâs- diversidade de valores
-
que a s'ociedade
múltiplas dobras, ao contrário do Estado to, Bart, Latetz ,2003. IN.T.: Ediçáo brasileira: GROSSI, Paolo Pri-
que como aparato de poder meiralição sobre díreito.TÍad. Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janei-
proclama um modelo
- - ro: forense, 2006].

100 t0l
persão dg jurídico no indistinto social e sua perda de iden- sociâl, uma incisividade determinada pelas suas próprias
tidade. E c[aro que nem todo social é jurídico, e que o se- forças interiores.
gundo é um vigoroso filtro do primeiro, manifestando-se só Efetividade mais do que validade, tendo como resulta-
onde uma regra social, conectando-se a valores precisos, do imediato o abandono do velho e inadequado monisrno
recebe âdesáo e observância, realizando na história o gran- jurídico pârâ uma abertura substancialmente pluralista, já
de mistério do direito. que se é unitário e compacto o reino do uáliào, heterogê-
A civilizaçáo jurídica continentâl européiâ do ápice da neo, plural, complexo é, ao contrário, o rerno do et'etiuo.
modernidade freqüentemente transformou o filtro em Nem parece mais uma blasfêmia apontar na República [ta-
uma muralha, como se acenava mais acima, e realizou-se liana como uma realidade ampla e complexa na qual o Es-
muitas vezes uma separação entre o social e o jurídico, com tado se propõe como simples elementors, nem nos pârece
um recíproco empobrecimento: o primeiro abandonado às mais lirismo político-jurídico o desenho aberto entregue
lutas desordenadas da cotidianidade episódica, o segundo pela sapiência previdente clos nossos constituinres nos pri-
âo esgotâmento próprio de uma câsca destacada da linfa meiros artigos da nossa carta constitucionalr6.
subjacente. O formalismo legalista, ou seja/ o direito cons-
truído como dimensáo formal fundada não sobre fatos mas
sobre a lei como apropriadoÍa e intérprete única dos fatos, l5 Assim, por exemplo, no art. I l4 da Constituição italianâ no texto
transformou o terreno jurídico em um recinto fechado. deliberado em 2001, onde se constâta ser a "República constituídâ por
No seu interior, um obstaculizante princípio informa- Comunes, por Províircias, por Cidades metropoiitanas, por Regióes e
dor: o Estado é somente o poder autorizado a transformar pelo Estado", com uma ênfase ainda insuficiente porquê ainda carente
daquela total abertura à complexidade do social que se poderia desejar,
em jurídica a regra social em seu estado bruto/ e os valores
mas que é seguÍamente um passo adiânte na redescoberta da complexi-
dos quais este é portâdor determinam a ordem jurídica nas dade republicana.
suas escolhas; portanto, é um só o cânone de medição da l6 Desenho aberto, sem dúvida, mas que poderia ter sido expresso de
juridicidade, e é aquele da validade, ou seja, claquela cor- moclo mais evidcnte se fosse acolhida a'ordem do clia'apresentada em
respondência de cada ato ao modelo fornecido pelo Estado 9 de setembro de 1946 por Giuseppe Dossetti no seio da Primeira
produ tor de normas. Sub-comissáo da Assembléiâ Constituinte, uma'orclem do diâ' remeti-
Hoje, adverte-se sobre a decrepitude deste castelo de da e depois jamais discutida porque encontrava substancialmente surda
e hostil a esmagadora maioÍia. A'ordem do dia'propunha à subcomis-
outros tempos, absolutamente inadequado com o seu fosso
são reconhecer "â um tempo a necessária socialidade de todas as pes-
isolador, a sua ponte levadiça, as murâlhas interrompidas soas, as quais sáo destinaclas a completarem-se e aperfeiçoarem-se lnr!-
por mínimas aberturas no alto. Deixando de lado as ima- tuamente mediante uma Íecíproca solidariedade econômica e espiri-
gens evocadoras, não se pode mais eximir da verificação de tuâl: ântes de tudo em várias comunidades intermediáriâs dispostâs
que o mundo inteiro corre em umâ direção que já náo é secrrn<lo uma natural graduaçáo (comunidades familiares, territôrlâis,
mais aquela do encerramento nâ couraça da validade, mas profissionâis, religiosas, etc.) e, entâo, para tudo aquilo qr.re acluelas
de uma valorizaçáo do oposto princípio da efetividade; comunidades náo bastem, no Estado (La Constituzione della llepubbli-
ca nel Lauori preparatorí àella Assemblea Costituente, Roma, Cámlra
veja-se a carga vital de certos fatos e sua incisividade no
dos Deputados, 1970, VI, 3231.

r02 103

BIILIFJ}hç úTNíT":ÂL
pl lclrs
5. Salutar para a renovação epistemológica do jurista sua produção, mas deve ampliar-se na direção dos fatos su-
italiano é definitivamente tomar consciência do caráter or- cessivos e da vida do texto noÍmâtivo na sociedade.
denamental do direito. Também aqui náo se trata de uma Nessa visão, o texto, em razão de sua abstraçáo, traz em
simples troca lexical, mas na renovação de um ideário que si umâ normatividade potencial que espera, para comple-
provoca uma visão renovada. tar-se, estender-se e entrelaçar-se com os fatos da vida dos
Como escrevi outras vezeslT, enfrentar a noção de orde- destinatários da norma. E emerge em toda a sua vitalidade
nâmento tem quase o sentido de uma revolução copernica- jurídica aquele momento interpretativo/aplicativo, que a
na para o ju.ristâ continental europeu, porque significa ab- dogmáticâ constitucional burguesa havia expungido do
dicar de uma visão verticalistâ do direito centrada sobre a processo formativo do direito e que, ao contrário, parece
vontade do produtor da norma e sobre seu ato de produçáo ser o verdadeiro momento de aperfeiçoamento, arremâte
para valorizar a realidade objetiva que a normâ pretende que aperfeiçoa o procedimento, mas aquilo que mais
ordenar e que pode eficazmente ordenar somente se leva conta -
no interior do próprio procedimento: a norma é
em conta as exigências e instâncias provenientes que vêm realmente- de tal natureza que, deixada à própria generali-
de baixo, pois em baixo são circulantes. Ordem, ordena- dade, torna-se graças à interpretaçáo/aplicaÇão regra da
mento, é noçáo salvadora exatamente poÍ esse seu inelimi- vida.
nável caráter complexo, que une em si a dimensáo subjeti- Àlguém dirá: estão arrombando poftâs abertas; do di-
va do ordenador e da atividade ordenante e aquela objetiva reito como ordenamento se fala freqüentemente, a noçáo
de uma estrutura real que se coloca como limite, que é lida circula, e náo estamos distantes de quando celebramos
talvez com ênfase geral -
o centenário da publicaçáo do
e entendida, que não pode ser violentada pelo arbítrio do -
ordenador; e a carga de normatividade famoso livrinho de Santi Romanol8; o mesmo se pode dizer
ínsita a cada regra
vê aqui atenuado o caráter -
jurídica daquela renovaçáo profunda nâ concepçáo da relação entre
meramente potesta-
tivo, com- a possibilidade de atingir o resultado de uma ob-
o texto normâtivo e intérprete que passa sob o nome de
hermenêutica jurÍdica, tanto mais que hoje, graças à bene-
( servância fundada mais sobre a persuasão daquele sobre
mérita açáo do saudoso Luigi Mengonils, a obra basilar de
quem incidem os efeitos da norma que sobre a obediência
( Hans Georg Gadamer, eximiamente traduzida em língua
passiva.
( italianazo, circula suficientemente na comunidade dos ju-
Mas é salvadora também sob outro aspecto. Precisa- ristas.
a mente por essa sua dimensão obletiva, o horizonte não
( pode mais se limitar ao texto da norma, à vontade que o
produtor pretendeu nelá'colocar no momento mágiCo de l8 Trata-se do livro de Santi Romano, de ediçáo original em 1918:
(
L'ordinrrnsn16 giyyidíco. Firenze: Sansoni, 1946 [N. T.].
( ts De Mengoni vejam-se sobretudo os ensaios recolhidos eml. Erme-
( neutica e dogmatica giuridica, Milano, Giuffrê, 1996.
t ,- Cfr. Olrre le míto\ogie gicidíche àella modernità, agora e m Miro- zo A grande síntese gâdameriana Veràade e Métoào pôde gozar de
( logi, y, un,liche àrlla tnodenirà, crt.
uma tradução itâliana muito cuidadosa da parte do filósofo Gianni Vat-
(
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(.'
105

(
(
De verdacleiro há o scguintc: cxistcm já mnitos juristrrs Dircito e jurisperitos sempre (e ciesclc sernpre) cnfren
italianos que se sentem no dever de citar Romano e tarn- taram âs mutâçtões sócio-econôm icas, llorque a natural telt-
bérn Gadarner; mas é muito fundada a dÍrvida sobre o grall rlincia a sc csrrbilizarcrrr se (hucavâ ct.rrrr a iprrrlrnr.rrtr r,,
de efetivo conhecimento que sustenta essas citaçóes. L.rfc- turâl tendência a seguir o devir cla socieclaãc para pocler
lizmente, assemelham-se desafortunadamente ào cosméti- colrvcniente mente ordená-la; mas, quando, corno hojc, ls
co viscoso que uma vclha senhora coloca sobrc seu vrrlto rnutações renunciarn à Icntidão típica clos arranjos sírcio
cnrugado c que tlm pouco de chuva arrisca a dissolver', mos- políticos estáticos e sc transÍbrmam em urnil dinârnica qrre
tranclo rrma imagem que ficou vellra e com sulcos por câusâ se renovà rnuito rapi<lamente em tempos brcves; quanclo,
das prriprias rugas. como hoje, as rnudanças na vida social e econômica sao
Malgrado âs citâçóes ornamentais, a psicoiogia perrla- :rcornpanhaclas da prodigiosa rcnovação das técnicas enr
ncccrr imutável, ancoracla a vclhos esqlremâs, aqueles es- contínuâ e quase cotidianir superação, com soluções pcr-
tluemas que constitucm o providcncial repoltso para a llro turb:rdoras para aclrrela rnesma vic{a, comanclos c textoi sáo
verbial preguiça intelectual do jurista. A relativa defcsr se- trituraclos por un)â nrobilidacle que não sc encontra no l)as
sâdo remoto e próximo, cont escolhas imperiosas po, r,.,1,'-
gunclo r qual se cliz que a velha paisagem alicerçada apcnas
sob as cluas colunâs do Estado c cla lci era freqiientenrente çóes flexíveis e clisponíveis, corn a rejeição de toda csLr-rrtri
ra cnrijecedora. O castelo jurídico c1a modernjcladc nos
convincentc porque simples, clarâ, cert:r, enquânto â nova
âparece/ se não como um câstelo dc areia, pelo nrenos
paisagem ordenamental, justamente porque complexa, jrrs-
corno aquelas construçôes de barro clue são lentanrcntc
tanrcnte porque conscntc um tumultuac{o irromper da plu-
erodidas pela chuva que nelas batem.
ralidade dos fatos, impõe uma difícil c trabâlhosâ âtividâde Ontem, foi o triunfo <la política, mas de uma política
interpretetivâ, bem dessen.relhante à elementâr exegese de corno excrcício, tór-nica, teorização do poder, con{irndirla c
um texto. resolvida naquele forrridável aparato potcstativtt cpc ó o
Estado, ao qual vinha desafortunadarnente reconhêciclo o
6. Mas não são os juristâs â teorizâr por sohrc os fatos r. nronopólio do exercício da política. O rcsrrltado lbi o clesa
lalvez contra os Íàtos, irnponclo-lhes as próprias teoliza, pârccinrento clas sociedades intcrnrediáriâs como nranjí'es
ções. São mals os Íàtos que fervem no atual climâ hlstórico, taçõcs do nattrral e rspontânco exercício cla política c[r ho,
pretenrlendo a superaçiro dos velhos simplisnros. Ilstatali- nrern social, unta forçada contrâção destâ c ltm estatalisrno
clade do direito, Iegalismo rigoroso, visãô potcstativa e, exasperado conl lrn espaço geográfico fragrnentado enr
portanto, hicrarquia das fontes assenrelham-se a urra canri- t..rritórios de Íin id os segundo as rigidrs pr.,1,-(ões .l- 1.,,,dcr .
Hoje, é o triunfo c1a economiâ e cla tecnologia, nuri paico
sa cle força pâra ulr-L corpo em crescinento transbordante.
nrundial ent qrre campeiam protagonistas antcs descotrhc-
, ido., tr'dos c\lretnf,rlcnte rtrtjveis, t,,dos Irr$i,lir,.;t , l rr;.,
delinições clc confrns, tr:dos quase cntidades inrpalp:'rve is e
tinro (lUilano, Bornpiani, 2000); deve se porérr aduzir qLle não se trâ- mutantes. Para os fins dcsta conferência nos basta aditar
tâvâ dâ primeira tradução em língua italiana. dois deles.

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(
(
(
O primeiro é sem dúvida o mercado, o complexo de bre propriedade23, onde se constata com lucidez do seu pa-
( operadores e de instrumentos econômicos, que se póe já pel náo mais solitário e do corte já inteiramente ocoÍÍido
( como dimensão autônoma da realidade em geral. Quando com a dimensáo ética do sujeito, e se a examina no coraçáo
( eu, há cinqüenta anos atrás, manejava como estudante ini- do mercado e no centro de mecanismos econômicos que
ciante do curso de direito os livros institucionais de direito em boa parte já a desautorizaram. E tem razão Mâttei de
( privado, podia-se ainda encontrar inúteis traços da insula surpreendê1a, com linguagem, observatório e aproximaçáo
( in flumine nata. com os derivados problemas hiperteóricos novíssimos,. como "a resultante institucional de uma com-
de pertencimento, mas certamente náo se fazia menção do petiçáo entÍe mercado e hierarquia"za, já que mercado e
mercado senão ocasionalmente e sempre com um adjetivo hierarquia sáo as duâs realidâdes âlternativas que estão a
específico (mobiliário, financeiro, e assim por diante) que frente de todo piocesso produtivo.
-de
legitimasse nas mãos dos juristas o uso de uma noçáo Este fugaz aceno à hierarquia nos intioduz a falar breve-
validade absolutamente' econômica e poÍtânto para deixá- mente do segundo protagonista: a rede. Vocabuiário e ideá-
los sem lamentos à atenção dos economistas. Noi'manuais' rio absolutamente estranhos à tradição jurídica, mas dentro
hoje circulantes, pelo menos nos mais sensíveis à evoluçáo de uma muito bem definida derivaçáo da sociologia e da
atual, dele se fala largamente e tâmbém sem adjetivaçõis. ciência política. E são exatamente sociólogos e cientistas
Como que significando que atrás de cada atividade econô- po1íticos que falaÍam disso em primeiro lugar, seguidos
mica existe um planeta econômico com instâncias próprias hoje por um número sempre mais abundante de juristas
e regras próprias, uma ordem autônoma, que náo deseja âtentos às atuais transformações2s.
codificação, âo contráÍio, dele tem aversão, mercê de sãu
caráter extremamente dinâmico e plástico. O conceito de rede vai lentamente desautorizando o de
E os civilistas falam de mercado até o ponto de trans- hierarquia como momento central do univeÍso jurídico,
formá-lo em lugar comum, como conviôtamente o faz substituindo uma realidade piramidal feita de comandan-
Irtizr, co:no se faz com algum ceticismo no livro que acabou tes e comandados porquê calcada sobre comando (e, por-
de me chegar da França de uma aluna de Lyon-Caen, Mar- tanto, inervada de inelimináveis relações hierárquicas) por
the Torre-Schaub22. E o mercado se transfoima no protago- uma realidade estruturalmente diferente dominada por in-
nista na reconstrução dos institutos conduzida segundo os terconexões entre vários sujeitos e posições precisamen-
cânones da análise econômica: um exemplo exíÀio tive-
-
mos recentemente na Itália com o livro de Ugo Mattei so-
23 U. MATTEI, 1 diritti reali - I - La proprietà,Torino, Utet, 2001.
2l Ibidem, p.28.
zs Um dos primeiros experimentos inteÍessantes em níyel inclusive
zt Natalino Irti disso se ocupou freqüentemente, mas dele convérn jurídico foi, na Itália, aquele da coletÀnea L'Europa àelb reti, otganiza-
sobretuclo ver a síntese contida em: L'ordite giurídico del nercato, do por A. Predieri e M. Morisi, Turim, Giappichelli, 2001. Hoje, dis-
Bari, Laterza, 1998. póe-se de uma tentativa de síntese de forte dimensâo teórica: F. OST -
22 M. 'I'ORRE-SCHAUB, Essai sur la constructian juridique de la M. VAN DE KXRCHOYE, De la piramide au réseau? Pour une théorie
catégorie de marché, Paris, L. G. D. J_,2002.
àialectique du droir, Bruxelas, FUSL, 2002.

10il
109
(
(

te a rede onde náo emerge uma graduação hierárquica, I


- (e entrelaçamento) de recíprocos condiciona-
mas um jogo
o fiz para. conquistar um público formado em
boa parte por t:
mentos e integrações, que se desenvolve não em projeções Jurzes, aclvogados, notários ou de jovens aspirantes
nobres profissóes. Foi a contemplação objeiiva
a essas (
geográficas restritâs e fracionadas como eram os territórios de uma vis_
das velhas entidâdes estatais mas em áreas sempre mais tosa viragem histórica, tão maii viitosa para mim orre _ (
graças ao.mister que desempenho _
largas e abertas, tendencialmente mundiais. esiava a vont;de de {
compará-la com o precedente caminho estrelado
de fechos t
e encerramentos.
7. Paisagem jurídica náo simples e nem mesmo clara e
certa, com uma visível prevalência da dimensáo econômica O papel do juiz se agigantou; é de facil consrâtacão oue (
sobre âquela política stricto sensz, com velhos atores prota- instituros nodais do viver civil, fora das difi.rldrd";:;rà;;
por um legislador muito lento e também
gonistas sempre mais marginalizados ou limitados nas suâs
tiveram e estão tendo uma formação -uito
à..;;;,;;
açóes: é exemplar a parábola descendente do Estado, que iudicial íe tambem
ontem erâ o titulâr indiscutível de um quase monopólio doutrinal): o exemplo a. r"rpon.àbttiJJ;;,à, ;;;ih;
absoluto e que hoje vê a própria esfera de ação restringir-se rlel das atuais p-erturbações com as suas fronteiras
extrema_
bastante, sempre mais disputada por âqueles protagonistas mente móveis77, se nos âpresenta como realmente
emble_
emergentes para quem é ínsito o âtual movimento rapidís- mâtrco. b a mesma civilística italiana mais sensível
se inler_
simo e particularmente a sua orientaçáo globalizadora. roga há tempos sobre o valor do ,pr...d.nt.,,
A marginalizaçáo tem repercussóes incisivas: a com- oo com desenvoltura uma mentalidade peculiar
i.r;;;i;;
peitencen_
pressáo da esfera da atuaçáo estatal é libertadora por outras te a um,planeta tido âté pouco tempo atrás
como distante
forças que a conjunçáo vinculante entre formalismo e lega- e estrânho como o common lau/8. E,
se nos anos quarenta e
lismo tinha no passado reduzido e mantido acorrentado. A
paisâgem, como se dizia algumas linhas acima, perdeu em
simplicidade e certeza, mas ganhou em expressividade; ex-
prime toda a riqueza da ordem jurídica e não apenas aquela zz.
-Apropriamo-nos aqui do título de um ensaio de Francesco GAL_
G ANO, Le mobili frortiere del danno
porção emersa em funçáo do direito oficial. ingiusto, ii C""rr"r:r-r- i^ii"rl,
r (ls86l "
Exatamente há um ano atrás, nessa mesma Sa[a Magna 28 Uma reflexão similar_é reproduzid a no volume: La giurisprudenza
onde hoje nos encontramos reunidos, tive a honra de ser per ma1síme e il ualore del preced.ente
cot pq,rticolarp ,iirrrao oiio- ,"r.
chamado a proferir, junto com Giuliano Vassali, a liçáo ponsabi.lità ciuile, organizado por p;à;r;:ô;;;
G. Visintini, ;d;;
inaugural para o início das atividades da "Escola de especia- Pârll(ularmente relevânte porque se trâta da reflexáo de um pnrnn rle
lizaçáo nas profissões legais" do Ateneu Florentino. Naque- clvrhstas e promovida por uma cultora
do direito civil, a. oor,"'ri
la ocasião eu pensei ter sublinhado que o atual momento que,se move no campo jurídico italiano
mais Iiqado, ,-, "'.*
revela ao observador âtento uma revanche da praxe26; náo flgroamente legalista e codicista. particularmentã "a,,.i_i^
r"laurnt" o.rr.,,,"',1_
sume como objero privilegiado a responsabilidade
ci"tl ;";.;i;";;;
de do juiz e a liberdade dã doutri"rá"4;rà;;;;;;;;id;.pl:_
pria carga vital para a evoluçáo de um
26 Nâ supracitada aula inaugural: Il diitto tra noma e applicazione. insiituto assim im.rr"
ll ruolo del ghrista neL'attuale società itdlidnd.
cidade. E de se ler com proveito o pr.fn.io
a. ";li;;i.
Ciorrnn;V;;ffi;;:
'- -- -" ""'' Y"r
esclarece bem as motivações da feliz iniciativa.

110
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(
(
(
( gência formal, ainda se em claro contrâste com o respiro
cinqüenta, eram consideradas bizarrices por um grande ho- aberto pela Constituição de 1947, pode todavia oferecer
( mem as insistências de um comercialista como Ascarelli uma oportunidade a qualquer atual crente das mitologias
( sobre uma ampliação da noçáo de fonte até a nela com- passadas.
( preender náo só os juízes e dos homens de ciência mas até Somos, ao contráÍio, todos chamados â construir um
mesmo os mesmos homens de negócio2e, toda a atual dis- novo edifício, tomando como pedra angular aquela verdade
(
cussão sobre globalização jurídica se reduz a constatar que elementar pisoteada e ocultada nos últimos duzentos ânos,
( os canais de escoamento do direito sáo plurais e que, ao segundo o qual o referente do direito não está mais no Es-
( lado do canal maior do direito do Estado, existem canais tado mas na sociedade. E um elementar mas vital desloca-
privados cujos protagonistas sáo os homens de negócios mento de nossa orientaçáo e da nossa direçâo de marcha,
(
com âs suas invençóes de mecanismos técnicos aprovados com a possibilidade de realizar alguns resgates os quais ace-
( ao vivo pela praxe e mais convenientes a um comércio na- namos nas páginas precedentes e dos quais temos absoluta
( vegante em nível mundial sobre os cavalos alados das con- necessidade.
( quistas info-teleiráticas.30
A complexidade da atual paisagem jurídica obriga o ju- 8. Se não tardamos a opeÍar rapidamente estes resgâ-
( rista a uma nova pontualização e a novos instrumentos de tes, podem ser trazidos alguns ensinamentos muito fecun-
( observação. Ele é portador de um saber encarnado, pode se dos a ponto de valer como bússola eficaz para fazer-nos
( peÍmitiÍ até de filosofar sobre o assunto, mas não pode-se dobrar com segurança o Cabo Horn no qual nos encontra-
permitir ao luxo de arcaísmos que obstaculizem a contínuâ mos e finalmente poder transitâr de um oceano a outro.
( encarnaçáo. A pontualizaçáo faz hoje emergir cruamente a O primeiro, ao mesmo tempo elementar e fundamen-
( fragmentação e a multiplicação das fontes de produção do tal, é a aquisiçáo de uma consciência plena de que o direito
( direito, fazendo flutuar no vazio o conteúdo extremamente âtinge umâ realidade submersa de valores históricos, que
( fascista do ârt. 12 das disposições preliminares ao código
suas raízes encontram nutriçáo insubstituível nesse estrâto
civil com seus fechos estatalistas3l, cuja anti-histórica vi-
( escondido.
É uma percepçáo que temos de modo imediato e inten-
(
29 Seja-me consentido remeter àquilo que sobre o assunto escrevi há so naquele terreno jurídico fronteiriço que comumente
( alguns anos, refletindo sobre a mensagem ascaÍelliana Le aporie dell'- chamamos 'direito constitucional', um conjunto harmôni-
( assolutismo giuridico (ripensare, oggi, La lezione metodologica di Tullío co não mais de comandos, mâs antes de princípios e regras
Ascarelli) , agora em Assolutismo giuridico e dbitto privato , cit. que, mergulhando nos valores de uma civilização histórica
( 30 Esforcei-me em oferecer.algumas definiçóes na supracitada confe- e exprimindo-os, confia a sua indiscutível,normatividade a
( rência sobre CLobalizzazíone, diritto, scienza giuridica,
3t Como é bem sabido, o 'caput'do art. 3o contido nas disposiçóes
( preliminares ao código liberal de 1865, quando fala de 'princípios gerais
( de direito'tem dicçáo tão vaga â ponto de consentir - segundo alguns clelineamentos dados pelo regime autoritário, fala de'princípios gerais
escritores - que ali se compreenda até mesmo o direito natulal; o art. do ordenamento jurídico do Estado'.
( l2 das disposiçôes preliminares ao código de 1942, ressentindo-se dos
( ll3
( 2

(
(
urna observânciâ carâcterizada mais por unl foÍtc cornpo- lisrro lcgalista aparecia em toda a srra dramaticidaclc corno
nente de adesão do que de obediência passiva. E a Corte uma escolha suicida.
Constitucional é a dobradiça entre a textualidade normati- E, de Íàto, quem quis, conr aclmirável cocrôncia, caval-
va clas leis orclinárias e acluele mundo de valores herdlclos gâr até o firn chcgou a posiçóes declaradamente niilistas. E
qllc nem mesmo o legislacior pode violar: o seu juízo é ântes
excmplar, a esse propósito, o itinerário do civilista Natali,
dc trrdo alcrição da sua preservação.
no Irti, urn colega com o qual tive desde longa data Lrma
Mas a fácil percepção no campo constitucional deve se
farniliarirladc contínua nunca turbada pela Íirnre contÍapo-
estender a cada ramo do direito, ainda que seja menos fácil
sição diâlética que senlpre moveu um com reJação ao,-ru-
vislrrmbrar essas ncrvurâs vitais sepultas sob a ató necessá-
r-ia Íêrragen'r das técnicas ou sob a até necessária :rrmaçáo
tro. Ele constantementc inspirou-se no Íbrmalismo legalis
formal. tâ, que o levou há algurn tentpo âtrás propor aos juristas do
E passemos logo a um segundo ensinamento: se o clirei- início dos ânos oitenta um renovaclo rnodelo exegético,
to, como dirnensãro order.radora da sociedacle, não poile re rrma espécic de neo-exegese32. Depois, vcio uma cresccntc
nunciar a um seu arranjo formal, isso deve sempÍe nutrií-sc insatisfação até a chegada de um totâl niilismorr. Convórn
de valores legitimantes, depondo a perniciosa presr:nção de que o sigamos no seu caminho intelectual clando a ele nres-
un-ra autolegitirnação como o único fundamento de um tex- mo a palavra.
to normativo autorizado; se visto de outro modo, a constru- Há dois anos atrás, dialogando com o filósolo Emanueie
ção é sólida como uma palafita e é destinada a não se sus- Severino, Irti se sai com uma frase de uma franqueza desar-
tentar diânte do desgaste proveniente clos fatos históricos. mante: "o direito positivo desdobrou-se por inteiro nos
O jurista, sobretudo o civilista, cavou num passado re- proceclimentos, que, como recipientes vazios, são capazes
cente um projeto parecido, todo tomado pela miragcm dc de acolher qualquer conteúdo. A validade náo desccnde
uma ciência pura e livrc das muitas escórias da carnalidade mais de um conteúdo que sustente e justifique a norrtâ,
histórica. Para obter essa pretensâ pureza, contentâvil-se mas da observância dos procedirnentos próprios de cada
em ancorâr os próprios pináculos formais em uma realida- rrrn clos ordenamentos "3a. O que faz comentâr com um
de virtLral dc textos desde que se evitasse o contato irrpuro excmplo já evocacio mais acima: diante cla lei italiana de 38
com os fatos: o direito sc propunha a eles como 1lmâ srlprâ- sobre â tutela da raça ariana, a única preocupação do jurista
ordenação, incólume ao desgaste do devir.
Esse jurista era, porém, chamaclo logo a prestar contas
com lrm clima histórico que pâra ele era extremamente
32 La proposta delLa neo-esegesi (a modo ài prefaziow), in -Scrole e
alarmante: uma mudança sócio-econômica tão rápida a
JigutcJe! ditittoeiuile, Mrlano, Uirrlfrê, 1982(rcerlirrrl.rdr.rro,lo.r'..
ponto clc ressecâr e esterilizar toda dimensão formal; a tônomo tanrbém em Ciustizia ciuiLe, XXXI ( i 982))
n.rarginalização clo Estado; um acúmulo de leis no mais das 33 N. IRTI, Nichilisno e metoào giuridico, in Rir;isra TrinestraLe di
vezcs improvisaclas, parciais, obscuras, atrasaclas, tendo sob Diritto e Procedura Cbile, LYI (2002), p. 1 I 59 ss..
as costas urn lcgislador despreparado e unilateral. O lrorma- 31 N. IRTI I. SEVERINO, Dialogo su diritto e recrica, Bari, l.arcr-
za, 2001, pp. 7-8.

I l1
5
(
(
(
tem que ser procedimental, ou seja, ele deve ser pago uni- vadida por um vento forte, procurava objetos para conter
( camente pela observância correta dos procedimentos pre- os papéis ao invés de náo providenciar o único remédio que
( vistos. O conteúdo parece não contâr, e a sociedade italiana resolveria verdadeiramente, que seriâ o fechamento da ja-
( de 1938, aí incluídos os muitos cidadão israelitas, não foi nelâ.
( tocada pelas iniqüidades introduzidas na norma por um le- O vento forte e demolidor pode ser eliminado, ou ao
gislador aberrante. menos grandemente atenuado, se se tiveÍ o bom-senso de
(
Ainda: "o valor, o valor para o direito, é determinado olhar além do direito formal, de não se contentaÍ com o sua
( manifestação em formas e normas, de buscar aquelas raízes
pelos critérios procedimentais... valor é aquele da validade
procedimental"3s. Discurso claro e firme, que trâzia em si que, sempre, quer se queira ou náo, atingem o estrato es-
a coragem da sinceridade; discurso que fazia a funçáo de condido dos valores.
(
premissa às conclusões do último Irti, amargo contempla- O historiador, constatando que o mito da pureza é todo
(. ele somente moderno (e num bem definido espaço geográ-
dor de uma ordem jurídica âos seus olhos reduzida Àic er
( fico do moderno), olhando aos fortes desmentidos ofereci-
nunc a úma miserável crisálida ressecâda: "as normas vie-
dos pela experiência medieval e pelo common law, sente-se
( ram do exclusivo e total domínio da vontade humana..., ao
na obrigação de declarar a carnalidade do direito, imerso na
( par de qualquer bem de mercado, são 'produzidas': vêm do
vida, nascente na própria vidâ, dirigido à vida.
nada e podem a ele voltar a qualquer momento. A força
( Irti, na página citada, analisando o presente à luz da sua
que as 'produz', ou seja, lhes antes chama ou refuta, as
( visão, sai com essa afirmação desolante: "tudo aquilo que
constrói e as destrói, é somente o querer dos homens"36.
garantia unidade e verdade do direito e já teve seu crepús-
( Vêm do nada, são ligadas ao poder e ao querer dos homens;
culo"37. Mas a verdade do direito náô pode ser entregue e
( poder-se-ia acrescentar: ao arbítrio dos homens. E é óbvio
reduzida â um texto autoritário de papel; a verdade nâo
que a conclusáo deixe também amarga a boca de quem a
( pode estar a não ser além desse texto, na macro e micro-
pronuncia; e é óbvia a escolha final que é pessimista, até
( história que o direito ordena contÍibuindo de modo decisi-
mesmo niilista; e é óbvio que, em outra página, Irti veja o
vo a fazer daquele âcumulâr-se do tempo uma civilização
( esvaziamento do Estado como abertuÍa de um abismo do
histórica. O devir nos oferece um horizonte de tantas ma-
( qual irrompem forças (eu acrescento: negativas) antes reti-
turidades, certamente muito diversas mas cada umâ com
das e compressas.
( uma própria mensagem completa. Nessa cadeia interrom-
A posiçáo de Irti consinta-me o meu velho, caro e
( estimado amigo -
é similar àquele estudioso, protagonista
pida composta de múltiplos elos diferentes, o direito
( -
de um antigo apólogo que, tendo a própria escrivaninhâ in-
muda, diversifica-se, renova-se, mas náo tem nunca o seu
crepúsculo, porque sempre será portador de verdades his-
( toricamente emergentes.
(
35 Ibidem, p. 9.
( 36 IRTI, Nichilísmo e metoào giurídico, cit., p. 1161. :z Ibidem, p. I 161.
(

( I i6 1t7

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9. Relacionar odireito com a sociedade significa corres- Disse e escrevi outra vez38 que o passado não conserva (
ponder à atual repugnância em relação a fronteiras claras e e náo pode propor modelos pârâ tecer o enredo do presen- (
intransponíveis, em direção a espaços fragmentados. Libe- te- O passado pode unicamente nos oferecer momentos
(
rarmo-nos de uma psicologia e de uma culturâ estatalista e dialéticos capazes de enriquecer a nossa incompleta visão
potestativa implica a liberação da escravidão das fronteiras. de personagens imersos em um tempo que estâmos viven- (
E o Estado que impõe fronteiras, que vive de fronteiras; a do e que náo estamos em grau de ob.letivar plenamente. (
sociedade, realidade complexa e aberta, sem identificaçóes Aqui o momento dialético é forte: estamos ontem, (
potestativas, tem confins que não se transformam nunca hoje e ainda mais amanhá construindo alguma- coisa de
em fronteiras. Alforriar o direito do vínculo necessário com -
supranacional; algumas se[ranas atrás (escrevo esse texto
(
o Estado constitui alforria dos empobrecimentos causados no veráo de 2003J, em Salonicco, os chefes de Estado defi- (
pela miúda política. niram o esboço de um projeto de 'Constituição' européia. (
O historiador pode trazer um exemplo iluminante, Prescindimos de avaliar os seus conteúdos e nos atenhamos (
aquele do ius commune medieval e pós-medieval: uma Eu- ao resultado formal. Se obstáculos existiram, existenl e
ropa fracionada em uma miríade de poderes políticos, to- (
existiráo, estes vieram, vêm e virão das vontades míopes e
dos com limitadas projeçóes geográficas; em cada uma de- egoístas de homens políticos que ainda se alinham em de- (
las, ordenações dos Príncipes locais, estatutos das comuni- fesa de seus interesses particulares. (
dades, costumes, ou seja manifestações jurídicas ligadas es-
tritamente ao território pârticular. Mas, acima, circula uma
Sustentam-nos, obviamente, a esperança que o cami- (
nho para a unidade política prossiga sem obstáculos, mas
dimensáo jurídica universal, uma ordem jurídica da vida
talvez uma estradâ unitária mais aberta é aquela da realiza-
(
cotidiânâ da comunidade humana, que se apossa também
do particular mas não nasce dele, é vigente em cada lugar çáo de uma unidade jurídica, começando por aquele terre-
sem que haja necessidade de autorizações da parte dos cte-
no do direito privado, menos misturado com âs veleidades (
dos políticos, que foi a articulação substancial do velho ir.rs (
tentores do poder. E o reino sem confins, autenticamente
commune.
sem confins, do ius commune, que se distingue por ser em (
primeiro lugar obra de doutrinadores, de mestres universi-
(
tários, de homens de cultura indiferentes às fronteiras assi-
naladas pelo poder, cidadãos do mundo que migram de 38 Cfr. conforme sustentei no Encontro Internacional Organizado ent (
uma sede universitária à outrâ, ensinando a estudantes pro- Ascona por Pio Caroni e Gerhard Dilcher em abril de 1996: Modelli (
venientes de todas as partes da Europa e que desenham a storicí e progettí attuaLi nella lormaziotue dí un íuturo diritto etropeo,
que pode ser lido nos'atos'do encontro mas, mais comoclamente para (
linha da urdidura jurídica unitária do mundo então conhe-
cido. Na civilização medieval conseguiu-se um resultado
todo juÍista, na Ritista dí diritto citite, XLII 0996), primeira pârrc. (
Cfr. também qtrando tive a oportunidade de confirmar muito recenle-
digno de consideração: diante de um esmuiçado particula- mente em i Unità giuridica europea. UL meàioeuo prossimo íutüro? I cm (
rismo político, sobressai uma dimensão jurídica universal Quaderni fiorentini per Ia, storia del pensiero gíuríàico moderno,3l (
de marca científica. (22021, tomo I.
(
119
(
ll8
(
(
(
I
Estamos debatendo de modo vivaz se o futuro de um
direito civil e comercial euÍopeu poderá consolidar-se ou os recursos intelectuais e espirituais Parâ vencer âs tenta-
não ern uma codificação. Deixemos de lado um êxito final çóes fracion istas.
que hoje nos interessa menos e constatemos aquilo que de Sáo juristas e também isso é muito significativo: após
extraordinariamente fecundo está se movimentando em uma longa e*propriação perpetrada durante todo o moder-
nível puramente científico: juristas ousados, prescindindo no, depois de-séiulosde condenação aos trabalhos forçados
de mandatos de órgãos estâtâis ou internacionais, estão te- da exegese, o direito torna a ser aquilo que I'oi nos grandes
momentos da história jurídica ocident6l 6 1qm2n6 . .
cendo em tema de contratos e de contratos comerciais -
em espécie (mas também - em outros campos) uma tela medieval
-
o que foi e é no planeta do comtnon law'. coisa
- de princÍpios. "Produtos assim chamados
muito preciosa de juristas.
de soft law... sáo por si mesmos privados de eficácia vincu- Que assim o seja prova o atuâl contexto histórico com
lante e podem somente esperar ser aplicados na prática gra- as suas vocaçóes universalistas, com juristas protagonistas
na elâboração e fixação dos princípios, com juristas protâ-
ças âo seu valor persuasivo"3e, mas já agora constata-se a
esse respeito uma conspícua influência seja como modelo
gonistas dó fenômeno globàlizatórioar. Hoje, esse bruxo
para vírrios iegisladores nacionais (com o resultado de um mantido com os seus destiladores em um calabouço do cas-
direito que, ainda que nacional, procede de um modo sem- telo a servil disposição dos poderosos, mostra-se com seu
pre mais uniforme), seja como guia na negociação e redação papel engrandeãido. Náo é mais o técnico que Eere modes-
de contratos comerciâis internacionais e na resolução de ioi ortopédicos paÍa prover as claudicâncias do
"pr.álhos
onipotente legislador, mas é, ele, o último elo de uma cor-
controvérsias comerciais internacionais{0.
Não se tratam, como se vê, de exercícios teóÍicos des- renie bimilenária de tradições culturais, enquanto aquele
prendidos de toda tradução na realidade concreta; a sua que peÍcebe valores universais e ao mesmo tempo é capaz
relevância porém está, no nosso entender, sobretudo em áe tiaduzilas em regras, o personagem a quem pode ser
um aspecto: sáo juristas na maior parte, homens de ciên- confiado o ofício dificílimo de tecer aquela rede da qual
cia que, atrás de uma-vocaçáo que é típica do cientista, temos necessidade. O novo protaEonismo dos juristas não
-
desenham umâ trama jurídica que é pensada como supra- responde ao orgulho de uma ordem, mas a um reclamo de
nacional, tendencialmente universal. A tarefa de tecer trâ- nosso tempo histórico.
mas corajosas que superem as misérias do particular pode É co--ess, mensagem consoladoÍâ que eu Sostaria de
ser confiada à ciência jurídica, a única íonte que tem em si fechar a conferência diante de um público em que sáo tan-
tos os jovens juristas em formaçáo.

39 Assim M. J. BONELL, Introduzione, em Príncipi Unídroit nella


pratícít - Casistica e bibliografia riguaràartí í principi unidroit d.ei
cot'ttralti commeÍciali ínternazionali, organizado por M. J. Bonell, Mila-
no, Giuffrà, 2002, p. l.
40 A demonstÍâçáo está no amplo volume citado na nota precedente. .ti Pensei ser necessáíio sublinhar esse ponto na minha conferência
sobre Globalizzazione, diritto, scienza giuridicâ, cit.

t20
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(
ABSOLUTISMO JURIDICO (
(ou: da riqueza e da liberdade do (
historiador do direit'o) (
(
(
(
I. Absolutismo jurídico: um substantivo e um adjetivo
(
comuns, mas uma conjunção nada comum. De fato falou-
se e fala-se freqüentemente de absolutismo unindo a quali- (
ficação de político, religioso, cultural, mas nunca
-
que eu (
saiba de jurídico. A conjunçáo aparece náo apenas ince- (
mum -mas também singular e pouco compreensível, se se
âtenta que com ela eu pretendi e pretendo sublinhar um (
fruto típico da era burguesa, da era do liberalismo econô- (
mico, cuja baixa retórica dos lugares comuns da cultura (.
corrente assinala unicamente o vulto de um mundo de con-
quistas libertárias, era de liberdades, era de direitos. (
Ninguém quer desmentir este w[to, que permânece (
relevante na história da civilizaçáo moderna. Com aquela (
conjunçáo e com a modesta e elementar reflexão que lhe é
conexa se queÍ apenas assinalar que não se deve ser ofusca-
(
do e conquistado por aquele vulto garboso, vistoso e sem (
dúvida nenhuma convincente, mas que existem outros la- (
dos mais escondidos geralmente ignorados ou deixados
- (
(
123
(
(
(
(
(
(
(
( o olho náo vê nras que a todos sustenta quase como o fio de
à parte que convém iluminar para que se atinja o resul-
( -
tado de uma plena historicizaçáo e não de um retrato lau- um colar.
( datório do mesmo modo como, no passado, os pintores cor. E liberdade singularl Que é liberdade do enredamento
tesãos muito freqüentemente faziam ern seus pouco gra- do presente e do pesado vínculo do ügente. Se quisermos,
(
ciosos soberanos. é uma pobreza absoluta aquela do historiador, pobreza to-
( talmente parecida àquela do monge, sem seduçóes, sem
A alguém, amante de artificialidades e habituado a tra-
( zer ofeÍtâs sobre os altares consolidados, poderá parecer satisfaçóes sensíveis, mas também purificada da grosserra
( uma dessacralização. Será, âo contráÍio, unicâmente a âqui- aridez que vem dos laços do cotidiano; uma pobreza que é
sição de uma visão mais complexa, mais autenticamente para ele pureza do olhar liberado da paisagem tangível, le-
( veza do seu ser todo projetado em uma dimensáo supra-
crítica.
( sensível, e por isso também plenitude espiritual.
( Esse personagem rico e livre graças à sua pobrezal teml
2. Está exatamente aqui, a meu ver, o papel e a tarefa
exâtamente por isso, o privilégio de assumir uma função
( do historiador do direito, como tive ocasião de apontar re- estimuladora, eminentemente críticâ. Outros disseram
( centemente em mais de uma ocasiáo; e o tema-problema que é encarregado de um muito amplo cuidado de almas;
do absolutismo jurídico, evocado por nenhum outro que eu me limitarei a sublinhar o papel da consciência crítica ao
(
não o historiador do direito, disso oferece demonstraçáo lado de um cultor de um direito positivo, do sujeito que é
( esplêndida. Ele, se o é realmente, ou seja se tem realmente chamado à incômoda funçáo de colocar em crise as certezâs
( o privilégio de reunir em si o historiador e o jurista, é per- não discutidas deste último, abalando as suas imóveis bases
sonâgem pela sua natúÍeza dotado de extraordináÍiâ rique- sólidas e desordenando a perfeita paisagem na qual ele tem
(
za e de extraordinária liberdade com relaçáo ao cultor do prazer em se inserir.
(
direito positivo; e não deve ter dentro de si, egoisticamente Uma grande desordem nessa paisagem perfeita é, justa-
( fechado, um tal dúplice priülégio, mas exercitá-lo num co- mente/ o chamado desagradável mâs, a meu ver, salutar,
( ióquio vivo com quem é, por um lado, mais pobre, e por que é feito pelo tema do absolutismo jurídico.
(
outro, menos livre que ele.
Riqueza muito singularl Que está toda no seu manipu- 3. Foi em I98 5, instigado por uma providente iniciativa
lar com desenvoltura a vida e a morte: a vida na sua extensa de Giorgio Bertir voltada a refletir problematicamente so-
( plenitude, no seu balanço inteiramente reaiizadô e já con-
( cluído; e a morte não como vazio não preenchido, mas
( como nexo vitai, como relaçáo entre um antes e um depois. 1 A iniciativâ foi o congresso, projetado e idealizado por Berti, sobre
Singular riqueza mas também riqueza grande, que se apro-
"autorità, consetuso e prassi nella creazione e neLla attu&zíone de\le nor'
( me giuridiche" , que se deu em Milão nos dias 26 e 27 de outubro de
pria da totalidade do exprimir-se vital, que náo se limitâ às 1984 e cujos 'anais'foram publicados em Jus, )OO(il (1985). No con-
( singulares vicissitudes indiüduais destacadas umas das ou- gresso, o qual tinha sido afetuosamente convidado, náo pude paÍticipâÍ.
( trâs mas que é capaz de alcançar o fio que une a todos, que Procurei atenua! o lâmento do amigo organizador, decepcionadíssimo
(
124 125
(
(
(
linguagem, robustamente pensadas (por exemplo o Code
bre o sistema das fontes do direito, que eu cheguei pela Ciail), fundadas sobre um admirável sâber técnico, e não
primeira vez numâ completa solidáo
- - a apreender
plenitude do direito moderno como absolutismo
a
jurídico,
se refletiu o suficiente sobre duas conseqüências gravíssi-
mas: o direito se identificava a esta altura só com o direito
mas foi em 1988, quando estávâmos em toda a Europa por oficial, e, como tal, tendia sempre mais a formalizaÍ-se, en-
sermos submersos pelo grande auge das celebraçoes do bi- quânto umâ fronteira compacta se erguia entÍe o território
centenário da revolução e da'Déclaration des droits', que do direito e o dos fatos; a sociedade civil continuava a ser
se fez explícito o discurso, com uma voz tanto fora do tom depositária da produção jurídica somente na fábulâ-ficção
com relaçáo ao coro geral quanto não escutada e solene- da democracia indireta proclamada pela obsessionante
mente ignorada. Não me importando do muito escasso su- apologia filo-parlamentar, mas na realidade dela (produção
cesso do meu chamado, âo contrário continuei teimosâ- jurídica) restava clamorosamente expropriada. O direito
mente â reforçar e sublinhar, nos últimos quinze anos, era desenraizado da con.rplexa riqueza do social para ligar-
aquilo que me parece um grande problema cultural, ou seja se a urnâ só cultura, empobrecer-se e identificar-se desa-
um problema que diz respeito de modo central à cultura gradavelmente na expressão do poder e da classe dele de-
jurídica moderna. tentora.
Absolutismo jurídico é um esquema interpretativo que, Absolutismo jurídico significa tudo isso, mas para o his-
na minha visão, tendia a esclarecer também as induvidosas toriador significa sobretudo ressecamento: o rígido monis-
quase sempre ignoradas conseqüências negativas
-dasmas -
concepçóes jurídicas burguesas. O grito da Marselhesa
mo ditado por imperiosos princípios de ordem pública im-
pede uma visão pluriordenamental e, conseqüentemente,
e os foguetórios disparados para as cartas dos direitos im- pluricultural, concebendo um só canal histórico de escoa-
pediram muitas vezes de advertir quão limitador e inatural mento munido de barreiras tão altas a ponto de evitar
tinha sido o grande processo de panlegiferaçáo e de codifi- intÍoduções e misturas vindas do exterior. A regra, a nor-
cação nos séculos XVIII e XIX. ma, gera-se somente naquele curso; o regular, o normal, a
O terceiro estado no poder tem o rnérito náo secundá- partir dele se mede. Todo o resto tem duas pesadas
rio de haver intuído diferentemente do Príncipe do an- condenações: o ilícito, ou, na melhor das hipóteses, o irre-
tigo regime - o direito interessa ao detentor do
que todo levânte.
- e que está no monopólio da produçáo jurídi-
poder político A minha modesta voz tinha uma finalidade modestíssi-
ca a garantia primeira e mais válida para aquele poder. ma, mâs que me parecia sacrossanta: chamar a atenção
Diante de um direito já todo identificado na vontade também pâÍa a outra face daquela cabeça bifronte que é a
estatal contentou-se com fontes certas e claras, límpidas na codificaçáo do direito privado (manifestação primeira e su-
prema do moderno direito burguês) e a geral panlegifera-
çáo; sem tolos e ingênuos quixotismos, assinalar a comple-
com minha ausência, prometendo fâzer a recensáo dos 'anais'âssim que
xidade do grande fenômeno 'codificaçáo', o maior da l.ristó-
fossem publicados, o que foi feito ros Quaderni Fiorentini (17, ano
I 988) com um amplo 'a propósito de': " Epicedío per I'assolutistlo giu-
ria jurídica dos países de ciuil law; assinalar, livres da insu-
ridíco (àietro gli 'atti' dí um convegno milanese e aLlá ricerca di segni)"
.

t27
t26
portável retórica pós-revolucionária, as suas múltiplas precisas nervuras éticas graças à imersão no ventre do direi-
irnplicaçóes inclusiue negativas para a históriâ do direito to natural. O jusnaturalismo, com as suas fábulas aparente-
moderno justâmente graças ao seu caráter fundamental de mente ingênuas e graciosas mas que, na substânclâ, imobi-
nronopolizaçáo por parte do Estado do mecanismo de pro- lizavam o direito em um rrodelo férreo, foi chamado a flrn-
dução do direito, até mesmo do direito privado, que uma dar o novo direito do novo Estado dando vida àquela anti-
tradição ântigâ e nunca desmentida tinha quase inteira- nomia que está na base da história do direito moderno e
rnente deixado na órbita dos privados. que poderia ser apanhada na pâssâgem totalmente líquicla e
plana, mas com premissas muito bem definidas, â soluções
4. Pela ordem jurídica burguesa o diÍeito privado toma per[citamente opostas, ou seja na passagem do jusnatura-
de fato um valor que, antes, absolutamente não dispur.iha: lisnro ao juspositivismo, nas fundaçôes jusnatura)istas do
valor constítucional, absolutamente fundante daquela or- moderno juspositivismo.
den-r. Propriedade e contrâto, tornados já fundamentos Fundações que duraram muito e que, em boa medida,
também políticos do novo regime, não podiam ser remeti- duraram até hoje: somos ainda adeptos do jusnaturalismo
dos a um rico e descontrolado proliferar de usos que dou- dos séculos XVII e XVIII, hoje inconscientemente, mas o
tores e juízes se empenhavam em reduzir em amplos es- somos, grâças à sua força constringente que incidiu profun-
quemas câtegoriais; deviam, aliás, ser rigorosamente con- damente, quer se queira ou não; também quem é orgulhoso
trolados inclusive para gârantir âo novo cidâdáo aquele es- em refutar a imagem de um direito nâtural, também quem
paço livre pretendido pela ordem burguesa com relação ao relega aquela idéia à categoria das fábulas indignas da nossa
poder político, que é bem marcado no pacto secreto gerâ- maturidade cultural, é dele um portador inconsciente.
dor do novo Estado. Com este esclarecimento: no territóÍio do direito pri-
A garantia rnais sólida consistia na estatalizaçáo do di- vado foram muitas as conseqüências fundamentais, que
reito privado, em vinculálo à voz do Estado, à sua voz mais brotaram em seu tempo de premissas jusnaturalistas, a do-
direta: a lei. E começou-se a aviar à construção do mito da minar-nos e impregnar-nos. Alguns caírarn, ainda que Ienta
lei como normâ de qualidade superior, hierarquicamente e penosâmente, como o sujeito de direito civil como enti-
primária: a expressáo autoritária e centralistâ da soberania dade abstrata e, enquanto abstrata, unitária porque sujeito
do Estado vem taxada como a única expressáo possível da de direito natural, ou a idéia de um direito civil articulado
vontade geral; e foi conseqüência natural que, diante desta, em relações jurídicas âbstratas. Alguns ficaram e, a meu
dispersassem-se as fontes plurais sobre as quais se ergueu a ver, indelevelmente ficam, como o primado da lei e o pan-
velha ordem, usos, opinióes dos doutores, sentenças dos legalismo do qual se falava mais acima, aquele que châmo
juízes, invençóes dos notários; e o direito franziu-se em lei. polemicamente de absolutismo jurídico.
No lugar do velho pluralismo jurídico se substitui um Repita-se: ninguém quer colocar em dúvida o impor-
monismo rigidíssimo; tânto mais rígído porque dotado de tante papel da lei na imensâmente complexa ordem mo-
valor constitucional, tanto mais rígido porque este vaior derna, e, conseqüentemente, o valor do princípio da legali-
constitucional vinha deliberadamente enrobustecido por dade. Pretende-se, porém isto siml sublinhar com
-
128 129
ôn fàse a grancle Íalta cle senso crítico com que nos fize: anr
portadores dacluelc papcl c com o qual se sustentolr o scu plur rlid;rdc i rrnidrrde
nr,,vo\ l r rrnr sir)rplil i, ilç;1, rl, . r,i
valor. Lcgislador, lei e legaliciade pertencern àque1a restrita v('r.r., Jlrrll.li, o. N;io se -
l)oJ(-, ônt(,nlilr corrr l s,rn_rl:L r, 'r,, r lu
catcgoria de ídolos vcncraclos e não discutidos -- .luc Irâ dir, vrlrdâLlc.3 que o for nr;rlisrno j,rrí,lico
lir.l,.rr,,
donrinarn soberanos -na mitologiâ do secularismo nr,:clerno;
,
vlrrcltl,'U c (ondínurj, rnil\ sc dcvc , Ít.g,I ,t ,
(Ít1,, irt(1 nIo|lr srrlrtçrrirreo,l,r I, llt,,.].ill , L.\
1,"lrle. qr re, e\ttllllcntc 1,cl,' seu lcttctrCirnentO l,rrnl . ivi -li,ritid],1c. [ ,.,,, . ,, ^.,,.
ltz,r1i,' :ecul;tIizarlrt, devent itrr1,,,1 qg C!Jtrl Itn \c ] roI ô r lr u rn srrb:tJnci;rl
plr rr rlisrn.r i,,ri,]i,.,,,. .",,,,':",1,',,rtr..
car/rter de absolutismo e indiscutibilidadc, c exigcrr unra t1r' tln;1 1,1q11,,r, p,.r,li,l;r .,u
Felo rrrenos os,luccid,t.
irceitação passivâ como toda mitologia que se respeite, in Ahsllrrt isrrro irtrídir u srrntfjr il ll)),1 ( rvilt./ir(i,, j,ir
(lrl. ncrrle {orr clinrinrri rrllritoJ â r,lr. .;
clttsive a rnais intramundânâ. Aceitação geral que houvc, c
l)rrr íl\io dl , orr11,1111,j1
Íoi ;r.assiva, c pernlaneceu passiva até hoje. d, ; ltrnil t ivilizeçi,, jrrrrrli, I qrrt,sô l,,rnulI'r,r[r,,r
,1, rr. .r.|]
E rrrna tll passividade cLue me pârece hoje culturalnrcn nJÊ\, ( \lt'enliltn(.tttC a(,,.t.Cn1e enr :tt;t . llIttt,t* ,.,,.,,, ,,
le inlclrnissívei para o juristâ; devemos dern.rbar o '1egis)a Í;rtr,r']lr rlura.s|lJ ldgit n rig.rr,,s:t, llra\ r ,ljlo
I]OLtCu:dtr ,\ ü.
rlor' de urn Olirnpo muitas vezes náo merecido c analisá-lo ir,\ d(.vrr c, s(,brctrjd\), à r:rudarqa.
No. n:rr5es da iui, 1.t,,.,
ittt pirdosarnente nâs suâs misérias; <levemos sobrctuclo li- u dranra do sccLrlo XlX, .1Lrc é o momcnto
culminlntt ciu
berar-nos cla idéia nefasta do valor- tâumatúrgico da lci, otr rtr(rrde lbsolrrtistil, csti todo nl dilcrerrç,
,.,,,,,,,. :, ,,
seja de trma juridicidacle pensacla e resolvida como legali- rrrlr.rdl entrc sistcmr jrrrícli.o {rr;r r,,a ,,,a,.I-
de.
lrr,,',.,. ,,.'i
rl a sis1lnr1 leqislativo) e transformaçáo; Lrrna
Rcpitanos: qr:ando falo de absolr-rtismo juríclico, não :l:,1::..o- -o nrrilt,pla
trJnsli'tnrJiiô e frerrótica qu(.torr)jl a. ,1i,,,,i, .,.
pretendo gerar clesconfiançâs ou, âincla nenos, dcsprczo ntri' r rrrrdas, dr te. noÍoqi,. e (o r,,rlizar_s,, .1,, grr,,,1. ,

pela lci; pretr:ndo, isso sim, dar voz ao desconlbrto i:rn vista tliJ,, l('rrd(r r nlíi(luinr r,)jnr,l\rotrHoni,tjrJr su. (,
i, i .
l ..r.,,,.
clc rrn'r prpcl riesmcclicio da lci, ocasionado pelo trabalho bll dL, I)tol( {Jri;rd, com irr;r. r..ivrr,,licl1ó,., ,.jt. srrit. , tr r,]
freqiicntenrentc incontrolado do legislarlor, este personâ- c ,l r., ^nônrir I íü rrnrrctr - to ll,,l,, cll
frr,lr, ion,tl ,r.,-t,.zl
gcm idcal do nosso palco jurídico, inconvcnientc c oniprc- I|ln(tr;li t.r ali, rIl]il rlqlrc,/jl rnôbil;iri r, rdr v,.2,,,,,,.
gonistâ e clc urr ntundo clc bcns imatcriais 11l,
scnte (luâsc conli:) o coro na antiga tregéclia gregr, c a cLLjo sobre os crrrris" a
tlrç, 'lr rt rsrr ro jr rrrd i. , , Jr r,rr t tr 1 1',,- 6{ern;r,,iado t.-ril,,, ,rt, ,, relinada,organizaçáo capitalista se frrndal.
passado reccnte, irntrniclade por assiÍn dizer r. inclis- Ni,' ha dúvidr,l,re, ros.,lh,,, íltenLor rl,r Irrst,,rr,rJ,.i .l.r
cutibiliriadc. - .1IIc ((,,:t ordcm jrrridicl niorrparc, e rn:.,r.1,
1111;,,,,1,,i, ,
.lrIc e tgnôt;t à historir, rn;rs igrrnlmcnt,.não trâ
dr]\ i Il
5. I'l:'r uma outrâ coisâ ir âcrescentar, sobre a rlual acirrl s('(rttilnl dr Cunqlli5tts pcn,15í\5in)a5, Icil:t:, r,rrtr;r lr I..r ;1,: l;rs
v('z( 51, rpcsrr d;r Icj orr cntrc a5 hrcchls
âpenas sc âcenou. rlr I,,i 1rn,ri, .r, .
À fbrçada colocação do clircito na sombra do Estado Ccrtilnl(.nt(. nou\its vcre: sr grrnJo I l, i, rr
- ;lü1ntrrrr,'nte),
jrrflsprUden( tâ, I L jênci;r c I praxc.
entc unitário, criaturâ monocrática esscncialrnentc vocâ-
cionada âo controle cla pluralidade social e à contrâç:lo da Urrr rxcmllu probante: a histórir rla jrrr.ispr rrtli
_.,dou r rin.l rr,' rr ,,
da Irarr. esr do sócrrlo XIX, sob o pleno i,np"t
i,.,1,,
130

t3l
(
(
(
(
Código Napoleônico, é a história de conquistas penosas, raçar-se da percepção do grave e complicado nó problemá_
(
atormentadas e atormentantes para o pobre juiz e cientistâ, tico do contínuo atualizar-se do direito como um'problema
( corno nos testemunham as páginas de dois grandes e €xtre: de um pequeno e magro vazio que se apresenta iri
. ,.ofa
( n.rarnente sensíveis juristas, Raymond Saleilles e François no complexo de preüsóes identiÍicadas e ert"bele.iJ". por
Gény; conquistas sobre as quais sempre ameaça o risco cle aquele grande profeta (e, como todo prof.tr, i"futi"ãíáu.
(
condenação por heresia, desde o momento em que a orto- é o legislador.
( doxia continua a ser depositada no sistema legislativo (não O problema do devir da ordem jurídica é deformado e
( importâ se velho, decrépito, ou, o que é pior, envelhecido, encolhido e tornâ-se como por duzento, ;i;;_-assim,,o

( inutilizável e rejeitado pela prática cotidiana). problema das lacunas - do oràenamento "";,
jurídico;,
Pense-se em como foi concebido e interpretâdo, ime- bem fixalo naquela fiel imagem do porítirirÀ-o
( ir.iã",.o
diatamente depois da sua entrada em vigor, aquele art. 4o italiano do início do século )C( qre e o liuro-àe'ó;;;;"
( do Cade Napoléon que obriga o juiz à decisâo da controvér- Donati, de ).9 I 0 que porta justamente como título
as pala_
( sia que lhe é proposta: o que quer que tivessem querido vras cotocadas em aspas; sim, deformado
e encolhido.'oor_
(
dizel Portalis e os outros redatores (homens freqüente- que continua a trazer ântes de tudo uma visáo
estatalista e
ntente portâdores de idéias que circulavam no antigo regi- fechada, surda em perceber co-ple*idrJe
( jurídico e, portanto, incapaz de " ordená-la á;;;;.
me no qual foram educadosJ, foi pensada e interpretada
( corrro ul.nâ norma de encerramento, quase se diria
. )o para tormular alguns exemplos correntes "a.qr"ar-""i..
encourâçâmento do código, que vinculava o-juiz a encon- - nestes úl_
timos tempos, leasing, factoring,
( t'ranchking,.r.iÀ iã_o
trar a soluçáo entre âs malhas daquela rede potencialmen- tântas outras invenções da prática contempãrânea
do co_
( te, ainda que não formalmente, completa que é justamente mércio, não são lacunas do direito privado pirriti""
( finalmente preenchidas, mas sâo io."nt.
i,.úrà,
o Código. um frtrro qu.
( E pensou-se, desde então, na evolução do ordenamento se iaz presente, como é da natureza de todo
corpo uiuenie;
como uma série de preenchimentos de vazios no interior de um futuro além do mais _ que se t , _rti"'iariáà _à-
( alguma coisa que se colocava de per si como estrutura -
sente, como é.típico de uma ordem
( - - luridica que'cÀrrã na
completa. E o legislador apressou-se a fixâr critérios para tentativa de deixar para trás aquelá praxe .",ialã". _
( colmar aqueles "poucos" vazios e procuroui quâse sempre aquela atual que supera todos os dias a si mesma na
com previsões de simples endointegrâçóes, controlar a in- -
invençáo de instrumentos eficazes a tutelar;;;;;á;;"
( tegridade do processo, como é no artigo 30 das disposiçóes econômicos na regulamentação dos próprios irá;;;
( preliminares ao primeiro código unitário italiano de 1865 o a seguir o desenvolvimento técnico em càntínuÀ;;il;;-
;
no asfixiante art. 12 dâiluelas disposiçóes preliminares ao so progresso inovativo-
Código vigente de 1942. a pensü o ordenamento como um invólucro
E necessário parar de pensar na ordem jurídica como ^ .Continuar
fechado que tÍaz no seu interior alg"-r, p;;;;i;
alguma coisa compacta e, de conseqüência, completa, que mais ou menos como o fazia Donaio Donati
i;;;,
há quase ceÃ
nlostrâ somente algumas 'lacunas'; é necessário desemba- anos âtrás, é ingênuo, artificioso e anti-histórico.'O
que se

\32
. 133

BIBLIOTECA GTNTRAL
deve fazer é desembaraçar-se do muito inconveniente art. do legislador e contra outras forças vivas e historicamente
12 das disposições preliminares ao Código de 1942, clara- protâgonistas como doutrina e jurisprudência provocou,
mente contrastântes com os valores pluralísticos da Cons- como mais acima se âcenavâ, um induvidoso- empobreci-
tituição republicana e mandar ao poráo náo somente os pa- mento: perdeu-se a dimensáo plural do ordenamento jurí-
leolíticos critérios hermenêuticos depois propostos mas dico e, condenando ao exílio fontes dúcteis e plasticíssimas
também aquele princípio de hierarquia das fontes que náo em favor de uma só fonte rigidíssima e formal, precluiu-se
corresponde mais nem ao estado da nossa odierna refina- uma conexão natural entre sociedade e direito, entre cultu-
díssima consciência jurídica, nem ao estado atual das nos- ra e direito; aquela conexão que a ciência no velho ius com-
sas fontes projetadas numa realidade pluridimensional, mune e a jurisprudência no colnmon law, de otÍra parte,
onde a dimensáo legislativa nacional e estatal se reduz jus- sempre garantiram.
tamente sempre mais, fontes ademais colocadas pro-
- -
fundamente em crise pelos sempre mais virulentos e efica-
Nem é excessivamente consoladora a constatação de
que, na elaboração das grandes leis (por exemplo cie um
zes canais de produçáo extra-estatal sumariamente recon- código civil como aquele italiano vigente a partir de 1942),
duzíveis ao sintagma hoje muito corrente de 'globalização o pensamento jurídico tem a sua relevância, porque ali este
jurídica'. pensamento de mestres e de juízes perde aquilo que sem-
Nem se diga que o art.72 foi superado ou evitado pelas pre foi e é o seu privilégio objetivo, ou seja a plasticidade, a
reflexões da doutrina mais sensível. Claro que o é, mas disponibilidade a identificar-se no futuro em formaçáo, e
aquele artigo deve ser eliminado como a relíquia mais fas- portanto a modificar-se e a transformar-se no encontro
cista que restou entre as brechas do nosso excelente Códi- com as coisas. Âs opiniôes dos mestres e dos juízes uso
go civil, testemunha de um absolutismo jurídico surdo e com prâzer um termô que circula impregnado no mundo -
obtuso que deve ser expulso de uma lei ainda hoje viva e do direito comum, mundo marcado e dirigido por opinio-
vital e à qual se pode muito bem augurar vida longa. Deve nas abertas pela sua natureza, sáo encerradas no casulo
ser expulso sobretudo para não incentivar a tradicional pre- -
da lei e separadas do fluxo histórico que continuâ â escor-
guiça intelectual do intérprete-aplicador e para náo forne- rer.
cer cômodos refúgios à surdez dos doútrinadores e dos jui Hoje, momento nada fácil para o jurista, é porém para
zes. De resto, se aquele artigo é ali âinda intacto sem susci- ele também o tempô do desempenho de um papel renova-
tar protestos, sem que um juristâ italiano tenha protestado do e intenso. A crise das fontes, ou seja, do sistema tradi-
escandalizado por umâ relíquia inaceitável, é sinal que o cional das fontes assim como nos foi entregue pela dogmá-
jurista italiâno continuou a senti-lo como algo em perfeita tica constitrrcional do Rechtsstaat, tiÍa certezas, provoca
consonância com algumas de suas crenças profundas. instabilidade, mas também move e abre a paisagem jurídi-
ca, desenterra dos sepulcros (onde aquela dogmática os ha-
b. A expropriaçáo total que, com relaçáo à produçáo via condenado) precisamente os juristas, velhos protâgonis-
-
do díreito, completou-se nos últimos duzentos anos a favor tas da história jurídica até o auge da era moderna, e os de-

134
r35
tivâs, uma vez que o direito (aquele sem qualificaçóes
limi-
senterra graças ao seu saber científico, como personagens
tativas) pertence às suas raízes mais prolundas e sabe des-
não importa se teóricos ou pÍáticos que conhecem o
-direito, - ,inculárlse também dos laços mais opressivos, tais como
chamados a ordenar com suas categorias e com suas
invenções técnicas os reclamos de um mundo econômico já
.ãu-.ú inr"r,udos e coloãados em açáo por ocasiáo da
imobilizaçáo jurídico-burguesa.
habituado a espaços virtuais, que não se importâ com os
Estados, com suas soberanias, com suas fronteiras limita-
das, com suas leis viciadas por um intolerável particularis-
mo territorial e também por umâ substancial incapacidade
de seguir e regular uma mudança frenética.
É um momento nada fácil, porque empenha todas as
forças do jurista (a sua cultura, sua capacidade sistematiza-
dorâ e construtora, mas antes de tudo sua capacidade de
percepção e intuição; vem-me vontade de dizer: sua imagi-
naçáo). Empenha-o a uma fundamental mudança de psico-
logia, a abandonar a proverbiai preguiça que o viu por tanto
e demasiado tempo satisfeito e contente à sombra do legis-
lador, e a armar-se de coragem.
Não um jurista transformado (e desnaturado) em um
político, mas sim um jurista que desfruta plenamente todas
âs potencialidâdes daquela âJma até recentemente náo
-
usada adequadamente, mas que é uma arma tipicamente
suâ que é a interpretação, interpretação da norma oficial
-
e formal à luz dos sinais dos tempos, sendo ele insubstituí-
vel mediador entre a imobilidade do texto e a mobilidade
da socieàaàe, herdeiro legítimo do iurisperitus romano e
medieval como também do common lauyer.
O absolutismo jurídico pertence a um passado a ser
contemplâdo como definitivamente contido na urna dos
dois séculos que acabaram de transcorrer, se náo se quer
sacrificar o direito dentro de uma armadura que o sufoque
e o relegue a um exílio estéril. Devo corrigir-me: será esta
a sorte do direito oficial, enquânto a sociedade continuará
a ordenar-se juridicamente além e contra as formas restri-
r37
I36
(
(
(
(
(
(
(
(
(
(
PENSAMENTO JURIDICO (
(
(
(
í
l. Pode náo ser inócua a conjunçáo do adjetivo 'jurídi
co' com o substantivo 'pensamento'. Ela pode assinâlâr, de (
fato, algumas escolhas fundamentais em relação à concep (
ção de direito, ao seu erigir-se em ciênciâ e ao seu nexo (
com os valores da civilizaçáo circundante; e pÍessupor en) (
quem a usa um complexo de soluções positivas â nllliios
dos problcrnas que tem majoritariamente persegtriclo c (
atormentaclo a epistemologia jurídica rnoderna. A conjttn (
ção 'pcnsamento jurídico', quando não for usada numa t
acepção genérica ou ocasional, preter.rcle de fato sublinhar
(
não somente que a dimensão jr.irídica pode ser obieto autÔ-
nomo de pensamento, quanto que o 'jurídico' qttanclo é (
obleto de pensamento tem uma tal
-
âutonomia e ttma tal (
-
força incisiva sobre a estrutura especulativa que lhe está (
em torno a ponto de provocâr a própria autonomiii rlestl (
estrutura, de erigi-la em discurso autônono relativarrente
à outras formas de abordagem da realidade. (
A. cscolhas de Íundo, qrre se pressrrpôcrn, rpirrccr rr {
sobretudo como as seguintes: (
(
139
(
(
(
(
(
(
(
a) a dimensão jurídica é uma dimensão autônoma da passiva de forças inerentes a outras dimensões, nem âquele
( realidade, porque o 'jurídico' é um seu valor típico e espe- do discurso simplesmente técnico; testemunha a convicçáo
( cí lico; que, ao contrário, o direito, nâ sua essênciâ, fisiologicamen-
( b) como tal, o 'jurÍdico' náo é somente um mecanismo te, é expressáo fiel de uma civilização.
de organização da realidade, mas é pensado e construído Somente nestas condições é que se pode falar de modo
( em um nível menos empobrecedor; é aliás expressivo não consciente e coerente de 'pensamento jurídico'. Se a ciên-
( da quotidianeidade mas de raízes profundas, sendo ligado cia (e portanto também â ciência jurídica) é um conjunto
( aos valores essenciais de uma sociedade; é, enfim, essa de abordagens e de instrumentos cognitivos com uma efi-
mesma civilização pulsante de uma comunidade histórica; caz capâcidade para anâlisar objetos particulares (na qual a
(
c) como tal, o jurídico náo pode ser somente objeto de ação cognitiva é ajudada por apropriados subsídios técni-
( conhecimento técnico e científico, mas daquele mais alto cos), o pensamento em todâs as suas manifestaçóes (e por-
grau de compreensáo que os fi1ósofos chamam de pensa- tanto também no jurídicoJ é alguma coisa a mais e é quali-
mento; o 'jurídico' pode se tornar esse mesmo pensamento tativâmente diverso, é a ciência que se ergue para peÍceber
com,um lulto que tÍaz em si uma intensa tipicidade. o universal. Somente se o direito está no centÍo de uma
E claro que quem fala de pensamento jurídico, não por civilizaçáo em moümento e dela constitui um tecido fun-
mera ocasião retórica, mas conscientemente/ afirma impli- damental, é que se pode afirmar correta e plenamente so-
citamente que náo tem nada a partilhar nem com uma visão bre a existência de um 'pensamento jurídico'.
redutiva do direito, nem com uma concepçáo positivista da
ciência jurídica e do jurista. O direito não pode, sob essa 2. Entende-se entáo porque a história ocidental tenha
ótica, ser reduzido a instrumento do poder polÍtico ou a um sido o nicho conveniente para o emergir, o desenvolver e o
acúmulo normativo mais ou menos ordenado sistematica- consolidar de um pensamento jurídico: porque aquela his-
mente; e a ciência jurídica, alforriada de toda servidão exe- tória, nas suas manifestaçôes romana e medieval, sempre
gética, liberada do condicionamento necessário da vontade Íelegou ao direito um papel de neryura recôndita, secreta
do legislador, é indiüduada como intérpÍete no significado mas determinante, de uma sociedade ciüI. Digamos mais:
mais intenso do termo, não como tecedeira de argumenta- porque o Ocidente teve o singular privilégio de ter cons-
ções lógicas no interior de um sistema fechado que ela náo truído a própria civilização como direito, a sua é antes de
contribuiu a construiÍ e do qual ela simplesmente sofreu â tudo uma ciülizaçáo jurídica, no sentido de que cabe ao
1f
incidência, mas sim como meúadora entre as exigências direito um papel decisivo no seu projeto arquitetônico.
sociais e culturais geraig e a cultura jurídica, força viva e Para limitar o olhar ao que está logo às nossas costas, no
criativa da história na elaboração de arquiteturas adequâ- mundo medieval e pós-medieval, à scienti.a iuris (termo a
;
das e eficazes a sustentâr, mais que o produto de um legis- ser compreendido com a mente liberada da noçâo positivis-
lador contingente, umâ i teira ciúlizaçáo em moümenlo. ta modeÍna de ciência) é reservado um induvidoso primado
Falar de 'pensamento jurídico' signiffca de fato acreditar epistemológico, e ela é olhada com atençáo e respeito da
que o nível do direito não é nem aquele da mera execução parte de todo intelectual; o jurista é o homem dos projetos,

140 141
-1

está no centro da'cidade que o nutre e o sustentâ como


.] A grande tradição da análise jurídica medieval e pós_
célula relevante; senta-se no palácio como natural deposi- medieval continua na Alemanha, ierra do direito comum;
tário do poder e estabelece colóquios com os doutos, ele e, em certa medida e com posições muito particulares, nos
em primeiro lugar entre os doutos, como interlocutor pri- países do common law. Mas será penoso paia os juristas sair
vilegiado que é. do pequeno canto a eles reservado e recupe.ar u- p^pel cle
engenharia construtiva. A separação entrà
Quando, no auge da idade moderna, a esfacelada, com- lurista e socieda-
de, a representaçâo do jurista como gramáiico do poder e a
plexa e talvez complicada pâisagem sócio-política e cultu-
condição simplesmente executiva e ionservadora do direi-
ral é abandonada em trocâ de uma concepçáo monopolista
to circulam como alicerces numa estruturação rigidamente
e absorvente do poder político, o direito passa de nervura
monista do Estado marcada pelo princípió conititucional
da inteira sociedade civil a simples nerwra somente do po-
da subtração de toda a liberdade criativa ã ordem dos juris-
der político, enquanto deforma-se sensivelmente e revol- tas/ enquanto se continua a recitar de modo semore mais
ve-se também a velha relaçáo entre direito e mundo que o
inconsciente mitos, fórmulas e temores provenientes dos
circunda. O absolutismo jurídico da era liberal percebe o eventos de 1789.
enorme valor político do direito, liga-o
- que lhestricto
ao poder e à classe
sensu
é detentorâ-como precioso ins-
São esses os nós ainda não resolvidos do século )O(, no
seu. devir ambíguo e atormentado, no qual porém o hiito_
trumentum regni de:um modo maior de como se havia feito riador não pode deixar de individuar um fio condutor re-
no passado, mortifica o jurista como simples repetidor da cente que leva a um resgate crescente do jurista às grandes
voz do legislador. Toda função de elaboração de projetos é escolhas, um espaço que se amplii mais à di-mensâo
afastada; aos adminicula izris deixa-se o papel infinita- -sempre
Jundlca como torça que torja projetos produtores de histó_
mente menor de fazer as vezes de aparelho ortopédico pâra ria. Ao.lado, re-emerge da parte do juiista o resgate psico-
as claudicâncias do próprio legislador e aos juristas o não- lógico do. próprio prpàI, da sua próp;ia Iiberraçã; da ;ondi-
papel de sugestor de expedientes gramaticais. O direito, ção servi) da exegese. E o momento incandesãente que es_
capturado no laço mortal de invençóes e artifícios imobili- tamos vivendo.
zantes (ântes de tudo a assim chamada hierarquia das fon-
tesl, inseriu-se bem profundamente nos mecanismos de 3. O pensamento jurídico náo é escrito sobre tábuas
poder e foi eliminado o quanto possível da sociedade civil e sagradas; escrito prevalentemente sobre as coisas; aliás,
t '{ _é
da cultura. É a operaçáo muito lúcida e inteligente da bur- mais ainda, sobre coisâs mutáveis da história humana, e
guesia vitoriosa, impregnada de vigilante atençáo pelo 'jurÍ- traz em si algumas conotações típicâs:
dico' e de desconfiança com relaçáo à ordem dos juristas. A al nasce de baixo, das coisas, dos fatos, e sobre estes
estes, ao longo do século XIX, nos países de direito codifi- torna a voltar-se revelando o seu íntimo caráter ordenador;
cado (que são a maioria) é reservada a dimensão passiva da a tensáo co-natural que o domina e o caracteriza é encar-
exegese, da qual não é impossível mas é difícil readquirir o q nar-se, é não flutuar sobre as experiências, mas ordená-las.
céu aberto e vivo do pensamento. I O pensamento jurídico não pode prescindir do munclo da

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açáo, onde está sempre sepultado o gérmen que o desperta: tas as mais diversas rupturas (e que se aprecia chamar náo
açóes singulares, açóes coletivas mas açóes particuiares que incorretamente'conceitos jurídicos' ou mais discutivel-
são, no momento ordenador, recuperadas dos seus particu- mente 'dogmática jurídica'), o pensamento juiídico, ex-
larismos e subtraídas da miséria do cotidiano. E aqui o pen- pressão do vulto interior de uma civilizaçáo em rnovimento
samento jurídico desvela a sua natureza complexa: a di- e manifestaçáo das suas mais profundas raízes fiistóri6as, é
mensão especulativa se insere sempre na capilar vida coti- ligado àquele determinado modo muito particular de sen-
diana, que constitui uma espécie de ineliminável dimensáo tir, viver, conceber o direito que nos acostumâmos a ex-
submersa. EIe náo pode nunca prescindir da laboriosa ofici- pressar com a noçáo sintética de experiência jurídica. Exis-
na onde, ao lado de elaboradíssimos princípios, fala-se e tem, claro, articulações relevantes entre expeliências sub-
opera-se em leis e atos administrativos, contratos e testa- seqüentes no tempo [pense-se no tecido conectivo do pen-
mentos, citâções em juízo e tipificações de crimes, contra- sâmento jurídico romano com relação às ordens culturais
tos de trabalho e sociedades comerciais, uma diáspora de sucessivas), existem como se dizia pouco antes
fatos saídos de suas próprias cascas e inseridos, num nível -
mas permanências inegáveis (que permitiram um florescer - algu-
mais elevado, em uma sociedade e em uma cultura, como não edificante mas repetido até recentemente como 'histó-
objetos de pensamento. 'Pensamento jurídico' é sem dúvi- ria dos dogmas'), mas o ligame expressivo do pensamento
da uma filosofia, mâs muito freqüentemente uma filosofia jurídico se dá com uma ação historicamente tipica, com a
subtraída do filósofo profÍssional: o balbucio, que se torna- vida do direito tal como sincronicamente aconiece dentro
rá sucessivamente discurso mas que já é um embrião de de limites temporais historicamente legítimos, onde a legi-
discurso, toma início no canteiro de obras dos advogados, timidade é medida náo â partir dos limites temporais da
dos juízes, dos notários, dos doctores irris, todos partícipes
artificiosâ história política mas nas consolidaçóes da longa
da fundaçáo de um pensamento jurídico não menos do que duração e das escolhas profundas com as quais o direito
o sapientíssimo sp eculator ol do que o legislador. O pensa-
ordena e enrobustece idéias, ideologias e costumes. Assim,
mento jurídico é também umâ 'mentalidade', uma vez que enquânto seria imprudente ou simplesmente vulgar discor-
é sempre fruto dessa realidade plural exatamente porque rer sobre pensamento jurídico francês, espanhol, italiano e
síntese de açáo e conhecimento, de compreensáo dos tan- assim por diânte, seria correto falar de pensamento jurídico
tos institutos e tipificaçóes legais individuais cada um do common law diante daquele do ciuil law, ou daquele dos
pesadamente impregnado de lugar, de tempo, -de motivos, países socialistas; ou erltõo, sob o plano histórico, deum pen-
de interesses dentro do tecido dos modelos gerais sobre I

samento juríàico romano I medieual ou moderys, cujas di-


-
os quais se ordena uma civilização histórica;
I

uersidades nào sejam nem lormaís, nem meramente rcrmi-


b) indissoluvelmente ligado à mutabilidade dos fatos o nológicas ou instrumentais, mas t'undadas sobre uma yisão
'pensamento jurídico" como locuçáo absoluta, é muito fre-
d.o direito que reclama a sua tipicidaàe daquele conjunto
qüentemente uma abstração. Ainda que seja dado aos juris- das mais secretas uisões e construções do hotnen e da;otnu-
tas tomar e individuar as permanências que superam intac- nidade no real, que chamamos ciúlização.

t44
145
(
(

4. 'Pensanrento jurídico' náo ó uma conjunção n'ruito {


afortu nada (
Por um lado, qrrem nrantém o culto do pensâmcnto
como algo absoluto tem umâ natural aversáo a aceilar que (
estc absoluto scja confiado às tramas de um munclo relativo {.
conto o clireito. As características cle eternidade e de imu- (
tabilidadc enquanto atribr:tos essenciais âo pensanrento
são heranças, difíceis de abater, de uma imagem que nas- {
ceu c cresceu sob o molde das ciências exatas, uma imagem (
que obstaculiza concepçóes rnais amplas e mais livres. (
Por urn outro iado, quem, vinculado âo positivo, ligâ
d('nr('\ irtivlt)rent( \r t(' nr, (' :l noçio \.om as sistc tlfiT;-
(
çóes do idcalismo refuta estc c aquele, caia-se sobrc urrr e (
s,,hre o outro, prctendcDdo com o silêncio cxor(lzrr rnl;t (
rerliclrdc repugrf,ntc. E por isso qlr(., cm vistâ dos seus lrrn- (
dâmertos, que de diversos modos (mas seguramente o são)
positivistas, a reflexáo juríc1icâ até hoje prefere deter-sc so- (
bre o terreno mais concreto e menos comprometedor de (
'cii'ncir juríd ica . Assinr ocorre com quem separ a r igur os;r-
(
mente o direito positivo da comparação, cla história e da
sociologia jurídica, constituindo-as como ciências auxilia- (
res c náo as tomando como riquezas internas e intrínsecas à (
dimensão jurídica (Carbonnier); assim ocorrc cont qLlem (
ernpobrece a ciência como 1lmâ insossa sombra da norma
lKrlscn) E errrlrlcrnatico qrrc r tonjrrnçâo não sl lnronlre
(
nen uma vez sequer ou porque cuidadosan-rente evita- (
da, ou porque ignorada - entÍe os títulos da vastíssirna (
produção do maior cultor-italiano de teoria gcral do direito,
Norberto Bobbio, cuja obra sc coloca, ainda que não rigida-
(
mente, numâ ótica filosófica neopositivista. Por outro laclo, (
dessa conjunçáo pocle legitimamente falar Gény, setnprc (
preocupado em colocar o jurista em meio à história e a lmpTesso em offset nasofcinasda
(
FOLHA CARIOCA EDITORA LTDA.
torná-lo produtor de história, todo amarrado à tarelà cle Rua João Cardoso. 23 - R o de Jâneiro RJ
chegar a entendeÍ "lc ccntre du grancl mystàre du droit". CEP 2A22A 060 Tel : 2253-2073 Fax 2233-5306
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