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CARLOS FREDERICO MARES

I A FUNCAO SOCIAL
DA TERRA

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CARLOS FREDERICO MARES fft
Professor Titular de Direito Aguirio na RUC-PR.
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Doctor cm Direito Pithlico. Coordenador da Linha de Pesquisa
cm Dircito Socioambiental de Mestrado da PUC-RS.
Procurador do Estado do Paranã

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A FUNCÁO SOCIAL DA TERRA (X
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Sergio Antonio Eabris Editor km
Porto Alegre / 2003
© Carlos Frederico Mares

Diagramacào e Arte:
PENA - Composicao e Arte
Fone: (51)434-2641

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A mem6ria de Carlos Frederica Mares de Souza e


5/- Mauro Coulart, o primeiro meu pai, ambos /neus ami-
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SERGIO ANTONIO FABRIS EDITOR gos. Acompanharam meu caminho e minhas iddias, por
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Dedico cstc trabalho de forma especial e emocionada a urn
velho companheiro: Manoel Jacinto, o Marcella' de Campo. A mao
calejada Java uma especial legitimidade a seas palavras sdbias e
profundas. Tao me lembro, desde os idos de 1968, ter conhecido
Luna pesson que me impressionara tante. Discutia politica interna-
cional coin a mcsma simplicidade que colhia ulna flor, pondo nos
dois atos a ternura quase rude de urn camponés que sabe das coisas
do mundo. Com sen sorriso franco e fraterno e coin a singeleza de
quern conhece os segredos da terra ine ensinou coisas que nenhuma
Universidade conseguiu apagar. Citava os classicos e conhecia os
modernos, para cle não havia segredos nem no traquejo da enxada,
nem na conj unta internacional. Gostaria de ter conviv ido corn Ma-
noel Jacinto mune) mais tempo, mas entao, sob a ditadura, cada
minuto era disputado com a atencão, corn o medo e coin a esperan-
ca. Guardo na mcmOria as longas caminhadas a seu lado, porque
parar era. sem pre perigoso, at ravessando o Rio de Janeiro intei ro,
fazendo Nora para chegar ao encontro marcado que não admitia
atraso ou adiantamento. Como aprendi naquelas caminhadas ten-
sas! Muito mais que teoria. Hojc, cada vez quo rne reUno com corn-
panheiros e compan heiras dos movimentos populares, lembro de
Manuel Jacinto como urn guia, simbolo, exemplo; gostaria que
todos o tivessem conhecido e admirado e todos, coino ele, tivessem
a profunda fe, identica a do campones que planta a semente, de que
urn mundo melhor e possivel e se pode construido com as prOprias
inaos, como quern arroteia a terra e reparte o fruto.
S U NI A RIO

Introduc5o I

Primeira Parte
A transformacao da terra em propriedade 17
A propriedade individual 17
A igreja e a propriedade 19
De Locke a Voltaire, o timido limite da propriedade 23
Da teoria a pratica: A lei portuguesa de terras 28
A propriedade nas constituicaes naciontas 32
I A propriedade privada Como contrato 38
A propriedade pablica como uso, tailidade 45
L. Os povos indigenas e a propriedade
t Propriedade e liberdade no Brasil.
A sesmaria na pratica do Brasil colonial.
49
55
60
As terras devolutas 66

46. Segunda Parte


Terra: um direito a vida 81
0 Estado do Bern Estar Social 81
Uma Fungdo Social para a Propriedade 86
Constituicao mexicana: urn marco 92
4 Bolivia: a reforma que nasceu do povo 97
Colombia: uma Constituicao para o seetdo XXI 100

C.


103
Brasil: urn pedaco de ciao para viver
110
Funcao social a brasilcira
114
A ConstituiCao brasilcira de 1988
121
As especies de propriedade rural e sua garantia

133
Conclusiao
135
Bibliografia
INTRODUCAO

As sociedades humanas sempre tiveram, cm todas as epocas c


formas de organizaeflo, especial atencao ao use e ocupacâo da ter-
ra. A razao e Obvia: todas as sociedades tiraram dela set) sustento.
E entenda-se sustento Canto o pâo de cada dia coma a erica refundi-
dora da sociedade. A argamassa i espiritual cue une uma sociedade
flui a partl y (las condi0es fisicas do territOr io cm clue o povo habi-
ta.
Nao sao poucas as cult uras nue tam na terra uma div indade es-
pecial c todas lhe cledicam tributo. Alguinas a chamam de pal, pa-
tria. c outras de nine, paella Mas toda sociedade humana
tem Sc organizaclo scgundo as possibilidadcs quo the d5 a terra cm
nue the ooubc viver, am-elide a conviver corn o vento gelado dos
polos ticaPo calor sufocante dos trepicos, modifica, constrOi, interfe-
re, mas vive da terra.
Os horn ens c mulheres foram conhecendo a linguagem dos
animals c os segredos das plantar. Ate as pedras e o barro foram
entregando sua intimidade, rcvelando sua beleza e brandura. E as-
sim, dominando o territOrio, se fizeram senhores das coisas e, co-
nheeendo-lhes a alma, tiraram proveito de misturas impossiveis a
outros animals, fizeram ferramentas, adocarain o rigor do cupuacu

I - Calla mn!na d como os quechuas a chamam e que e represemadd por uma


figura humana. uma muffler levando ao cola sua crianca

com o tette suave da castanha, apimentaram o caldo insosso, fize-


3 ram da uva a delicia do vinho. Foram constru indo urn mundo cada A propriedade da terra gera males paradoxaisCporque destrOi a
vez mais hurnano, domesticando plantas e animals e colocando-os a natureza coin Corea devastadora c argumenta que mais precisa des-
seu servico. truir para dar de comer a desesperado e inconutvel contingente hu-
E muito recente c localizadaCrTh lic& de concentrar a producão mano. Ironicamente, quanto mais destrOi a natureza, Inenos villa
num espaco do terra, c ainda mais recente transform ar cssa con- possibilita, inclusive humana, q Llallto mais altera os seres vivos.
centracao cm proveito de uma Unica pessoa e °hamar a isso direito, mais se aproxima da more. algo de errado nessa lOgica inversa,
nr10 e possivel que a garantia de urn direito individual seja o flagclo
,de propriedade.
As soetzdacles agricolastsedimentares foram dando cada vez do direito dos povos.
L mais iinpornincia aos produtos da terra e passaram a restringi-los, 0 discurso juridic° atual. porem, procura romper com o flage-
1 to, mas se ve impotenle alnumas vezes Bente a marcada ideologia
goer dizer, calla vez mais foi se fazendo UM a ligacho entre os frutds
da terra e o homem que os produziu. Os cacadores c coletores scm- de sun interpretac g o. Sempre ha ulna virgule- um advdrbio oti (1111a
pre rcpartiram tuft°, gencrosamente, permitindo que todos, inclusi- contradierto entre incisos ou partigrafos rine permitem ao interpretc.
ve as plantas c Os animais, partieipassem do reparto, ileixando a juiz, administrador peblieo ou fiscal dizer o quo vino e c mauler.
1. apanha e caca it forca e habiliclacle de cada um.'1,agricultura-fez-de por mais algum tempo o Bagel°. A E lPol da p priedade priva-
tetra urn espaco privado, os homens, on melhar, cada homem pas- da, individualism e absoluta, mesmo contra o texto da lei ainda
sou a controlar o seu produto e a partir dal se promoveu tuna IML- impera no seio do Estado,6RPti l no seio da elite dominant° quo dita
L. interpretau5o que Ilse favoreee.
danca de comportamcnto etico, passando o ser humano a se consi-_
deratt o clestinatario do Universo, subjugando todos os animals e. Queen Ic natonstituieno brasileira do 1988 os capitulos do
plantas e, ao final, a supremacia de alguns homers sabre todos os mei() ambiente. dos indicts. de culture. as regras garantidoras da
outros hornens. 0 set humano perdera o paraiso. no mito de cria- propriedade privada semipro vinculada a uma funeao social, a Erni-
c2o. taeg o de juros, a defesa do povo clue nestc territOrio vive. os privi-
L A partir dal. e ate bent poucos anos arras, se imaninava que as legios admitidos a suas empricsas, pods imaginar que o Brasil (2 U111
riquezas da terra exam ines gotáveis e com p havia silo criada para pais clue tent instrumentos para caminhar decididamente cm Wreck)
it felicidade, rompendo o paradiama da propriedade excludente e
o sustento c deteite do sec human°, ludo proveria, du lenha ao pe-
treleo, do trial ñ g uloseima. E mais, proveria os ornamentos, as ttlta.
necessidades, os orgulhos de cada urn, cujo ante° valor seria o es-
iy Mais ainda, quern Ic na Constiiiiicao quo a finalidade, o objeti-
vo c os fun dame ntos do Estado brasilciro [Ian c so a protech p dos
forco para conscguir, o talento para modificar, c a forea para aeu-
titular. direitos individuais, como cstabelecia a y enta ordcm de 1.824, mas
C a erradicactio das desi g ualdades sociais, da pobrcza, a promoea° da
A terra e seus frutos passaram a ter donos, urn direito exclu-
C dente, acumulativo, individual. Direito tao geral e pleno que conti- solidariedade e cli g nidade da pessoa, a construgim do uma socieda-
nha cm si o direito de nlio usar, mho produzir. Este direito criado. de justa c li \ire, se apercebe clue era estabeleecu prime 1piOS a serem
pelo ser humano c considerado a essèneia do processo eivilizatOrio scguidos e claras pistas para interpretar as normas contidas em sett
t texto.
acabou por ser, ale Inesmo, fonte de muitos males, agrediu de for-
C ma profunda a natureza, tnodificou-a a ponto de destruicao, agrediu
C o próprio ser human° porque the quebrou a fraternidade, permitin-
CI do que a fome c a necessidade alheia Rao the tocasse o coracão. 2 - Vera propOsito Pierre Joseph Pro udhon. Oue es m promedad 9 F, J oan-Jacquos
Rousseau. el croon do desTuoldude entre ns houses.

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13
Este verificacan cnutsiasina o jurista que y e a possibilidade do reito quo nao admitc contrato e dole nao se origins. 0 direito cola-
sistcniti elicentlittr a tiansI tormacao da sociccladc, corrigindo as tiy o ao mcio ambiente sadio engloha a dacha a nao passar fore,
ilijusticas coin a simples garatitia oti real-Ada de garantia de deter- nao sofrcr miseria, poder viver em paz.
ininados direitos. A product -in democratica da lei impbe nos ga yer- Tudo estaria coma dantes, e nao haveria problemas em sua re-
motes, ao judiciario e 5 palloia, braco repressor do Estado, corn- alizacrio, se cstes dais direitos, os individuais c as colctivos, vives-
parlament° do transform:100.V SCHI vida apartada e se se pt desse Pivot- uma dicotomia entre indi-
Neil somprc. amain. ease entusiasmo se y e correspondido pela viduais e coletivos. como se arranjou entre os pUblicos c os priva-
re:did:vie que pods scr utility nuns dura do quo a ima gem cue 0 dos. A contradicao paradigmatica atual C elite estes direitos coleti-
jftrista faz do setts codices. lintretanto, Jul modiFicacOcs; c as leis, y es CN iSi0111 exatamcnte na rcstricao dos direitos individuals de
embora the promovam mudaneas na sociedade, as refletem. As propricdade, porque cxistem rides, canto coisa a cies pegada, gru-
mudancas qua apareecm nas itormas juriclieas silo sinais da vontade dada do tal forma quo a propricdade individual nao c mais do que o
social c solid ificam os anseios da soc icdadc do rompintentos. me- suporte Oil habita o coleti y o. Isto impbc ao direito individual de
lhoras c aperfcignamento. As novas leis podem sec o argument° propricdadc, especialIVICnte da terra, mais do quo uma obrigacho,
Para a limo cola: cocci- Os recalcitramcs scmpre empaleirados no uma repaotican de dachas.
poder. Os direitos coletivos ass im, canto direitos a vida, vieram pOr
A atualidade questiona Os velhos paradiginas juridicos estabe- cm xequc o paradiona, cm tal magnitude, qua a yenta conccpcao
lecides no decorrer do secula XIX c alteradas no XX. ono assento de produtividade ja nao c suficiente para acorn odar a paz social
principal era a liberdade contratual como fundament° da monde- nem aplacar a fonie universal.
dada individual da terra, do forma mats absoluta possivel.Qpi r- A terra flinch/ c sin g nimo de vida. apesar de tanta matanca ter
mato° passo do 111 uciany a so dc a CXM3111 cut e em atribuir a propric- ha y ido cm sett 'tome. F e vida nao se) porque oferece frutos qua
dadc chi terra tuna condicno do produtividacle. Isto acabava coin a 'natant a foam, Inas [torque purifica o ar clue se respira c a agua quo
possibilidade de !limner a terra dc cspeculacria. Este passo, ainda se babe. fosse pouco. da ainda o sound° do viver humane, sua
qua ()twin e teoricamcntc consensual, fed timido quando confoonta- referencia. sua histentia. sua utopia e seu sonho.
do 00111 a rcalidade e cam a sistema , luridito qua necessitava de Tao simples explicactio, pordm. parece nao scr compreendida
regras mais precisas, Inas lei um passo. /1 CM pC ins proprietarios. quo pouco nu nada fazcm porn compatibi-
Na metadc do seculo rime. quando ainda nao estava do soda lizti-la Corn a Vida, 110111 pCIOS poderes do Estado. Na vida real a
assentada a produtividadc como elemento a compor o direito de propricdadc continua setido jul g ada pales Tribunais c comprcendi-
propricdadc da terra o monde assistin a necessidadc do prescr yar o da pales Administradorcs da coisa pa Mica como se ainda sua iddia
Inc io ambicnte. de manteo a biodiversidadc, a vida dos especies, mestra fosse a y enta Constituigtio Portuguesa de 1 822 quo dizia scr
inclusive daquclas a quern o homem chainava de nocivas. Esta tic- a propriedade "a dacha sa g rado e inviolavel de se dispor a vontade
cessidade do prcservaydo do ambiente sadio comecou a scr reco- de todos os
ohecido coma dircito. Este direito nao so parcce coin 0 dircito de A cultura quo confunde a terra e sua funeao humana, social,
propricdadc excludente, Inas corn aquelc g eral que fleet] perdido na como direito abstrato de propriedade, exclusive c excludente, faz
cultura constitucionalista, de quo coda um tern o direito de :Oa scr tuna opcao contra a vida. Mas porque, apesar de too claras necessi-
excluido dos frutos da terra c do seu uso. Isto a um \LEityleolefto_,,r
r dades, tao c y identes lógicas, lamas mazelas socials e am h ienta is,
inalienavel no semido teenica (la palavra, e, portanto, inapropriayel
individual/none. IJito do forma mats direta para 0 sistcma, tan di- 3 - &lig° 6° cinConslitoicilo Poraigucsa de 1822

14 15

S
continua too dificil mudar a concepcão da propriedade? Como se
./ formou esta convice g o too arraigada de ewe a propriedade e o pro-
prio homem c nenhum direito pode ser mais sagrado do gue ela?
Tentar entender este fenemeno e buscar os caminhos de sua
superanao e a raze° do presente trabalho. E por isso ele se chama
funeao social da ten-a e nao da propriedade.

•••

PRIMEIRA PARTE
A TRANSFORMACAO DA TERRA EM
PROPRIEDADE
ScOolC•oo

A propriedade ind iN id ual

A ideia de apropriaerio individual, exclusiva e absoluta. de 1.11113


cp,Glr VA 1.()_ `).0 LA_ j')).7-) gleba de terra nao 6 universal, nein Itisterica nem geograficamente.
Ao contrails), e tuna construeno Iminana Iocalizada e recente,Esta-,
5 j. do e Direito moderatos comecam a surgir na Europa IA por colta do
skill° XIII, taivez autos, teorizados a park- do steculo XVI coral as
„At- informaybes fantasticas que traziam de cada park do mundo as
caravelas dos aventureiros, conquistadores c inercadores.
Os tearicos iam recebendo as noticias, comparanclo corn a rea-
iidade e formulando tcorias, ao estado natural corresponderia um
estado civil clue pudesse Ap ril Os novos tempos cm que os pecuenos
grupos, kudos ou urbes jd na g teriam a auto-suriciencia de outrora,
a.-Ct r )1, o mercado passava a considerar os hoinens nao Innis pela sua
nobreza ml,pelas suas qualidades, mas polo valor de sous bens
acumuladOs c pela sua capacidade ou disposiolo de acumular cada
vcz mais.
11.
Assim, o desenvolvimento da concepcâo de propriedade atual
foi sendo construida com o mercantilismo, com trezentos anos do
C. elaborayâo teOrica controvertida c incerto descnho eseculos XVI,

16
17
XVII c XVIII), bascados na pratica e na necessidade das classes sem ser proprictarios absolutos de setts bens c, se despossu idos de
sociais nascentes; c duzentos anos de sua realizacao pratica (secu- bens, fossem livres para contratar sua forca de trabalho. A I iberd a-
los XIX c XX), coin lutas e cnfrentamentos e, principalmente, mu- de pessoal nä° era um pressuposto filosOfico abstrato, tnas unna
dancas interims, concessOcs, falacias, promessas poeticas e violen- necessidade contratual, uma garantia do capital que, evidentemen-
cia desmesurada, guerras. Hoje é visivel a crise deste modelo, o te, tinha, e tem ainda, o individualism°, como fundamento. Nrio
Estado e a propriedade, assim concebidos c realizados, chegaram havia mais espaco, no seculo XVIII europeu, para a relacao servil
seu esgotamento teOrico c pratico.
Esitco
r
Inca° francesa e a
fu nclamcntal da propriedade moderna c a revo-
elaboracdo das constituicóes nacionais. A revo-
de trabalho, a actimulacao capitalista estava a exigir a liberdade dos
trabalhadores, que deixariam a terra e se transformariam em opera-
rios fabris. Na America, como as terras ja estravam consideradas
lucao francesa foi o coroamcnto de urn longo processo de lutas c desocupadas por nao se reconhecer a =maga() indigena, nao houve
transforma0es por que passou a Europa, como a reforma, a revo- necessidade de libertar os trabalhadores, e se manteve o velho sis-
Inca° inglesa c a holandesa que fez linalmente da bur guesia a se- tema escravista por quase todo o seculo XIX.
'Mora do poder civil da sociedade.
As const itu icOes, a partir da francesa de se propuscram a
org anizar o Estado c garantir direitos. Esta dualidade correspondia A Igreja e a propriedade
idCia de sc ter urn Unico direito, universal c geral, legitimado por
tuna organizacao estatal que pudesse representar os cidadaos que Os trezentos anos que antecederam a "constituieffo" do Estado
tivessem direitos, igualdade de tratamento e liberdade de assumir moderno serviram para que a teoria europeia fosse desenhando
compromissos e obrigacOes. seu perfil e fundament°. Os filOsofos e politicos daqueles secures
Portanto, podemos dizer que o Estado moderno foi teorica- foram discutindo como se deveria organizar o poder civil, desde o
mente construido_para g arantir a igualdade, a liberdade e a pronrie-
f dade. Dito de outra forma, a Uica° do Estado, no momento de sua
inicio do seculo XVI ate o XIX, Lutero, Calvino, Bodin, Hobbes,
Maquiavel, Locke, Rouseau, Montesquieu, Morus, Pufendorf,
constituicao, era garantir a propriedade que necessita da liberdade e Francisco de Vit6ria, Bartolome de Las Casae trataram das coisas
igualdade para existir. SO homens livres podem ser proprieterios, da sociedade organizada, do Estado, da politica, dos governor, da
podem adquirir propriedade, porque faz parte da ideia da proprie- religiao, de Deus e dos direitos, que encontravam no prOprio siste-
dade a possibilidade de adquiri-la e transferi-la livremente. A ma legitimidade a funcionalidade. Nestas discussOes surgia sempre
igualdade é, por sua vcz, essential para a relaeao entre homens a ideia e a justificativa da propriedade que iria ser o grande direito
livres, somente o contrato entre iguais pode ser valid°. 0 escravo individual a ser assegurado pelo nascente Estado.
o servo nao contratam, se subrnetem. Para que exista o Estado e a E claro que todos os teOricos tinham por base a realidade em
propriedade da terra e de outros bens, tat como a conhecemos hoje, que viviam. Se Bartolome de Las Casas e Locke se aproximavam
necessario que haja o trabalhador livre; a contrapartida da propri- em muitas coisas embora partissern de tao diferentes situacees, é
edade absoluta, plena, da terra é a liberdade dos trabalhadores'. par que, em geral, a Europa vivia momenta mite) especial, ou me-
Este sistema, que foi reproduzido muito cedo na America Lati- lhor, a chamada civilizacao ocidental, romana, judaico-crista, esta-
na, para sua plena realizacao depcndia de homens livres que pudes-

• Ver Liberdade e outros threaos, Mares, C. F. 0 °less° da Liberdade, Novaes,


4 - A lista desks icOricos pode ser imensa e incluc fiecionistas.como Swift, Vol-
Adauto. taire, Shakespeare, Milton, Cervantes, Cambes e Dante.

18 19
ya a se modificar radicalmente e careceria de interpretes e te6ricos Santo Tomas de Aquino (1225-1274), ern sua obra principal, a
que marcassem o pensamento transformador daquela 6poca. Soma TeolOgica, aceitou a existencia da propriedade, mas nâo a
Evidentemente todo esse caldo de pensamento foi niuito mais consi d erava um direito natural, portant° nit° a admitia como um
rico e poldnico do que o que hoje podemos apreciar, was marca- direito que pudesse se opor ao hem comum ou a necessidade
ram too indelevelmente a formaeäo dos Estados contemparaneos e Fazendo a distindio entre o direito natural c o direito human° on
seu Direito, que se pode ver a palavra de cada urn e de todos metida positivo, aquele oniundo da prOpria natureza humana, de inspiraciia
L nas constituicOes vigentes. A prOpria palavra constituicfio, para divina, e este mesa criac qo do homem em sociedade, diz:
designar a lei matriz do Estado,—leva a idóia de coisa nova, inventa-
da, criada, construida, como se o Estado fosse uma invencão da 0 quo c de direito humano no pode abolir o direito natural on
modernidade. a direito Pois hem, segundo a ardent natural instituida
C
E fãcil obscr‘ ar quo da lista atras arrolada praticamente todos pela divina providencia, as coisas infcriores estiio ordenadas a
cram bispos, padres, pastores au, polo mends, Sart - I:1111 infthöncia da sal islacOo this necessidades dos hamens. For csta razão, as
Igreja, por isso se pode dim que o pensamento crisnicTinformou bens superEuos quo algumas pessoas possucm sno devidos pan
todos os termicas quo viriam a construir as al icerces do Estado e do direito natural ao sustento dos pohres.
Direito contemporancos, sejam catOlicos on protesta lies. A defesa
C da propriedade stria uma reintenpretajto do Evangelho, das Sagra- In continua
das Esorituras c das palavras dos santos. A prova da % . eracidade dos
pensamentos Eloseficos stria encontrada nos teNtos hiblicos. Cats uma coisa alhcin subtraida ocatRamente cm caso do ex-
Exatamente por isso acompanhar a evoluciio do pensamento, Irma necessidade nET, e. um Inuo prOpliaillente dito, pois tat
oficial da Igreja sabre a ideia de propriedade signifiea acompanhar nocessidade torna nosso o quo tomamos porn sustentar nossa
os movimentos oficiais deste conceito no scio do poder pelitico..0s \ prOpria vida. No caso de uma necessidade semelhantc pode-se
primeiros pensoclores catOlicos se insurgent contra L L j nus ' da tambem tonne cdandestinaincdute a coisa allicia para socorrer a
propriedade romana, por seu carater JOT excludent Sao Basilio prOximo inchRente. (2.2.66.7)6
pelo seculo V dizia a respeito:
C. Cgatato jdulthis fazia a distinc5o entre o usar e o dispel-. Para ele.
C (,,Quien es avaro? LI quo no se contend con el suficientc. dispor era a faculdade do propricianio escolher como cntregar aos
i,Quien es ladrdn? El que quita lo ajcno. Y to ono ercs avaro, necessitados o que Ihe sobejava, pertain°, a faculdade de tr2msferir
no ores ladron, cuando tc apropias de lo que has recibido como o beni quo Ilic pertence; o Winne do US31 era Lim (Incite natural de
administrador? (:,Es que se va a Ilamar laden al que desnuda a todos Os harems e o dineito de dispor, um direito positivo, criada
quien esta yestido, y va a haber otro nombre nl que no viste polo homem em sociedatle. Esta claro clue para cic a ideia de dispor
dcsnudo, pudiendo hacerlo? El pen que retienes, es del nno era a de vendenoriiurocar por (nitro hem, nuns ne gócio comerci-
C hambriento; el vestido quo conservas guardado en el armario, al, inas entregar a quern procisa ya, nos necessitados. A ideia da
es del desnudo; el eatzado quo se pudre en su casa, es ,del disposidio come a liberdade de troca de hensOalienocao onerosa,
descalzo; la plata quo guardas enterrada, es del necesitado. e muito posterior, sustentada por 1.,Ooke. Santo..Ionia's defendia que

5 - Citado por Ekluaido Rubianc‘ cm seu livro El donlinio de los blenes segun in 6 - As CMICOCS [cram extraidas do livro ElISI10 social do 1,ereja, do Ricardo An-
t doctrina de to Igles?a, publ icada em Quito, pela PUC-Ecuador, cm 1993. tocich e Josè Miguel Munarriz Sacns : p. 142 c 143.
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o que sobejava nao podia ser aeumulado, mas distribuido entre os tos. A terra ilk) era objeto de propriedade excludente, mas sim as
necessitados, segundo os parainctros de Sao ., Basilio. 0 dispor, as- produzidas pelo ser humangsfi por ele colhidas. A terra
siin, signi ficava tao somentc a possibilidade de eseolher a quem co
cmo objeto de direito de propriedade independente de producdo
distribuir. o./ i uso a criacao do capitalism°.
Sosnente depois que a teoria politica e as leis passaram a tratar No interregno de siléncio oficial da Igreja, muitos homens do
a propriedadc como urn dircito natural, no seculo XVIII, As portas pensamento a ela ligados manifestaram posiyees que viriam ser
da constitucionalizacilo do Estado c de construcao ott inveneao da paradigniaticas para o horizonte do Estado contemporaneo.
propriedadc privada tal conic) a cOnlleccinoS hoje, c que a Igreja
catedica a reconheceu como direito natural, oponivel a todos os
outros dircitos criados pela sociedadc. Esta nova ideia Icgitimava o De Locke a Voltaire: o clogio da propriedade
fundamento da Constituicao Portuttuesa de 1822 que reconliecia a
propriedade como urn direito sagrado c inviolavel. `John Locke51632-1704), foi o grande ensador da ro riedade
Panels deSjante---Totiths, no seculo XIII, ate o seculo XIX, ha contemporanea, anal isou a sock ade em mutacao e organizou a
um silencio da Igreja sante o lama, o clue signincou abencoar a defesa teOrica da propriedade hurguesa absoluta, que viria a se
propriedade feudal c logo depois a mereantil, dela cobrando dizi- transformar no direito fundante das constituiyOes liberals prOximas.
mos c indulgencias, scm criticas ou anatemas. Coln a tom ada de Ate Locke a civilizacao crista entendia a propriedade como tuna
poder pcla burguesia e a constituicho dos Esta dos Naciona is, a utilidade. um «tenth, a partir dole e na construed° capital ista, passa
Igreja catelliea passou a defender oficialmente a propriedade priva- ser urn dircito subjetivo independente. Locke retoma a ideia de line
da. abencoando. einno. disposicOes como a da Constituicao Portu- a ongem ou o fundament° da propriedade e o trabalho humano, isto
guesa. Mesmo quando a Igreja Cat°Ilea COrneyOu a construir uma e, oj,itr so re as coisas se exerce na medida em que se agrega a
posicao critica ao liberalism o. corn a E.ncicliea Rerun, Moroni/11 alas algo de si, o trabalho. Isto sob o arguniento de que cads urn
(1891), o fez em defesa da propriedade privada contra o socialismo proprietario de seu corpo, sendo o trabalho tuna extensão dele. A
que propunlia a si p abolicdo. apropriacno esta limitada, porem, a possibilidade de uso, dizendo
Muito recentemente a Igreja, oficialmente, passou a ter posicao que a ainaucm c licl t rucjarjap
r jcjacklujo que ode usar
mais contundente em rclacno a propriedade da terra, cspecialmente Diz que tudo o que uma pcssoa possa rater sera sua propriedade,
quando o Papa Joao Paulo II, cm 1979, no discorso inaugural do mas se Algoma coisa se deteriora sent uso fere o direito natural de
Semindrio palafoxiano de Puebla de los Angeles, Mexico disse todos a usar das coisas oue Deus criou na natureza. Estabelece,
"sobre toda propriedade pesa tuna hipoteca social", alias muito portant°, urn !unite estreito a propriedade: "Todo lo que uno pueda
parecido coin que ja India dito, cm 1917, a Constituicao McNicann, usar para ventaja de su vida, mites de que se eche a perder, sera lo
nascida da revolueao de 1910. que lc esta permitido apropiarse tnediante su trabajo. Mas todo
Esta ideia de hipoteca social expressada pelo Papa ern Puebla, aquello qua exceda lo utilizable, sera de otro."'
somada polo document° "Para uma mentor distribuicao da terra? 0 Nesta perspectiva Locke aprofunda a ideia de Santo Tomas de
desafio da reforma agraria" aprovado pelo Pontificio Conselho que o direito de propriedade se restringe ao uso, porque tudo o que
Justica e Paz ern 1997, a tuna Olinda volta as origens da ideia crista exceda ao utilizavel sera de outro. Entretanto Locke agrega urn
expressada por Santo Tomas c Sào-Basilio. Deve-se fazer uma res- conceit°, o de corruptive!, deterioravel, e afirma que o excedente,
salva importante: quando estes dois teOlogos tratavam da proprie-
dade das coisas, nao estavam se referindo a terra, mas de seus fru- 7 - John Locke, Segundo tralado sabre el gobierno civil, p. 59.


22 23
para nao pertencer ao proprietArio tent que estar can risco de se para o seculo XX, nem mesmo sonbaria com a revolucào industrial
deteriorar. Afirma entao que nao e a falta de use clue descaraeteriza e a violentissima actlinulacni o primaria dos seculos XVIII e XIX,
a propriedade, mas a possibilidade de que se ponha can deterioro. Inas defendia as ideias mercantilistas do entao, garantindo uma
Se tima pessoa collie mais frutos do que pode corner esta avanpan. —
legitimidade teórica e moral para a propriedade pri vada, acumu là-
do na propriedade coin1.1111, alas se nao sào frutos deteriordveis, se -
vel, disponivel, alienavel, coma um direitEnaturah Corn a introdu-
sao bens duraveis que nao se deterioram, pode to-nos a vontade. Em _
cao da nocao de \bens corruptiveis,bse afasta de Santo Tomas, qua
geral, annum, os bens durtiveis, como a pedra, nao tem utilidade nao admitia a acumulaeho qualquer que fosse, e se revela urn vcr-
humana e, portanto, nao tern intcresse em se discutir a propriedade. dadeiro mercantilista.9
Por isso, c para isso. a socicdade in ventou bens nao cleterioraveis 0 limit° da propriedade, para Locke, c a ilegitimidade da pro-.
corn valor universal, como ouro, prata, ambar e, finalmente, o di- priedacle de bens corruptiveis nao trocados, portanto. nao e Hel ga a
0-
'their°, passive] de actimulacao. Esta lOgica c o ponto chave para'
tilattaan possuir inais bens corruptiveis dos quo possa usar sem.
'construir a le p itimidade da acumuliteao capitalism futura, /torque
transformag lo em capital. - Sus teoria nao cria com bons olhos
restringia o born comunt as coisas corruptiveis, C01110 Os alimentos. '
qua gg a de estoques pant inallutenc5o de preco. par exemplo. Isto
Locke, assim. admite que o excedente, desde clue nao seja cor-] signif ica que o capitalism° Hi mais 1011UC C extirpou do conceit° de
ruptivel, deterioravel, pode scr acumulado e, clam, o corruptive]
propriedade qualqucr conceit() alien que pudesse subsistir em Lo-
pods ser trocado pe]os nao corruptiveis, afirmando qua a sociedadc cke, ate l illesmo o alimento e os remeclios cleixaram de scr bem co-
civil e o poverno foram criados exatamente para garantir esta actin 11111111 para o capitalism°.
r
Inulautioi
Locke estabelcccu tuna rclaailo Inuit() estreita da propriedade
coil] quando derencleu pie a possibilidade de acumulag
... es clam que los hombres han acordado qua la posesion de
pito esta dirctamente relacionada coin a possibilidadc de adquiriF,
la Berra sea d esproporc ionada y desigual. mediante tacito e cornprar trabalho alheio. A legica c dircta. como o trabalho 6—o
voluntario consentimiento, han descubierto el modo en que un
r hombre puede poscer etas tierra de la qua es capaz de usar,
CHICO mcio de p erar °rip:madame:Pe leg g in], propriedadc, ao Sc
comprar trabalho allmio, se esta compliantl y) a !a path y's propriedade
lee ibiendo oro o plata a cambio de la tierra sobrante; oro y
por Cie produzida, dizia. A partir dai. as transferancias do hem pas-
plata puede]] ser acumulados sin causal- dano a nadie (...). (...) si g a ser lon g in g 's apenas polo contrato de compra e venda do
C CH iOS gobicynos, Las (eyes regulan el derecho de propiedad, y
mcrcadorias. Conn esta idait] Adam Smith lunch a cconomia
C la posesiam do la tierra es determinacla nor constituciones formando a base para Ricardo e depois Marx, estudarem o tra-
posit ivas.
balho como a niedida de valor das mercadorins".
C. Quer diner, Locke inicia sua reflexao afirmando clue a Unica,
Locke em sua construcaio tedrica justifica a actimulaybio capi-_ propriedade legitima e a procluzicia per° trabalho e somcnte pode Sc
talista, reconbecendo quo a propriedade pode ser legnima e Ening]:
da se se transforma em capital, ern ouro, em prata, em dinkeiro. E
evidente que Mao poderia imaginar o resultado dessa acumulaetio
C 9 - Como o Jidda C B Macpherson "13 hasta nos reftrirmos nos iratados ecorin-
micos de Locke para vermos quo era um mercamilista para o quail a acumuianilo
do ouro era urn alvo coned° da politica mercantil, 11 0 corm) um firn cm si Ines-
8 - Locke. ob. cid p.74. Estudo mak profundo sabre este coma desenvolveu Ma-
in°, mas porque accleraira e aun:enia‘a a comercio - p 216.
C cpherson cm Sell iiVIO " A Rona politica do indi‘ idualismo possessivoi de Hobbes
10 - Ricardo ern scu livro Principias clef econorma poluicav fribulaciOn c Marx
a Locke".
C ern soda sua °bra, aspccialmenic no Capita!.

I
24
I 25

C
acumular ate a quantidade corruptive]. Sc o hem nao c corruptive] 6 propriedade privada, de quarto a sua existencia podia scr benefica
inlinnamentc actuntiliVenTas demo se junta tantos bens? Corn a para todos, mesmo para os trabalhad ores que nao a podiam usufru-
possibilidade de pagar pelo trabalho alheio, ja que o trabalho pro- in. A partir do seculo XVIII, o direito e a coisa passam a se con fun-
duz propriedade. Esta claboracao teOrica c moral se cncaixava dir, chama-se a terra de propriedade, porque passa a ser demarcada,
como uma luva para o pensamento burgas e suas necessidades de cercada. identificacia individualtnente c "melhorada"
actnnulacao de capital. Dai a importancia para o capitalism° do Voltaire diz que a propriedade C libe rdade. Exatamente essa
contrato livre entre panes formahnente iguais. Toda teoria juridica era a contradict-10 da terra, a propriedade feudal, relativa c ligada a
posterior vat assentor a legit imidade da propriedade de bens na servos nao-proprietarios se contrapunha a outra propriedade nas-
transferencia contratual e na legitimidade originaria da aquisicao, come, de horn ens !l y res, clue livrementc contratavam sua forca de
normalmente um contrato dc trabalho. trabalho, para proprietarios absol utos. que determinavam o que,
Este melee info e clan° para Os prod utos manufaturados, mast como c quando plantar. A terra estava deixando de scr a fonte de
Item conseqUancias diversas para a terra c sous frutos. Embora Lo- i
todos Os bens de consumo da familia do servo e do nobre, para
cke afirmasse (me havia terra abu ndante c que sua propriedade es- passar a ser a produtora de mercadorias que deveriam render lucros
tava livada diretamente a_producao, into é, proprietarto sesta quem nos capitais investidos na producao. A lOuica da propriedade da
a usasse. o capitalism° a transformou cm ben' juridic° sujeito a ten-a estava scndo profundamente alterada: de produtora de bens de
tuna propriedade privada, a eta estabelecendo valor de troca. Por imedi ato consume para quail' a trabalhava, a produtora de bens que
Inuit° tempo o mercantilism° se baseava em comercio de bens su- pudessem ser transformados na nascente I idustria, ate disco farm
perfluos, de luxe, restrito as classes abastadas. A terra passou a scr nao bens COnSt1111IVCIS ou coruptive is, mas capital infinitamente
mercadoria com o crescimento do capitalism° e corn a tranSforma- acumuldvel.
ea° agraria na inglaterra, que reduziu as propriedades comuns de "Da Su tea a China, os camponeses possuem terras prOprias.
campos a pastagens a proprietaries 1.1111cos, individuals pelo proces- Somente o dircito de conquista pode despojar os homens de urn
so de vrcamentos Jentiosures)." De tar forma que duzentos anos direito tho natural" 12 dizia Voltaire em seu dicionario filosOfico.
depots de—Locke, a terra ja era propriedade privada, legitimada pelo Acred itava que fosse positiva a transformacão da terra em proprie-
contrato e tend° como origem urn ato do govern° que a cedia ou dade exclusiva ainda que expulsasse os servos, os camponeses,
reconhecia a sua ocupacao. Con esta transformacao, os frutos da porque os transformaria em hornet's !l y res, que IiVreMente poderi-
terra, corruptive is por natureza, passaram tam bent a ser actimule- am vender sua forca de trabalho:
veis, abandonando-se a 'dela de Locke. Poder acumular bens dete-
rioraveis significava a possibilidade C o poder de destrui-los, quer Todos os camponeses nao servo ricos, e nao e preciso que o
dizer, se o proprietario nao descja usar o bem, e licito que o destrua sejam. Carecemos de homens que tenham seus braces e boa
porque nisto consiste sua liberdade. A terra deixava de ser uma vontade. Mas ate esses homens que parecem o rebotalho da
provedora de aliment° para ser uma reprodutora de capital. sorte, participarao da felicidadc dos outros. Serao livres para
Voltaire em seu dieiondrio filosOfico considerou a propriedade vender o seu trabalho a quern quiser paga-los meihor. A liber-
da terra um direito natural c necessario ao bem estar de todos. Alias
o verbete propriedade e uma defesa apaixonada das virtudes da

11 - Vent este respeito o art igo de Ellen Me nskin Wood, As origens ogrdrias do
12 - Voltaire, Francois Marie Arouct de. Caret glesas trevado de ninafizieo;
cupitolisloo. dicionório filosOlico. p. 271.

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27
dade sera a sua propriedade. A esperanga cella de urn justo sa-
hornem a romper o brej o, empunhar o mach ado para lutar contra a
os sostentara."
floresta e a pegar no arado para arrotear a terra brava, so a conces-
s5o de terrenos e do liberdade pessoal serial]] estimulos soficiente-
Voltaire imaginavn que a sociedade civil c o governo baseados
mente fortes para o conseguir".m
na propriedade c no trabalho !l yre poderiam trazer 111710 so riqueza,
0 sistema feudal, baseado em relagOes de senhorio c de moti-
L mas felicidade aos homens, a todos os homens. E note-se que Vol-
taire sempre foi considerado um pessimista. vacOcs extra-econeimicas, nao era suficiente para empurrar o Esta-
do portugues nascente, a ocupacitio da terra ou a manutencao das
Na era dos direitos positivos, das ConstituicOes, quando o Es-
familias na terra haveria de ser feita coin base no interesse da pro-
tado foi "constituido”, as leis esqueceram os preambulos e as dife:
L pria familia em nela permanecer dai a liberdade pessoal e a propri-
rengas entre pereciveis e nao pereciveis; toda a propriedade, da_
edade.
L terra, dos alimentos, dos remedios, do ouro ou do !unbar, passou a_
Portugal nitsceu no skirl° XII, numa dpoca em bile se °omega-
ser direito subjetko c ate IIICS1110 direito natural de cada individuo
L que tivesse a sorte ou a argacia de tome-lo pare si u Os timidos It-
- sia a operar grandes transformaciejes na Europa. Naquele inicio, e
ainda par muito tempo, a propriedade da terra esteve ligada a obri-
mites qua os pensadores imaginal-ant para a propriedade ahsoluta
gatoriedade do cultivo”. Assiut, o que se podia chamar de proprie-
L de terras e outros bens. deixararn de existiii, os Estados constitucios_
dade era o use da terra. 0 direito a terra. portanto, estava tigado ao
nais reconheccorn na propriedade a base de todos os direitos c
L mars do que isso. o funclamento do prOprio Direito._
scu uso, a sun trail Neste sent i do o valor da terra estavai
L diretamente ligado ao valor do traballio. j5 quo nada podia valor a
terra sent o trabalho quo a feeundasse. 0 »ascimento do direito do
propriedade ou do direito de usar e dispor da terra, em Portugal,
Da teoria a prettiest: a Id innauguesa de terms
esta ligado a liberdade do trithalito. 0 trabalho livre e a livre pro-
priedade da terra s2o pressupostos do ulterior desenvolvimento da
Enquanto os tcOricos elaboravam a _justificative moral, politica
inotiernidade e do prOprio mercantilism°.
e juridica para a nascente propriedade capitalista, na realidade das
As leis de Portugal e Espanha dessa epoea sao abundantes em
C
sociedades curopCias a transformagao ocorria. 0 trio de Portugal 6
n5o so clucidativo, como influente na formaclio do direito c socie- tratar do valor da moecla, do saldirio, normalmente estipulado em
dade brasileiros. seu maxim o, das jornadas, estabelecidas como um die de trabalho e
cxercido do sol a sol e a perscguicajo dos vadios. Todas estas medi-
A abundencia de terras e a falta de trabalhadores que se esten-
das legislativas tinham cm vista a produce() a graria. E ainda Virgi-
t dia par pratieamente toda a Europa, talvcz ocasionsela pela paste
nia Rau que em seu precioso livro nos citsina,
negra, polo exodo rural, pela expulsao dos mourns na peninsula
C. iberica, fizeram crescer o valor do trabalho human°. Isto somado
C. ao interesse de produce° de bens quo se pudesse mercadejar, fazia Ent Portugal, data do seculo XIII, do 1211, o primeiro diploma
Iegislativo que m anda perseguir os vaciios, e da mesma canna-
C. coin que cada vez ganhasse mars importancia o trabalho da terra e
ria e tambour o primeiro que se ocupa do tabelamento do preco
nao o trabalho para outran], ao servico de outrem, mas o trabalho
C.
para si 'sworn°. Por isso, dizia Virginia Rau ao analisar a ocupagäo de certos generos e da taxa dos saldrios dos servidores rurais -
territorial portuguesa depots da expulsäo dos mourns: "Para levar o
C 14 - Ver RAU. Virginia. Sesm arias medievats portuguesas. p. 28.
13 - Voltaire. ob. cit. p. 272 IS - Portugal tern conic data de fundacâo a saerack de D. A fonso Henriques
C. coma scu primeiro rei, em 1193.

28
C 29
C.
a lei de D. Afonso III. de 26 de dezembro de 1253. A partir de obrigacees: obrigacao de cultivar a terra; limite a manutencao do
erne a "populacao que vivia de soldada, estava sujeita a pres- gado a apenas o indispensavel para puxar o arado; obrigacao do
criefies rigorosas para a compelirem a trabalhar". Traca-se de- traballiador estar vinculado a um patrilo com salerio maxima, esta- ne
finitivamente uma linha divisoria entre o homer trabalhando belecido; fixacão das rendas a serem pagas pelos lavradores aos ft
por coma prapria e o assalariado. Assim como a fortuna deter-
minava gradacees c distincOes de alcance juridico entre os in-
proprietarios de terras, em caso de arrendamento, etc.
Em 1514 as sesmarias foram reestruturadas pelas OrdenacOes
ng
dividuos da populacao ordinaria, era lambent o direito de pro- Manuelinas 17 . 0 institute foi repetido pelas OrdenacOes Filipinas, Ct
priedade sabre bens avaliados em trczentas libras e a posse de em 1603, com o texto que nos chegou c que tern servido como seu
ho is para lavrar a terra. qua libertava o homem da obrigagao de conceit() mais acabado:
trabalhar por coma allwia.
Sesmarias sao propriamente dadas de terras, casas ou pardiei-
sao infuneras as leis, a partir dai, q ue tratam do traballio e das ros, que foram ou sac) de algum senhorio, e que ja em outro
remuneracees, das obrigayaes de trabalhar e contra a vadiagem. tern po foram lavradas e aproveitadas, e agora o nao saw. As (3/41
Apesar disso cada vez fl Ca mais dificil c nao adiantam as leis con- nazis terras e Os hens assns danificados e destruidos podem e (3/4
tra os vadios e que estabeleccm salérios maximos, os bracos livres devem scr dados am sesmaria pelos Sesmeiros, que para isso
cxigein mais soldos ou sc negam a trabalhar simpICSIllente. E nesse foram ordenados. IS
momenta histerico que surg e em Portugal a Lei de sesmarias, pro- t
vavelincmc aortmeira lei agiaria da Europa dtgna desse none. A Lei estipulava 11111 prazo de cinco anos para que a gleba ea- (11
Con, ela passa a scr condicao de propriedade da terra o seu cultivo, dida em sesmaria fosse integralmente demarcada e aproveitada,
evidentemente convivendo cam os restos do sistema c da ideologia case contrario seria revogada e entregue a outro interessado. Cum-
feudais, qua vai paulatinamente perdendo espaco territorial e poli- prindo o prazo cram confirmadas, adquirindo-se o direito a gleba.
tico. Este dircito como se ve estava ligado a ocupacao e use da terra, is
Verificando que faltavam bracos para lavrar a terra, havendo quer dizer a propriedade tinha pronta c inculacao com o seu exerei-
concentracao de pessoas ociosas e famintas nas cidades, o Rei de cio efetivo, ja que se nao houvesse efetiva ocupacao, poderia a cis
Portugal, D. Fernando, cm 1375, obrigou os proprietarios de terras gleba novatnente scr dada em sesmaria. to
a produzir sob pena de expropriacao e aos bracos livres a trabalhar Deve-se natal- que o instituto foi criado no seculo XIV, para re-
para as proprietarios, estabclecendo.zsalarios maximos c as vincu- solver situacao especitica daquela epoca e, embora tenha sido re
lando a contratos que tivessem a duracao de pero menos urn ano. admitido em todas as Ordenacàes do Reino foi cada vez menol
te
Com isso criava ogilstituto das Sesmarias, Krim o qual obrioava g usado em Portugal, especialmente depots do seculo XVI.
todos transform arem suns terras em lavradio cob pena de nä° o 0 processo de avanco da propriedade mercantilista, impulsio- Le
lazendo, as perdereni a (mem quisesse trabalhar, alum de pelas nada pela descoberta da America e do novo caminho para as Indias,
scveras que poderiam variar da expropriacao, acoites ou desterro. to
A lei de sesmaria assumiu integralmente a ideia da propriedade
como o direito de usar a terra e, mais do que isso, a obrigacdo de 17 - OrdenagOes cram compilacaes ou consolidagaes de leis vigentes a dpoca.
to
inela lavrar. Por isso, antes de scr uma lei de direitos, é uma lei de Eram verdadciros c6digos que compreendiam todos as ramos do distil°, determi-
nadas por um rci. It-4s grandes ordermoes se seguiram em Portugal, as Afonsi- 41
nas, em 1447, as Manuel inas em 1514 e. finalmente, as Filipinas, em 1603.
16 - Ideindbidew. 18 • Orden:10es Filipinas, Livro IV, Iltulo XVI/1. Atualizei ortograficamente

30 31
44
a profunda reviravolta no pensamento filosOfico e no juridico, cada tarnente por issolmais tarde, Marx demonstraria que o que e vendi-
vez mais se aproximando do direito de propriedade cone uma ga- do pelo trabalhador naI o e o trabalho, Inas a forca de trabalho, conic
rantia ao sett plena e absoluto exercicio, foi enfraquecendo o insti- urn potential de produyao de bens.I
tuto ate a sua inviabilidade total no comego do sdeulo XIX, corn a Estas ideias foram transferidas para o corpo das ConstituicOes,
constitucionalizacao da sociedade portuguesa e a fundagâo do Es- assim, a francesa do ano I (1793) estabelecia: "0 Governo existe
tado Nacional. para garantir ao hornem o gozo dos setts direitos naturais e impres-
Quer dizer, a propriedade mercantil portuguesa nasceu critiveis." (artigo 1°). 0 artigo 2° esclarecia quaffs eram ester di-
• um direito ao use produtivo, was foi se transformando ate ser um reitos naturals e imprescritiveis, "a igualdade, a liberdade, a segu-
r direito independ ente, cuja legitimidade estaria vinculada ao negO- ranca e a propriedade".2°
cio juridico quo a trocou por dinheiro ou outro bem tido corruptive!. Exemplar na formulae:10 do Estado Liberal 6 a Constituicrto de
Comparando assim a trajetOria da teoria corn a pratica portuguesa Cadis 21 , quo definia claramente set : a propriedade o direito indivi-
flea facil entencler o processo histarico de criaciio da propriedade dual mais huportante: "A Nackho tern o clever de conserver e prote-
privada no 'mind° content poraneo e a afirmacZio certa de que era e ger, por mei° de leis sabias e justas, a liberdade civil, a propriedade
ulna 111VC1100 recente, construed° humana quo nada tens de sagra-, os demais dircitos legitiwns de todos os individuos que a com-
Fla, nem de natural. poe,,,22
A primeira Constituicao portuguesa, do 1822, dispunha: "A
Constituicdo Politica da outdo Portu guesa tent por objeto manter
A propriedade nos Constituicties Nacionais liberdade, seguranca e propriedade do todos os portugu eses". E
mats adiante definia qua a propriedade t: um direito saarado e invi-
Tod o o direito do Estado moderno esta assentado na concepcao Navel de so dispor a vontade de todos Os bens (artigo 6°). A brasi-
dos direitos individuais. Estes direitos eram nada mais nada metros lcira imperial, de 1824. se g uia o mesinn torn, stenos apaixonado.
que a possibilidade de cada homer( livre adquirir direitos. Quer Illas de semelhante contenda:
C. dizer, a organizacao estatal estava criada para garantir, individual-
C mente, o exercicio do direitos individuals. Tonics de 11111 lade o Art. 179: A inviolabilidade dos dircitos civis e politicos dos
"howern livre", nem servo nein escravo, pronto para contratar (leia- cidad2os brasileiros, clue tem per base a liberdade, a seguranca
se vender) sua prOpria Corea do trabalho e teoricamente capaz individual e a propriedacle, d garantida pela Constituiefto do
C
adquirir (corn o produto da venda do seu trabalho) propriedade. Imperio, pela maneira seguinte:
C Locke dizia quo somente era legitima a propriedade que fosse re- XXI I - 6 garantido o direito de propriedade ern toda sua pleni-
C. sultado do preprio trabalho, sendo legitimo a qualquer pessoa corn- tude. Se o bem juridico legalmente vonificado exieir o use e
prar o trabalho alheio e, portanto, o seu fruto. I9 Nesta ideia estao os. emprego da Propriedade do Cidaddo, sera ele previamente in-
C
dois lados, o trabalhador !l y re que produz propriedade le g itima, e a, denizado do valor deft. A lei marcara os casos ern que tern
C. possibilidade do adquirir legitimamente bens. Este tambew claro
que o trabalhador ao vender seu trabalho recebe apenas o in inimo
para subsisténcia, ja que sua producao (que seria sua propriedade 20 - Ver Miranda. Jorge. restos lastdricas do dadito consatucional. p. 75.
legitima) esta transferida para quern the comprou o trabalho. Exa- 21 - Constituican espanhola de 1812.
C 22 - Ver Miranda. Jorge. idcm. p. 108. vcr tarabeta a proaOsito a brahante an list
bests dispositivo peb) constituctonalista e historiador espanhol CLAVERO. [tar-
19 - John Locke. Ob. cit tolomd. Propriedad coma /lbertod elcelaracian del clerecho de 1811. 101 p.

32 33
gar esta Onica excecao, e se darn as regras para Sc determinar a a "lei assegura ao proprietario o direito de usar. gozar e dispor de
indenizacao. scus bens, c de reave-los do podcr do quern quer que injustamentc
os possua.-' A propricdade too discutida nos sOculos anteriores
Em todas estas constituicOesue esta realmente protegido é o passou a scr wn dado da realidadc, absoluta c indefinivel e de pro-
direito de propriedade, porquc a liberdade, a igualdade e a seguran- tecao cogente para as ConstituicOes e Estados Constitucionais Ca-
ca são nressupostos da propricdade moderna e significant contrato pitalistas2'.
do !mittens livre e iguais. garantida sua execueao polo Estado, Os outros direitos consign ados nas vel has constituicties, como
0 dircito foi so construindo sobre a ideia da propricdade priva- a seguranya. a liberdade c a igualdade, como definia a francesa de
Ida capaz de ser patrimoniada, isto d de ser urn bent, uma coisa que 1793, nao mercecram Jamul dos legisladorcs tal cuidado. Alias,
pudesse ser usada, fruida, gozada, coin absoluta disponibilidade do somente mereceraill detalhamentos em sua estreita relaeäo corn a
proprietario e acumulavel, indefinidamente. Portanto csta proprie- propriedade c sua fonte de legitimacao, o contrato, como garantia
dade deveria ser exercida sobre urn been material, concreto. Isto dc se g uranca juridica dc podcr reaver os bens de quern injusta-
siguifica que o direito individual é, ele tambein, fisico, concrete. A mente os possua, ou ter a liberdade de dispor, usar ou nao usar sews
propriedade assim, era coisa quo se subordinava a vontade livre do bens, ou ainda or garantida a igualdade no memento de contratar
proprietario que dela podia usar e abusar, excluindo qualquer inte- sua trail
rcsse ou direito alhcio, 0 proprietario podia, entao, usar ou nao Muito cedo estes principios de direito individual tiveram que
usar, e mcsmo nä° usando nao a perdia, neste sentido, o direito de resolver problem as nab individuals, come a propriedade corn urn de
propricdade estava conccbido commdmprescritivel, 0 seu flm de- todos c as propriedades comercials, independentes dos individuos
pendia da vontade livre do proprietario que, tendo poder de vida e que as compunham.
morte sobre o bent, podcria destrui-lo ou alieni-lo, transferindo-o a A propricdade comum de lodes, passou a scr do previoEsta-
outra pessoa livre, por urn contrato: o proprietario passa a ser se- do, criando-se a dicotomia pliblico/privado (o quo é privado nao é
nhor absolute da coisa objeto de seu direito. pUblico, o que c pUblico tern que ser estatal). Para a propriedade
0 Direito Privado, tainbem chamado de Civil, detalhou Os di- comercial, a direito civil - ou comercial - foi criando a noeâo de
reitos individuals centrando-os, eviclentemente, na propricdade, de sociedades. semprc ligacias aos individuos quo as compunham ate
tal forma que os COdigos content clausulas para solucionar qual- recriar, mais rceentemente a sociedade anemima, ao emprestar a
quer disputa passive!. Imaginam e legislam sobre situaeOes como, nocäo de pessoa, responsabilidade e capacidade 5 ficeh-o da pessoa
por exempla, a de urn fruto quo, pendente da & y ore que nasce em juridica, quo em born formada do pessoas individunis mUltiplas e
uma propriedade, cairn, ao amadurecer, cm outra. Ou ainda situa- desconhecidas, c uma. Esta criaciio reafirma a iddia de individuali-
coos de transmissao de propriedade causa mortis quando sucessor e dade patrimonial. Mais tarde o Estado passou a ser considerado
sucedido morrern ao mesmo tempo, ou ainda, quern sera o proprie- uma pessoa juridica, reafirmando a supremacia dos direitos indivi-
tario do M y er) do rio que seta. Estes detalhes revelam a preocupa-
cao extreina e cuidadosa do legislador coin o direito individual de
propriedade. 23 Artigo 524 do COdigo Civil Brasileiro.
Apesar do esmero das legislaeOes é raro encontrar nas leis de- 24 - E elaro quo no seculo XIX o debate continuou, corn criticos severos da pro-
finicees de propriedade. 0 COdigo Civil Brasileiro (Lei 3.071, de pricdade privada, como Proudhom, que afirmava ser a propriedade urn roubo,
I° de janeiro de 1916), por exeinplo, dedica urn capitulo corn 50 enquanto. de outro lado, Thiers defendia a propriedade como um dircito natural,
integrantc da condign° humane. E do seculo XIX, tambs c es as serias e pro fun das
artigos a propricdade, etas nao a define, dispondo too somente que criticas de Marx c Engels.

34 35 .
duais, ja que o Estado, ficcionalmente, passa a ser uma pessoa,
Nesta perspective, de que a propriedade pUblica g uso concreto
diferente, mas individual.
e a privada e direito abstrato, dispde a Constituic g o Brasileira de
0 desenho da propriedade privada sempre foi muito claro des-
1824 ao estabel ecer a possibil idade de desapropriac g o de bens de
de as constituiefies naseentes, nao acontecendo o mesmo coin a
particulares que tivessem utilidade para o uso publico.
propriedade pUblica (estatal). A dicotomia pOblico/privado e uma
Todo ben-) quo ganha urna Lid/Made pnblica sera transferido
L criacao dos Estados constitucionais. Enquanto toda a teoria juridica
propriedade do Estado coin indenizac g o ao proprietario privado
L dos seculos anteriores estava preocupada corn a legitimayao da
existente. Esta norma revels que a propriedade privada nao neces-
propriedade, as definicOes do Estado, on sua teoria peblica, se pre-
sitava de utilidade social, por ser um direito abstrato do proprieta-
ocupava corn a organizaeao estatal, seu funcionamento, representa-
rio, teria a utilidade que ele the desse, incluindo nisso tuna inutili-
L tividade, organicidade, competencia e eficaciasTs
dade. Este poder outoreava um carater absoluto a propriedade,
Soria ingenuo e equivocado pensar que a "propriedade pnblica"
que dependia exclusivamente da vontade do seu titular, quo sendo
nao exist° ou que nao tivesse lido referida pcla legislacao pre-
L poderia expressada quando c como eaten dense. Revelava,
constitucional. Ao contrario, descie que se comegou a construir, na
air d a, a flotilla constitucional, quo todas as coisas deveriam ser
Europa, a ideia do hornet)) livre e de sua propriedade inivada ou
privadas. sendo a propriedado pahhca lima excegao de List).
L organizou-se, paralelamente e como exceefio, a propriedade pnblica
Em 1.1111 cnsaio escrito 1:111 1977, intitulado "Direitos humanos
(estatal).
como direito do propriedade, Macpherson analisa a evolucao do
A ideia era a de que todos os bens (juridica e matcrialmente
conceit° de propriedade nos Se21/intes termos:
con siderados) pudessem ser apropri ados a 1.1111 patrimonio individu-
al. A terra tambein, e eon especial importancia por ser uma pro- Desde Aristeteles ate o seculo XVII, o CC/Ili:Cho de propriedade
dutora natural de bens e materia prima. Assi111, todo quinhão de
abrangeu dois direitos o direito individual de ex-
terra de urn pais estaria destinado a ser privado e produtivo. 0 born cluir outrem do uso c gozo de gualquer coins, e o direito indi-
senso indicava que haveha necessidade de caminhos, estradas e
vidual de inc ser excluido do uso e gozo das coisas quo a soci-
outras "utilidades commis' a todos os cidadaos, assist como o Es-
cdode declara coma sendo de uso comum — terras, pargues, es-
tado precisava do predios para seas agentcs, policiais e juizes. Os
tradas, audios. Ambos cram direitos do individuo. (...) Do se-
bens ou as terms quo scrvissem a estes fins teriam sempre uma
culo XVII aos tempos atin g s, a noc go do propriedade senti-
utilidade @Ilea controlada polo Estado. Finalmente, coin a inven-
ments foi mais estreita, ficando reduzida ao priinciro direito —
ts. cao da pessoa juridica de direito pnblico, passaram a ser proprieda4
o direito de excluir outretn.26
de do Estado. Ate hoje o termo propriedade do Estado e visto coin
restrie gies, alguns juristas tern preferido chama-la de dominio
Na ninth-nip de noon°, a terra deixou de ser urn direito de to-
blico ou bens do Estado, conic usa a Constituigao viecnte no Bra-
dos para ser tun direito individual, excludente, por isso, a necessi-
sil. A diferenca estã no carater livre c absoluto da propriedade pri-
dade do desapropriacIio, conforms o disposto da Constituiyao impe-i
E vada ern contraposicao coin a indisponibilidade dos bens pUblicosu
t rial, pars os usos pOblicos. Se a terra fosse urn bem do todos, uma
Mas o certo e que a propriedade pUblica esta ligada ao uso peblico
utilidade comum, nao haveria a necessidade de desapropriagao mas
- do Estado ou do cidadao - e a privada c urn poder (direito) do
proprietario, independente do uso que fags.

n 25- Ver especialmentc reds particular a obra de Jean Boma. 26 - Macpherson, CU. 4 scensäo e guinea do josnea econöm?co e °soros ensaios
p. 104/5.

36
37
I
tao somentc de redistribuicao para mentor aproveitamento, como mento do dircito em toda a sua plenitude, e em segundo pela (mica
aeonteeia durance a vigeneia da lei das sesmarias. excecao existente, a desapropriagão.
A criacito da propriedade moderna coloca de um lado uma pcs- "Ern toda a sua plenitude" quer dizer exatamente que a propri-
soa, quc a titular do dircito chaniada sujeito de direitos, urn indivi- edade garantida tern carater absoluto, oponivel e excludente de
duo. De outro lado, objeto Besse dircito, urn bem, uma coisa, que todos os interesses e direitos individuais alheios. A afirmagão é
compac o patrimOnio individual. No inicio este bem era material, quase tao eloqUente quanto a da portuguesa que a considerava urn
fisico, depois, corn o tempo alcancou as abstraceies, como a inven- direito sagrado e inviolavel. A plenitude de uin direito 6, na verda-
go, os dircitos de autor e atualmente ate a moral e o born nome de a plenitude de seu exercicio, quer dizer que nenhum limite have-
individual passaram a ser obi etos de direitos Qatriinoniais, o que, ra de se impor a ele.
siunifica que estas coisas podem ter valores estahelecidos e serem Embora nao esteja dito. esta claro que a Constituigão e as leis
trocadas por outros bens como o din heiro. que a regulamcntam tratam a terra como hem juridic°, objeto do
Desta forma, tudo o quo fosse coletivo c nao pudesse scr en- dircito absoluto e excludente. Os COdigos v?to nascendo, na Franca,
tendido coma use pUblieo nao teria relevfincia juridica. "ludo o clue na Alen-midis c se espalhando pelo mundo, reavivando e remarcan-
nao pudesse ser materializado cm patrimönio c nao pudesse ter urn do o desenho de propriedade privada da terra. Os COdigos regula-
valor ainda quc simbalico tambem estava fora do Direito. E o titu- mentain as diversas especies de bens, entre eles os mOveis e os
lar de um direito haveria de scr sempre lima pessoa individual que iinOveis. Mas a diferenga 6 apenas formal, no modo ou procedi
pudesse ser responsabilizada por seus atos, tendo, akin de direitos, Imento de aquisigao e prova, a propriedade e essencialmente urn
deveres. Estes deveres sao entendidos a partir de uma rclacAo corn Iso, a divisao em categorias tern o sentido de proteger melhor o di
outro titular de direito, o que significa que são, clan tarnbam, obri- reito excludente.
gaeOes individuais. A propriedade descrita na Constituicäo de 1824 6 privada e in-
0 objeto do direito individual haveria, tarnbam, de ser indivi- dividual, a pdblica e exceflo. No conceito geral està explicito que
dual, conhecido e avaliavel economicamente. Nesta avaliacäo re- o proprietirio pode tudo em relagAo ao bem que possui e, bastando
side sua juridicidade, a tal porno clue o direito resolve todos as pen- a presungao da liberdade contratual, os acordos valem mesmo que
dências, em Ultima instfincia, em perdas c danos. Esta re2ra ate sejam destrut ivos dos bens. Alein da\teL-ra,outro ben' valiosissimo
mcsmo para bens patrimoniais intangive is, como o chamado dano entra no rol das propriedades, otrabalho, desde a concepgao de
moral, a propriedade intelectual e os direitos de autor. Ate mesmo a Locke. Portanto o contrato que compra a terra ou o trabalho são
v ida individual passa a scr valorada patrimonialmente. validos a partir da mesma presungao, lido importa que seja para
Para organ izar csta estrutura social armada corn as nascentes deixar a terra Merle ou destrui-la, nem importa que a remuneraggo
Constituicees do seculo XIX, surgiram os Codigos Civ is, Comer- do trabalhador seja insuficiente sequer para mante-lo vivo.
ciais e Penais. 0 elogio do trabalhador livre se transforma na presungao juri-
dica da liberdade contratual, vista sempre desde uma perspectiva
individual. 0 contratante tem liberdade para fazer e desfazer, con-
A propriedade privada como contrato tratar e distratar. Os homens livres sem propriedade vendem sua
forga de trabalho, por valor evidentemente menor do que o dos
A leitura do artigo citado da Constituicao Imperial Brasileira bens produzidos, de tal forma que o resultado da produga-o pertence
de 1824, chama a atencao por dual coisas, primeiro o reconheci- ao contratante. legitimado pelo contrato. Esta nova_propriedade
legitimapara o sistema 6 fruto portant° do contrato.

38
Quer dizerh a legitimidade da propriedademostertutestà.assente.. A propriedade, assim, se coneeitua como o produto do encon-
no contrato: se for la_gitimo, le c itima sera a propriedade A acumu- tro de duas vontades na qual uma transfere a outra o que era legiti-
lacao de bens e o aumento do patrimOnio de uns pelo trabalho de mainente seu. 0 produto do trabalho do operario era seu, mas pelo
outros, apropriando-se do resultado do trabalho alheio ganha status contrato ficava transferido ao empregador, na idOia geradora de
de legitimidade juridica contratual. E onde reside a legitimidade Locke. A Oiiiea pergunta juridica que cabia neste context() era:
contratual? Na livrc manifestaeao de vontade, que por sua vez se "quis fazeho'?" e nao "teve necessidade do faze-lo?" ou ainda "pode
assenta na 'data do homem, quer dizer individuo, Iivre de todas as escolher entre varias alternativas?". Estas perguntas foram respon-
=arras coletivas. 0 homem 'l y re nao a servo nem escravo, mas didas por Marx c Os socialistas e teve come conseqinancia a desle-
tampoueo ha de ser intcgrado a um grupo de pessoas com interes- gitimacao da propriedade na sua origem. 0 Papa tambem se fez a
ses (poder-se-ia dizer direitos?) cornuns, como sindicatos, commit- mesma pergunta e respondeu na Encielica Reru, NOV0111171 quo,
dadcs ou povos. Na ideia da cultura constitucional do sectdo XIX, para quo possa ser garantida a propriedade privada e necessario quo
C os direitos coletivos nao podem ser admitidos porque restrinoem os
individuais c, portanto, obscurecein a liberdade contratual.
o contrato seja alem de legitimo. i. justo, e para isso o Estado deve
intervir. Ledo XIII explicitamente considerou quo a propriedade
As necessidacies elementares da vida humana coma, nlimentar- Lull direito natural: "a propriedade particular c pcssoal c para o ho-
.41 se c master a prole, e as criadas pela vida social como, vestir-se ou rnet)), de direito natural. deve reconliceer-se ao homem nao
abrigar-se das intemperies, encontrar a l iv io para as dores e realizar- a Deuldade good de usar das coisas exteriores, arias ainda o direito
se coin os prazeres. nao saw levados em coma. 0 Estado moderno °stave] e porpattio de as possum-, tanto as quo se consomem pelo
L trata a liberdade apcnas como a capacidade consciente do contratar uso, como as clue permaneccm depois de nos terem servicio8.27
L e nao C01110 a liberdade da busca da felicidade quo encontra Os pra- Naqucla Encielien, e retomada, como sc v ei , a idaia de Locke
zeres, medita nas cramps, cra nas ideias e luta por conviceties. Ali- do direito a acumulacao. e explicita que a propria terra pode, e ate e
as, observando a revolta popular por este entendimento faccioso da reCollIellda vel quo seja, objeto de propriedade privada. Alias este
liberdade, o Papa Leno XIII, em 1891, publicou a enciclica Rerum text° eatOlico e /Milt° claro em defender a propriedade privada,
Novarztm, gush em defesa da propriedade privada faz um libelo expend° que Deus nao deu a terra para todos, mas sins a entregou
C contra a desumanidade do contrato de trabalho, portanto contra a para que cada qual coin sua incEistria dela se apropri asse. Adianta,
liberdade absoluta de contratar. Se liberdade a a escolha entre ',Dram, quo. o Estado deve estar preocupado com o contrato justo
C muitos, s° o patrao tiitha liberdade porque tinha a sua frente um entre trabalhadores e patnbes, para que o salario possibilite vida
batalhao de famintos pronto a ser contratado por qualquer preco dicna e o direito de vir, 1)0 ttpando, adquirir legitima propriedade
C que mitigasse sua Come didria. das coisas c da terra. Arrola a seauir os des-ores do Estado, qua sno
Entretanto, diz a lei e a teoria, o contrato e o encontro de duas
t vontades. Uma (mica vontade nao pode compel-lo. Esta e a ideta
a garantia da propriedade e a garantia das relacCies de trabalho,
dando protecao ao trabalho dos operarios. das mulheres e das cri-
magnanima da inodernidade. 0 trabalhador e o empregador capita- ancas. 28
t lista tam que scr igualmente livres; comprador e vendedor devem
ter o mesmo gran de liberdade na op*, que fazem, qualquer inter-
Na Segunda metade do saculo, XIX, portanto, ja temos duas
claras posicOes acerca da legitimidade da propriedade privada, am-
ferancia do Estado ou de outrem poderia viciar essa vontade e tna- bas contrarias ao seu carater absoluto: a primeira, dos socialistas,
C. indelevelmente. Isto fez corn que igualdade e liberdade se
transformassern em concertos formais nos COdigos, palavras vazias
27 - Rerum Novarum, p. 12 e 13.
de contend° e prenhes de mentiras. 28 - idem, p. 38-51
t 40 41

C.
ft
argumentando que a propr iedadc individual dos bens essencia is, comuns. Esta transformacäo se den na Inglaterra, durante os sect,-
entre ties a terra, e ilcgitnna, e a seuunda, liderada pela Igreja, de los XVI a XVIII, corn o instituto do cercamento (enclosure).29
rt
que a legitiiii dade nao se assenta somente na legalidade do con- Na America Latina, especialmente no Brasil, a legitimidade ft
Erato 'l yre, mas na avaliacao da justeza delc.
A grande discuss5o de origem dessas duas posicees é saber
origin:4El seria uma concessão do Estado. Ate 1822 a concessith ft
era por meio de sesmarias e depois de 1850, por ineio de venda ou
qua' d o ponto justo, entre dois extremos, aquele que mata o traba- entrega dc terras devolutas.
ft
lhador c sua familia de tonic. de urn lade, ou aquele que remunera Resolvido o problema da origem, a Inodernidade assenta a le-
ft
integralmente o trabaihador, entregando-lhe todo o valor agregado gitimidadc da propriedade da terra no contrato de transferancia,
corn seu trabalho e, portanto, nAo resultando nenhunta mais valia inclusive cercando-o de protecao e fonnalidades, como o registro
para o empreendedor capitalists? Esta discussao, como se esta a
ver, aproxima ou distancia os socialistas dos cristaos, podendo ate
de inuiveis. E que a terra comecou a gan har valor de troca e servir
de garantia aos emprestimos dos capitals financeiros. Por esta razâo
fi
mcsmo haver cristãos socialistas. os registros de imOveis passam a forma de transferéncia de propri- I)
Sc o contrato do trabalho, como original-10 do direito de pro- edade, into C. a transferancia somente se operaria corn o registro do ()
priedadc sobre todos Os hens ineveis, traz este gran de complica- contrato. do negOcio juridico. 0 registro ganha esta caracteristica
erto, a origem do direito de propriedade sobre a terra é ainda mais somente em 1864, coin a Lei 1.237, de 24 de setembro, que regu-
complexo: ninguein fez a terra (on Deus a teria feito) e, portanto, lamentou as It ipotecas.'D
nä° e possivel um contrato corn sett criador. Locke resolve este A partir da f, a diseussäo juridica capital ista ficou limitada ao
problema dizendo que n5o se trata de ser criador da terra, mas dos contrato, a autonomia da vontade, a fraude a credores, aos direitos
frutos da terra, isto 6, a propriedade origindria é de quern a tornou de terceiros, As formal idades contratuais, sucessOes e heranea. A
produtiva, chamando isso de direito de "melhoramento". Se obser- propriedade se transfere por contratos, abstratamente, sem necessi-
varmos bem n5o se trata de trabalhar a terra, mas de usi-la produti- dade de qualqucr nova criaeão. A propriedade c transferida como
vamente, corn fins lucrativos. Voltamos an contrato de trabalho, estA, podendo o proprietario fazer dela o que melhor Ihe pareca,
pode-se comprar o trabalho (a fovea de trabalho) de alguem para
trabalhar a terra e corn isso Ficaria leeitimada a propriedade dos
frutos da terra e a prepria terra do contratante e nao do trabalhador.
inclusive destrui-la, pois o dano sera seu e ninguem pode reel am ar
o dano que alguem cause ao sett pr6prio patrimonio. Este direito, a
portanto, c tan absoluto, t5o amplo que contem a prOpria destrui-
Locke dizia ser de pouca imporlincia a diseussäo sobre a proprie- e5o. 0 mais grave 6 que nao se esta falando de qualquer bem, mas
dade da terra, que havia em abundancia, e os bens abundantes tem da terra, fonte dos alimentos, da HistOria, dos remedies, da vida.
pouco valor, mas sin, da transformaeào da terra em unidade de A ideia era a de que urn pais constituido em Estado tivesse
producao. Este era o sentido do melhoramento. toda a sua terra ocupada por propriedades privadas. Na Europa, ao
A propriedade originaria da terra na Europa, assim, dependia se constituirem os Estados, ficaram reconhecidos os direitos as
da liberano da gleba das amarras feudais, dos amigos direitos
costumeiros, da producäo para a subsistencia e das chamadas terras 29 - Wood no citado artieo diz: "...enclosure significou, mais precisamente, a
extincäo (como ou scm o ccrcamento das terras) dos direitos de use baseados nos
costumes dos quais muitas pessoas dependiam para tirar o sustento." Ob.cit. p.22.
30 - Ver a propOsito o artigo "Ocupacao por necessidade" elaborado pc lo Nticleo
de Regularizacfio de Loteamentos da Procuradoria Gera! do Estado do Rio de
Janeiro, publicado na Revista de Dircito da Procuradoria Geral, em 1988, n. 40.
p. 105-117.
V
42 43 V
[arras ocupadas, apesar da violencia do processo de reocupaerio terra, portanto, quando entra no mundo do patrimOnio privado dei-
pelos capitals mercantil istas. Nas Americas portuguesa e espanhola xa de ser uma utilidade para ser apenas urn documento, urn regis-
foi muito diferente: os titulos de propriedade concedidos pela Co- tro, uma abstracao, urn direito. 0 aproveitamento da terra ganha,
roa aos povos indigenas foram anulados e reconhecidos apenas os juridicamente, outros nomes, uso, usufruto, rends, assim como a
que se enquadravain dentro dos novos padrOes de direitos, propri- ocupagao fisica e chamada de posse. A Terra deixa de ser terra e
L ctarios individuais. Todo o resto de terras estava aberto a COI1CCS-
vira propriedade.
L. sOes do Estado, segundo os intercsses do capital mercantilista, para
produeao de bens que interessasse a metrOpole, nao a fome dos
nativos. Cont isso as novos donos expulsaram os irtd ion, os africa- A propriedade pablica como uso, utilidade.
nos fugidos do cativeiro, c os novas trabalhadores livrcs que cren-
do cm sua liberdade resolverain ocupar urn treeho de terra. A ocu- As terras privadas, portanto, se legitimam por um contrato e
L pacao nao gerou para ores propriecladc, porquc nester lado do mon-
do o sistema proprietario exigia que a propriedade fosse legitimada
estrio detalhadamentc tratadas nas legislacOes. As pUblicas scmpre
tiveram urn qratamento muito diferente. Rio as sobras das privadas,
por um peclaco de paper outorgado pelo Coverim. 0 Estado, e so
srio as que ainda nao a Icancaram o SUM'S de privadas, Inas poderao
L ere, distribuia terras. reconheeia titulos e negava direitos. Pode-se alcanyai um dia, quando passarem por uma forma origin g ria de
dizer que os precoces Estados americanos se constituiram para
,aquisieg o, como as devolutas, c stio as necessarias ao uso do todos_
I legitimar essa propriedade originaria, proib in do-as a sous Mhos e
entregando-as ao capital mercantil externo.
Aromas terras privadas precisam passer ao uso de todos rou t do
Estado e, para isso, foi criado desde as ConstituicOes funcladoras,
C A intervencao deste Estado no processo de oeupacao territorial
Inuit() profundo, dominante, pode-sc dizer. A terrs disport ivel nao
coma a de 1824 110 Brasil. o instituto do desapropriacao como inte-
grante do prOprio conceit() de propriedade. A analise desta relacao
6 de quern a faz produzir, mas de quern o Estado escollte. A ocupa- entre bens pUblicos e privados c as formes de passagem de urn a
no de trecho E y re c proihida e a terra sem dono, chamada devoluta
(nitro adquire especial relevancia para Eris Ilecessidodes atuais de
on baldia, esta prote g ida do ocupacao por ser terra do Estado que a
reform agraria, como veremos.
pode vender quando. corn() e por quarto guises. No Brasil esse pro-
As ciescric q es do que she benspitiblicus se enconiravain origi-
cesso c clarissinto c atended pelo nome juridic° de sesmaria, antes
I c terras devolutas, depo is.
mdmente nos Cedigos CiVis 3 t Ilene estao nas Constituicrics, mas
ainda sao usadas definicees e categorias das leis civis, embora sob
A partir dessa aquisicao originaria, dessa concessao do Estado,
a <Utica das 1101 1 11111S constitucionais. 0 Cddigo Napole g o dizia que
C. a transferencia passava a se dar per o contrato, C01110 se vim, Quer
os bens quo nao pertencem a particulares s5o administrados polo
dizer, a propriedade da terra 6 um pedayo de paper, cuja ocupacao, Estado e so podem set- vendidos segundo as regras estabelecidas,
aproveitamento e uso depende so da vontade do proprietario. 3] A
acrescentando que os abandonados e os bens dos que murrain sem
lierdeiros, bem assim coin() os qua sato usados pun todos, como os
I 31 - 0 direito contemporaneo conhece outran formes de aquisicao oriainaria,
como a usucapiao, mas C111 coral nao se aplicam as terras pnblicas, entre etas as
devolutas. Para haver a usucapiao a lei exigc urn descuido do proprierArio, uma
32 - 0 COdigo Civil Brasileiro do 1916 estabelece nos artigos 65 c seguintes nao
omissào. A ocupacao dos terms pablicas pode vir a se transformer ern proprieda-
so a diferenciacao entre os bens pablicos e privados, como a sua classificacão,
de pelo instituto da legitimaoao de posse, mas nao A considerado urn direito, mas
concertos e caracteristicas. 0 novo COdigo Civil Brasileiro, Lei 10.406, do 10 de
urn favor do Estado que nao tem outra destinacao para aquela terra ocupada.
janeiro de 2002, estabelece a mesma diferenciacao nos amigos 98 c seginntes o
Voltaremos a este terra.
inesmo si sterna.

44
C. 45

6
cam inhos, as ruas. estradas c pra ias c "todas as poreOcs do territO- de toda populacdo, chamados pelo COdigo Civil Brasileiro desde
rio fiancés nao susceptiveis dc uma propriedade privada" sao con- 1916 de Gems de uso comum pova, como as ruas, estradas e pra-
siderados pUblicos.' cas, ja seja para cumprir funcOes estatais, como as reparticOes p6-
Estes dispositivos do COdigo revelavam a ideia de que todos osi blicas, escolas, hospitais e quarteis, que o COdigo chama de hens de
bens devem ser privados, a natureza publica 6 transitdria cal excep- uso especial.
tional. Sempre que um hem possa scr privado, o sistema a ele en- Esta divisAo dos hens pfiblicos en, contratuais od de uso vale
caminha. Entretanto. ha o principio da supremacia do interesse tambent para os imateriais ou intangiveis. Por isso, o que se disse
pOblico, de tal sorte que a desapropriacao é sempre passive'. Neste dos bens intangiveis privados, pode se dizcr dos pUblicos. Ha bens
caso, desde que inch:min o patrimOnio particular. o Estado poderá 'materials que sao prOprios do Estado, como nomes, simbolos e
transferir o ben do cidadrio, cornpulsoriamente, ao patrimanio pü- marcas, e os ha de "uso comum do povo", como o meio ambiente
blico. dando-lhe a destinacao vocacionada. ecologicainente equilibrado, bens sobre o patrimenio cultural, etc.
Antes dos Estaclos adquirirem personalidade juridica, quando Estes, cntretanto, devem ser estudados corn ma is atencão, porque
foram alcados a categoria de pessoa, n6o cram proprietaries, mas enquanto os materiais excluem qualquer propriedade privada, fleis
achninistradores dos bens fiteis qiiimecessArios A coletividide como dicotomia pUblico/privado, os imateriais suportam-se em hens
definia o Codigo Civil Frances. Depois. como pessoa juridica, pas- materials que podem ser pfiblicos ou privados. Quando urn trecho
c saran a poder ter bens em propriedade. 0 Cadigo Civil Brasileiro de terra passa a scr estrada, c necessario ao Estado promover a de-
! de 1916 criou a categoria de bens dominicais, on dominiais, para sapropriack, porque aquele trecho deixou de ser privado para se
. indicar aqueles que 0 Estado teria como se privados fossem. Sem- tornar pilbli co. Muito diferente disso se da quando urn bem 'mate-
pre coin inuaria a existir restriebes para a transferencia destes bens rial, comb a referencia histOrica de uma construcao ou a qualidade
que, como qualquer transferancia depende de contrato e, entäo, se de um ambiente, ou ainda a beleza que encerra uma paisa‘,,em, é
entra em outra scara. que 6 a de contratos pfiblicos. Portanto, as considerado pUblico, de use comum, interesse coletivo ou difuso.
restricaes estao muito mais no contrato do que no bent propria- Este bent imaterial pUblico necessita de urn suporte material que
mente dito. 0 contrato depende de vontade livre e a formacao da seja privado on publico. 0 suporte material pode continuar privado
vcmtade do Estado 6 ma . -oomplexa, porque depende de autoriza- independentemente do interesse on direito pfiblico nele constitu ido,
cOes e publicidacles de. onheeicias na esfera privada. gerando obrigacOes ao proprietario e direitos a coletividade:710
Volimos ao argument° anterior, a partir do momenta em que Os bens imateriais de uso column adquircm, assim, uma nova
o Estado passou a ser considerado pessoa, adquiriu a capacidade de forum no ordenamento e alteram a essencia da propriedade em que
scr proprictirio, dc contratar, e os bens assim adq u iridos poderiam se assentam, porque nao impbein apenas limites ao uso, mas condi-
scr alienados de acordo corn a legitimidade contratual que tinham. cionam o prOprio exercicio do direito, isto faz corn que seja criada
NAo custa repctir que os limites ja nao estavam 'testes bens, mas uma estreita relacAo entre os bens de uso comum imateriais, como
nos contratos que os fundamentam, ja que 6 diferente a forma* o meio ambiente ecologicamente equilibrado e os seus suportes
de vontade do cote estatal. Ao lado destes bens, porem, continua- materiais, sejam privados eu pOblicos. Porque estes adquirem a
ram a existir os antigos bens pUblicos, administrados pelo Estado,
os de uso, estes sin, indisponiveis, porque deveriam cumprir uma
IllISS50, uma vocacão, On‘uma afetacao pUblica, ja seja para o uso 34 - Ver a propesito meu Iivro "PatrimOnio cultural e protecâo juridica". Nele
descnvolvo o estudo dos bens privados que servem de suporte ao patrimânio
33 • Arngos 537-43. cultural, cspccialmentc ao patrimOnio edilleado.

46 47
funOo de proteger aqueles, quer dizer, rollIpem corn a plenitude da
Os povos indigenas e a proprieclade.
propriedadc privada.
0 edificio juridic° construido a partir da Constituicao de 1824
A populacao do territ6rio hoje conhecido como Brasil ern 1500
quc organizava a propriedade material e plena como central no
era, calcula-se, de mais de cinco inilhOes de pessoas distribuidas
sistema e a desapropriacâo como seu corolario necessario, ja näo
L por centenas de povos, cons linguas, religiOes, organizapes sociais
se mantem no Brasil apcsar da ins istencia de in terpretes e operado-
e juridicas diferentes.' 5 A forma de ocupayao e o exercicio do po-
L res que teimam em afirmar que qualquer uso pfiblico, coletivo ou
der e soberania sobre o territemio eram tambern diferente, coerentes
L dials() dove ser precedido de desapropriaca l o, sem aceitar que a
coma cosmovisaa e neccssidade de cada povo. Existent poucos
propriedade tenha deixado de ser absoluta c ainda quando o uso
C. estudos sobre estas instituicees juridicas; na sua imensa malaria
commit d apenas da sua imaterialidade. V-
nao descriebes etnograficas que ainda que analisem a realidade
A concepcito construida polo liberalism° nunca pode ser corn-
social vivida, deixam de fora a juridicidade, em :ramie parte expli-
I pletamente aplicada 'torque esteve long da realidacic e distanciada
cavel pela pouca importancia que as normas juridicas tinham, e
dos interesses do povo, servindo apenas 5 actimulacilo do capital e
L tern, frente a sociedades tau rigidamente organizadal6.
afastando o ser humane) da natureza, isto 6 de sua forte primeira de
C. Os estudos trials fidcdignos indicant que havia, e ainda lia,
vida. Por isso nunca conseguiti apagar total in cute a (mica° ou uso
g randes variacees na forma destes povos se organizarem, mas a
social quc a terra semprc teve, tentando para o conceito de
propriedade privada e o poder politico cram conhecidos no limite
propriedadc pOblica. 1-loje, entretanto, 6 visivel que a propriedade
do inclispensavel, isto 6, apropriactio individual restrita aos bens de
pUblica naa c suficiente como conceito para abranger este uso ou
uso pessoal, eventualmente ao produto do trabalho individual, e o
funcao, exislindo tuna utilidade social que e mais clue estatal e que
poder politico polo tempo e tema necessario, coma a guerra, o dis-
se optic, inuitas vezes, aos interesses do Estado. que esta, invaria-
sidio intern°, a enfermidade ou a tomada de decisaocoletivai7.
velmente, su bord in ado aos interesses econOmicos no Estado capi-
A terra sempre foi urn bent coletivo, oenerosamente oferecido
talists.
C pelos antepassados que descobriram setts seeredos c legado neces-
Assim, o uso ou fullCao da terra e de outros bens sempre exis-
C titt na sociedade, inas he pouco tempo o Direito passou a reconhe-
C cedo c integra-lo na chamada Ordem Juridica. Isto quer dizer, a - 0 Basil atual cont.! corn u:na popula0o de aproximadamcnte 350.000 indi-
•transformapo do terra em propriedade privada foi um processo os, distribuidas cm quasc 200 povc.s difercnciadas polo cultura lin g ua. religik C
t teOrico, ideolOgico contrario a realidade, a sociedade e aos interes-
or g aniza0o social que vivciu cm aproxHuadainente 500 Areas reconhecicias
Neste COmputo estk incluidas as populacöcs urbanizadas ou que vivem na
C ses das pessoas em geral, dos grupos humanos e dos povos, porque condiefto de camponescs pobres. A estimative de 5 milbocs de pessoas em 1500 e
C todos dependent da terra para viver. Exatamente por isso foram se uma aproximacao de estudos demografieos parciais, cm especial os apresentados
criando exceeOes, no inicio chamadas publican, hoje coletivas nor Pierre ClastreS no seu livro A .50,n-ethnic, contra o Estado.
C.
difusas, estreitando, ou aproximando da realidade, a ideia da pro- 36 - A bibliografia etnoerafica brasilera C muito extensa. mas sao poucos Os
C. , priedade. H y ros que tratam de todos os pcnos ou de ltma regik especifIca. Pode-se encon-
trar muitos bons subsidios . em livros como Histarin dos indios do Brasil, de Ma-
I No Brasil e ern toda a America Latina esta inadequacao da nuela Carneiro da Cunha; 'adios do Brasil, de Lilo Cesar Melatti, entre outros.
transformaeâo da terra ern propriedade flea evidenciada quando se 37 - 0 contato cam a "civilizacao" alterou e continua alterando a organizacao
C
olha para as populacities indigenas, para quern o Direito e o Estado interna desses povos, introduzindo regras novas em mu itos casos, gerando a
ate hoje procuram solucOes impossiveis para a assimiliteao priva- recstruturacáo da sociedade. Algumas sociedades clAnicas perderam a importan-
C tista. cia interna desta divisk e muitas vezes a reestruturacAo e profunda e problemati-
ea, gerando divisbes, desarticulacOes e, evidentemente, perdas imensas.

48
49
a
ft
ft
sario aos herdeiros que o perpetuariam. A reparticAo haveria de ser outras unidades de conservacäo, mas foram expulsos para dentro Iry
dos fillies da terra, de tal forma que n5o faltasse ao necessitado deles, confinados e condenados a viver sauterne neles, como as
nem sobejasse ao individuo. As vezes, se haveria de domesticar 1
plantas c animals autactones. Este povo foi se tornando prisioneiro
uma planta ou urn animal, as vezes, bastava cuidar da natureza que de seu prOprio habitat cada vez mais transformed°, desfigurado, ft
ela retribuia mina lOgica inconsciente mas quase perfeita. Näo inservivel. 0 territ6rio, pare o povo guarani, significa nã'o ulna lb
havia necessidade de Estado new de teorias sobre a propriedade fronteira arbitraria, was uma composieao de biodiversidade, na (t
privada, new in strumentos Tic just ificassem seu exercicio, nem qual o povo se Integra. Assim, na concepcäo deste povo, os euro-
clue os garantisse. Ao nao haver urn era escusada a existencia do peus nfio invadiram o scu territOrio, nä° é uma questão de respeito
(b
outro. de fronteiras, todos podem user a terra, homens animais e plantas, (b
Assim, a terra indigena sc traduzia em territOrio ou controle de
urn povo sobre urn espaco determined°. A disputa entre portugue-
os europeus mita foram invasores, mas destruidores, o seu pecado (b
ses e indios rirto se den, nem poderia ter se dada, em questOes for-
não foi de invasor de dominios alheios, mas de destruidor, os gua-
rani não entendem que a vitima tenha sido eles, mas a terra.
(b
mais de direito de propriedade, mas em jurisdictio sobre urn espaeo Cada povo, entretanto, tin ha e tern sua histOria e sua visâo de (b
territorial. A questäo era muito mais de Poder, do que de Direito. 0 mundo e de territOrio. Isto fica demonstrado com uma singela mi- Ut
Brasil era, portanto, urn espaco ocupado. Cada povo entendia seu rade a saga de outro povo, o Xavante. Embora conhecendo os
territOrio segundo sua cosinovisao e culture e embora houvesse "brancos" he mais de dois seculos, este povo somente aceitou urn
enfrentamentos e disputes, as populacOes viviam em razoavel cantata regular coin a "civilizaeao" ha menos de quarenta anos. (b
mania e paz. Originarios da Bahia e grandes guerreiros, ficaram encurralados
Acompanhar a HistOria de cada urn destes povos apOs o can- entre os portugueses e outros povos indigenes do interior. Tiveram
tata é escrever ulna saga Oita que nos leva a reflexOes muito pro- que escolher o inimigo a enfrentar, se guardassem posicao territori-
fundas sobre a prOpria humanidade e sua trajetaria na terra. Cada al, teriam que lutar contra os portugueses, se recuassem ao interior
(4,
povo neste pedaco de mundo que veio a se chamar Brasil tear uma teriam que disputer territOrio corn outros povos. Nao havia espacos
histOria peculiar que comeea muito antes da chegada dos europeus territoriais desocupados. Preferiram recuar, tomando terras alheias,
e é fortemente alterada por cla. E preciso conhecer, entender e res- empurrados pelos negreiros, predadores de indios, assassinos, fu-
4
peitar a histOria, os mitos e a concepcão de mundo de cada povo gitivos e aquilo que nos mesmos chamamos de civilizacão.
para concluir hoje sobre os seus direitos. Assim é, por exempla, Neisa vide fugitive e guerreira levaram duzentos anos, sempre tio
que antes de condenar o povo Guarani por viver em Parques e ou- em direcão ao interior, sempre disputando espacos como outros
tras areas de preservacào ambiental, é necessario estudar sua histO- povos tambem pressionados. A luta ja nâo era mats corn portugue-
ria rccente e entäo se vera que estas sao as areas que restam de seu ses, was corn o Estado Nacional brasileiro, o que era apenas uma
vasto territ6rio traditional, aquele criado por seus deuses pare que
vivessem como povo 38 . Os Guaranis afirmam que so podem viver
diferenca para a civilizacao, mas não para eles, a guerra era a mes- ka
ma.
onde est d- o as plantas e os animals que sobraram das intervencOes
antrOpicas civilizadas, por isso rido estäo invadindo os parques e
Nos anos sessenta, do seculo XX, ja sem nenhuma outra saida,
os bravos Xavantes resolveram "amansar" os brancos, e o fizeram,
(4,
pagando urn elevado preco que incluia permitir a entrada de novos
38 - A concepeäo guarani sobre territhrio e natureza es/A magistralmente descrito elementos culturais, inclusive a construcäo de Igrejas ao lado da
no trabalho de Maria In Ps Ladeira, Espaco geogreilico guarani-mbyd: significado,
eanstituicdo e uso, sua tese de doutoramento em Geografia Humana, na USP.

50 51
4'
aldeia tradicional. 39 Nesse long° processo foram deixando para tras era o de exercer sua prepria jurisdicao.Isto nao significava para ale
seu territOrio prOprio, aprendendo a viver corn outras plantas e que os povos indigenas devessem scr para todo o sempre "infigis",
animais, foram perdendo parte do povo que is ficando, cansado da was que a inissão dos reis catOlicos era anunciar e convencê-los da
luta, em acordos sempre destrutivos cow os novos senhores da ter- boa nova do naseimento do redentor. 0 convencimento, por certo
ra. Um grupo se tornou Xacriabd, perderam a lingua e continuaraw haveria de ser por meios suaserios ou, quem sabe, por declaragAo
lutando por urn pedaco de terra a que pudessem chamar territerio, de guerra justa.
conseguindo-o apenas ha duas decadas. 4° Mais tarde outro grupo 0 raciocinio de Las Casas era adequado ao pensamento crist5o
desistiu, as margens do Araguaia e passou a ser chamado de Xe- do seu tempo e tem a mesma lOgica de Hobbes e Locke. Fundado
rente. Sofrendo todas as conseqiiencias da politica integracionista sempre no contrato social, dizia ale que Deus criara o mundo coin
do Estado Nacional, esta parcela desenvolveu uma nova lingua e ludo o que /tele existia, plantas, pedras e animais, para o servico do
L hdbitos diferentes a ponto de reconhecer nos Xavantes apenas um host em e, dentro das sociedades hurnanas, alguns escolhi dos para
parentesco distanteu. organizar e d irigir os outros. portant° nao iniportava que fossem
C Estas duas breves was elucidativas histerias nos inostram cm europeus, asiaticos, africanos ou americanos, fieis ou infieis a pa-
primeiro lugar que o Brasil, e, pode-se dizer a America, era urn lavra crista, cada arupo humann tinha a I ivre determinacaP de sua
C territerio ocupado, °vele povos muitos di ferentes vi viam, Brand° da organ izapa o social, ,justa c tom aprovageo divintC 2 . Todos os po-
terra e da naturcza seu sustento. Era urna terra adaptada ao set- hu- vos, assist livres, haveriam de se torna r ell staos tan logo souhes-
man°. Em segundo lugar, que o processo de ocupacao europeu, sem do sua verciade. Bartelonie de Las Casas c seas opos it ores,
cam° a imposicilo de novas games, novas plantas e novos animais canto Gilles de Seniilveda, divergiam apenas nos metodos, tendo
nao foi absoluto, nern aceito por todos. Ate hoje ha seqiielas que darn clue a cristandade iria pre alecer pcla razao. pela fe, ou pela
C nao estào limitadas aos povos originarios, mas atinge tarnbein os forca .
C povos trazidos, sejam da Africa, acorrentados e presos, seja da Eu- Este pensamento, reconbecido pela Iarcja, inas nao praticado
ropa e Asia, enganados e trafdos. pelo poker temporal, neat espanhol nem portuaties, que estavain
Mas hd ainda ulna licão que estas duas histOrias nos no: a mais interessados na mac, de obra e nas torras indigenas, tcve sett
propriedade privada da terra nao traz a felicidade dos povos, ao desenvelvimento teerico ein Francisco de VitOria quep considera-
contrario, por se assentar num individualism° excludente, gera do, por isso mcsmo, o criador do direito international.''
conflitos que se estendem desde o vizinho ate um pacific° povo Na realidadc, a contradigao que se cstaheleceu em 1500 na
distante. America foi entre os interesses mercantilistas de apropriagao c
Talvez por isto, Bart°'owe de Las Casas, o pensador das rela- acumulacao de hens quo existiam nas novas terras: otiro, prata, pau
C cOes Europa/America do seculo XVI, nil° aprofundou o conceito de brasil c, pouco mais tarde, a possibil idade de producào em grande
propriedade. 0 direito clue ale reclamava para os povos da America escala de cana de achcar e outros bens agricolas, de tun lado e, de

C 39 - A major pane das novas aldeias Xavantes tern nomes cristaos, coma Sao 42 -Vera propesito as obras do Bartolome de Las Casas, Breve relacao do des-
Marcos, Nossa Senhora Aparecida, etc. Os Xavantes são hoje aproximadamente macao de hallos, que tem ulna pane publ icada cm ponugues pcla L&PM, Obra
C 8.000 pessoas. indigenista, e Prweipios para defender a jump? dos (adios In: SOUZA FIL1-10,
40 - Os Xacriabas hoje sao cerca de 6.000 indios e enfrentam dificuldade de C. F. Marés de (org.). Te.y os Chissicos sabre o Direao e os Povos indigenas.
C
sobrevivencia, embora tenham recuperado sua dignidade comb povo. 43 - Vcr especialmente de Vitóna. sua obra ReleecrOaer: del estado, de los adios
C 41 - Os Xerentes tem hoje uma populacao de cerca de 2.000 pessoas y del derecho a la guerra.

C
C 52 53
C

ft
outro, os interesses indigenas que estavam voltados a manter seu distribuiram terras indigenas, ate transformá-las em propriedade
(It
modo de produch- o, cultura c vida. Com o avanco do mercantilismo privadas individuais, de nao-indigenas, por certo. rt
e a construcao dos Estado enntemporfineos, a propriedade da terra Portugal nao construiu grandes [codas juridicas, como Locke c F.
tornou-se absoluta, c a contrad iedo se aprollindou de ta I modo que Hobbes, nem deixou para a HistOria tratados de relacties entre po-
os indios e suas sociedades foram esquecidos da Lei e suas terras vos, conic) Las Casas e Vitoria, eras construiu a mentalidade
Ct
deixaram de ser seas dominios para transformar-se cm propriedade derna na pratica, con, o sistema das concessbes de sesmarias e ulna (ID
privada. Cada Indio passou a ter o duvidoso direito de se tornar politica uni forme e rigida, o que perm itiu a integridade territorial
cidadiio da nova sociedade. 0 caster duvidoso desse direito se do Brasil apesar das profundas diferencas regionals e da pluralida- cb
manifesta ern dois aspectos, primeiro, porque teria que deixar de de social que existia. (10
ser Indio, no se/Aldo de scr membro de uma sociedade difercnciada A aplicaciio da iclaia de que toda a terra haveria de ser privada,
c segundo. porquc para sc tornar cidadao deveria ter alguns atribu- excepcionada as de uso pUblico, na pratica, foi fatal para os indios tb
tos, quando menos conitecer a lingua oficial, necessariamente dife- que nao a ocupavam de forma privada, nem foi admitido que seu
rente da sua. Estes dois atri butos tornavam cada indigena apto a ser uso era pnblico. No desvio da teoria, os indios ficaram sem terra e ty
trahalhador !l yre, capaz de di sputar um em prego assalariado, sent a sent modernidade.
protecho de sua comunidade. Se trabalbassem muito e ainda pudes- (rb
sem poupar, poderiam ate adquirir propriedade da terra e corn ela, (a
talvez, amarga irollia, fazer o que antes faziam como indios. Propriedade e liberdade no Brasil. (20
No final do seculo XX, quando a propriedade privada comecou
a scr restri ngida ou tin, itnda por direitos co letivos, como a prate*
do mcio ambiente ecologicamente equilibrado e o patrimemio cultu-
ral, como vercmos, os povos indigenas tiveram um alento juridico,
Nas novas regras, elegante e falsamente chamadas de civiliza-
tOrias, os indios nao tinham direito a propriedade da terra, portanto
a Coroa portuguesa tratou de criar ou aplicar instrumentos capazes
is
ainda que debit e impreeiso, como urn renascimento de direitos de legitimar o dominio privado original. Para nä() perder o controle -
coletivos para o direito.44 da octipacAo e favorecer o mercantilism° europeu, reconheceu
Isto significa que a construck da propriedade privada no Bra- como direitos individuals de propriedade da terra somente os que
sil, ou a modernidade, desprezou a ocupaeão indigena, nao respei- aprescntasscin como titulo de origem atos de concessao da prOpria
tando sequer scus mais elementares direitos, come os de sobrevi- Coroa,
véncia. Se relessetnos Locke poderiamos dizer que teoricamente Coin esta atitude afastava os indios, os chamados aventureiros
Portugal deveria garantir os direitos dos povos indigenas sobre suas e qualquer indesejado, a se tornar proprieterio por aquisicao origi-
tcrras, se relessemos Las Casas, lambent Mas a pratica de Portugal naria, mesmo quando tivessem desbravado, conquistado, usado e
andou muito longe das teorias europeias daqueles seculos, a distan- nela morassem em definitivo. A imaginada figura do concessiona-
cia entre teoria e pratica significou a morte de povos inteiros. Nao
se pode esquecer, por outro lade, que na epoca era difundida a iddia
do direito de conquista comes direito autOnomo de povos em guerra.
rio se aproximava mais de um empreendedor capitalista, aventurei-
ro tambêm, inas seta romantismo. Isto nao significou que o Rei de
Portugal nao tivesse reservado terras a grupos indigenas, enquanto
ta
Fundado, muitas vezes, neste direito, Portugal e Espanha usaram e nao se integrassem, individualmente como trabalhadores, a chama-
da coinunhao national. Tampouco significou que nao tivessem side
concedidas terras a aventureiros, ladrees e assassinos. Significou,i
44 - Vet- a propdsito o mcu Faro 0 renascer dos povos indigenas para o direito realidade, que os povos indigenas, embora ocupassem terras,1
4a
54 55

4
nao tinham direito a eta, salvo expresso reconhecimento de 1.11/11
As sesmarias em Portugal eram usadas para terras que jh havi-
( Reino distante e desconliecido. Igualtnente significou que qualquer
Ploy am sido lavradas e estavam abandonadas, quer dizer, eram terras
aventureiro, ou trabalhador, que tomasse para si urn trecho de terra
que ja tinharn produzido e deveriam voltar a produzir alimentos
para livremente e em paz d y er corn sua familia, estava fora do
locais. No Brasil nao, a sentido da concessao das sesmarias era o
Direito e deveria pagar tributo, ou meacão, ou vassalagem, a quern
de ocupacao, desbravamento, conquista, desrespeitando qualquer
k. o tal Reino distante concedesse aquela terra. Nao fosse o povo con-
tipo de uso indi g ena, ou ocupacao prd-existente. Na verdade a con-
fundir trabalhador coin proprietario; o sisterna queria quo a terra cessao tinha o sentido de reafirmar a posse das terras em nome do
fosse propriedade e o propriet g rio precisava de trabalhadores, que
rei e da coroa portuguesa, em disputa coin a espanhola e outras
poderiam ser livres, poderiam ser ate proprietarios de alguns nacOes europeias, e produzir bens de exportacao. Quer dizer que,
bens,mas que nao fossem proprietarios de terra. A divisAo estava enquanto em Portugal as sesmarias tiveram o sentido de proporcio-
claramente estabelecida.
nar a producáo de alimentos e desenvolvimento para a populacao,
A forma juridlea do que dispunha Portugal para CO])ferir terras
no Brasil foi instrumento de conquista, was lambent de garantia aos
1. a particulares era ainda a vellia. mas entao vigente, lei de sesmarias
capitals inereantilistas de que sua inao do obra, escrava ou livre,
que D. Fernando promu/gara (2111 1375 e que havia sick, reproduzida
man viria a ser proprietaria de tetras vagas. Sc n.s terms estivessem
cm cada nova "Orden aches do Reino" e servia para transferir terras
disposicao do quem as ocupasse e tornassc produtivas, os capitais
que ja haviam sido lavradas, Inas que estavam abandonadas, para
L mereantilistas ficariam sem trabalhadoreslivres, porque todos iri-
gum as quiscsse lavrar. A Lei havia impulsionado a reforma agra- ain buscar um pedaco de cha p para Viver: 6 1st° criava dual situa-
ria do mercantilism° portugues a mirthr do see. XIV, mas .ja entrara
goes diferentes: par um lado havia uma total desconsideracao pclas
em desuso como rcordenamento social c somente se mantinha em populacOes indigenas. facendo-as inViSiveis: por outro lado havia
vigor para resolver um on outro problema de senhorcs aliados ao uma proibicao aos trabalhadores de adquirir propriedade da terra
Rei s, porque seu antigo e original uso con frontava-se coin as novas
polo seu trabalho, ja que nao bastava trabalhar a terra vazia, era
necessidades eeonOmicas da propriedade moderna, de earater ab- necessario coinpra-la do patrao ou ganh5-la por favores prestados A
salute.
th. Coroa.
Apesar do declinio do instituto em Portugal e da realidade to Antes de criar o instituto das sesmarias, que era tuna concess5o
talinente diferente, foi aplicado 110 Brasil durante tres seculos, cm-
de terras polo poder piiblieo, Portugal reconhcceu as presnrias, que
L ' lac) houvesse terras de lavradio abandonadas. As terras aqui
eram ocupacOes de terras do infieis (mourns) expulsos. Era um
cram ocupadas por povos Ind i g enas que tinham outras formas de
direito de conquista. havia neste sistcma nenhum Hallo previa,
aproveitamento c uso. Na sua inaioria, mantinham plantacOes
rocas ern sistema rotativo, permitindo a regeneracao permanente da
floresta. A ocupacao indigena nao so era evidente, visivel, coma 46 Na Africa. especialmente en S;io Tomd c Principe. enquonto cnlOnia porto-
reconhecida entre ekes, corn fronteiras de respeito que, violadas, nuesa, era praticamcnic impossei conseEu:r que os nativos trahalhassem nas
"Rocas' produtoras de cacau c cafe. A possibihdadc de tirar o sustento. [arta, do
poderiam ocasionar guerras. Para poder utilizar o instituto das ses- mar e de um pequcno pedaco de terra (ha abundfincia de pekes. bananas. fruta
marias, Portugal teve que, implicitamente, desconsiderar qualquer pa- o. cars e corms alimentos) os inibia de trabalhar como assalariado, ganhando
d. ocupacgo indigena, e entender as terras brasileiras como desocupa- muito menos do que possa adquirir corn a pesca ou coleta. Toda a producao da
das. colOnia estava assentada na (nao de obra estrangeira, contra ?.ada mein a force c
mantida em semi cativeiro ainda no ann do 1970. A independdncia, cm 1975.
45 - Virginia Rau. (Axil. encontrou exatamente cssa situayio, quando forma eslalizadas as "Rocas", scm
solucionar em todo o problema laboral.

56
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mas a mera expulsao pela invasSo, quo se transformava em domi- so, assim, que o sistema somente pode prosperar economicamente
nio. Mouros e indios sac, inficis, sâo parecidos entre si para a cris- corn a forca do trabalho escravo. Num primeiro moment° o intento
tandade. ambos foram afastados do seas terras, na peninsula e na de escravizar os indigenas c imediatamente dcpois corn a desumana
America, respectivamentc. Sem entrar no merit° do direito dos histOria da rapina de bracos escravos da Africa.°
indios c dos mouros as terras que habitavam, c visivel a semellian- 0 sistema sesmarial que nasce no tnesmo berco do trabalho li-
ea entre as duas situacees e deve se buscar a raz5o pela qual Portu- vre em Portugal, vein a ser o innao mais prOximo do escravismo
gal optou polo use das sesmarias no Brasil. Nä° se pode dizer que brasileiro. Enquanto na Europa as concessties de sesmarias foram
no seculo XV ou XVI estivesse em desuso o direto de conquista, para aplacar a fonie e dar terra aos lavradores, no Brasil não havia
porque vamos encontrar em Voltaire, no seculo XVII, a afirmacao force a set- aplacada porque a populacao local, indigena, apesar das
de quo a (mica forma de desconstituir a propriedadc de alguem era, d ificuldades que pudessem ter, tome nä° tinham e qualquer estran-
justamcnte, o dircito de conquista. Significa que a Europa reconhe- g eiro livre que chegasse poderia encontrar urn pcdaco de terra para
cia csta forma do desconstituicâo e c ate provavel que Voltaire es- prover seu sustento, se a Coroa deixasse e o mercantilismo aeeitas-
tivesse pensando na America ao fazer tal afirmayao. Alen, disso, se, dai que era necessario ao sistema desconsiderar os indios e es-
foi exatamente o direito de conquista que transferiu a terra ameri- cravizar a mao de obra chegante.
cana para as Coroas portugucsa e espanhola. As presUrias utilizadas 0 use das sesmarias foi, portanto, a forma que Portugal en-
na peninsula portu g ucsa geravam direitos individuais aos conquis- controu para promover a conquista do territOrio brasileiro. Seria
tadores que se subordinavain ao Reino, trés ou quatro seculos antes insustentavel manter indefinidamente exerc itos armados, com p nas
de Portugal chegar ao Brasil. Aqui, o Estado estava Inuit° mais regiOes auriferas da America espanhola. Na falta de ouro ou prata
organizado c os interesses mais afinados. Os conquistadores repre- uti lizou a terra para remunerar os capitals mercantil istas, produzin-
sentavain a Coroa e em none dela tomavam posse, sem haver qual- do para a exportacao bells desnecessarios aqui, come o acitcar. As
quer confus5o entre esta posse pithIlea c o direito de propriedade terras cram concedidas para que o beneficiario viesse ao Brasil
garantido c concedido pela Coroa. Isto 6, a conseqUencia da con- ocupe-las, em nome da Coma, produzindo em larga escala bens de
quista c diferente na formac5o de Portugal (presfiria) e do Brasil exportacao, ainda que fosse preciso perseguir, escravizar ou matar
(sesmarias). A explicacilo econOmica da diferenca ja foi exposta populacees indigenas", e gerar escravidao africana e Foote.
acima, o mercantilismo não queria abrir a possi bil idade de que setts
trabalhadores 'l y res se toniasscm proprietarios, porque produziriam 47 - Ao anal isar a razio da dificuldade de escravizar os inclieenas, afirmei em
para subsistencia a nao para o incrcado. Alen disso ficaria dificil 'nett ler° 0 rozaseer dos pews indigenes para o direito: "Os in dies corn scus
master trabalhadores livres a baixos saldrios. costumes, orzanizacao social c intearagao coin a natureza local tinham duas ex-
0 temor de Portugal era, entao, quo ficasse liberada a ocupacao cab:flies rubes para nio trabalhar para os portueueses. A primeira era o despro-
de tcrras. Os desterrados, estrangeiros e aventureiros ocupariam o pOsito do traballio, porque mate iriam trabalhar em plantazdes ou services total-
melte desconheeidos. para receber uma minguada racäo de comida, se em Sher-
espaco e dariam outro destine a elan, competindo corn o capital
dada. eacando, pescando, coletando froths ou mantendo pequenas rotas tinham
mercantilista europeu, produzindo alimentos, barateando a vida e muito mais c melhor alimento, ni g /ft de prazer, alezria e liberdade? A segunda
encarecendo a mao de obra que haveria de preferir lavrar a prOpria razao era decorrente da primeira: os Indies tinham para onde fugir, conheciam a
terra do que receber salarios de miseria. Na realidade a utilizacao mata e tinham parentes c, sobretudo, sabiam sobreviver na natureza tAo hostil aos
das sesmarias foi a protecao do capital mercantil europeu contra o portuzuescs".
trabalhador livre. Curiosa contradicao, na Europa, o instituto estava 48 - A respell°, dois excelentes livros contain mais de perto esta histOria, Qztatro
skidos de latiffindio, de Alberto Passos Guimaraes, e Terras devolutas t latztan-
aliado ao trabalhador livre, no Brasil era seu algoz. Nao é por aca-
dio, de Ligia OsOrio Silva.

58 59
J
As Ordenacnes do Reino estabeleciam a pena de degredo para
o Brasil dos autores de crimes ao maxim° agravados, que poderiam em some Rei; a segunda que the dava direito a exercer as fun-
ser por um period() on por toda a vida; estes condenados ao chega- goes de capitao-mor e governador das terras descobertas; e a tercel-
rem ao Brasil poderiam se tornar proprietaries caso nao necessitas- ra o nomeava Sesmciro do Rei, que o autorizava entregar terras
SCIII de tuna outorga estatal, por isso, a ins istencia da Corte em nao
legitimamente em sesmaria a quem desejasse.
reconhecer antra propriedade que a outorgasda. Talvez isso fosse Os donatarios das cap itan i as tiered itarias tam hem receberam,
verdade, Inas e razilo mono pouca para definir ulna politica de ocu- cada um, o poder de ser senhor em suas terras, corn jurisdieao civil
pagno territorial, a verdade se assenta nos interesses do capital, e criminal e podiam conceder terms em sesmaria; foram nomeados
antes do que na preocupacrio penal. Os ideals de liberdade do mer- sesmeiros do Rei.
cantilism° perdiam forca ao atravessar o oceano, chegando ao Coin o advent() do Governo Geral, de Tome de Souza, passou
C_ equador tornavam-se ralas lembrancas de amarelados pernaminhos. ao Governador este importante ato de poder. As sesmarias seriam
L Aqui a propriedade c a liberdade na g) formaram urn casal, ao con- concedidas pelo Governador Geral para quern residisse nas povoa-
traria se exchriam, come a agua ao Oleo. cries e em tamanho nao tao grand° que nao pudesse o beneficiario
C mesmo aproveitar, dizia a velha lei de D. Fernando. Nao foi obser-
Toda a tcoria justificadora da propriedade privada. de Locke a
Rousseau, passando Pala esperanca de Voltaire ("propriedade vada esta condicato e as sesmarias foram concedidas em grandes
extensaes. Nab foram tam pouco respeitadas as terras indigenas,
liberdade"), tern come fundamento a liberdade, porque o mesmo
!lament que e !l y re para cscolher seu traballio o haver' de ser para sent a capacidade imediata do concessionario. Os Sesmeiros (Nitre-
dispor dos frutos do traballio, dos bens amealhados. Esta legitinia- gavam terras para si mesmo e seus próximos, familiares on amigos,
ento da propriedade polo traballio, e pelo contrato, adquire cantor- ate o panto em que a palavra sesmeito passou a designar tambem o
nos dramaticas nas Americas e no Brasil. Aqui a propriedade nao g titular de tuna sesmaria e nao mais a autoridade pnblica response-
vel por sua concessao.5°
fruto do traballio line, e fruto do saque dos bens indigenas, ouro,
prate, milho, batata, caean ou terra e do traballio esoravo. A liber- Esta escollia de fechar as portal para ocupacno territorial livre,
C exigindo a aplicacao de um instituto de forma inadequada, prende-
Jade formal da propriedade individual perdc a vet] de pureza e
humanidade nas Ainericas e mostra a Cara desnuda e rude da usur-. se aos objetivos de Portugal. Na realiclade nao era sua pretensno
pacno. Prondhon, per mune stenos, ahrIllou categOrico: a proprie- colonizar o pals corn um eventual excedente da populacno, mas de
dade e um rouboh" . expandir o capital comercial europeu. Per isso, os primciros cin-
cinema anos de conquista Inuit° pouco si g n ificaram para Portugal,
in qua as terras descobertas nao tinham ouro como os planaltas
As sesmarias na pratica do Brasil colonial mexicanos e andinos e que serviram a imediata exploracno espa-
nhola. Portugal somente veio a utilizar sua colOnia para produzir
Tal era a importancia da sesmaria para a conquista des novas acnoar, ja que a extracao do pan brasil lino era suficiente para
C terras que ao vir para o Brasil, cm 1530, Martini Afonso de Souza manter a economia e os investimentos necessaries.
recebeu tres cartas rOgias: a primeira para tornar posse das terras
C 50 - Alguns diciondrios brasileiros, como o de Ruth Rocha, por exemplo, ja atri-
49 - Proudhon compara a propriedade A escravidao c afinna que se todos concor- buem para a palavra sesmeiro o Unico significado de donatdrio de sesmaria, e nao
dam que a escra g ino 6 urn assassindlo, porque 6 do dined concordarcm que a o de funcionario corn poder de di stri buir sesmaria. Tanto o Dicionhrio Aurglio
propriedade e um roubo? Quc Cs la propicdad, obra citada. como o liouaiss, rcgistram as dues acepeOes. o que evidentemente e mais correto.
Dicionarios portugucses, como o Universal, tambern re g istram o duplo sentido.

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E para isso era necessario terra. Ao contrario do seculo XIV alternativas. Liberdade de escolher uma Unica alternativa ou morrer
portugues, o Brasil tinha excess° de terra e faith de Ina° de obra, a ou ser preso como vagabundo, é opressão.
concessao de sesmaria teria o scntido do limitar a ocupacao das 0 belo ideal de I.375 de lam- da terra fonte de producara nao
terras concentrando a producao, segundo o interesse e a possibili- foi i mplantado no Brasil, as sesmarias geraram terras de especula-
dade do capital mercantil, e obrigar os trabalhadores a manter-se cab do poder local, e originaram uma estrutura fundiaria assentada
cm sous postos de trabalho, como escravosP)
Portanto, no seculo XVI ja se apresentam indicios de que a k. no IatiEndio, injusta e opressiva.
Ern Portugal, nos secolos XVII e XVIII as sesmarias ja esta-
concessao de scsm arias poderia criar problemas na organizacrio vain em desuso porque a propriedade privada ja comecava a ser
fundiaria do pais, Inas de nada scrviu a limitacao imposta as con- respeitada como direito absoluto. No Brasil continuava a ter plena
cessOes que deveriam ser do tamanho da capacidade do beneficia- / vigencia porque se tratava de conceder terras consideradas vagas
rio em aproveitar a terra. Este limite acabou send() muitas vezes I isto é, nao era uma al/leap ao carater absoluto da pronriedade.
dcsrespcitado, mesmo porque a producao que deveria se dar na U111 pouco antes de independéncia, pordin, eat 17 de julho de
coliOnia nao era do tipo de subsistencia, mas, ao contrario, do tipo 1822, Resolucao do Principe Regente as fim ao regime de sesma-
mercantilista, de produtos para o mercado. ria, ficando, a partir daquela data, proibida a sua concessão no Bra-
As concessUes continuaram desobedeceido ao criterio c nos sil, mas reconhecidas como legitimas as que tivessem sido dadas de
seculos XVII e XVIII acabaram por constituir-se em fonte de cria- acordo corn as leis e que tivessem sido medidas, lavradas, demar-
cao de latifUndios. Se no inicio serviram como instrumento de con- cadas e confirmadas.
quista externs, sendo usada para Portugal se assenhorar do territO- 0 reconhecimento de legithnidade signiticava dar as sesin arias
rio, uma vez estabelecido o poder portugues transformou-se em confmnadas a qualidade de propriedade privada, corn todas as im-
instrumento do conquista interim, servindo de consolidacao do po- plicacOes juridicas do sistema nascente. Portanto o primeiro docu-
der do latifUndio, porque as concessäes passaram a ser uma distri- , mento comprobatOrio de propriedade privada da terra no Brasil é o
buieâo da elite para si mesma, como exercicio do poder e sua ma- titulo de concessHo de sesmaria. Alias, por /nun° tempo, como se
nutencao. vera, a Unica fonte considerada legitima de aquisicão de proprieda-
Curiosa contradieao: as sesmarias nasceram em Portugal parat de era urn titulo sesmarial. 1st° é, so poderiam ser considerados
que o Poder PUblico dispusesse das terras nao trabalhadas, mesmo legitimos os contratos de transmissäo de propriedade que tivessem
que de propriedade alheia, para oferecer a quem realmente a qui- como origem aquele titulo.
scssc trabalhar, na medida de sell trabalho; enquanto no Brasil a Corn a independencia e corn a Constituieào Imperial de 1824,
mesma concessão é negada a quem quisessc trabalhar e produzir ficou definitivamente sepultado o use do instituto, mas suas conse-
por sua coma e entregue a quern tivesse o poder de explorar o tra- qiiencias na ideologia da terra como concessào do poder politico,
balho allieio adquirido a forca, compulsoriamente, seja como es- da supremacia do titulo de propriedade sobre o trabalho, se manti-
cravo ou trabalhador livre, que tinharn que aceitar as condicOes veram ate nossos dias, fazendo corn que a lei insista, ate hoje em
independente de sua vontade: a liberdade é a opyäo entre varias considerar o documento da terra mais importante que seu produto
sua funcao.
51 - Alem dos livros de Alberto Passos Guimaraes c Ligia Osorio Silva, vale a
i 0 instituto juridico de sesmarias encontrou o seu fim, ciao non,
pena ler tambern os de Celso Furtado, Forma{lio econ5 mica do Brasil, de Caio l u ma deliberaeão isolada do governante da dpoca, mas por sua ab-
Prado 1Unior, Hi.vltirio econOrnica do Brasil e do Nelson Werneck SodA1. Forma- soluta incompatibilidade corn o novo sistema juridic° estruturado
cao histOrica do Brasil, j no final do seculo XVIII e comeco do XIX.

62 63
0 novo sistema nascia sob a egide das garantias dos direitos) isso. E note-se, a necessidade haveria de scr para uso ou emprego
individuais e a nao intervencao do Estado na econom ia e na propri-/ da propriedade para um fim Oland), no que, evidentemente nao
edade. A func go do Estado era apenas garantir os direitos individu- estava incluida a product-to. Este dispositivo deixa claro, come, se
ais, entre des ode propriedade, al i.is, o mais elaborado juridica- viu, que a propriedade peiblica tem fmalidadc, uso, emprcgo, desti-
r. 111 nadio, enquanto a privada era direito independente, patrimOnio
Portanto, a propriedade, plena, absoluta, foi garantida come o disponivel, intocavel, ao arbitrio do cidadao em sua plenitude. Daa
principal dos direitos, cm cujo contendo estava o direito de usar ou qui para frame o titolo de scsmaria seria apenas prova de legitimi-.
nao usar a coisa e dela dispor, destruindo-a ou vendendo-a. Para a , da origem da propriedade.
nova concepc go individualista e voluntarista do Dircito, estava As sesmarias cram uma intervenclio do Estado no direito de
entre Os poderes do proprietario ode nao usar a terra, deixtt-la im- propriedade. intervene g o gratuita. scm inclenizae g o e coin a moti-
produtiva pusn-la ate o ponto de destruir tudo o que nela pudesse vacao de tornar produtiva a terra que o fora. Esta ideia cncontrava
existir. Usar ou nao [Isar a terra, faze-la produzir ou deiti-la ma- uma oposicao radical do pensamento liberal capitalista que inspirou
drar para urn futuro, dependia exelusivamente da vontade do pro- as constituicetes e Estados nascentes na entrada do seculo XIX. 0
prietario, cuja Unica exeecao era a possibilidade de desapropriacgo instituto das sesmarias tinhe chegado ao
pelo Estado, para que viesse a ter urn uso pUblico. A partir da Constituic5o dos Estaclos e ainda persistente na
Como estava vcclado ao Estado intervir na propriedade impro- mentalidade de muitos juristas do seed° XXI, nem o Estado 11C111 a
dutiva, porque era direito do proprietario deitd-la sem uso, o con- sociedade podem desconstituir a propriedade de alguem scm Ihe
coi.bogsbeeria, transferencia compulsOria e gratuita a terceiro dar outra propriedade, citt substituicao, rccompondo integralmente

q ue a quisesse fazer produzir. man eabia mais no Direito. 0 con- o seu patrinninio individual. Essa nova propriedade dada em troca,
y ceit° era demasiado gencroso para a limitada ideia capitalista. em geral c dinheiro e o instituto de transferencia se °llama desa-
A !tonna constitutional, de 1824, ao garantir o direito de pro- propriactio. Esta Tao interiorizada esta dela entre os kbstas, que
pricdade privada, deixava dare que a sesmaria era instituto derro- muitos defendant que ado se pode protector tuna florestd ptcI um bent
gado: cultural imevel scm panto ao proprietario a valorizac go 81 floresta
que nao plantou ou a possibilidade da explosao imobili g ria futura
Art. 179: A inviolabilidade dos direitos civis e politicos dos de oma cidade ou bairro que ntio criou. Este radicalism° protecio-
1 cidadaos brasi leiros, que tern por base a liberdade, a seguranca nista da propriedade privada imobiliaria tent causado danos nao
individual e a propriedade, e garantida pela Constituicao do apenas na possibilidade de .pcmccao ambien tal e cultural, etas tam-
Impario, pela maneira seguinte: bent na soludio de problemas sociais graves, come o acesso de
XXII - e garantido o direito de propriedade em toda sua pleni- trabalh adores sent terras ao trabalho c a garantia de vida a grupos c
C tude. Se o bent juridico legalmente verificado exigir o uso e co let iv idades nao integradas d sociedadc de consuino, como indios,
emprego da Propriedade do Cidadao, sere ele previamente in- seringueiros, castanheiros. ribeirinhos, pcscadorcs, quilombolas,
denizado do valor dela. A lei marearg os casos em que tare lu- etc.
C gar esta Unica excec g o, e se darn as regras para se determinar a

C indenizaego.
C Se de alguma maneira o poder pfiblieo necessitasse da proprie-

C dade, ainda que abandonada, do cidadao, deveria indeniza-lo por
C
C 64 65
C
As terras devolutas aquisicâo de terras feriam a essência do sistema e por isso nunca
chegaram a ser aprovados, mas mantiveram uma discussao de
Com o urn das sesmarias, em 1822, deixou de haver lei que re- grande envergadura, o que determinou a demora na aprovacao da
gulamentasse a aquisicao origindria de terras, de tal forma que o Lei de terras, exatamente porque ela feria que contemplar os inte-
sistema juridico então vigente nä° previa a transferencia de terras resses econOmicos do capital sem restringir o direito de proprieda-
pUblica desocupadas para particulares. Esta situagao perdurou ate de, que tambem fazia parte desse interesse.”
1850, corn a Lei Imperial de Terras, Lei 601, de 1850. Portanto esse periodo que ficou impropriamente conhecido no
Este periodo os agraristas chamam "regime de posse", porque Direito Agrario coma "regime de posse" demorou o tempo que a
somente havia posse nas terras ainda nao apropriadas individual- elite precisou para encontrar os caminhos a serem tracados para
mente pela confirmacao das sesmarias. Mas o nome é imprOprio. ocupacao territorial brasileira sob o Estado Nacional. Foram 28
Nan havia sequer posse, mas ocupacão, considerada clandestina e anos de profunda discussao acerca do que fazer para evitar, de tun
ilegitima. As pessoas simplesmente ocupavam terras vazias e as lado a livre ocupaca'o, e de outro respeitar os direitos a livre aquisi-
transfortnavam em produtivas. A partir deste fato iam tentar um cao de propriedade.
titulo junto ao Governo, que nao o concedia, alegando nao haver lei NA° foi esta a Unica dificuldade da elite dominante no pais em
que regulamentasse a concessao. Ao contrario, havia acOes do Es- relacao aos principios do liberalism°. 0 Estado liberal brasileiro
tado coibindo a ocupacao, especialmente de pequenos posseiros. convivia corn o escravismo e con) um forte descaso as populacöes
Apesar disto, algumas autoridades chegaram a conceder titulos, itMdigenas. Assim, a ideia do trabalhador livre, na construCao d
as vezes com o nome de sesmaria, mas todos considerados nulos. Estado Nacional Brasileiro encontrava duas barreiras serias: a forea
Alias essa era a inteneao do Governo, porque coibia a ocupacao de traballio escrava e as limitacOes no contrato de aquisicao origi-
que chamava de desordenada. Coibia nao pelas conseqtiacias de nada de terras. Se havia terras em fartura porque nao permitir que
uma eventual desordenacao territorial, mas para que os novos tra- cada urn buscasse sett sustento e destino em uma terra que tornasse
balhadores livres que chegaram e que viriatn a ocupar o lugar dos produtiva? Era evidente que, sujeito a um salário de fome ou ao
escravos, e os libertos nao se vissem tentados a procurar essas ter- trabalho escravo, o trabalhador preferiria explorar urn pedaco de
ras "desocupadas" para trabalhar por coma prOpria e deixassem de terra prOprio. 0 Estado teria que agir, porque somente corn repres-
ser empregados das fazendas, obedecendo a mesma 16gica das con- sao seria possivel impedir a ocupacão territorial chamada de desor-
cessOes de sesmarias. Havia mudado o sistema juridico, mas ao a denada epara reprimir necessitava de uma lei que o determinasse e
lOgica da dominacao. legitimasse, afinal o Estado constitucional é urn Estado de Direito,
\tidos projetos de lei deste periodo proibiam os imigrantes de somente age sob o imperio da lei, que, para completar a ironia, é
adquirirem, alugarem ou usarem terras, mesmo de particulares. feita pela mesma elite que o dirige. A lei somente viria a lume em
Nenhum deles foi aprovado porque se contradiziam com o sistema 1850.
constitucional que se fundava na liberdade de aquisicao e da livre A situaeao das terras no Brasil antes do advent° da Lei de Ter-
disposicao e vontade dos titulares de direitos. Por outro lado havia ras de 1850 (Lei 601/1850) era a seguinte:
estrangeiros Corn capital, investindo cm plantacOes e terras. Os
projetos nao podiam avancar porque se chocavam corn o principal
direito capitalista: o de propriedade. Este direito era considerado
natural, portanto preexistente ao ordenarnento e, como tal, nao po-
52 - Sobre cstc particular vcr o livro de Ligia Oserio Silva, Terms devo1usas e
deria scr limitado pela Lei. Todas estas disposicaes proibitivas de latifindio efeitos do lei de terras de 1850.

66 67
I
1 I) Sesmarias concedidas antes de 1822 e integralmente confir-
Terras ocupadas para algum uso da Coroa ou governo local,
maths. Reconhecidas comb propriedade privada estavam ga- como prayas, estradas, escolas, predios pablieos, etc. que fo-
rantidas pela ConstituicAo, portanto protegidas contra posse
ram reconhecidas como de dominio pUblico. Estas terras teriatn
o'S affieia, usurpae5o e qualquer ate do Govern°. Este era conside-
quo estar sendo usadas, confirmando a iddia de que a "proprie-
rado o titulo originario mais importante, por isso as transmis-
dade" piliblica tem seu assento no uso, na destinayao e en-
saes que o tivessem por fundamento, cram tambem considera- quanto esta sendo usada e destinada. 0 exempio mail claro
das /egitima propriedade. Isto significa que as ten-as mats den-
disco e o Al y ea do rio clue 6 pUblico enquanto usado pelas Aguas
samente ocupad as e produtivas ja eram propriedade privada.
que corrern, que sao pUblicas, was no moment() que secar o rio,
• Sesmarias, embora concedidas antes de 1822, nab confirma-
por deixarem de ter uso pnblico, se tornam privadas, incorpo-
das por falta de ocupagao, demarcaello ou produedo. A confir-
radas pela propriedade ribeirinha.
mayal o era um ato do govern() que tinha por finalidade apenas,
Terras sem ocupactio. Todas aquelas que nao se enquadras-
como o nome mesmo o diz, confirmar a eoncessao. A Lei
sem nas categorias anteriores cram eons ideradas sem oeupa-
601/1850 possibilitott a confirmiteao, polo Poder PUblico des-
ctio, mesmo que alguém ali estivcsse e dela tirasse seu sustento
tas sesmarias desde que estivessem efetivamente ocupadas corn
e vida. Entre estas terras se encontravam as ocupadas por po-
cultivo e morada habitual do sesmeiro ou coneessionario.5"
vos indigcnas, por cscravos fugicios, formando ou nao quilom-
f'' Depois deste procedimento a terra passava a ser propriedade bos, por libertos c hot/lens li vies clue passaram a sobreviver da
r privada.
natureza, como populaedes ribei rashes, pescadores, caboclos,
r Glebas ocupadas por simples posse. Apesar das prof bicOes,
muitas pessoas ocupavam terras para viver e produzir. Ou cram
caeadores, caicaras, posseiros, bttgres c outros ocupantes. Estas
r suficientemente escondidas para que as autoridades nao se des-
terras foram con si d eradas devolutas pela Lei Imperial e dispo-
niveis para serem transfcridas ao patrimOnio privado. As ten-as
r sem coma, ou tinham a benevolen cia e proteek de autoridade
local. Estas posses nao davam qualquer direito, mesmo que
indigenas, ja anteriormente reconhecidas, tem na Lei 60IB 850
r dispusessem de um document° autorizatOrio. A Lei Imperial
sua teconfirmacao corn o nome de Reservas Indigenas54.
reconheceu estas posses, cm pequenas dimensOes e que tives-
A Constituiclio brasileira de 1824 necessitava de regulamenta-
sem sido tornadas produtivas polo oeupante que nelas manti-
car) porque inUitas leis act eriores nao puderam ser reeepeionadas,
vesse morada habitual. A produyilio exieida pela Lei era a vol-
r tada para o mercado, nao a de simples subsistencia ou baseada
C01110 0 preprio °Istituto das Sesmarias, como ja Sc VIII. 0 Brasil
carecia de uma lei de terras que disciplinasse especialmente a aqui-
na coleta e na caca. Deu a esle reconhccimcnto o nome de le-
sicao origin aria, porque a chamada ocupaclio desordenada era cada
111. gitimayao de posse. Para esta concessthq a Lei determinou ao
vez maior e a libertactio dos escravos promoveri a uma corrida a
Govern() estabelecer um prazo certo para que fosse requerida a essa ocupayao.
mediyao, o prazo equivalcria a uma prescriclio, porque, se Per-
dido, perdido estava o direito. A posse legitimada, desde que
registrada (tirado o titulo, como dizia a Lei) se tornava propri-
edade privada, conic todas suas garantias. 54 - A iddia da Lci nAo era do reconhecer dircitos indigcnas, mas atribuir ao Esta-
do a obrizacAo de rcservar, No concedendo ou vendendo, terras que estivessem
53 - Nesta lei ja aparecc a paiavra sesmeiro coma o coneessionerio do terras e
on pudesscm ser ocupadas per povos indigcnas. E evidente o caréter provisOrio
nao das reservas, enquanto as Indies lie° se intcgrasscm corn° trabalhadores livres no
o funciortio que as rcpartia.
sociedade nacional. Para a no bastava quo aprendessem urn click) civilizado.

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T A primeira providencia legal foi coneeituar juridicarnente ter-1 Esta voutade politica determinada de impedir que qualquer urn
I ras devolutas ou devolvidas pela Coron Portuguesa a Brasilcira. do povo se tornasse proprietario pela simples ocupacao das terras
Terras devolutas passaram a ser nab as desocupadas como ensina seguia a doutrina mais conservadora da epoca, inspirada no econo-
alguns manuals e d icionarios, Inas as legannente nao adqu i ridas. E mista Edward Wakefield, segundo a qual as terras desocupadas
um conceito juridic° e nao fisico ou social. Nilo quer dizer terra deveriam ter um "prep suficiente" para desestimular os trabalha-
desocupada, nms terra sem direito de propriedade dcfinido, é um dores livres a adquiri-las, caso contrario s6 continuariam como
conceit°, uma abstraciio, tuna invencao juridica. A mera ocupaeito trabalhadores se os salarios fossem muito altos, isto é, a liberacdo
de fato nao gerava dont info juridico, que CNigia o titulo do Estado de terras significaria o encarecimento da producao. Sob este argu-
ou o rcconhecimento, polo Estado, de um titulo anterior, ou, ainda, mento, tao cconomicista quanto desumano, negava-se o Governo
o use pnblico. Ainda clue a terra estivesse ocupada por traballiado- Brasileiro em reconhecer posses de subsisténcia, ao mesmo tento
Fes, indios, quilombolas, pescadores, produtores de subsistencia ou que impunha instrumentos para coibi-las. A politica imperial fez
qualquer mum sent o beneplacito do Estado, nao perdia sua quail- exatamente o contrario do que havia e fazia os Estados Unidos e se
dade juridica de &valuta. Ao contrario do conceit° de sesmarias, faria na Australia, que incentivavam a ocupacao desordenada do
que cram concessbes gratuitas de terras que ja haviam sido ocupa- territOrio para que a sociedade florescesse em liberdade55.
das, mas abandonadas, para alguem que desejasse efetivamente Durante a colOnia a concessdo de sesmaria era gratuita e aber-
ocupa-las, as terras devolutas eram aq uelas que jamais tivessem tamente nepotista, isto é, o funcionario corn poderes de concessao
sido propriedade de alguem ou tivessem tido use pUblico reconhe- podia favorecer a quem quisesse, ja que nao havia um direito a
cido, propriedade c use polo Estado. Enquanto as sesmarias refor- aquisicao. Coin a constitucionalizacao do Estado esse direito pas-
cam o carater de fato, prOximo a posse, as concessOes de terras sava a existir, segundo os preceitos da lei. Por isso a lei teve que
devolutas tern UM carater de direito abstrato, independentemente da ser demoradamente elaborada e pensada, e afinal saiu corn a proi-
existencia de ocupacão prd-existente, seja de indios, afro- bicao de aquisieâo por outro meio que nao fosse a compra. Nato se
descendentes ou brancos pobres. Exatamente aqui reside a pouco pode esquecer que a compra e urn contrato bilateral, e o vendedor
sutil maldade do sistema: o que recebe a concess5o, nao necessita- vende o que e quando quer. Isto quer dizer que foi retirado qual-
va sequer conhecer a terra, neat mesmo demarcá-la; eseolhia a terra quer direito aos cidadaos de reivindicar, mesmo por compra, terras
correspondente quando quisesse e passava a ter o direito de retirar devolutas.
dela todos os que all viviam, porque a situacao dos lido- NA° é dificil entender o porque desta decisao. As elites domi-
beneficiaries passava a ser ilegal. Para "limpar" poderia usar sua nantes tinham dois problemas em relacao As terras devolutas. Por
prOpria force ou a chamada Corp pUbliea, isto é, a policia do Esta- urn lado _id se fazia insuportivel a manutengdo da escravatura e a
do. como and Julie ocorrd. libertaeäo estava a caminho. Isto significaria tornar trabalhadores
A seguntlit pros hiencia foi estil • stlecer como poderia ser fella a livres tuna lava enorme de escravos que iria preferir ser campones,
concesseth para quem. coin titIC politica. coin gild itIcanco social. A proporcionando uma marcha para os campos desocupados e uma
01,00 da lei. nesta segundti proviancia esta clam 10e0 no artido
fuga de mao de obra disponivel. Por outro lado, os imigrantes po-
1": "Ficam proibidas as aquisiciscs de terras devolutas por outro
bres da Europa e Asia ja comeeam a chegar e tambem iriam prefe-
titulo quit ttilo seja 0 de compra - , As duas providencias, perfeita- 1
rir buscar terras prOprias para trabalhar.
km ente articuladas entre si, afastavam os pobres das terras, premiando‘
o latiffuldio e condenando o povo a inis6ria e Tome.
55 - Sobre o destine das terras devolutas he um precioso trabalho de Miguel
Pressburguer, Terra; devolutas : a que faze, coin etas?, de recomenclAve/ leitura.

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Estas duas classes de trabalhadores livres eram pobres o sufiei- para fazeth lo, e, de qualguer forma, sempre teve o apoio, considera-
ente para nao poder adquirir terras se o Estado as vendesse. Tarn- do legal, das milicias particulares, da jaguncada a mando de algum
pouco estava na perspectiva destes trabalhadores a possibi lidade de coronet, matando e expulsando ocupantes e posseiros de terns IA-
vir a adquiri-Ias porque se tornava quase impossivel a acumulayâo blicas e particulares, como fato marcante na histOria da ocupaceo
de bens e dinheiro 56, was ainda que o juntasse, dependia da vontade territorial brasileira, de norte a sul. A lembranga de Antonio Con-
do Estado em vende-las. A propriedade da terra, portant°, estava selheiro e do Monge Josè Maria c suas guerras santas nos remetem.
inacessivel ao trabalhador pobre para que nao ocorresse o quo te- d Eretamente, a este processo do protethio e reserva do terras para as
mia Wakefield, a falta de mao de obra nas empresas produtoras elites e a sentenca de morte dos earnponeses !lyres.
a elevagao de sell preen], clificultando a competitividade dos pro- Todas as terms que nao estavam sob o dominio privado ou nao
dutos brasileiros nos Illercados internacionais.57 cstavam afetacias a um rim piiblicO. que cram senhorio do rei
E clam que o prep Ilan) era a Onica dificuldade para a aguisi- Portugal e que foram, corn a independeneia, cicvolvidas ao Estado
yel o. A experiencia anterior je demon stra ra que o simples controle brasileiro criado em 1824, passaram a ser chamadas de tetras de-
das concessties pelo Estado poderia impedir o acesso As terms. As salukis. Torras devolutas, portant°, eStavam clefinidas, c estao ate
r sesma rias sempre foram cnneedidas gratuitamente para uso politico hoje, por sun negthelm, quer diner, devolutas sae as terras que nao
e aliment° do poder this elites. Portant° nao bastava determinar um 550 aplicadas a alum uso pUblico, national, provincial ou munici-
r
preco para a aquisicao, ainda clue isto ja fosse impeditivo, havia um pal, nao se achem no dominio particular, neat tivessem sido havi-
r eontrole ainda ma j or que era a vontade politica da concessao. Ape- das per sesmarlas e °Litres concessees do Govern() Geral ou Pro-
r sar das barreiras do preco e da concessao politica, era e continua vincial, nao ineursas en] comisso lls por falta de cumprimento das
sendo impossivel evitar que as terras fossem ocupadas por quern, condielies de Med icao, confirmaceo e cultura, nao tivessem sido
C fora do mercado, produzisse para a subsistencia, afinal, a terra ali- coneedidas em sesinaria ou out ros atos do Govern° Geral que, ape-
C menta quern nela trabalha independentemente do titulo de proprie- sar de ineursas em comisso, forain revalidthlas pcla Lei 601, nao se
dade. A terra nao pecle titulos e doeumentos para entre gar sells achem ocupadas por posses que, apesar de nao se fundarem ern
frutos, basta plantar ou coletar. teulo legal, foram le g itimadas pela lei.
C A oeupagao havida sew concessao estava, C01110 ainda esta, As terras devolutas, assim, rain de donlinio pUblico, diferente
I mar-gem da lei, portant° na ilegalidade e o Estado exist° para re- daguelas de use, porque poderiam, e ate] chn eriant, ser vendidas. A
prim ir as condutas ilcgais. E o Estado sempre teve forca suficiente Lei 11a0 CIIICITOil a ideia de concessao, isto 6, de um poder discrici-
onerio do Estado, apenas estabeleceu um preco para esta conces-
C
56 - A maior parte dos imigrantcs cram trazidos em colic -46es de semi cscravi-
sao, corn exccceo para a faixa de fronteira, cuja intenceo do Impa-
C dao, end ividados, nao consceuiam acumular senao a prOpria miseria. A nao con- rio era fixar populace° para demarcar os limites nacionais c em
C scguirem poupanca ficavam a tierce do patrao, autnentando a divida c a subordi- alguns casos amplieblos. Ent todo caso, mesmo na faixa de frontei-
nacao, qualquer tentativa do saida para uma terra em quc pudesse cultivar por ra, nao estava autorizada a ocupacao„ a Lei mantinha a concessao.
conta prOpria esbarrava nos rieores da lei c os punha no ilegalidade c margin:1H- A cliferenca e quc on faixa de fronteira o Govern() poderia conceder
C dadc.
a pobres, e fora dela, nao. Deve near claro quc o instrumento juri-
57 - Esta discusslo corn aparencia de final de sdculo vinte dominou todo o come-
C co do seculo XIX, merecendo de Marx, no Capital, uma dura critica a Wakefield
C e sun tcoria do prep suficiente das term das colenias. Ma j or aprofundamcnto 58 - Ineursas ern comisso sao as concessOes quo nao cumpriram as condicbes
sabre o terra, no Livro Pr:mciro do Capital e no livro de Ligia Oserio euntratuais ou looms impostas para a reconhccimento das scsmarias. As condi-
C Terras devolutas e lanfandia. cOes node caso cram a ocupacao, a producin, a dcmarcacio e a confirmac5o

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C
dico da concessao e a discricionaridade do Poder Pnblico no seculo da aquisicao pela prescricAo de bens pOblicos. 59 Assim, seria razo-
XIX e quase todo seculo XX esteve subordinado diretamente aos que a Lei de Terras trouxesse dispositivo semelhante, eonsoli-
interesses dos poderes oligarquicos. Na real idade ainda hoje estao, dado na matriz legal e doutrinaria francesa. E claro que perm itir a
mas tanto as concessOes quando a discricionaridade podem ter al- usucapiao em terras pnblicas seria admiti-lo em devolutas, que
gum controle externo, naquela epoca nem isso. abriria tuna larga avenida para a ocupaeão chamada desordenada.
Alem da concessao onerosa de terras devolutas, a lei criou o Por isso c coo insistente a Lei ern criar impedimentos para que
instituto da legitimactio de posse, pelo qual aquele que tivesse tor- ocorra, criando um sucedAneo menos eficaz, como a chamada legi-
nado determinada terra devoluta produtiva corn seu prOprio traba- timacAo de posse. Este instituto, de aparencia tao generosa quanta a
lho e de sua familia, e vela morasse de maneira permancnte, passa- usucapiAo, na realidade 6 urn impeditivo ao seu exercicio.
va a ter o direito de que o Estado the reconhecesse o domicil°. Este A usucapiao, que poderia ter sido instituida na Lei de Terras
instituto, como se ve, tern semelhanca corn a usucapião, mas corn porque era pertinente a materia, somente foi introduzida no Brasil
eta lia0 se confunde, porque e relativo a terras devolutas e depende pelo COdigo Civil de 1916 e, expressamente, se refere a "usucapido
do reconheciniento do Poder Publico, que podera nege-lo se outra sabre terras particulares", coma que reafirmando a impossibilidade
destinacAo tiver para o imOvel. Alem disso, como ja foi dito, nâo se de aquisicao, por este modo, de terras devolutas. Tal 6 a preocupa-
trata de qualquer ocupacao, mas daquela em que houve investi- cAo em restringir a ocupaeao de terras devolutas, que a Lei
memo produtivo e nä° de simples subsistencia. 601/1950 determina aos juizes de Direito a investigaeão e correicäo
A Lei trazia, ainda, um dispositivo de proteeao de florestas das autoridades a quern competia o cuidado coin estes terrenos.6°
que, as vezes, é saudado por juristas contemporaneos como um 0 sistema de transferencia de direitos originarios de terras de-
prenUncio de leis ambientais, mas se tratava, na realidade, de pre- volutas pcla concessao e pela legitimaeão de posse containinou o
venir contra ocupaeOes desordenadas, porque determinava o des- Direito brasilciro a ponto de a doutrina e a jurisprudéncia jamais
pejo de posseiros que tivessem efetuado derrubada rasa ou posto aceitarem a usucapiäo sabre bens pOblicos e, ainda menos, sobre
Pogo na gleba. Alem de despejado e ter que indenizar os danos cau- terras pnblicas, sabre o argument° teOrico de que estes bens são
sados, a lei previa como pena a perda das benfeitorias, prisao e indisponiveis. 0 argumento näo se sustenta quando analisado sabre
multa. Este dispositivo não node ser considerado protetor do meio
ambicinc, mas inscrido dentro da lOgica do prep suficiente, porque
59 - 0 Codigo Napoleao cm traducAo de Souza Diniz, estabelece no arligo 2227.
ele 6 contraditOrio ou polo menos restritivo ao instituto da legiti- "0 Estado, es cstabeleeitnentos piablicos e a comuna ficam submetidos as mesmas
man. ° de posse, porque para tornar uma terra produtiva, no sentido prescricees que os particulares, e podem igualmente ope-las". Alem disso, o
capitalista, o ocupante teria que fazer cone raso em florestas pObli- amigo 541, expressamente, diz pertencerem ao Estado determ inados bens, "se a
cas. propriedade nao foi prescrita contra de. Dove-se ressaltar que o C6digo trate a
A usucapiao, tambein chamada prescriflo aquisitiva no COdigo prescricao como uma forma de aquisicao da propriedade, mOvel au im6vel.
60 - Pode rcsultar interessantc a leitura do artigo 2°: "Os que se apossarem de
Napoleao, é urn direito daquele que tondo tido uma coisa coma
terras devolutas ou de alhelas e nelas derrubarem matos ou the puserem Pogo,
dono por um tempo legalinente estipulado, the adquire a legitima serao obrigados a despejo. com perda das benfeitorias, e demais sofrerao a pena
propriedade. 0 C6digo Napoleao, a matriz legal do direito civil de doffs a seis meses de prisao e multa de 1005000, alem da satisfacao do dano
ocidental, anterior a Lei Imperial de Terras, admitia a possibilidade causado. Paragrafo Unice: Os juizes de Dircito nas correicdes quo se fizerem na
forma das leis e regulamentos, investigarao se as autoridades a quem compete o
conhecimento destes delitos poem todo o cuidado em processe-los e puni-los,
farao derive a sua responsabi lidade, impondo no caso de simples negligéncia a
multa de 505 a 200$.

74 75
1 a °Ilea do uso dos bens pnblicos, ja que para haver usucapirto terra das terras devol utas, impon(lo exceySes, reservando algumas terras
de haver uso privado do bem, eomo se done fosse. Se ha uso priva- a Uniao Federal, especialmente as de faixa de fronteira.62
do, pnblico uso mio ha, e estas terras ainda que pablicas estai o dis- As oligarquias fundiarias, proprietarias do grandes extensOes
M poniveis ao Estado para vendee -las; nano se sustenta a idéia de quo de terras, foram sen do form adas nos secu/os anteriores e adquirin-
nab possa haver usucapitio salvo, claro, pela teoria de Wakefield do terras em sesmarias ou cornprando terras devolutas, no regime
c em evidente restricitio a aquisicao por eamponeses pobres. da Lei 601/1850. Estes poderes se concentravam nas Provincials
Por outro lado, e muito mais facil aos poderosos e afilhados da quo vieram a se transform ar em Estados Meinbros. Assint, no mo-
elite adquirir terras devolutas pelo sistema de concessäes, ainda ment° em que a Constituicao de 1891 transferiu as terras devolutas
que onerosas, do que se dependessem de transformar as terras pro- para os Estados entregou o poder de distribuicao, exatamente, para
dutivas e manter !loins posse longa, come era originahnente o sis- as elites fundi arias, que tinhain interesse na mantitencao do status
tema sesmarial cm sua versa° e aplicaciio ori g inal, cm Portugal do quo. Quer dizer, quando a concessao de terras devolutas passou
Weide XIV. para os Estados, criados em 1891, as oligarquias locais assumiram
A Lei Imperial do Terras, alma das terras devolutas, trata tam- o incontrol ado dire ito de distribuicao de terras devolutas, inclusive
bent da inn portayao de trahalhadores livres. Como nit° se poderia, podendo alterar as regras contidas na Lei 601/1850, porque passe-
em eonsonancia corn os principios da cultura constitucional, proibir ram a ter competkcia legislativa, reprod uzi ado, aprofundando e
a cornpra de terras particul arcs, a lei estabelecia que os estran geiros ampliando o injusto sisteina do latifilindio, com as con seqUencias
clue as cornprassem e nclas estabelecessem sua indUstria poderiam clue ate hoje assistimos de violencia no campo e misOria na cidade.
ser natural izados cm doffs anos (art. 17). Altitm disso, autoriza o Grande parte dos conflitos surgidos lo g o depois da proclama-
Governo a mandar vir, a custas do Tesouro Nacional cent o ninnero yao da RepUblica tern origem na manutenclio e aprofundamento
de colonos livres para screm empregados por tempo determinado, deste sistema fundiario. Os inais conlieci dos, Canudos, liderado
ou para screm assentados em col6nias. Coerentemente, estabelcee por Antonio Conselheiro, e Contestado, do monge Jose Maria,
quo o dinheiro arrecadado corn a venda de terras devolutas seria acompanhados da chamada sedicao de Juazeiro, com Cicero Roma°
empregado cm novas medicees e na importacao de trabalhadores Batista, do reduto do Cato, do beato Josê Lourenco e da figura
!lyres. mitica de Lampino, sno inostras dense descomentamento corn a
Proclamada a Repitblica, novamcnte as esperancas populares ()Hem fundizria, etas mais ainda do quo descontentamcnto, descon-
r se frustraram. A Constituiyao do 1891 organizou o Estado Federal, formidadc do sistema coin as realidades locais. Ern prat icamente
transformando as Provincias em Estados coin certa autonoinia e
r competências, entre elas a de regulamentar a concessao de terras
todos eles ha mesticos, negros, indios, filhos de imigrantes dura-
Illente empobrecidos que ocuparam terras, juntaram-se para viver
r devolutas, que passaram ao dorninio estadual. 61 Todas as Constitui- cm paz, nao raras vezes buscando n o isolamento a seguranca e a
r cilo Federais que Ihe sc g uiram mantiveram esta natureza estadual proximidade coin seu Deus c suas crencas. Estes movimentos sem
r contatos entre si, sem noticias c too distantes urn do (nitro guardam

r 61 - 0 Estado do Parana cm 1892 faz editar sua Ici de terras, Lei n° 68, de 20 de
dezembro de 1892 e nele consta o mesmo sistema da lei federal, agravando a 62 - A Constituieão de 1891 estabc1ccia no seu artigo 64: Pertencem aos Estados
proibiefte de ocupacao de terras devolutas, dispondo quo ficava sujeito a despejo
as minas c as terras devolutas situadas ern SCLIS reSP ectiv os territeries. cabendo
quem fizesse queirnada. derrubada, construc8o ou plantacao nelas. A (Cl parana- Uniao sonientc a porcâo de territ6rio quc for indispens8vel para a defcsa das
ease revela com mais clareza ainda a rcsena do terras a elite dominante fronteiras, fertincacaes, construcees militares c estracias do Cerro

76 77
C
em comum o fato de todos tcrem como fundament° a ocupaeâo da na terra, curie vive todo ser humano e lutavam para que os deixas-
terra e set' use para prover todas as nccessidades da populagao. sem estar.
Alcor disso, tom tam been urn firn corn urn todos term inaram em 0 Brasil deixava para traz o Imperio do latifUndio e ingressava
massacre, o cxdrcito republicano agiu contra eles corn ulna violén- no seculo e na Republica do latifandio. Foram modernizados os
cia inusitada e desmedida. A punicão foi, na pratica, a mesma que meios de produ0o e as relay:5es de trabalho, was a terra, no longo
deveria ser aplicada nos crimes mais graves das OrdenacOes do processo de transformaeào, havia deixado de ser a inseparavel
Reino: a morte e perda de todos os bens. A terra, pela qual morreu companheira do homem para ser dominio do individuo, capital,
a populacao foi, coin° devoluta, distribuida, curiosa ironia, a ern- titulo, papel, bem juridico, propriedade, enfim.
presas estrangciras, em especial no Parana/Santa Catarina, no que
se convencionou chamar a Guerra do Contestado.61
0 caster agrario dcsta guerra era tao claro que o movimento
ao tomar tuna cidade queimava todos os documentos dos Registros
de linen/cis, porque aqueles documentos de propriedade sempre
Ilies cram brandidos como a grande prova de que eram intrusos na
terra em qua viviam e trabalhavam. Queimando os papeis, imagi-
naval» queimar o sistewa que, como fenix, sempre renascia das
cinzas, cada vez mais feroz e mais brutal.
0 seculo XX, assim, se abre para o Brasil corn uma perspectiva
de crise, de na- o solucao, no campo juridico e politico do problema
fundierio. A terra tinha se transformado em propriedade e a Repu-
blica, que era esperada por alguns como a possibilidade da reden-
Ca°, acabou por aprofundar os problemas locals. Estados, como o
Parana, tern a histOria escrita corn sangue camponds e Indio apesar
de suas cidades ostentarem os Homes dos proprietarios de terra e
dos soldados que puseram suas armas para derrame-lo. A tragedia,
para o Direito, e que a violencia estava estabelecida na Lei de Ter-
ras contra os posseiros que buscassem na terra dignidade para suas
vidas. Mais do que isso, os grandes movimentos, como Contestado
e Canudos, foram chamados de monarquistas e as tropas foram
mobilizadas sob o falso argument° de que os rebelados lutavam
para restabelecer o linperio no Brasil, quando queriam apenas vivcr

63 • Sobre a Guerra do Contestado ler a livro de Frederecindo Mares de Souza, 0


presidente Car/os Cavalcanti e a revolta do Contested°, alem de seu belo roman-
cc, Eles neio acredilavanl na morte. Sabre as rcvoltas populares deste periodo ha
um livro de referenda, chamado llistdria dos revolucaes brasileiras, de Glauco
Carnciro.

78 79
4)

SEGUNDA PARTE
TERRA: UM DIREITO A VIDA

r
Estado do Bum Estar Social

desenvolvimento capaalista transformou a terra cm proprie=


r dade privada, e a terra transformada cm propriedade privada pro-
r moveu o desenvolvimento capitalista. A terra deixava de ser sus-
r tentnculo da vida e ainda Com mais toren na America Latina, cuja
produe5o estava voltada Para abastecer, a baixo oust°. mercados
externos. As insurgéncias latino-americanas, portant°, viriam a ter
r um forte acento campones.
r De fato, ja não havia mais, na Europa do final do secido XIX,
quern acreditasse clue o liberalismo, corn sua propriedade absoluta,
r pudesse fazer frente a 'nisei-la dos trabalhadores e a cada vez mais
r i nsustentavel situacao insurreicional vivida da Rassia a Inglaterra.
r Enquanto a Rerun, Novarinn reclamava por tuna propriedade corn
r dignidade litimana, Os socialistas europetts propugnavam na praxis
do socialism°, titOpico ou cientifico, que a ciignidade humaim so-
r mente seria possivel sem a propriedade privada.
r A luta de idaias e de classes tomava aspectos radicals e pro-
r postas inovadoras. A Rássia atrasada e ezarista foi se desmoronan-
do e ja ern 1905 dava mostras de que grander transfonnacOes esta-
y am por ocorrer. A Alemanha passava por mementos de grande

81
agitacao e os sindicatos ingleses e franceses postulavam uma soci- condicOes a que foram submetidos os povos dos outros continentes
edade mais justa. pelo colonialismo. A reformulacao dos Estados estava na ordem do
Os socialistas russos estavam intimamente ligados a terra e dia e os Movimentos Politicos disputavam entre si propostas ino-
propunham mudancas profundas para os camponeses. Nos paises vadoras, lancando ao futuro esperancas de znelhores dias. Vivia-se
ma's industrializados a luta era por major dignidade para os traba- momentos de grandes expectativas, lutas e esperancas.
Ihadores e assalariados. Nas Americas pressaes e lutas populaces A promessa capitalista na Europa era de criar um Estado de
irrompiam por toda parte. Canudos e Contestado sa-o apenas dois Bern Estar Social que tivesse uma preocupacao cuidadosa corn o
exemplos brasileiros, mas a revolucao agraria, corn toda sua gran- cidadao, corn cada cidadao, dando-Ihe saUde, escola, paz e velhice
deza e heroismo, iria ter por cenario o Mexico insurgente do co- digna, althm de urn trabalho que o mantivesse altivo e orgulhoso de
mcco do seculo. sua producao. Mas, ainda mais do que isso, prometia piano empre-
Os inovimentos sociais europeus e latino-americanos forcavam go, mesmo nos momentos de crise. Tudo isso mantida a proprieda-
mudancas. A RUssia completava sua revolucao socialista e punha de privada dos meios de producao. Para tanto a terra deveria estar
fun a propriedade privada da terra e de todos os meios de producao, dividida em parcelas que garantissem a sobrevivencia e a maxima
em 1917. Impunha-se no mundo ocidental transformacees que rentabilidade de quern nela trabalhasse mediante direta partici pacao
acalznassem os trabalhadores e outros povos que reivindicavam do Estado por meio de subsidios ou politicas de financiamento.
contra a propriedade privada da terra, como os camponeses e indios A producao em massa, em grandes extensoes monoculturais se
da America. deixaria para fora da Europa. Os frutos baratos e abundantes, como
A Rerun, Novarum foi um sinal, em 1891, dessa insatisfacao e os graos, café, cacau, acticar deveriam ser produzidos nos latiffm-
uma reacao para fazes frente ao risco que o mundo capitalista sofria dios da America e da Africa, onde as promessas de Bern Estar So-
pelo avanco do socialismo. A proposta era aceitavel para o sistema cial deveriam ser trocadas por paternalismo e autoritarismo caudi-
porque concluia que a propriedade privada, especialmente da terra, Ihesco na America, e opressao colonial direta na Africa. Baseado
era urn direito natural e, portanto, seria desumano nao reconhecé-la na mao de obra barata, na dificuldade de acesso a terra e na explo-
como faziam os socialistas". A Rerun, Novaruni propunha que o rack) da miseria e do analfabetismo, o Estado do Bern Estar Social
contrato, fundament° da propriedade, deveria ser revisto, isto é, a na America Latina foi implantado a lot-0,111as ficou parecendo urn
liberdade contratual e o livre exercicio do direito de propriedade arremedo mal acabado do original europeu, beneficios sociais le-
deveriam softer limitacdes, para que fosse mantida a propriedade gislados a coma gotas nao chegaram nunca aos reais necessitados e
em nome da dignidade e da vida. destinatarios. Na Africa colonial nem mesmo as durissimas guerras
Ninguem podia mais concordar corn o desumano contrato de de libertacao conseguiram implanta-los. Na realidade o que a Eu-
trabalho da inch:Istria europeia e poucos deixavam de criticar as ropa e os Estados Unidos ofereceram para a Africa e a America
Latina foi somente a va esperanca dos colonizados virem a ser
64 - Nao sc pode esquecer qua a discussâo proposta pela Rerun' Novaruni corn as iguais aos colonizadores, se, e claro, se comportassem como bons
socialistas a te6rica, posto que publicada em 1891, muitos anos antes, portanto, colon izados.65
da viteria da revolucao russa, de 1917. Entretanto as propostas marxistas, que Por outro lado, a oferta socialista era de redencao ja! A trans-
viriam a ser vitoriasas na ROssia, j8 estavam expostas a serviam de base para
diversos partidos social istas europeus nem samara urfanimes em suas interpreta-
forma* da propriedade da terra em use e o deslocamento da pro-
cees. Por muitos anos, ate a segunda metade do seculo XX, os dirigentes do Par-
tido Social Democrata Sueco, no poder, se diziam marxistas, embora nao leni- 65 - Frantz Fanon descreve essa relayao falaciosa mas eficiente, em seu livro Los
nistas, o que os fazia alinharem-se corn o ocidente. condenados de la !iota

82 83
duck) para o direto bem estar, independentemente do lucro, ofere-
E do mesmo ano, 1919, a fundacho da Organizacão Internacio-
cia uma esperanca profunda de melhora somente contida pelo te- nal do Trabalho quo cm seu prcambulo reconhecia a existéncia de
mor de perder as luzes c o glamour da metrOpole europeia. A pro- condicOes desumanas de trabalho quo geravam misaria, injusticas
dutividade haveria de set medida pelo resultado social e nä° pela privacOes para grande nnmero de seres humanos. Ern razão disso,
rentabilidade financeira do empreendimento. Cada povo construiria propugnava a regulamentacao para todos os parses: limite de horas
em scu territOrio o jeito mais fãcil de encontrar essa felicidade, de trabalho, fixactio de jornada maxima diaria e semanal, pcnsOes
aliados entre si no qua se chamaria internacionalismo proletario. por velhice e doenca, garantia contra o desemprego, protecAo das
Para isso, a proposta era de luta, revolucao, sofrimento, renimcia e criancas, ado lescentes e mulheres e principalmente a liberdade de
guerra. organizacão sindical. Isto significava bulir corn o cora* do libe-
As dttas propostas cram de cunho nitidamente europeu. As du- ralismo: impunha regras para o contrato, retirando-lhe a liberdade
as desconsideravam o caster tribal africano c indigena das Ameri- total e propugnava a criacäo do entidades que se estabelecesscin
cas. De qualquer forma, a luta de ideias amadureceu ate a eclosâo entre o Estado e os cidadtios: os sindicatos.
da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) que marcou o Jim do A Constituicao de Weimar trazia tuna !teeth) sobre a vida eco-
liberalism° ou comb esereveu Keynes, o "fim do laissez faire"6". A nOmica e em scu artigo 152 estabelecia que "nas relacaes econOmb
partir dal o mundo assistiria a avassaladora participactio dos Esta- ens a liberdade contratual s6 vigora nos limites da lei", possibili-
L dos na vida dos povos e dos individuos. 0 Estado ganharia novas tando que a lei restringisse qualquer contrato, interferindo na von-
dimensOes e o Direito novo comendo. lade das partes ou diretamente as condicionando. 0 artigo 153 ga-
0 novo Estado capitalista que estava sendo construido na Eu- rantia a propriedade mas estabelecia que sell contend° e limites
ropa pOs-primeira guerra previa ConstituicOes que lido so permitis- estariam prescritos em lei. Adiantava no corpo do artigo que a lei
L sem, mas determinassem intervencees na ordain cconOmica. Este poderia estabelecer excecees de desapropriacees sem indenizacao c
L novo Estado que veio a se °hamar "Interventor" ou do "Bern Estar terminava afirmando: "A propriedade obriga e o sou use e excref-
Social" ou "Providencia" ou, mais elegantemente de 'Welfare Sta- cio devem represent ar uma funcao no interesse social.""
L. le", foi iniciado na Alemanha de Bismark corn leis quo garantiam o
Keynes dizia, na decada de trill qua os dois vicios marcantes
L- seguro desemprego, protegiam os acidentes de trabalho e concedi- do mundo econOmico de entho cram a não aarantia do piano cm-
i. am aposentadoria por idade ou invalidez," mas somente corn a prego e a falta de equidade na reparticao da fortuna das nacbes69.
proinulgacdo da Constituictio do Imperil° Alem3o, em 11 de agosto Vesta lOgica achava gut; o Estado devcria promover um forte in-
de 1919, a conhecida Constituicao de Weimar, a intervencao na ccntivo a° consumo e ulna Jura tributacao as grandes fortunas,
ordain econOmica e flak precisamente na propriedade privada, quer dizcr, o Estado deveria participar decisivamente na vida dos
ficou instituida comb preceito de Estado na Europa capitalista. eidadaos c de forma direta na ordain econlanica. Propunha, assim,

66 - Keynes escreveu este limo ern 1926, quase urn decada antes de consagramse
corn sua Teoria genet do emprego, dojuro e da moeda. 68 - A citacao dos :Micas da ConstituicZo de Weimar foram Milos a partir da
traducdo do Prof. Jorge Miranda, inscridas em seu livro Textos histaricos do
67 - Lei de 15 de junho de 1883, torna o seguro-doenca obrigaterim Lei de 1884 derail° constitucional.
obrigava os patrOes a cotizar-se em caixas cooperati vas para cobrir casos de 69 - Keynes descnvolveu esta iddia no P y re: icons geral do ens/mega do Juno e
invalidez permanence resultantes de acidentes de trabalho. Lei de 1889 instituiu do ?acted° I‘Mo se pode esquecer que Keynes csereveu num memento em quo o
urn sistema obrigatemio de aposentadorias, propostas semethantes ocorriam e cam mundo tinha rec • m saido de Luna Guerra, superado uma profunda crise financeira
I aprovadas na Franca e /7121mm-rd. Ver mais a respeito no livro de kosanvallon, A c assistia a lotus pontuais ern varies panes do mundo, inclusive no corm* da
C. arise do Estado Providencia.
Europa, pelo socialism°.

84
a. 85
mudancas no capitalismo, como a Rerun, Novorum, para organ izar Na America Latina foi se organizando um Estado do Bern Es-
um contra-ataque ao socialism°. Enquanto a Enciclica disputava ft
tar depcndente, que obteve pequenas conquistas socials e ainda
teoricamente, o economista combatia a pratica, porque a revolucão assim, associado a ditaduras de caudilhos nacionalistas, como Pe- et
russa, alguns anos antes, havia iniciado urn processo de superacâo ron e Vargasn . Mesmo depois de escrito nas _ leis, o bem estar nä°
destos vicios polo eaminho da supressão da propriedade privada. chegou senao a poucos. Em relacdo iCkaopt riedaZiaaevo
Keynes propunha uma nova adequaeäo da propriedade, abandonan- r raras excecOes 71 , avancou ainda menos, porque permaneceu como
do o seu absolutismo e criando, a par do direito, uma ou algumas paradigma o poder absoluto do proprietario de dispor do bem, ten- eb
! obrigacOes, na csteira de Weimar. do como (mica exceed° a desapropriacao, criada no comeco do
Esta ideia de que a propriedade gera obrigaeties passou a seculo XIX, c que nao era exceed°, porque se the pagava o preco. E
acompanhar o Direito ocidental pot todo o seculo XX, muitas vezes claro que estas duas coisas estâo interligadas: o Estado de Bern
nao entendida, outras nao apl icada, omitida, deliberadamente es- Estar Social pressupunha uma ordem fundiaria tnais justa e fundada
quecida, sempre presents nos discursos oficias e distante das dad- no use da terra. Por isso os setores dominantes menos atrasados da
sOes judiciais. sociedade, como o capital national, ilk) se opunham a reforma
agraria, ao contrario, seguiam a cartilha norte americana da liana qta
para o Progresso e consideravam necessaria uma re-estruturacão no (11
Uma funcao social para a propriedade campo, sempre pensando na terra como elemento de producdo e
produtores rurais como consumidores.
0 Estado do Bem Estar Social se caractcrizou pela regulacao A terra ociosa nao servia ao capitalismo, mas os latifundierios
da ordem econeunica, geracao de sistemas previdencidrios, e direta sempre detiverarn poder politico e foram os aliados mais presentes
intervened° nos contratos, especialmente no de trabalho e nos agre- do capital apesar de refer os avancos e progressos que o premrio
dos, que se ligam diretamcnte a producdo e reproducao do capital. capital achava necessario para combater as forcas sociais. E claro Se
Em termos ideais, criaria urn sistema de protecao dos trabalhadores que alem disso a reforma agraria poderia ser um risco, porque
e uma seguridade social abrangente, que garantisse a todos comida, muitas terras serviam de garantia hipotecaria de contratos bancari:
sande, educacdo e moradia. Na Europa foi criado urn Estado Provi- os, e a especulacdo corn bens imobiliarios sempre foi urn negOcio
déncia corn servicos sociais que garantiriam tuna vida tranqiiila e altamente rendoso, alêm de sua estreita vinculacdo corn a corrup-
sem surpresas. E claro quo nem todos paises atingiram o mesmo .
nivel de protecao, mas o Estado participou na distribuicao de renda, 70 - Tanto Peron quanta Vargas, promoveram na Argentina e no Brasil profundas
cobrando pesados impostos e oferecendo servicos de aposentadoria, rcformas na Icgislaedo, introduzindo leis trabalhistas e previdenciarias, favore-
medicos e educaeao aos menos aquinhoados. A propriedade dal cendo a industrializacSo. Juan Domingos Perlin foi Presidente da Argentina de
1946 a 1955, mas como Ministro do Trabalho no period° anterior promoveu uma
terra, privada, passou a se ligar diretamente a indastria e o campo
e tornou centro de produedo corn alta tecnologia e fortemente sub-
verdadcira revolugno trabalhista, o qua lhe valeu o apoio das classes trabalhado- 4
uV
ras, foi claim novamente Presidente em 1973, mas morreu coin um ano de man-
idiado. A natureza foi submetida as necessidades humanas. Alguns dato. Gent lio Dornelles Vargas governou o Brasil como Presidents Constitutional
lugares Sc tornaratn jardins de cuidada beleza e outras paisagens e como ditador de 1930 a 1945, promovendo uma reforma profunda no contrato, V
nonOtonas, quando nao znarcadas pela feiura da produno intensiva erica] a Justica do Trabalho e Consolidou as Leis Trabalhistas. Foi eleito nova-
debaixo de construcOes de pldstico, onde ate o clima é modificado manta e 1951, tendo se suicidado na presidencia, em 1954. Perna e Vargas foram
chamados em sells respectivos paises de "pal dos pobres".
pela acao humana. 71 - Entre as quais se destacam o Mexico e a Bolivia corn suss revoluedes, mas
tambdm a Colombia. V
V
86 87 V
gao administrativa, seja na concessao das terras, seja na indeniza- ser a forte da vida c da cultura do cada povo c. desta forum, garan-
cao pela concessao do titulos, seja poles pagamentos nas indeniza- tir a seguranca alimentar e a felicidade dos trabalhadores. Neon
goes por desapropriacao. Qualquer estudo sobre o valor das desa- sempre a redadao das leis eiscluia as propostas populares, etas
propriaeOes revela falcatruas escandalosas contra o interesse pUbli- quando rirto estavam claramente explicitadas, e ainda que o estives-
co, porque os valores pagos sac) invariavelmente mais altos do que se, as elites interpretavam a favor do scu prOprio bolso, obt lido
o prep da aquisicao originaria, sempre coin a complacencia do decisbes judiciais favoravets aos amigos conceitos de re sicdo
Poder Judiciario e a justificava do formalismo juridico.
patrimonial.
ASSffil, o capital tinha que conciliar uma reforma agraria que
Praticamente todos os daises latinoamericanos escreveram suas
melhorasse o eonsumo c baixasse o prep° da de obra, coin a leis de reforma agraria, muitas vezes iinpulsionadas por incentivos
integridade patrimonial. Por isso as solucides preferidas pelas elites externos, outras pelas aguerridas lutas camponesas locais. Sem
sac) sempre de reforma agraria coin desapropriacao, isto 6, corn o pretender fazer o sofrido exercicio de ler uma a uma, podemos di-
pagamento da recomposicao do patrimOnio individual, mesmo zer que Codas, de tuna ou outra forma. corn mats precisao ou em
quando a terra fosse usada em desacordo coin a lei. Dito em outras termos vagos, reconhecerain que a propriedade obriga e a obriga-
• palavras, a reforma a g raria capitalista propunha apenas a niudanca cao do proprienkrio 6 cumprir cleterminada funcao social, con] este
de proprietaries da terra, coin tuna dupla mobilizacao do capital: ou outro Home. A diferenca sempre esteve na conscqiiencia do des-
transformar uma terra improdutiva em produtiva e liberar dinheiro cumprimento da lei, que vai desde a vaga possibilidade do Estado
aos latifundiarios para investir em outros negOcios. Este novo ne- querendo desapropriar, pagando o preco de incienizacao, isto e,
gOicio capitalista deveria ser feito coin dinheiro pUblico. Desta for- preiniando o transgressor, ate a desconsideracao do direito de pro-
ma a elite se recompunha e se protcgia, porque os donos da terra priedade de quem lido cumpria a lei.
mal usada, enriquecidos corn o dinheiro publico, passavam a gasta- 0 termo funcao social e undnime na doutrina agraria do conti-
lo coin produtos ou corn investimentos que in ov imentam a econo- ciente, Inas lido nas leis nacionais. A peruana, por exemplo, chamou
mia a favor do capital. A coma destes investimentos, esta claro, era de use em liarmonia corn o interesse social; a colombiana, adequa-
passada ao povo pagador de inn postos, porque a ind en izacão dos da exploracao e utilizadao social das A g uas e das terras; a venezue-
proprietérios ilegais seria paga corn o aumento do preco do pao dos lana e a brasileira, que ten] a mosma matriz, iisaram o 1701110117 fun-
trabalhad ores urbanos.
cao social da propriedade.
As luta camponesas pela reforms agraria, portanto, marcadas linportante, por isso, lido e o use de termo, mas as consegilen-
C por matizes diversas, se contrapunham a esta reforma agraria capj- cias quc o sistema juridico atrilnii a limitadiao imposta. A opcao da
I talista, que e uma simples modernizaeaci do campo, tuna redistri- lei boliviana, por exemplo, foi no sentido de definir o que se reco-
i buicao das terras ociosas-para aumento etagroducao e ma jor circus
nhece por propriedade agraria, nao dando o Estado qualquer prote-
'agar, de capital. O i discurso reformistfliregava a isto o argumento
cao juridica a ocupacilo da terra que estivesse fora da tipificacao
de major participactlo dos trabalhadores que encontrariam postos feita. Os tipos estabelecidos cram Os que a lei considerava o eider-
C de trabalho no campo coin sua modernizacao, alem de afirmarem cicio de uma "funcao Util para a coletividade national". Desta for-
quo o aumento da producao tinha como objetivo a seguranca ali- ma a lei criava urn conceito de propriedade da terra diferente do
mentar. As propostas das lutas camponesas, por outro lado, desde
conceito gcral, civil, do propriedade.
as mais defensivas, sem proposicaes political claras, como a Guer-
Cada pais foi adaptando a ideia precursora de tuna funcao so-
C ra do Contesmdo, ate os engajados marxistas, como o !icier Manoel
cial coin as prOprias caracterisricas nacionais. A lei venezuel ana
Jacinto, tinhorn sempre o sentido de fazer corn que terra voltasse a
cstabeleccu longa lista do clementos quo ciao ; it propriedade limn
88
89
func5o social, mas basicamente exige a exploracho eficiente e di-
Analisando este direito, o Professor Guillermo Benevides Melo
rota, considerando n5o cumprida quando explorada por arrendata-
inicia um brilhante ensaio dizendo que a desapropriaelo de terras
\kos, parceiros, meeiros etc. Estão incluidos tambein elementos de
na Coltimbia somente a admitida quando curnprain sua funea-o so-
preservac5o ambiental, isto 6, de producao sustentavel. Mas real-
cial, porque a desapropriano se faz de propriedades e aquela que
mente o que mais interessa naquela lei é o efetivo trabalho do pro-
nao cumpre a funcAo social propriedade nao 6:
prietario, a porno do agrarista Ramon Vicente Casanova afirmar:
Para el derecho colombiano, la funciOn social condiciona la
De donde (norma constitucional) se desprende que si la
existencia misma del derecho, lo que equivale a afirmar
propiedad se admite per la funciem social que le es inmanente, categoricamente que la propiedad privada que no cumple
aquella apenas cumplirti con esta cuando se halle en manos de fund& social, sencillamente no es propiedad privada. Para
quienes la trabajan. Tal postulaciOn constitucional tiene un decirlo en terminos del anionic) 30 de la Constitución, el
desarrollo legal que arremete contra la explotaciem tradicional Estado colombiano no garantiza propiedad alguna que no
de la ticrr taciOn indirecta de la tierra hizo eumpla funciOn social porque alli no hay propiedad, e asi,
proliferar ormas de tenencia distintas, como el arrendamiento quiet' pretenda conseguir la protecciOn de as autoridades (...)
y la parceria, quo c pernutieron a los propietarios disfrutar de debera acreditar que la protecciOn invocada y requerida, se
sus ticrras desde lejos, come absentista. Bueno, la ley de as ienta en el hecho de hacer cumplir a sus bien es la func iOn
reforma agraria prohibiO estas formas y creel en favor de los social?'
arrendatarios, parceros y ocupantes, el derecho a la adjudi-
caciem de las ticrras que trabajan.72 Pode se ver coin clareza que a ideia da funcão social esta liga-
da ao pr6prio conceito do direito. Quando a introdueäo da iddia no
Do outro lado do none da America do Sul, desde os tempos de sistema juridico nä° altera nem restringe o direito de propriedade,
Simon Bolivar, a tradicão constitucional colombiana foi muito perde efetividade e passa a ser tetra morta. Embora embeleze o
forte e a inovacão de institutes de protecAo de direitos sociais se discurso juridico, a introdueäo ineficaz Plantain a estrutura agraria
fez sempre sentir, ainda quo com tao profundos e tames problemas Integra, com seas necessarias injustieas, porque quando a proprie-
de violencia interim. Para dar tuna pequcna mostra dos avancos da dade nao cumpre uma funcdo social, e porque a terra que the a ob-
legislacao daquele pals andino-amazOnico, basta dizer que uma jeto nAc • esta cumprindo, e aqui reside a injustica. 1st° significa que
usucapião rural de cinco anos foi criada no ja Ionginquo ano a fun* social esta no bem e não no direitoOto seu titular, por-
1936, quando no Brasil ainda cram p ecessarios quinze ano 7n1/ que uma terra cumpre a funcAo social ainda que sobre eta nä° paire
Neste mesmo ano a lei permitiu ao Estado o estabelecimento de nenhum direito de propriedade ou esteja proibido qualquer use
restricOes ambientais as propriedades privadas. direto, como, por exemplo nas terras afetadas para a preservacAo

72 - Vannes° peril/ de to finciOn social de la propiedad de to tierra. p.1 I En-


sato do Prof. Ramon Vicente Casanova. publicado na Revista Dereche y Reforma
Aeraria, do Institute Latinoamericano de derecho agrario. n° 18, em 74 - La fienciOn social de la propiedod en la ConstiluciOn y el la Ley. publicado
na Revista Derccho y Reforma Agrkia, do Institute Latinoamericano de derecho
Venezuela, em 1988.
agrario. n° 18, cm Merida, Venezuela, cm 1988. Este ensaio foi publicado antes
73 - A usucapifto rural de cineo anos d da ddcada de 80' no Brasil, constituciona-
da protnulgacilo da Constituioäo vigente de 1991, portanto diz respeito a yigencia
I izada cm 1988.
constitucional anterior.

90 91
ambiental: a •funeno social 6 exatamente a preservaca-o do ambien- direito mexicana, Jesus Antonio de la Torre Rangel afirma sem
te esconder o justo orgullio: •

404 La revoluciOn Mexicana tuvo su expresian juridica rods


A Constituiciio mexicana: UM marco • c
importante en la Constitucien do 1917, cons iderada la primera
W , " L.C. n 1" C. ay..
L "constituciOn social" del mundo. incluye en su articulado los
Enquanto a Europa discutia tcorias, fazia a guerra, promovia a numerales 27 e 123, que otorgan concesiones sin precedentes a
revolucdo socialista c buscava alternativas As injusticas socials los campesinos y a los obreros, lo que da un nuevo tintc al
engendradas pelo liberalisin g e pela propriedade absoluta, no outro Derecho del sialo XX. en Mexico primer° y porn a poco en el
lado do oceano povos estavam sendo expulsos de suas terras e en- resto de America Latina.''
.
frentavam a bala e faconaco os invasores, cm situacão que fazia
lembrar o que vivera a Europa pouco mais de um século antes. As Toda raz5o assiste ao professor de Aguascalientes, a Constitui-
populacOes moravam e produziam seu sustento nas terras, enquanto cao mexicana de 1917, ainda vigente, foi um marco mais impor-
, o Govern() concedia °mins que possibilitavam aos novos "proprie- tante do que a de Weimar porque organizava o Estado contemporã-
tarios" usarem a sua forca ou a forya publica para fazer valer o neo em uma regiao cujos conflitos nao se estabeleciam entre cam-
novo direito. Os desalojados, evidentemente, reagiam quando poneses servos transformados cm traballiadores !l y res c a proprie-
nos porque nao tinham para onde ir. Sempre um lider carismatico dade privada, etas entre cant poneses livres, na grande maioria indf-
os embalava. gena, que queriam continuar sendo livres e indigenas contra o novo
As guerras cant ponesas e indigenas, incontaveis na America, regime de propriedadc privada, tat como ocorreu em Canudos e no
silo muito parecidas entre si e se diferenciam pelo . grail de con- Contestado. Dal que esta Constituicâo tem tuna cara marcadamente
(vista aleancado ou pelo tempo on forma cm que foi enfrentado, agraria, nitidamente camponesa e forte sotaque latino-arnericano.
C reprimido e massacrado a povo. E como se a sinopse de Luna scr-
visse para outra: ao se escrever a Instaria de Canudos, do Contesta-
Como instrumento juridic°, a mexicana e mais completa e profunda
que a alema porque nao apcnas condiciona a propriedade privada,
do on do Altiplano peruano, se esta descrevendo a histOria de qual- etas a reconceitua. Alain disso, ademais de scr anterior a alema cm
C qtier uma das centenas de guerras eamponesas da America Latina, dois anos, ate hoje esta. vigente, enquanto a RepUblica de Weimar e
todas se parecem e em todas, como dizia Manuel Scorza, os Exer- sua Constituicao tiveram villa curta.'s
citos Nacionais sempre cometeram a vilania de veneer seas povos. No artigo 27, longo e suficientemente descritivo para nao dei-
No Mexico seria diferenle. A vitoriosa revolucao, embers trai- xar dnvidas quanto 5 sua aplicabilidade, a Constituicao mexicana
C da, deixon marcas indeleveis nao apenas na estrutura juridica do
( continente, was na esperanca dos povos construfrem urn mundo
Bros de Guillermo F. Margadant S., hitroduction a la historia del derecho me-
cam a sua cara c gosta. 0 document° juridic° fundamental dcssa
xicana; Maria Eugenia Padua 60117.:11CS, GvroLmion SOC/0-itirldiCil del at-tic:tea 27
rcvolucao 6 a Constituicao de 1917 m. Ao escrever sua histOria do constitucionad e Jesus Antonio de la Torre Rangel, Lecniones de historic del
derecho mexicana
C 75 - Ver sabre este tcma o livro do Prof. Luiz Edson Fachin, A Panetta Social da
77 - Obra cicada na nota anterior, p 165.
78 • A ConstituieCto mexicana sofreu reeentes alteracaes por influtheia das poriti-
( posse e a propriedade contemportineta que ja é um clAssico
76 - Constitui0o mexicana de 31 de Janeiro de 1917. Sabre esic particular exis-
eas neoliberais. golpcando seriamente os direitos indigenas. A reforma nao accita
rcm por grande pane dos Estados membros do federacai, esta sendo contestada na
'Mos c irabalhos. Os dados nqui aprescntados astaa baseados nos
Suprema Corte.
f
92
93
(

estabele quais sao as condicOes ao exercicio da propriedade privada Oiler° e sua impenhorabilidade, a licenea gestante de 4 meses,
this terras, reconceituando-a. !Moja por afirinar que a propriedade participack nos lucros da empresas, etc.
this terms c Aguas c originalmente da Nacao que pode transmitir o Resumindo as contas, em 1917 saia ao mundo a Constituiek
dominio aos particulares, afastando desde logo a iddia de que a mexicana, reduzindo o conceito de propriedade individual da terra,
propriedade privada seja urn direito natural como to textualmente em 1918 (janciro) era promulgada a primeira Constituick Sovieti-
afirmara a Rerun' Novarum. Diferencia duas formas de intervenek Ca, chamada Declarack dos Direitos do Povo Trabalhador e Explo-
na propriedade privada: por urn lado reconhecia a desapropriack rade, que consignava no artigo primeiro: "è abolida a propriedade
que somente pode se dar por razees de utilidade pablica e mediante privada da terra". Somente em 1919, em ato constitutional, a Eu-
indenizacao, existente desde os tempos do nascimento do libera- ropa capitalista estabelecia uma restricao a propriedade privada, em
lism°, pot outro, nao reconhece coino propriedade areas que nao Weimar, criando a ideia da obrigaek do proprietario, que ficou
cumpram os preceitos necessaries a seu exercicio, quando, entk, conhecida como funek social da propriedade. Enquanto isso, em
se da a intervenek para regular o aproveitamento dos elementos 1916, o Brasil promulgava o C6digo Civil, marcadamente oitocen-
naturais suscetiveis de exploraek e a justa e eqiiitativa distribuicao tista e defensor da propriedade absoluta.
da riqueza. Neste item inclui a divisk do latifUndio e o direito de Era claro que o mundo estava diante de urn dilema para superar
indigenes, coletivamente, a terra e a agua. Estabelece uma larga a desumanidade da propriedade absoluta: ou o caminho socialista
lista de proibicees is pessoas juridicas de adquirirem terrenos ru- aberto pela revoluek russa ou a construcao de Estados do Bern
rais e os possuirem, entre os quais a Igreja, as sociedades comerci- Estar Social, promovendo sobretudo uma reforma agraria profunda,
ais por aebes e os bancos. Veda, ainda, acesso ao Judiciario aos declarando obrigaebes aos proprietarios. Essa luta e busca de alter-
proprietaries afetados por atos que chama de restituick, que sal), nativas foi acompanhada de um sentimento de orgulho nacional
na realidade, anulack de titulos outorgantes de propriedade sem precedentes nos paises colonizados da America Latina, de que
nada concedidos contra posse preexistente. säo provas o movimento cultural da Semana de Arte Moderna de
Detennina, o artigo 27, que em cada Estado se estabeleca a Sao Paulo de 1922 e o movimento dos muralistas mexicanos, enca-
extensk maxima de propriedade rural admitida por urn Unice pro- becado pelo genial Diego Rivera e que revelou a forca feminina
prietario, sendo o excedente fracionado e poste a venda se estive- rebelde de Frida Khalo, que sac, apenas exemplos da riqueza artisti-
rein satisfeitas as necessidades agrarias da populack local. ca e cultural das Americas do seculo XX.
0 artigo 123 a que se refere o Prof Jesus Antonio regulamenta 0 Estado do Bern Estar, portanto, foi marcado pelo naciona-
o trabalho e a previdencia social, escrito antes da Constituick da lismo e pelas garantias de condicOes de vida da populagdo nacional,
OIT. A leitura do tambem longo artigo 123 é revelador do quanto por isso tem um forte sentido de fortalecimento da previdencia
avancara a legislacao de protecao dos trabalhadores na revoluek social e intervenek do Estado na iniciativa privada, seja nos in-
mexicana. Todos os beneficios concedidos por Getialio Vargas, no vestimentos econOmicos, seja na propriedade da terra. Eido seria
Brasil, na decada de 30, já estavam ali consignados akin de alguns dificil prever que o exacerbamento destas condiyees poderia levar
que somente seriam conquistados pelos trabalhadores brasileiros na ao doentio Estado autoritario. Embora o nazismo e o fascismo se-
Constituick de 1988. A Constituicao mexicana ja garantia limite jam as expressaes mais completas dessa doenca, eta marcou os
maxim° de oito horas da jornada de trabalho, pagamento agravado estados nacionais europeus e latino-americanos ate o final da deca-
de horas extras, descanso semanal remunerado, ferias, proibicao de da de 70 e em alguns casos ja entrada a de 80. A lista das ditaduras
pagamento do salario em lugares e situaciies inadequados e corn longa, Gracia, Portugal, Espanha e quase todos os paises da Ame-
mcios diferentes de dinheiro nacional, a igualdade de salad° entre rica, excecOes honrosas para Colombia, Venezuela e Mexico e por

94 95
muito tempo sustentado pelo brioso povo uruguaio que sucumbiu
Bolivia: a reforma que nasceu do povo
depois da pressao dos dois gigantes vizinhos c seus governos in-
transigentes. 0 Chile resistiu a ditadura durante mulles arms, mas
Varios paises da America Latina comecaram a escrever leis de
quando quis se transformar pacificamente em pais social i sta, viu
reforma agraria, obedecendo ao ritmo de sua hist6ria e a inobiliza-
desabar sabre si o peso do /mperio e o horror em todas suas pro-
porcOes. eao de seu povo. Sao exemplares e contraditOrias duas propostas de
reforma agraria que se transformaram em lei, a boliviana de 1952 e
As ditaduras, especialmente as latino-americanas, nao cumpri-
ram a eartitha do bem estar social. A major parte perdeu-se na cor- o processo de emanacao da lei brasileira, conhecida como Estatuto
da Terra, de 1964. 0 primeiro fruto de uma insurreicao popular
rupcao ou na luta pela manuteneao do prOprio poder, ou como dizia
antimilitarista e a segunda aprovada exatamente em moment° de
Jack London, perderam tempo de vida tentando aumentar o tempo
constrangimento nacional, quando se instalava mais uma ditadura
de vida. Algumas, dominadas pelas forcas do poder rural cumpri-
militar antipopular.
ram as garantias trabalhistas urbanas, coma o Brasil de Vargas,
A revoluyao boliviana de 1952 levada a cabo polo Movimento
mas deixaram totalmente de ludo uma reforma agraria profunda.
Nacionalista Revolucionario (MNR) que se intitulava expressao
E verdade quo muitos poises estabeleeeram regras para Os con-
das grandes maiorias de operarios, camponeses e classc media,
tratos de trabalho e permitiram a intervene -ao na ordem econOmica
cumpriu duas metas exigidas pelo povo, a reforma agraria e a ex-
e na propriedade privada sem, entretanto, alterar o seu conceit°. A
tincao do exercito nacional19.
propriedade continuaria plena, corn as limitacOes impostas pela lei
que poderia intervir no coil A constructio de um Estado sem exercito durou ponce, o pro-
mas nao em sua essencia. Alain do
prio Paz Estenssoro que, obedecendo as foreas populares havia
Mexico, poocos paises cstabeleceram leis de reforma agraria que
promovido a sua extincao, aos poucos e por temor as mesmas for-
merecam este nome. No Brasil, a Constituicao de 1934 aprovou a
pas populares, o recriou. P OI' ironia do destino, ou cumprindo uma
possibilidadc de intervencao na ordcm econOmica, Inas nao conse-
anunciada prcvisao, urn golpe militar, do Exercito por ele recriado,
guiu absorver urn novo conceito de propriedade privada porque a
o derrubou menos de uma decacia depois.
norma constitucional apenas concedeu a possibilidade da lei alterar
A reforma agraria boliviana w, entretanto, foi mais duradoura.
o contend° da propriedade, sujeitando-a ao interesse comum e so-
Calcada na Constituicao mexicana dispunlia que o solo, o subsolo e
U cial. A Constituicao, portant°, carecia de auto-nplicabilidade e fi-
as Aguas pertenciam por direito originario a Nacilo Boliviana. 0
r cou dependent° de uma lei que nao velo. Nem rnesmo as leis de
artigo segundo deixou estabelecido cite sc reconhecia a proprieda-
protecao ambiental da Opoca conseguiram intervir na propriedade
r privada, apesar a autorizacao constitutional. A Unica intervened°
que se conseguiu, por lei, foi a declaracão de bein protegido por ser 79 - A revolueno foi uma insurreicno popular clue Tido Sc conformou corn o golpe
r integrante do patrimOnio artistico, bistarico ou cultural da Nacao,
caso em que o exercicio da propriedade haveria de se da y abstendo-
militur do general Ba Ilivdn que impedia a posse do prcsidente eleito Victor Paz
Estenssoro. A grandc vitarii politica clesta revolucflo foi ter imediatamcnte intro-
r se o proprietario de atos que pudessem causar danos a esta qualida- duzido o voto do analfabcto. pondo fini no regime oligarquico traditional. Ver
mais a respeito no livro de Tulio Halperin Donghi, contempordnea de
de e isto porque houve uma grande pressào dos intelectuais e artis- America farina. Sobre a histOria da Bolivia recente hd muitos [Mos e interpreta-
r tas de Sao Paulo durante o movimento conhecido como a Semana cOes, especialmente recomenddvel t o trabalho de René Zavaleta Mercado, SO
de Arte de Sao Paulo de 1922. A lei de reforma agraria brasileira, ni's tie histdria.
conhecida como Estatuto da Terra, somente viria a luz em 1964. 80 - A reform agraria foi cstabe]ecida pelo Decreto Lei n° 3464, de 2 de agosto
do 1953, c continua cm vizor, tendo havido alguns avancos nos direitos indigenas
e alguns rctrocessos nos limites da propriedade privada.

96
97


Vt
ft
de privada desde que cumprisse "una funciOn util para la colectivi-
dad national". Usava o termo cunhado em Weimar e desconsidera-
forums de producciOn elaborada, es beneficioso, cuando, sin
apropiarse de grandes extensiones de tierras, coexistan con las
ft
va a propriedade que dcscumprisse tal funcao. Inseriu no pr6prio
propiedades inedianas y pequeflas y les compra sus productos a
conceito de propriedade da terra a sua funcao social e a sua dimen-
precios justos. El gran capital que se adjudica considerables Vt
silo, de tal forma que ao nao cumprir a funcao social a terra deixava
extensiones de tierras es perjudicial, porque ademas de retener Ct
de ser propriedade, assim como as grandes extensOes propriedade
rub poderiam ser.
la fuente de riqueza, monopoliza el mercado, anulando al
agricultor independiente, por medio de una competencia
ft
A hist6ria recente da Bolivia esta marcada por golpes, insurrei-
desigual. rb
cOes e lutas continuadas, é o pais de major coneentracäo indigena
na America, alám do castelhano fala-se normalmente nas cidades o
ft
A forma singela como a lei trata o que é beneficio e o que e
aimara e o quetchua, e muitas outras linguas no interior. A lei de
prejudicial revela a ideia do conceito de propriedade privada sem-
reforma agraria boliviana, porem, apesar de algumas modificae6es
pre comb excecão, isto é, embora o sistema seja de reconhecimento
rip
ja havidas, inclusive alguns avancos corn a introducâo de leis de
da propriedade privada, ela so pode existir quando benefica ao lb
proteeao ambiental e florestal e a reafirmacao de direitos indigenas
sobre as terras que ()amain, continua sendo urn importante marco
povo. Alias muito se parece corn o conceit() desenvolvido por ()
Rousseau no contrato social:
na America do Sul porque correspondia a essa incrivel diversidade lb
de ocupacao territorial, camponesa e indigena.
Para cobrir o universo agrario daquele encantador pals, a lei
Seja qual for a maneira por que se fizer a aquisicäo, o direito lb
estabeleceu seis tipos de propriedade rural, com suas especifica-
que cada particular tem sobre sua propriedade esta sempre su- lb
cbes, deixando de lado qualquer possibilidade de terras de especu-
bordinado ao direito que a comunidade tem sobre todos. Sem (11
la*. Os seis tipos sao: 0 solar campesino, a pequena propriedade,
a media propriedade, a propriedade comunal indigena, a proprieda-
isso nâo haveria solidez no vincula social, nem forma real no
exercicio da soberania.81 lI
de agraria cooperativa e a empresa agricola. Isto significa que o
Para completar o sistema, a lei determinou a criano de urn
conceito de propriedade rural esta limitado a esta tipologia, tudo
novo procedimento de registro agrario e uma jurisdieão agraria
cli
que isso nao seja, propriedade ndo e.
prOpria. Portanto, dentro do marco teOrico do capitalismo e do
Assim como a Constituicão mexicana, a lei boliviana recon-
ceitua nâo apenas o exercicio da propriedade, mas a legitimidade
constitucionalismo proprietario, a Lei boliviana inovou ou admitiu ta
para ser proprietario. Merece leitura os artigos 30 e 31 do citado
a antiga teorja de Locke e Rousseau de que a propriedade privada é
admissive! dentro de parâmetros que rido permitam uma acumula-
1
Decreto Lei no 3464, de 2 de agosto de 1953: cão desagregadora da sociedade e promotora de miseria humana.
Ao remontar as origens, a lei fere o capitalismo, mas como deve ser
Art. 30 - Queda extinguido el latifundio. No se pennitirá la
existencia de la gran propiedad agraria corporativa ni de otras
interpretada pelos aplicadores, ate hoje a luta dos bolivianos por
sua aplicacao é renhida e o povo tern sofrido tantos reveses quanta
ta
fonnas de concentration de tierras, en manos de personas
vitOrias, tornando-se exemplo de persistancia de luta e de dignida-
particulares y de entidades que, por su estructura juridica,
de.
impidan su distribuciOn equitativa entre la poblaciOn rural.
Art. 31 - El capital industrial aplicado en las areas rurales,
como los molinos, ingenios azucareros, frigorificos y otras
81 - Rouscau , 0 Contrary Social, p. 33.

98
99
)
)
A bandeira da reforma agraria tanto na Bolivia como no Mexi- grande, tuna terca parte do Senado, que representa apenas uma
co, unida a revolupao, se mantOm presente nos movimentos popula- parcela do Congresso, mas com peso real e simbOlico nas votaeOes.
res. A luta ganha luta pela reforma agraria, na America Latina, Outros paises refizera/n o Congresso, incluindo representaeOes
ganha o campo juridic° e a necessaria reformulapao do conceito de distantes das Assembleias, come a Colombia que introduziu repro-
propriedade, isto 6, a propriedade da terra, como direito, deveria sentantes indigenas no processo constituintc. Mais de 2% da popu-
sair do excludente protecionismo civilista e passar para a Consti- lacao colombiana, que 6 de 30 milbOes do habitantes, a indigena.
Th
tuieäo, cuja missao social e organizar o estado e protcger o cida- A questa. ° indigena acabou sendo central nessas novas consti-
dao. As lutas populates pediam, assim, que fosse humanizada a tuicOes, ao lado do meio ambiente. Tanto a questao indigena, como
propriedade da terra, isto 6, que a terra voltasse a ser sinOnimo de a do meio ambiente remetem necessariamente a terra, como ja ha-
vida e nao de exclusão. No complicado final de seeulo XX, esta via acontecido no Mexico e na Bolivia. Mas agora a visa° e mais
ideia era mais ampla e passou a abranger, tambdin, a protepao ao ampla e clara, nao tern o sentido produtivista, privilegia a vida em
Meio Ambiente. 0 meio ambiente e a necessidade humana teriain sua divers idade, multiplicidade, plural idad e. Neste sentido tern
que ser o toque de Midas da reforma agraria, onde o ouro seria a vital i/nportancia a questa° indigena, que remete cada Napa° lati-
vida. Vida no mais amplo espectro, animal. vegetal, mineral: vida no-americana para a sea real idade in tilt i cultural e plurietniea.A
do Planeta Terra. Esta nova visa° do Direito podemos chamar de LOgica do Estado moderno c unicista, a retomada ou o reconheci-
Socioambiental. mento do pluralismo pelas novas ConstituicOes abre as portas para
a sociodiversidade, a biodiversidade e, em conseqUencia, a jusdi-
versidade.
ColOmbia: uma Constituieno para o seeulu XXI. Scm entrar nestas diversidades especificas, o que flea claro
que o direito individual je nao da conta de resolver e garantir os
No final da deeada de 80' e inicio da de 90' muitos paises lati- novos direitos, porque individuais nao sae. Tame os direitos indi-
("‘ no-americanos reformularam suas Constituicees Politicas, tentando genas, quanto os direitos ambientais, somente tern sentido se reco-
um reencontro do Estado coin o povo 82 . Estas novas constituicOes, nheeidos como coletivos, aqueles de urn povo que se identifica
4" em geral democraticas, tiveram tuna participaeao popular nao co- como tal, este de todos os povos juntos. Se os novos direitos
(' nhecida na elaboracao das anteriores no continent°. De fato, os coletivos, a propriedade privada absoluta do seculo XIX ja nao
textos constitucionais foram amplamente discutidos pela sociedade serve e, portanto, nao pode ser apenas superficialmente modificada,
civil, ainda que nem sempre os constituintes os tenham escrito con- Inas carece de tuna alteracao profunda, especialmente em relacao a
a vontade de cada setor. As vezes, a interprctacao do pensa- terra. De todas as ConstituicOes latino-americanas nascidas neste
mento popular ficou aquem da discussao. Em alguns paises a es- period°, a Colombiana foi a que mais profunda e claramente reco-
colha dos deputados constituintes nag/ foi diferente do que ate entao nheceu estes diretos. Nao apenas garantiu a integridade dos territ6-
se conhecia para legislaturas ordin g rias, como no Brasil, cuja deci- rios indigenas e sua autogestao, como abriu duas vagas no Senado
são da Constituicao teve a participayao de senadores nomeados para serest preenchidas per estas comunidades. Garantiu as terras
pelo antigo regime militar. E verdade que a proporcao nao parecia ocupadas pelas comunidades negras, considerando-as de dominio
C coletivo e, acima de tudo, reconheceu a biodiversidade e a integri-
82 - A salsa das Gonstituivdcs d rica: Panama (rcfundido), 1983; Equador (refun- dade do ambiente.
dido), 1983; Guatemala, 1985; Nicaragua. 1987; Brasil, 1988; ColOmbia, 1991; Todos estes importantes temas da Constituicao colombiana de
c Mexico (reforma), 1992; Paraguai, 1992; Bolivia (reforma). 1994,Pcru, 1993; 1991, entretanto, cedem lugar, neste nosso estudo, ao da proprieda-
t
100 101
1
p
de da terra e reforma agraria. Ja vimos que as questdes indigena e que nao estao no mesmo nivel de protecao a propriedade privada e
comunitaria podem afastar a propriedade absoluta, mas a leitura do os direitos coletivos, pUblicos ou sociais. Estes se sobrepoem
artigo 58 nos levanta Lima serie de outras interpretacees c possibili- aquela. A conseqUencia disso e evidente, nao esti garantida polo
dadcs que Rao resistimos a inclui-lo integral mente: Direito a propriedade privada da terra exercida contra o Direito
social ou ambiental. A Constituicao colornbiana diz que a proprie-
Art. 58. — Se garantizan la propiedad privada y los demas dade é uma funcao social, e nao tem ou se deve exercer C01170, a
derechos adquiridos coil arreglo a las leyes civiles, los cuales funcao social, assim, faz parte do ser, da esséncia, da existéncia da
no pueden ser desconocidos ni vulnerados por leyes propriedade. Fica aqui constitucionalmente fundamentada a afir-
posteriores. Cuando de la aplicaciOn de una ley expedida por macão do Prof Guillermo Benevides de que a propriedade privada
motivo de utilidad priblica o interes social, resultaren en que nao cumpra uma funcao social, propriedade nao é. Dentro do
conflicto los derechos de los particulares con la necesidad por conceit() de funcao social, por outro lado, a nonna constitucional
ella reconocida, el interes privado deberfi ceder al interes estabelece, como inerente, a funeao ecolegica. Pode-se afirmar,
publico o social. entao, que a terra que nao cumpre a funcao socioambiental, na Co-
La propiedad es una funciem social que implica ohl igaciones. 16mbia, nao e propriedade e, portanto, nao é passive! de protecao,
Como tal, le es inherente una funciOn ecolegica. nem de desapropriacao, nem de indenizacao. Tanta a indenizacao
El Estado protegerd y promovera las formas asociativas y como a expropriacao que por raziies de eqUidade nao deva ser in-
solidarias de propiedad. denizada sac) referentes as que cumprem a funcao socioambiental,
Por motivos de utilidad pnblica o de interes social definidos ja que as outras terras, as que nao cumprem, nä() cuida a Constitui-
por el legislador, podra haber expropiacien mediante sentencia cao.
judicial y indeinnizaciem previa. Esta se fijard consultando los A mais tnoderna, progressista e multicultural das constituicOes
intereses de la comunidad y del afectado. En los casos que latino-americanas, porim, vive hoje em um pais oprimido pela
determine el legislador, dicha expropiaciem podra adelantarse guerra e pela intervencao estrangeira. 0 Plano Colombia tern, em
por via administrativa, sujeta a posterior action contenciosa nome da repressao a guerrilha e ao narcotrafico, feito letra morta
administrativa, incluso respecto al precio. aos principios e regras de uma constituicao voltada para os direitos
Con todo, el legislador, por razones de equidad, podra dos povos. A esperanca dos povos da America e que a Colombia
determinar los casos en que no haya lugar al pago de nao venha a repetir, no seculo XXI, a tragêdia paraguaia do seculo
indemnizaciem, mediante el voto favorable de la inayoria XIX.
absoluta de los iniembros de una y otra camara. Las razones de
equidad, asi como los motivos de utilidad pOblica o de interes
social, invocados por el legislador, no sera!) controvertibles Brasil: um pedaco de chat) para viver?
judicialmente.s'
A luta pela reforma agriria no Brasil vem de longa data e tern
A leitura deste artigo constitucional esclarece a submissao da pontos de confronto e avaneo e momentos de tristes recuos. Desde
propriedade privada ao interesse ptiblico ou social. Isto significa o seculo XVI, corn o sistema das sesmarias, passando pela conces-
sao de terras devolutas institufdas em 1850, sempre houve no Bra-
83 - ConstituciOn Politica de Colombia, de 1991. Editorial Themis, Santa Fe de sil uma politica de impedimento aos pobres. cammsaindig,e-
Bogota, 1995. nas de viverem em paz na terra. Uma permanente e nem sempre


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surda luta entre o latifiandio e os camponeses cada vez mais des- comum ou individualmente, inal inseridos no mercado, com rela-
_ possuidos esteve latente no Brasil desde 1500, e foi severamente cöes com os vizinhos e corn as cidades prOxiinas.
agravada nos nItimos 150 anos. Quando o seculo XX surgiu en- As guerras camponesas nada mais foram do que a reacao a esta
controu a terra em Canudos manchada de sangue; o mesmo sangue violencia. Pequenas lutas quando os camponeses cram surpreendi-
campones manclaria larga faixa da regiao do Parana e Santa Cata- dos desorganizados, e longas guerras quando conseguian undo c
rina conhecida como Contestado. Os dois movimentos se parecem organizapo, como Contestado e Canudos. Os camponeses e pos-
inuito e sao os maiores de um conjunto de outros que representam a seiros nao viviam uma vida luxuosa, e verdade, mas era farta e
reaeão contra a ofensiva da nascente repUblica de desocupar terras possivel. Alain disso, a ameaca do arranca-Ms da terra onde viviam
r— de camponeses para integra-las no sistema juriciico proprietario em era uma condenacao ao desterro, porque simplesmente nao tinham
nome da elite politica e econeun ica. Para essa desocupacao, foi outro lugar para viver. 0 Unice) caminho q ue Ihes restava era a luta.
usada uma forca incrivel, o banditismo mercenario privado, as po- Portant°, estas guerras nao tiveram urn inimieo previamente esta-
!Colas dos Estados e o Exercito Nacional. No Contestado foram belecido, nao tinham urn ideario politico c a Unica raz g o da luta era
quatro anos de derrotas das forcas regulares e depois uma vitOria manter a vida e a posse da terra. Foram os governos e o latifandio,
sobre o povo cujos detalhes a HistOria Official insiste, envergonha- por sua iniciativa e vontad e. que os declararam inimigos e os com-
da, em omitin Nao havia em nenhum dos dois movimentos um bateram 84
ideario politico ou tuna proposta de velar/ra agraria, porám ambos No Parana e Santa Catarina cada vez quo os camponeses rebel-
tinham mu g° clam que a terra 6 de todos e que os frutos da terra des do Contestado tomavain uma vita tinham entre sous alvos favo-
devem ser repartido entre todos. Esta clareza nao provinha apenas rhos o Oficio de Registro de ImOveis, porque sabiam que o discur-
do fato de estarem juntos lutando contra UM inimigo poderoso, so da legitimidade de seus inimigos estava n aqueles documentos de
mas, ao contrario, era a pratiea anterior a chegada do inimigo, era a reg i stro de terra. Cliegaram a gueimar al guns CartOrios, mas rd()
maneira coin° a populacao entendia a posse e o trabalho da terra. organizaram uma proposta de reforma a graria, nem postulavain
Tanta no nordeste como no sub quern foi chamado de bandido, pedidos nesse sentido ao Estado e ao Direito, sabiam intuitiva-
jagunco, monarquista, fanatico, e sofreu a violenta repressao do mente onde estava o mat, was suas Uderancas nao conheciam a
Estado era s6 um povo que vivia da terra e resistia aos que vinham teoria sufieientemente para formular uma estrategia de reforma,
com titulos de propriedade entregues pelos Governos, para expulsa- foram revoltas camponesas sem nenlmma ou quase nenhuma parti-
fos. De fato, a partir de 1891, corn a Constituigão Republicana e cipacão de setores intelectualizados das cidadcs. 85 Alias, agueles
Federalists, as elites locals passaratn a dispor das terras chamadas camponeses nao necessitavam do reforma agraria, Milian' terra,
devolutas e outorgavam titulos segundo leis urdidas cm suas As- nela traballmvam, dela cuidavam, numa relacao filial, produziam,
sembleias Legislativas. Os titulos cram emitidos sobre terras ocu- cram felines. A concessao de suas terras para estranhos foi urn des-
padas por camponeses, negros libertos, indios, mestipos que manti-
nhain uma cconomia de subsisténcia sat i sfatOria e conseguiam vi-
ver bem, pobres, etas alimentados e unidos pela forga da solidarie- 84 - Sobre a villa dos camponeses do Contestado e interessante a leitura do ro-
dade e de Luna religiosidade pr6pria e emancipada, em geral em mance de Frederecindo Mares de Souza, Eles nao acreditavan: no morte. Sobre
confronto corn a religiao oficial que propunha a submissao e a en- Canudos nada e melhor quc o classico de Elucides da Cunha, Ds SertOes.
trega das terras. De posse dos titulos de propriedade, corn militia 85 - E s6 no jA bern avaneado seculo XX quc o movimcmo camponês ganha orga-
privada ou pUblica, armadas sempre, agressivas e violentas, vinham nicidade politica, com aliancas socialistas c comunistas. E desta Case mais avan-
coda a lideranea de homens conic, Francisco Juliäo no Nordeste e Manocl Jacin-
expulsar os posseiros quo estavam quietos trabalhando a terra em to, o Marcella! do Campo, cm Sao Paulo e Parana.

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e
respcito aos seus mais intimos direitos: o direito a vida, a cultura, Nos curtos espacos de vida democrâtica deste seculo no Brasil,
dignidade. sempre se manifestaram organizacOes populares pcla reforma agra-
Pouco divulgadas, omitidas pela imprensa urbana, as lutas ria, de forma muito intensa no conturbado periodo que medeia as
camponesas brasileiras, que ocorreram em todo pais, sempre foram ditaduras de Getnlio Vargas e a militar (1945-64). Estee tambem
marcadas por extrema violencia e por dura criminalizacâo dos lide- urn periodo de grande nacionalismo e a refortna agraria apesar de
res. Näo houve perdao para os rebeldes, o Estado promoveu parse- ser bandeira do Partido Comunista (Manoel Jacinto) tambem estava
guicao e morte aos que, no campo, se insurgiam contra a cruel divi- proposta por militantes histOricos da esquerda nao comunista, como
sao da terra: Canudos e Contestado sao apenas dois exemplos mai- Francisco lull5o e suas ligas camponesas, no nordeste e Leonel
ores 86 . Corn o avant() do seculo XX, etnesmo frente a cada derro- Brizola e seus grupo dos 11 no Brasil afora.
ta, cresccu a consciencia da populacào do campo e sua ligae5o com Por outro lado, a guerra fria naquele momenta fazia os Estados
a cidade e os tnovimentos fiearam cada mais politizados e em con- Unidos proporem uma espdcie de refonna agraria para os paises do
seqUencia direta, ainda mais criminalizados pelo poder. Os lideres continente que pudesse minorar o problema da fome, de redistri-
camponeses ganharam cultura politica e ideolOgica, discutindo buicao de renda e desemprego, reeditando as iddias de Keynes, e
questOes internationals e conjuntura econennica, passaram a ter tambem pensando na ampliaeão de mercados para seus produtos
posicOes tiaras frente aos fenemenos sociais. Manoel Jacinto e urn manufaturados, mas sempre presente a contraposiedo as ideias so-
desses lideres camponeses que conhece o marxistno e discute filo- cialistas que passaram a fazer parte do ideario da reforma agraria.
sofia, integrando sua luta a luta geral pela transformacao da socie- A cooperacao none americana levava o Home de Alianca para o
dade. 0 MST, depois dele, tern quadros de lideranca corn sOlida Progresso e tinha uma cartilha de reforma aplicada coin adaptacOes
formacao acaddinica e outros de profundo e extenso auto-ditatismo, em verios paises, como a Venezuela, o Chile, o Peru e o Brasil.
conformando urn conjunto capaz de formular politica e entender o Algumas leis tem hist6rias curiosas no Brasil. 0 Decreto Lei
sentido da confrontacao de ideias e de atos. A proposta de reforma n° 25, por exemplo, chamado de Lei de Tombatnento", a fruto qua-
agraria passava a ser proposta de mudanca e nab apenas de mann- se direto da semana de arte de 1922 e foi aprovado pela Camara
tencao de posse da terra, abandonada a ingenuidade Uncial do ini- Federal e pelo Senado, mas por nao ter completado o processo le-
cio do seculo. lsto, se por um lado deu trials consistencia aos mo- gislativo viu-se publicada como Decreto-Lei, depois que GetUlio
vimentos, tambem fez coin que as elites inudassem de tatica politi- Vargas fechou o Congresso e foi pressionado por Gustavo Capa-
ca: ja nao bastava a repressao policial e militar, passou a ser neces- nema para promulga-lo. 8 0 Estatuto da Terra, a lei de reforma
sario propor mudaneas nas estruturas juridicas da propriedade da agraria brasileira, tambdm teve uma histOria curiosa, semelhante a
terra, seguindo o lema mudar para que Ludo possa continuar igual. Lei de Tombamento. Reivindicada, querida e sonhada pelos movi-
mentos populares e de esquerda, bandeira do governo constitutio-
86 • Adcodato, o Ultimo lidcr do Contestado foi preso c levado acorrentado nal de Jo5o Goulart, Mao foi aprovada senao sete meses depois do
FlorianOpolis, condoned° a 30 anos de prisao. Sete anos depois, cm 1923, foi
motto numa emboscada anunciada como tentativa de fuga. Os relatos das prisfies
de Manocl Jacinto envergonham a humanidade, pela sordidez do tratamento e 87 • Sobre a Lei, as questees juridicas que suscita a sua historia, escrevi o livro
pela irresponsabildiade judiciaria. Canudos terminou corn um massacre em que Bens Culturais e Protecao Juridic°. publicado pela Unidade Editorial de Porto
nao se poupou a vida nem mesmo dos que faziam da °rack) sua resistencia. As Alegre, ern segunda edicao de 1999.
agressdes relatadas no Tribunal dos Crimes do LatifUndio ocorrido em 2001, em 88 - Gustavo Capanema era o Ministro da Educacao c Cultura e mantinha livre
Curitiba, provam quc a vicancia c criminalizaeao continuam apesar do tempo e transit° entre os intelectuais pau listas autores a promotores da lei de Tombamen-
da chamada Constituieao cidada brasileira. to, em especial Oswald c Mario de Andrade.

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golpe militar que o derrubou e instalou no governo urn grupo con- propriedade seja encerrada por um novo contrato, compulsOrio,
servador e que se manteria por vinte anos construindo um extraor- parent, de desapropriacão.
dindrio aparato repressive quo impediria qualquer movimento po- A desapropriacão nao 6, assim, mais do que um contrato
pular desabrochar. Poi promulgada em 30 de novembro de 1964
co de compra e venda, no qual a manifestacao livre de vontade do
coma Lei n° 4.504/64, que dispae sabre o Estatuto da Terra. Todos
vendedor flea restringida pelo interesse pUblice. A desapropriacao,
sabiam na epoea que a promulgacao era literalmente para america-
longe de ser a negagão do conceito liberal de propriedade, e sua
no ver, exigida pales Estados Unidos, a ditadura militar jamais a
reafirmacão. A grande novidade do conceito liberal 8 a livre dispo-
pensou per em pratica e a Lei restou letra morta, invocada pela
sicao do bem, mas o bent é sempre integrante de urn patrimOnio c o
esquerda e desprezada pela direita no poder. que esta garantido corn a desapropriactio 6, exatamente, a integri-
Apesar da clareza dos dispositivos e da possibilidade que abria
dade deste patrimOnio. A desapropriactle é entendida coma a repa'
para a reforma agraria a lei nao era suficiente, porque o sistema raeao de urn dano patrimonial causado ao cidadao e, portanto,
rt juridic° continuava mantendo a garantia da propriedade privada
,uma reafirmacão da plenitude do dircito de propriedade. Por isso a
acima dos direitos de acesso a terra por via de reforma agraria, desapropriacão de bens privados esta reconhecida desde as primei-
mesmo depois de cair a ditadura, em 1984. Continuava valer a ras constituicóes, coma a Unica excecao a liberdade de transferan-
expressao acidamente critica de Nilson Marques: "0 estoque espe-
cia ou disposicao do hem, nao sendo CNCCOO a plenitude do exer-
culativo de terras no Brasil nab e delito. Delito, num direito que cicio do direito de propriedade. A desapropriacão utilizada nos'
envelheceu, C ocupa-la para plantio." 9 De Cato, o Estatuto nao alte-' casos de descumprimento da funcao social, porCm, alimenta dais
r^ rava o conceito de propriedade privada da terra, apenas estabelecia
enormes defeitos e injusticas: primeiro, remunera a mal usada pro-
mecanismos de correczio das injusticas sociais agrarias por mein de priedade, isto e, pretnia o descumprimento da lei, porque considera
desapropriacAo, dependendo, entao, do poder politico do Estado e causador do dano e obrigado a indenizar, nao o violador da norma,
da interpretacào dos Tribunals, sempre voltadas para a protecäo da,
mas o Poder PUblico que resolve pOr fim segundo, dei-
, propriedade absoluta. xa a iniciativa de coibir o mau uso an Poder PUblico, garantindo a.
Alias, as leis caleadas no projeto de reforma agraria norte- integridade do direito ao violador da lei.
americana tern como constante uma definiclio de funcao da propri-
Aqui resident as grandes diferencas: a Constituic5o Mexicana
edade e a necessidade de desapropriac5o, isto 6, de pagamento pela
afastou a desapropriacao e possibilitou o uso coletivo da terra, a
terra a ser expropriada. A manutenc5o do pagamento ou indeniza-'
Lei Boliviana nao reconheceu a qualquer urn, o direito a terra que
, c'ao pela recuperacao de terras para fins de reforma agraria mantem nao estivesse sendo usada ou qua tivesse dimensao exagerada; a
o velho conceito liberal de propriedade e nao o atualiza. Isto flea recente Constituic5o Colombina reconheceu o direito da sociedadc
r claro no cotejo das leis boliviana e brasileira, enquanto aquela alte- recuperar a terra sem indenizacao; a Lei Brasileira, ao contrario,
r ra o conceito tnesmo de propriedade agraria, desvinculando-o de
concedia o direito ao Estado de apenas comprar, pagando o preco, a
qualquer ideia civilista c contratual, estabelecendo a sua legitimi-
terra cujo exercicio do direito de propriedade fosse contrario a lei.
dade pelo uso, a brasileira mantem integra a legitimidade contratu-
Quer dizer, a terra qua nao estivessc cumprindo a determinacao
f al, estabelecendo que, quando nao seja util A sociedade a nociva
legal, no Mexico e na Bolivia nao, gerava ao titular do direito do
propriedade qualquer protecao legal, podendo o Poder Pt:Witco des-
tinar a terra desocupada ou nao usada a quern desejasse use-la ou
89 - Nilson marques, Posse X propriedade a luta de classes na questa() fundid- ainda dar uma destinacao pnblica. No Brasil o nao cumprimento da
ordem legal teria como conseq5encia a possibilidade do Estado

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11-
pagar por ela e, entào, como coisa comprada, pUblica, estava passi- Estado do Bern Estar Social, sequer apontam para a possibilidade
ve! de distribuicao a quern fosse efetivamente usa-la. Esta diferenca de refOrmulacão do conceito de propriedade privada, como nos
e fruto da interpretacão claramente ideolOgica que os Poderes Bra- casos venezuelano e boliviano.
si leiros tern dado ao Estatuto da Terra que permite a desapropria- Isto quer dizer que a lei brasileira possibilitou o uso da terra
cao e o silencio das ConstituicOes anteriores quo deixam a defini- por nao proprietdrios, mantendo a produeao agricola como explora-
cao por conta da Lei. Esta interpretacao tem que ser mudada a par- cao capitalista, estimulando a existência de proprietario absentista.
tir da Constituicao de 1988, apesar da resistencia dos intérpretes. Para os camponeses e para a quebra da hegemonia latifundiária esta
Alias, recentemente o Tribunal de Justica do Rio Grande do medida é, cm si, negativa. Como é possivel e estimulado que o
Sul, em decisao inddita manteve uma negativa de liminar de reinte- proprietario da terra esteja ausente, a relaeao corn a terra é exclusi-
graeao de posse porque a fazenda ciao cumpria sua funcao social. A vamente de interesse financeiro, valendo a atividade e a forma de
decisao revela surpresa ao cunho nitidamente politico do fazendei- ocupacao mais rentavel a curto prazo. Isso gera dual conseqUéncias
ro, que aineaca o Juizo corn violencia e conflito caso a litninar seja negativas: por urn )ado propicia a formayao de grandes fazendas
negada. Uma verdadeira coercao judicial, denuncia. Essas decisnes, monoculturais e por outro limita ao minimo a possibilidade dos
cujo fato é recorrente, tem sido raras nos Trihunais brasileiros, por trabalhadores rurais produzirem para seu pr6prio sustento, gerando
enquanto." o fenOmeno dos trabalhadores avulsos, sem terra, chamados no sul
do Brasil de "bOia-fria" 91 . No Estado do Parana o governo implan-
tou um projeto chamado "vilas rurais" cujo objetivo é conceder
Funefio social a brasileira terra insuficiente para trabalhadores rurais de tal forma que eles
continuem obrigados a vender sua Corea de trabalho aos empreen-
No Brasil, o Estatuto da Terra de 1964 seguiu a tradicao dos dimentos agricolas da regiao. 0 Iota que recebem é too exiguo que
sistemas anteriores de pertnitir urn discurso reformista ao Governo n -ao permite a sobrevivencia da familia que tern que continuar como
mas impedir, de fato, uma quebra da-tradicao-tatifund-iariada ocu- bOia-fria para sobreviver. 92 0 projeto paranaense é urn incentivo a
acdo territorial. E verdade que modernizou os termos, humanizou continuaeho da exploraeao da moo-de-obra sasonal e nao resolve o
os contratos, impediu velhas praticas semifeudais e pOs-eseravistas, problema rural mais grave que é o acesso dos trabalhadores a terra.
mas na essência manteve intacta a ideologia da supremacia da pro- A razao continua sendo a mesma da epoca das sesmarias e da Lei
priedade privada sabre qualquer beneficio social. 601/1850: se os camponeses puderem produzir para si mesmo, o
0 Estatuto da terra, ao contrario da lei venezuelana, regula- preco da forca de trabalho no eampo subira, o que pode inviabilizar
menta o uso da terra por terceiros, chamando a isso de uso tempo- a propriedade absentista, que tern seu fundamento na extrema ex-
raria, apesar de deixar claro que os contratos podem se perpetuar ploraeao da mäo-de-obra.
no tempo, porque estabelece prazos minimos de vigencia, mas nao
maximos. He uma franca intervencao do Estado na vontade dos 91 - Belia-fria significa refeic2o fria. Os trabalhadores sao recolhidos de manha
contratantes que nao tem liberdade de fixar precos, nem prazos, nos cidadcs e levados para os postos de trabalhos, sendo devolvidos ao final da
nem formas de pagamento inferiores ao da lei. Como se ye, entre- tarde. Devem lcvar marmita para se alimentar, resultando come-la fria, dal o
tanto, estes dispositivos, ainda que integrados na concepcno do nome.
92 - Este projeto, lancado corn grande aparato publichario pelo governo, tentou
esconder a violencia inusitada contra os movimentos sociais do campo que vie-
90 - A rcvista "Cadcrno Renap", n° 2 aria II, de fevereiro de 2002 a integralmente ram a seguir e que foram denunciadas pelo Tribunal da Terra realizado em Curi-
a cstas decisees, tiba em 30 de abril de 2001.

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Seria irOnico, nao fosse marcado por uma tragedia humana, o A funyllo social, nesta interpretayfto, seria urn privilágio do
fato de que os que produzem os frutos da terra nao disponbam de )proprietario que ao Mie cumpri-la pode ser admoestado pelo Poder
alimemos para seus ti lhos, enq uanto os chamados proprietarios Pithlico, mas nao perde a propriedade. Quando, ao contrario, se diz
sequer necessitam saber onde esta a terra e como se collie os frutos que a fully:la social 6 da terra (objeto do direito) e nao da proprie-
para viver uma vida fausta e preguicosa. dade (o pr6prio direito),ou do proprietario (titular do direito), se
0 artigo 2° do Estatuto, em scu paragrafo primciro, estabelece esta afirmando que a terra tom Lima funyilo a cumprir independen-
que: temente do find° de propriedade que possam the outorgar os seres'
humanos em sociedade. Entretanto, e sempre born lembrar, que e a
A propriedade da terra desempenha integralmente a sua funyao sociedade humana que reconhece essa funcao, pela consciência e
social quando, simultaneamente: a) favorece o bem-estar dos pela lei.
proprietaries e dos trabalhadores que vela labutam, assim corm) A Lei de 1964 estabelece comb (mica conseqUencia do nao
de suas familias; b) mantem niveis satisfatOrios de produtivi- cumprimento da funciio social a possibil idade do Estado desapro-
dade; c) assegura a conservacalb dos recursos naturals; d) ob- priar a terra. Ainda assim, e apenas uma possibiliclade que dependc
serva as disposicOes legais que regulam as justas retay6es de da vontade politica do Poder, e nao 11111 dcver publico. Portanto,
trabalho entre os quo a possuem e a cultivam. apesar da novidade do conceit° de funyao social da propriedade
i ro duzido no nunca aplicado Estatuto da Terra, a situacäo nao
r Pode-se observar que, ainda que passive! de variadas interpre-
tayOes, os eriterios existem e possibi litam verificar quando e em
ficou t5o diferente dos seculos anteriores: a_propriedade continuotf
r absoluta. A desapropriacao 6 a velha medida do liberalismo: !man-.
que cireunstancias ha violacào do cumprimento da fiical ° social. 0 .telh a ilinegridade do patrimOnio individual. E verdade que no co-
r
que realmente falta deixar claw na lei e a conseqUencia dessa vio- meco do seculo dezenove a desapropriacao era concebida sotnente
lagao. A interprctacäo oficial 6 a de que o fato de nao cumprir a para o uso pUblico e esta nova forma 6 para uso social, isto 6, pos-
funy lao social nao retira do proprietario nenhum dos direitos esta- sibility que o Estado entregue a um novo proprietario que se coin-
.‘ belecidos tante no velho C6digo Civil de 1916, como no repetido prometa a cumprir a fun* social. Note-se que a finalidade nao
C COdigo que, ja aprovado, tern sua vigencia a partir de 2003. inclu- acabar corn o latifimdio c promover tuna alteracao na estrutura
sive de reaver a terra, usando a forca pnblica, de quem dela se agraria, mas garantir a produtividade da terra. 0 novo proprietario
apossar. Isto significa quo o sisterna de urn lado incentiva o uso seria nao absoluto quanta o anterior, podendo uma vez mais des-
adequado, mas de outro protege o inadequado, proibindo que os cumprir a finalidade social e teria, novamente, coma (mica conse-
camponeses usem terras e nelas produzam sem a expressa vontade qiiencia, a possibil idade de nova desapropriac2to. Alert disso, o
do proprietario ausente. A tradiyato latifundieria descrita na anglise novo proprietario pode vend ee -1a, como um bon qualquer, especu-
das sesmarias dos seculos XVI, XVII e XVIII c da lei de terras lando com ela, por interesse econOmico ou por qualquer comrade-
C.
devolutas do seculo XIX, se mantem Integra. De fato, desde as dacie, ate mesmo para o amigo latifundiario inadimplente.” Ao nao
sesmarias s6 o titular (proprietario) pode usar as terras, nab estando_ modiftcar o conteildo ou o conceito de propriedade privada da ter-
1 permitido a ninguem delas oDnelas viver. Esta 6 a injustica central ra, a lei nao promoveu a reforma agraria. A Lei e de 1964, depois
do sistema que se mantem contra os interesses e necessidades do
povo. Este 6 o come sempre escondido das lutas camponesas e in-
r digenas. 93 - A lei estabelece uma limitacAo A venda da propriedade recebida apOs desa-
propriacäo para fins de reforma agraria, por dcterminado tempo, mas o canter
absoluto, d ispon ivel da nova propriedadeC inquestirmAvel.
1
I 112 113
C
dela sobrevieram 20 anos de ditadura militar e mais quase outro propriedade, detennina que ela tenha uma Luz-10o social 9 7 Mas não
tanto de governos neoliberais, que fizeram coin que a reforma agra- é sO, a Constituicao limitou os juros, defendeu o nacionalismo,
ria, pensada como alteracão da ordem fundiaria, sempre contasse privilegiou a empresa nacional, ofereceu garantias individuais e
coin a ma vontade dos Governos e a fantastica pressào contraria do reconliecou direitos coletivos, alein de estabelecer como objetivo
sistema. Talvez a lei nem tenha tido culpa! 0 fato é que mesmo fundamental da RepOblica a erradicacão da pobreza.98
corn a Lei de 1964, omissa quanto a conseqUencia do ilk cumpri- Por isso foi chamada de cidadã, verde, ambiental, plurissocial,
mento da funcäo social, era possivel a interpretaeao de que uma India, democritica e quantos adjetivos enaltecedores pode ter urn
terra sob dominio privado que nao cumpra a funcâo social nao tern diploma que se escreveu para gerir os destinos do povo. E ela é
as garantias juridicas do sistema. Em momento algum, porem, a tudo isso. E talvez essa seja a exata razão do esforco 450 grande das
elite juridica nacional ousou admitir, ou sequer pensar nesta possi- oligarquias no sentido de modifica-la, altera-la, para empalidecer
bilidade. seu verde amarelismo, sua forea cidada, seu earater emancipatOrio.
E bem verdade que apesar disso não tern sido facil a vida dos
brasileiros. Os indios tiveram garantidos seus direitos originarios,
A Constituicão de 1988. mas o Estado tern sido atuante e eficiente em diminuf-los, reinter-
pretá-los ou solertemente não aplica-los. 0 meio ambiente ecologi-
Emergido da noire autoritdria, o povo brasileiro discutiu a ela- camente equilibrado foi erigido a categoria de bem juridico prote-
boracdo de uma nova Constittlicao, em 1988, e nao se pode dizer gido, etas a inciiria, imprevisäo e, as vezes, cruel "diligéncia" dos
que nä° tenha enfrentado coin vigor o carater absoluto do direito poderes de estado tern favorecido os incêndios, alagamentos, de-
rivado de propriedade. Basta ler os capitulos do meio ambiente,94 vastaeão de toda ordem.99
dos indios, 95 da cultura; 56 basta dizer que cada vez que garante a Para combinar corn os compromissos de eliminar desigualda-
des socials e regionais, a Constituicão não poderia repetir a velha
propriedade privada do C6digo de Napoleào, absoluta e acima de
94 - 0 capitulo VI, do Titulo VIII da Constituted°, artigo 225, define o meio
ambiente ecologicamente equilibrado como bem de use comum do povo c essen- todos os outros direitos. A propriedade privada teria que ser dese-
cial a sadia qualidadc de vida, impondo a todos o clever de preserva-lo para as
presentes e futuras geragOes. E evidente que esta formulacao restringe o cxercicio bordinando a propriedade privada a sua manutencao. Aqui tambem, ao qualificar
da propriedade privada e na realidade impbe uma rcvisao ao seu conceit°, para o bem, Impnem restric6cs ao direito de propriedade e determina obrigagOes ao
ceder em seu absolutismo e se compatibilizar coin a proteedo ambiental. Este proprietario. Ver a respeito meu livro Bens culturais e protect-a juridica.
capitulo nao trata do direito, abstratamcntc considcrado, mas do bem juridico, a 97 - Artigo 5°, incisos XXII c XXIII e Titulo VII, artigo 170, incisos I e II. Estes
terra, em concreto e, ao alterar o bem, altera o direito que sobre die se possa sao os dois lugares onde expressamente se garante a propriedade privada na
dispor. Constituicdo, mas imediatamente, como para deixar claro que the a uma condi-
95 - 0 Capitulo VII do Titulo VIII da Constituicao, artigos 231 e 232, trata dos cao, no inciso seguinte exige dela uma funcao social.
direitos dos povos indigenas abolindo qualquer propriedade sobrc as terras que 98 - Artigo 3°, inciso
ocupam e garantindo a ties continuar a ser indios para sempre, acabando corn o 99 - 0 balaneo da deflorestaeao da bacia amazOnica realizado anualmente surpre-
carter de provisoriedade corn que o Direito sempre os tratou. Ficou reconhecido endeu a todos cm 1998. Depois de dois anos de queda, voltou a subir, atingindo
aqui que a terra 6 mais importante do que o direito de propriedade que a ela se mais de 13% do total da Area. E grave, mas ainda mais grave se adicionarmos o
pode atribuir. Este formula* romps dogmas e cria novas paradigmas. Ver a fato de que o Govern°, tem emanado normas juridicas severas para coibir o des-
respeito mcu livro 0 Renascer dos povos indigenes para o direito. matamento. 0 que significa que nao bastam leis, 6 necessario mais do isso. Ver a
96 - A Seca° II, do Capitulo III, do Titulo VIII da Constituicao, artigos 215 e 216 propOsito, o artigo de Washington Novaes, Uric crise amazdnica, Estado de Sao
determina que compete a todos a proteedo do patrimônio cultural brasileiro, su- Paulo, dia 10 de fevereiro de 1999,1 78 . A2.

114 115
nhada coma uma conseqiiéncia dos novas direitos coletivos a vida, da, porque faz prevalecer a condigao a propriedade, a vida ao di-
ao fim das desigualdades e ao meio ambiente ecologicamente equi- reito individual.
librado, introduzindo nela tuna razao humana de existencia, vincu- Se assim tern que ser a propriedade, tcmos como corolario que
lando-a em todos os lugares que a reconhecam como direito a fun- a gleba rural que nao atenda a todos estes critdrios constitucional-
ea° social, especialmente em relacAo a terra. E t5o insistente a mente estabelecidos tern que ser compungida a faze-lo. E de se
• Constituieao que se pode dizer, fazendo eco no Professor colombiA supor que um uso que nao preserve o meio ambiente ou cuja explo-
aim Guillermo Benavides Melo, que no Brasil pOs 1988 a proprie- raga° nao favoreea os traballiadores ou ainda nao tenha um apro-
dade que nao cumpre sua funcao social nao esta protegida, ou, sim-, veitamento rational ou adequado, ou nao cumpra suas obrigagdes
/ plesmente, propriedade nao a. Na realidade quern cumpre tuna funi trabalhistas, d nociva e como tal duramente castigada. 0 COdigo
/eao social nao e a propriedade, que 6 urn C0/1Cell0, ulna abstracao, Florestal Brasileiro, Lei n° 4.771, de 15 de setembro de 1965 esta-
mas a terra, mesmo quando nao alterada antropicamente, e a acao belece que as aeries contrdrias a protecao forestal nele estabelecida
humana ao intervir na terra, i ndependentemente do titulo de propri- sâo consideradas uso nocivo da propriedade. Portanto, por descum-
edade que o Direito ou o Estado the outorgue. Por isso a funcao prir parte dos requisitos ja se caracteri za como uso nocivo. 0 uso
social e relativa ao hem e ao seu uso, e nao ao direito. A de/sfuncao nocivo, por sua vez, esta regulado como um direito de vizinhanya,
ou violacao se dd quando hi) um uso humana, seja pelo proprietario mas quo dove ser estendido aos direitos coletivos ambientais, que
legitimado pelo sistema, seja por ocupante nao legitimado. Embora tanta seinelhanca tern coin os de vizinhanca.
esta concepcdo esteja clara por todo o texto constitucional, a leitura A Constituicao nao indica coin clareza qua) o castigo que tera
que tem feito a oligarquia omite o conjunto para reafirmar o antigo uma propriedade que nao faz a terra cumprir sua funcdo social, mas
e ultrapassado conceito de propriedade privada absoluta. A inter- de pareec Obvio: o proprietario tem a obrigageo de cumprir o de-
pretac5o, assim, tern lido contra a lei. terminado, 6 um dever do direito, e quern nao cumpre seu dever,
Analisemos a contradicrio entre esta interpretacao e a determi- perde seu direito. Quern nao paga o preco nao recebe a coisa, quem
nay5o constitucional. A Constituicao define como requisitos para nab entrega a coisa nao pode reivindicar o prcyo. Quer dizer, o.
que uma propriedade rural (leia-se terra) m cumpra a funeao social: proprietario que nao obra no sentido do fazer cumprir a funyao
1) aproveitamento rational do solo; 2) utilizactio adequada dos social de sua terra, perde-a, on nao tern direito a cla. Ou, dito de.
recursos naturais disponiveis e preservacao do meio ambiente; 3) forma mais concorde coma Constituicao, nao tem direito a protc-.
observagao das disposigOes que regularn as relaeOes de trabalho; 4) cao, enquanto nao faz cumprir sua social funcao. A propriedade
exploragao que favoreca o bem estar dos proprietarios e dos traba- urn direito crindo, inventado, constru ido, constituldo. Ao construi-
Ihadores. Como se va a definicao e unlit° parecida, embora de me- lo, a ConstituiyUo the den uma condiyao de existOncia, do reconhe-
lhor redaeao, corn a estipulada na lei de 1964, o Estatuto da Terra. cimento social e juridico; ao nao cum prir essa condicao imposta
Uma terra cujo uso cumpre estas determinaybes estara enqua- pela lei, nao pode o detentor do um titulo invoear a mesma lei para
drada dentro de limites favorecedores da vida humana integrada proteger-se de quem quer fazer daquela terra o cue a lei determina
biodiversidade. Em um sistema que tem a propriedade privada que se faya. 0 proprietario da terra cuja uso nao cumpre a funcao
como sustentaculo, esta qualificagao deve ser considerada avanca- social nao esta protegido pelo Direito, nao pode utilizar-se dos
institutes juridicos de protecao, corn as acOes judiciais possessOrias
e reivindicatOrias para reaver a terra de quern as use, mais ainda se
100 - 0 artigo 184 da Constituicao trata da desapropriavao dos "imavels rurais
que nao estejam cumpriado sua funcao social", numa clara reterancia que a fun-
quern as usa esta fazendo cumprir a funcao social, isto a, esta agin-
do conforme a lei,
ea° f relativa ao barn,

116 1/7
Quando a Constituicao foi escrita, porem, os chamados rura- repetir restringindo, ja que no artigo 184 so a Uniao pode faze-lo,
listas, nome gentil dado aos l ati fundiärios, foram construindo enquanto no artigo 5° a competencia e de qualquer esfera
culdades no texto constitucional para que ele nao pudesse ser apli- Esta interpretacao premia o descumprimento da funeao social, o
cado. Coma nao podiam desaprovar claramente o texto cidadao, que é urn absurdo.
ardilosa e babilmente introduziram senbes, imprec i sees, excecäes Pode se perceber que as interpolacts no texto constitucional
que, contando corn a interpretacao dos Juizes, Tribunals e do pro- foram intencionais. 0 artigo 185 dispbe que o imOvel que seja pro-
prio Poder Executivo, fariam do texto letra morta, transportando a dutivo é insuscetivel de desapropriacao m, isto tern sido interpreta-
csperanca anunciada na Constituiyao para o y am enfrentamento do como: mesmo que nao cumpra a funcao social, a propriedade
diario das classes dominadas, onde a lei sempre é contra. produtiva nao pode ser desapropriada, o que inverte toda a lOgica
Que inUtil seria essa Constituicao quo, beta como urn poema, do sisteina constitucional, porque se juntarmos esta interpretaedo
nao the tern a mesma eficécia porque nao serve sequer para COMO- corn o equivoco anterior, a conclusao a desastrosa: a propriedade
ver coracties? Que mister-jos esconde o texto da esperanca cidada? considerada produtiva nao sofre qualquer sancao ou restrict pelo
A primeira providencia dos latifundiesios, chatnados de ruralistas, fato de nao cumprir a funcao social. E verdade que apesar da habi-
foi introduzir urn virus de ineficacia em cada afirmacao. Assim, I idade dos autores, eslas armadilhas nao teriam exito, e ate seriam
onde a Constituicao diz como se cumpre a funk) social, se the toscas, nao estivesse coerente corn a ideologia dominante, para a
acrescenta que havers de ter uma lei (outra lei, inferior) que esta- qual sempre a mais facil qualquer interpretacao que considere o
beleca "graus e exigencias", coin isso, dizem os Tribunals, ja nao Estado e seus poderes ao mesmo tempo guardities e servos da pro-
se pode aplicar a Constituicao sem uma lei menor que comande a priedade. Esta ideologia tern uma forma estranha de se preocupar
sua execueao. coin a fome ou a ma distribuicao de riqueza, achando que etas nao
E claro que exigir uma lei de aplicabilidade seria pouco, por- sac) frutos da acumulacao cada vez mais concentrada, mas da mal-
que o Congresso Nacional poderia aprovar, como de fato o fez, tal dade dos homens, especialmente dos pobres. Assim, quando a ide-
lei, entao foram criadas outras armadilhas no prOprio texto consti- ologia determina que a Unica rata° juridica possivel é a defesa da
tucional, o artigo 184 disp5e que compete a Uniao desapropriar os propriedade privada absoluta, passa a ser aceitivel a leitura literal
imOveis rurais quo nao cumpram sua funcao social l °I . Isto tern sido do artigo 185 que conclui que uma propriedade rural que produza
interpretado, ate mesmo ingenuamente por setores populares, como riqueza e de lucro, seja insuscetivel de desapropriact e de qual-
o estabelecimento de uma Unica conseqiiéncia ao nao cumprimento quer outra restricâo legal, independentemente de exercer sua fun-
da fund° social: a possibilidade de desapropriacao pelo Poder cao social. Nessa ideologia de realidades torcidas, a acumulacao de
PUblico Federal. Esta interpretacao anula a conseqUencia porque riqueza na mao de poucos gerara possibilidade de distribuicao que
transforma a ausencia do cuinprimento da funcao social em mais s6 nao acontecera pela maldade do coracao dos homens. Tratar-se-
uma razao de desapropriacao, como na velha lei de 1964. Se lem- ia, curt', de melhorar o coracão dos ricos e nao de distribuir, so-
brarmos quo as razoes para desapropriar sao abertas no direito bra-
sileiro, a interpretaeao apenas da uma causa aquilo que nao neces- 102 - 0 artigo 185 da ConstituicEo afirma que serao insuscetiveis de desapropria-
sita causa. A Constituicao ja estabelece que haverd desapropriacao cão para fins de reforma agrdria a pequena propriedade rural e a propriedade
produiva. Todas as regras infra constitucionais entendem este dispositi vo como
por interesse social no artigo 5°, inciso XXIV, nao seria preciso
uma produtividade economica, como rentabilidade, de uma maneira puramente
economicista, desvinculando a produtividade da funcao social que dove ter a
101 - No artigo 184 a Constilu ieao dcixou claro quc quem cumpre a furled° social propriedade, em evidente afronta a determinacao constitucional da fungão da
4 a terra, nao a propriedade, ao usar o termo imevcis rurais. propriedade.

118 119
cialmente, a prOpria terra. Ditos em termos mais rudes, para esta dominantes.1°3 E claim quc estas interpretacOes excluclentes devem
ideologia os termos da Constituiedo cidad5 so tern eficacia en- ser repud iadas sob pena de se atirar no lixo o texto constitucional.
16 quanto possam ser interpretados como protetores da propriedade Mas as interpretaybes sao cquivocadas, tomam urn inciso c mnite o
6 privada absoluta. conjunto do obra. E verdade clue a inclus5o do artigo foi intentional
6 • Para quern aceita as armadilhas do texto constitutional, a re,/ exatamente para propiciar tail interpretacOes, como infirma todo
forma agrdria 6 iinpossivel e realizavel apenas em terras peiblicas1 resto, so impOe urn esforco para the dar coerencia c sobretudo
is devolutas (o que nao 6 reforma agraria, was colonizacão), e nos para encontrar nele o quo Lassalle chamou de foreas reais de po-
latif6ndios improdutivos segundo criterios limit° baixos de produ, der.101
tividade, para n5o ferir a liberdade e o patrimOnio do proprietasio e
ihr
seus credores. No texto das armadilhas sornente serviria para al
6 reforma agraria as Areas improdutivas do ponto de vista econotni-i As espácies de propriedade rural e sun garantia.
6 cista, e ainda assim, so depois de desapropriadas pela Uniao.
Nao e isto que salsa a vista no conjunto do texto constitutional, Focalizemos mais de perto a questa° de rcntabilidade e da pro-
porque esta interpretacao, majoritaria nas classes dominantels, atira dutividade. A terra esta clestinada a dar frutos para todos as gera-
6 as traps a detinicao escrita ern ouro da funcao social do imOvel cries, repetindo a producao de aliinentos e outros bens, pm-mane/1-
6 rural, was n ao s6, torna inaplicavel e inOcuo os propOsitos de erra- temente. 0 seu csgotamento pode dar !nor° imediato, was liquida
dicar a pobreza, construir uma sociedade livre, justa e soliddria e sua produtividade, quer dizer a rentabilidade de urn ano, o lucre> de
garantir o desenvolvimento nacional, considerados objetivos fun- hoje, pode ser o prejuizo do ano se:mime. E prejuizo n5o apenas
L. damentals da Reptiblica Federativa do Brasil no artigo 3°. E ainda fi nance i ro, Inas social, publico, porque se traduz cm desertificacao,
L mais, desestrutura a ordcm econeunica estabelccida que tern por quo quer dizer forte, miser-la desabastecimento c, em conseqiiéncia,
ta. finalidade assegurar a todos existencia digna (art.170). Ao subme- não cumprimento dos objetivos da Republica. E demasiado egois-
ter a funcEo social a produtividade, esta interpretacao desconsidera mo imaginar que a produtividade coma conceito co nstituc ional
toda a doutrina e a evolucao da teoria da funeão social e reduz o queira dizer lucro individual e imediato. Ao contrario, produtivida-
artigo 186 da Constituicao a uma retOrica cinica. de quer dizer capacidade de prociuczio reiterada, o que significa,
Se esta interpretacao fosse verdadeira, que sentido teria o arti- polo menos, a conservacao do solo c a protect-10 da natureza, isto á,
go 186 que define os criterios da func5o social? e quo sentido teri- respeito ao que a Constituictlo chamou de meio ambiente ecolo-
I. am os artigos 5°, incisos XXII e XXIII e Titulo VII, artigo 170, gicamente equilibrado Earantinclo-o para as presentes e futuras ge-
incisos I e II, que indicam uma clara vinculacal o entre a propriedade racOes (artigo 225).
L. privada e a fulled() social? Esta exegese ligeira acaba por compro- A Constituic:lo autoriza claramente esta interpretaciio quando
fir meter todos estes dispositivos constitucionais, como se tivessem no paragrafo (mice) do artigo 185 dispOc: "a lei garantira tratamento
sido escritos apenas para ludibriar o povo. A conclusao e dura de- especial a propriedade produtiva c fixarn as 110/1112S para o c LI/11-
mais para ser verdadeira, porque 6 uma espada impiedosa golpean- primento dos requisitos ielativos a sua functio social". Quer dizer,
do a esperanca de urn povo viver em paz. Se a Constituicao foi propriedade produtiva e aquela que akin de cumprir os requisitos
L escrita para enganar o povo, que caminhos de paz pode Ihe restar? da funcão social: aproveitamento rational, preservacao do mei°
Cento e cinqUenta anos depois, voltariamos a Lassalle quando dizia
que a Constituicao 6 uma folha de papel sujeita ao use das classes 103 - Ferdinand Less:111e, Out two constilociOn
L. 104 - Hem. ibideni.


120 121
Q.
ft
ambiente, obediencia as obrigagOes trabalhistas e uma exploracao quatro requisitos do artigo 186; 2) os que nao cumprem a funcao
4
que favorcya o bent cstar de todos os envolvidos, alcanca niveis de social, por nao atender urn ou mais requisitos, ainda que usados por
produtividade exemplar. Quando a Constituigtio estabelece que a seus proprieterios; 3) os que, aletn de cumprir sua funcao social,
lei havers de garantir tratamento especial a esta propriedade, este sao exemplartnente produtivos, que merecem por isso um incentivo tt
falando em premio, em incentivo, nao em punicao. pUblico.
Neste sentido, a interpretacao do capitulo relativo a politica As primeiras estao protegidas pelo sistema juridico coin todos
1,
agricola e fundieria a da reforma agraria, especialmente dos artigos os recursos, que sac) muitos, para garantia da propriedade privada ii
185 e 186, combinados coin o caster emancipatOrio e pluralista de enquanto dominio c posse de urn titular legitimo. Por estarem ade-
toda a Constituicao nos lcva a certeza de que e protegida pela
Constituicao a propriedade que faz a terra cumprir sua funcao soci-
quadas a lei, nao sao passiveis de desapropriaeao para fins de re- tit
forma agraria que e a adequacão do uso das terras aos interesses
al, porque a ocupacrto que nao a cumpre, por mais rentevel que sociais e legais. A ocupacao da terra que cutnpre os quatro requi- cv
seja, incorre cm ilegalidade. sitos da fun*, social nao precisa ser reformada. Estas terras, por ti
Portanto o sistema juridico reconhece diferentes situacetes em
que pode se encontrar a terra. lie, em primeiro lugar, terras afasta-
serem propriedades particulares sat) passiveis de desapropriaeao t1
para finalidades pitblicas, as chamadas utilidade ou necessidade
das do comórcio ou do mercado, que nä° sae passiveis de negocia- ptiblicas e interesse social, que nao a reforma agraria, devendo a
cao neat de apropriagao individual, sao as terras pUblicas, as indi- pagamento da indenizacao ser pr6.tio, justo e em dinheiro, segundo O
genas, as das comunidades quilombolas, as afetadas a urn uso cole-
tivo, como as reservas extrativistas e florestas nacionais, assim
as constituiebes brasileiras desde 1924.107 O
Embora parega absurdo, o poder politico, na defesa da proprie-
como as detnais unidades de conservacao publicas. Estas cumprem dade rural, criou tantos e tao complicados tramites e exigencias
(3
seu destino, sua afetagao e sao usadas segundo regras prOprias. A legais para a desapropriacao por interesse social para fins de re- a
funcao qua cumprem sat) exatamente seu destino e afetacao, cum- forma agraria que, hoje no Brasil, a mais Cecil desapropriar para
pridas as leis de protecao ao patrimenio ambiental e cultural. De qualquer outro Inn do que para corrigir as injusticas no cam po, o
outro lado estao as terras chamadas de privadas cujo destino ou que é no minimo absurdo, ja que a pritneira é considerada uma
afetacao estao ligados a urn patrimetnio individual, podem ser co- excegao ao sistema proprietario, enquanto que a segunda e urn ob- CI
mercializadas, trocadas, vendidas, hipotecadas. Estas terras, salvo jetivo da RepUblica. Isto tern impedido o governo de realizar a re- U
as Reservas Particulares do Patrinuinio Natural l °', sac, destinadas e forma agraria, litnitando-se a propostas de colonizaeao, de expan-
producao agricola ou moradia urbana, devendo cumprir, num e sac) da fronteira agricola e de repartino de terras devolutas, aldm
noutro caso, a funcao social estabelecida na Constitui
950106.
de incentivos fiscais e de financiamento. Politicas que estao muito 0
A Constituicao Brasileira considera trés situacOes em relacao longe de gerar redistribuiedo de renda e incentivo a manutencäo
aos imOveis rurais privados quanto ao cumprimento da funcao so- dos camponeses em suas terras. 0 Estado brasileiro nao desenvol- U
cial: os que tem uso adequado a funcao social, cumprindo os veu incentivos a propriedade produtiva, no sentido que esta sendo
exposto aqui.

105 - Reservas Particulares do Patrimenio Natural — RPPN — sao Unidades de


Cooservacdo criadas pelo Poder PUblico sob solicitaedo do proprietario, de card- 107 A diferenca entre a desaproprittedo e sua especie para fins de reforma agrâ-
ter percne. Lei 9.985, de 18 de junho de 2000, artigo 14 e seguintes. ria, alëm da finalidadc, 6 que esta Oltima pode ser paga com titulos da
106 - A furled° social do intentl urbano esta tratado no artigo 182 e scus par g gra- agraria c a compeldncia para sua declaragtto 4 exc/usiva da Unifto Federal, veda-
fos, da Constituted° de 1988 dos aos Estados e Mun icipios.

122 123
De qualquer forma, as terras desta primeira especie est5o ga-
L rantidas pelo sistema juridico e tem como Unica exceeào a livre
tamento inadequado, nao preserva o meio ambiente, viola as rela-
ceies trabalhistas ou nao gera bcm estar, nao pode reivindicar prow-
disposieão do proprietario a desapropriacêo com pagamento previo
c5o do sistema que atribuiu a obrigacao descumprida. A propricc1a-
e em dinheiro. Note-se que a exigencia legal e pequena: basta cum-
de que nao cumpre sua funcAo social 6 uma especie de coisa de
prir as normas ambientais e trabalhistas, produzir adequadarnente e
ninguem, desapropriavel, mas tam bem ocu pavel, por quern puder
gerar harmonia entre os trabalhadores, isto e, nao se exige nein o
faze-la fail a sociedade. NA° pode ser outro o entendimento de ulna
eumprimento de politicas agricolas, especie de producAo, neat sus- Constituicao social como a de 1988.
tentabilidade da area plantada. Uma terra privada que nao esta ern uso, certamente nao esta
A segunda especie, a propriedade rural que nao cumpre sua
eumprindo sua funcAo social, porque toda terra privada e destinacla
fungao social, pode e deve ser desapropriada para fins de reforma ao uso. 0 fato de estar ens u so, por6m, nao significe que este cum-
agrdria, com o pagamento cm titulos da divida pUblica, 0 Poder prindo sua func5o. 0 uso da terra pode ser intenso, gerando grande
PUblico Federal deve promover uma polRica de reforma agraria que
renda a seu proprietario, as vezes pode ser ate muito rentavel ao
[culla o sentido de cumprir os fun damentos da Repfiblica, elimi-
mesmo tempo em que n50 cumpre a funcAo social. Alias, algumas
nando as difereneas regionais c sociais, a defesa do meio ambiente,
vezes o uso intenso e altamente rentavel 6 sinal de descumprimento
o born relacionamento do trabalho, a busca do pleno emprego, con- da funcao social. E isto e claro, porque embora destinada ao uso, a
forme determine a Constituicao, por meio da desapropriaeao das terra cumpre uma func5o de master a vida e isto significa cuidado
propriedades que nao cumpram sua funcao social.ws cam o meio ambiente e Colt as pessoas que nela traballiam e vi-
Promover a politica de reforma agraria por meio de desapro- vem, com os rios, florestas e animais.
priacdo e, assim uma opc5o do Governo Federal. Entretanto a desa-
Acabou-se de dizer que a terra dove scr usada, mas n50 se deve
propriacao nao pode ser entendida como uma penalidade, mas
csquecer que o uso nao pode set- no sentido de esgotar a possibili-
(. co/no uma normalidadc do sistema. 0 proprietario que nao usa ou
dade de renovar a vida, de transforma-la a ponto de esteriliza-la,
usa mal a sua propriedade, pela desapropriagao, recebe o seu valor
isto C, o uso esta condicionado a manutencAo da biodiversidade.
integral, podendo aplied-lo no mercado ou em outra terra, talvez de Por isso, ate pouco tempo atras, uma g lo be inculta, entregue a vida
C melhor qualidade e mais rentavel. lsto n5o pode scr considerado
selvagcm, poderia ser considerada de uso nocivo, hoje nao, porque
t punicAo. A desapropriacilo e, assim, um premio autorizado pela
a prow* do meio ambiente passou a ser principio juridico para a
Constituiclo. Por outro lado, o proprietario quo nao cumpre a fun- conservacAo do Planeta e esta consa g rado na Constituieao de 1988.
I. cAo social de sua terra nao pode gozar da proteck j uridica ofereci- Entretanto, as terras afetadas a scr propriedade privada tem a fina-
da as propriedades que a eumprem. Se a propricdade rural protegi-
lidade do uso produtivo c sua funcao social exige aproveitamento
t da polo Direito e somente aquela cujo exercicio cumpre a obriga-
g5o social que the 6 implicita, a que descumpre nao pode exigir
adequado e racional (artigo 186, I). Quanclo o Poder Publico, por
meio de lei considera que uma sorte de terra deve permanecer in-
protecao do Estado. A terra que nao esta aproveitada, tern aprovei- culla, sen, uso, on corn uso adequado para a manutenc5o da
versidade, cria o que chama de espacos ambientais protegidos ou
t unidades de conservacdo, e o tern feito coin bastante regularidade;
i08 - dodos os outros &pas publmos, cstaduais e municipais, tem obrigacao de
buscar esses objetivos, mas nao podem desapropriar para fins de miasma agraria, estes espacos, mesmo privados, tem uso restrito.Isto quer dizer que
competencia CNC iU5i n a da Uniao. Isso TIM> pode impcdir, porn. quo pratiquem uma gleba inculta e aceitavel e ate desejavel para o sistema juridi-
politicas do adequacao da propriedade rural aos dispositives legais, sem desapro- co. 0 que o sistema considera anti-social e ilegal e a manuteneão
C pria0o. de uma gleba privada inculta para servir do reserva de valor ou

124 125

a
flit
terra de especulaeao. Por into, é coerente com o sistema a possibili-
dade de ocupacão destas terras, seja pela nao proteeâo do direito all
de" con acties contrarias a protecdo da natureza, como, por exem- 113
existente, seja pela desapropriacao para fins de reforma agraria.
plo, a destruicdo das matas ciliares ou a poluicao, polo excesso de tit
agrotOxicos, das Aguas ou polo mau uso de curvas de niveis, cau-
A propriedade que nao esta fazendo a terra cumprir a funcão sando erosào. Esti claro que, embora rentaveis e em uso estas ter- ft
social, violando urn dos quatro dispositivos do artigo 186, como as ras nä° cumprein a funcâo social e tem que sofrer uma restricdo
leis trabalhistas ou a protecão do meio ambiente, é duplamente legal.
antissocial, porque alem de se omitir de uma obrigagAo: o aprovei- Os exemplos imaginados, mas existentes na realidade, nao po-
tainciito da terra destinada a agriculture, viola dispositivos legais: dem entrar na categoria de produtivos, corn a protegão que !he da a
leis trabalhistas e leis ambientais. Esta dupla violacAo demonstra Constituigao no artigo 185. Nos dois exemplos, embora rentaveis, o
que ulna interpretacäo que nao de conseqiiencia ao descumpri-
memo da func5o social esta equivocada, porque se nao houvesse
direito de propriedade foi exercido contra o interesse social e rt
conseqiiencia n -ao haveria razao para se falar em funcao social, ja
blico, e contra a lei, nao podendo ser protegido. Ao contrario, para lb
que o simples fato de violar leis trabalhistas e ambientais gera ao
este direito nao existe protecdo juridica, ele esta em situacao antiju-
ridica e pode ser desapropriado porque nao cumpre a funeào social, tt
violador sancOes administrativas, civis e penais. nao pertence a categoria de propriedade produtiva para o efeito do Ct
Para o sistema constitutional brasileiro, que protege a biodi-
versidade e o meio ambiente, o nao uso da terra é a menor das vio-
artigo 185.
Confinnando esta interpretacao, esta o caso especial da proprie-
Cs
laeOes do descumprimento da fungão social: quando urn proprieta- dade rural usada para cultura de psicotrOpicos, que, segundo o arti- (4
rio deseja miner sua terra inculta para proteger o ambiente, pode go 243 da Constituicão, deve ser expropriada sem qualquer indeni-
faze-lo, desde que proponha a °SW de uma Reserva Particular do zacão ao proprietario e utilizadas ao assentamento de colonos,
PatrimOnio Natural, o que esta impedido de fazer é mante-la inculta portanto nä° necessariamente para a reforma agrAria. A Constitui-
simplesmente para aguardar o aumento de seu valor, o que é expe- cdo equipara, no paragrafo &deo do artigo, todos os bens mOveis
culacAo. Quer dizer, uma terra nao usada pode se transfortnar em de valor econOmico apreendidos em virtude do trafico de entorpe- (4
espago Mil a sociedade, desde que seja garantido o seu nao uso centes a gleba com cultura de psicotrOpicos. Estes bens lido st5 ca-
permanente. la unia terra mal usada causa conseqUencias desastro- recem de protecão juridica, como o Estado tem obrigacão de retirar
sas para a sociedade porque viola o principio da preservaeäo ambi- das moos de seus proprieterios, mesmo que a producäo seja em
(.1
ental, o direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equili-
brado c outros principios e objetivos do Estado, como a dignidade
da pessoa humana, os valores sociais do trabalho, a reducão das
regime de contrato agrario. Esta exploracAo, que pode ser muito
rentavel, por violar a lei diretamente sofre uma sancAo, mesmo que
cumpra todas as outras exigencias da funclo social, lido tern as
li
desigualdades regionals e sociais, a busca do pleno emprego, e garantias da propriedade, mas dem disso, ha uma pena para o cul-
outros valores que os interesses econâmicos querem fazer esquecer. tivo ilegal, cogente ao poder pithlico a sua expropria0o.
Imaginemos uma terra intensamente usada e altamente rent& Portanto, podemos dizer que a Constituieão brasileira de 1988
vel, mas que para alcancar os indices de "produtividade" conta corn garantiu a propriedade privada rural, desde que cumpra a funelo
trabalho escravo. Por certo esta situacão nä° pode ser admitida ou social, quando Mao cumpre, mesmo que utilizada rentavelmente
tolerada polo Dircito, e nao o é. Independentemente das conse- pelo proprietario, nä-0 esta protegida pelo Direito. Isto quer dizer
qUencias de ordem penal que possa advir para o proprietario, have- que o Poder Palle° Federal tem o direito de desapropriar para fins
I'd de ter consecitiências civis para o direito de propriedade. Imagi- de reforma agraria as terras que nao cumprem a funcào social,
nemos uma outra que alcanca os inesmos indices de "produtivida- mesmo quando rentaveis e dove expropriar sem indenizaeao quan-
ka
126 127
do usadas para cultura de psieotrOpicos. No caso dos psicotrOpicos aqui, 6 que o Poder Püblico promova a adequacão da conduta do
hit uma obrigactio do Poder POblico em expropria-la, porque Sc cidadao para que ele faca realizar a funcao social de sua terra sob
trata de uma cfetiva sancéo; no caso do nao cumprimento da funcao as penas ambientais e trabalhistas e de relaybes humanas. Portanto,
social, apenas se abre a possibilidade do Poder Pithlieo desapro- facil entender o porque da proibicao do artigo 185 em relacao as
pria-la, o que significa que nao e uma sangéo. No primeiro caso pequenas e médias propriedades. Ja a inch/sat) da propriedade pro-
obrigacilo do Poder POblico punir o criminoso quo usa a terra para dutiva e mais complexa e tern dado margem a interpretayees equi-
producäo de psicotrOpicos proibidos, no segundo, ha tuna hipOtese vocas. Tres razaes sao possiveis de balizar tuna interpretacAo: a
do proprietitrio corrigir o seu desvio e fazer cons quo a terra cumpra primeira, literal, 6 de que Coda propriedade que atinja limitcs mini-
a funcao social, elidindo a situactio antijuridica. mos de produciio de riquezas e insuscetivel de desapropriacao,
A segunda especie, come se ve, nao tem garantia juridica, isto mesmo quo nao cumpra a funcao social; segunda, que a proprieda-
6, o detentor de titulo de propriedade tern a faculdade de usar, go- de produtiva que Mao cumpre a funeão social sequer pode ser desa-
zar e dispor da coisa, mas se nao o faz, de tat forma quo a coisa propriada, deve seguir a linha das produtoras de psicotrOpicos e ser
cumpra a functio social constitucionalmente, nao tern o direito de expropriadas sem pagamento de indenizaceo; e, terceira, que no
reavé-la quer a possua ou detenha e que esteja dando o cumpri- conceit° de produtividade esta embutido o conceito de funcao social,
mento da functio social. Isto porque o sisterna constitutional exige isto C. s6 pode ser produtiva uma gleba que cumpra todos os requi-
esse cumprimento e o direito de reaver somente se apresenta contra sitos da funcao social e, portanto, merece um prémio, isto 6, pro-
quern injustamente detenha a coisa. Aquele que cstiver dando cum- dutividade para a Constituicao e sempre sustentavel e nao se con-
primento a funcao social da terra, nab a detem injustaincnto, ao funde coin rentabilidade ou lucratividade.
contrario, esti/ cumprindo a justica da Esta Ultiina interpretac2o contem duas razOes muito fortes:
Passemos, ent2o, a terceira especie, aquelas que alem de cum- confirma todo o sistema constitutional que protege o meio ambi-
prir a funcâo social sdo consideradas produtivas. A Constituicao ence ecologica/nente equilibrado para as presentes e futuras gera-
preceitua que a propriedade produtiva nao 6 passive! de desapropri- cOes e esti sugerida no paragrafo Unico do prOprio artigo 185, que
acdo para fins de reforma agraria, assim eomo a pequena e media determina a emanaedo de uma lei estabelecendo "tratamento espe-
propriedade explorada polo proprietario que nao possua outra. A cial a propriedade produtiva, onde estartio fixadas as normas para o
pequena e a media propriedades exploradas por seu proprietario cumprimento dos requisitos relativos A sua funcéo social" r K1. Tra-
nao servem para a reforma agraria por que ja term 1.1111 sentido social. 0 tamento especial ha de ser incentivo e protecao e, inclusive, o esta-
descumprimento da funeao social por etas deve ser combatido pe- belecimento de normas, partindo do parametro da produtividade
los meios prOprios, inclusive pela desapropriaceo por outra motiva-
cão. Por duas razOes a desapropriac2o para fins de reforma agraria
nao tern razao do ser: primeiro porque nao ha interesse social na 110 - A Lei foi cmanada cm 1992. Lei n° 8.629, de 25 de fevereiro. Infclizmentc nth)
foi suficientementc clara, provavelmente par imposictio dos latifundiarios, e restringe
reforma de pequena e media propriedade, e, segundo, porque o
a propriedade produtiva, conceituando-a como aqucla que e explorada econamica c
pagamento da desapropriactio coin titulos da divida agraria geraria racionalmente atingindo gnus de utilizacão da terra e de eficiéncia na exploracdo
um problema social porque o proprietario nao teria como sobrevi- scgundo indices fixados polo Poder Mane°, nao se referindo ao cumprimento da
ver, ja que nao possui outro lugar para moral. . A determinacao, funcâo social nem mesmo a sustentabilidade. Ndo afirrna nem nega quo produtivas
somente podem scr consideradas as ierras que cumpram a funcAo social, corn isso
permite que inlerprctacOes conservadoras continuem a desconsidcrar a funcao na
109 - Artieo 1.228 to Novo Cadieo Civil Brasilciro, correspondents an 5:4 do
produ livid ado e a susleniabilidadc, permilindo (The o reder PUbfico, ao estabelecer os
amigo. indices, (I'd valor somente a rentabilidadc c /ucrolividade minima da terra.

128 129
6
sustentavel, para o cumprimento dos requisitos da funcao social. Ovals. Para fazer valer estas falacias ja nao aceitas pelo povo, o
Assim, pela definicao constitucional, produtivas sao as terras que sistema latifundiario usa toda a inteligência dos interpretes, a astU-
alem de cumprir a furled° social, criam riquezas nao somente para cia dos politicos e a brutalidade da policia pUblica e dos exercitos
o presente, mas que possam continuar sendo produzidas no futuro. privados, reprimindo o grito de esperanca que teimosamente surge
Caso a Constituieao desejasse excepcionar as [arras rentaveis de no horizonte. E a eterna luta do velho contra o novo que sempre et
programas de reforma agraria mesmo quando nao cumprissem sua
funcao social, o diria corn todas as letras, deixando claro tratar-se
de ulna execcão. A interpretacao de quc qualquer produtividade,
acaba por se impor e que por isso mesmo alimenta a esperanea de
um mundo possivel, para todos, e justo. I
indepcndentemente do cumprimento da funcao social, torna uma
terra insuscetivel de desapropriacäo para fins de reforma agraria et
faz da excecao regra. A regra entao seria: as terras nao produtivas et
podem ser desapropriadas para fins de reforma agraria. Todos os
outros requisitos e a prepria iddia de funcao social seria inUtil, es-
critas apenas para embelczar a folha de papal chamada Constitui-
(1
elio. (4)
Esta é a pior interpretacäo possivel, porque é contra os interes-
ses da sociedade, vilipendia a ConstituicAo e mantem incelume a
estrutura do latifOndio, seguindo a tradicao das sesmarias e do se-
culo XIX no Brasil. Na realidade e escolha de dispositivos consti-
tucionais isolados, omitindo a relacao e o sentido geral do capitulo
e do todo constitucional. E uma escolha ideolOgica porque exclui O
de aplicacao todos os dispositivos que enfraquecem a propriedade
privada absoluta. Apesar disso, o Poder Pablico Federal, o Poder (3
Judiciario e a Doutrina conservadora tém mantido este entendi-
memo que gera intencionalmente trés confusaes falaciosas: I)
qualquer lucratividade que de a terra e produtividade, afirmando
que desde que cumpra os indices oficiais nao importa o cumpri-
mento das outras condicães da funcao social; 2) toda terra que te- (3
nha urn titulo de propriedade é protegida pelo direito, mesmo a que (3
nao cumpra, por °missal° ou acao, a fun* social, de tal sorte que
0
toda ocupacao de terra por nao proprietdrio e criminalizada como
esbulho a coisa protegida; 3) a terceira faldcia é urn sistemdtico, O
cruel e desumano esquecimento voluntario de todos os principios, O
objetivos e direitos fundamentais estabelecidos na Constituicao, O
tentando fazer convencer ao povo de que a propriedade privada d o
o mais importante, sagrado e divino direito, e que todos os a
outros sao apenas sonhos, esperancas, quimeras e desejos inalcan- a
(3
130 131
t3
3
C
C CONCLUSAO
C
C
C
A transformaceo da terra em propriedade privada absoluta c
C
individual foi um fenOmeno da civilizacao europ6ia, histOrico, re:
I cente e datado, espalhado pelo colonialism° ao resto do mundo. E
uma construello teOrica excludente que foi levada a pratica como
C principio de dominacão de uns sobrc outros, sobrevivendo a ener-
gia e vontade de maiorias, inclusive a revolucibes e guerras. Cor-
C responde ao mercantilism° e ao capitalismo e sua expanse°.
C
A imposiceo da propriedade privada frustrou anseios de li-
berdade tanto dos trabalhadores como dos povos da America Lati-
na, por isso sempre ficou como uma trava amarga na garganta dos
C povos. No s6culo XX, quando as revolucOes libertarias passaram a
ser possiveis, houve, como contraposiceo, a tentativa de humanizar
a propriedade privada, seu use e o sistema econOmico que a sus-
C tenta. Foi introduzido em seu conceito a produtividade sob a alega-
C cao social de que a propriedade da terra 6 responsavel por erradicar
C a fome.

3. A produtividade da terra, nos sistemas juridicos que prote-


gem o meio ambience e buscam o desenvolvimento sustentavel,
somente pode ser entendida como urn processo permanente, into 6,
não pode ser considerada produtiva a terra que esgota os recursos
naturais a ela associados e inviabiliza ou dificulta seu use pelas
C geracaes futuras.
C
C 133
C

(1/2

A terra, nos sistemas juridicos do hem estar social deve


cumprir uma funcao social que garanta os direitos dos trabalhado-
res, do meio ambiente e da fraternidade. A obrigaeao de faze-la
f
cumprir é do titular do direito de propriedade, que perde os direitos
de protecao juridica de seu titulo caso nao cumpra, isto é, ao nao
cumprir nao pode invocar os Poderes do Estado para proteger seu
fib
dircito. Dito de outra forma, nao ha direito de propriedade para
quern nao faz a terra cumprir sua funcao social. f

Por outro lado, aquele que faz a terra destinada ao uso pri- BIBLIOGRAFIA
vado cumprir sua funcao social tem direito a ela e a seus frutos,
ainda que proprietario nao seja, sem que o eventual titular do di-
reito possa invoca-lo contra o uso dado. 1b
Ao contrario de cometer ato ilicito, aquele que ocupa uma ALIBRANDI, Tomaso & FERRI, Piergiorgio. I beni culturale e
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