UTOPIA E DIREITO
ERNST BLOCH E A ONTOLOGIA JURí DICA DA UTOPIA
-
ISBN: 85 7674-298-5
.
1 Teoria geral do Direito. 2. Utopia e Direito
I. Título
í erlatin.art.br
Contato: editora@quart
www.editoraquartierlatin.com.br
SUMáRIO
Nota
9
Introdu ção 11
Utopia concreta, justi ça e dignidade 12
Sobre a obra 16
—
Capítulo 8 A ontologia jurídica da utopia
A utopia das três cores revolucioná rias
155
155
O direito em Marx 159
Crítica da teoria geral do direito: direito subjetivo e objetivo 164
Crítica da teoria geral do direito: direito e moral 168
Crítica da teoria geral do direito: direito penal 170
Crítica da teoria geral do direito: direito e Estado 171
—
Capítulo 9 Energias políticas da utopia
A n ão-contemporaneidade
177
178
A escatologia da liberta çã o 186
Conclusão 193
Bloch entre os marxistas 193
Bloch entre os juristas 195
Bloch entre os de hoje 196
Bibliografia 199
INTRODUçãO
Ao tempo em que trevas se anunciavam na Europa, as armas dos
liberais e dos socialistas foram ambas soterradas em favor de mistifica¬
dos argumentos de raça e da força de exércitos imperialistas. Tempos
de obscuridade e de guerra, como, de outro modo, parecem ser os
atuais novamente. Naquela altura, boa parte da política, da filosofia e
das religiões se lançou ou ao silêncio ou ao pacto de legitimação dos
poderes existentes. Ao pensamento cr ítico, restou a retaguarda.
No direito, o resultado de tal política de trevas foi a destruição de
qualquer respeito institucional aos direitos humanos, à dignidade existen ¬
versa da presente.
A histó ria dessas idealizações é bastante conhecida e, no geral,
tomada como literatura ficcional do amanhã melhor. Uma segunda
grande etapa de florescimento de utopias se deu com o movimento
socialista do século XIX, buscando criar fá bricas, cidades e hábitos
sociais diversos, carregados de uma inspiração de solidariedade e
fraternidade. Saint-Simon , Fourier, Owen e outros dedicaram-se à
transformação de grupos sociais, sendo denominados posteriormente,
por Marx e Engels, como socialistas ut ó picos. Neste momento, a uto ¬
rar a utopia até mesmo a pior das projeções humanas, como o atesta,
por exemplo, um Aldous Huxley. A filosofia, de modo geral, abando ¬
1 No Brasil, as noticias filosóficas sobre Ernst Bloch vêm da década de 1960 ao mesmo
- tempo
da introdu çã o dos pensamentos de Luk ács e da Escola de Frankfurt - por meio dos pioneiros
estudos sistemáticos do francês Pierre Furter. Nas décadas seguintes, destacam-se os estudos
de Lu ía Bicca, do Rio de Janeiro, tratando da ontologia e da pol ítica de Bloch, e, no sul, de
UTOPIA E DIREITO
SOBRE A OBRA
O ambiente intelectual de Ernst Bloch é claramente o do marxis ¬
mo, mas sua filosofía - que é bastante aberta e com uma envergadura
de an á lise ímpar - dialoga constantemente com uma tradi ção filosófi¬
ca, que vai desde o aristotelismo ao iluminismo, e com toda urna vasta
corrente do pensamento contempor âneo, que vai da Escola de Frank ¬
furt até a psican álise. A presente obra, por conta disso, pode ser dividi¬
curso um trajeto de luta com o tempo e a história que seria causa dos
mais candentes desesperos e de grandes, ilusorios e concretos sonhos e
utopias. A luta pelo tempo entrava em causa para a humanidade. Que
um dia possa concretizar o que demoraria mil anos, ou que haja um
milenio de novos dias.
De fato, a historia e o tempo revelam-se como urna especie de
luta aparentemente escondida dos impulsos humanos, pois determi ¬
3 " Neste aspecto, o cristianismo incontestavelmente prova ser a religi ão do ' homem ca ído': e
isso até o ponto em que o homem moderno se vê irremediavelmente identificado com a
histó ria e o progresso, e para o qual a histó ria e o progresso representam uma queda, ambos
implicando o abandono final do para íso dos arqu étipos e da repetição". ELIAOE, Mircea. Mito
do Eterno Retorno. S ão Paulo, Mercuryo, 1992, p. 137.
UTOPIA E DIREITO
LôWITH , Kart O sentido da história . Lisboa, Edi ções 70, 1991, p . 164.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
pétuo hoje, porque este Vosso hoje não se afasta do amanhã, nem
sucede ao ontem. O vosso hoje é a eternidade. 5
6 VOLTAIRE. Tratado sobre a Tolerância . São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 115.
AurssoN LEANDRO MASCARO
7 .
FCRRAZ JR , Tercio Sampaio. Função Social da Dogmática lurídica. Sao Paulo, Max Limonad,
1998, p . 193 .
UTOPIA E DIREITO
8 "A partir do sé culo XVII em diante, o linearismo e a concepçã o progressista da histó ria afirmam -
se cada vez mais, colocando a fé numa linha de progresso infinito, uma fé que já havia sido
proclamada por Leibniz, predominante no século do 'iluminismo', e popularizada no século
XIX pelo triunfo das ideias dos evolucionistas. Temos de esperar até o nosso próprio século para
vero começo de determinadas rea ções contra esse linearismo histórico, e um certo reavivamento
do interesse na teoria dos ciclos; é assim que, na economia pol í tica , estamos sendo testemunhas
da reabilitaçã o da id éia de ciclo, flutuaçã o, oscilação peri ódica; que, na filosofia , o mito do
eterno retorno é reavivado por Nietzsche; ou que, na filosofia da histó ria, um Spengler ou um
Toynbee manifestam preocupaçã o com o problema da periodicidade". EUADE, op. cit., p. 126.
9 SPENGLER, Oswald. O homem e a técnica . Lisboa , Guimar ães Editores, 1993, p. 119.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
10 .
TOURAINE, Ala í n. Crítica da Modernidade Petrópolis, Vozes, 2002, p. 71.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
ção total dos seus próprios ideais. O marxismo , na cr ítica às classes que
empunharam esses ideais e na crítica aos seus métodos, parece ainda
respeitar um corpo m í nimo comum de aspirações e objetivos - a liber¬
dade e a igualdade exprimem , ao mesmo tempo, os sonhos anti-absolu ¬
11 " Uma pretensa 'superação' do marxismo limitar-se-á, na pior das hipóteses, a um retorno ao pré-
marxismo e, na melhor, à redescoberta de um pensamento já contido na filosofia que se acreditou
superar". SARTRE, Jean-Paul. Cr
ítica da razão dialética. Rio de Janeiro, DP&A, 2002, p. 21.
UTOPIA E DIREITO
ção é esperançosa.
A TRANSFORMAÇÃO É MORAL
O processo de dessacralização do mundo moderno representa a
utopia do céu na terra. Esta utopia, da emancipação do homem em
relação aos seus preconceitos e superstições, tem um caráter nitidamen ¬
te moral e religioso embalando movimentos pol íticos, econ ó micos e so ¬
12 TOURAINE, op. .
C/í , p . 19 .
UTOPIA E DIREITO
mo, trata-se da razão cr ítica, que reconhece seus pr ó prios limites mas
que, ainda assim , só conhece uma dialé tica que seja um esclarecimen ¬
A TRANSFORMAÇÃO É MORAL
glês, que passa por Locke, teve na filosofia moral um de seus mais
importantes momentos. Kant, na Alemanha, devia grande parte de
sua visão moral aos ingleses.
Na Fran ça, a nova moral iluminista revelou-se grandemente
contestadora, de tal modo que nem o século XIX logrou conseguir
repetir a radicalidade que anteriormente foi apregoada. Os radicais
que tratam da teologia no século XIX, a partir de Feuerbach, têm pela
religiã o uma postura filosófica mais compreensiva que refutadora. O
Iluminismo, no entanto, n ão se preocupa em enterrar o passado em
sua sepultura, mas sim em matá-lo.
15 SOION, Ari Marcelo. "A Pol ê mica acerca da origem dos Direitos Fundamentais: do Contrato
Social à Declaração americana ". In Revista da Pós-Graduaçâo da Faculdade de Direito da USP,
vol . 4. Porto Alegre, S íntese, 2002 , p . 135.
16 MARKAMAO, Giacomo. Céu e Terra. Genealogia da Secularização. Sã o Paulo, Ed . Unesp,
1997, p . 23.
UTOPíA E DIREITO
17 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduçã o ao Estudo do Direito. Técnica, Decisão, Dominação.
S ão Paulo, Atlas, 2003, p. 71 .
18 OST, Fran çois. O tempo do direito . Bauru , Edusc, 2005, p. 193: " Ê bem em direção a um para íso
terrestre que colocamos o pé na estrada , e a promessa da felicidade - uma id é ia nova ela também
- está no fim do caminho. Um caminho aclarado pelas luzes da razão e aberto pela energia
formidável de id é ias-forças como liberdade, igualdade e, talvez mesmo, fraternidade. Sem
d ú vida , ainda estamos longe do cômputo final, mas a humanidade é perfectível logo, a -
pedagogia estará inscrita no centro do projeto prometêico. Desde o in ício, uma certeza: a sorte
das gerações futuras será mais invejável do que a das gerações presentes".
AI.YSSON LEANDRO MASCARO
19 "O ímpeto utó pico que anima a teoria de Marx constitui, para o melhor e para o pior, uma
dimensão necessá ria de seu desenvolvimento". MALER, Henri. Congédier L' Utopie ? L' utopie
selon Karl Marx. Paris, L' Harmattan , 1994 , p. 12 .
UTOPíA E DíREITO
20 MARX. "Teses Sobre Feuerbach". In LABICA, Georges. As 'Teses sobre Feuerbach' de Karl Marx.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990, p. 34.
21 Ibid., p. 35.
AIYSSON LEANDRO MASCARO
gem do tema da utopia. Isto porque Ernst Bloch , que é quem, dentre
os marxistas, mais se dedica ao aprofundamento do tema, n ão pode
22 LOWY, Michael . A teoria da revolução no ¡ovem Marx. Petró polis, Vozes, 2002, p. 38.
23 NAV éS, M á rcio Bilharinho. Marx . Ciência e Revoluçã o. S ã o Paulo, Moderna / Unicamp ,
2000 , p . 79 .
ALYSSON LEANDRO MASCARO
24 "Gramsci definiu , numa f ó rmula muito feliz, o marxismo como um historicismo absoluto e um
humanismo absoluto. A feitura de O Capital - com a condiçã o, bem entendido, de se ler o que
está escrito nele, e n ão um suposto 'discurso silencioso', ' reconstitu ído', 'apesar da letra de
Marx' - confirma inteiramente essa defini çã o. [...) Parece- nos que os principais momentos do
humanismo em O Capital são: a ) o desvendamento das relações entre os homens atrá s das
categorias reificadas da economia capitalista; b) a cr ítica da 'desumanidade' do capitalismo;
c ) o socialismo como possibilidade objetiva de uma sociedade onde a produ çã o é racional ¬
mente controlada pelos homens". L õwv, Michael . M étodo dialético e teoria política . Rio de
Janeiro, Paz e Terra , 1978, pp. 62 e 63.
UTOPIA E DIREITO
tir de si mesmo. Pelo contr á rio , tal visã o estrutural acentua a luta de
classes como elemento emancipador e revolucion á rio, que suprima
o Estado e suas instituições . 25
goavam uma fun ção jur ídica revolucion á ria, ao mesmo tempo em que
defendiam a existência de um Estado socialista e, portanto, davam
margem à ditadura de Stalin .
Logo se percebe, desta divisão, que o tema da utopia no marxis ¬
25 ! "Isso significa que a ideologia prolet á ria n ão é o diretamente oposto, a inversão, o reverso da
’ ideologia burguesa, mas é uma ideologia totalmente diferente , que leva em si outros valores ,
que é crítica e revolucioná ria . Porque é , j á agora , apesar de todas as vicissitudes de sua hist ó ria ,
portadora desses valores, j á agora realizados nas organizações e nas pr á ticas de luta operá ria,
pelo que a ideologia proletá ria antecipa o que ser ão os aparelhos ideol ógicos do Estado da
transi ção socialista , adianta , pela mesma raz ão, a supressão do Estado e a supressão dos
aparelhos ideol ógicos de Estado no comunismo". AITHUSSER , Louis. Aparelhos ideológicos de
Estado. Rio de Janeiro, Graal, 1985, p. 128.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
26 Sobre as divergê ncias em rela ção à teoria da revolu ção no itinerá rio do pensamento de Marx,
UTOPIA E DIREITO
dida em que, por meio das categorias jur ídicas, do sujeito de direito e
do contrato, por exemplo, d á-se a própria estrutura ção do sistema.
Assim, as forças produtivas e a superestrutura, como o direito, hão de
se revelar necessá rias e dialéticas em face das relações de produ ção,
implicando-se mutuamente. A proposta de Pachukanis, de considerar
o fim do capitalismo o fim do direito, explica-se por essa vertente de
interpretação do marxismo , mais fiel a O Capital.
O resultado dessa visão dialé tica entre forças produtivas e rela¬
ções de produ ção é o extremo refinamento teórico da posi ção de Marx
na maturidade, em O Capital, tendo em vista que tal implica ção m ú ¬
tua abre campo à ação revolucion á ria, e n ã o ao mero mecanicismo da
evolução histórica. Numa visão mecanicista do pensamento de Marx,
poder-se-ia interpretar que o mero agravamento das contradi ções le ¬
Carlos Nelson Coutinho enxerga duas poss íveis visões paradigm á ticas, uma mais apropriada
ao jovem Marx, outra ao Marx maduro, respectivamente: a revolu ção como ruptura imediata
ou como um processo cont ínuo, ligando-se ao problema da tomada do poder do Estado e de
seu perecimento. "A depender do modo ' restrito' ou 'amplo' de conceber o Estado, resulta -
na histó ria da teoria pol ítica marxista a elaboração de dois diferentes paradigmas de revolu ¬
-
ção socialista , que definiria esquematicamente como 'explosivo ' e ' processual'". COUTINHO,
Carlos Nelson . Marxismo c política . A dualidade de poderes e outros ensaios . São Paulo,
Cortez, 1996, p. 13.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
A DIALÉTICA DO PROGRESSO
A UTOPIA EM MARX
A utopia em Marx é, mais que um tema, um resultado impl ícito
- e raras vezes por ele próprio explicitado - de seu pensamento e do
apontamento de sua praxis política.33 Por isso, não é um sistema fe-
31 KONOER, Leandro. O futuro da filosofí a da praxis. Rio de laneiro, Paz e Terra, 1992, p. 65.
32 "Mesmo em obras de forte car á ter economicista como Reforma social ou revoluçã o? , A acumu ¬
lação do capital e a Anticrítica, em que insiste na teoria do colapso, Luxemburg repete que o
socialismo n ão resulta automaticamente das contradi ções objetivas do capitalismo, que é
necessá rio o 'conhecimento subjetivo, por parte da classe operá ria , da inelutabilidade da
supressão da economia capitalista por meio de uma revolu ção (Umwá lzung) social'. Ou seja ,
ela compreendeu , desde o in ício de sua carreira pol ítica, que a economia por si só n ã o levar á
ao socialismo". LOUREIRO, Isabel Maria. Rosa Luxemburg. Os dilemas da ação revolucioná ria.
Sã o Paulo, Ed . Unesp, 1995, p . 33 .
33 " Retomando a expressã o de Marx no Dezoito Brumário, é ciara que os homens est ão limitados
pelas condi ções herdadas do passado, no entanto, eles fazem a histó ria , n ão fazem apenas
repetir o que se sabe, cada geração faz algo diverso. (. ..| Trata-se da ação em que os homens
são capazes de criar o novo, os projetos iluminadores da criação de uma nova sociedade. São
os sonhos de sonhar acordado que propiciam isto, são as utopias". LORES, losé Reinaldo de
Lima . Direito e transformação social. Belo Horizonte, Nova Alvorada , 1997, p. 62.
UTOPIA E DIREITO
—
festo Comunista., por exemplo , para negá-lo em face de uma suposta
cientificidade revolucionária. O pensamento de Marx, nesta fase, opon ¬
34 Chavance nomeia o pensamento de Marx como "dial ética teleol ógica". CHAVANCE, Bernard.
" La dialectique utopique du capitalisme et du communisme chez Marx". In Marxenperspective.
Paris, Écoie des hautes études en sciences sociales, 1985, p. 130.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
35 ABENSOUR, Miguel. O Novo Espírito Utópico. Campinas, Editora da Unicamp, 1990, p. 20.
3 ft , . .
MALEK, Henri. Congéclier L'Ulopie? L' utopie selon Kari Marx op c/f., pp. 15 e seg
ALYSSON LEANDRO MASCARO
tão chamados socialistas utó picos. Tal qual apontar á mais tarde Ernst
Bloch , Engels enxerga um primeiro movimento popular de utopia -
diverso e mesmo anterior àquela utopia constituída meramente pelos
sonhos dos pensadores burgueses como Morus - em personagens do
povo como Thomas M ü nzer, desembocando todo esse processo nas
lutas socialistas do século XIX.
E se, em termos gerais, a burguesia podia arrogar-se o direito
de representar, em suas lutas com a nobreza, alé m dos seus
interesses, os das diferentes classes trabalhadoras da é poca, ao
lado de todo grande movimento burguês que se desatava,
eclodiam movimentos independentes daquela classe que era o
precedente mais ou menos desenvolvido do proletariado mo¬
derno. Tal foi na época da Reforma e das guerras camponesas
na Alemanha a tendência dos anabatistas e de Thomas M ü nzer;
na grande Revolu ção Inglesa , os “ levellers” , e na Revolu ção
Francesa, Babeuf. Essas sublevações revolucionárias de uma
classe incipiente são acompanhadas, por sua vez, pelas corres ¬
37 ENGELS, Friedrich. "Do socialismo utópico ao socialismo cient ífico". In MARX, Karl e ENCELS,
Friedrich . Obras Escolhidas. Vol. 2. São Paulo, Alfa Ómega , s/d, p. 304.
-
38 Ibid., p. 305.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
39 Ibid . , p . 332.
CAP íTULO 3
PSICANáLISE E UTOPIA
40 " Esse é o empreendimento que Freud retoma na virada da d é cada de 1920 para a de 1930 por
meio de três escritos que colocam a questã o do destino do homem por intermédio do das
comunidades humanas: O futuro de uma ilusão ( 1927 ), O mal-estar na cultura (1929 ), e Por
que a guerras’ (1933). (...) O futuro de uma ilusão, que inaugura a trilogia freudiana, coloca o
princ ípio fundador que é o vetor das elabora ções 'sociol ógicas' da psican á lise: o desenvol ¬
vimento da civiliza ção est á submetido ao mesmo processo que rege o da gé nese do eu . Como
UTOPIA E DIREITO
o eu , a civiliza çã o tem de fato dois objetivos: controlar as excita ções externas isso quer dizer
(
) à
dominar as forças da natureza) e regular as tensões internas (entre seus membros inerentes
sua pró pria organizaçã o. Este princ ípio preliminar estando reconhecido, Freud faz uma
viver sem
constata ção surpreendente: os homens n ã o podem nem suportar a civiliza ção nem
ela , eles devem estar juntos/ separadamen te . " REY - FLAUD , Henry . " Os fundamentos
-
metapsicol ó gicos de O mal-estar na cultura" . In Fm torno de O mal estar na cultura, de
Freud.
S ão Paulo, Escuta , 2002, p. 8.
; o id , ou seja,
41 "Freud adota uma triparti çã o da mente: o ego que é o nosso n ú cleo consciente
o 'depósito' inconsciente dos impulsos reprimidos; e o superego , representante
dos princ ípi¬
, qualquer ju ízo
os éticos ( essa triparti ção lembra de longe a plat ó nica , evitando, no entanto
ao contr á rio de
de valor). Através de todas as suas obras, Freud sempre destaca bem
,
dos instintos b á sicos ( libido , impulso da morte, cuja
McDougall , a extrema plasticidade
, psican á lise de Freud
projeção é a 'agress ã o'; no que se refere à doutrina dos impulsos a
, uma exposi çã o da
passou por vá rias modificações ) e toda teoria psicanal ítica é, em essê ncia
manifesta çõ es dos impulsos , em consequ ê ncia de condi çõ es vari á veis de
variedade das ROSQNFELD, Anatol . O
ambiente, aos quais os instintos tendem a adaptar -se de forma diversa ".
pensamento psicológico. São Paulo, Perspectiva , 2003, p. 118.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
- n ão seja
necessariamente a felicidade, o prazer e a satisfa ção, mas sim
o acordo de sua quantidade possível , sempre menor que aquilo que o
desejo mais instintivo e inconsciente desejaria.
Daí , para a postulação teó rica de Freud, a evolu ção do ego se dá
sempre a partir da tensão entre o prim á rio princípio de prazer e um
posterior princípio de realidade. Em torno desse embate se d á, para
Freud, a consolidação da personalidade:
Sabemos que o princípio do prazer é pró prio de um m é todo
primário de funcionamento por parte do aparelho mental, mas
que, do ponto de vista da autopreservação do organismo entre
as dificuldades do mundo externo, ele é , desde o in ício , inefi¬
caz e até mesmo altamente perigoso. Sob a influência dos ins¬
tintos de autopreservação do ego, o princípio do prazer é subs¬
titu ído pelo princípio de realidade. Este último princípio n ã o
abandona a inten ção de fundamentalmente obter prazer; n ã o
obstante, exige e efetua o adiamento da satisfação, o abando ¬
dade social, contratual, seria toda a felicidade possível e necessá ria, e por
isso o contrato social era um momento positivo da civilização. Freud
trabalha pela via contrá ria. O indivíduo não reconhece a castração de
sua â nsia de prazer ilimitado como construtora de sua felicidade possí ¬
43 -
FKEUU, Sigmund . O Mal Estar na Civilização. Rio de Janeiro, Imago, 1997, p. 72 .
44 "Quando j á ciente da impossibilidade de sustentar a crença em uma humanidade feliz e sem
sofrimento, o mal-estar n ã o é mais designado como algo contingente à civiliza ção, mas da
al çada do pró prio ato de civilizar. [...) Freud observou que os problemas cruciais da culpa
inconsciente insensata, da ren ú ncia à realiza çã o da libido, da resistê ncia à cura do sujeito e do
gozo que concerne à coletividade, de fato se mantê m sob o signo da pulsão de morte. Mais do
que nunca , perto do final de sua vida e obra Freud exercerá a tarefa de cr ítico implacável da
cultura de seu tempo". FUKS, Betty. Freud & a cultura. Rio de janeiro, Jorge Zahar, 2003, p. 15.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
45 "A questão decisiva consiste em saber se, e até que ponto, é poss ível diminuir o ó nus dos
-
sacrif ícios instintuais impostos aos homens, reconcili á los com aqueles que necessariamente
devem permanecer e fornecer- lhes uma compensa ção". FREUD, Sigmund . O Futuro de uma
Ilusão. Rio de Janeiro, Imago, 1997, p. 13.
UTOPIA E DIREITO
WILHELM REICH
Reich é dos primeiros, na psican álise, a preocupar-se com o ex¬
tremado individualismo do freudismo e com sua falta de aptid ão a
UTOPIA E DIREITO
sua
47 " Reich vai focalizando quest ões bá sicas da vida e da exist ê ncia , das sociedades e de
esperança no Homem . Em oposi çã o ao seu antigo mestre Sigmund Freud , francamente pessi ¬
faz uma
mista em rela ção ao Homem (formulação da puls ã o de morte, por exemplo Reich
),
os
declaraçã o de f é na humanidade. Assim, afirma Reich: 'só tu podes libertar-te'. Combate
...
regimes totalit á rios e adiante revela o significado de Deus: ' é a energia cósmica
primordial
filosófico,
do Universo'. Desse modo, vai formando um painel com os enfoques religioso ,
psicol ógico e sociológico". CâMARA, Marcus Vin ícius. Reich - o descaminho necessá rio. Intro
¬
48 REICH, Wilhelm. Aná lise do Caráter. S ã o Paulo, Martins Fontes, 2001 , p. 172.
ilk
ta por causa da personalidade autoritá ria de tais classes. Daí ser neces¬
s á rio desvendar, além das razõ es político-econ ó micas imediatas, uma
formação autoritá ria do cará ter.
Revela-se o car á ter autoritário como uma debilidade ligada à pró¬
pria formação sexual repressiva. A carência econ ó mica das classes oper á ¬
zonte que nao seja o da opressão. Por isso preferem e enxergam com
melhores olhos o nazismo à libertação.
Em resumo, o objetivo da moralidade é a criação do indiví¬
duo submisso que se adapta à ordem autoritária, apesar do
sofrimento e da humilha ção. Assim , a fam ília é o Estado auto¬
ologia sobre a base econó mica’: a inibi ção sexual altera de tal
modo a estrutura do homem economicamente oprimido, que
ele passa a agir, sentir e pensar contra os seus próprios interes¬
ses materiais. 49
sões sexuais. N ã o haveria busca de libertaçã o prolet á ria sem tal trans ¬
— —
nomina Sexpol pol ítica sexual que vem a ser a jun ção das duas
esferas, pol ítica e sexual, numa luta de libertação. A libertação pol ítica
deverá ser associada da liberta ção sexual , da construção de caracteres
genitais e n ão autoritários, mais próximos do Id que do superego . Apon ¬
49 REICH, Wilhelm. Psicologia de Massas do Fascismo. São Paulo, Martins Fontes, 2001 , pp. 28 e 30.
50 "O socialismo clássico enfatiza a luta e o sacrif ício, o trabalho e o hero ísmo, e adia para um
futuro nebuloso a realiza ção da felicidade individual , quando raiar, graças ao desenvolvi ¬
mento das forças produtivas, o reino da liberdade. A Sexpol, ao advogar o desenvolvimento
-
da genitalidade como pré condição da ação pol ítica, e mesmo como seu conteú do efetivo,
inverte a sequ ê ncia temporal , e contesta o determinismo da etapa. A felicidade n ã o é uma
recompensa futura, mas o pr ó prio conte ú do da pol ítica da vida ". ROUANET, Sé rgio Paulo.
Teoria Crítica e Psicanálise. Rio de ¡aneiro, Tempo Brasileiro, 1998, p. 48 .
UTOPIA E DIREITO
ERICH FROMM
Ao lado de Reich, Fromm constitui a primeira grande linha de
frente da preocupação da psican álise em proceder ao diálogo com o
marxismo. Em grande parte aproxima-se de Fromm na tentativa de
estabelecer as bases de uma psican álise n ão apenas individualista na
cr ítica recorrente que fazem a Freud mas sim que busque a compre
— ¬
51 "H á diferen ças na forma de sadismo de acordo com a diferen ça , na realidade, entre ter poder
ou ser poderoso. O homem m édio é relativamente impotente : o escravo mais que o servo, mais
que o cidad ã o, o trabalhador do século XIX mats do que o trabalhador do século XX, o
.
membro de um estado polfcia -ditatorial mais do que o de uma democracia. [. .) De outro lado
da escala, é o indivíduo que, na realidade, tem tal grau de poder que é tentado a tornar se -
Deus, transcendendo o status humano. Um l íder pol ítico dotado de poder absoluto como
Stalin ou Hitler é quase fadado a cair na tentação de poder absoluto. [...] O sadismo existe n ão
somente na classe média mais alta e entre ditadores, mas também entre muitos outros grupos
sociais. [. .. ] As mesmas condi ções de impotê ncia efetiva podem ser produzidas pela atmosfera
da fam ília, onde a criança, ao crescer, é exposta ao tratamento sá dico dos pais, especialmente
nas formas menos óbvias, em que sua vontade e espontaneidade são sufocadas, quer direta ¬
mente pela falta de alguma resposta, quer por amea ças". FROMM, Erich . A Descoberta do
.
Inconsciente Social São Paulo, Man ó le, 1992, pp. 137 e seg.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
renciando, tal qual Freud, entre car á ter e comportamento. O car áter
revolucioná rio tamb ém não se resume, na visão de Fromm , à postura
rebelde. A rebeldia, segundo Fromm, é o ressentimento contra a auto¬
ridade pela personalidade n ão ser amada por ela . O ato de rebeldia
n ã o é transformador; antes, é uma assunção ao poder para obtenção
do reconhecimento que até ent ão n ão era conseguido. Distingue
Fromm, ainda, o cará ter revolucion á rio do fan á tico. Este é o que esco¬
lheu uma causa e a endeusou, tornando-se submisso a ela. Fromm o
compara a um “ adorador de ídolo” . A
52 FROMM, Erich . A Arte de Amar. S ão Paulo, Martins Fontes, 2000, pp. 163 e 164.
UTOPIA E DIREITO
53 FROMM, Erich. O Dogma de Cristo e Outros Ensaios sobre Religião, Psicologia e Cultura. Rio de
Janeiro, Guanabara, 1986, p. 119. ;
54 Ibid., p. 124 .
ALYSSON LEANDRO MASCARO
te desenvolvidos” , 56
A UTOPIA EM MARCUSE
—
do o papel de absolutos por exemplo a idéia de indivíduo
—
tal como predominou na época burguesa e que foram aban ¬
i
ALYSSON LEANDRO MASCARO
drão de dominação. Por tal razão, invertem a premissa de Marx das Teses
sobre Feuerbach. Se nelas Marx dizia que a filosofia já havia interpretado
o mundo, e portanto era imperioso que se o transformasse, aqui Adorno
e Horkheimer partem do contrário. Dado que a busca de transforma¬
ção mostrou-se infrutífera, é preciso compreender o mundo. A filosofia
tem, pois, seu papel, como teoria crítica. A utopia é o entendimento
do
domínio da razão, e talvez não sua transformação.
Hoje, o progresso em relação à utopia é bloqueado antes de
tudo pela completa desproporção entre o peso do mecanismo
esmagador do poder social e o das massas atomizadas. [...] Se
a filosofia conseguir auxiliar as pessoas a reconhecer esses fato¬
res, prestar á um grande serviço à humanidade.59
60 "Numa é poca em que a psican á lise era ainda bastante estigmatizada, Horkheimer foi um dos
primeiros a reconhecer sua importâ ncia, tendo se submetido, entre 1928 e 1929, a sessões
com Karl Landauer, um antigo aluno de Freud . [...] J á o interesse de Adorno pela obra de Freud
era mais teó rico do que prá tico. (...1 Em todos os seus trabalhos importantes da década de
1930 aparecem referê ncias à psican á lise, ou, antes, tentativas de se apropriar dela com
objetivos de empreender uma cr ítica da cultura contemporâ nea ". DUARTE, Rodrigo. Adorno/
Horkheimer & A Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2002, p. 20.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
61 ROUANET, Sé rgio Paulo. Teoria Critica e Psicanálise. Op. cit . , pp. 110 e 111 .
UTOPIA E DIREITO
62 ADORNO e HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985 , p. 15.
63 " Diante das transforma ções por que passou o capitalismo no sé culo XX, Adorno n ã o vê outra
possibilidade para a filosofia sen ã o a de examinar o existente sob a luz da promessa de
reden çã o que, por um lado, foi perdida quando da passagem à 'sociedade administrada', e
que, por outro, ilumina tragicamente a pró pria história da filosofia". NOBRE, Marcos. A Dialética
Negativa de Theodor W. Adorno . São Paulo, Fapesp/lluminuras, 1998, p . 40.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
mente, pela atuação polí tica, levada cada vez mais ao radicalismo.
64 MARCUSE, Herbert. Eros e Civiliza ção. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan , s/d, p. 220.
65 " Em -
Eros e Civilização, sua tese é a de que Freud equivocou se quando viu na culpa e na
infelicidade o inevitá vel tributo pago pelos indiv íduos para se protegerem da destrui ção
..
m ú tua. [. ] Marcuse n ã o aceita essa dial ética . Em seu entender, ela mostra dois grandes
defeitos. Em primeiro lugar, Freud teria tomado 'a civiliza çã o' como sin ó nimo de interioriza ção
das necessidades alienadas do capitalismo industrial . Em segundo, Freud , malgrado ele
pró prio, confundiu eros com sexualidade. Se, de fato, uma sociedade afogada em sexualida ¬
de n ão pode ser feliz, há como pensar numa sociedade feliz e pacificada, sob o regime do
.
erotismo" COSTA, Jurandir Freire. " Utopia sexual, utopia amorosa". In Utopia e mal-estar na
cultura : perspectivas psicanalíticas. São Paulo, Hucitec, 1997, p. 117.
UTOPIA E DIREITO
A UTOPIA EM MARCUSE
Ao contrário do pensamento freudo- marxismo, Marcuse inicia
sua visão da utopia de um ponto de partida negativo, tal qual Adorno
e Horkheimer: a sociedade capitalista não possibilita a satisfação das
necessidades nem a libertação dos prazeres. Só na an álise dos mecanis¬
mos pelos quais o capitalismo introjetou a dominação é que se revela o
passo possível da utopia para Marcuse.
Havia impl ícita, na teoria do freudo-marxismo, a possibilidade
da den ú ncia ideológica da opressão, na medida em que a razão - como
o contr á rio da ideologia - seria arma da libertação. A dominação se ¬
67 Ibid . , p. 139.
UTOPIA E DIREITO
68 -
"Assim como a sociedade unidimensional é a caricatura da dial ética fusão repressiva de
contr á rios - e realiza sua pró pria desalienação - cr ítica repressiva da aliena ção da cultura , ou
—
cr ítica da cr ítica o positivismo, reflexo teórico dessa sociedade, assume , também, a forma de
uma filosofia pol ê mica , voltada contra o pensamento metaf ísico e contra as formula ções
ling üísticas inexatas. Vá lidas são apenas as proposi ções da l ógica e da matem á tica verdadei ¬
-
ras mas tautol ógicas, pois assumem a forma de julgamentos anal íticos, em que o predicado já
est á contido no sujeito - e as proposi ções valid á veis pela verifica çã o emp írica , que dizem
algo sobre a realidade ( julgamentos sintéticos, em que o predicado n ão está contido no
sujeito ) mas que n ão sã o certas, e sim meramente prová veis. Sã o esses os limites absolutos do
horizonte cognitivo positivista . Ora , as proposi ções cr íticas, que transcendem o existente,
-
situam se, por defini ção, fora desses dois crité rios. [...] São, em sua essê ncia, irracionais, de
acordo com as regras do jogo estabelecidas, autoritariamente, pela epistemolog í a positivista".
ROUANET, op. dl ., p. 205.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
consciência da classe
. Da í o
se. Numa palavra, é preciso pensar a revolu ção no â mbito da sociedade de consumo
fasc ínio exercido pelas id é ias de Marcuse sobre as revoltas estudantis dos
anos 60, quando se
percebeu que o capitalismo podia ser posto em xeque n ão em virtude de car
ê ncias materiais,
.
mas espirituais" LOUREIRO , Isabel Maria. " Herbert Marcuse - A rela çã o entre teoria e pr ática". In
, . / Fapesp , 1998 , p , 117.
Cap ítulos do Marxismo Ocidental. Sã o Paulo Ed Unesp
ALYSSON LEANDRO MASCARO
73 "Dissemos que para Marx, como para Hegel, a verdade está na totalidade negativa . [. ..] O
cará ter histó rico da dial ética marxista abarca a negatividade vigente e a sua nega ção. Um dado
estado de coisas é negativo e só pode ser tornado positivo pela libertação das possibilidades
a ele inerentes. Isto, a negação da nega çã o, se realiza pelo estabelecimento de uma nova
ordem de coisas. A negatividade e sua negação sã o duas fases diferentes do mesmo processo
histó rico, associadas pela a ção histó rica do homem. O " novo" estado é a verdade do velho,
mas esta verdade n ã o cresce firme e automaticamente a partir do estado mais antigo; ela só
pode ser libertada por uma a çã o autó noma dos homens, a ção que anulará a totalidade do
estado negativo existente". MARCUSE, Herbert . Razão e Revolução . Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1978, pp. 286 e 287.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
—
dos pela racionalidade da dominação alguns proletários, os intelec¬
tuais, os jovens, hippies, ecologistas etc. - se levantem. A Grande Re ¬
77 " Luk á cs e Bloch Integravam o c í rculo de intelectuais que frequentavam os semin á rios privados
de Max Weber em Heidelberg, antes da 1 a Guerra Mundial e procuravam incutir nos demais
participantes seus ideais neo- rom â nticos. laspers, que també m fazia parte daquele grupo,
-
recorda se de ambos como 'gn ósticos que compartilhavam suas fantasias teosóficas em c írcu ¬
los sociais'". SotON, Ari Marcelo . Teoria da soberania como problema da norma jur ídica e da
decisão. Porto Alegre, Sérgio Fabris, 1997, p. 177.
UTOPIA E DIREITO
ca, cujo arco vai desde Spengler até Heidegger, passando antes disso
por Nietzsche , encaminhava a cr ítica da modernidade para os
quadrantes do conservadorismo e do reacionarismo. Uma segunda
corrente, progressista, valeu-se novamente de Hegel para trilhar os
caminhos que redundariam ao final em Marx.
O romantismo é um movimento amplo que comporta tanto as
vari áveis reacionárias quanto as de esquerda. O mote de Bloch, aliás,
em seus escritos de juventude, era justamente o de valer-se do passado
como fonte das utopias do futuro. Na d écada de 1910, quando Lukács
se abeirou do ambiente weberiano de Bloch, as sementes dos mais
opostos caminhos de negaçã o à modernidade ainda estavam sendo
germinadas, muito próximas umas das outras, no mesmo solo.
O trajeto inicial de Bloch revela-se uma espécie de anunciação de
toda sua obra posterior. Sua metodologia, desde o in ício, é um
amálgama de metafísica com marxismo, do qual nunca quis se desven ¬
cilhar no futuro. Suas imagens, suas recorr ências, seus temas e aborda¬
gens são insólitos. Pesquisando na história religiosa os discursos de
Thomas M ü nzer, por exemplo, Bloch dará mostras da amplitude do
seu panorama filosófico, que tinha no marxismo uma espécie de avalista
final, mas n ão necessariamente de condutor imediato.
Lukács, neste sentido, só se deixou levar por algum am álgama
filosófico não-marxista no seu início de reflexão. História e Consciên¬
cia de Classe, seu principal livro, é o último n ão totalmente marxista,
na opinião do pró prio autor, que fez uma série de revisões e negações
de sua obra. Lukács era autor de temas peculiarmente clássicos do
marxismo: suas abordagens da consciência de classe, da ideologia, es -
r
ALYSSON LEANDRO MASCARO
78 SCHOLEM, Gershom . O Colem, Benjamin, Buber e outros justos : judaica I . São Paulo, Perspec ¬
tiva , 1994, p. 210.
UTOP íA E DIREITO
xão profunda e tocada por sentimentos que parecem estar ligados por
uma oculta cumplicidade entre o escritor e o leitor.
A cabala, por sua vez, é outra das recorrê ncias freqiientes de Bloch .
No Espírito da Utopia, em sua parte final, Bloch acena para uma jun ¬
ção muito significativa. Bloch denomina o último cap í tulo de sua obra
“ Karl Marx, a morte e o apocalipse” . Nesta triangulação , expõe o fun ¬
tação e apontando para uma espécie de Messias que será a revolu ção.
Lukács, por sua vez, tem duas fases distintas em seu pensamento
messiâ nico. O marxismo lhe representar á n ão uma superação que ain ¬
da carreia consigo a escatologia, como ocorreu com Bloch , e sim um
afastamento da tem á tica da utopia m ística. Mas nas primeiras obras,
como na Teoria do Romance, a inspira ção de Luká cs - no que era ple ¬
79 Gabriel Cohn, tratando de Weber: "Al ém de suas repetidas referências a Tolstoi, h á ind ícios de que
Dostoievski exerceu considerável fasc ínio sobre ele, tanto assim que forneceu temas para boa
es
parcela de seus contatos com o jovem Lukács, que na é poca estava às voltas com preocupa çõ
semelhantes". COHN, Gabriel. Crítica e Resignação. São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 158.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
nh ã contra seu tempo , vai dar lugar a uma disputa pelo presente. O
marxismo apregoado por Lukács abandona Dostoievski para, em seu
lugar, fincar bandeiras de uma estética realista. Bloch prosseguirá, no
entanto , num marxismo m ístico, e sua est é tica há de se converter em
expressionismo.81 Começa a í a separação.
rece pouco a pouco de sua obra . E quando, dez anos mais tarde, publica em Moscou urna
violenta diatribe contra o ' reacion á rio' Dostoievski { que Bloch n ã o perdoar á jamais ), o
rompimento ideol ógico entre os dois homens se consuma". L õWY, Michael. Romantismo e
messianismo. São Paulo, Perspectiva/Edusp, 1990, p . 66.
UTOPIA E DIREITO
82 LõWY, Michael. A Evolução Política de Luk ács . S ão Paulo, Cortez, 1998, p. 296.
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83 Theodor Adorno, nas Notas de Literatura, é um dos primeiros a apontar uma indissociável
caracter ística utó pica no ensaio, que pode ser observada no pensamento de Bloch: "O ensaio
n ão apenas negligencia a certeza indubit á vei, como també m renuncia ao ideal dessa certeza .
Torna-se verdadeiro pela marcha de seu pensamento, que o leva para al ém de si mesmo, e n ã o
pela obsessão em buscar seus fundamentos como se fossem tesouros enterrados. O que
ilumina seus conceitos é um terminus ad quem, que permanece oculto ao pró prio ensaio, e
n ã o um evidente terminus a quo. Assim , o pr ó prio m étodo do ensaio expressa sua intenção
utó pica . Todos os seus conceitos devem ser expostos de modo a carregar os outros, cada
conceito deve ser articulado por suas configurações com os demais. No ensaio, elementos
discretamente separados entre si são reunidos em um todo leg ível; ele não constró i nenhum
andaime ou estrutura . Mas, enquanto configuraçã o, os elementos se cristalizam por seu
movimento. Essa configuraçã o é um campo de forças, assim como cada forma ção do esp írito,
sob o olhar do ensaio, deve se transformar em um campo de forç as". ADORNO, Theodor. Notas
sobre literatura I. São Paulo, Duas Cidades/Ed. 34, 2003, p . 30.
UTOPIA E DIREITO
84 Cf. M ü NSTER, Amo. Utopia, messianismo e apocalipse nas primeiras obras de Ernst Bloch . Sã o
Paulo, Ed . Unesp, 1997, pp. 165 e seg.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
tica dos socialistas, Luk ács, que havia sido ministro da Educa ção , ter¬
minar á preso e no aguardo de severas penas . Thomas Mann , um dos
principais nomes da burguesia alemã e do ambiente cultural clássico,
é um dos intelectuais que se lançam em seu apoio, declarando que,
embora divergisse em idéias com Lukács, respeitava sua integridade
pessoal . Lukács, desde o in ício de suas reflexões estéticas, sempre man ¬
Lukács tem fases marcadas em suas obras, o que leva seus intérpre ¬
87 "A novidade consiste em que, a partir da d é cada de 1930 (... ) Luk á cs n ã o é mais um
intelectual que, da cr ítica da cultura movida por um anticapitalismo radical ('anticapitafismo
rom â ntico'), extraia consecuencias ético- pol íticas exteriores à praxis pol ítica; ao contr á rio, na
década de 1930, é a pol ítica que d á novas formas e conte ú dos à problematizaçã o da cultura
moderna, em um contexto em que, ao mesmo tempo, se afasta da atividade pol ítica direta".
MACHADO, Carlos Eduardo Jord ã o. Um capítulo da hist ória da modernidade estética : debate
sobre o expressionismo. Sã o Paulo, Ed. Unesp, 1998 , p. 22.
88 "' Leo Naphta é Cari Schmitt . Ou , pelo menos, antes dele, todas essas idé ias já haviam sido
proclamadas por Schmitt. [.,.] Apesar desta conclusão, como apontamos elementos de conso ¬
n â ncia entre Bfoch, Luk á cs e Schmitt n ã o é de se estranhar que todos se identificassem com
esta personagem ". SOION, Teoria da soberania como problema da norma jurídica e da decisão ,
op. c/f ., p. 184.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
89 "Em Luk á cs, a essê ncia do m étodo dial é tico, a possibilidade de encontrar a totalidade em
cada momento particular, guardando de cada momento o seu car á ter de momento, encontra
expressã o rea ) , concreta, na atividade cotidiana do proletá rio, aquela porta estreita por onde,
em momentos privilegiados, pode se mostrar a realidade das rela ções capitalistas, j á que o
caráter ú nico da situaçã o social do proletariado est á em que 'o sair da imediatidade é dotado
de uma intençã o para a totalidade da sociedade"'. NOBRE, Marcos. Luk ács e os limites da
reificação. S ã o Paulo, Ed. 34, 2001 , p. 66.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
senta, além de suas grandes linhas dial é ticas sociais, uma formaçã o
polirrítmica ( polyrbythmisches) )ü , que não se enquadra nas grandes to
í
¬
talidades objetivas. Assim sendo, Bloch levanta d úvidas, ainda que par¬
ciais, a respeito do eixo central do hegelianismo marxista de Lukács.
Tal suspei ção conduz, da parte de Bloch , a uma proposi ção di ¬
versa da de totalidade. Logo nas suas obras de juventude propor á,
ent ão, a utiliza çã o do conceito de histó ria polirr
ítmica, tomando a to¬
talidade histó rico-social por esfera . No entendimento de Bloch, a esfe ¬
91 JIMéNEZ, (osé. La estética como utopia antropológica. Bloch y Marcuse. Madrid , Tecnos, 1983, p. 75.
92 BLOCH. Erbschaft dieser Zeit, op. cit., p. 69.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
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.
Bicca , tratando da recusa de Luk á cs à utopia de Bloch: "O tema utopia d á ensejo para o
•
.
surgimento das primeiras discussões decisivas entre Bloch e Luk ács. [.. ] Sua recusa da utopia
apó ia -se essencialmente em quatro censuras, que resumem a sua cr ítica: 1 ) a utopia provoca
uma separa ção entre consci ê ncia e ser, isto é, uma mudança na consci ê ncia sem transforma ¬
ção do ser histó rico-social; 2 ) do ponto de vista epistemológico, ela é um empirismo camufla¬
do; 3) em suas formas modernas, ela era , no fundo, ideologia do futuro capitalismo liberal; 4 )
h á nela, realmente, uma cisã o entre conte ú do ideol ógico-utó pico e ação concreta . Da í se
conclui: a utopia é apenas a ' reprodu ção fantástica da insolubilidade do próprio problema '".
BICCA, Luiz. Marxismo e Liberdade. São Paulo, Loyola , 1987, p. 130.
94 LUKáCS, Ceorg. História e Consciência de Classe. São Paulo, Martins Fontes, 2003, pp 382 e 383.
.
UTOPIA E DIREITO
95 "O proletariado como um todo, assim como as partes, est á livre das contradições que perpas ¬
sam cada proletá rio singular; Luk á cs d á um salto do prolet á rio isolado ao proletariado, que
ele nã o hesita em ¡mediatamente valorizar como subst â ncia . A dialética do geral e do particu¬
lar, cuja falta foi um motivo essencial da impossibilidade de solu çã o das antinomias do
pensamento burgu ês, é resolvida em favor da generalidade". NEGT, Oskar e KLUGE, Alexander.
O que há de político na política ? Sã o Paulo, Ed. Unesp, 1999, p. 124.
CAPíTULO 6
O SER-AINDA-NãO
to, perseguiu trajetos filosó ficos que eram similares a v ários outros pen ¬
96 "Parece-me que a grande forç a de 8 loch n ão reside somente na sua sensibilidade e na sua
generosidade, mas na capacidade de falar com profundidade das coisas as mais simples. (...)
Bloch nos faia por meio de um tom distante e familiar. Ele evoca a paisagem espiritual,
filosófica, est ética de sua geração e nos impulsiona a interrogar sobre a nossa. Sua obra não
comporta nenhuma resposta, e sim indagações. Ele parece atravessar as épocas, as gerações,
como uma estranha música que ressoa em cada um de maneira diferente, com a mesma
emoção". PALMIER, Jean-Michel. "Em relisant ' L'esprit de 1'utopie' ou Prière pour un bom usage
d'Ernst Bloch". In Réificalion el Utopie: Ernst Bloch & Cyõrgy Luk á cs un siècle nprès Acles du
Colloque Goethe Institui . Paris, Actes Sud, 1986, p. 263.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
98 "A impressionante pol ê mica de Marx e Engels fez com que, tanto dentro quanto fora do
marxismo, o termo ' utó pico' passasse a ser aplicado correntemente a um socialismo que apela
à razão, à justiça e à vontade do homem de ordenar uma sociedade desarticulada , ao inv és de
limitar -se a apresentar à consci ê ncia ativa o que as condi ções de produ ção já haviam prepa ¬
rado dialeticamente. Considera -se como utó pico todo socialismo voluntarista, o que, de
modo algum, significa que esteja Isento de utopia o socialismo que a ele se opõe, e que
poderia ser classificado de necessitarista , por declarar que sua ú nica exigê ncia é que se fa ça
o necessá rio para que sobrevenha a evolu çã o . Os elementos ut ó picos que este conté m s ã o,
evidentemente, de outro gê nero e afetam a outra ordem de id éias". BUBER, Martin. O socialismo
ut ó pico. Sã o Paulo, Perspectiva , 1986, p. 20.
UTOPIA E DIREITO
99 " Porque d ã o seu dinamismo à filosofia pol ítica , as utopias, como observou Ernst Bloch ,
propõem aos homens os meios para proverem seu destino à luz de uma visão global do
desenvolvimento histórico. Por isso, segundo observou Bloch, o Princ ípio da Esperan ça
anima o mundo. ( ...] Para que a utopia seja força progressista, é preciso transformar as
aspirações em militâ ncia , a esperan ça em decisão política". HERKENHOFF , Joã o Baptista . Direito
e Utopia . Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2001, p. 14.
100 BLOCH, Ernst. Das Prinzip Hoffnung, ! . Frankfurt, Suhrkamp, 1985, p . 50 e seg.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
101 Luiz Bicca aponta diferen ças entre o sonho diurno e o sonho noturno na perspectiva de
Bloch : "Tais traços diferenciadores são: a ) o fato de que as fantasias diurnas se processam sob
absoluto controle do sujeito, podendo, a qualquer momento, ser iniciadas ou interrompidas,
sempre que o Eu assim quiser. Sã o, por conseguinte, manifesta ções de consci ê ncia ou ,
quando muito, pré-conscientes; b) semelhante atividade do Eu pressupõe de forma necessá ria
a ausê ncia do fator interno de censura [...) Ademais, os sonhos diurnos sã o marcados ainda :
c) pela inten ção de ser de outro modo, de uma vida ou mundo melhor; d ) pela possibilidade,
na consci ê ncia, de se ir até o fim, de se alcan ç ar os objetivos almejados". BICCA, Luiz.
Racionalidade moderna e subjetividade. S ã o Paulo, Loyola, 1997, p. 234 .
ALYSSON LEANDRO MASCARO
A -
ONTOLOGIA DO SER AINDA N ÃO: A NATUREZA -
Os sonhos diurnos e a consci ê ncia antecipadora ligam-se necessa ¬
1 05 "A Docta Spes é a esperança esclarecida e cognoscente ". MISKAHI, Robert. Qu'esí-ce que
1' éthique ? Paris, Armand Colin, 1997, p . 101.
106 "A esperan ç a n ão é uma qualidade íntima dependente da personalidade, n ão é um estado
an ímico da psicologia individual , é uma dimensão humanamente ontol ógica do Ser, mas n ã
o
exclusivamente do ser do homem, e sim também do ser da realidade". LAVALLE, Adri á n Gurza.
"Incitació n para recuperar el futuro. Una lectura de la Raz ó n Esperanzada de Ernst Bloch ". In
Cadernos de Filosofía Alemã, vol. 3. Sã o Paulo, FFLCH-USP, 1997, p. 32.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
fia marxista do século XX, como uma das fronteiras mais hostis, mas,
ao mesmo tempo, como uma das mais pr óximas de uma mesma radio ¬
1 07 " O parentesco é rigoroso entre Heidegger e Luk á cs na an á lise daquilo que Heidegger
denomina por 'ontologia tradicional ', daquilo que Luk á cs chama filosofia tradicional ou o
pensamento e a ciê ncia positivistas, que consiste precisamente na separaçã o dos ju ízos de
fato e dos ju ízos de valor, na afirmação que o conhecimento conhece os objetos indepen -
dentemente do sujeito, da í precisamente afirmando que h á um sujeito e um objeto. Sobre
esse ponto de vista , Luká cs e Heidegger est ã o rigorosamente de acordo: o mundo n ão est á
a í, dado ¡mediatamente em face de uma consciê ncia cognoscente que o conhece tal qual
ele o é e que o julga logo em seguida". GOLOMANN, Lucien. Luk ács et Heidegger. Paris,
i. Den õel, 1973, p. 95.
1 08 " Mais do que declarar em crise a cultura moderna, mais que realizar a cr ítica da civiliza ção
» contemporâ nea , Heidegger fez o processo de toda a histó ria do ocidente desde os seus
começos gregos. (...) N ão propõe uma reforma nem revisã o, mas uma nova partida. [...) A
filosofia heideggeriana teve, contudo, influxo profundo em mais de uma teoria revolucion á¬
ria, entre as quais, por mais atual , pode-se citar a de Herbert Marcuse". PEREIRA, Aloysio Ferraz .
Estado e direito na perspectiva da libertação. Uma crítica segundo Martin Heidegger. São Paulo,
RT, 1980, pp. 215 e 217.
UTOPIA E DIREITO
—
dia ção vivencial ora sensível , ora racional a que chama
mos transcend ê ncia, é que promove o hom ínida , o homem-
— ¬
109 MAMAN, Jeannette Antonios. Fenomenología Existencial do Direito. S ão Paulo, Quartier Latin ,
2003, p. 134 .
ALYSSON LEANDRO MASCARO
111 BLOCH, Ernst. Das Materialismusprobiem, seine Ceschichte und Substanz . Frankfurt, Suhrkamp,
1985, p. 143.
112 "Bloch n ão recua diante da utiliza çã o da faculdade do julgamento, segundo Kant, ampliada
por meio da Filosofia da Natureza , de Schelling. Ao mesmo tempo que o homem socializado
se alienou, também a natureza 'se perdeu', e exige, na perspectiva do projeto malogrado do
seu 'sujeito' oculto, ser interpretada como natura naturans e ser levada a seu termo por
UTOPIA E DIREITO
interm édio da intervençã o humana. A atitude ' mec â nica ', que desemboca no controle
técnico sobre as for ças naturais, é incapaz de perceber que a natureza precisa voltar à pátria .
É somente quando a atitude 'teleológica' apreende as coisas sob a forma de abstra ções de
si mesmas, que as sequ ê ncias dos fins subjetivos das a ções humanas deixam de flutuar no
vazio, vinculando-se, ao contr á rio, a uma finalidade objetivamente inscrita na natureza.
Bloch retoma a pol ê mica de Goethe contra Newton e, recorrendo à heran ça mais profunda
do simbolismo pitagó rico dos n ú meros, da doutrina cabal ística dos signos, da fision ómica
hermé tica , da alquimia e da astrologia, opõe à s ciê ncias da natureza uma teoria expressiva
da natureza , enquanto configura ção simp ática . Mas o fato de que Bloch alude, novamente
a partir de Schelling, ao conhecimento da beleza natural , tal como ela nos é transmitida
pela experiê ncia, a uma espécie de conhecimento da natureza , radicado nas pró prias obras
de arte, dissimula com dificuldade o embaraço decorrente da circunst â ncia de que n ã o
dispomos, justamente, de uma introdu çã o metódica à 'doutrina da natureza como expres¬
s ã o’; todas as tentativas anteriores se apoiam numa extrapolaçã o inutiliz á vel, na analogia
entre microcosmo e macrocosmo, entre homem e universo. HABERMAS, Jíirgen . "Ernst Bloch -
um Schelling marxista ". In Habermas (org. B á rbara Freitag e S é rgio Paulo Rouanet ). S ão
Paulo, Ática, 2001 , p. 161 .
113 Cf. PORCHAT PEREIRA, Oswaldo. Ciência e Dia /ética em Aristóteles. Sã o Paulo, Ed. Unesp, 2001,
pp. 182 e seg.
r
AIVSSON LEANDRO MASCARO
dade, ela acaba sendo uma não-possibilidade. Bloch associar á tal pos¬
sibilidade, no plano pol ítico, a um otimismo irreal que ignora as con ¬
114 " Die 5chichten der Kategorie M õglichkeit". BLOCH, Ernst. Das Prinzip Hoffnung, I, op. cit ., pp.
258 e seg.
115 ALBORNOZ, Suzana. Ética e Utopia . Ensaio sobre Ernst Bloch. Porto Alegre, Movimento, 1985,
p. 31 . Do trecho deste livro se valem alguns exemplos.
116 -
"Poré m, é preciso frisar, o fato de um pensamento apresentar se com sentido, com significa¬
ção , n ão quer dizer que necessariamente seja verdadeiro ou que deva sê-lo, isto é, que
corresponda ou deva corresponder a alguma coisa na realidade. Ele deve 'poder' corresponder,
mas n ão que efetivamente corresponda ou deva corresponder à realidade. O pensamento
pode ter sentido, e por isso n ã o carecer de objeto, mas pode n ã o ter uma correspond ê ncia no
mundo real . Entretanto, porque n ã o tenha essa correspond ência efetivamente comprovada ,
n ã o quer dizer que perca seu sentido ou a sua significa çã o". ALVES, Ala ô r Caff é. Lógica .
Pensamento Formal e Argumentação. São Paulo, Edipro, 2000, p . 193.
117 EURTER, Pierre. A dialética da esperança . Uma interpretação do pensamento ut ópico de Ernst
Bloch. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1974, pp . 112 e seg.
UTOPIA E DIREITO
-
jetivo { Das objektiv realMõgliche ) . Neste n ível de possibilidades, abre
-
se a clareira para uma plena compreensão do objeto por parte do
su ¬
fórmula ontol ógica que aponta para o fato de que o homem ainda não é
todo . Suzana Albornoz assim revela tal formula ção, num poético relato:
Adolph Lowe publica uma carta ao amigo Ernst Bloch ,
carta esta que é vá rias vezes referida em ensaios posteriores
sobre a obra de Ernst Bloch . Naquela carta , Lowe lembra uma
situa çã o em que os amigos fil ósofos trocavam ideias ( ao
entardecer...) , quando o dono da casa faz um desafio a Bloch :
“ Sempre foi sinal dos grandes filósofos poderem resumir o
n ú cleo de seu ensinamento em uma ú nica frase. Qual é , pois,
a sua frase fundamental ? ”
—
to-me como
“ Desta armadilha não saio ileso . Se respondo, compor-
grande filósofo. Se silencio, parecer á como se eu
tivesse talvez muitas coisas a dizer, mas não muito. Prefiro
fazer o papel de pretensioso do que de bobo, e dizer : S ainda
não é P.” U 8
cial, e aponta para P, que é uma meta aberta, construída a partir das
possibilidades concretas do hoje.
S AINDA NÃO É P deve poder resumir de forma concisa o
—
pensamento de Bloch , poré m, para isso como já se disse mais
—
vezes na literatura referente ao assunto esta fórmula primeiro
pressupõe uma representa ção normativa de E Se eu afirmo que
— —
o que aparece o fen ômeno ainda nao é a essê ncia ou a subs¬
tâ ncia, devo saber e poder dizer o que é o essencial ou substan ¬
cial ante o qual meço o fenômeno, o que aparece. Mas Bloch se
nega a fazê-lo. O que é essencial , o que é verdade, só se pode
determinar negativamente: Não é em absoluto necess á rio saber
o que poder á ser o Humanum em todo o seu conte údo positivo
para reconhecer Ñero como desumano.119
Com isso, h á de se evitar a concepção utópica de um mundo
criado artificialmente no pensamento e que venha a estabelecer, ape ¬
CAPíTULO 7
mento do povo judeu , são o pano de fundo para uma nova peti ção
por dignidade humana, justamente no momento mais indigno de
sua histó ria contemporâ nea.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
1
120 COMRARATO, F á bio Konder. A afirmação hist órica dos direitos humanos. S ão Paulo, Saraiva,
i 1999, p. 44.
121 José Eduardo Faria exprime a dificuldade do pensamento jur ídico em superar a dicotomia
¡ entre o jusnaturalismo tradicional e o positivismo: "Tal ceticismo, todavia , n ã o deve ser
entendido como uma desistê ncia da luta pelo reconhecimento e pela efetiva çã o dos direitos
; humanos, por se considerá - la invi á vel a priori . Ao contrá rio do otimismo idealista e das
| antinomias muitas vezes presentes nas tradicionais declara ções de direitos, o pessimismo da
raz ã o permite superar visões a meu ver algo simpl ó rias, limitadas e banalizadas dos direitos
humanos, abrindo desta maneira caminho para novas formas de luta em sua defesa . Deixan ¬
-
do se de lado as concepções jusnaturalistas tradicionais (que, ao operar por categorias trans¬
histó ricas e essencialistas, visam converter diferentes formas de poder, e hierarquia na 'ordem
natural das coisas') e as conhecidas concepções jurisdicistas (que sofrem de contradi ções
| cró nicas a serem examinadas mais à frente), os direitos humanos encarados numa perspectiva
| -
mais pol ítica ou substantiva do que jusnaturalista cl á ssica ou l ógico formal possibilitam
ações sempre incertas quanto à obten ção de resultados concretos no curto prazo, tendo em
vista sua formaliza çã o legislativa , mas potencialmente desafiadoras e efetivamente
transformadoras a m édio e longo prazo". FARIA, José Eduardo. "Democracia e Governabilidade:
os direitos humanos à luz da globaliza çã o económica". In Direito e globalização económica :
implicações e perspectivas . S ã o Paulo, Malhelros, 1998, p. 150.
UTOPIA E DIREITO
res, tem uma dose de cr í tica virulenta, como no caso de Carl Schmitt,
o que se explica pelo fato de Bloch estar se valendo de Direito Natural
e Dignidade Humana também como uma obra política, como um
ALYSSON LEANDRO MASCARO
fica nos ideais jur ídicos máscaras de uma estrutura social reificada.
Pachukanis, que dentre os juristas marxistas talvez tenha ido mais
longe na identificação do direito ao capital, percebe até mesmo na
fundamentação ideológica do direito um fundo estrutural de ligação
à forma mercantil. A Escola de Frankfurt, em outra vertente, também
enxergou no papel do direito uma das formas do exercício da domina ¬
mia e a sua eunomia ( boa lei) . É que a resson â ncia nas utopias
sociais e nas teorias do direito natural é muito diferente. Se se
quiser resumir de maneira pl ástica o essencial desta diferença,
ALYSSON LEANDRO MASCARO
122 BLOCH, Ernst. Naturrecht und menschliche W ürde. Frankfurt, Suhrkamp Vcrlag, 1985, p. 234.
UTOPIA E DIREITO
Ao contr ário dos pensadores can ó nicos do poder, Bloch dar á mais
ênfase na investigação daqueles que logo cedo se insurgiram contra o
poder e a ordem estabelecida. Remontando ao passado histórico, Bloch
utiliza-se do mito de Adão para mostrar o quanto se busca mais o peca ¬
__
adviria, posteriormente, a felicidade. Para Bloch, tal direito natural
digno dos estóicos se apresentava como igualdade inata de todos os
homens e como unidade de todos os homens, numa comunidade in ¬
nal e dos dez mandamentos. Por este caminho, diz Bloch, andarão
Tom ás de Aquino, Lutero e Calvino.
Ao contrário de urna historia can ónica dos filósofos, que enxerga¬
ria os monumentos fundamentais do pensamento cristão justamente
em tal trinca Tomás de Aquino, Lutero e Calvino, Bloch abre cami -
tru ção teó rica na razã o , mas ainda assim logrando tamb é m tocar na
questão da dignidade. E tal caminho tortuoso de uma constru ção
racionalista do direito natural, apartada de qualquer referência à na ¬
tureza , Bloch o enxerga també m em Fichte, o que neste caso conduz a
uma aventura de afastamento da moralidade e da realidade em troca,
!í
muitas vezes, do pró prio direito positivo. Tal paradoxo, para Bloch ,
também está atravessado na Luta pelo Direito de Jhering e no J’accuse
de Zola, como um fanatismo pelo direito positivo que substituiu o
fanatismo do direito natural.
Toda a evolução do pensamento jusnaturalista moderno, que Bloch
compreende sob uma abordagem bastante cr ítica, se transformar á
1 32 "Neste sentido, o filósofo Ernst Bloch chama a aten çã o, no brilhante estudo Direito Natural e
Dignidade Humana , a poss íveis conexões e influ ê ncias rec íprocas entre o direito de liberdade
de consci ê ncia religiosa e o direito natural tal qual desenvolvido por Rousseau ". SOLON, "A
Pol êmica acerca da origem dos Direitos Fundamentais: do Contrato Social à Declaraçã o
americana' , op. cit ., p. 135.
1
gem hist ó rica, produzida pelo pensamento dos juristas modernos, a ser
guardada e utilizada por Bloch para apontar a uma utopia jur ídica.
136 "Com imagina çã o e fantasia , o direito natural é reinterpretado à luz da obra bachofeniana,
das
seitas cristãs gnósticas e do romantismo de Schilling e não se surpreenda o
leitor se a mistura
de todos esses ingredientes resultar numa nova teologia pol ítica - revolucion á ria ". SOLON,
Teoria da soberania como problema da norma jur í dica e da decisão, op . c/t., p. 172 .
UTOPIA E DIREITO
cion á ria e uma segunda parte reacion á ria . Assim se demonstra o fra ¬
Este algo que pode resultar de Hegel muito melhor que a cruz do
Estado é o marxismo, cujo m é todo é haurido das fontes hegelianas .
Bloch faz em Hegel a inflexão para a superação do próprio estatalismo
hegeliano por meio do m é todo hegeliano- marxista. A rosa contra a
cruz e a espada é a utopia jurídica contra o Estado e a dominação. No
pensamento de Bloch, é Hegel a chave com a qual Marx supera, en ¬
damente mais reacion á rios. Neste ponto , Bloch distingue o seu direito
natural, da utopia da dignidade humana, daqueles que, até mesmo no
pós-guerra, retornaram a um jusnaturalismo de caráter ético e religio ¬
temporâneo. Suas investidas de direito natural são daquele tipo que Bloch
denominou de relativo, isto é, preservando a autoridade divina, de um
lado, e a do Estado , do outro . O resultado é apenas um vago
tangenciamento dos problemas sociais contemporâneos, em troca de
um caráter pastoral que teme o potencial da liberdade. O direito natu¬
ral do neo-tomismo, no século XX, se apresentará então, para Bloch,
como “ duplamente decorativo por razão da quimera de um direito na ¬
dos, também nada faz nem aponta para que sejam aumentados.
A investida de Bloch contra aquilo que denomina de “ direito na ¬
to jur ídico terá seu ponto culminante na cr ítica a Hans Kelsen e a Cari
Schmitt. Nestes dois, enxerga Bloch o cume contemporâ neo das duas
formas de dominação do capitalismo, nas suas faces liberal ou nazista.
Para Kelsen , Bloch reserva uma crítica bastante peculiar, que co ¬
meça primeiro por apontar, classicamente , para os limites do
formalismo kelseniano, mas que, de forma surpreendente, posterior ¬
mente identifica em seu pensamento uma mistura de geometria n ã o-
euclidiana, que Bloch qualifica como axiomá tica e dedutiva, com um
scotismo medieval , partindo do primado da vontade sobre o entendi ¬
~
Com a teoria de Kelsen do puro cará ter prescritivo da norma
fundamental ( e, como conseq íiê ncia, da variabilidade da
5 41 Ari Solon , tratando da confronta ção de Bloch a Kelsen, afirma : "Inicia o ataque a Kelsen com
os chavões usuais que julgamos ter refutado ao longo de nossa an á lise: a 'l ógica do dever'
n ão admite nenhuma determinaçã o emp írica; a oposi çã o abstrata entre ser e dever-ser suscita
um desinteresse pelo ser e a doutrina pura despreza a sociologia e a an á lise econó mica . H á
um ú nico ponto de sua cr ítica que, com alguma retifica çã o se concilia perfeitamente em nossa
an á lise . Após mostrar como a doutrina kelsenlana poderia ter seu ponto de surgimento no
scotismo medieval ( a afirma ção do primado da vontade sobre o entendimento fazendo derivar
todas as determinações intelectuais da vontade divina , que n ã o se prende a nenhuma l ógica
do entendimento), Bloch afirma ter o irracionalismo campo livre". SOLON, Teoria da soberania
como problema da norma jurídica e da decisão, p. 1 f >8.
UTOPIA E DIREITO
142 BLOCH, Ernst . NalurrectU und menschliche Wiirde , op. cit., p. 171.
,, i , «
I
ALYSSON LEANDRO MASCARO
s
mas o decisionismo de Schmitt é a negação do direito dos burgueses
li
mercantis em nome do capitalismo monopolista. Para isso, até mesmo o
uso schmittiano de Hobbes é amplamente distorcido,143 porque, se este
aponta para o contrato social como resolu ção da natureza, Schmitt apon¬
ta para a exceção. “A falsificaçã o desemboca em assassinato. Como dita¬
dura do crime consumado” .144
Neste sentido também aponta Celso Lafer, tratando a respeito
das razões da conexão hobbesiana de Schmitt:
Schmitt inspirou-se em Hobbes e na preocupação hobbesiana
da guerra de todos contra todos, mas as suas idéias serviram a
Hitler, que deu um sentido preciso ao que Schmitt denomi ¬
1 43 "A aprecia ção da obra de Schmitt é ainda mais desfavorável , inclusive com insultos desneces ¬
sá rios. No capitulo de seu livro 'O decisionismo de Carl Schmitt ou o anti-direito natural ',
Bloch acusa Schmitt de ter falsificado Hobbes, um autor liberal preocupado com a segurança
pessoal e a manutenção da paz para fins fascistas. N ã o seria Bloch que falsifica 5chmitt, pois
ao reivindicar para o decisionismo a construçã o liberal de Hobbes, como poderia ela culmi ¬
nar no fascismo em que pese a m á scara usada pelo seu autor durante certo tempo para
protegé- lo ? Bloch , poré m , estava convencido, ao contrá rio de n ós, que, h á muito, j á se
ocultava sob aquela m á scara um rosto fascista . (...) Pelo menos, Bloch entendeu , melhor do
que Kelsen , que Schmitt n ão era nenhum jusnaturalista ". SOLON, Teoria da soberania como
problema da norma jurídica e da decisão, p. 169.
1 44 BLOCH, Naturrechl und menschliche Wijrde, op . cit ., p . 175.
1 45 LAfER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos. Um diálogo com o pensamento de Hannah
Arendl. São Paulo, Companhia das Letras, 1988, p. 287.
CAPíTULO 8
cesa. Aponta Bloch seu conte údo como o passo referencial da utopia
que ainda n ão se cumpriu e que, pois, n ão se venceu.
guesa. Isto não quer dizer, no entanto, que n ão haja utopias quanto
aos direitos do homem e do cidadão em Marx:
A partir daqui, Marx faz cair sobre os direitos do homem uma luz
muito mais quente. Com rigor insuperável ele mostrou o seu
conte údo de classe, mas também o seu conteúdo futuro, um
conteúdo que, naquele tempo, não encontrava solo propício.149
O DIREITO EM MARX
A posição de Bloch dentro do marxismo jur ídico é surpreenden ¬
te. Bloch empunha a bandeira de um largo projeto de humanismo,
que vê no marxismo a heran ça dos mais profundos sonhos de justiça já
vislumbrados na histó ria. Isto, no entanto, não faz de Bloch um vago
humanista jurídico marxista, do tipo reformista que ainda considere e
dê relevo ao direito e às instituições burguesas.
cebido à primeira vista neste, que é o caráter utó pico da sociedade sem
Estado e sem direito e, portanto, sem dominação institucional. O pro ¬
1 50 De outro modo, Luk á cs situa-se de maneira crítica - qui çá , neste ponto, contraditória - no painel
das duas vertentes marxistas acerca do direito e da pol ítica estatal : "N ão h á, portanto, justificativa
plaus ível para que Luk ács, tendo definido como 'temporal' o Direito, afirme a ' universalidade' da
pol ítica nos termos em que o fez . [...] Conceber a pol ítica como pr ática ideol ógica universal e
n ã o enquanto dimensã o alienada da exist ê ncia humana - e o sil êncio acerca do Estado na
-
reprodução social parecem indicar á reas em que a tragédia soviética se fez mais diretamente
presente nas investiga ções ontol ógicas de Lukács". LESSA, Sérgio. "Luk ács: Direito e Pol ítica". In
Lukács e a atualidade do marxismo. São Paulo, Boitempo, 2002, pp. 120 e 121 .
UTOPIA E DIREITO
151 . .
SERRA, Francisco. Historia, política y derecho em Ernst Bloch. Madrid , Trotta, 1998, p 219
152 BLOCH, Naturrecht und menschliche Wiirde, op. cit ., p. 209.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
to, outros princí pios jurídicos que, durante a história, com este con ¬
^ Nigual
ão é sustentável que o homem seja, por nascimento , livre e
. N ão há direitos inatos, e sim que todos são adquiridos
ou t êm todavia que ser adquiridos em luta. O passo erguido
aponta apenas para algo que tem que ser adquirido; também a
avestruz caminha erguidamente para colocar, enfim , a cabeça
no buraco. N ão é sustentável, desde logo, que a propriedade
esteja entre os direitos inalienáveis.153
^
O direito natural de Bloch toma a inspiração utópica que se de¬
correu na histó ria da luta pela dignidade humana, mas rejeita vee¬
mentemente o seu conte údo capitalista - a defesa da propriedade
privada como se fosse “ natural” ao homem - e rejeita o mé todo
jusnaturalista. Apoiado em algumas distinções teó ricas,154 Bloch en ¬
xerga conceitos gnoseológicos e ontológicos que fundamentam o di¬
reito natural e se separa de todos estes.
O direito natural se legitima, tomado pelo prisma do conheci¬
mento de seus princípios, por meio ou de um conhecimento reputado
mo insiste que até mesmo os ideais utó picos são expressões de classe,
das condições histó ricas e econ ó micas, não devendo ser tomados como
utopia abstrata, revelada, apriorística ou metafísica*
ALYSSON LEANDRO MASCARO
1 56 "Os direitos humanos constituem, assim , um prius , em referê ncia a qualquer deriva çã o normativa
( Bloch ) na medida em que estabelecem os marcos do processo de liberta ção. Entretanto o
,
positivismo acaba por desvirtu á- los, vendo o direito subjetivo como faculdade atribu ída pela
norma a um sujeito por ela mesma estabelecido. Esta aberra ção, após reduzir o Direito à
norma (como o biscoito à lata ), reduz o Direito Subjetivo e o Sujeito de Direito à mesma
norma ( de tal sorte que, n ã o só confunde a lata e o biscoito, mas ainda atribui à lata o poder
de criar a boca e o apetite de quem possa com ê- lo)". LYRA FILHO, Roberto. Desordem e
Processo. Porto Alegre, Sergio Fabris, 1986, p. 309.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
sobre a impossibilidade teó rica de se conceber um ‘direito socialista’, sendo esse, mesmo, o
principal defeito da obra 'sacrilega' de Pacbukanis, A teoria geral do direito e o marxismo. Uma
de suas teses, diz Vychinski, é que, alcan çando o direito o seu maior desenvolvimento na
sociedade burguesa, a forma jur ídica começa a desaparecer no socialismo. Ora, diz Vychinski ,
essa an á lise n ã o é correta , pois na fase do Imperialismo a sociedade burguesa tende a
desconsiderar o direito e a violar o princ ípio da sua pró pria legalidade, de tal sorte que 'a
História mostra , ao contr á rio, que é no socialismo que o direito alcan ç a o mais elevado grau
de se desenvolvimento. Somente na sociedade socialista o direito adquire uma base só lida
para o seu desenvolvimento'". NAVES, M á rcio Bilharinho. Marxismo e direito. Um estudo sobre
Pachukanis. S ã o Paulo, Boitempo, 2000, p . 162 ,
159 BLOCH, Naturrecht und menschliche W ürde , op. cit . , p. 259.
160 Ibid ., p. 259 .
ALYSSON LEANDRO MASCARO
1 64 Ibid., p. 299.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
-
:r A desigualdade da propriedade nos meios de produção, e não ou ¬
tra coisa, leva, por isso, de maneira econ ómico-imanente à
destruição da solidariedade tribal, à constituição de um po¬
der pol ítico de classe. Em sua conseqiiência, o Estado é em
tã o escassa medida um corpo estranho ao capitalismo, que se
pode dizer, inclusive, que culmina nele. E de igual maneira se
cumpre também aqui uma de suas mais importantes funções
ideol ógicas : n ão ser simplesmente instrumento, e sim
mascaramento (“ Verhiillung” ) da dominação classista. O Es¬
tado se nos apresenta como poder geral, situado aparente¬
mente sobre a sociedade e cuidando de seu equil íbrio. 166
cesso, Bloch identifica raízes em Bodin e Maquiavel para dizer que sua
expressão maior é o fascismo, culminando, novamente, em Carl Schmitt,
a faceta acabada do domínio estatal sem utopia de dignidade.
1 66 Ibid., p. 304.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
entre “
arcana dominationis , que é a teoria de como há de se tratar o
povo rebelde, e arcana imperii, quer dizer, a doutrina de como, em
tempos normais, se manté m o povo pacífico, protege-se a soberania,
procuram-se alian ças, soldados e dinheiro” .167 Este conhecimento da
dominação se presta a atemorizar o povo, a colocá-lo na submissão.
Contra este saber detalhado das arcanas do poder, Bloch levanta como
horizonte utópico a n ão-dominação.
A divisa dessa utopia não-estatal, Bloch a empresta de Engels,
quando aponta que o governo sobre as pessoas será convertido em
administra çã o das coisas. “ O teor fundamental do direito natural ra ¬
mento sido resgatado, várias décadas depois de seu embate com a as¬
censão do nazismo, pelos estudantes europeus e de todo o mundo nas
revoltas do final da década de 1960 e da década de 1970.
De suas reflexões políticas, mais se destaca em Bloch o conceito
de n ão-contemporaneidade, que é central para entender o surgimento
do nazismo na Alemanha e o fracasso da luta socialista. Ao lado disso ,
Bloch é o pioneiro, sem que ele próprio tenha dado dimensão à ampli ¬
A NÂO-CONTEMPORANEIDADE
1 70 -
RAULET, Gerard. "Encerclement technocratique et d é passement pratique L'utopie concréte
comme th éorie critique". In Utopie Marxisme selon Ernst Bloch . Payot, Paris, 1976, p. 302.
-
UTOPIA E DIREITO
L Í
ill
teórico-filosófico.O conceito é apresentado muito cedo em seu pen¬
samento. Em Thomas Münzer já está explícito, bem como no Espírito
da Utopia. No entanto, na segunda parte de uma obra de coletânea
escrita à época do in ício da ascensão de Hitler, Herança desse tempo,171
do in í cio da d é cada de 1930 , é que o conceito de n ã o -
f? contemporaneidade ganha relevo e importância prática para a ação
política do marxismo.
Bloch constrói tal an álise política constatando o espanto que em
muitos ocorreu em relação à capacidade nazista de domínio e controle
das massas trabalhadoras. Ao contrário dos que n ão enxergaram, de
início, o potencial maléfico do nazismo, Bloch se lan ça politicamente à
den ú ncia filosófica de suas implicações, porque estas prosperariam. E,
mais ainda, aponta que o nazismo ganhava, do marxismo, o coração
da classe explorada.
Desvencilhado de uma confiança cega na inexorabilidade da re ¬
172 .
BLOCH, Erbschaft dieser Zeit , op cit ., p. 125.
UTOPIA E DIREITO
173 "A experi ê ncia histó rica da Repú blica de Weimar ( 1918-1933) é marcada por um sistema
pol ítico que perde sua legitimidade e capacidade de funcionamento à medida em que é
confrontado com crises profundas no tocante à moderniza çã o econ ó mica, social e cultural.
A situaçã o sócio-econ ó mica de estagna çã o do per íodo de Weimar, marcada por estas in ú me¬
ras crises, impossibilitou a exist ê ncia de uma conjuntura que permitisse a realiza ção dos
compromissos constitucionais sociais com crescimento econ ó mico. O quest íonamento da
legitimidade pol ítica da Constitui ção foi agravado, portanto, com a crise econ ómica". BERCOVICI,
Gilberto. Constituição e Estado c/e Exceção Permanente. Atualidade de Weimar . Rio de Janeiro,
Azougue, 2004, p. 21 .
174 MACHADO, Um capítulo da história da modernidade estética : debate sobre o expressionismo, op.
Cit., p. 57.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
não era entre exterior e interior, entre outros povos e os alemães, mas
era, sim, na maior parte, intr ínseca ao próprio povo alemão, pois se tra¬
tava de uma luta de classes que desmobilizava o seu conflito pela retórica
da salvação nacional. O marxismo sim, ao contrá rio do nazismo, aponta¬
va para uma concreta utopia, porque sabia que os problemas do ontem
e do hoje só se resolveriam com um novo amanhã, e não com a volta a
um ontem falsificado. No entanto, o marxismo fracassava ao apostar no
sujeito revolucionário da vanguarda de seu tempo, sendo que a grande
massa dos oprimidos não se encontrava no tempo revolucionário de van¬
guarda. O povo ainda relutava pelo misticismo da plenitude do espírito
que se transformara em miséria do ter e consumir.
Havia por isso, segundo Bloch, uma herança pequeno- burguesa,
camponesa, que não era necessariamente apenas aquela dos trabalha¬
dores das fá bricas e que poderia, e deveria, ser herdada para a revolu¬
ção. Não saber aproveitá-la foi o pecado marxista, e o nazismo, que na
—
prática era a exponenciação da sociedade tecnificada porque é a
plenitude do capitalismo monopolista -, conseguia mascarar-se e até
mesmo travestir-se com algum humanismo que não tinha.
No caso da nao-contemporaneidade, encontram-se n ítidos os ecos
dos debates sobre o expressionismo, que opuseram Bloch e Lukács.
Lukács acusava o expressionismo de decadentismo pequeno-burguês.
Bloch rechaçava a estreiteza do pensamento lukacsiano, insistindo no
fato de que a cr ítica virulenta do expressionismo auxiliava a desmontar
as estruturas da dominação capitalista de seu tempo. Não por um aca ¬
do, para Bloch , pode ser a força hegemó nica na “ tríplice alian ¬
176 MACHADO, Um capitulo da história da modernidade estética : debate sobre o expressionismo, op.
cit., p. 62.
UTOPIA E DIREITO
tituições. Tais energias represadas por in úmeros grupos das classes ex¬
ploradas são o combust ível para a utopia concreta, inclusive para uma
utopia concreta jur ídica.
r
ALYSSON LEANDRO MASCARO
A ESCATOLOGIA DA LIBERTAÇÃO
Em outra surpreendente vertente, Bloch haure energias para a
concretização do ser-ainda-n ão: a religião. Aparentemente considera¬
da ultrapassada e alijada da tá tica revolucioná ria desde o Iluminismo
no século XVIII e o socialismo no século XIX, a religião é considerada
por Bloch um dos mananciais ainda relevantes para a concretização
da utopia libertadora.
O temada religi ão é caro a Bloch desde a juventude, tendo em
vista que o seu Thomas Münzer é todo ele dedicado a uma exaltação da
moral transformadora, em oposição ao ímpeto conservador da maio¬
ria dos religiosos. Mas tal tema o acompanha até as últimas obras da
maturidade. O Ateísmo no Cristianismo , seu livro do final da década
de 1960 , é urna das expressões do quanto ainda considerava candente
a energia religiosa e moral para a revolução.
I 1 77 "Os descendentes gê meos do Iluminismo, o socialismo utó pico e o materialismo histó rico,
acreditavam que podiam discernir os contornos de uma sociedade de liberdade, solidariedade
e abund â ncia . Contudo, teó ricos como Bloch e Benjamin ( bem como Luk á cs, à sua maneira)
depressa se convenceram de que só uma infusão de pensamento messi â nico poderia resgatar a
idé ia socialista da crise do marxismo que era evidente no car á ter reformista dos partidos socia ¬
listas contempor â neos. Como Bloch observa, no marxismo, 'a economia foi negada, mas a alma
e a fé a que ela devia dar lugar, desapareceram'." WOLIN, Richard. "Reflexões sobre o messianismo
secular judaico". In Labirintos. Lisboa , Instituto Piaget, 1998, p. 85 .
UTOPIA E DIREITO
portância da religião para o ainda- não, pois que, vivendo num mundo
ainda n ão fraterno, deve-se, portanto, transcender à realidade imedi ¬
178 BLOCH, Ernst. Thomas M ünzer, Teólogo da Revolução. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro,
1973 , p . 206 .
179 "O primeiro autor marxista a mudar radicalmente o arcabou ç o teó rico, sem, no entanto,
abandonar a perspectiva marxista revolucioná ria foi Ernst Bloch . Como Engeis, Bloch distin ¬
guiu duas correntes socialmente opostas: de um lado a religi ã o teocrá tica das igrejas oficiais,
o ópio do povo, um aparato mistificador a serviço dos poderosos; do outro, o submundo, a
religi ã o subversiva e herética dos Albigenses, dos Hussitas, de Joaquim de Fiori, Tom á s
M ü nzer, Franz Von Baader, Wilhelm Weitling e Leon Tolstoy. Poré m , ao contr á rio de Engels,
Bloch recusou -se a ver a religi ão unicamente como uma 'roupagem' acobertando interesses de
-
classe; na verdade, criticou essa concepção expl í citamente, atribuindo a unicamente a Kautsky.
Em suas formas de protesto e rebeldes, a religi ão é uma das formas mais significativas de
consci ê ncia utó pica , uma das expressões mais ricas do princípio esperança" . LOWY, Michael . A
guerra dos deuses. Religião e política na América latina. Petró polis, Vozes, 2000, p. 29 .
UTOPIA E DIREITO
quanto para Garaudy, Paulo de Tarso, por meio da Epístola aos Roma ¬
1 81 GARAUDY, Roger. Deus é necessário? Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995, p. 92.
UTOPIA E DIREITO
co. A utopia nao deve ser entendida como sin ó nimo de ilusão
e fuga da realidade presente; como os estudos recentes da filo¬
sofí a e da teologia o têm relevado a utopia nasce do princípio-
esperan ça, responsável pelos modelos de aperfeiçoamento de
nossa realidade que n ão deixam o processo social se estagnar
ou se absolutizar ideologicamente mas o mant ê m em perma ¬
nente abertura para uma transforma ção cada vez mais cres¬
cente. A fé promete e mostra realizada em Cristo urna utopia
de um mundo totalmente reconciliado, como potencialização
daquilo que aqui criarmos com sentido e amor. Nosso traba ¬
182 BOFF, Leonardo, lesus Cristo Libertador. Petr ópolis, Vozes, 2001, p. 232.
183 "Para L. Boff e E. Bloch , o sujeito da escatologia utó pica e da esperan ç a histó rica é, em
primeiro lugar, o homem oprimido e humilhado, o pobre para quem a esperança utópica é a
esperança da libertaçã o dos sofrimentos e das injustiças sofridas no tempo presente, através
da ação libertadora dos homens". M ü NSTER, Arno. Ernst Bloch. Filosofia da Praxis e Utopia
Concreta. S ão Paulo, Ed . Unesp, 1993, p. 116.
ALYSSON LEANDRO MASCARO
1 CK
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