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CENTRO DE HUMANIDADES
CURSO DE GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
FORTALEZA – CEARÁ
2022
MATEUS NASCIMENTO SILVA
FORTALEZA – CEARÁ
2022
MATEUS NASCIMENTO SILVA
BANCA EXAMINADORA
____________________________________
Prof. Me. Pedro Henrique Magalhães Queiroz (Orientador)
Universidade Estadual do Ceará – UECE
____________________________________
Prof. Dr. Ruy de Carvalho Rodrigues Júnior
Universidade Estadual do Ceará – UECE
____________________________________
Prof.a. Ma. Eliana Sales Paiva
Universidade Estadual do Ceará – UECE
AGRADECIMENTOS
Minha mais sincera gratidão aos professores e professoras do curso de Filosofia que
contribuíram diretamente para minha formação, em especial, ao Prof. Ruy de Carvalho e à Prof.ª
Eliana Sales, por suas contribuições para a conclusão deste trabalho.
Gostaria de deixar registrado meus agradecimentos aos funcionários do Campus de Fátima e
aos meus colegas de graduação que compartilham comigo o amor pelo conhecimento.
Agradeço ao meu orientador Pedro Henrique Magalhães, por emprestar seu tempo e seu
conhecimento para guiar a redação deste trabalho.
Agradeço a minha amada companheira, Lorena Sierpin de Souza, pelos longos debates e
conversas que me ajudaram no decorrer da redação deste trabalho.
RESUMO
We intend to attempt to contextualize and explain Walter Benjamin’s text entitled The
Capitalism as Religion (1921), in order to find the meaning proposed by the author when he
affirms an identity of essence and appearance between the capitalist system and the form of
religion. In addition to a comparison of its elements that are similar, or a genesis of capitalism
from the ‘so-called religions’, this text has some fundamental ideas to understand this economic
and ethical system in the image of an archaic religion. The central problem of the text lies in
the statement: Im Kapitalismus ist eine Religion zu erblicken. That is, the different categories
of capitalist religion and economy would be sharing phenomenal characteristics and essential
characteristics, they would be the same (and new) social phenomenon, although there are
ruptures and continuities in this concept of religion that deserve our attention.
1 INTRODUÇÃO …………………………………........................................................ 9
2 O JOVEM BENJAMIN DE 1921 ……………….........……...…............................... 12
3 O QUE É A RELIGIÃO CAPITALISTA? ........……....…....................................... 20
4 O CULTO UTILITARISTA DO CAPITALISTA, O UTILITARISMO
DAS VIRTUDES TEOLÓGICAS ............................................................................ 29
5 O CARÁTER TOTALIZANTE DO CAPITALISMO E SUA CELEBRAÇÃO
INFINDÁVEL ….…………..................................................….................................. 38
6 OCULTAÇÃO E CULPABILIZAÇÃO, A DISTINÇÃO FUNDAMENTAL DA
NOVA RELIGIÃO DA MODERNIDADE …........................................................... 50
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS …….…......................................................................... 63
REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 66
9
1 INTRODUÇÃO
1
Walter Benjamin escreveu o texto por volta de 1921, mas foi somente em 1985 que O Capitalismo Como
Religião foi publicado na Gesammelte Schriften VI (Obras Escolhidas VI, Suhrkamp), organizada por Rolf
Tiedemann e Hermann Schweppenhäuser.
2
Título original presente no sexto volume das Obras Escolhidas. Cf. Gesammelte Schriften VI. Org. Rolf
Tiedemann e Hermann Schweppenhäuser. Frankfurt: Suhrkamp, 1985, p.100-103.
3
Conselho fiscal (título original: Steuerberatung) é o primeiro dos textos encontrados junto das folhas de O
Capitalismo como Religião nos arquivos originais de Benjamin e foi publicado primeiro em 1972 no quarto
volume das Obras Escolhidas. Cf. Gesammelte Schriften IV. Org. Tillman Rexroth. Frankfurt: Suhrkamp,
1972, p.139.
4
Dinheiro e Clima é o texto intermediário, que liga o Conselho Fiscal com O Capitalismo como Religião,
publicado nas notas de Conselho Fiscal no quarto volume das Obras Escolhidas. Gesammelte Schriften IV.
Org. Tillman Rexroth. Frankfurt: Suhrkamp, 1972, p. 941. Houve uma tradução feita por Roberto Carlos
Conceição Porto, publicada no Cadernos Walter Benjamin. Cf. Cadernos Walter Benjamin. n. 25. 2020.
Disponível em: https://www.gewebe.com.br/cadernos_vol25.htm. O título original Geld und Wetter (zur
Lesandendio-Kritik) indica que o fragmento de texto é uma crítica ao romance de Paul Scheerbart Lesabendio,
publicado em 1913 e que se trata de uma fábula cósmica ecológica.
5
BENJAMIN, Walter. O capitalismo como religião. Org. Michael Löwy. Trad. Nélio Schneider e Renato
Ribeiro Pompeu.São Paulo: Boitempo Editorial, 2013a.
6
Original: “Im Kapitalismus ist eine Religion zuerblicken”. BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften VI.
Org. Rolf Tiedemann e Hermann Schweppenhäuser. Frankfurt: Suhrkamp, 1985, p. 100.
7
LÖWY, Michael. Revolução é o Freio de Emergência: Ensaio sobre Walter Benjamin. Trad. Paolo
Colosso. São Paulo, Autonomia Literária, 2019. p. 11; LÖWY, Michael. A Jaula de Aço: Max Weber e o
marxismo weberiano. Trad. Mariana Echalar. São Paulo. Boitempo Editorial, 2014.
10
8
BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften VI. Org. Rolf Tiedemann e Hermann Schweppenhäuser,
Frankfurt, Suhrkamp, 1985.
11
condição, bem como de evitar um futuro catastrófico, uma forma de desvio pelo passado para
pensar um futuro diferente do presente9.
Michael Löwy afirma que Benjamin se apropria da expressão ‘capitalismo como
religião’, usada anteriormente por Ernst Bloch, embora o uso que Bloch faça dessa expressão
não nos interesse diretamente para a realização dessa pesquisa, Benjamin mantinha um diálogo
constante com Bloch e teve influência do sociólogo e amigo pessoal em seu pensamento,
abrindo caminhos que Benjamin usa para pensar uma ‘sociologia da religião capitalista’
propriamente sua: radicalizando noções de Max Weber, presentes na Ética protestante e o
espirito do capitalismo e, também, outras influências políticas e literárias que podem ter
influenciado seu pensamento, como exemplo do teórico anarquista Gustav Landauer, junto a
outros autores presentes nas referências bibliográficas do texto; para Benjamin, não apenas o
capitalismo surge dos valores morais cultivados pelo protestantismo, como também, tornou-se
uma religião, em suas palavras: “[...] uma religião puramente de culto, desprovido de dogmas”
(BENJAMIN, 2013a. p. 23). Nesse sentido, afastando-se da interpretação de Weber e de Bloch.
Primeiro, faremos uma breve exposição de alguns momentos da vida de Benjamin,
conforme narrado por Bernd Witte, para situarmos o fragmento no contexto da vida e da obra
de Benjamin. Depois, faremos uma análise de cada parte do texto, tentando correlacionar com
comentários feitos por Löwy, Agamben e Kurz; Kehl e Gagnebin compõem um reforço teórico
para uma compreensão mais ampla do fragmento. Começando do título, iremos analisar os
quatro traços constituintes do conceito central de religião capitalista, a chamada “estrutura da
religião capitalista” (BENJAMIN, 2013a. p. 21); o conceito principal é o de culto, que dele
derivam o caráter ininterrupto, o culpabilizador e o ocultado dessa religião. Além disso,
recorremos a alguns conceitos paralelos como os de ‘sacrifício’, ‘fé/crédito’, ‘profanação’ que,
de certa forma, mesmo não estando presentes no texto, são indispensáveis para entendermos o
sentido do fragmento de Benjamin. A análise das referências bibliográficas também foi
indispensável; entender com quem e para quem Benjamin fala pode ser a chave para a
compreensão mais ampla do debate que o texto propõe. Entretanto, só recorremos à análise
dessas referências, na medida em que são necessárias para alguma explicação breve de alguma
das partes da ‘estrutura religiosa do capitalismo’. Outras questões presentes no fragmento
poderão ser analisadas e contextualizadas em trabalhos futuros.
9
Cf. O prefácio à edição brasileira do livro Capitalismo Como Religião (2013), feito por Löwy. LÖWY,
Michael. Walter Benjamin, crítico da civilização. Trad. Renato Pompeu. In. BENJAMIN, Walter. O
capitalismo como religião. 2013a. p. 8.
12
[...] O terminus a quo [data inicial] da redação está assegurado pelas referências
bibliográficas na primeira parte, na qual o livro mais recente citado é o de Unger, de
1921; o terminus ad quem (data final) pode ser determinado com o auxílio dos dados
na lista de leituras de Benjamin: entre os autores que com certeza não foram acolhidos
nela depois de meados de 1921 estão Sorel, Landauer e Adam Müller. Como o livro
de Müller foi citado na segunda parte do texto, pode-se dar como assegurado que este
foi finalizado em meados de 1921 (LÖWY, 2013a. p. 21).
10
BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften IV. org. Tollman Rexroth, Frankfurt, Suhrkamp, 1972, p. 941;
Gesammelte Schriften VI, org. Rolf Tiedemann e Hermann Schweppenhäuser, Frankfurt, Suhrkamp, 1985,
p. 100-3, p. 890-6.
13
Na biografia de Benjamin escrita por Bernd Witte (1942 –) o período que marca a
redação do fragmento é denominado pelo biografo de Crítica de arte no espírito do romantismo
(entre 1917 e 1923). Nesse sentido, entendemos que o fragmento faz parte do conjunto das
obras críticas de juventude, influenciado, num contexto geral, pelos estudos sobre o romantismo
alemão. O Capitalismo como Religião foi escrito em Berlim na Alemanha, num contexto em
que Benjamin estava envolvido no projeto de edição da revista “Angelus Novus”, conforme
mostrado por Bernd Witte, e “[...] se ocupava exclusivamente de filosofia”11, justamente,
porque estava preocupado em garantir uma renda fixa para sustentar sua esposa e filho, como
diz, angustiado, numa carta a Gershom Scholem de dezembro de 1920,
[...] não posso me voltar para as coisas judaicas com todas as minhas forças antes de
extrair dos meus anos de aprendizado europeus aquilo que possa [garantir] um futuro
tranquilo, de sustento para minha família e coisas semelhantes (ibidem).
Era uma das preocupações que o afligiam na época, já que havia rompido relações
com seu pai em 1920, e, consequentemente não recebia mais apoio financeiro da família
(consequências econômicas inflacionárias do fim da Primeira Guerra Mundial em 1918), como
afirma Bernd Witte, as cartas desses meses “[...] falam de confrontos constantes que levaram a
uma “desavença total” com os pais e que também não terminaram quando Benjamin, no outono,
mudou-se para um apartamento próprio. (ibidem). Entretanto esse não era o único problema de
Benjamin na época, de acordo com o biografo, em janeiro de 1917, Benjamin havia recebido
mais uma ordem de alistamento militar e, para escapar da guerra, fingia ‘ataques de ciática’,
que simulava sob orientação de Dora Pollak; Benjamin e Dora se casam em abril e algum tempo
depois ele recebe o atestado médico que irá lhe livrar da Primeira Grande Guerra. Em julho
deste mesmo ano, Benjamin viaja para Suíça, onde se via aliviado por ter se livrado em
segurança da catástrofe pessoal e histórica da guerra e poderia finalmente se concentrar em
buscar um tema para sua tese de doutorado. Em abril de 1918, nasce seu filho Stefan, na cidade
de Berna na Suíça, cidade que Benjamin viveu por três anos antes de retornar à Berlim em 1920.
Ainda em 1918, Benjamin estava se ocupando na filosofia de Kant, numa primeira tentativa de
encontrar um tema para sua tese, então escreve o ensaio Sobre o programa da filosofia futura.
Como afirma Bernd Witte:
Em seu ensaio, que ele escreveu para clarificar as suas ideias e para servir de base
para a discussão com os seus amigos, Benjamin trata, na verdade, de superar a
limitação do conceito de experiência ao domínio das ciências matemáticas da
natureza, tal como supunha a filosofia acadêmica neokantiana. Por meio de uma
‘aniquilação’ da redução que Kant e os seus seguidores fizeram da experiência à
11
WITTE, Bernd. Walter Benjamin: uma biografia. Trad. Romero Freitas. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2017. p. 40.
14
Como explica Michael Löwy, “O romantismo não é apenas uma escola literária do
século XIX ou uma reação tradicionalista contra a Revolução Francesa” (LÖWY, 2013a, p. 8).
Seria antes disso uma ‘forma de sensibilidade’, uma ‘visão de mundo’ que se estende até os
dias atuais e que em Benjamin ganha contornos subversivos. Essa sensibilidade romântica
assume, no geral, ora “[...] formas regressivas, reacionárias restauradoras, que visam um retorno
ao passado” (LÖWY, 2013a, p. 8), ora, assume formas revolucionárias, como é o caso de Walter
Benjamin, “[...] formas revolucionárias para os quais o objetivo não é uma volta para trás, mas
um desvio pelo passado comunitário para rumar ao futuro utópico” (ibidem). De acordo com
Bernd Witte, em sua tese de doutoramento, A Crítica de Arte no Romantismo Alemão, Benjamin
afirma que se aproximou do “centro do romantismo, o messianismo” (WITTE, 2017, p. 38),
apontando para uma questão frequente nas obras do filósofo, o messianismo como paradigma
histórico e teológico. Na sua tese, o conceito de ‘crítica’ aparece como o meio pelo qual o crítico
‘revela’ sua dependência à “Ideia” de arte. Para Witte, “[...] O vocabulário teológico dessas
definições mostra que aqui, como na filosofia da linguagem e na reinterpretação da crítica do
conhecimento kantiana, visa-se a um ponto máximo” (ibidem), a saber, o problema da
‘absolutização da obra’ na Ideia’, apontando para um fundamento mítico na linguagem.
12
Trecho de uma carta de Benjamin reproduzida por Witte presente em Briefe [Cartas] Hg. Von Theodor W.
Adorno und Gershom Scholem. Frankfurt, 1966. p. 203.
16
contrapõe a vida determinada pela culpa e pelo destino, que essa culpa impõe, ou seja, a mera
vida e a sobrevivência natural à ‘vida verdadeira’ que implica ‘responsabilidade e
transcendência’ com essas escolhas. Para Jeane-Marie Gagnebin esses dois textos de Benjamin
estabelecem o problema do “[...] domínio do direito (das Recht) como sendo o sucessor da
ordem do destino e do mito, embora a instituição das normas jurídicas seja geralmente
concebida como um meio privilegiado de combater a arbitrariedade do mito” (ibidem).
Essa relação de sucessão (poderíamos dizer também continuidade e ruptura) entre
‘mito’ e ‘direito’ também está presente no fragmento O Capitalismo como Religião, na medida
em que (1) traz uma referência ao livro de Georges Sorel, Reflexões sobre a violência,
Capitalismo e direito. O caráter pagão do direito (BENJAMIN, 2013a, p. 23), e sugere (2) uma
investigação histórica que estabeleça as relações que o ‘dinheiro’ e o ‘mito’ desenvolveram
“[...] até ter extraído do cristianismo a quantidade suficiente de elementos míticos para
constituir seu próprio mito” (BENJAMIN, 2013a, p. 24). Para Benjamin essa relação de
sucessão não salva o direito de sua herança mítica, nas palavras de Gagnebin:
Essa ilusão repousa, diz Benjamin, na confusão funesta entre ‘o reino da justiça’ e a
‘ordem do direito’, esquecendo-se de que a justiça cabe somente a Deus enquanto o
direito é instauração humana de poder (Macht) e, portanto, sempre manifestação de
violência. Podemos entender essa relação de continuidade entre a ordem do mito e do
destino, de um lado, e a ordem do direito, de outro, pela relação análoga que mito e
direito entretêm com a culpa e com o castigo. Ambos precisam estabelecer primeiro
uma culpa, a transgressão de uma lei, seja ela dita natural ou jurídica, para poder
depois castigar, ou seja, para manifestar a força de seu poder. Em vez de pensar que
o direito teria como tarefa punir uma culpa perpetrada por um infeliz indivíduo,
Benjamin defende a ideia de que o direito cria a culpa para poder puni-la e manifestar
assim sua própria força (Gewalt). [...] ‘O direito não condena ao castigo, mas à culpa’.
A indiferença do direito em relação às circunstâncias da transgressão da lei não seria
índice de imparcialidade de uma pretensa justiça, mas somente assinalaria a violência
inapelável de seu poder, [...] para Benjamin, a instauração do direito enquanto esfera
de poder não nos redime do mito, mas, pelo contrário, perpetua sua violência sob o
manto de um acordo entre os homens. Não instaura a justiça, mas dissimula e, ao
mesmo tempo, consagra a gênese violenta do poder estabelecido. GAGNEBIN, 2020,
p. 1942 – 1943.
Essas pistas que Gagnebin aponta sobre quais as possíveis referências fundamentais
do fragmento, ajuda-nos a entender, mínima e inicialmente, qual o ponto de partida que
Benjamin tomou para pensar essa questão da relação de identidade entre o fenômeno do
religioso, entendido como doutrina e pratica e, inversamente, o capitalismo, entendido como
fenômeno econômico e social. Além disso, outra possível influência para o fragmento está
exposta nele próprio, seriam as notas presentes, no decorrer do texto, sobre alguns autores
como: Georges Sorel, Erich Unger, Bruno Archibald Fuchs, Ernst Troelstsch, Gustav Landauer,
Adam Müller, autores fundamentais juntamente com Georg Simmel, Bloch e indiretamente o
Thomas Munzer de Bloch. Não é possível delimitar com exatidão quais seriam todas as
referências possíveis que fazem parte do conjunto, seria necessário um trabalho futuro mais
elaborado sobre essa base teórica. Entretanto, nossa escolha metodológica de delimitar a
13
Conferir a nota de Jeanne Marie Gagnebin (1999) sobre Norbert Bolz e Uwe Steiner no artigo referido.
19
pesquisa em uma breve análise sobre situações da vida pessoal, histórica e teórica de Benjamin,
que formam o plano de fundo da redação do texto, e a análise conceitual do texto propriamente
dito, parece-nos suficiente para compreender, mesmo que de forma introdutória, o peso da
crítica benjaminiana ao capitalismo em sua formatação religiosa. De acordo com Jeanne Marie
Gagnebin, O Capitalismo como Religião, por fazer parte dos escritos de juventude do filosofo
alemão, ainda não havia sido influenciado diretamente pelo pensamento de Karl Marx,
entretanto, já era influenciado pelo marxismo de forma indireta como se verifica pelas
referencias do fragmento. É somente, a partir da leitura do livro História e consciência de classe
de Georg Lukács em 1923, através do contato com Asja Lacis e Bertolt Brecht, que Benjamin
vai conhecer o marxismo mais a fundo. Em 1921, Benjamin recebia impulsos variados de todas
as direções, como afirma Gagnebin, “[...] oriundos tanto do romantismo alemão quanto do
messianismo judaico e do marxismo libertário”14.
14
GAGNEBIN, Jeanne Marie; BENJAMIN, 2013a. Texto de contracapa do Capitalismo como Religião.
20
15
“Negócio” entendido no sentido de empreendimento comercial.
21
essencialmente como uma religião, aos moldes do cristianismo, ou, de outra maneira, mais
particular, o modo pelo qual a metafisica do dinheiro se expressaria na economia e na condição
de vida humana. Benjamin sugere que adotemos16 essa ‘visão de mundo’17 para podermos
enxergar, junto dele, como funcionaria a ‘adoração’ capitalista, ou como funcionaria a
‘estrutura religiosa do capitalismo’. É uma denúncia sutil em forma de sugestão, mas que
carregada um teor crítico particular ao pensamento de Benjamin, sob a influência de um
“romantismo” que se opõe “ao espírito quantificador do universo burguês” através da potência
da “energia melancólica do desespero” (LÖWY; BENJAMIN, 2013a. p. 8), do “messianismo
judaico” e um certo “marxismo libertário” (GAGNEBIN; BENJAMIN, 2013a).
Löwy afirma que: “O título do fragmento é diretamente emprestado do livro de
Enrst Bloch, Thomas Münzer, teólogo da revolução, publicado em 1921” (LÖWY, 2019, p.
11).18 Essa informação trazida pelo comentador é importante para entendermos o que está sendo
discutido no contexto de O Capitalismo como Religião. O livro Thomas Münzer trata,
justamente, de um comentário crítico acerca da obra de Max Weber, especificamente da Ética
protestante. O que interessa ressaltar é que Benjamin está dialogando diretamente com uma
ideia criada por Bloch, e, consequentemente, também, dialogando com as ideias de Max Weber,
embora não sejam apenas esses os diálogos que compõe a ideia central do texto.
“O capitalismo deve ser visto como uma religião” (BENJAMIN, 2013a, p.21), é
assim que Michael Löwy traduz o início do fragmento, seria a partir de uma tomada de posição
que se poderá definir os termos para tratar o capitalismo dessa maneira especifica, embora,
também, possamos entender esse início como uma possível sugestão: a palavra ‘deve’ aparece
no sentido de ‘dever ser’, como uma tomada de decisão ainda teórica ou imagética, indicando
conforme às outras traduções, uma certa ‘possibilidade’ de entender ou ‘enxergar’ o capitalismo
como uma religião. Apesar de Benjamin estar escrevendo somente para ele mesmo, nota-se que
16
Im Kapitalismus ist eine Religion zuerblicken (BENJAMIN, 1985). Poderíamos entender que Benjamin está
fazendo uma sugestão, indicando que é possível identificar semelhanças, entretanto, “ist eine” não parece
indicar uma relação de comparação, mas uma relação de equiparação: “No Capitalismo é visível uma religião”
ou “Uma religião pode ser vista no capitalismo”, tradução nossa. Já na tradução de João Barrento está: “O
capitalismo apresenta-se como uma religião”. BENJAMIN, Walter. O Anjo da História. Org. Trad. João
Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013b.
17
Como vemos nas possibilidades de tradução dessa frase, o que predomina é o sentido do verbo “zu erblicken”,
Benjamin se refere ao ato de enxergar, indicando que existe algo no capitalismo que não é meramente
comparativo a uma religião, mas que, visivelmente, estariam relacionados no mesmo fenômeno.
18
“Na conclusão desse capítulo dedicado a Calvino, Bloch denunciava, na doutrina do reformador de Genebra,
uma manipulação que vai “destruir completamente” o cristianismo e introduzir “elementos de uma nova
‘religião’, aquela do capitalismo erigido ao status de religião (Kapitalismus als Religion) e que se tornou a
Igreja do Deus da Avareza”. Nas notas do autor: “E. Bloch. Thomas munzer, théologien de la revolutión. Paris:
UGE, “10/18”, 1964, trad. De Maurice Gandillac, p. 182-183. Na segunda edição, Bloch substituiu “Igreja de
Satã” por “Igreja do Deus da Avareza”, a “Église de Mammon”. Cf. Thomas Munzer, teólogo da revolução.
São Paulo: Tempo Brasileiro, 1973.
22
ele defende seriamente essa tese, postura que nós também estamos tentando tomar para
minimamente compreender sua intuição. É uma proposta de crítica ao capitalismo a partir de
uma linguagem provinda da sociologia da religião, entrelaçando termos sociológicos e
econômicos ao linguajar da teologia.
Robert Kurz, no livro Dinheiro sem valor, esboça um comentário crítico
interessante a respeito do fragmento benjaminiano. O intérprete está interessado no texto O
Capitalismo como religião, na medida em que pode contribuir para o “[...] debate sobre o
carácter do dinheiro moderno e da sua crise”19, ele diz:
Ainda que Kurz faça uma interpretação do texto O Capitalismo como Religião, sua
análise exige demais do jovem Benjamin de 1921, que ainda não tinha se tornado marxista, e
que entendia superficialmente, através de outros autores, o que era a teoria de Marx, colocando
o texto dentro de um panorama crítico marxista-esotérico, ao lado de Rosa Luxemburgo, Georg
Lukács e Theodor W. Adorno. Para Kurz, ao contrário do ‘método positivista de elaboração
teórica’, comum no que ele chama de ‘Nova Leitura de Marx’, na qual “[...] os problemas da
ruptura categorial histórica entre as sociedades pré-modernas e o capitalismo, bem como da
verdadeira gênese do dinheiro – sacral na sua origem –, perderam-se” (ibidem) na disputa entre
a ortodoxia marxista e a nova leitura de Marx, e a “[...] remissão para um nexo entre
‘capitalismo e religião’, pelo contrário, procuraria tornar visível a irracionalidade interna e o
caráter místico-real ou metafisico-real da relação social supostamente arqui-racionalista”
(KURZ, 2020) do capitalismo.
Kurz faz uma interpretação literal do fragmento benjaminiano, colocando o
capitalismo como algo diverso de uma religião por suas diferenças históricas-conceituais, como
o título póstumo sugere com o termo als (analogia), e, portanto, se distanciando da proposta de
Benjamin de pensar a ‘identidade de essência’ entre as categorias; contudo Robert Kurz não
nega completamente a intuição presente no texto (e é isso que nos interessa com sua
interpretação), e a utiliza, dentro desse recorte teórico que traz, como ferramenta para
compreender a crise do valor na modernidade (ou pós-modernidade). Sua tese é a de que
19
KURZ, Robert. O sacrifício e o regresso perverso do arcaico. In: Dinheiro sem valor (2012). Disponível em:
http://www.obeco-online.org/rkurz408.htm. Acesso em: 21/02/2020.
23
20
Ora, Benjamin se refere às diversas características religiosas do fetiche do capital (que não designa deste
modo). Kurz não ignora a informação que Benjamin ainda não tinha maior contato com a obra de Karl Marx
em 1921, mas supõe que exista uma relação de semelhança entre a ‘crítica da religião capitalista’ de Benjamin
e o ‘fetichismo da mercadoria’ da Crítica da Economia-Política de Marx.
21
‘Religião’, de acordo com o verbete do Dicionário de Filosofia de Nicola Abbagnano, pode significar tanto a
“crença na garantia sobrenatural de salvação”, quanto as “técnicas destinadas a obter e conservar essa garantia”,
uma certa ambiguidade que remete a sua etimologia. “Etimologicamente, essa palavra significa provavelmente
‘Obrigação’, mas, segundo Cícero, derivaria de relegere: “Aqueles que que cumpriam cuidadosamente todos
os atos do culto divino e, por assim dizer, os reliam atentamente foram chamados de religiosos – de relegere
[...] Para Lactâncio e S. Agostinho, porém, essa palavra deriva de religare”. Essas duas ideias de religião são
classificadas de acordo com o problema fundamental que correspondem: “I. Com base no problema da origem
da religião, que na realidade é o problema do tipo de validade da religião; II. Com base no problema da função
atribuída à religião, ou seja, o caráter específico da garantia que ela oferece à salvação do homem”. Em resumo:
os problemas da origem e validade da religião dizem respeito a três principais soluções, 1) da origem divina,
2) da origem política e 3) da origem humana da religião; e os problemas da função especifica da religião dizem
respeito a dois principais problemas, 1) o problema da garantia de salvação (através da libertação, da verdade
e/ou da moralidade) e 2) do “ponto de vista da função exercida pela religião na sociedade ou na economia geral
da vida humana”. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bossi.5. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2007. p. 846 – 852. Walter Benjamin parece romper com as definições tradicionais de religião,
assumindo um conceito de religião que, de certa forma, abrange sua ambiguidade.
24
Essas ideias, de sacrifício, sagrado e profano, serão indispensáveis para forjar nossa
análise do texto de Benjamin, retornaremos a elas mais adiante. Por enquanto, já sabemos que
a tese da secularização não é suficiente para Benjamin, sua intuição filosófica é mais radical,
colocando o capitalismo no mesmo patamar que outras religiões. Entretanto, Kurz argumenta
que, na passagem na qual Benjamin afirma que sua tese sobre a religião capitalista o “levaria
ainda hoje a desviar para uma polêmica generalizada e desmedida”, da qual não teria “como
puxar a rede dentro da qual nos encontramos” e que somente “mais tarde, porém, teremos uma
visão geral disso” (BENJAMIN, 2013a, p. 21), o próprio Benjamin assumiria que sua ideia
seria prematura historicamente:
[...] Apenas podemos conjecturar o que Benjamin quer dizer aqui com o “descaminho
de uma polémica universal desmedida”. Como decorre das duas frases subsequentes,
esta observação só pode realmente referir-se às condições históricas do seu tempo
(1921). Benjamin devia ter a noção de que o desenvolvimento ou mesmo a “prova”
da sua ideia não podia ser mediável com as condições de desenvolvimento e
consciência então existentes, ou seja, que apesar do eventual conteúdo de verdade da
teoria e da prática da crítica social [...], ele não poderia ter sido implementado após a
I Guerra Mundial: “Não podemos puxar a rede.” Por isso, a ideia continua a ser uma
22
AGAMBEN, Giorgio. Benjamin e o capitalismo. Trad. Selvino José Assmann. Blog da Boitempo, 2013a.
Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2013/08/05/benjamin-e-o-capitalismo. Acesso em: 01 de
fevereiro de 2022.
27
Contrastando com essa interpretação de Kurz, Michael Löwy vê de outro modo, ele
diz na Revolução é o freio de emergência: “[...] Curioso argumento! Como esta demonstração
o deixaria preso dentro da teia capitalista? De fato, o ‘ponto’ não será abordado ‘mais adiante’,
mas logo em seguida, sob a forma de uma demonstração, correta e exata, da natureza religiosa
do capitalismo” (LÖWY, 2019, p. 13); e no Jaula de aço coloca como “[...] demonstração,
segundo a boa praxe, da estrutura religiosa do capitalismo, a partir de três traços significativos”
(LÖWY, 2014, p. 98). Löwy elogia a forma que Benjamin expõe a estrutura da religiosidade
capitalista, “uma demonstração, correta e exata, da natureza religiosa do capitalismo”, enquanto
23
na segunda adota uma interpretação mais branda, mas, ainda carregada de otimismo . Em
resumo: Löwy toma a estrutura textual do fragmento para justificar sua interpretação,
diferentemente de Kurz que interpreta literalmente a passagem e busca justificá-la
historicamente, apelando pro “messianismo” de Benjamin. Entretanto, observamos que ambos
concordam na tese da atualidade do fragmento e na verdade da ‘intuição’ benjaminiana.
Outra interpretação para essa passagem do fragmento seria uma referência direta a
Max Weber, quando ele usa uma linguagem parecida com a utilizada por Benjamin para se
referir à polêmica tese da origem religiosa do capitalismo –, esse desenvolvimento histórico
que perpassa a ética protestante e a ética do ‘dever profissional’ capitalista:
23
Adotamos as duas versões do mesmo texto para podermos enxergar as mudanças textuais que podem contribuir
para o entendimento do Capitalismo como Religião. Considerando a diferença no ano das publicações, o Jaula
de aço de 2014 e o Revolução é o freio de emergência de 2019, podemos observar certa maturação da
interpretação de Löwy. O mesmo critério foi utilizado para a escolha de utilizar comentadores com visões
distintas sobre as mesmas passagens do texto de Benjamin.
28
[...] O capitalismo tem traços cultuais, o que leva a identificá-lo como religião. Mas
se se trata, no caso, como já demonstrámos, de uma mera analogia, em que consiste
está realmente e em que se distingue o capitalismo das formações pré-modernas,
agrárias e constituídas de forma religiosa? A referência à diferença entre a constituição
transcendente (relação com Deus) e a constituição transcendental não deixa de estar
correcta, mas ainda é demasiado abstracta; a referência às representações e relações
de obrigação pessoais por contraposição ao movimento em si mesmo objectivado da
“riqueza abstracta” também está correcta, mas permanece sobretudo fenomenológica.
O que é mais precisamente, então, aquilo que condiciona tanto a continuidade como
a ruptura? (KURZ, 2012)
24
“Benjamin não cita mais Weber, mas, na verdade, os três pontos se nutrem das ideias e dos argumentos do
sociólogo, conferindo a eles uma amplitude nova, infinitamente mais crítica, mais radical – social e
politicamente, mas também do ponto de vista filosófico (teológico?) – e perfeitamente antagônico à tese
weberiana da secularização” (LÖWY, 2019, p. 13-14)
29
25
Aparentemente, Kurz se refere ao sentido de ‘fenômeno’ como ‘pura aparência’, entendendo que a exposição
da ‘concretude’ da ‘estrutura da religião capitalista’ é falaciosa, ou não diz respeito aos fatos históricos reais,
uma má interpretação de Benjamin sobre o conceito de religião e capitalismo. Entretanto, o sentido de
‘fenômeno’ que Benjamin se refere no texto parece mais relacionado ao sentido pós-kantiano do termo,
referindo-se ao que se pode conhecer em termos de epistemologia, ou a um sentido pós-husserliano de
‘fenômeno’ como ‘essência’ em si mesma, aproximando-se mais de uma ‘exposição fenomenológica’ ou uma
‘investigação fenomenológica’ do que uma simples comparação de fenômenos distintos como propõe Kurz.
“[...] o adjetivo ‘fenomenológico’ qualifica a manifestação do objeto [fenomênico] em sua ‘essência’, bem
como a busca que possibilita essa manifestação” (ABBAGNANO, 2007, p, 436-437). Verbetes: Fenomênico,
Fenomenológico; Fenômeno. Recorte nosso.
31
26
De acordo com o Dicionário de Filosofia de Nicola Abbagnano, o termo “utilitarismo” denota a relação de
identificação entre o “bom” e o “útil” e remonta à Epicuro, embora “[...] do ponto de vista histórico, o
Utilitarismo é uma corrente do pensamento ético, político e econômico inglês dos séculos XVIII e XIX.A ideia
de ‘útil’ é uma categoria fundamental do ‘utilitarismo’ – ‘útil’ significa tanto ‘o que é meio ou instrumento
para um fim qualquer [...] é um caráter das coisas’ quanto ‘o que serve à conservação do homem ou, em geral,
satisfaz às suas necessidades ou atende aos seus interesses’ . Historicamente se observa uma inter-relação entre
o que é considerado ‘racional’ pela história da filosofia e o que é ‘útil’ para a razão e para o ‘bem’ do homem,
estabelecendo o ‘útil’ como doutrina moral (utilitarismo) e como conceito fundamental da economia política.
Desse entendimento sobre a doutrina utilitarista se segue a tradição do liberalismo moderno – Jeremy Bentham,
assim como John Stuart Mill, James Mill, e em certa medida influenciados pelo utilitarismo, Thomas Malthus
e David Ricardo”. (ABBAGNANO, 2007, p. 985 – 987).
27
Max Weber, ao falar de Benjamin Franklin como uma figura que representaria o “espirito do capitalismo”,
reconheceu o utilitarismo como uma ética predominante no meio capitalista, mais especificamente à “utilidade
da virtude”, a utilidade por exemplo da honestidade, pontualidade, transparência, etc. – “[...] necessariamente
há de concluir que essas, como todas as virtudes aliás, só são virtudes para Franklin na medida em que forem,
in concreto, úteis ao indivíduo, e basta o expediente da simples aparência, desde que preste o mesmo serviço:
uma coerência efetivamente inescapável para o utilitarismo estrito.” [O que implica] “ao mesmo tempo uma
gama de sensações que tocam de perto certas representações religiosas.” (WEBER, 2004, p. 44-46).
28
Entendemos por secularização o processo histórico-religioso da rejeição da magia como forma de salvação –
para Weber a secularização é o processo de “desencantamento do mundo”, e ganhou seus contornos mais
radicais na “ascese intramundana” da fé protestante (WEBER, 2004, p, 96; 106; 133; 135).
32
social não é carente de normas para suas práticas nem da crença em sua eficácia e no seu ‘mito
de origem’.
Löwy, dando continuidade à sua interpretação da passagem, argumenta sobre essa
questão e faz referência a uma nota dentro do fragmento benjaminiano: “Benjamin, um pouco
em contradição com seu argumento da Reforma e o cristianismo, compara essa religião
capitalista com o paganismo originário, este também ‘imediatamente prático’ e sem
preocupações ‘transcendentes’” (LÖWY, 2019, p. 14). Essa passagem de O capitalismo como
religião está depois da demonstração da estrutura religiosa do capitalismo na passagem
denominada ‘referências bibliográficas’ do fragmento. Nesse ponto, Benjamin faz uma
comparação entre as cédulas bancárias de diversos Estados e as ‘imagens sagradas’ de diversas
religiões, o mesmo espírito divino que se aloja nas imagens santas, também, teria o mesmo
efeito do “espírito que se expressa nos ornamentos das cédulas bancárias [...] [o] espirito do
capitalismo” (BENJAMIN, 2013a, p. 23).
Imediatamente, após esse exemplo, Benjamin cita uma parte do livro de 1906 do
teórico francês Georges Sorel, Reflexões sobre a violência, especificamente Capitalismo e
Direito. O caráter pagão do dinheiro. O livro é uma tentativa de Sorel retomar os conceitos de
‘violência’ e ‘mito’ para uma prática revolucionária. Benjamin não entra profundamente nessa
temática, por razões desconhecidas, mas a presença dessa referência mostra que, assim como
Sorel, Benjamin está interessado na subversão de conceitos ambíguos (como violência e culpa)
para forma da crítica revolucionária. O que nós poderíamos entender, com a citação a Sorel, é
talvez o que Jeanne Marie Gagnebin anunciou sobre os ensaios Destino e Caráter e Para uma
crítica da violência, em seu artigo de 2020, Mito, Direito e Justiça em Walter Benjamin: para
Benjamin haveria uma relação de continuidade entre o conceito de ‘mito’ e o conceito de
‘Direito’, enquanto no ‘mito’ opera a ‘culpa’, no ‘Direito’ opera o ‘castigo’29.
29
Nas palavras de Jeanne Marie Gagnebin (2020): “[...] nos dois ensaios de 1919-20, que estabelece o domínio
do direito (das Recht) como sendo o sucessor da ordem do destino e do mito, embora a instituição das normas
jurídicas seja geralmente concebida como meio privilegiado de combater a arbitrariedade do mito. Essa ilusão
repousa, diz Benjamin, na confusão funesta entre ‘o reino da justiça’ e a ‘ordem do direito’, esquecendo-se de
que a justiça cabe somente a Deus enquanto o direito é instauração humana do poder (Macht) e, portanto,
sempre manifestação de violência. Podemos entender essa relação de continuidade entre a ordem do mito e do
destino, de um lado, e a ordem do direito, de outro, pela relação análoga que mito e direito entretêm com a
culpa e com o castigo. Ambos precisam estabelecer primeiro uma culpa, a transgressão de uma lei, seja ela dita
natural ou jurídica, para poder despois castigar, ou seja, para manifestar a força de seu poder. Em vez de pensar
que o direito teria como tarefa punir uma culpa perpetrada por um infeliz indivíduo, Benjamin defende a ideia
de que o direito cria a culpa para poder puni-la e manifestar assim sua própria força (Gewalt), [...] A indiferença
do direito em relação às circunstâncias de transgressão da lei não seria índice da imparcialidade de uma pretensa
justiça, mas somente assinalaria a violência inapelável de seu poder, como na boutade de Anatole France, ao
se queixar de que a lei proíbe da mesma maneira a pobres e ricos passar a noite debaixo das pontes de Paris.
Em outros termos, para Benjamin, a instauração do direito enquanto esfera de poder não nos redime do mito,
mas, pelo contrário, perpetua sua violência sob o manto de um acordo entre os homens. Não instaura a justiça,
33
Contudo, a falta (ou não presença) da teologia e/ou dogmática não interfere no
movimento religioso, ou, na prática do culto: assim como as imagens santas, o dinheiro
necessita apenas da fé de seus adoradores. Essa relação entre a fé e o dinheiro é exposta muito
bem por Giorgio Agamben no texto Benjamin e o capitalismo:
mas dissimula e, ao mesmo tempo, consagra a gênese violenta do poder estabelecido” (GAGNEBIN, 2020, p.
1942-1943).
30
Nas palavras de Agamben: “O processo de desmaterialização da moeda começou muitos séculos antes, quando
as exigências do mercado levaram a vincular à moeda metálica, necessariamente escassa e um estorvo, letras
de câmbio, cédulas, juros, goldsmiths’ notes, etc. Todas estas moedas de papel, na realidade, são títulos de
crédito e, por isso, são chamadas de moedas fiduciárias. A moeda metálica, por sua vez, valia – ou deveria
valer – pelo seu conteúdo de metal precioso [...]” (AGAMBEN, 2013a).
34
[...] O que era o dinheiro pré-moderno? [...] Começou por ser o gelt, o sacrifício aos
deuses, que originalmente foi um sacrifício humano. Com este gesto pagava-se uma
“culpa” ou, melhor dizendo, cumpria-se um “dever” para que o Sol voltasse a nascer
todos os dias, para ser possível a alimentação no “processo de metabolismo com a
natureza” (Marx), talvez para afastar ou atenuar as desgraças e os golpes do destino,
etc. Esta “objectualidade do sacrifício” simbólica, mas necessariamente material,
percorreu, em primeiro lugar, um espectro histórico de metamorfoses, de
substituições. Mas não substituições de Deus, [...], mas substituições da própria
vítima: desde os seres humanos jovens de uma rara excelência ou especial beleza,
passando pelo gado bovino ou cavalar e outros animais sacrificiais, substituídos
posteriormente pelas representações simbólico-materiais desses animais na forma de
bolos ou hóstias, até ao metal precioso e à moeda cunhada. A estrutura deste “dever
sacrificial” foi, em seguida, transferida sob múltiplas formas para as inter-relações
35
sociais das pessoas, mas com isso não foi de modo algum “secularizada”; pelo
contrário, a relação social (imanente) foi derivada da relação (transcendente) com
Deus e constituída como estrutura complexa de “deveres” tanto pessoais
como institucionais, de acordo com o exemplo da objectualidade do sacrifício. Isto
não tinha nada a ver com uma economia ou um modo de produção no sentido do
“trabalho abstracto” e das relações de valor (KURZ, 2012)
A presença dessa referência no texto de Benjamin mostra que ele estava ciente da
relação fetichista entre o dinheiro e o sacrifício, embora, Löwy, vez ou outra, lembre-nos que
toda tentativa de expor o que Benjamin estava realmente se referindo seja mera especulação
por conta do seu caráter inacabado e enigmático: “Certamente, não podemos saber até que ponto
Benjamin partilhava desse raciocínio de Landauer”(LÖWY, 2019, p. 15-16), muito menos
36
podemos saber se as demais referências citadas são parte do inventario teórico partilhada por
Benjamin. Entretanto, nossa análise se esforça para encontrar maneiras de compreender da
melhor forma possível o fragmento benjaminiano. A contribuição de Löwy é indispensável para
compreender as entrelinhas do texto, que parece se complementar nas indicações bibliográficas:
a diferenciação do ‘miolo’ do texto e as referências bibliográficas e até onde essas referências
são ideias que Benjamin acredita possíveis. Löwy continua seu argumento afirmando que
Landauer é uma possível influência para Benjamin: em 1921, o filósofo alemão estaria “[...]
muito mais próximo do socialismo romântico e libertário de um Gustav Landauer, ou de um
Georges Sorel” (LÖWY, 2019, p.16) do que, por exemplo, da tendência crítica da época, Karl
Marx ou Friedrich Engels:
O único fundido (Gegossene), o único ídolo (Götze), o único Deus (Gott) ao qual os
seres humanos deram vida é o dinheiro (Geld). O dinheiro é artificial e é vivo, o
dinheiro produz dinheiro e mais dinheiro, o dinheiro tem toda a potência do mundo.
Quem ainda hoje não vê que o dinheiro, que este Deus, não é outra coisa senão um
espírito proveniente dos seres humanos, um espírito tornado uma coisa (Ding) viva,
um monstro (Unding), e que ele é o sentido (Sinn) tornado louco (Unsinn) de nossa
vida? O dinheiro não cria riqueza, ele é a riqueza; ele é a riqueza em si; não há outro
rico senão o dinheiro (ibidem).
Essa é a conclusão que Michael Löwy chega após sintetizar sua interpretação entre
Landauer e Benjamin. Para Löwy, na medida em que o ídolo, que está na função de
representação de Deus, é o símbolo para qual o sacrifício é destinado, sua natureza autônoma
se revela como dominadora da ação humana. Assim, a mercadoria-dinheiro, atuando como
ídolo, é essa coisa que se tornou viva e independe de qualquer humano, um verdadeiro monstro
incontrolável; isto é, o fetiche, um poder que reveste a mercadoria-dinheiro e que foi criado
pelos humanos (os corpos reais que servem e podem ser sacrificados).
O ‘dever sacrificial’, também, expressa-se na produção da riqueza, a valorização do
valor (ou a especulação financeira), que se caracteriza pelo juro, pela rentabilidade flutuante,
sustentada pelo trabalho real e futuro, que não é mais garantida apenas pela realização do
trabalho (a realização do ritual de sacrifício do corpo humano), mas também pela sua própria
autorreprodução infinita. Nesse sentido, o empréstimo e o juro configuram uma maneira de
replicação do valor, baseado na ‘dívida’. É na ‘dívida’ que Deus e o dinheiro se entrecruzam
numa única forma ambígua, a dívida deve ser paga, antes com sangue em um ritual para um
Deus transcendente, agora, na religião capitalista, deve ser paga também com sangue, mas para
um Deus imanente das relações sociais autonomizadas.
A comparação de cédulas bancárias com os ídolos, feita por Benjamin, leva-nos
inevitavelmente à questão do sacrifício e do fetiche. Entretanto, o dinheiro é apenas um dos
37
ídolos da religião capitalista. Benjamin deixou o texto inacabado: o que está pairando sobre o
fragmento é uma ideia central que puxa a ‘rede na qual se encontra’, portanto, essa metafisica
do dinheiro, que se desenvolve no fragmento, é uma das intuições que norteiam essa crítica
particular de Benjamin. Löwy, finalizando seu argumento de interpretação dessa primeira
característica da estrutura da religião capitalista, acrescenta: “Portanto, o dinheiro – ouro ou o
papel –, a riqueza, a mercadoria, seriam algumas dessas divindades ou ídolos da religião
capitalista” (LÖWY, 2019, p. 17) , atuando como superestrutura “e sua manipulação ‘prática’
na vida capitalista corrente” enquanto infraestrutura, “constitui um conjunto de manifestações
cultuais, fora das quais ‘nada tem significação’ ”(ibidem).
38
Aqui, é necessário fazer uma observação, o ‘segundo traço’ que Benjamin se refere
é uma característica atribuída ao ‘culto’. Nesse sentido, o ‘culto’ é a característica primeira e
fundamental que está ligada a mais três características constituintes. O ‘utilitarismo’ como
práxis imanente do culto capitalista substituiria a teologia e o dogmatismo (religioso
transcendentes) e, nesse sentido, constitui o que Benjamin chama de ‘concreção do culto’, ou
seja, sua fundamentação fenomenológica, imanente das novas relações sociais modernas.
Para a psicanalista Maria Rita Kehl, o fragmento de Benjamin está carregado de
uma ‘melancolia’, oriunda dessa duração permanente do culto. “Benjamin entendeu a
melancolia como efeito da anulação da potência política do indivíduo e sua classe social. A
‘coloração religiosa’ que o capitalismo imprimiu ao utilitarismo parece anular a perspectiva de
transformação histórica”.31 Maria Rita Kehl explica que o fragmento de Benjamin não possui
expresso o termo, mas que possui um sentido político que se aproxima do que ela chama de
‘melancolia benjaminiana’, identificando-o dentro da obra geral de Benjamin. Esse sentido
político, na interpretação de Maria Rita, é “a sensação de que a ação política, assim como outras
dimensões da vida, estaria dominada pelo culto permanente, sans trêve et sans merci, da vida
sob o capitalismo”32. A interpretação que Maria Rita Kehl faz do fragmento é interessante para
nossa análise, parece que o conceito de melancolia se figura como um sentimento
experimentado pelo adorador, que está submetido ao culto. Nesse sentido, o adorador opera o
culto e ao mesmo tempo é definido pelo culto, suas escolhas possíveis de ação são definidas
pelos horizontes da maturação do culto –, maturação como processo de totalização de sua
expansão e ‘colonização’.
Tanto Maria Rita, quanto Michael Löwy utilizam a expressão “sans trêve et sans
merci” – diferente do sans rêve utilizado por Benjamin na versão original, ainda que um erro
de edição provocou uma nova interpretação sobre o trecho que enriquece o debate em torno do
31
KEHL, Maria Rita; BENJAMIN, 2013a. Texto da autora na folha de orelha Capitalismo como Religião.
32
Conferir texto da autora na folha de orelha do livro.
39
fragmento. Sem trégua (trêve) e sem sonho (rêve), o culto opera permanentemente e
automaticamente, e se expande em todas as direções, criando margem para pensar um “futuro”
destinado a permanecer sujeito ao culto, englobando aspectos materiais e imateriais da vida
social, que inibem as perspectivas de um futuro alternativo à realidade já estabelecida.33
Na interpretação de Löwy, é proposto que esta passagem de O Capitalismo como
Religião seria alimentada principalmente pelas teses da Ética protestante e o espírito do
capitalismo, entretanto, o próprio Weber admite que Ernst Troeltsch é um de seus
interlocutores, e que as pesquisas desenvolvidas por Troeltsch responderiam questões que
Weber não chegou a finalizar (WEBER, 2004, p. 275- 276)34. Benjamin deixou registrado a
referência a Troeltsch (BENJAMIN, 2013a, p. 24), o que nos leva a considerar que essa
passagem não é apenas alimentada pelas teses de Weber, mas também pela contribuição de
Troeltsch. Continuando na interpretação de Löwy, ele afirma que a tese provável a qual
Benjamin faz menção é a das “regras metódicas de comportamento do calvinismo/capitalismo”
e à disciplina/controle permanente sobre a vida (LÖWY, 2014, p. 100). Os termos, ‘disciplina’
e ‘controle’, usados por Löwy para descrever a ascese cultivada pelos protestantes
(especialmente calvinistas), entram em conflito com a ‘produção de riqueza privada’ capitalista.
Teoricamente, a posse de riquezas é tratada como uma tentação “pecaminosa”, enquanto, na
prática, todo o esforço do indivíduo deve ser em nome de Deus, através das “boas obras”
(WEBER, 2004, p. 156). Entretanto Weber afirma:
[...] Eis porém algo ainda mais importante: a valorização religiosa do trabalho
profissional mundano, sem descanso, continuado, sistemático, como o meio ascético
simplesmente supremo e a um só tempo comprovação o mais segura e visível da
regeneração de um ser humano e da autenticidade de sua fé, tinha que ser, no fim das
contas, a alavanca mais poderosa que se pode imaginar da expansão desse modo de
vida que aqui temos chamado de “espirito” do capitalismo (WEBER, 2004, p. 156-
157)
33
É assim que Giorgio Agamben entente a relação entre a ‘fé’ e o ‘futuro’. Para ele a palavra ‘fé’ possui também
o sentido de ‘confiança’ ou ‘crédito’, tal como é usado nas relações econômicas. Em suas palavras: “Por isso,
Paulo pode dizer em sua famosa definição que “a fé é substância de coisas esperadas” [ou, segundo a versão
da Bíblia Pastoral, “um modo de já possuir aquilo que se espera”]: ela é o que dá realidade àquilo que não
existe ainda, mas em que acreditamos e confiamos, em que colocamos em jogo o nosso crédito e a nossa
palavra. Algo como um futuro existe na medida em que a nossa fé consegue dar substância, isto é, realidade às
nossas esperanças (AGAMBEN,2022).
34
Conferir nota número 309.
40
um modo de vida muito particular, proveniente das novas relações sócias de produção e
mercado, que encontraram um solo fértil na ética protestante. Weber considera essa valorização
religiosa do trabalho como a “alavanca mais poderosa” (WEBER, 2004, p. 157) para a expansão
desse ethos. Sua expansão não se dá apenas na dimensão dos negócios (enriquecimento,
capitalização do trabalho), mas também nas dimensões da vida que estavam separadas da
produção da riqueza –, o capitalismo avança progressivamente para uma totalização da vida,
humana e não-humana. É necessário um exército de trabalhadores e trabalhadoras renumerados
e não remunerados para fazer funcionar a economia capitalista, consequentemente, é preciso
que se ocupe territórios cada vez maiores, gradativamente, tornando-se um sistema de
organização social que tende à ‘universalização’, ao mesmo tempo que é necessário tornar essa
força produtiva em “consumidores”. Há uma ambiguidade no sentido do conceito de ‘adorador’
no fragmento de Benjamin, o adorador não é somente quem está servindo seu corpo para a
produção, mas todos os sujeitos de consumo, necessários para a realização da equação
econômica clássica de demanda e produção.
Benjamin radicaliza a tese da valorização religiosa do trabalho de Weber, evitando
a imparcialidade da qual Weber se resguardava. O culto à religião capitalista é constante, não
há mais tempo livre possível fora da esfera do trabalho e do consumo, não há mais espaços que
não possam ser reaproveitados, uma celebração constante e permanente que não dá brecha para
o futuro. ‘Sem sonho’ é a condição de uma sociedade que não dorme, o tempo do trabalho e da
produção ultrapassa a barreira fabril e servil, integrando todo o tempo livre possível ao culto,
até mesmo o sono não escapa, os sonhos são instrumentalizados e capitalizados, a própria
produção de mercadorias forja o desejo de consumo, que ocupa o inconsciente do adorador, que
não tem uma alternativa a não ser agir conforme o andamento do culto. ‘Sem piedade’ (e ‘sem
trégua’) é a condição do trabalho na qual a produção da riqueza engaja seus adoradores, que
estão incessantemente empenhados em conquistar o “pão de cada dia”, para, talvez, um dia
alcançar a riqueza prometida do modo de vida capitalista, na esperança do milagroso
merecimento da graça (riqueza) através do trabalho –, e os forçam a aceitarem seu destino.
Atualmente popularizada a ‘meritocracia’ é essa promessa de merecimento da graça
através do trabalho, é a ‘herança’ do que Max Weber chama de ‘ascese intramundana’. Se
tomarmos o termo literalmente, ‘meritocracia’ seria uma espécie de ‘poder conquistado por
mérito’, poder esse não apenas político, mas principalmente econômico. Weber fala de um
“caráter racional da ascese” e de sua significação para o “modo de vida” moderno (WEBER,
2004, p. 201-202) e cita a já mencionada obra de E. Troeltsch, As doutrinas sociais das igrejas
e grupos cristãos. Para Weber, a ascese protestante, por intermédio de seu processo de
41
racionalização das ações e da vida, deu origem aos métodos da administração de empresas e da
burocratização das instituições sociais e estatais. Essa ascese especifica da fé protestante é
resultado de um processo histórico de renovação do conceito, um novo uso foi dado pela
reforma luterana, a ‘novidade’ está na posição racionalista e desencantada da ação moral das
‘boas ações’, a vida é considerada uma acumulação progressiva de ações que formam um
‘sistema de vida’. Weber chama esse fenômeno de “desencantamento do mundo”, que consiste
na tentativa de “eliminação da magia como meio de salvação” (WEBER, 2004, p. 106). O
protestante ‘cria a si mesmo’ por meio das suas ações, não isoladamente, mas organizadas
sistematicamente num projeto pessoal de vida, visando a autorrealização e a santificação pela
ação.
A ‘ascese protestante intramundana’, que está na base da ‘valorização religiosa do
trabalho profissional no mundo’, é definida por Weber como um ethos, o espirito próprio do
protestantismo, que dá sentido para esse modo de vida, o qual interessa a Weber e,
consequentemente, a Benjamin, na medida em que possui uma “[...] ‘individualidade histórica’,
isto é, um complexo de conexões que se dão na realidade histórica” e que possa ser encadeado
“conceitualmente em um todo, do ponto de vista de sua significação cultural” (WEBER, 2004,
p. 41). O objetivo de Weber com a “Ética protestante” é mostrar como esse ‘espírito’
protestante foi a base fundamental do surgimento do ‘espírito’ do capitalismo.
Uma primeira definição desse ‘espírito capitalista’ se assemelharia a uma ‘filosofia
da avareza’, que teria como traços “o ideal do homem honrado digno de crédito e, sobretudo, a
ideia do dever que tem o indivíduo de se interessar pelo aumento de suas posses como um fim
em si mesmo” (WEBER, 2004, p. 45). Weber continua seu argumento:
[...] Com efeito: aqui não se prega simplesmente uma técnica de vida, mas uma
“ética” peculiar cuja violação não é tratada apenas como desatino, mas como
uma espécie de falta com o dever: isso, antes de tudo, é a essência da coisa. O que se
ensina aqui não é apenas “perspicácia nos negócios” – algo que de resto se encontra
com bastante frequência – mas é um ethos que se expressa, e é
precisamente nesta qualidade que ele nos interessa” (WEBER, 2004, p. 45).
resguardo de todo gozo imediato do dinheiro ganho” e “pensado tão exclusivamente como fim
em si mesmo” (WEBER, 2004, p. 46). Uma visão de mundo que se pretende desencantada, por
não acredita mais em mitos ou crenças em forças sobrenaturais como fizeram as religiões
tradicionais, mas que utiliza elementos dessas religiões para compor seu aparato ideológico. A
linguagem, da qual a ‘religião do mercado’ se utiliza, foi herdada da teologia e, por isso mesmo,
deve historicamente ao processo de secularização das religiões que desenvolveram essas
práticas ascéticas.
Benjamin concorda com a tese da secularização, embora tente superá-la. Ao que
tudo indica, Weber denuncia essa ética capitalista de modo peculiar, muito próximo da ideia
benjaminiana de ‘religião capitalista’, desenvolvida no fragmento:
[...] O ser humano em função do ganho como finalidade da vida, não mais o ganho
em função do ser humano como meio destinado a satisfazer suas necessidades
materiais. Essa inversão da ordem, por assim dizer, “natural” das coisas, totalmente
sem sentido para a sensibilidade ingênua, é tão manifestamente e sem reservas um
Leitmotiv do capitalismo, quanto é estranha a quem não foi tocado por seu bafo. Mas
implica ao mesmo tempo uma gama de sensações que tocam de perto certas
representações religiosas” (WEBER, 2004, p. 46-47)
Essa parece ser a intuição que Benjamin toma para si e radicaliza, desviando do
caráter especulativo neutro que Weber utiliza. Para Benjamin, o capitalismo seria uma religião
que subverteria a ideia clássica desta e a levaria, ao extremo, sua forma de dominação da vida,
não somente através da espiritualidade, mas também da dominação da vida através da
economia.
Michael Löwy afirma, em sua interpretação, que Benjamin retoma as ideias de
Weber da Ética protestante “quase termo a termo”, porém a seu modo, “não sem ironia, citando
a permanência dos “dias de festa” (LÖWY, 2019. P. 18). Em nome do trabalho “sem descanso,
sem trégua e sem piedade”, os “dias de festas”, que eram ocasiões de descanso e comemoração
envolvidas numa aura sagrada, perdem seu sentido, diante da lógica da produção da riqueza da
ética capitalista secularizada e burocratizada. Esses dias perdem sua aura e passam a ser “dias
normais” de trabalho. A ironia de Benjamin está na afirmação que “não há dia que não seja
festivo no terrível sentido da ostentação de toda a pompa sacral, do empenho extremo do
adorador” (BENJAMIN, 2013a, p. 22):
Mas não foi um caminho sem obstáculos: para o capitalismo alcançar esse status de
dominação, que é denunciado por Benjamin, teve de vencer os confrontos que a cultura impôs,
principalmente, contra as visões de mundo mais ‘tradicionalistas’, ainda pré-capitalistas por
não cederem lugar a sua ‘lógica de produção de riqueza’ moderna. Weber afirma que a expansão
dessa visão de mundo e dessa forma de vida capitalista é um movimento inato em seu
desenvolvimento. Desde a ascese cristã ao surgimento da ideia de ‘profissão como vocação’ da
‘ascese intramundana’, o ethos capitalista necessita dessa adesão voluntária e involuntária dos
indivíduos para que seja possível sua concreção. O trabalho é a base da produção da riqueza e
é entendido como um dever moral. Nisso a teologia do utilitarismo mostra suas cores vivas, o
indivíduo tem responsabilidade com a sua felicidade e com as dos outros, formando um “todo”
social ‘mecânico’ que parece se mover autonomamente e automaticamente: o cosmos
econômico anunciado por Weber.
Pois a ascese, ao se transferir das celas dos mosteiros para a vida profissional, passou
a dominar a moralidade intramundana e assim contribuiu com sua parte para edificar
esse poderoso cosmos da ordem econômica moderna ligada aos pressupostos técnicos
e econômicos da produção pela máquina, que hoje determina com pressão
avassaladora o estilo de vida de todos os indivíduos que nascem dentro dessa
engrenagem – não só dos economicamente ativos - e talvez continue a determinar até
que cesse de queimar a última porção de combustível fóssil (WEBER, 2004, p. 165).
Weber usa uma alegoria interessante para ilustrar a ascese do ‘dever profissional’
intramundano: “um leve manto de que se pudesse despir a qualquer momento” (WEBER, 2004,
p. 165). Ao passo que considera esse “dever profissional” como “um dos componentes do
espírito capitalista” e da “cultura moderna” (WEBER, 2004, p. 164), esse salto que Weber
propõe é fruto da reflexão sobre o processo de secularização da ascese e da expansão desse
“espírito”, expansão da “vida racional”: uma racionalização generalizada da vida, que chega
em seu zênite no processo de burocratização extremo da sociedade, que Weber chama de
“habitáculo duro como aço” (WEBER, 2004. P. 165).
Em sua interpretação, Michael Löwy afirma que o fragmento de Benjamin
“empresta de Weber a concepção do capitalismo como sistema dinâmico, em expansão global,
impossível de ser parado e do qual não se pode escapar” (LÖWY, 2014, p. 100) e, ainda segundo
o intérprete, o “habitáculo duro como aço”, [...] tal qual aparece na Ética protestante, é uma
espécie de alegoria da civilização capitalista industrial moderna –, e não, como se acredita em
geral, do processo de burocratização” (LÖWY, 2014, p.55). Nesse sentido, a burocratização
aparece como um sintoma cultural dessa civilização. Benjamin parece estar interessado nessa
44
35
KEHL, Maria Rita; LÖWY, Michael. Maria Rita Kehl e Michael Löwy | Walter Benjamin, intérprete do
capitalismo como religião. Youtube, 2013. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=4st9V8wnayY. Acesso em: 02/02/2022. Conferir trecho entre os minutos
15:52 – 16:18.
36
Maria Rita Kehl afirma, nessa conferência, que o texto O Capitalismo como Religião possui “a mais perfeita
descrição da alienação”. Para Maria Rita, a alienação é um conceito “que toca na lição do que é a subjetividade
sob o capitalismo” (KEHL; LÖWY, 2013).
45
– empresários e operários – de que necessita” (WEBER, 2004. P. 48), fazendo-se, assim, uma
clara referência à teoria evolucionista de Charles Darwin. A ideia de ‘seleção econômica’ em
Weber atua da mesma forma que a ideia de ‘seleção natural’: há uma luta pela sobrevivência,
uma luta entre os indivíduos por recursos materiais para manter sua existência e perpetuação,
somente, os indivíduos mais aptos conseguem sobreviver. Na sociologia de Weber essa
‘seleção’ não atua somente nos indivíduos isolados, mas também através de ‘grupos de
pessoas’:
Assim como nas religiões arcaicas, a religião capitalista, também, comporta essa
distinção entre as esferas do ‘divino’ e do ‘profano’. Quando Benjamin fala em ‘exibição de
toda pompa sacral’, ele, provavelmente, fala de uma sociedade que passa constantemente e
incessantemente pelo processo de ‘transição sacrificial’ entre aquilo que era ‘profano’ ou
simplesmente comum à vida humana e que, agora, é ‘sagrado’, ou separado do ‘uso comum’,
através dos rituais que perpassam a produção do Dinheiro e da Mercadoria. Retomando a ideia
do sacrifício como forma de pagamento, nesse instante, interessa-nos tentar entender a relação
da ideia de sacrifício como transição do ‘profano’ para o ‘divino’ e, em paralelo, a ideia de
sacrifício como pagamento (ou Gelt). Ambos aparecem como uma forma de compreensão do
fenômeno religioso capitalista no fragmento de Benjamin. Se for possível estabelecer uma
relação entre esses sentidos distintos do conceito de ‘sacrifício’, então, ela se dará dentro de
uma linguagem muito especifica, que é utilizada pelos comentadores do fragmento para tentar
pensar uma ‘religião’ no capitalismo contemporâneo. Ou seja, embora não esteja literalmente
presente n’O Capitalismo como Religião, a ideia de ‘sacrifício’ pode ser definida no texto a
partir da ideia de Schuld, que Benjamin afirma possuir um significado ambíguo de “culpa” e
“dívida” (BENJAMIN, 2013a. p. 23).
Para Agamben, o ‘sacrifício’ é um dispositivo que opera a separação religiosa entre
o ‘sagrado’ e o ‘profano’, e essa operação impõe um ‘não-uso’ ou um ‘uso restrito’, ou restaura
um ‘uso comum’. ‘Profanação’ é o ato de trazer de volta um certo ‘uso’ das coisas outorgadas
sagradas, nas suas palavras: “Entre ‘usar’ e ‘profanar’ parece haver uma relação especial, que
é importante esclarecer” (AGAMBEN, 2007, p. 65). E para esclarecer essa questão, Agamben
recorre ao conceito de religião como relegere, mas a sua maneira, definindo religião como “[...]
aquilo que subtrai coisas, lugares, animais ou pessoas ao uso comum e as transfere para uma
esfera separada” (ibidem). Para o filósofo italiano, toda religião possui essa separação que é sua
condição constituinte, “não há religião sem separação, como toda separação contém ou
conserva em si um núcleo genuinamente religioso”. Talvez, possamos pensar que seja dessa
‘separação’ que Benjamin se refere com seu conceito de religião capitalista, uma separação
entre ‘uso privado’ e ‘uso comum'. Nesse sentido quando outras formas ambíguas foram
tratadas, como o ‘sacrifício’, a ‘culpa’, o ‘dinheiro’, o ‘adorador’, entre outras manifestações
‘ritualísticas’, estariam também operando essa separação.
Agamben afirma que no ritual de sacrifício é “essencial o corte que separa as duas
esferas, o limiar que a vítima deve atravessar, não importando se num sentido ou noutro”
(AGAMBEN, 2007, p. 66), isto é, o que foi tornado sagrado pode ser restituído ao uso comum
48
37
Ambos os autores aparecem no corpo do texto como referência bibliográfica.
51
nova religião, justamente por utilizarem fielmente a noção de secularização. Eles se prenderiam
em demasia na ideia de que a ética praticada pelos capitalistas em ascensão e pelos
trabalhadores na vida cotidiana moderna não teria a mesma função que a da religião, embora
seus aspectos práticos sejam assimilados através da ascese intramundana, e por refletirem
aspectos fundamentais do utilitarismo liberal moderno.
Uma primeira tentativa de ampliar esses estudos de Weber e Troeltsch foi realizada
por Bruno Archibald Fuchs (BENJAMIN, 2013a, p.23) 38. Benjamin o cita com uma nota de
referência no fragmento –, “Fuchs, Struktur der kapitalistischen Gesellschaft [Estrutura da
sociedade capitalista], ou algo similar” (ibidem). A simples presença dessa referência nos faz
pensar que seja de Fuchs a ideia de continuidade entre religião e capitalismo, que Weber apenas
deixou esboçado, justificando não ter conhecimentos mais específicos da teologia protestante e
da teologia católica para afirmar uma continuidade historicamente mais profunda (WEBER,
2004, p. 275 – 276)39.
Na passagem do fragmento na qual Benjamin fala sobre o capitalismo ter se
desenvolvido como ‘parasita do cristianismo’, parece que é sobre os estudos de Fuchs que ele
diretamente se refere. Na realidade, o livro se chama O espírito da sociedade burguesa-
capitalista: uma investigação sobre seus fundamentos e pressupostos40. Nosso objetivo não é
dar conta do texto em si de Fuchs, mas somente situá-lo no contexto de O Capitalismo como
Religião e demonstrar sua importância para o pensamento de Benjamin.
Se o capitalismo é um parasita do cristianismo, então, isso deveria ser investigado
com base em toda a história do cristianismo, uma tese como essa é radicalmente oposta e muito
mais polêmica que a proposta originalmente por Weber. Pensar as relações entre o espírito da
sociedade burguesa e a ética religiosa protestante não foi de todo uma tarefa fácil, e provar a do
‘Capitalismo como religião’ requer um trabalho tão grandioso o quanto. Nas palavras de
Benjamin, isso precisaria “[...] ser demonstrado não só com base no calvinismo, mas também
com base em todas as demais tendências cristãs ortodoxas –, de tal forma que, no final das
contas, sua história é essencialmente a história de seu parasita” (WEBER, 2004, p. 24). Em
outras palavras, o capitalismo enquanto ideia ou “espírito” e, mais radicalmente, enquanto
éthos, de algum modo foi forjado através, também, da história da religião cristã como um todo,
38
A presença de Fuchs como referência bibliográfica colabora para a interpretação de que, provavelmente,
Benjamin estaria interessado no debate em torno das conclusões da Ética Protestante e o Espírito do
Capitalismo.
39
Conferir a nota número 309.
40
Notas da edição alemã. Tradução nossa de: “Der Geist Der Bürgerlich-Kapitalistischen Gesellschaft: Eine
Untersuchung über Seine Grundlagen Und Voraussetzungen”.
52
o mesmo problema que Bruno Archibald Fuchs se propõe a investigar. Como mostra Francisco
Gil Villegas41, para Fuchs, as “motivações psicológicas da religiosidade calvinista” (FUCHS
apud VILLEGAS, 2015) são profundamente herdadas da ascese monástica, ou seja, a
religiosidade protestante estaria essencialmente relacionada à essência da religião cristã no
geral. A ascese intramundana comum do protestantismo não se “originou espontaneamente”,
mas seus traços essenciais remontariam ao cristianismo medieval.
Provavelmente, Benjamin se interessou pelos estudos de Fuchs, pois se
aproximavam, de algum modo, com sua perspectiva sobre a relação de continuidade entre Mito
e Direito, por exemplo, no problema da comparação entre cédulas bancárias e imagens de santos
de diversas religiões. Benjamin estaria se referindo a uma ideia de espírito próxima da pensada
por Weber como ethos do capitalismo: “O espírito que se expressa nos ornamentos das cédulas
bancárias” (BENJAMIN, 2013a, p. 23). Esse raciocínio se reflete adiante quando novamente
Benjamin se refere ao sentido abstrato do dinheiro: “[...] quais foram as ligações que o dinheiro
estabeleceu com o mito no decorrer da história, até ter extraído do cristianismo a quantidade
suficiente de elementos míticos para constituir o seu próprio mito” (BENJAMIN, 2013a, p. 24).
Para ajudar nessa interpretação vale a pena retomar o que foi dito por Jeanne Marie
Gagnebin (2020) sobre a relação de continuidade entre Mito e Direito em Benjamin. Gagnebin
afirma que o “mítico” e o “mito” no pensamento do jovem Benjamin “[...] não designam uma
época da humanidade definitivamente superada pela racionalidade, mas sim um fundo de
violência que sempre ameaça submergir as construções humanas (GAGNEBIN, 2020, p. 1941).
É assim que poderíamos entender a ideia de mito no fragmento O Capitalismo como Religião.
Para Gagnebin, Benjamin “[...] estabelece o domínio do direito (das Recht) como sendo o
sucessor da ordem do mito, embora a instituição das normas jurídicas seja geralmente concebida
como um meio privilegiado de combater a arbitrariedade do mito” (GAGNEBIN, 2020, p.
1941). A mesma lógica parece ser aplicada ao caso do dinheiro e das imagens santas, a
continuidade mítica do dinheiro também está relacionada diretamente com a legalidade do
Estado e das instituições das normas jurídicas.
Benjamin, portanto, assim como fez com a tese de Weber, amplia radicalmente
certo aspecto crítico da obra de Fuchs, o espírito capitalista não é como pensou Weber, apenas
uma ‘formação condicionada pela religião’, nem como pensou Fuchs ao ampliar a dimensão
dos estudos de Weber sobre a ascese intramundana, mas um novo fenômeno religioso, que
41
VILLEGAS, Francisco Gil. Max Weber y la guerra académica de los cien años: Historia de las ciências
sociales em el siglo XX. La Polémica em torno a La ética protestante y el spíritu del capitalismo (1905 –
2012). Fondo de Cultura Económica, 2015.
53
[...] estava em jogo nada menos que a sobrevivência de um sistema religioso que havia
envolvido o próprio Deus como vítima do sacrifício e, desse modo, havia introduzido
nele a separação que, no paganismo, tinha a ver apenas com as coisas humanas. Trata-
se, portanto de resistir, através da contemporânea presença de duas naturezas numa
única pessoa, ou numa só vítima, a confusão entre divino e humano que ameaçava
paralisar a máquina sacrificial o cristianismo. A doutrina da encarnação garantia que
a natureza divina e a humana estivessem presentes sem ambiguidade na mesma
pessoa, assim como a transubstanciação garantia que as espécies de pão e do vinho se
transformassem, sem resíduos, no corpo de Cristo (AGAMBEN, 2007, p. 69).
parecidos a esse de Benjamin em Max Weber, precisamente quando expõe a relação ambígua
que o burguês puritano tem com o sentido de ‘dever’ ou ‘obrigação’:
A ideia de obrigação do ser humano para com a propriedade que lhe foi confiada, à
qual se sujeita como prestimoso administrador ou mesmo como “máquina de fazer
dinheiro”, estende-se por sobre a vida feito uma crosta de gelo. Quanto mais posses,
tanto mais cresce – se a disposição ascética resistir a essa prova – o peso do sentimento
de responsabilidade não só de conservá-la na íntegra, mas ainda de multiplicá-las para
a glória de Deus através do trabalho sem descanso. Mesmo a gênese desse estilo de
vida remonta em algumas de suas raízes à Idade Média como aliás tantos outros
elementos do espírito do capitalismo moderno, mas foi só na ética do protestantismo
ascético que ele encontrou um fundamento ético consequente (WEBER, 2004, p. 155)
Contudo, Kurz ignora certo aspecto teológico do Jovem Benjamin, embora sua
interpretação crítica seja uma tentativa de atualização da tese benjaminiana, de fato o que se
observa é um regresso de formas arcaicas de constituição do poder. O ‘regresso perverso do
arcaico’ se dá na medida em que a sociabilidade capitalista atua de forma semelhante à
dominação psicológica desenvolvida no calvinismo e, em certa medida, no ascetismo monástico
da Idade Média, mas não somente enquanto formas abstratas, mas como ética, ou seja, em forma
de prática e ação no mundo, certo aspecto da dominação técnica. Benjamin não chega a citar
diretamente o termo ‘técnica’, mas como podemos verificar nesta passagem: “Conexão entre
dogma da natureza dissolutiva do saber (que, nessa qualidade, ao mesmo tempo redime e mata)
e o capitalismo: o balanço de sua condição de saber que redime e mata” (BENJAMIN, 2013a,
p. 25). Se Benjamin estaria se referindo ao ‘poder soberano’ não podemos ter certeza,
entretanto, podemos supor que tal afirmação, sobre o ‘saber’, seja uma sugestão de crítica
epistemológica sobre a natureza destrutiva e violenta da Teocracia, também, presente em outros
textos de Benjamin da mesma época, a exemplo do Fragmento Político-Teológico42.
Dando continuidade à interpretação de Michael Löwy, na passagem em que
Benjamin usa a expressão “[...] para martelá-la na consciência” (BENJAMIN, 2013a, p. 22),
Löwy afirma que seja uma possível referência a noção de “culpa” (ou a obrigação/dever)
observada por Weber dentro das “práticas puritanas capitalistas” (LÖWY, 2019, p. 20).
Entretanto, ainda de acordo com o comentador, o argumento de Benjamin é mais geral, a culpa
que a religião capitalista implica sobre os adoradores não depende de uma confissão pessoal,
mas de uma situação de desespero em expansão, não apenas universal, mas universalizante.
Nas palavras de Löwy, “[...] não é somente o capitalista que é culpado e “em dívida” com seu
capital” (ibidem), Benjamin quer superar a compreensão weberiana de secularização,
retomando a ideia da “predestinação” para pensar a divisão de classes na realidade capitalista,
para o calvinista o sucesso e suas riquezas são a prova de que é um escolhido por Deus e terá
sua alma salva no pós-morte, em detrimento disto, o pobre é visto “[...] por definição como um
condenado” (ibidem). O sentimento de culpa dos pobres é, dentro da lógica da religião
capitalista, devido seus “[...] fracassos de não terem conseguido fazer dinheiro e estarem
endividados” –, tal raciocínio é verificável dentro de O Capitalismo como Religião quando no
42
Cf. BENJAMIN, 2013b.
58
último parágrafo do fragmento, Benjamin fala sobre as semelhanças que observa no paganismo
original e no capitalismo:
43
Na nota de rodapé do comentário: Adam Müller, Zwölf Redenüber die Beredsamkeit und derem Verfall in
Deutschland.
59
44
AGAMBEN, 2013a; AGAMBEN, 2013b.
60
culpabilização” (BENJAMIN, 2013a, p. 22). Poderíamos supor que não passa de mais uma
ironia de Benjamin, na medida em que, na religião cristã, o dogma se fundamenta na ideia de
revelação, já na religião capitalista, sem teologia e sem dogma, difere-se finalmente em sua
fundamentação epistemológica, como ocultação, ou como um movimento que opera com
estímulo psicológico subjetivos, ou como relações sociais –, entendidas, nesse sentido, através
da noção de ‘culpa mítica’ e ‘dívida econômica’. O ‘Deus’ da religião capitalista é a forma
intermediaria da relação econômica entre os humanos, ele está oculto em toda ação que se
realiza dentro da dimensão econômica, que domina todas as esferas da vida humana atualmente.
Quando Benjamin afirma: “O culto é celebrado diante de uma divindade imatura”
(BENJAMIN, 2013a, p. 22) –, poderíamos entender como uma referência a ideia de expansão
territorial e ideológica do capitalismo, no contínuo de sua ânsia de crescimento da riqueza e,
consequentemente, da produção de mercadorias. Podemos observar, na interpretação de
Agamben, raciocínios que colaboram para essa hipótese, quando por exemplo ele fala sobre a
relação entre ‘capital produtivo’ e ‘capital monetário’:
[...] o capital das empresas hoje recorre em medida crescente ao capital monetário,
tomando de empréstimo junto ao sistema bancário. Isso significa que as empresas,
para poderem continuar a produzir, devem por assim dizer hipotecar antecipadamente
quantidades cada vez maiores do trabalho e da produção futuro. O capital produtor de
mercadorias alimenta-se ficticiamente do próprio futuro. A religião capitalista, em
coerência com a tese de Benjamin, vive um contínuo endividamento [...]. Mas não são
apenas as empresas que vivem, neste sentido, sola fide, a crédito (ou a débito).
Também os indivíduos e as famílias, que recorrem a isso de modo crescente, estão da
mesma forma religiosamente envolvidos neste contínuo e generalizado ato de fé sobre
o futuro (AGAMBEN, 2013a).
O fragmento de Benjamin parece falar sobre uma sociedade que depositou todas
suas esperanças numa promessa, a esperança prometida pelo progresso iluminista. Agora as
‘preocupações’, outrora míticas, podem ser relacionadas a preocupações da nossa sociedade
capitalista, as preocupações envolvidas em torno do trabalho, da alimentação, da saúde, do
terrorismo, da ecologia e a fé depositada no capitalismo, a fim de que esse sistema consiga
resolver todos os problemas da sociedade. As ‘preocupações’ são devido à situação sem saída
que é decorrente desse sistema religioso-econômico e não é somente através do ‘espírito’ do
capitalismo’ como teoria e prática, expressa no liberalismo econômico, mas da simples
realização do culto, ou seja, a realização das práticas econômicas cotidianas.
O ‘Deus’ da religião capitalista foi ocultado, isto é, foi inserido no destino humano,
é o que Benjamin parece indicar nesse último traço da estrutura da religião capitalista: “[...]
toda representação dela e toda ideia sobre ela viola o mistério de sua madureza” (BENJAMIN,
2013a, p. 22). Ironicamente, as representações e ideias sobre essa divindade não são reveladas
61
sua reforma45 ou de uma recusa ou fuga46 dessa situação. Benjamin denuncia, nesse fragmento,
aquilo que Maria Rita Kehl chama de sentido benjaminiano da melancolia47. É a sintomatologia
da nossa época, a ideia de que toda ação política e toda ideia que vá contra esse sistema estaria
sendo anulada e dominada pelo culto e pelo multicolorido espírito utilitarista do capitalismo,
agora, erigido ao status de uma nova religião.
45
Benjamin esboça ainda uma crítica a Sigmund Freud e a Karl Marx que não será desenvolvido com maior
precisão nesse trabalho.
46
Benjamin cita como referência bibliográfica do fragmento o livro Politik und Metaphysik de Erich Unger. De
acordo com Löwy (2019), Unger pensa uma “migração dos povos” (UNGER apud Löwy, 2019, p. 27), o que
poderíamos entender como uma possível saída da religião capitalista presente no fragmento benjaminiano.
Entretanto, nas palavras de Löwy, mesmo sabendo da influência de Unger no pensamento de Benjamin, “[...]
não sabemos se ele considerava válida esta “saída para além da esfera capitalista” (LÖWY, 2019, p. 28. Grifo
do autor).
47
KEHL; BENJAMIN, 2013.
63
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
forma, os pobres estão em constante dívida com Deus, os quais buscam redimir o seu estado de
culpa pelo seu estado de pobreza. Nesse sentido, o capitalismo é um culto no qual não há saída
possível e que, consequentemente, todos os seres humanos que nascem nessas condições estão
sujeitos para toda vida, o que implica o quarto traço dessa estrutura diabólica do capitalismo.
A quarta característica da estrutura da religião capitalista é a mais enigmática, mas
podemos entendê-la a partir da sua contextualização dentro do fragmento. Assim sendo, temos
a menção muito breve à filosofia de Friedrich Nietzsche, na qual Benjamin afirma que o culto
capitalista dissolveu o Deus no destino humano, ou seja, esse Deus foi ocultado, inserido na
vida cotidiana do capitalismo moderno, faz parte das ações econômicas que são desenvolvidas
todos os dias nessa sociedade. A religião capitalista, portanto, se difere radicalmente das
religiões pré-capitalistas, principalmente a religião cristã no geral. Benjamin parece fazer uma
ironia ao afirmar que a religião capitalista é caracterizada pelo ocultamento, em oposição direta
ao dogma da revelação cristã. Contudo, conseguimos poucas informações sobre essa passagem
do fragmento, sua possível explicação deverá ser tema para trabalhos futuros, juntamente com
a análise das três críticas que Benjamin desenvolve sobre Karl Marx, Sigmund Freud e
Nietzsche, que podem colaborar com o entendimento da característica do ocultamento na
religião capitalista. Provavelmente, Benjamin coloca esses três autores como um paradigma do
conceito de crítica, já que fala que na religião capitalista “[...] toda representação dela e toda
ideia sobre ela viola o mistério de sua madureza” (BENJAMIN 2013a, P. 22). Portanto, a crítica
a essa religião esbarra nessa condição de imaturidade da sociedade capitalista, o que precisa ser
explicado melhor.
66
REFERÊNCIAS
LÖWY, Michael. A Jaula de Aço: Max Weber e o marxismo weberiano. Trad. Mariana
Echalar. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.
LÖWY, Michael. Revolução é o Freio de Emergência: Ensaio sobre Walter Benjamin. Trad.
Paolo Colosso. São Paulo: Autonomia Literária, 2019.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Trad. Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
VILLEGAS, Francisco Gil. Max Weber y la guerra académica de los cien años: História
de las ciências sociales em el siglo XX. La Polémica em torno a La ética protestante y el
spíritu del capitalismo (1905 – 2012). Mexico: Fondo de Cultura Económica, 2015.
WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Trad. José Marcos
Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
WITTE, Bernd. Walter Benjamin: uma biografia. Trad. Romero Freitas. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2017.