Você está na página 1de 67

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES
CURSO DE GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

MATEUS NASCIMENTO SILVA

UMA LEITURA DE O CAPITALISMO COMO RELIGIÃO DE WALTER BENJAMIN:


CONTEXTUALIZAÇÃO DA ESTRUTURA DA RELIGIÃO CAPITALISTA

FORTALEZA – CEARÁ

2022
MATEUS NASCIMENTO SILVA

UMA LEITURA DE O CAPITALISMO COMO RELIGIÃO DE WALTER BENJAMIN:


CONTEXTUALIZAÇÃO DA ESTRUTURA DA RELIGIÃO CAPITALISTA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao Curso de Graduação em Filosofia do Centro
de Humanidades da Universidade Estadual do
Ceará, como requisito parcial para à obtenção
do grau de Licenciado em Filosofia.
Orientador: Prof. Me. Pedro Henrique
Magalhães Queiroz

FORTALEZA – CEARÁ
2022
MATEUS NASCIMENTO SILVA

UMA LEITURA DE O CAPITALISMO COMO RELIGIÃO DE WALTER BENJAMIN:


CONTEXTUALIZAÇÃO DA ESTRUTURA DA RELIGIÃO CAPITALISTA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao Curso de Graduação em Filosofia do Centro
de Humanidades da Universidade Estadual do
Ceará, como requisito parcial para à obtenção
do grau de Licenciado em Filosofia.

Aprovado em: 8 de fevereiro de 2022

BANCA EXAMINADORA

____________________________________
Prof. Me. Pedro Henrique Magalhães Queiroz (Orientador)
Universidade Estadual do Ceará – UECE

____________________________________
Prof. Dr. Ruy de Carvalho Rodrigues Júnior
Universidade Estadual do Ceará – UECE

____________________________________
Prof.a. Ma. Eliana Sales Paiva
Universidade Estadual do Ceará – UECE
AGRADECIMENTOS

Minha mais sincera gratidão aos professores e professoras do curso de Filosofia que
contribuíram diretamente para minha formação, em especial, ao Prof. Ruy de Carvalho e à Prof.ª
Eliana Sales, por suas contribuições para a conclusão deste trabalho.
Gostaria de deixar registrado meus agradecimentos aos funcionários do Campus de Fátima e
aos meus colegas de graduação que compartilham comigo o amor pelo conhecimento.
Agradeço ao meu orientador Pedro Henrique Magalhães, por emprestar seu tempo e seu
conhecimento para guiar a redação deste trabalho.
Agradeço a minha amada companheira, Lorena Sierpin de Souza, pelos longos debates e
conversas que me ajudaram no decorrer da redação deste trabalho.
RESUMO

Pretendemos realizar uma tentativa de contextualização e explicação do texto de Walter


Benjamin, intitulado O Capitalismo como Religião (1921), na intenção de encontrar o sentido
proposto pelo autor ao afirmar uma identidade de essência e aparência entre o sistema capitalista
e a forma religião. Para além de uma comparação de seus elementos que são semelhantes, ou
uma gênese do capitalismo a partir das ‘assim chamadas religiões’, este texto possui algumas
ideias fundamentais para entendermos esse sistema econômico e ético à imagem de uma
religião arcaica. O problema central do texto está na afirmação: Im Kapitalismus ist eine
Religion zu erblicken. Isto é, as distintas categorias da religião e da economia capitalistas
estariam compartilhando características fenomênicas e características essenciais. Seriam um
mesmo (e novo) fenômeno social, embora haja rupturas e continuidades desse conceito de
religião que merecem nossa atenção.

Palavras-chave: Capitalismo. Religião. Fenomenologia. Walter Benjamin.


ABSTRACT

We intend to attempt to contextualize and explain Walter Benjamin’s text entitled The
Capitalism as Religion (1921), in order to find the meaning proposed by the author when he
affirms an identity of essence and appearance between the capitalist system and the form of
religion. In addition to a comparison of its elements that are similar, or a genesis of capitalism
from the ‘so-called religions’, this text has some fundamental ideas to understand this economic
and ethical system in the image of an archaic religion. The central problem of the text lies in
the statement: Im Kapitalismus ist eine Religion zu erblicken. That is, the different categories
of capitalist religion and economy would be sharing phenomenal characteristics and essential
characteristics, they would be the same (and new) social phenomenon, although there are
ruptures and continuities in this concept of religion that deserve our attention.

Keywords: Capitalism. Religion. Phenomenology. Walter Benjamin.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO …………………………………........................................................ 9
2 O JOVEM BENJAMIN DE 1921 ……………….........……...…............................... 12
3 O QUE É A RELIGIÃO CAPITALISTA? ........……....…....................................... 20
4 O CULTO UTILITARISTA DO CAPITALISTA, O UTILITARISMO
DAS VIRTUDES TEOLÓGICAS ............................................................................ 29
5 O CARÁTER TOTALIZANTE DO CAPITALISMO E SUA CELEBRAÇÃO
INFINDÁVEL ….…………..................................................….................................. 38
6 OCULTAÇÃO E CULPABILIZAÇÃO, A DISTINÇÃO FUNDAMENTAL DA
NOVA RELIGIÃO DA MODERNIDADE …........................................................... 50
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS …….…......................................................................... 63
REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 66
9

1 INTRODUÇÃO

Pretendemos realizar uma tentativa de contextualização de um fragmento póstumo1


do filósofo alemão Walter Benjamin (1892 – 1940). Trata-se de um fragmento de texto
ensaístico que foi denominado de Kapitalismus als Religion (1921)2, encontrado em seus
arquivos junto de outros textos de temática conceitual aproximada, como por exemplo, os textos
Conselho Fiscal3 e Dinheiro e Clima4. Neste trabalho, iremos utilizar, principalmente, O
Capitalismo como Religião5, como base teórica do nosso autor. O problema central do texto
está na afirmação de que o capitalismo é uma religião: “no Capitalismo, uma religião pode ser
vista”6. Isto é, a sugestão de que as distintas categorias da religião e da economia capitalistas
estariam compartilhando não apenas características fenomênicas, mas também, características
essenciais, ou seja, seriam um mesmo (e novo) fenômeno social, que Benjamin chega a afirmar
ser decorrente de uma relação histórica-parasitária, embora haja rupturas e continuidades desse
conceito de religião que merecem nossa atenção. Entendemos que é um texto hermético e, por
possuir essa qualidade, não é possível realizar uma análise hermenêutica exata do sentido e da
intenção real do autor. Portanto, toda interpretação é apenas uma tentativa de sua compreensão,
como bem lembra Michel Löwy (2014, 2019) (1938 –)7.
Para além de uma comparação de seus elementos, que são semelhantes, ou de uma
gênese do capitalismo a partir das “assim chamadas religiões” (BENJAMIN, 2013a), este texto
possui algumas ideias fundamentais para entendermos esse sistema econômico (e ético) à

1
Walter Benjamin escreveu o texto por volta de 1921, mas foi somente em 1985 que O Capitalismo Como
Religião foi publicado na Gesammelte Schriften VI (Obras Escolhidas VI, Suhrkamp), organizada por Rolf
Tiedemann e Hermann Schweppenhäuser.
2
Título original presente no sexto volume das Obras Escolhidas. Cf. Gesammelte Schriften VI. Org. Rolf
Tiedemann e Hermann Schweppenhäuser. Frankfurt: Suhrkamp, 1985, p.100-103.
3
Conselho fiscal (título original: Steuerberatung) é o primeiro dos textos encontrados junto das folhas de O
Capitalismo como Religião nos arquivos originais de Benjamin e foi publicado primeiro em 1972 no quarto
volume das Obras Escolhidas. Cf. Gesammelte Schriften IV. Org. Tillman Rexroth. Frankfurt: Suhrkamp,
1972, p.139.
4
Dinheiro e Clima é o texto intermediário, que liga o Conselho Fiscal com O Capitalismo como Religião,
publicado nas notas de Conselho Fiscal no quarto volume das Obras Escolhidas. Gesammelte Schriften IV.
Org. Tillman Rexroth. Frankfurt: Suhrkamp, 1972, p. 941. Houve uma tradução feita por Roberto Carlos
Conceição Porto, publicada no Cadernos Walter Benjamin. Cf. Cadernos Walter Benjamin. n. 25. 2020.
Disponível em: https://www.gewebe.com.br/cadernos_vol25.htm. O título original Geld und Wetter (zur
Lesandendio-Kritik) indica que o fragmento de texto é uma crítica ao romance de Paul Scheerbart Lesabendio,
publicado em 1913 e que se trata de uma fábula cósmica ecológica.
5
BENJAMIN, Walter. O capitalismo como religião. Org. Michael Löwy. Trad. Nélio Schneider e Renato
Ribeiro Pompeu.São Paulo: Boitempo Editorial, 2013a.
6
Original: “Im Kapitalismus ist eine Religion zuerblicken”. BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften VI.
Org. Rolf Tiedemann e Hermann Schweppenhäuser. Frankfurt: Suhrkamp, 1985, p. 100.
7
LÖWY, Michael. Revolução é o Freio de Emergência: Ensaio sobre Walter Benjamin. Trad. Paolo
Colosso. São Paulo, Autonomia Literária, 2019. p. 11; LÖWY, Michael. A Jaula de Aço: Max Weber e o
marxismo weberiano. Trad. Mariana Echalar. São Paulo. Boitempo Editorial, 2014.
10

imagem de uma religião, como o cristianismo, protestantismo, judaísmo, paganismo etc. A


partir disso, examinaremos e apresentaremos, junto a Benjamin, sua crítica ao capitalismo e à
ideologia do progresso da sociedade burguesa moderna. Elaboraremos algumas hipóteses com
ajuda de comentadores que se debruçaram sobre o texto de Benjamin, para tentar explicar as
afirmações do filósofo alemão. A civilização capitalista-industrial moderna é o plano de fundo
do texto, que foi escrito no entre guerras e, a fim de estender nosso horizonte de compreensão
da noção de ‘capitalismo como religião’, contornaremos as referências que formam a base
bibliográfica do texto, e tentaremos compor nossa análise direcionando os fragmentos para um
diálogo com os comentadores.
Nosso comentador principal será o filósofo brasileiro Michael Löwy, sua
interpretação do texto, a partir da análise das partes e das referências bibliográficas, é-nos
indispensável para a realização desse trabalho; para complementar nossa pesquisa e ampliar a
perspectiva sobre o texto, usaremos também comentários paralelos do filósofo italiano Giorgio
Agamben (1942-) e do filósofo e ensaísta alemão Robert Kurz (1943 – 2012); também
dialogaremos com os breves comentários da psicanalista brasileira Maria Rita Kehl (1951-) e
da filósofa suíça Jeanne-Marie Gagnebin (1949-) a respeito do texto de Benjamin; usaremos a
biografia de Benjamin escrita por Bernd Witte para situar nosso trabalho no contexto pessoal e
histórico da época de redação do texto.
De acordo com Michael Löwy, o texto é composto de fragmentos (muitas vezes
enigmáticos) escritos por Benjamin para ele mesmo, de modo que o filósofo não teve interesse
em publicá-lo em vida. Entretanto, após serem publicados8, quase cem anos após serem
redigidos, os fragmentos conservam extrema atualidade e força inspiradora. Apesar da falta de
interesse em sua publicação, (1) ou por ser um esboço para leitura em seu ciclo estrito de amigos
ou (2) por ter sido um dos projetos interrompidos com o fracasso da revista de filosofia Angelus
Novus, Benjamin teve o interesse e o esforço de escrevê-lo; portanto, poderá ser considerado
uma parte, mesmo inacabada e enigmática, de seu pensamento. Além disso, inegavelmente é
um texto de uma crítica potente dentro da compreensão do capitalismo como cultura ou modo
de vida. A crítica benjaminiana rejeita o capitalismo como sendo a única forma de salvação ou
redenção da humanidade, buscando nas imagens do passado alguma forma de superação dessa

8
BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften VI. Org. Rolf Tiedemann e Hermann Schweppenhäuser,
Frankfurt, Suhrkamp, 1985.
11

condição, bem como de evitar um futuro catastrófico, uma forma de desvio pelo passado para
pensar um futuro diferente do presente9.
Michael Löwy afirma que Benjamin se apropria da expressão ‘capitalismo como
religião’, usada anteriormente por Ernst Bloch, embora o uso que Bloch faça dessa expressão
não nos interesse diretamente para a realização dessa pesquisa, Benjamin mantinha um diálogo
constante com Bloch e teve influência do sociólogo e amigo pessoal em seu pensamento,
abrindo caminhos que Benjamin usa para pensar uma ‘sociologia da religião capitalista’
propriamente sua: radicalizando noções de Max Weber, presentes na Ética protestante e o
espirito do capitalismo e, também, outras influências políticas e literárias que podem ter
influenciado seu pensamento, como exemplo do teórico anarquista Gustav Landauer, junto a
outros autores presentes nas referências bibliográficas do texto; para Benjamin, não apenas o
capitalismo surge dos valores morais cultivados pelo protestantismo, como também, tornou-se
uma religião, em suas palavras: “[...] uma religião puramente de culto, desprovido de dogmas”
(BENJAMIN, 2013a. p. 23). Nesse sentido, afastando-se da interpretação de Weber e de Bloch.
Primeiro, faremos uma breve exposição de alguns momentos da vida de Benjamin,
conforme narrado por Bernd Witte, para situarmos o fragmento no contexto da vida e da obra
de Benjamin. Depois, faremos uma análise de cada parte do texto, tentando correlacionar com
comentários feitos por Löwy, Agamben e Kurz; Kehl e Gagnebin compõem um reforço teórico
para uma compreensão mais ampla do fragmento. Começando do título, iremos analisar os
quatro traços constituintes do conceito central de religião capitalista, a chamada “estrutura da
religião capitalista” (BENJAMIN, 2013a. p. 21); o conceito principal é o de culto, que dele
derivam o caráter ininterrupto, o culpabilizador e o ocultado dessa religião. Além disso,
recorremos a alguns conceitos paralelos como os de ‘sacrifício’, ‘fé/crédito’, ‘profanação’ que,
de certa forma, mesmo não estando presentes no texto, são indispensáveis para entendermos o
sentido do fragmento de Benjamin. A análise das referências bibliográficas também foi
indispensável; entender com quem e para quem Benjamin fala pode ser a chave para a
compreensão mais ampla do debate que o texto propõe. Entretanto, só recorremos à análise
dessas referências, na medida em que são necessárias para alguma explicação breve de alguma
das partes da ‘estrutura religiosa do capitalismo’. Outras questões presentes no fragmento
poderão ser analisadas e contextualizadas em trabalhos futuros.

9
Cf. O prefácio à edição brasileira do livro Capitalismo Como Religião (2013), feito por Löwy. LÖWY,
Michael. Walter Benjamin, crítico da civilização. Trad. Renato Pompeu. In. BENJAMIN, Walter. O
capitalismo como religião. 2013a. p. 8.
12

2 O JOVEM BENJAMIN DE 1921

O manuscrito original possuiria três partes, conforme verificado na quarta e na sexta


edição de lançamento alemã10 e foi publicado separadamente em anos distintos. Inicialmente,
publicado em 1972 (1) uma “[...] primeira parte sem título nas folhas [26] e [27], continuação
com título no verso, Dinheiro e Clima (sobre a crítica à Lesabéndio) no anverso da folha [28]”
e alguns anos após, (2) uma segunda parte, O Capitalismo como Religião, publicada somente
em 1985, na qual
[...] contém umas das poucas manifestações de Benjamin sobre Nietzsche e Freud; ele
posicionou o título só sobre a segunda parte, após uma inserção de anotações sobre
Dinheiro e Clima (sobre a crítica à Lesabéndio) (BENJAMIN, 2013a. p, 21).

O primeiro texto (1), denominado de Conselho fiscal, acompanhado do poema


Dinheiro e Clima, compartilha com o segundo (2) algumas questões temáticas e conceitos inter-
relacionados (como exemplo, o tema das ‘cédulas bancárias’, da ‘arquitetura de fachada do
inferno’, da ‘santa seriedade do capitalismo’, além de abordar a questão ecológica da
exploração ambiental). Ambos os textos foram escritos por volta do mesmo período entre 1919
e 1921. Especificamente, O Capitalismo como Religião possui um debate sobre seu início e
conclusão; conforme a edição alemã ele é datado de 1921:

[...] O terminus a quo [data inicial] da redação está assegurado pelas referências
bibliográficas na primeira parte, na qual o livro mais recente citado é o de Unger, de
1921; o terminus ad quem (data final) pode ser determinado com o auxílio dos dados
na lista de leituras de Benjamin: entre os autores que com certeza não foram acolhidos
nela depois de meados de 1921 estão Sorel, Landauer e Adam Müller. Como o livro
de Müller foi citado na segunda parte do texto, pode-se dar como assegurado que este
foi finalizado em meados de 1921 (LÖWY, 2013a. p. 21).

Entretanto, Michael Löwy ressalta que o fragmento não é de “meados de 1921”,


como asseguram os editores da edição alemã, já que em uma carta datada de 27 de novembro
de 1921 destinada a seu amigo Gershom Scholem (1897 – 1982), Benjamin diz que acabara de
ler o livro de um outro amigo, este Ernst Bloch (1885 – 1977): “Recentemente, [Bloch] me deu,
em sua primeira visita aqui, as provas completas do Münzer e comecei a lê-las” (LÖWY, 2019,
p. 12), indicando, portanto, que o texto não foi redigido em “[...] “meados de 1921 no mais
tardar”, como fora indicado pelos editores [Obras escolhidas, 1985], mas somente no “final de
1921” (ibidem).

10
BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften IV. org. Tollman Rexroth, Frankfurt, Suhrkamp, 1972, p. 941;
Gesammelte Schriften VI, org. Rolf Tiedemann e Hermann Schweppenhäuser, Frankfurt, Suhrkamp, 1985,
p. 100-3, p. 890-6.
13

Na biografia de Benjamin escrita por Bernd Witte (1942 –) o período que marca a
redação do fragmento é denominado pelo biografo de Crítica de arte no espírito do romantismo
(entre 1917 e 1923). Nesse sentido, entendemos que o fragmento faz parte do conjunto das
obras críticas de juventude, influenciado, num contexto geral, pelos estudos sobre o romantismo
alemão. O Capitalismo como Religião foi escrito em Berlim na Alemanha, num contexto em
que Benjamin estava envolvido no projeto de edição da revista “Angelus Novus”, conforme
mostrado por Bernd Witte, e “[...] se ocupava exclusivamente de filosofia”11, justamente,
porque estava preocupado em garantir uma renda fixa para sustentar sua esposa e filho, como
diz, angustiado, numa carta a Gershom Scholem de dezembro de 1920,

[...] não posso me voltar para as coisas judaicas com todas as minhas forças antes de
extrair dos meus anos de aprendizado europeus aquilo que possa [garantir] um futuro
tranquilo, de sustento para minha família e coisas semelhantes (ibidem).

Era uma das preocupações que o afligiam na época, já que havia rompido relações
com seu pai em 1920, e, consequentemente não recebia mais apoio financeiro da família
(consequências econômicas inflacionárias do fim da Primeira Guerra Mundial em 1918), como
afirma Bernd Witte, as cartas desses meses “[...] falam de confrontos constantes que levaram a
uma “desavença total” com os pais e que também não terminaram quando Benjamin, no outono,
mudou-se para um apartamento próprio. (ibidem). Entretanto esse não era o único problema de
Benjamin na época, de acordo com o biografo, em janeiro de 1917, Benjamin havia recebido
mais uma ordem de alistamento militar e, para escapar da guerra, fingia ‘ataques de ciática’,
que simulava sob orientação de Dora Pollak; Benjamin e Dora se casam em abril e algum tempo
depois ele recebe o atestado médico que irá lhe livrar da Primeira Grande Guerra. Em julho
deste mesmo ano, Benjamin viaja para Suíça, onde se via aliviado por ter se livrado em
segurança da catástrofe pessoal e histórica da guerra e poderia finalmente se concentrar em
buscar um tema para sua tese de doutorado. Em abril de 1918, nasce seu filho Stefan, na cidade
de Berna na Suíça, cidade que Benjamin viveu por três anos antes de retornar à Berlim em 1920.
Ainda em 1918, Benjamin estava se ocupando na filosofia de Kant, numa primeira tentativa de
encontrar um tema para sua tese, então escreve o ensaio Sobre o programa da filosofia futura.
Como afirma Bernd Witte:

Em seu ensaio, que ele escreveu para clarificar as suas ideias e para servir de base
para a discussão com os seus amigos, Benjamin trata, na verdade, de superar a
limitação do conceito de experiência ao domínio das ciências matemáticas da
natureza, tal como supunha a filosofia acadêmica neokantiana. Por meio de uma
‘aniquilação’ da redução que Kant e os seus seguidores fizeram da experiência à

11
WITTE, Bernd. Walter Benjamin: uma biografia. Trad. Romero Freitas. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2017. p. 40.
14

‘consciência humana empírica’, Benjamin atribui à ‘filosofia futura' a tarefa de


realizar a ‘fundação de um conceito mais elevado de experiência’ (WITTE, 2017,
p.34)

Nesse ensaio, Benjamin reconhece a experiência religiosa como sendo uma


experiência tão elevada quanto o conceito de ‘experiência’ das ciências naturais matemáticas,
propondo assim uma recuperação da doutrina teológica na filosofia. Para ele, “o problema
fundamental da filosofia [...] talvez só possa ser recuperado a partir da época dos escolásticos”
(WITTE, 2017, p.35-36). De acordo com o biógrafo, “[...] a retomada benjaminiana da teologia
não deve ser entendida como uma idiossincrasia privada. Pelo contrário, observa-se nessa época
um giro teológico na obra de numerosos intelectuais” (WITTE, 2017, p.36). O fragmento O
Capitalismo como Religião está inserido nesse contexto de ‘retomada teológica’ que Benjamin
propõe; a linguagem predominante do fragmento é a linguagem teológica, não atoa os conceitos
e alguns problemas centrais deste estão presentes em outros escritos de Benjamin da época.
Witte afirma que desses autores do ‘giro teológico’, os que estariam mais próximos do
pensamento de Benjamin, seriam Ernst Bloch e Georg Lukács, respectivamente, com O espírito
da utopia e A teoria do romance; a relação de Benjamin e Bloch é ainda mais próxima, além
de serem amigos e vizinhos em Berna, na Suíça, Benjamin se dedicou ao estudo de O espírito
da utopia, primeiro livro do amigo, e escreveu uma resenha que acabou se perdendo
denominado O Verdadeiro Político. Para Witte, as semelhanças entre Lukács, Bloch e
Benjamin estariam sobre suas ‘posições fundamentais na filosofia da história’, para o biógrafo:

[...] Em Lukács, como em Bloch, o melhoramento do mundo, escatologicamente


esperado, permanece imediatamente ligado à sua atual miséria. O mesmo ocorre com
a futura renovação da doutrina teológica projetada por Benjamin, que, como o mais
novo dos três, aferra-se mais firmemente à terminologia da religiosidade tradicional.
Para todos eles, que se viam como opositores esclarecidos da guerra, excluídos da
esfera pública alemã oficial, o projeto de um cosmos inteligível era ao mesmo tempo
fuga e protesto – protesto contra um estado do mundo e da sociedade que lhes era
insuportável, mas do qual eles estavam imediatamente separados, devida a sua
condição de privilegiados social e economicamente.
Também é comum a todos os três autores a fundação histórica de suas teorias nas
teorias dos românticos. [...] Essa atualização encontra sua explicação na experiência
histórica análoga, que liga as duas gerações de guerra. Lukács, Bloch e Benjamin
procuram superar o colapso da imagem de mundo burguesa – surgida como filosofia
de vida, positivismo ou neokantismo – durante a catástrofe da Primeira Guerra
Mundial através de um investimento do criticismo com conteúdos metafísicos, tal
como os românticos [...] já haviam reagido a essa destruição com sua saída da filosofia
kantiana, criticada como formalista, em direção a uma nova mitologia. A busca
romântica de Deus como resposta a uma situação histórica de ruptura é a assinatura
do tempo, tanto em 1794 como em 1918. (WITTE, 2017, p.36-37)

Tanto Lukács, quanto Bloch, provavelmente, exerceram influência em Benjamin na


época, a inclinação para o romantismo dos três autores pode ser entendida como uma reação de
“[...] revolta contra a civilização capitalista-industrial moderna” (LÖWY, 2013a. p. 8), suas
15

insatisfações com a situação de guerra vigente, a opressão econômica e, em especial, a situação


cultural decadente do entre guerras. Como afirma Michael Löwy, “Benjamin não para de
construir, com as peças do caleidoscópio romântico, suas próprias figuras da subversão
cultural.” (ibidem). Bernd Witte afirma, na biografia, que “Benjamin reconheceu cedo a
atualidade do romantismo e deixou-se guiar por ele na sua busca por um tema para a tese de
doutorado.” (WITTE, 2017, p. 37). E assim o fez, dedicando-se entre 1918 e 1919,
exclusivamente, na redação da sua tese de doutoramento, isolando-se das notícias políticas da
Alemanha, mas como afirma Witte: “Apesar de sua reclusão exterior, Benjamin desenvolveu
em seu trabalho científico a mais fina sensibilidade para os problemas atuais do tempo”
(ibidem). Witte também cita uma carta de Benjamin a Ernst Schoen, de novembro de 1918, na
qual é esboçada o que pode ser entendido como a tese central de sua investigação de doutorado:
O trabalho trata do conceito romântico de crítica (da crítica de arte). O próprio
conceito moderno de crítica nasceu do conceito romântico; mas nos românticos
‘crítica’ era um conceito totalmente esotérico, que assentava sobre pressupostos
místicos no que se refere ao conhecimento, e que, no que diz respeito à arte, contém
em si as melhores perspectivas dos poetas da época e dos posteriores, um conceito de
arte novo, que em muitos aspectos é o nosso (ibidem).12

Como explica Michael Löwy, “O romantismo não é apenas uma escola literária do
século XIX ou uma reação tradicionalista contra a Revolução Francesa” (LÖWY, 2013a, p. 8).
Seria antes disso uma ‘forma de sensibilidade’, uma ‘visão de mundo’ que se estende até os
dias atuais e que em Benjamin ganha contornos subversivos. Essa sensibilidade romântica
assume, no geral, ora “[...] formas regressivas, reacionárias restauradoras, que visam um retorno
ao passado” (LÖWY, 2013a, p. 8), ora, assume formas revolucionárias, como é o caso de Walter
Benjamin, “[...] formas revolucionárias para os quais o objetivo não é uma volta para trás, mas
um desvio pelo passado comunitário para rumar ao futuro utópico” (ibidem). De acordo com
Bernd Witte, em sua tese de doutoramento, A Crítica de Arte no Romantismo Alemão, Benjamin
afirma que se aproximou do “centro do romantismo, o messianismo” (WITTE, 2017, p. 38),
apontando para uma questão frequente nas obras do filósofo, o messianismo como paradigma
histórico e teológico. Na sua tese, o conceito de ‘crítica’ aparece como o meio pelo qual o crítico
‘revela’ sua dependência à “Ideia” de arte. Para Witte, “[...] O vocabulário teológico dessas
definições mostra que aqui, como na filosofia da linguagem e na reinterpretação da crítica do
conhecimento kantiana, visa-se a um ponto máximo” (ibidem), a saber, o problema da
‘absolutização da obra’ na Ideia’, apontando para um fundamento mítico na linguagem.

12
Trecho de uma carta de Benjamin reproduzida por Witte presente em Briefe [Cartas] Hg. Von Theodor W.
Adorno und Gershom Scholem. Frankfurt, 1966. p. 203.
16

Witte narra que Benjamin passou o inverno de 1919-1920 entre Breitenstein e


Viena na Áustria, procurando manter-se distante de Berlim, na tentativa de permanecer na vida
acadêmica, mesmo durante uma crise econômica que atingiu a Alemanha; tanto sua família,
quanto ele, tiveram dificuldades financeiras, “[...] ele procurava criar um espaço livre em face
dos planos do seu pai, que tentava converter o jovem de 27 anos a arranjar uma profissão
“burguesa” após o termino de seus estudos” (WITTE, 2017, p. 38). Segundo Jeanne-Marie
Gagnebin, Benjamin entre 1919 e 1920 produziu importantes artigos, dentre eles dois se
destacam como fundamentais Destino e caráter (escrito em 1919) e Para a crítica da violência
(escrito em 1919-20), para a filósofa suíça:

“[...] Benjamin incorpora as observações sobre a tragédia [grega] a uma reflexão


muito mais ampla, simultaneamente metafísica e política. Cabe lembrar aqui que
Benjamin escreve o segundo ensaio sob o impacto da revolução alemã de novembro
de 1918 (que derrubou o Império e proclamou a República) e, mais ainda, da derrota
do movimento dos conselhos operários e do assassinato de Rosa Luxemburgo e de
Karl Liebknecht pela polícia berlinense em Janeiro de 1919. (GAGNEBIN, 2020, p.
1938).

Para Gagnebin, dentro do artigo Mito, Direito e Justiça em Walter Benjamin, há um


conceito comum que perpassa esses dois textos de Benjamin, seria o conceito de ‘mito’;
entretanto, esse conceito é o fundamento constituinte do problema que perpassa a ‘Culpa’ e o
‘Castigo’ dentro do Direito e sua relação com a ‘mera vida’, nas palavras da filosofa suíça, “[...]
uma vida que se esgota na sua naturalidade imanente” (GAGNEBIN, 2020, p. 1938). Seriam,
então, as instituições jurídicas que articulariam ‘culpa’ e ‘castigo’ como uma atualização
secularizada desses mesmos conceitos da mítica teológica, que colocam o homem como um ser
“[...] vivo entregue a um jogo de forças de natureza diversas que ele pode tão só reconhecer,
mas nunca escolher livremente” (ibidem). Isto é, o ‘homem’, jogado no mundo, sujeito às
intempéries da natureza e dos deuses, não tem outra alternativa a não ser aceitar a ‘ordem mítica
do destino’, e conforme indica Gagnebin, “mito” e “destino” são quase sinônimos no texto
Destino e Caráter – a “culpa” do homem se dá “pelo simples fato de que vive – e não porquê
deixou um estado primitivo de inocência (por ter cometido um crime ou desobediência que
acarretariam culpa e punição) – é que ele será condenado pelo destino” (GAGNEBIN, 2020, p.
193).
Já no texto “Para a crítica da violência” essa “mera vida” não é simplesmente uma
justificativa para a existência humana. Para Benjamin, “[...] trata-se muito mais de distinguir
rigorosamente a ordem da vida natural, onde reinam as forças da Natureza e do mito, e a ordem
da vida histórica, na qual prevalecem as decisões tomadas e assumidas pelos homens” (ibidem).
Nesse sentido, “de maneira teológica e judaica” (GAGNEBIN, 2020, p. 1940). Benjamin
17

contrapõe a vida determinada pela culpa e pelo destino, que essa culpa impõe, ou seja, a mera
vida e a sobrevivência natural à ‘vida verdadeira’ que implica ‘responsabilidade e
transcendência’ com essas escolhas. Para Jeane-Marie Gagnebin esses dois textos de Benjamin
estabelecem o problema do “[...] domínio do direito (das Recht) como sendo o sucessor da
ordem do destino e do mito, embora a instituição das normas jurídicas seja geralmente
concebida como um meio privilegiado de combater a arbitrariedade do mito” (ibidem).
Essa relação de sucessão (poderíamos dizer também continuidade e ruptura) entre
‘mito’ e ‘direito’ também está presente no fragmento O Capitalismo como Religião, na medida
em que (1) traz uma referência ao livro de Georges Sorel, Reflexões sobre a violência,
Capitalismo e direito. O caráter pagão do direito (BENJAMIN, 2013a, p. 23), e sugere (2) uma
investigação histórica que estabeleça as relações que o ‘dinheiro’ e o ‘mito’ desenvolveram
“[...] até ter extraído do cristianismo a quantidade suficiente de elementos míticos para
constituir seu próprio mito” (BENJAMIN, 2013a, p. 24). Para Benjamin essa relação de
sucessão não salva o direito de sua herança mítica, nas palavras de Gagnebin:

Essa ilusão repousa, diz Benjamin, na confusão funesta entre ‘o reino da justiça’ e a
‘ordem do direito’, esquecendo-se de que a justiça cabe somente a Deus enquanto o
direito é instauração humana de poder (Macht) e, portanto, sempre manifestação de
violência. Podemos entender essa relação de continuidade entre a ordem do mito e do
destino, de um lado, e a ordem do direito, de outro, pela relação análoga que mito e
direito entretêm com a culpa e com o castigo. Ambos precisam estabelecer primeiro
uma culpa, a transgressão de uma lei, seja ela dita natural ou jurídica, para poder
depois castigar, ou seja, para manifestar a força de seu poder. Em vez de pensar que
o direito teria como tarefa punir uma culpa perpetrada por um infeliz indivíduo,
Benjamin defende a ideia de que o direito cria a culpa para poder puni-la e manifestar
assim sua própria força (Gewalt). [...] ‘O direito não condena ao castigo, mas à culpa’.
A indiferença do direito em relação às circunstâncias da transgressão da lei não seria
índice de imparcialidade de uma pretensa justiça, mas somente assinalaria a violência
inapelável de seu poder, [...] para Benjamin, a instauração do direito enquanto esfera
de poder não nos redime do mito, mas, pelo contrário, perpetua sua violência sob o
manto de um acordo entre os homens. Não instaura a justiça, mas dissimula e, ao
mesmo tempo, consagra a gênese violenta do poder estabelecido. GAGNEBIN, 2020,
p. 1942 – 1943.

Jeanne Marie Gagnebin, em outro artigo, Teologia e Messianismo no pensamento


de Walter Benjamin, afirma haver uma “distinção conceitual entre o religioso e o teológico”
(GAGNEBIN, 1999, p. 196) em Benjamin, embora a profunda influência da “tradição
teológica, antes de tudo judaica, mas também cristã” (ibidem), em seu pensamento, não marque
uma aproximação com o fenômeno ‘religioso’ ou com a religião propriamente dita. Gagnebin
tenta cercar esse conceito de religião para Benjamin, na época da redação de O Capitalismo
como Religião, definindo-o em termos de sua significação etimológica, “religio”:
18

[...] como um ‘conjunto de doutrinas e práticas’ (Littré) que visa à integração do


homem no mundo, sua ligação com ele, isto é, antes de tudo, a aceitação do sofrimento
e da morte por meio do reconhecimento de um sentido transcendente (ibidem).

Ou seja, o reconhecimento e aceitação da condição mítica do homem como


‘culpado’ e ‘destinado’ a essa condição. Retornaremos ao comentário de Gagnebin sobre o
conceito de religião no pensamento do jovem Benjamin mais adiante em nosso trabalho; por
enquanto, interessa-nos entender as influências que Benjamin provavelmente teve antes de
escrever nosso texto base, O Capitalismo como Religião, um dos poucos textos de Benjamin
que trata do tema do fenômeno religioso, junto com o texto Dialogo sobre a religiosidade do
nosso tempo, redigido por volta de 1912-13, entretanto, como afirma Gagnebin, o vocábulo da
religião, religioso e da religiosidade “desaparece quase totalmente” (GAGNEBIN, 1999, p.
196) em detrimento da constante frequência e crescente importância do tema ‘teologia’ na obra
do filosofo alemão. Gagnebin afirma:

[...] Poderíamos dizer, como já o fizeram muitos comentadores13, que o interesse do


jovem Benjamin pelo fenômeno religioso se deve a sua leitura de Max Weber e a seu
entusiasmo, muito comum na época, por Nietzsche. No fragmento Capitalismo como
religião, por exemplo, as mais importantes características da Religião são os conceitos
de Schuld (dívida, culpa) e de culto, o primeiro eminentemente nietzschiano, o
segundo tomado a Simmel, outro modelo intelectual do jovem Benjamin, tudo isso no
contexto weberiano da ligação entre protestantismo e capitalismo. Benjamin foi
assimilando a temática, discutida na época, por meio de duas noções fundamentais: o
desencantamento do mundo de Max Weber e a morte de deus de Nietzsche, duas
noções das quais, no mínimo, não se pode afirmar que elas reforçam um paradigma
positivo do religioso! Aliás, em numerosos textos, Benjamin ataca os substitutos
religiosos medíocres que, como Max Weber já havia bem percebido, proliferam em
períodos de desencantamento, quando as grandes religiões desmoronam
(GAGNEBIN, 1999, p. 196-197).

Essas pistas que Gagnebin aponta sobre quais as possíveis referências fundamentais
do fragmento, ajuda-nos a entender, mínima e inicialmente, qual o ponto de partida que
Benjamin tomou para pensar essa questão da relação de identidade entre o fenômeno do
religioso, entendido como doutrina e pratica e, inversamente, o capitalismo, entendido como
fenômeno econômico e social. Além disso, outra possível influência para o fragmento está
exposta nele próprio, seriam as notas presentes, no decorrer do texto, sobre alguns autores
como: Georges Sorel, Erich Unger, Bruno Archibald Fuchs, Ernst Troelstsch, Gustav Landauer,
Adam Müller, autores fundamentais juntamente com Georg Simmel, Bloch e indiretamente o
Thomas Munzer de Bloch. Não é possível delimitar com exatidão quais seriam todas as
referências possíveis que fazem parte do conjunto, seria necessário um trabalho futuro mais
elaborado sobre essa base teórica. Entretanto, nossa escolha metodológica de delimitar a

13
Conferir a nota de Jeanne Marie Gagnebin (1999) sobre Norbert Bolz e Uwe Steiner no artigo referido.
19

pesquisa em uma breve análise sobre situações da vida pessoal, histórica e teórica de Benjamin,
que formam o plano de fundo da redação do texto, e a análise conceitual do texto propriamente
dito, parece-nos suficiente para compreender, mesmo que de forma introdutória, o peso da
crítica benjaminiana ao capitalismo em sua formatação religiosa. De acordo com Jeanne Marie
Gagnebin, O Capitalismo como Religião, por fazer parte dos escritos de juventude do filosofo
alemão, ainda não havia sido influenciado diretamente pelo pensamento de Karl Marx,
entretanto, já era influenciado pelo marxismo de forma indireta como se verifica pelas
referencias do fragmento. É somente, a partir da leitura do livro História e consciência de classe
de Georg Lukács em 1923, através do contato com Asja Lacis e Bertolt Brecht, que Benjamin
vai conhecer o marxismo mais a fundo. Em 1921, Benjamin recebia impulsos variados de todas
as direções, como afirma Gagnebin, “[...] oriundos tanto do romantismo alemão quanto do
messianismo judaico e do marxismo libertário”14.

14
GAGNEBIN, Jeanne Marie; BENJAMIN, 2013a. Texto de contracapa do Capitalismo como Religião.
20

3 O QUE É A RELIGIÃO CAPITALISTA?

O fragmento de texto, intitulado O Capitalismo como religião de Walter Benjamin,


denuncia o surgimento de uma nova religião da modernidade, embora esta nova religião
contenha traços arcaicos. O texto em si é composto por um pequeno esboço constituído,
primeiramente, de um comentário sobre o que ele acreditar ser a estrutura da ‘religião
capitalista’ e que ‘contém uma das poucas manifestações de Benjamin sobre Nietzsche e Freud’
(BENJAMIN, 2013a, p.21), seguido de algumas ‘notas descritivas’ e ‘referências
bibliográficas’ que fazem parte do corpo do texto. Nosso trabalho irá priorizar a análise desses
comentários em detrimentos dessas ‘referências bibliográficas’, na medida em que não temos
acesso aos textos citados por Benjamin. De acordo com um comentário de Michael Löwy, o
texto não teria “[...] sido destinado à publicação, Benjamin não tinha, certamente, nenhuma
necessidade de deixá-lo legível e compreensível” (LÖWY, 2019, p. 11). Nesse sentido, não é
possível afirmar com precisão quais eram as intenções de Benjamin ao escrevê-lo e/ou esquecê-
lo, entretanto é possível, ao menos, indicar algumas chaves de leitura aceitas entre estudiosos
de Benjamin para começar a compreender o ‘quebra-cabeça teórico’ deixado pelo filosofo
alemão.
O fragmento configura uma crítica à ‘civilização capitalista-industrial moderna’,
como denomina Michael Löwy (LÖWY; BENJAMIN, 2013a. p. 7). Esta seria o cenário no
qual teria se desenvolvido a religião capitalista que, por sua vez, atuaria transformando as
relações humanas em relações de ‘negócio’15; relações estas que, conceitualmente, constituem
a práxis dessa religião, ou seja, toda ação que antes era voltada, sem mediação, ao próprio
indivíduo como manutenção de si, e aos outros como desejo, e à natureza como subsistência,
dentro do contexto da religião capitalista, sofre uma metamorfose e passa a ser mediada pelos
dispositivos da Economia Política. Um exemplo disso seria a ‘mercadoria-dinheiro’ como uma
forma de mediação das relações sociais, troca de mercadorias e de serviços etc. Na religião
capitalista, o corpo se torna força de trabalho, o ‘outro’ se torna concorrente ou inimigo, e a
natureza apenas uma fonte de matéria-prima para a atividade econômica.
Para começar nossa análise, o título O Capitalismo como Religião sugere que
Benjamin esteja fazendo algum tipo de comparação, ou analogia (als, como indica o título em
alemão), entre os modos de produção-circulação capitalista e a forma cultural e ética da religião;
embora pareça arriscado afirmar uma identidade entre essas duas categorias, Benjamin parece
querer expressar uma intuição particular, a saber, o modo pelo qual o capitalismo atuaria

15
“Negócio” entendido no sentido de empreendimento comercial.
21

essencialmente como uma religião, aos moldes do cristianismo, ou, de outra maneira, mais
particular, o modo pelo qual a metafisica do dinheiro se expressaria na economia e na condição
de vida humana. Benjamin sugere que adotemos16 essa ‘visão de mundo’17 para podermos
enxergar, junto dele, como funcionaria a ‘adoração’ capitalista, ou como funcionaria a
‘estrutura religiosa do capitalismo’. É uma denúncia sutil em forma de sugestão, mas que
carregada um teor crítico particular ao pensamento de Benjamin, sob a influência de um
“romantismo” que se opõe “ao espírito quantificador do universo burguês” através da potência
da “energia melancólica do desespero” (LÖWY; BENJAMIN, 2013a. p. 8), do “messianismo
judaico” e um certo “marxismo libertário” (GAGNEBIN; BENJAMIN, 2013a).
Löwy afirma que: “O título do fragmento é diretamente emprestado do livro de
Enrst Bloch, Thomas Münzer, teólogo da revolução, publicado em 1921” (LÖWY, 2019, p.
11).18 Essa informação trazida pelo comentador é importante para entendermos o que está sendo
discutido no contexto de O Capitalismo como Religião. O livro Thomas Münzer trata,
justamente, de um comentário crítico acerca da obra de Max Weber, especificamente da Ética
protestante. O que interessa ressaltar é que Benjamin está dialogando diretamente com uma
ideia criada por Bloch, e, consequentemente, também, dialogando com as ideias de Max Weber,
embora não sejam apenas esses os diálogos que compõe a ideia central do texto.
“O capitalismo deve ser visto como uma religião” (BENJAMIN, 2013a, p.21), é
assim que Michael Löwy traduz o início do fragmento, seria a partir de uma tomada de posição
que se poderá definir os termos para tratar o capitalismo dessa maneira especifica, embora,
também, possamos entender esse início como uma possível sugestão: a palavra ‘deve’ aparece
no sentido de ‘dever ser’, como uma tomada de decisão ainda teórica ou imagética, indicando
conforme às outras traduções, uma certa ‘possibilidade’ de entender ou ‘enxergar’ o capitalismo
como uma religião. Apesar de Benjamin estar escrevendo somente para ele mesmo, nota-se que

16
Im Kapitalismus ist eine Religion zuerblicken (BENJAMIN, 1985). Poderíamos entender que Benjamin está
fazendo uma sugestão, indicando que é possível identificar semelhanças, entretanto, “ist eine” não parece
indicar uma relação de comparação, mas uma relação de equiparação: “No Capitalismo é visível uma religião”
ou “Uma religião pode ser vista no capitalismo”, tradução nossa. Já na tradução de João Barrento está: “O
capitalismo apresenta-se como uma religião”. BENJAMIN, Walter. O Anjo da História. Org. Trad. João
Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013b.
17
Como vemos nas possibilidades de tradução dessa frase, o que predomina é o sentido do verbo “zu erblicken”,
Benjamin se refere ao ato de enxergar, indicando que existe algo no capitalismo que não é meramente
comparativo a uma religião, mas que, visivelmente, estariam relacionados no mesmo fenômeno.
18
“Na conclusão desse capítulo dedicado a Calvino, Bloch denunciava, na doutrina do reformador de Genebra,
uma manipulação que vai “destruir completamente” o cristianismo e introduzir “elementos de uma nova
‘religião’, aquela do capitalismo erigido ao status de religião (Kapitalismus als Religion) e que se tornou a
Igreja do Deus da Avareza”. Nas notas do autor: “E. Bloch. Thomas munzer, théologien de la revolutión. Paris:
UGE, “10/18”, 1964, trad. De Maurice Gandillac, p. 182-183. Na segunda edição, Bloch substituiu “Igreja de
Satã” por “Igreja do Deus da Avareza”, a “Église de Mammon”. Cf. Thomas Munzer, teólogo da revolução.
São Paulo: Tempo Brasileiro, 1973.
22

ele defende seriamente essa tese, postura que nós também estamos tentando tomar para
minimamente compreender sua intuição. É uma proposta de crítica ao capitalismo a partir de
uma linguagem provinda da sociologia da religião, entrelaçando termos sociológicos e
econômicos ao linguajar da teologia.
Robert Kurz, no livro Dinheiro sem valor, esboça um comentário crítico
interessante a respeito do fragmento benjaminiano. O intérprete está interessado no texto O
Capitalismo como religião, na medida em que pode contribuir para o “[...] debate sobre o
carácter do dinheiro moderno e da sua crise”19, ele diz:

[...] Não deixa de ser problemática a equiparação imediata do capitalismo à religião,


pois temos de nos abstrair em demasia da ruptura profunda entre as formações
constituídas de forma religiosa e o moderno fetiche do capital, o mesmo se aplicando
às referências legitimadoras completamente diferentes em termos qualitativos. Esta
tentativa de abordagem tem, contudo, a sua justificação se considerarmos o facto de a
tematização do carácter metafísico real do capital ter estado completamente soterrada
no que à história das teorias diz respeito e, até hoje, pouco ter avançado (ibidem).

Ainda que Kurz faça uma interpretação do texto O Capitalismo como Religião, sua
análise exige demais do jovem Benjamin de 1921, que ainda não tinha se tornado marxista, e
que entendia superficialmente, através de outros autores, o que era a teoria de Marx, colocando
o texto dentro de um panorama crítico marxista-esotérico, ao lado de Rosa Luxemburgo, Georg
Lukács e Theodor W. Adorno. Para Kurz, ao contrário do ‘método positivista de elaboração
teórica’, comum no que ele chama de ‘Nova Leitura de Marx’, na qual “[...] os problemas da
ruptura categorial histórica entre as sociedades pré-modernas e o capitalismo, bem como da
verdadeira gênese do dinheiro – sacral na sua origem –, perderam-se” (ibidem) na disputa entre
a ortodoxia marxista e a nova leitura de Marx, e a “[...] remissão para um nexo entre
‘capitalismo e religião’, pelo contrário, procuraria tornar visível a irracionalidade interna e o
caráter místico-real ou metafisico-real da relação social supostamente arqui-racionalista”
(KURZ, 2020) do capitalismo.
Kurz faz uma interpretação literal do fragmento benjaminiano, colocando o
capitalismo como algo diverso de uma religião por suas diferenças históricas-conceituais, como
o título póstumo sugere com o termo als (analogia), e, portanto, se distanciando da proposta de
Benjamin de pensar a ‘identidade de essência’ entre as categorias; contudo Robert Kurz não
nega completamente a intuição presente no texto (e é isso que nos interessa com sua
interpretação), e a utiliza, dentro desse recorte teórico que traz, como ferramenta para
compreender a crise do valor na modernidade (ou pós-modernidade). Sua tese é a de que

19
KURZ, Robert. O sacrifício e o regresso perverso do arcaico. In: Dinheiro sem valor (2012). Disponível em:
http://www.obeco-online.org/rkurz408.htm. Acesso em: 21/02/2020.
23

Benjamin esteja se referindo, com a relação de analogia ou identidade entre capitalismo e


religião, a uma continuidade e uma ruptura desses modos categoriais. Desse modo, o
capitalismo se constituiria como um fenômeno moderno e a religião como um fenômeno pré-
moderno, que perdura nesse sistema econômico em forma secularizada, embora, para Kurz,
Benjamin esteja se referindo, de forma prematura, ao conceito de ‘fetichismo’20 em Karl Marx.
Para o capitalismo ser entendido como uma religião, seria necessário primeiro
passar a vê-lo como tal, ou seja, usar das categorias teológicas para falar sobre os processos
éticos e culturais da economia-política. Podemos, agora, perguntar: o que faz com que o
capitalismo possa ser visto assim, ou melhor, o que é essa religião? Benjamin diz: “[...] o
capitalismo está essencialmente a serviço da resolução das mesmas preocupações, aflições e
inquietações a que outrora as assim chamadas religiões quiseram oferecer resposta”
(BENJAMIN, 2013a, p. 21). Religião21, dentro desse recorte feito pelo filosofo alemão, seria
aquilo que ofereceria respostas ou uma cura para as angústias humanas, sendo assim, no sentido
econômico-religioso, o capitalismo se revelaria como sendo essa possível salvação/redenção ou
resolução dos problemas da vida humana. O capitalismo teria tomado para si o lugar do
‘sagrado’ que outrora as religiões, medieval e arcaicas, possuíam, e com isso, exerciam
influência na vida humana; ele toma para si a tarefa de ser uma nova salvação, revelada pelas
novas relações sociais e econômicas. Não mais a promessa e a confissão, as orações e a
abnegação, o clamor a Deus e o seu perdão, mas, agora, o trabalho assalariado e a mais-valia,
o dinheiro e o pagamento das dívidas, bancos, shoppings, tribunais e penitenciárias, escolas,
universidades, etc., são as novas formas de expressão dessa religião.

20
Ora, Benjamin se refere às diversas características religiosas do fetiche do capital (que não designa deste
modo). Kurz não ignora a informação que Benjamin ainda não tinha maior contato com a obra de Karl Marx
em 1921, mas supõe que exista uma relação de semelhança entre a ‘crítica da religião capitalista’ de Benjamin
e o ‘fetichismo da mercadoria’ da Crítica da Economia-Política de Marx.
21
‘Religião’, de acordo com o verbete do Dicionário de Filosofia de Nicola Abbagnano, pode significar tanto a
“crença na garantia sobrenatural de salvação”, quanto as “técnicas destinadas a obter e conservar essa garantia”,
uma certa ambiguidade que remete a sua etimologia. “Etimologicamente, essa palavra significa provavelmente
‘Obrigação’, mas, segundo Cícero, derivaria de relegere: “Aqueles que que cumpriam cuidadosamente todos
os atos do culto divino e, por assim dizer, os reliam atentamente foram chamados de religiosos – de relegere
[...] Para Lactâncio e S. Agostinho, porém, essa palavra deriva de religare”. Essas duas ideias de religião são
classificadas de acordo com o problema fundamental que correspondem: “I. Com base no problema da origem
da religião, que na realidade é o problema do tipo de validade da religião; II. Com base no problema da função
atribuída à religião, ou seja, o caráter específico da garantia que ela oferece à salvação do homem”. Em resumo:
os problemas da origem e validade da religião dizem respeito a três principais soluções, 1) da origem divina,
2) da origem política e 3) da origem humana da religião; e os problemas da função especifica da religião dizem
respeito a dois principais problemas, 1) o problema da garantia de salvação (através da libertação, da verdade
e/ou da moralidade) e 2) do “ponto de vista da função exercida pela religião na sociedade ou na economia geral
da vida humana”. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bossi.5. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2007. p. 846 – 852. Walter Benjamin parece romper com as definições tradicionais de religião,
assumindo um conceito de religião que, de certa forma, abrange sua ambiguidade.
24

Mais à frente, no texto O Capitalismo como religião, Benjamin se refere


novamente, em uma das ‘notas’, a essas angústias humanas, em específico, às “preocupações”,
definindo-a como “uma doença do espírito própria da época capitalista” (BENJAMIN, 2013ª,
p.24). Entretanto, retornaremos a este ponto, somente, mais adiante. Benjamin recorre a um
conceito de religião novo, diferente daquela da tradição acadêmica de sua época. Como sugeriu
Jeanne Marie Gagnebin, ao pensar o conceito de religião nesse período da vida de Benjamin
(entre 1913 e 1921): “[...] Podemos incialmente nos satisfazer com uma definição tradicional
de religião de acordo com a etimologia (religio), como um ‘conjunto de doutrinas e práticas’
(Littré) que visa à integração do homem no mundo” (GAGNEBIN, 1999, p. 196). Apesar de
que, em específico em O Capitalismo como religião, Benjamin não parece fazer referência
imediata a essa definição. Novamente, Robert Kurz nos ajuda com sua interpretação do
fragmento:

O problema parece consistir em que Benjamin, por um lado, tende a entender a


religião mais no sentido moderno, como uma relação de fé subjectiva e como um culto
exterior com a finalidade de canalizar problemas psíquicos, e menos como a relação
bem material de reprodução agrária que a constituiu em termos históricos. Desta
percepção inadequada decorre, em seguida, o analogismo exterior com respeito a
“preocupações, tormentos e inquietações” igualmente indeterminadas em termos
históricos, ao passo que a verdadeira diferença social entre o fetiche pessoal das
relações de obrigação imediatas e o fetiche objectivado da “riqueza abstracta” não é
abordada e este último, se bem que seja objecto de alusões, não é apreendido com
precisão (KURZ, 2012)

Kurz, primeiramente, alerta para a problemática definição de religião, adotada por


Benjamin, que se prenderia em demasiado numa perspectiva protestante, considerando a fé algo
precisamente particular (individualista), subjetivo (espiritual) e, por conta disso, entenderia
religião em um sentido exterior ao sujeito, como relação social, como um guia de valores morais
voltados a um culto, interessado em curar as “doenças do espirito”, deixando de lado uma
definição de religião que se preocuparia na materialidade das relações de “reprodução agrária
[feudal] que a constituiu em termos históricos” (ibidem). Embora discorde de Benjamin, Kurz
não ignora a pretensão benjaminiana de reclamar um conceito de religião que ressalte o caráter
metafisico predominante na sociedade moderna capitalista. Na problematização do conceito de
religião, utilizado por Benjamin, Kurz afirma que esse conceito de religião teria seu sentido
ambíguo ou aberto, ora como ruptura das formações religiosas anteriores, ora como
continuidade funcional do caráter moral, ou validador de valores. Retomando o que foi dito por
Gagnebin, parece que Benjamin não só entende o conceito de religião, a partir de sua
etimologia, como o entende, também, a partir do conceito mítico de religião, no qual a religião
25

se mostra como a possibilidade de transcendência, ou melhor, como uma forma de redenção de


uma condição angustiante de vida, mas através da prática do culto.
Em especial, n’O Capitalismo como Religião, Gagnebin afirma que o conceito de
religião como culto é possivelmente tomado de Georg Simmel, mas dentro de um contexto do
“círculo Max Weber de Heidelberg” (GAGNEBIN, 1999, p. 197). Ou seja, Benjamin,
provavelmente, tem em mente o conceito de religião, tanto em sua forma etimológica, quanto
weberiana. A conceituação da religião como aquela que vai garantir a segurança e estabilidade
para as ‘preocupações, aflições e inquietações’, ainda não parece suficiente para compreender
o fragmento, entretanto, necessitamos dessa conceituação primária para prosseguir na análise.
“A demonstração da estrutura religiosa do capitalismo, que não é só uma formação
condicionada pela religião, como pensou Weber, mas um fenômeno essencialmente religioso”
(BENJAMIN, 2013a, p. 21). Esta menção a Weber não é em vão, é o ‘sociólogo de Heidelberg’
que abre caminho para que Benjamin possa pensar a religião capitalista; de acordo com Löwy:
“O texto de Benjamin inspirou-se, com toda evidência, em A ética protestante, citada duas
vezes: primeiro no corpo do documento e, em seguida, nas referências bibliográficas” (LÖWY,
2014, p. 97). Benjamin faz menção à tese da Ética protestante o espírito do capitalismo, na
qual a nota da edição alemã informa que se refere à edição de 1920 dos Ensaios de sociologia
das religiões; com a tese de que a gênese do capitalismo seria proveniente do desenvolvimento
e apropriação de valores e práticas cristã-protestantes.
Junto à menção a Weber, nas referências bibliográficas, está também Ernst
Troeltsch com sua obra A doutrina social das Igrejas e grupos cristãos de 1912, da qual Löwy
afirma que “defende teses sensivelmente idênticas às de Weber no que diz respeito à origem do
capitalismo” (LÖWY, 2014, p. 97). Mais adiante, em “O Capitalismo como religião”,
Benjamin retoma essa questão da origem do capitalismo de outro modo, “[...] sob uma forma
um pouco atenuada, de fato mais próxima do argumento weberiano” (LÖWY, 2019, p. 13),
como mostra Benjamin: “Na época da Reforma, o cristianismo não favoreceu o surgimento do
capitalismo, mas se transformou no capitalismo” (BENJAMIN, 2013a, p. 24). De acordo com
Löwy, esse trecho da obra: “[...] não é de todo distante da conclusão da Ética protestante”
(LÖWY, 2019, p.13). Entretanto, ganha uma outra amplitude essencialmente benjaminiana:
“Mais inovadora é a ideia da natureza estritamente religiosa do próprio sistema capitalista: trata-
se de uma tese bastante mais radical que a de Weber, mesmo se ela se apoia em elementos desta
análise” (ibidem).
A partir dessa passagem de O Capitalismo como religião, seria interessante trazer
o filosofo italiano Giorgio Agamben para dialogar e contribuir com nossa análise. No seu texto
26

Benjamin e o capitalismo, Agamben cita o fragmento de Benjamin, fazendo referência a essa


passagem em que Weber é invocado à memória; Agamben deixa claro que Benjamin está
concordando com a tese da secularização da fé protestante, ao mesmo tempo que tenta superá-
la, ao afirmar que o capitalismo é “um fenômeno religioso”22 em si. Provavelmente, os textos
de Ernst Troeltsch e Max Weber eram as melhores referências sobre a relação problemática da
fé cristã/protestante com o capitalismo que se tinha acesso na época da redação do Capitalismo
Religião. O interesse de Benjamin nessas obras é de cunho crítico, se enxergarmos a partir do
que afirma Agamben, Benjamin está de acordo com as conclusões de Ernst Troeltsch e Max
Weber, e parece comentá-las criticamente em O Capitalismo como religião –, muitos dos
conceitos tratados pertencem a esse diálogo entre Troeltsch e Weber (e, particularmente, ao
diálogo benjaminiano com Bloch). Agamben, em um outro texto, Elogio da profanação,
também pode contribuir para a interpretação de O Capitalismo como religião:

Procuremos continuar as reflexões de Benjamin [...]. Poderíamos dizer que o


capitalismo, levando ao extremo uma tendência já presente no cristianismo, generaliza
e absolutiza, em todo âmbito, a estrutura da separação que define a religião. Onde o
sacrifício marcava a passagem do profano ao sagrado e do sagrado ao profano, está
agora um único, multiforme e incessante processo de separação, que investe toda
coisa, todo lugar, toda atividade humana para dividi-la por si mesma e é totalmente
indiferente à cisão sagrado/profano, divino humano (AGAMBEN, 2007, p. 71).

Essas ideias, de sacrifício, sagrado e profano, serão indispensáveis para forjar nossa
análise do texto de Benjamin, retornaremos a elas mais adiante. Por enquanto, já sabemos que
a tese da secularização não é suficiente para Benjamin, sua intuição filosófica é mais radical,
colocando o capitalismo no mesmo patamar que outras religiões. Entretanto, Kurz argumenta
que, na passagem na qual Benjamin afirma que sua tese sobre a religião capitalista o “levaria
ainda hoje a desviar para uma polêmica generalizada e desmedida”, da qual não teria “como
puxar a rede dentro da qual nos encontramos” e que somente “mais tarde, porém, teremos uma
visão geral disso” (BENJAMIN, 2013a, p. 21), o próprio Benjamin assumiria que sua ideia
seria prematura historicamente:

[...] Apenas podemos conjecturar o que Benjamin quer dizer aqui com o “descaminho
de uma polémica universal desmedida”. Como decorre das duas frases subsequentes,
esta observação só pode realmente referir-se às condições históricas do seu tempo
(1921). Benjamin devia ter a noção de que o desenvolvimento ou mesmo a “prova”
da sua ideia não podia ser mediável com as condições de desenvolvimento e
consciência então existentes, ou seja, que apesar do eventual conteúdo de verdade da
teoria e da prática da crítica social [...], ele não poderia ter sido implementado após a
I Guerra Mundial: “Não podemos puxar a rede.” Por isso, a ideia continua a ser uma

22
AGAMBEN, Giorgio. Benjamin e o capitalismo. Trad. Selvino José Assmann. Blog da Boitempo, 2013a.
Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2013/08/05/benjamin-e-o-capitalismo. Acesso em: 01 de
fevereiro de 2022.
27

intuição e um fragmento, tem de se remeter historicamente para “mais tarde”.


“Mais tarde”, porém, é agora, no início do século XXI (KURZ, 2012).

Contrastando com essa interpretação de Kurz, Michael Löwy vê de outro modo, ele
diz na Revolução é o freio de emergência: “[...] Curioso argumento! Como esta demonstração
o deixaria preso dentro da teia capitalista? De fato, o ‘ponto’ não será abordado ‘mais adiante’,
mas logo em seguida, sob a forma de uma demonstração, correta e exata, da natureza religiosa
do capitalismo” (LÖWY, 2019, p. 13); e no Jaula de aço coloca como “[...] demonstração,
segundo a boa praxe, da estrutura religiosa do capitalismo, a partir de três traços significativos”
(LÖWY, 2014, p. 98). Löwy elogia a forma que Benjamin expõe a estrutura da religiosidade
capitalista, “uma demonstração, correta e exata, da natureza religiosa do capitalismo”, enquanto
23
na segunda adota uma interpretação mais branda, mas, ainda carregada de otimismo . Em
resumo: Löwy toma a estrutura textual do fragmento para justificar sua interpretação,
diferentemente de Kurz que interpreta literalmente a passagem e busca justificá-la
historicamente, apelando pro “messianismo” de Benjamin. Entretanto, observamos que ambos
concordam na tese da atualidade do fragmento e na verdade da ‘intuição’ benjaminiana.
Outra interpretação para essa passagem do fragmento seria uma referência direta a
Max Weber, quando ele usa uma linguagem parecida com a utilizada por Benjamin para se
referir à polêmica tese da origem religiosa do capitalismo –, esse desenvolvimento histórico
que perpassa a ética protestante e a ética do ‘dever profissional’ capitalista:

[...] Atualmente a ordem econômica capitalista é um imenso cosmos em que o


indivíduo já nasce dentro e que para ele, ao menos enquanto indivíduos, se dá como
um fato, uma crosta [carapaça] que ele não pode alterar e dentro da qual tem que viver.
Esse cosmos impõe ao indivíduo, preso nas redes do mercado, as normas da ação
econômica. O fabricante que insistir em transgredir essas normas é indefectivelmente
eliminado, do mesmo modo que o operário que a elas não possa ou não queira se
adaptar é posto no olho da rua como desempregado (WEBER, 2004, p. 47- 48)

Benjamin parece aceitar essa ideia pessimista de Weber, e assume a polemica do


seu modo, “não temos como puxar a rede dentro do qual nos encontramos” (BENJAMIN,
2013a, p. 21). Do ponto de vista individual, esse indivíduo nascido na religião capitalista não
tem outras alternativas a não ser aceitar as condições de sociabilidade dominante, “mais tarde”
(WEBER, 2004, p. 47- 48) essa ideia de “totalização” parece retornar de forma geral e diluída

23
Adotamos as duas versões do mesmo texto para podermos enxergar as mudanças textuais que podem contribuir
para o entendimento do Capitalismo como Religião. Considerando a diferença no ano das publicações, o Jaula
de aço de 2014 e o Revolução é o freio de emergência de 2019, podemos observar certa maturação da
interpretação de Löwy. O mesmo critério foi utilizado para a escolha de utilizar comentadores com visões
distintas sobre as mesmas passagens do texto de Benjamin.
28

na caracterização da religião capitalista, como afirma Löwy na sua interpretação24. Contudo,


continuando com a interpretação de Robert Kurz, ele destaca que: o que importa, “portanto, [é]
resolver o enigma histórico e conceptual colocado por Benjamin” (KURZ, 2012) e avança na
sua argumentação se interrogando:

[...] O capitalismo tem traços cultuais, o que leva a identificá-lo como religião. Mas
se se trata, no caso, como já demonstrámos, de uma mera analogia, em que consiste
está realmente e em que se distingue o capitalismo das formações pré-modernas,
agrárias e constituídas de forma religiosa? A referência à diferença entre a constituição
transcendente (relação com Deus) e a constituição transcendental não deixa de estar
correcta, mas ainda é demasiado abstracta; a referência às representações e relações
de obrigação pessoais por contraposição ao movimento em si mesmo objectivado da
“riqueza abstracta” também está correcta, mas permanece sobretudo fenomenológica.
O que é mais precisamente, então, aquilo que condiciona tanto a continuidade como
a ruptura? (KURZ, 2012)

As questões levantadas por Kurz serão retomadas oportunamente mais adiante.


Com isso, avançando na análise do fragmento, Benjamin adianta: “Contudo, três traços já
podem ser identificados na estrutura religiosa do capitalismo” (BENJAMIN, 2013a, p. 21). A
maneira que Benjamin expõe esses traços pode gerar interpretações diversas, ele usa dos
indicativos ‘primeiro lugar’, ‘segundo traço’, ‘terceiro traço’ e ‘quarto traço’, podendo gerar a
compreensão que são quatro ao invés de três traços fundamentais. Nossa interpretação leva em
consideração que, ‘primeiramente’, Benjamin estabelece uma base real, ou melhor, uma
característica geral que se baseia numa teoria ‘sócio-teológica’, seguida dos pilares, ou
características constituintes dessa primeira definição ‘concreção’ da estrutura da religião
capitalista, opondo-se radicalmente contra a ideia de ‘secularização’ proposta por Weber.

24
“Benjamin não cita mais Weber, mas, na verdade, os três pontos se nutrem das ideias e dos argumentos do
sociólogo, conferindo a eles uma amplitude nova, infinitamente mais crítica, mais radical – social e
politicamente, mas também do ponto de vista filosófico (teológico?) – e perfeitamente antagônico à tese
weberiana da secularização” (LÖWY, 2019, p. 13-14)
29

4 O CULTO UTILITARISTA DO CAPITALISTA, O UTILITARISMO DAS


VIRTUDES TEOLÓGICAS

[...] Em primeiro lugar, o capitalismo é uma religião


puramente cultual, talvez até a mais extremada que já
existiu. Nele, todas as coisas só adquirem significado na
relação imediata com o culto; ele não possui nenhuma
dogmática, nenhuma teologia. Sob esse aspecto, o
utilitarismo obtém sua coloração religiosa (BENJAMIN,
2013a, p. 21).

Benjamin, antes de expor os traços que constituem a estrutura religiosa do capital,


estabelece uma definição geral e primeira da estrutura real dessa religião. É uma religião que
não se define por ser uma igreja ou uma seita específica, como as religiões tradicionais, mas
que compartilharia, com estas, a característica central e fundamental do culto. Toda ação
representa um culto a alguém (ou a alguma coisa) específica. Sem muito mistério, todos os
rituais que perpassam o dinheiro (o intermediário que “Nele” e por “Ele” se imprime um
significado específico nesse mundo e nas relações sociais humanas), não apenas como papel-
moeda, mas como mercadoria tornada universal. Esta é um dos Deuses da civilização burguesa
moderna.
O adorador não cultua somente ao Deus dinheiro, ele não é o único fenômeno dessa
religião, o dinheiro, na sua forma universal, é apenas um momento dentre as multiformes
manifestações do culto, a adoração está presente em toda ação possível dentro dessa estrutura
religiosa. O adorador não é um sujeito consciente, mas é uma generalização que aparece como
consequência desse modo de abordar as relações mercantis do capitalismo. O culto está
intrínseco em todas as atividades desenvolvidas no ‘mundo do mercado’, de modo inconsciente,
por estar dissolvido na rotina, exalando de todos os processos que sustentam a sociedade civil
burguesa. Ainda que, espacialmente, essas relações não estejam totalmente acabadas, faz parte
do caráter universalizante dessa religião se expandir para todos os lugares onde ainda não se
desenvolveram as relações de dominação da cosmologia do mercado. O progresso caminha ora
hiper acelerado, ora lentamente, para dentro de todas as relações humanas. A exemplo da
odisseia do campo para os centros urbanos, da própria ideia de urbanização, do apagamento da
memória dos povos originários através da indústria do álcool, da disputa de território pela
indústria do agronegócio etc. O trabalho assalariado é um desses fenômenos da religião
capitalista, muitas vezes em troca de nada, assemelhando-se à escravidão. Dessas novas
relações sociais capitalistas, poderíamos dizer que a religião que Benjamin denuncia se
confundiria com a do conceito de religião da “obrigação” (ABBAGNANO, 2007, p. 846 – 852).
30

A interpretação de Michael Löwy nos é interessante, ela ilustra concretamente onde


poderiam ser localizados exemplos dessa ‘base concreta’ do capitalismo como religião, para
ele: “Portanto, as práticas utilitárias do capitalismo – o investimento do capital, as especulações,
as operações financeiras, as manobras, a compra e venda de mercadorias – são equivalentes a
um culto religioso” (LÖWY, 2019, p. 14). Porém, Löwy não nos dá o exemplo da produção de
riqueza abstrata (reclamada por Kurz), mas ela está implicada no culto, o trabalho é uma das
formas de manifestação do culto. Tanto os investimentos de capital, quanto o trabalho de
produção de mercadorias e fornecimento de serviços, são ações sacrificiais que afirmam o culto.
O adorador não tem escolha, tudo está direcionado ao culto: a vida perde seu sentido original
de viver, viver se torna um eterno negócio, um eterno sacrifício. A existência tem um custo,
possui um preço: o custo de vida, “[...] O capitalismo não exige adesão a credo, doutrina ou
‘teologia’; o que importa são as ações, que, por sua dinâmica social, dizem respeito às práticas
cultuais” (LÖWY, 2014, p. 98). Diferentemente de Löwy, a interpretação de Robert Kurz,
interessada na ideia de sacrifício como partícula que interliga a continuidade e a ruptura em O
Capitalismo como religião, é mais crítica à Benjamin:

O momento mais fraco, porque mais pobre, na argumentação de Benjamin é a


referência ao carácter de culto da relação do capital. Trata-se de uma mera analogia
que se fixa na superfície dos fenómenos. Certamente que as acções quotidianas no
capitalismo, do relógio de ponto até à caixa de supermercado, passando pelo balcão
bancário, recordam de uma maneira que chega a ser ridícula grotescos rituais cultuais,
o que há muito que se tornou um lugar comum na literatura. (KURZ, 2012)

Para Kurz, a analogia de Benjamin, a comparação das ‘práticas utilitaristas’ com a


realização do culto é puramente fenomenológica25, por conseguinte, uma descrição fraca
criticamente. Kurz faz menção imediatamente ao trabalho cotidiano, o utilitarismo se
manifestaria, portanto, como expressão desse culto. O dinheiro foi, no sentido religioso-
capitalista, colocado em outro patamar, completamente, diferente de sua constituição pré-
moderna, é o objeto último de desejo do adorador. O Dinheiro como meio e a Riqueza como
fim.

25
Aparentemente, Kurz se refere ao sentido de ‘fenômeno’ como ‘pura aparência’, entendendo que a exposição
da ‘concretude’ da ‘estrutura da religião capitalista’ é falaciosa, ou não diz respeito aos fatos históricos reais,
uma má interpretação de Benjamin sobre o conceito de religião e capitalismo. Entretanto, o sentido de
‘fenômeno’ que Benjamin se refere no texto parece mais relacionado ao sentido pós-kantiano do termo,
referindo-se ao que se pode conhecer em termos de epistemologia, ou a um sentido pós-husserliano de
‘fenômeno’ como ‘essência’ em si mesma, aproximando-se mais de uma ‘exposição fenomenológica’ ou uma
‘investigação fenomenológica’ do que uma simples comparação de fenômenos distintos como propõe Kurz.
“[...] o adjetivo ‘fenomenológico’ qualifica a manifestação do objeto [fenomênico] em sua ‘essência’, bem
como a busca que possibilita essa manifestação” (ABBAGNANO, 2007, p, 436-437). Verbetes: Fenomênico,
Fenomenológico; Fenômeno. Recorte nosso.
31

Para melhor compreender o sentido religioso do utilitarismo, é necessário buscar


uma definição que nos permita dialogar com Benjamin. O sentido clássico do utilitarismo, que
pode se configurar como um acordo unânime entre autores que se identificam com essa ideia,
é a de que seria uma ética ou conjunto de valores morais, fundamentada na busca da maior
felicidade possível e compartilhada pelo maior número possível de pessoas26. O que poderia
garantir a coloração religiosa do utilitarismo seria a conversão dessa ação, voltada para o bem
de si e para o bem comum, numa ação de manutenção do capital através de uma ética, ou um
ethos27 que atue como imperativo do comportamento humano. Toda atividade (mesmo que
pareça separada da esfera da economia) tem por obrigação garantir essa manutenção.
Benjamin está fazendo menção ao trabalho sociológico de Weber na Ética
protestante e o espírito do capitalismo. Quando o filósofo alemão fala em ‘coloração religiosa’
do utilitarismo, ele está se referindo à secularização da ética protestante28. Aqueles valores
cultivados e praticados pelo protestantismo em suas seitas no âmbito espiritual, e que foram
bem conciliados pelas relações sociais capitalistas, transformando-as em novas regras da
organização do trabalho social, sendo empregados novos usos linguísticos para a linguagem
teológica, como exemplo, a palavra ‘missão’, entendida num sentido espiritual-individual, que
passa a se tornar o objetivo último de uma empresa capitalista, e novos sentidos para as práticas
ascéticas estritamente religiosas, que se tornaram estritamente voltadas ao mundo em forma de
ética utilitarista, o ‘espirito do capitalismo’. Mesmo que a religião capitalista não possua uma
dogmática e uma teologia para fundamentar a si mesma, sua organização enquanto estrutura

26
De acordo com o Dicionário de Filosofia de Nicola Abbagnano, o termo “utilitarismo” denota a relação de
identificação entre o “bom” e o “útil” e remonta à Epicuro, embora “[...] do ponto de vista histórico, o
Utilitarismo é uma corrente do pensamento ético, político e econômico inglês dos séculos XVIII e XIX.A ideia
de ‘útil’ é uma categoria fundamental do ‘utilitarismo’ – ‘útil’ significa tanto ‘o que é meio ou instrumento
para um fim qualquer [...] é um caráter das coisas’ quanto ‘o que serve à conservação do homem ou, em geral,
satisfaz às suas necessidades ou atende aos seus interesses’ . Historicamente se observa uma inter-relação entre
o que é considerado ‘racional’ pela história da filosofia e o que é ‘útil’ para a razão e para o ‘bem’ do homem,
estabelecendo o ‘útil’ como doutrina moral (utilitarismo) e como conceito fundamental da economia política.
Desse entendimento sobre a doutrina utilitarista se segue a tradição do liberalismo moderno – Jeremy Bentham,
assim como John Stuart Mill, James Mill, e em certa medida influenciados pelo utilitarismo, Thomas Malthus
e David Ricardo”. (ABBAGNANO, 2007, p. 985 – 987).
27
Max Weber, ao falar de Benjamin Franklin como uma figura que representaria o “espirito do capitalismo”,
reconheceu o utilitarismo como uma ética predominante no meio capitalista, mais especificamente à “utilidade
da virtude”, a utilidade por exemplo da honestidade, pontualidade, transparência, etc. – “[...] necessariamente
há de concluir que essas, como todas as virtudes aliás, só são virtudes para Franklin na medida em que forem,
in concreto, úteis ao indivíduo, e basta o expediente da simples aparência, desde que preste o mesmo serviço:
uma coerência efetivamente inescapável para o utilitarismo estrito.” [O que implica] “ao mesmo tempo uma
gama de sensações que tocam de perto certas representações religiosas.” (WEBER, 2004, p. 44-46).
28
Entendemos por secularização o processo histórico-religioso da rejeição da magia como forma de salvação –
para Weber a secularização é o processo de “desencantamento do mundo”, e ganhou seus contornos mais
radicais na “ascese intramundana” da fé protestante (WEBER, 2004, p, 96; 106; 133; 135).
32

social não é carente de normas para suas práticas nem da crença em sua eficácia e no seu ‘mito
de origem’.
Löwy, dando continuidade à sua interpretação da passagem, argumenta sobre essa
questão e faz referência a uma nota dentro do fragmento benjaminiano: “Benjamin, um pouco
em contradição com seu argumento da Reforma e o cristianismo, compara essa religião
capitalista com o paganismo originário, este também ‘imediatamente prático’ e sem
preocupações ‘transcendentes’” (LÖWY, 2019, p. 14). Essa passagem de O capitalismo como
religião está depois da demonstração da estrutura religiosa do capitalismo na passagem
denominada ‘referências bibliográficas’ do fragmento. Nesse ponto, Benjamin faz uma
comparação entre as cédulas bancárias de diversos Estados e as ‘imagens sagradas’ de diversas
religiões, o mesmo espírito divino que se aloja nas imagens santas, também, teria o mesmo
efeito do “espírito que se expressa nos ornamentos das cédulas bancárias [...] [o] espirito do
capitalismo” (BENJAMIN, 2013a, p. 23).
Imediatamente, após esse exemplo, Benjamin cita uma parte do livro de 1906 do
teórico francês Georges Sorel, Reflexões sobre a violência, especificamente Capitalismo e
Direito. O caráter pagão do dinheiro. O livro é uma tentativa de Sorel retomar os conceitos de
‘violência’ e ‘mito’ para uma prática revolucionária. Benjamin não entra profundamente nessa
temática, por razões desconhecidas, mas a presença dessa referência mostra que, assim como
Sorel, Benjamin está interessado na subversão de conceitos ambíguos (como violência e culpa)
para forma da crítica revolucionária. O que nós poderíamos entender, com a citação a Sorel, é
talvez o que Jeanne Marie Gagnebin anunciou sobre os ensaios Destino e Caráter e Para uma
crítica da violência, em seu artigo de 2020, Mito, Direito e Justiça em Walter Benjamin: para
Benjamin haveria uma relação de continuidade entre o conceito de ‘mito’ e o conceito de
‘Direito’, enquanto no ‘mito’ opera a ‘culpa’, no ‘Direito’ opera o ‘castigo’29.

29
Nas palavras de Jeanne Marie Gagnebin (2020): “[...] nos dois ensaios de 1919-20, que estabelece o domínio
do direito (das Recht) como sendo o sucessor da ordem do destino e do mito, embora a instituição das normas
jurídicas seja geralmente concebida como meio privilegiado de combater a arbitrariedade do mito. Essa ilusão
repousa, diz Benjamin, na confusão funesta entre ‘o reino da justiça’ e a ‘ordem do direito’, esquecendo-se de
que a justiça cabe somente a Deus enquanto o direito é instauração humana do poder (Macht) e, portanto,
sempre manifestação de violência. Podemos entender essa relação de continuidade entre a ordem do mito e do
destino, de um lado, e a ordem do direito, de outro, pela relação análoga que mito e direito entretêm com a
culpa e com o castigo. Ambos precisam estabelecer primeiro uma culpa, a transgressão de uma lei, seja ela dita
natural ou jurídica, para poder despois castigar, ou seja, para manifestar a força de seu poder. Em vez de pensar
que o direito teria como tarefa punir uma culpa perpetrada por um infeliz indivíduo, Benjamin defende a ideia
de que o direito cria a culpa para poder puni-la e manifestar assim sua própria força (Gewalt), [...] A indiferença
do direito em relação às circunstâncias de transgressão da lei não seria índice da imparcialidade de uma pretensa
justiça, mas somente assinalaria a violência inapelável de seu poder, como na boutade de Anatole France, ao
se queixar de que a lei proíbe da mesma maneira a pobres e ricos passar a noite debaixo das pontes de Paris.
Em outros termos, para Benjamin, a instauração do direito enquanto esfera de poder não nos redime do mito,
mas, pelo contrário, perpetua sua violência sob o manto de um acordo entre os homens. Não instaura a justiça,
33

Contudo, a falta (ou não presença) da teologia e/ou dogmática não interfere no
movimento religioso, ou, na prática do culto: assim como as imagens santas, o dinheiro
necessita apenas da fé de seus adoradores. Essa relação entre a fé e o dinheiro é exposta muito
bem por Giorgio Agamben no texto Benjamin e o capitalismo:

[...] O dinheiro esvaziou-se de qualquer valor que não fosse o puramente


autorreferencial. Deixa-nos ainda mais estupefatos a facilidade com que foi aceito o
gesto do soberano norte-americano [Richard Nixon], que equivalia a anular o
patrimônio em ouro dos possuidores de dinheiro. E se, conforme foi sugerido, o
exercício da soberania monetária por parte de um Estado consiste na sua capacidade
de induzir os atores do mercado a empregarem os seus débitos como moeda, agora
também o débito tinha perdido toda referência real, tornando-se puramente de papel
(AGAMBEN, 2013a)

Agamben está se referindo ao processo de desmaterialização da moeda, o processo


histórico que levou a moeda metálica a se desenvolver como papel-moeda e, atualmente, como
crédito virtual. Historicamente, a moeda metálica poderia conservar seu valor pelo seu conteúdo
precioso, enquanto o papel-moeda era sustentado pelo lastro de valor real que o Estado
mantinha em reserva. O processo chamado por Agamben de ‘desmaterialização da moeda’30
ganha seus contornos mais radicais, cinquenta anos após a redação do texto O Capitalismo
como religião, “Depois de 15 de agosto de 1971” (AGAMBEN, 2013a), quando Nixon,
presidindo o governo dos Estados Unidos, declarou suspensa a convertibilidade do dólar em
ouro – o dólar se tornou puramente autorreferencial – “[...] deveríamos acrescentar que o
dinheiro é um crédito que se funda unicamente em si mesmo e que não corresponde senão a si
mesmo” (AGAMBEN, 2013a). Agamben continua sua interpretação de O Capitalismo como
religião, elaborando a relação de dinheiro e fé: “Tentemos tomar a sério e a desenvolver a
hipótese de Benjamin. Se o capitalismo é uma religião, como podemos defini-lo em termos de
fé? Em que crê o capitalismo? E o que implica, com respeito à fé, a decisão de Nixon?”
(AGAMBEN, 2013a). Essas questões, levantadas por Agamben, serão retomadas mais adiante,
entretanto, o que nos interessa é essa questão que Agamben levanta sobre a relação do ‘crédito’
e da ‘fé’ em seu comentário sobre a pesquisa de David Flüsser a respeito da palavra pistis –, o
termo grego usado na bíblia cristã para ‘fé’:

mas dissimula e, ao mesmo tempo, consagra a gênese violenta do poder estabelecido” (GAGNEBIN, 2020, p.
1942-1943).
30
Nas palavras de Agamben: “O processo de desmaterialização da moeda começou muitos séculos antes, quando
as exigências do mercado levaram a vincular à moeda metálica, necessariamente escassa e um estorvo, letras
de câmbio, cédulas, juros, goldsmiths’ notes, etc. Todas estas moedas de papel, na realidade, são títulos de
crédito e, por isso, são chamadas de moedas fiduciárias. A moeda metálica, por sua vez, valia – ou deveria
valer – pelo seu conteúdo de metal precioso [...]” (AGAMBEN, 2013a).
34

[...] Eis o sentido da palavra pistis – fé – é simplesmente o crédito de que gozamos


junto a Deus e de que a palavra de Deus goza junto de nós, a partir do momento em
que cremos nela. Por isso Paulo pode afirmar, em famosa definição, que a “fé é
substância de coisas esperadas” (Carta aos Hebreus 11,1): ela é aquilo que dá crédito
e realidade àquilo que ainda não existe, mas em que cremos e temos confiança, em
que colocamos em jogo o nosso crédito e a nossa palavra. Creditum é o particípio
passado do verbo latino credere: e aquilo em que cremos, em que colocamos a nossa
fé, quando estabelecemos uma relação fiduciária com alguém tomando-o sob a nossa
proteção ou emprestando-lhe dinheiro, confiando-nos à sua proteção ou tomando de
empréstimo dele algum dinheiro. (AGAMBEN, 2013a).

O dinheiro, como uma forma universal da mercadoria e como aspecto material do


valor abstrato, é sustentado pela fé de quem nele crê, não pelo seu valor real de pura
materialidade, mas pelo seu aspecto monetário, pelo seu valor de troca e pelo poder de
equivalência e precificação do mundo para o adorador. Portanto, a ambiguidade
dinheiro/crédito, oferecida pela interpretação de Agamben, é indispensável para compreender
o fragmento de Walter Benjamin e sua crítica à religião da modernidade. O deus dessa religião,
o dinheiro, manifesta-se fisicamente como papel-moeda, moeda metálica, crédito virtual, etc.
Entretanto, como adverte Michael Löwy: “o papel-moeda não é senão uma das manifestações
de uma divindade outra mais fundamental, no sistema cultural capitalista: o dinheiro” (LÖWY,
2019, p. 15). Não é necessário nenhum mito originário de revelação, que seja a fundamentação
de uma teologia ou de um princípio originário dogmático, mas apenas a crença de que o dinheiro
possui valor e de alguns adoradores para concretizar seu valor.
Nossa investigação sobre as características estruturantes da religião capitalista
pretende responder à pergunta que Löwy se fez sobre o que permitiria assimilar as práticas
econômicas capitalistas com a forma religião (LÖWY, 2019, p. 15). O dinheiro desempenha a
função primordial de ídolo, ou um objeto de culto “análogo àqueles dos santos das religiões
‘ordinárias’” (ibidem), pelo menos o dinheiro em sua constituição moderna burguesa. Para nos
auxiliar com essa interpretação sobre a relação do dinheiro com a religião capitalista, Robert
Kurz se pergunta no Dinheiro sem valor:

[...] O que era o dinheiro pré-moderno? [...] Começou por ser o gelt, o sacrifício aos
deuses, que originalmente foi um sacrifício humano. Com este gesto pagava-se uma
“culpa” ou, melhor dizendo, cumpria-se um “dever” para que o Sol voltasse a nascer
todos os dias, para ser possível a alimentação no “processo de metabolismo com a
natureza” (Marx), talvez para afastar ou atenuar as desgraças e os golpes do destino,
etc. Esta “objectualidade do sacrifício” simbólica, mas necessariamente material,
percorreu, em primeiro lugar, um espectro histórico de metamorfoses, de
substituições. Mas não substituições de Deus, [...], mas substituições da própria
vítima: desde os seres humanos jovens de uma rara excelência ou especial beleza,
passando pelo gado bovino ou cavalar e outros animais sacrificiais, substituídos
posteriormente pelas representações simbólico-materiais desses animais na forma de
bolos ou hóstias, até ao metal precioso e à moeda cunhada. A estrutura deste “dever
sacrificial” foi, em seguida, transferida sob múltiplas formas para as inter-relações
35

sociais das pessoas, mas com isso não foi de modo algum “secularizada”; pelo
contrário, a relação social (imanente) foi derivada da relação (transcendente) com
Deus e constituída como estrutura complexa de “deveres” tanto pessoais
como institucionais, de acordo com o exemplo da objectualidade do sacrifício. Isto
não tinha nada a ver com uma economia ou um modo de produção no sentido do
“trabalho abstracto” e das relações de valor (KURZ, 2012)

O dinheiro (geld) era o pagamento, em forma de sacrifício, para a ‘dívida’ com os


deuses. O que interessa ressaltar é a noção de sacrifício como forma de pagamento, Kurz mostra
como se desenvolveu historicamente as transformações ou substituições do objeto sacrificado.
Os homens têm um ‘dever’ com os deuses e, a partir disso, podemos retomar a ideia de religião
como ‘obrigação’ – de belos corpos humanos, animais ou suas representações, alimentos e o
próprio dinheiro, eram oferecidos em troca de bonanças. A ideia de religião como obrigação é
próxima da definição que Benjamin sugere, as ‘preocupações’ são resolvidas na medida em que
o geld é sacrificado e se torna objeto sagrado. O ‘dever sacrificial’, transferido sob múltiplas
formas, alcança as relações humanas novamente, mas não se deteriora em secularização, ou na
profanação do ritual simplesmente, ele é atualizado constantemente por novas relações sociais
que reproduzem a mesma lógica de sacrifício.
Esse sacrifício, no qual o dinheiro pré-moderno está vinculado, nada tem a ver com
a economia moderna burguesa, mas a uma economia arcaica que diz respeito ao modo de vida
agrário ou de subsistência. Benjamin não faz referência direta ao sacrifício, mas é uma
interpretação que parece inescapável –, Löwy, Kurz e Agamben fazem essa leitura que perpassa
a ambiguidade da geld como dinheiro/sacrifício. Na interpretação de Löwy, ele nos lembra de
uma das referências bibliográficas presentes em O Capitalismo como religião que Benjamin
cita uma obra de Gustav Landauer:

[...] Na bibliografia do fragmento é mencionada uma virulenta passagem contra a


potência religiosa do dinheiro: está se encontra no livro Aufruf zum Sozialismus, do
pensador anarquista judeu alemão Gustav Landauer, publicado pouco antes do
assassinato de seu autor por militares contrarrevolucionários. Na página indicada pela
nota de Benjamin, Landauer escreve: ‘Fritz Mauthner (Wörterbuch der PhilosophieI)
mostrou que a palavra ‘Deus’ (Gott) é originalmente idêntica à palavra ‘Ídolo’ (Götze)
e que ambas significam ‘o fundido’, ou ‘o esparramado’ (Gegossene). Deus é um
artefato feito pelos humanos, que adquire vida, atrai em direção a ele as vidas humanas
e finalmente se torna mais poderoso que a humanidade (LÖWY, 2019, p. 15-16).

A presença dessa referência no texto de Benjamin mostra que ele estava ciente da
relação fetichista entre o dinheiro e o sacrifício, embora, Löwy, vez ou outra, lembre-nos que
toda tentativa de expor o que Benjamin estava realmente se referindo seja mera especulação
por conta do seu caráter inacabado e enigmático: “Certamente, não podemos saber até que ponto
Benjamin partilhava desse raciocínio de Landauer”(LÖWY, 2019, p. 15-16), muito menos
36

podemos saber se as demais referências citadas são parte do inventario teórico partilhada por
Benjamin. Entretanto, nossa análise se esforça para encontrar maneiras de compreender da
melhor forma possível o fragmento benjaminiano. A contribuição de Löwy é indispensável para
compreender as entrelinhas do texto, que parece se complementar nas indicações bibliográficas:
a diferenciação do ‘miolo’ do texto e as referências bibliográficas e até onde essas referências
são ideias que Benjamin acredita possíveis. Löwy continua seu argumento afirmando que
Landauer é uma possível influência para Benjamin: em 1921, o filósofo alemão estaria “[...]
muito mais próximo do socialismo romântico e libertário de um Gustav Landauer, ou de um
Georges Sorel” (LÖWY, 2019, p.16) do que, por exemplo, da tendência crítica da época, Karl
Marx ou Friedrich Engels:

O único fundido (Gegossene), o único ídolo (Götze), o único Deus (Gott) ao qual os
seres humanos deram vida é o dinheiro (Geld). O dinheiro é artificial e é vivo, o
dinheiro produz dinheiro e mais dinheiro, o dinheiro tem toda a potência do mundo.
Quem ainda hoje não vê que o dinheiro, que este Deus, não é outra coisa senão um
espírito proveniente dos seres humanos, um espírito tornado uma coisa (Ding) viva,
um monstro (Unding), e que ele é o sentido (Sinn) tornado louco (Unsinn) de nossa
vida? O dinheiro não cria riqueza, ele é a riqueza; ele é a riqueza em si; não há outro
rico senão o dinheiro (ibidem).

Essa é a conclusão que Michael Löwy chega após sintetizar sua interpretação entre
Landauer e Benjamin. Para Löwy, na medida em que o ídolo, que está na função de
representação de Deus, é o símbolo para qual o sacrifício é destinado, sua natureza autônoma
se revela como dominadora da ação humana. Assim, a mercadoria-dinheiro, atuando como
ídolo, é essa coisa que se tornou viva e independe de qualquer humano, um verdadeiro monstro
incontrolável; isto é, o fetiche, um poder que reveste a mercadoria-dinheiro e que foi criado
pelos humanos (os corpos reais que servem e podem ser sacrificados).
O ‘dever sacrificial’, também, expressa-se na produção da riqueza, a valorização do
valor (ou a especulação financeira), que se caracteriza pelo juro, pela rentabilidade flutuante,
sustentada pelo trabalho real e futuro, que não é mais garantida apenas pela realização do
trabalho (a realização do ritual de sacrifício do corpo humano), mas também pela sua própria
autorreprodução infinita. Nesse sentido, o empréstimo e o juro configuram uma maneira de
replicação do valor, baseado na ‘dívida’. É na ‘dívida’ que Deus e o dinheiro se entrecruzam
numa única forma ambígua, a dívida deve ser paga, antes com sangue em um ritual para um
Deus transcendente, agora, na religião capitalista, deve ser paga também com sangue, mas para
um Deus imanente das relações sociais autonomizadas.
A comparação de cédulas bancárias com os ídolos, feita por Benjamin, leva-nos
inevitavelmente à questão do sacrifício e do fetiche. Entretanto, o dinheiro é apenas um dos
37

ídolos da religião capitalista. Benjamin deixou o texto inacabado: o que está pairando sobre o
fragmento é uma ideia central que puxa a ‘rede na qual se encontra’, portanto, essa metafisica
do dinheiro, que se desenvolve no fragmento, é uma das intuições que norteiam essa crítica
particular de Benjamin. Löwy, finalizando seu argumento de interpretação dessa primeira
característica da estrutura da religião capitalista, acrescenta: “Portanto, o dinheiro – ouro ou o
papel –, a riqueza, a mercadoria, seriam algumas dessas divindades ou ídolos da religião
capitalista” (LÖWY, 2019, p. 17) , atuando como superestrutura “e sua manipulação ‘prática’
na vida capitalista corrente” enquanto infraestrutura, “constitui um conjunto de manifestações
cultuais, fora das quais ‘nada tem significação’ ”(ibidem).
38

5 O CARÁTER TOTALIZANTE DO CAPITALISMO E SUA CELEBRAÇÃO


INFINDÁVEL

Ligado a essa concreção do culto está um segundo traço


do capitalismo: a duração permanente do culto. O
capitalismo é a celebração de um culto sans rêve et sans
merci [sem sonho e sem piedade]. Para ele, não existe
“dias normais”, não há dia que não seja festivo no terrível
sentido da ostentação de toda a pompa sacral, do
empenho extremo do adorador (BENJAMIN, 2013a, p.
21-22).

Aqui, é necessário fazer uma observação, o ‘segundo traço’ que Benjamin se refere
é uma característica atribuída ao ‘culto’. Nesse sentido, o ‘culto’ é a característica primeira e
fundamental que está ligada a mais três características constituintes. O ‘utilitarismo’ como
práxis imanente do culto capitalista substituiria a teologia e o dogmatismo (religioso
transcendentes) e, nesse sentido, constitui o que Benjamin chama de ‘concreção do culto’, ou
seja, sua fundamentação fenomenológica, imanente das novas relações sociais modernas.
Para a psicanalista Maria Rita Kehl, o fragmento de Benjamin está carregado de
uma ‘melancolia’, oriunda dessa duração permanente do culto. “Benjamin entendeu a
melancolia como efeito da anulação da potência política do indivíduo e sua classe social. A
‘coloração religiosa’ que o capitalismo imprimiu ao utilitarismo parece anular a perspectiva de
transformação histórica”.31 Maria Rita Kehl explica que o fragmento de Benjamin não possui
expresso o termo, mas que possui um sentido político que se aproxima do que ela chama de
‘melancolia benjaminiana’, identificando-o dentro da obra geral de Benjamin. Esse sentido
político, na interpretação de Maria Rita, é “a sensação de que a ação política, assim como outras
dimensões da vida, estaria dominada pelo culto permanente, sans trêve et sans merci, da vida
sob o capitalismo”32. A interpretação que Maria Rita Kehl faz do fragmento é interessante para
nossa análise, parece que o conceito de melancolia se figura como um sentimento
experimentado pelo adorador, que está submetido ao culto. Nesse sentido, o adorador opera o
culto e ao mesmo tempo é definido pelo culto, suas escolhas possíveis de ação são definidas
pelos horizontes da maturação do culto –, maturação como processo de totalização de sua
expansão e ‘colonização’.

Tanto Maria Rita, quanto Michael Löwy utilizam a expressão “sans trêve et sans
merci” – diferente do sans rêve utilizado por Benjamin na versão original, ainda que um erro
de edição provocou uma nova interpretação sobre o trecho que enriquece o debate em torno do

31
KEHL, Maria Rita; BENJAMIN, 2013a. Texto da autora na folha de orelha Capitalismo como Religião.
32
Conferir texto da autora na folha de orelha do livro.
39

fragmento. Sem trégua (trêve) e sem sonho (rêve), o culto opera permanentemente e
automaticamente, e se expande em todas as direções, criando margem para pensar um “futuro”
destinado a permanecer sujeito ao culto, englobando aspectos materiais e imateriais da vida
social, que inibem as perspectivas de um futuro alternativo à realidade já estabelecida.33
Na interpretação de Löwy, é proposto que esta passagem de O Capitalismo como
Religião seria alimentada principalmente pelas teses da Ética protestante e o espírito do
capitalismo, entretanto, o próprio Weber admite que Ernst Troeltsch é um de seus
interlocutores, e que as pesquisas desenvolvidas por Troeltsch responderiam questões que
Weber não chegou a finalizar (WEBER, 2004, p. 275- 276)34. Benjamin deixou registrado a
referência a Troeltsch (BENJAMIN, 2013a, p. 24), o que nos leva a considerar que essa
passagem não é apenas alimentada pelas teses de Weber, mas também pela contribuição de
Troeltsch. Continuando na interpretação de Löwy, ele afirma que a tese provável a qual
Benjamin faz menção é a das “regras metódicas de comportamento do calvinismo/capitalismo”
e à disciplina/controle permanente sobre a vida (LÖWY, 2014, p. 100). Os termos, ‘disciplina’
e ‘controle’, usados por Löwy para descrever a ascese cultivada pelos protestantes
(especialmente calvinistas), entram em conflito com a ‘produção de riqueza privada’ capitalista.
Teoricamente, a posse de riquezas é tratada como uma tentação “pecaminosa”, enquanto, na
prática, todo o esforço do indivíduo deve ser em nome de Deus, através das “boas obras”
(WEBER, 2004, p. 156). Entretanto Weber afirma:

[...] Eis porém algo ainda mais importante: a valorização religiosa do trabalho
profissional mundano, sem descanso, continuado, sistemático, como o meio ascético
simplesmente supremo e a um só tempo comprovação o mais segura e visível da
regeneração de um ser humano e da autenticidade de sua fé, tinha que ser, no fim das
contas, a alavanca mais poderosa que se pode imaginar da expansão desse modo de
vida que aqui temos chamado de “espirito” do capitalismo (WEBER, 2004, p. 156-
157)

A disciplina/controle sobre a condução da vida religiosa protestante reflete na esfera


do negócio (negação do ócio) como permanência absoluta desse controle/disciplina sobre a
atividade do trabalho –, a atividade central da produção da riqueza, que também atuaria como
cura espiritual do indivíduo que o exerce. O que Weber chama de ‘espírito do capitalismo’ é

33
É assim que Giorgio Agamben entente a relação entre a ‘fé’ e o ‘futuro’. Para ele a palavra ‘fé’ possui também
o sentido de ‘confiança’ ou ‘crédito’, tal como é usado nas relações econômicas. Em suas palavras: “Por isso,
Paulo pode dizer em sua famosa definição que “a fé é substância de coisas esperadas” [ou, segundo a versão
da Bíblia Pastoral, “um modo de já possuir aquilo que se espera”]: ela é o que dá realidade àquilo que não
existe ainda, mas em que acreditamos e confiamos, em que colocamos em jogo o nosso crédito e a nossa
palavra. Algo como um futuro existe na medida em que a nossa fé consegue dar substância, isto é, realidade às
nossas esperanças (AGAMBEN,2022).
34
Conferir nota número 309.
40

um modo de vida muito particular, proveniente das novas relações sócias de produção e
mercado, que encontraram um solo fértil na ética protestante. Weber considera essa valorização
religiosa do trabalho como a “alavanca mais poderosa” (WEBER, 2004, p. 157) para a expansão
desse ethos. Sua expansão não se dá apenas na dimensão dos negócios (enriquecimento,
capitalização do trabalho), mas também nas dimensões da vida que estavam separadas da
produção da riqueza –, o capitalismo avança progressivamente para uma totalização da vida,
humana e não-humana. É necessário um exército de trabalhadores e trabalhadoras renumerados
e não remunerados para fazer funcionar a economia capitalista, consequentemente, é preciso
que se ocupe territórios cada vez maiores, gradativamente, tornando-se um sistema de
organização social que tende à ‘universalização’, ao mesmo tempo que é necessário tornar essa
força produtiva em “consumidores”. Há uma ambiguidade no sentido do conceito de ‘adorador’
no fragmento de Benjamin, o adorador não é somente quem está servindo seu corpo para a
produção, mas todos os sujeitos de consumo, necessários para a realização da equação
econômica clássica de demanda e produção.
Benjamin radicaliza a tese da valorização religiosa do trabalho de Weber, evitando
a imparcialidade da qual Weber se resguardava. O culto à religião capitalista é constante, não
há mais tempo livre possível fora da esfera do trabalho e do consumo, não há mais espaços que
não possam ser reaproveitados, uma celebração constante e permanente que não dá brecha para
o futuro. ‘Sem sonho’ é a condição de uma sociedade que não dorme, o tempo do trabalho e da
produção ultrapassa a barreira fabril e servil, integrando todo o tempo livre possível ao culto,
até mesmo o sono não escapa, os sonhos são instrumentalizados e capitalizados, a própria
produção de mercadorias forja o desejo de consumo, que ocupa o inconsciente do adorador, que
não tem uma alternativa a não ser agir conforme o andamento do culto. ‘Sem piedade’ (e ‘sem
trégua’) é a condição do trabalho na qual a produção da riqueza engaja seus adoradores, que
estão incessantemente empenhados em conquistar o “pão de cada dia”, para, talvez, um dia
alcançar a riqueza prometida do modo de vida capitalista, na esperança do milagroso
merecimento da graça (riqueza) através do trabalho –, e os forçam a aceitarem seu destino.
Atualmente popularizada a ‘meritocracia’ é essa promessa de merecimento da graça
através do trabalho, é a ‘herança’ do que Max Weber chama de ‘ascese intramundana’. Se
tomarmos o termo literalmente, ‘meritocracia’ seria uma espécie de ‘poder conquistado por
mérito’, poder esse não apenas político, mas principalmente econômico. Weber fala de um
“caráter racional da ascese” e de sua significação para o “modo de vida” moderno (WEBER,
2004, p. 201-202) e cita a já mencionada obra de E. Troeltsch, As doutrinas sociais das igrejas
e grupos cristãos. Para Weber, a ascese protestante, por intermédio de seu processo de
41

racionalização das ações e da vida, deu origem aos métodos da administração de empresas e da
burocratização das instituições sociais e estatais. Essa ascese especifica da fé protestante é
resultado de um processo histórico de renovação do conceito, um novo uso foi dado pela
reforma luterana, a ‘novidade’ está na posição racionalista e desencantada da ação moral das
‘boas ações’, a vida é considerada uma acumulação progressiva de ações que formam um
‘sistema de vida’. Weber chama esse fenômeno de “desencantamento do mundo”, que consiste
na tentativa de “eliminação da magia como meio de salvação” (WEBER, 2004, p. 106). O
protestante ‘cria a si mesmo’ por meio das suas ações, não isoladamente, mas organizadas
sistematicamente num projeto pessoal de vida, visando a autorrealização e a santificação pela
ação.
A ‘ascese protestante intramundana’, que está na base da ‘valorização religiosa do
trabalho profissional no mundo’, é definida por Weber como um ethos, o espirito próprio do
protestantismo, que dá sentido para esse modo de vida, o qual interessa a Weber e,
consequentemente, a Benjamin, na medida em que possui uma “[...] ‘individualidade histórica’,
isto é, um complexo de conexões que se dão na realidade histórica” e que possa ser encadeado
“conceitualmente em um todo, do ponto de vista de sua significação cultural” (WEBER, 2004,
p. 41). O objetivo de Weber com a “Ética protestante” é mostrar como esse ‘espírito’
protestante foi a base fundamental do surgimento do ‘espírito’ do capitalismo.
Uma primeira definição desse ‘espírito capitalista’ se assemelharia a uma ‘filosofia
da avareza’, que teria como traços “o ideal do homem honrado digno de crédito e, sobretudo, a
ideia do dever que tem o indivíduo de se interessar pelo aumento de suas posses como um fim
em si mesmo” (WEBER, 2004, p. 45). Weber continua seu argumento:
[...] Com efeito: aqui não se prega simplesmente uma técnica de vida, mas uma
“ética” peculiar cuja violação não é tratada apenas como desatino, mas como
uma espécie de falta com o dever: isso, antes de tudo, é a essência da coisa. O que se
ensina aqui não é apenas “perspicácia nos negócios” – algo que de resto se encontra
com bastante frequência – mas é um ethos que se expressa, e é
precisamente nesta qualidade que ele nos interessa” (WEBER, 2004, p. 45).

Um espírito que se expressaria particularmente como “máxima de conduta de


vida eticamente coroada” (ibidem) e teria como primeira figura simbólica Benjamin Franklin.
Para Weber, a figura de Franklin não é a representação completa do ‘espírito do capitalismo’,
mas ela pode ser considerada a encarnação dessa ideia. A vida de Benjamin Franklin estaria
fundamentada numa ‘ética da virtude’, isto é, numa ética baseada na virtude, na medida em que
ela pode ser útil para os negócios e para a felicidade pessoal do indivíduo. A utilidade da virtude
é uma das ideias constituintes da ética capitalista, não a única, pois, de acordo com Weber, a
máxima da ação dessa ética é “ganhar dinheiro e sempre mais dinheiro, no mais rigoroso
42

resguardo de todo gozo imediato do dinheiro ganho” e “pensado tão exclusivamente como fim
em si mesmo” (WEBER, 2004, p. 46). Uma visão de mundo que se pretende desencantada, por
não acredita mais em mitos ou crenças em forças sobrenaturais como fizeram as religiões
tradicionais, mas que utiliza elementos dessas religiões para compor seu aparato ideológico. A
linguagem, da qual a ‘religião do mercado’ se utiliza, foi herdada da teologia e, por isso mesmo,
deve historicamente ao processo de secularização das religiões que desenvolveram essas
práticas ascéticas.
Benjamin concorda com a tese da secularização, embora tente superá-la. Ao que
tudo indica, Weber denuncia essa ética capitalista de modo peculiar, muito próximo da ideia
benjaminiana de ‘religião capitalista’, desenvolvida no fragmento:
[...] O ser humano em função do ganho como finalidade da vida, não mais o ganho
em função do ser humano como meio destinado a satisfazer suas necessidades
materiais. Essa inversão da ordem, por assim dizer, “natural” das coisas, totalmente
sem sentido para a sensibilidade ingênua, é tão manifestamente e sem reservas um
Leitmotiv do capitalismo, quanto é estranha a quem não foi tocado por seu bafo. Mas
implica ao mesmo tempo uma gama de sensações que tocam de perto certas
representações religiosas” (WEBER, 2004, p. 46-47)

Essa parece ser a intuição que Benjamin toma para si e radicaliza, desviando do
caráter especulativo neutro que Weber utiliza. Para Benjamin, o capitalismo seria uma religião
que subverteria a ideia clássica desta e a levaria, ao extremo, sua forma de dominação da vida,
não somente através da espiritualidade, mas também da dominação da vida através da
economia.
Michael Löwy afirma, em sua interpretação, que Benjamin retoma as ideias de
Weber da Ética protestante “quase termo a termo”, porém a seu modo, “não sem ironia, citando
a permanência dos “dias de festa” (LÖWY, 2019. P. 18). Em nome do trabalho “sem descanso,
sem trégua e sem piedade”, os “dias de festas”, que eram ocasiões de descanso e comemoração
envolvidas numa aura sagrada, perdem seu sentido, diante da lógica da produção da riqueza da
ética capitalista secularizada e burocratizada. Esses dias perdem sua aura e passam a ser “dias
normais” de trabalho. A ironia de Benjamin está na afirmação que “não há dia que não seja
festivo no terrível sentido da ostentação de toda a pompa sacral, do empenho extremo do
adorador” (BENJAMIN, 2013a, p. 22):

[...] Na verdade, os capitalistas puritanos aboliram a maioria dos feriados católicos,


vistos como um convite ao ócio. Assim, na religião capitalista, cada dia assiste à
exibição da “pompa sagrada”, isto é, os rituais da Bolsa ou da Fábrica, enquanto os
adoradores acompanham, com angústia e “extrema tensão”, o sobe e desce das ações
[na Bolsa de Valores]. As práticas capitalistas não conhecem pausa, elas dominam a
vida dos indivíduos de manhã até a noite, da primavera até o inverno, do berço até
túmulo (LÖWY, 2014, p. 100)
43

Mas não foi um caminho sem obstáculos: para o capitalismo alcançar esse status de
dominação, que é denunciado por Benjamin, teve de vencer os confrontos que a cultura impôs,
principalmente, contra as visões de mundo mais ‘tradicionalistas’, ainda pré-capitalistas por
não cederem lugar a sua ‘lógica de produção de riqueza’ moderna. Weber afirma que a expansão
dessa visão de mundo e dessa forma de vida capitalista é um movimento inato em seu
desenvolvimento. Desde a ascese cristã ao surgimento da ideia de ‘profissão como vocação’ da
‘ascese intramundana’, o ethos capitalista necessita dessa adesão voluntária e involuntária dos
indivíduos para que seja possível sua concreção. O trabalho é a base da produção da riqueza e
é entendido como um dever moral. Nisso a teologia do utilitarismo mostra suas cores vivas, o
indivíduo tem responsabilidade com a sua felicidade e com as dos outros, formando um “todo”
social ‘mecânico’ que parece se mover autonomamente e automaticamente: o cosmos
econômico anunciado por Weber.

Pois a ascese, ao se transferir das celas dos mosteiros para a vida profissional, passou
a dominar a moralidade intramundana e assim contribuiu com sua parte para edificar
esse poderoso cosmos da ordem econômica moderna ligada aos pressupostos técnicos
e econômicos da produção pela máquina, que hoje determina com pressão
avassaladora o estilo de vida de todos os indivíduos que nascem dentro dessa
engrenagem – não só dos economicamente ativos - e talvez continue a determinar até
que cesse de queimar a última porção de combustível fóssil (WEBER, 2004, p. 165).

Weber usa uma alegoria interessante para ilustrar a ascese do ‘dever profissional’
intramundano: “um leve manto de que se pudesse despir a qualquer momento” (WEBER, 2004,
p. 165). Ao passo que considera esse “dever profissional” como “um dos componentes do
espírito capitalista” e da “cultura moderna” (WEBER, 2004, p. 164), esse salto que Weber
propõe é fruto da reflexão sobre o processo de secularização da ascese e da expansão desse
“espírito”, expansão da “vida racional”: uma racionalização generalizada da vida, que chega
em seu zênite no processo de burocratização extremo da sociedade, que Weber chama de
“habitáculo duro como aço” (WEBER, 2004. P. 165).
Em sua interpretação, Michael Löwy afirma que o fragmento de Benjamin
“empresta de Weber a concepção do capitalismo como sistema dinâmico, em expansão global,
impossível de ser parado e do qual não se pode escapar” (LÖWY, 2014, p. 100) e, ainda segundo
o intérprete, o “habitáculo duro como aço”, [...] tal qual aparece na Ética protestante, é uma
espécie de alegoria da civilização capitalista industrial moderna –, e não, como se acredita em
geral, do processo de burocratização” (LÖWY, 2014, p.55). Nesse sentido, a burocratização
aparece como um sintoma cultural dessa civilização. Benjamin parece estar interessado nessa
44

imagem do “habitáculo” de Weber, na medida em que lhe serve como um “diagnostico do


presente” (LÖWY, 2014, p. 56) da civilização burguesa industrial moderna em direção a seu
“destino trágico”, fatalista. Löwy afirma que Weber entenderia esse “habitáculo” como a perda
da liberdade, “em particular a liberdade individual” (LÖWY, 2014. P. 100), o “habitáculo”
representaria o capitalismo como “jaula em que se encontra presa, sem porta de saída, toda a
humanidade” (LÖWY, 2014, p.56). Nesse sentido, a permanência constante do culto,
denunciada por Benjamin com base nas ideias de Weber, poderia ser entendida como esse
“caráter totalizante” do capitalismo.
De acordo com Maria Rita Kehl, esse caráter totalizante do capitalismo atuaria
individualmente nos sujeitos econômicos como “engajamento subjetivo sem sujeição
evidente”35, ou, em outras palavras, como “alienação”, “o indivíduo se pensa livre e não percebe
o quanto está submetido”36. Essas palavras de Maria Rita Kehl fazem conexão com nossa
tentativa de evidenciar a noção de ‘religião’ no fragmento. Benjamin utiliza uma noção de
religião muito parecida com uma passagem da Ética protestante, na qual Weber fala sobre
‘estímulos psicológicos’ da religião protestante. Quando Benjamin fala em ‘preocupações,
aflições e inquietações’, ele os define em termos de ‘doença do espírito’, aparentemente sem
objeto evidente, mas como uma crítica ao capitalismo. Já em Weber, numa passagem na qual
se fala em ‘preocupação’, esta está relacionada ao futuro e em sua garantia (WEBER, 2004, p.
125). No protestantismo, o que serve, como resolução dessas preocupações materiais e
espirituais, é o trabalho ‘sem descanso e bem-sucedido’, e as riquezas, os frutos desse trabalho,
são a prova da ‘predestinação’ individual, não como ‘santificação’, mas como ‘perdão dos
pecados’. De acordo com Weber:

A riqueza é reprovável precisamente e somente como tentação de abandonar-se ao


ócio, à preguiça e ao pecaminoso gozo da vida, e a ambição de riqueza somente o é
[reprovável] quando o que se pretende é poder viver mais tarde sem preocupações e
prazerosamente. Quando, porém, ela [a riqueza] advém enquanto desempenho do
dever vocacional, ela é não só moralmente lícita, mas até mesmo um mandamento.
[...] Querer ser pobre, costumava-se argumentar, era o mesmo que querer ser um
doente. (WEBER, 2004, p. 148).

35
KEHL, Maria Rita; LÖWY, Michael. Maria Rita Kehl e Michael Löwy | Walter Benjamin, intérprete do
capitalismo como religião. Youtube, 2013. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=4st9V8wnayY. Acesso em: 02/02/2022. Conferir trecho entre os minutos
15:52 – 16:18.
36
Maria Rita Kehl afirma, nessa conferência, que o texto O Capitalismo como Religião possui “a mais perfeita
descrição da alienação”. Para Maria Rita, a alienação é um conceito “que toca na lição do que é a subjetividade
sob o capitalismo” (KEHL; LÖWY, 2013).
45

Assim sendo, o aguçamento dessa visão de mundo dá origem ao ‘moderno homem


especializado’ e ao ‘homem de negócios’ (WEBER, 2004, p. 149), como também ao ‘ethos da
empresa racional burguesa’, quanto à ‘organização racional do trabalho’ (WEBER, 2004,
p.141). Essa visão de mundo racional protestante é: 1) absolutamente contrária ao ‘gozo
descontraído da existência e do que ela tem a oferecer em alegria’ e, 2) nutre um “ódio
enfurecido [...] contra tudo que cheirasse a supertition” (WEBER, 2004, p.152-153). Essas são
características que foram indispensáveis para a expansão geopolítica do ethos capitalista. A
pobreza (material e, consequentemente, espiritual) como doença, poderia ser curada ou
resolvida através desses ‘estímulos psicológicos’ que a religião protestante oferecia: o ‘dever
profissional’, o ‘trabalho como vocação’, a ‘vida racional metódica’, a ‘ética asceta
intramundana’, a ‘poupança’, o ‘investimento de capital’ são resoluções de cunho individual
para as ‘preocupações, aflições e inquietações’ dos adoradores adeptos ao protestantismo. Para
Weber: “A ideia da obrigação do ser humano para com a propriedade que lhe foi confiada, à
qual se sujeita como prestimoso administrador ou mesmo como ‘máquina de fazer dinheiro’,
estende-se por sobre a vida feito uma crosta de gelo” (WEBER, 2004, p.155). Essa ‘crosta de
gelo’ que Weber menciona é o ‘peso do sentimento de responsabilidade’ que a religião impõe
ao adorador para com as suas propriedades conquistadas pelo seu trabalho.
Na religião capitalista, essa ideia de obrigação age como ‘estímulo psicológico’
internalizado no individuo, ou cultivado pelo individuo, não mais como na religião enquanto
empenho pessoal através da ‘vocação profissional’, mas como condição social de sobrevivência
dentro do cosmo econômico capitalista. A religião capitalista é o único meio pelo qual o adepto
desse modo de vida tem para resolver suas ‘preocupações, aflições e inquietações’. Com isso,
podemos crer que Benjamin utiliza um conceito de religião herdeira da análise weberiana do
protestantismo. Essa característica de ‘dever’ ou ‘obrigação’ moral ganha outro sentido em
Benjamin, o ‘dever profissional’ ou a ‘obrigação vocacional’ ganha agora um sentido mais
opressivo enquanto ‘trabalho por obrigação’. Nesse sentido, podemos afirmar que a religião
capitalista, tal como Benjamin a descreve, não atuaria como simples ‘confissão’, mas sim por
‘adesão’. Em outras palavras, nessa religião não há mais dogmas ou teologia para se
fundamentar espiritualmente (imaterialmente) um modo de vida, há apenas condições
determinadas materialmente que definem toda ação possível. Dessa maneira, a ‘recusa’ ou a
‘adesão’ dessas condições é que determinam o desempenho dos sujeitos nesse cosmo
capitalista.
Para Weber, o capitalismo moderno, “[...] dominando de longa data a vida
econômica, educa e cria para si mesmo, por via da seleção econômica, os sujeitos econômicos
46

– empresários e operários – de que necessita” (WEBER, 2004. P. 48), fazendo-se, assim, uma
clara referência à teoria evolucionista de Charles Darwin. A ideia de ‘seleção econômica’ em
Weber atua da mesma forma que a ideia de ‘seleção natural’: há uma luta pela sobrevivência,
uma luta entre os indivíduos por recursos materiais para manter sua existência e perpetuação,
somente, os indivíduos mais aptos conseguem sobreviver. Na sociologia de Weber essa
‘seleção’ não atua somente nos indivíduos isolados, mas também através de ‘grupos de
pessoas’:

Para que essas modalidades de conduta de vida e concepção de profissão adaptadas à


peculiaridade do capitalismo pudessem ter sido “selecionadas”, isto é, tenham podido
sobrepujar outras modalidades, primeiro, elas tiveram que emergir, evidentemente, e
não apenas em indivíduos singulares isolados, mas sim como um modo de ver portado
por grupos de pessoas (ibidem).

Weber está se referindo ao ‘espírito do capitalismo’ como fenômeno de massa e,


nesse sentido, pode, cada vez mais, dominar a vida dos ‘sujeitos econômicos’, criando
mecanismos institucionais para produzir e educar sua ‘força de trabalho’. Na religião capitalista,
a ideia de ‘luta econômica pela existência’ já foi interiorizada pelos indivíduos, submetidos a
esse sistema econômico que, por sua vez, implica a ‘produção da riqueza abstrata’ como meta
inquestionável da vida particular, e se mostra como característica cultural da modernidade.
A ideia de ‘religião’ que Benjamin utiliza no seu esboço possui um sentido de
‘obrigação’, ora como coerção subjetiva, ora como condição social coletiva, ou seja, todos os
indivíduos são obrigados a seguir o culto dessa religião, pois há somente essa alternativa para
se curar as ‘doenças do espírito’ ou simplesmente viver. Uma possível explicação para o termo
‘adorador’, que parece possuir uma ambiguidade interna, por vezes como propagador do
‘espírito capitalista’, por vezes como um indivíduo sujeitado ao ritual de ‘sacralização’, seria
que essa expressão foi usada como referência ao processo ritualístico incessante dessa religião.
Na interpretação de Giorgio Agamben, podemos encontrar algumas pistas para
compreender melhor esse sentido ritualístico da religião capitalista. Ele afirma que há uma
constituição própria de qualquer religião, que consiste na divisão maniqueísta entre ‘sagrado’ e
‘profano’ intermediado pelo ‘sacrifício’:
[...]Sagradas ou religiosas eram as coisas que de algum modo pertenciam aos deuses.
Como tais, elas eram subtraídas ao livre uso e ao comércio dos homens, não podiam
ser vendidas nem dadas como fiança, nem cedidas em usufruto ou gravadas de
servidão. Sacrílego era todo ato que violasse ou transgredisse esta sua especial
indisponibilidade, que as reservava exclusivamente aos deuses celestes (nesse caso
eram denominadas propriamente de “sagradas”) ou infernais (nesse caso eram
simplesmente chamadas de “religiosas”). E se consagrar (sacrare) era o termo que
designava a saída das coisas da esfera do direito humano, profanar, por sua vez,
significava restituí-las ao livre uso dos homens (AGAMBEN, 2007, p. 65)
47

Assim como nas religiões arcaicas, a religião capitalista, também, comporta essa
distinção entre as esferas do ‘divino’ e do ‘profano’. Quando Benjamin fala em ‘exibição de
toda pompa sacral’, ele, provavelmente, fala de uma sociedade que passa constantemente e
incessantemente pelo processo de ‘transição sacrificial’ entre aquilo que era ‘profano’ ou
simplesmente comum à vida humana e que, agora, é ‘sagrado’, ou separado do ‘uso comum’,
através dos rituais que perpassam a produção do Dinheiro e da Mercadoria. Retomando a ideia
do sacrifício como forma de pagamento, nesse instante, interessa-nos tentar entender a relação
da ideia de sacrifício como transição do ‘profano’ para o ‘divino’ e, em paralelo, a ideia de
sacrifício como pagamento (ou Gelt). Ambos aparecem como uma forma de compreensão do
fenômeno religioso capitalista no fragmento de Benjamin. Se for possível estabelecer uma
relação entre esses sentidos distintos do conceito de ‘sacrifício’, então, ela se dará dentro de
uma linguagem muito especifica, que é utilizada pelos comentadores do fragmento para tentar
pensar uma ‘religião’ no capitalismo contemporâneo. Ou seja, embora não esteja literalmente
presente n’O Capitalismo como Religião, a ideia de ‘sacrifício’ pode ser definida no texto a
partir da ideia de Schuld, que Benjamin afirma possuir um significado ambíguo de “culpa” e
“dívida” (BENJAMIN, 2013a. p. 23).
Para Agamben, o ‘sacrifício’ é um dispositivo que opera a separação religiosa entre
o ‘sagrado’ e o ‘profano’, e essa operação impõe um ‘não-uso’ ou um ‘uso restrito’, ou restaura
um ‘uso comum’. ‘Profanação’ é o ato de trazer de volta um certo ‘uso’ das coisas outorgadas
sagradas, nas suas palavras: “Entre ‘usar’ e ‘profanar’ parece haver uma relação especial, que
é importante esclarecer” (AGAMBEN, 2007, p. 65). E para esclarecer essa questão, Agamben
recorre ao conceito de religião como relegere, mas a sua maneira, definindo religião como “[...]
aquilo que subtrai coisas, lugares, animais ou pessoas ao uso comum e as transfere para uma
esfera separada” (ibidem). Para o filósofo italiano, toda religião possui essa separação que é sua
condição constituinte, “não há religião sem separação, como toda separação contém ou
conserva em si um núcleo genuinamente religioso”. Talvez, possamos pensar que seja dessa
‘separação’ que Benjamin se refere com seu conceito de religião capitalista, uma separação
entre ‘uso privado’ e ‘uso comum'. Nesse sentido quando outras formas ambíguas foram
tratadas, como o ‘sacrifício’, a ‘culpa’, o ‘dinheiro’, o ‘adorador’, entre outras manifestações
‘ritualísticas’, estariam também operando essa separação.
Agamben afirma que no ritual de sacrifício é “essencial o corte que separa as duas
esferas, o limiar que a vítima deve atravessar, não importando se num sentido ou noutro”
(AGAMBEN, 2007, p. 66), isto é, o que foi tornado sagrado pode ser restituído ao uso comum
48

profano novamente através do ‘contágio profano’ ou do ‘jogo’. O sentido de religio, entendido


como relegere, ou seja, como as “fórmulas” ou regras para obedecer e “respeitar a separação
entre o sagrado e o profano” e que “cuida para que se mantenham distintos”. Nesse sentido, a
profanação é certo “contágio” daquilo que é sagrado pelo simples toque dos participantes do
ritual, “um tocar que desencanta e devolve ao uso aquilo que o sagrado havia separado e
petrificado”. Entretanto, também, pode ser entendido como um certo “uso (ou melhor, de um
re-uso) totalmente incongruente do sagrado”, a profanação realizada pelo “jogo” (ibidem).
Agamben afirma que há uma ‘estreita vinculação’ entre a esfera do sagrado e do jogo:
[...] Ao analisar a relação entre o jogo e rito, Émile Benveniste mostrou que o jogo
não só provém da esfera do sagrado, mas também, de algum modo, representa a sua
inversão. A potência do ato sagrado – escreve ele – reside na conjunção do mito que
narra a história com o rito que a reproduz e a põe em cena. O jogo quebra essa unidade:
como ludus, ou jogo de ação, faz desaparecer o mito e conserva o rito; como jocus,
ou jogo de palavras, ele cancela o rito e deixa sobreviver o mito. Se o sagrado pode
ser definido da unidade consubstancial entre o mito e o rito, poderíamos dizer que há
jogo quando apenas metade da operação sagrada é realizada, traduzindo só o mito em
palavras e só o rito em ações (AGAMBEN, 2007, p. 65-66).

Agamben explica que a ‘profanação do jogo’ não se aplica exclusivamente à esfera


religiosa, citando o exemplo das brincadeiras de criança, na qual objetos voltados para o Direito,
para a guerra, para a economia, no qual “um automóvel, uma arma de fogo, um contrato jurídico
transformam-se improvisadamente em brinquedos”, trata-se de um modo de profanação que
opera uma mudança simbólica, gerando um novo uso para as formas religiosas estabelecidas,
como religio, que para Agamben, também, pode ser pensada a partir de outras categorias, como
“[...] as potências da economia, do direito e da política, desativadas em jogo, tornam-se a porta
de uma nova felicidade” (AGAMBEN, 2007, p. 67). Essa ideia de ‘felicidade’, posta por
Agamben, poderia ser interpretada como uma resposta à definição de religião, proposta por
Benjamin, como uma ‘resposta’ às ‘infelicidades humanas’.
Embora essa ideia de ‘profanação’ remeta à ideia de ‘secularização’, a
transformação do sentido de ‘uso’, oferecida pelo jogo, como explica Agamben, pode possuir
um sentido político e revolucionário a partir da diferenciação entre o ‘jogo como profanação’ e
o ‘jogo televisivo de massa’. Em suas palavras: “[...] os jogos televisivos de massa fazem parte
de uma nova liturgia, e secularizam uma intenção inconscientemente religiosa” (AGAMBEN,
2007, p. 68), fazendo evocar na ideia de ‘profanação do jogo’ um sentido distinto do de ‘uso’,
que não “coincide com o consumo utilitarista”. Para isso seria necessário a tarefa política de
“fazer com que o jogo volte à sua vocação puramente profana”. Agamben estabelece, portanto,
uma distinção entre os conceitos de ‘secularização’ e ‘profanação’, o primeiro seria uma ‘forma
de remoção’, mas que necessariamente deixa “intactas as forças”, restringindo-se a ser apenas
49

um deslocamento de posições. De acordo como filosofo italiano, “[...] a secularização política


de conceitos teológicos [...] limita-se a transmutar a monarquia celeste em monarquia terrena,
deixando, porém, intacto o seu poder”. Enquanto a profanação implicaria uma “neutralização
daquilo que profana”, não apenas removendo, mas tornando o objeto profanado inutilizável
pela “esfera do sagrado”, reestabelecendo um novo sentido e uso na “esfera humana”. Para
Agamben, tanto a “secularização”, quanto a “profanação” são operações políticas, entretanto, a
primeira, “tem a ver com o exercício do poder, o que é assegurado remetendo-o a um modelo
sagrado”, enquanto o segundo desativaria os “dispositivos de poder” e devolveria “ao uso
comum os espaços que ele havia confiscado” (AGAMBEN, 2007, p. 68).
Em O Capitalismo como Religião não há registro do conceito de profanação,
embora pareça uma ideia que está inter-relacionada com as demais ideias apresentadas no
fragmento. Benjamin faz menção muito breve a uma “recusa” (BENJAMIN, 2013a, p.22) da
religião capitalista, acompanhando a ideia de “redenção esperado do próprio culto” e “reforma
da religião”. A ‘redenção’, prometida pela religião capitalista, não necessariamente parece
fazer sentido quando comparada a ideia de ‘profanação’, mas é assim que Agamben interpreta
o fragmento, dando continuidade às reflexões de Benjamin e lhe conferindo uma roupagem
contemporânea.
50

6 OCULTAÇÃO E CULPABILIZAÇÃO, A DISTINÇÃO FUNDAMENTAL DA NOVA


RELIGIÃO DA MODERNIDADE

Em terceiro lugar, esse culto é culpabilizador. O


capitalismo presumivelmente é o primeiro caso de culto
não expiatório, mas culpabilizador. Nesse aspecto, tal
sistema religioso é decorrente de um movimento
monstruoso. Uma monstruosa consciência de culpa que
não sabe como expiar lança mão do culto, não para expiar
essa culpa, mas para torná-la universal, para martelá-la
na consciência e, por fim e acima de tudo, envolver o
próprio Deus nessa culpa, para que ele se interesse pela
expiação. Esta, portanto, não deve ser esperada do culto
em si, nem mesmo da reforma dessa religião, que deveria
poder encontrar algum ponto de apoio firme dentro dela
mesma; tampouco da recusa de aderir a ela. Faz parte da
essência desse movimento religioso que é o capitalismo
aguentar até o fim, até a culpabilização final e total de
Deus, até que seja alcançado o estado de desespero
universal, no qual ainda se deposita alguma esperança.
Nisto reside o aspecto historicamente inaudito do
capitalismo: a religião não é mais a reforma do ser, mas
seu esfaleci mento. Ela é a expansão do desespero ao
estado religioso universal, do qual se esperaria a salvação
(BENJAMIN, 2013a, p.22)

Retomando alguns aspectos já citados no fragmento, Benjamin expõe a terceira


característica da religião capitalista como um ‘culto culpabilizador’ e, nesse sentido,
diferenciar-se-ia das formas religiosas anteriores pré-capitalistas, justamente, porque elas
prometiam uma forma de salvação humana, uma forma de se resguardar no ‘além’, o que, na
visão de Benjamin, não pode ser esperado desse culto. A primeira característica dessa religião
é sua constituição, através da noção de culto, entendido como a práxis, ou como condição
sistêmica de sua autoprodução contínua, que se sustentaria pela fé dos adoradores, através das
práticas da ética utilitarista. Nas palavras de Benjamin: “não possui nenhuma dogmática,
nenhuma teologia” (BENJAMIN, 2013a, p.21), colaborando com a ideia de uma religião que
não coincide com os modelos estabelecidos historicamente, um culto que não promoveria o
expurgo (expiação, redenção, salvação) da culpa (muito menos no ‘além’), mas que a tornaria
ainda mais intensificada, crescente “[...] através do céu” (BENJAMIN, 2013a, p.22)
Talvez, esse seja o aspecto historicamente novo que Benjamin considere inaudito
na religião capitalista, justamente, porque essa religião não aparece como, nas antigas religiões,
uma salvadora da humanidade. O que pode ser explicado com base em Max Weber e Ernst
Troeltsch37, ambos não admitem a possibilidade de pensar o fenômeno capitalista como uma

37
Ambos os autores aparecem no corpo do texto como referência bibliográfica.
51

nova religião, justamente por utilizarem fielmente a noção de secularização. Eles se prenderiam
em demasia na ideia de que a ética praticada pelos capitalistas em ascensão e pelos
trabalhadores na vida cotidiana moderna não teria a mesma função que a da religião, embora
seus aspectos práticos sejam assimilados através da ascese intramundana, e por refletirem
aspectos fundamentais do utilitarismo liberal moderno.
Uma primeira tentativa de ampliar esses estudos de Weber e Troeltsch foi realizada
por Bruno Archibald Fuchs (BENJAMIN, 2013a, p.23) 38. Benjamin o cita com uma nota de
referência no fragmento –, “Fuchs, Struktur der kapitalistischen Gesellschaft [Estrutura da
sociedade capitalista], ou algo similar” (ibidem). A simples presença dessa referência nos faz
pensar que seja de Fuchs a ideia de continuidade entre religião e capitalismo, que Weber apenas
deixou esboçado, justificando não ter conhecimentos mais específicos da teologia protestante e
da teologia católica para afirmar uma continuidade historicamente mais profunda (WEBER,
2004, p. 275 – 276)39.
Na passagem do fragmento na qual Benjamin fala sobre o capitalismo ter se
desenvolvido como ‘parasita do cristianismo’, parece que é sobre os estudos de Fuchs que ele
diretamente se refere. Na realidade, o livro se chama O espírito da sociedade burguesa-
capitalista: uma investigação sobre seus fundamentos e pressupostos40. Nosso objetivo não é
dar conta do texto em si de Fuchs, mas somente situá-lo no contexto de O Capitalismo como
Religião e demonstrar sua importância para o pensamento de Benjamin.
Se o capitalismo é um parasita do cristianismo, então, isso deveria ser investigado
com base em toda a história do cristianismo, uma tese como essa é radicalmente oposta e muito
mais polêmica que a proposta originalmente por Weber. Pensar as relações entre o espírito da
sociedade burguesa e a ética religiosa protestante não foi de todo uma tarefa fácil, e provar a do
‘Capitalismo como religião’ requer um trabalho tão grandioso o quanto. Nas palavras de
Benjamin, isso precisaria “[...] ser demonstrado não só com base no calvinismo, mas também
com base em todas as demais tendências cristãs ortodoxas –, de tal forma que, no final das
contas, sua história é essencialmente a história de seu parasita” (WEBER, 2004, p. 24). Em
outras palavras, o capitalismo enquanto ideia ou “espírito” e, mais radicalmente, enquanto
éthos, de algum modo foi forjado através, também, da história da religião cristã como um todo,

38
A presença de Fuchs como referência bibliográfica colabora para a interpretação de que, provavelmente,
Benjamin estaria interessado no debate em torno das conclusões da Ética Protestante e o Espírito do
Capitalismo.
39
Conferir a nota número 309.
40
Notas da edição alemã. Tradução nossa de: “Der Geist Der Bürgerlich-Kapitalistischen Gesellschaft: Eine
Untersuchung über Seine Grundlagen Und Voraussetzungen”.
52

o mesmo problema que Bruno Archibald Fuchs se propõe a investigar. Como mostra Francisco
Gil Villegas41, para Fuchs, as “motivações psicológicas da religiosidade calvinista” (FUCHS
apud VILLEGAS, 2015) são profundamente herdadas da ascese monástica, ou seja, a
religiosidade protestante estaria essencialmente relacionada à essência da religião cristã no
geral. A ascese intramundana comum do protestantismo não se “originou espontaneamente”,
mas seus traços essenciais remontariam ao cristianismo medieval.
Provavelmente, Benjamin se interessou pelos estudos de Fuchs, pois se
aproximavam, de algum modo, com sua perspectiva sobre a relação de continuidade entre Mito
e Direito, por exemplo, no problema da comparação entre cédulas bancárias e imagens de santos
de diversas religiões. Benjamin estaria se referindo a uma ideia de espírito próxima da pensada
por Weber como ethos do capitalismo: “O espírito que se expressa nos ornamentos das cédulas
bancárias” (BENJAMIN, 2013a, p. 23). Esse raciocínio se reflete adiante quando novamente
Benjamin se refere ao sentido abstrato do dinheiro: “[...] quais foram as ligações que o dinheiro
estabeleceu com o mito no decorrer da história, até ter extraído do cristianismo a quantidade
suficiente de elementos míticos para constituir o seu próprio mito” (BENJAMIN, 2013a, p. 24).
Para ajudar nessa interpretação vale a pena retomar o que foi dito por Jeanne Marie
Gagnebin (2020) sobre a relação de continuidade entre Mito e Direito em Benjamin. Gagnebin
afirma que o “mítico” e o “mito” no pensamento do jovem Benjamin “[...] não designam uma
época da humanidade definitivamente superada pela racionalidade, mas sim um fundo de
violência que sempre ameaça submergir as construções humanas (GAGNEBIN, 2020, p. 1941).
É assim que poderíamos entender a ideia de mito no fragmento O Capitalismo como Religião.
Para Gagnebin, Benjamin “[...] estabelece o domínio do direito (das Recht) como sendo o
sucessor da ordem do mito, embora a instituição das normas jurídicas seja geralmente concebida
como um meio privilegiado de combater a arbitrariedade do mito” (GAGNEBIN, 2020, p.
1941). A mesma lógica parece ser aplicada ao caso do dinheiro e das imagens santas, a
continuidade mítica do dinheiro também está relacionada diretamente com a legalidade do
Estado e das instituições das normas jurídicas.
Benjamin, portanto, assim como fez com a tese de Weber, amplia radicalmente
certo aspecto crítico da obra de Fuchs, o espírito capitalista não é como pensou Weber, apenas
uma ‘formação condicionada pela religião’, nem como pensou Fuchs ao ampliar a dimensão
dos estudos de Weber sobre a ascese intramundana, mas um novo fenômeno religioso, que

41
VILLEGAS, Francisco Gil. Max Weber y la guerra académica de los cien años: Historia de las ciências
sociales em el siglo XX. La Polémica em torno a La ética protestante y el spíritu del capitalismo (1905 –
2012). Fondo de Cultura Económica, 2015.
53

floresceu especialmente na modernidade. Uma religião sem dogmas, sem teologia e


consequentemente, sem esperança em uma futura salvação. Como afirma Agamben (2013b):
“[...] nossa época, [...] é de escassa fé ou, [...] de má-fé, isto é, de uma fé mantida à força e sem
convicção”, portanto estaríamos em uma época “sem futuro e sem esperanças”, ou melhor,
estaríamos numa época “[...] de futuros vazios e de falsas esperanças”.
A visão pessimista de Agamben se sustenta na ideia de que “[...] há uma esfera que
gira totalmente ao redor do eixo do crédito, uma esfera em que acaba toda a nossa pistis, toda
nossa fé” (AGAMBEN, 2013b). Tal esfera é o dinheiro, e o que poderia ser comparado
imediatamente com os templos religiosos são os bancos de crédito. Tal comparação, inspirada
pela ideia benjaminiana de religião capitalista, é uma atualização da crítica proposta por
Benjamin no fragmento. O sentido da ideia de ‘culpabilização’, entendido pela sua
ambiguidade, pode ser comparado ao endividamento econômico individual, mas enquanto
fenômeno social e coletivo, um ‘movimento monstruoso’ que se difere completamente das
religiões tradicionais, que ao contrário prometem alguma esperança em salvação.
Contudo, Benjamin afirma que há uma promessa na religião capitalista, a promessa
de resolução das ‘preocupações’, que como bem lembra Benjamin “[...] surgem da angústia
provocada pela situação sem saída de cunho comunitário, não de cunho individual-material”
(BENJAMIN, 2013a, p. 24), ou seja, se refere a um fenômeno de massa que se poderia sentir
ou observar na vida cotidiana coletiva. Entretanto, ao invés de resolver essas ‘preocupações’, a
religião capitalista instaura uma “[...] consciência de culpa que não sabe como expiar”
(BENJAMIN, 2013a, p. 22), um movimento que se expressa enquanto consciência culpada,
presa numa situação sem saída, para enfim recorrer ao “[...] culto, não para expiar essa culpa,
mas para torna-la universal” (ibidem). O sentido dessa expressão pode ser entendido através da
noção de culto “sans revê at sans merci”, a universalização da culpa, promovida pela religião
capitalista, é o movimento de expansão e dominação psicológica do ‘espírito capitalista’ sobre
todas as formas de vida que ainda não se tornaram capitalistas e, além disso, dos que nasceram
na “jaula de aço” capitalista (WEBER, 2004, p. 165).
O ‘culto’ capitalista, como propõe Benjamin, almeja “[...] por fim e acima de tudo,
envolver o próprio Deus nessa culpa, para que ele se interesse pela expiação”, talvez uma
referência a ideia de ‘Geld’ [Dinheiro] como sacrifício de Landauer” (LANDAUER apud
LÖWY, 2019, p. 16). Mas, como bem lembra Agamben numa passagem de Elogio a
profanação (2007), dentro do Cristianismo, o problema da separação entre sagrado e profano,
através do ritual sacrificial e das regras de manutenção da separação (teologia), estabeleceu-se
como racionalização da conduta de vida dos adoradores e da racionalização da doutrina, com o
54

fim último de sempre manter a ‘coerência e inteligibilidade’ da teologia nessa ‘implacável


seriedade’:

[...] estava em jogo nada menos que a sobrevivência de um sistema religioso que havia
envolvido o próprio Deus como vítima do sacrifício e, desse modo, havia introduzido
nele a separação que, no paganismo, tinha a ver apenas com as coisas humanas. Trata-
se, portanto de resistir, através da contemporânea presença de duas naturezas numa
única pessoa, ou numa só vítima, a confusão entre divino e humano que ameaçava
paralisar a máquina sacrificial o cristianismo. A doutrina da encarnação garantia que
a natureza divina e a humana estivessem presentes sem ambiguidade na mesma
pessoa, assim como a transubstanciação garantia que as espécies de pão e do vinho se
transformassem, sem resíduos, no corpo de Cristo (AGAMBEN, 2007, p. 69).

Agamben mostra que o Cristianismo, assim como a religião capitalista, opera


essencialmente uma ‘confusão’ entre o que é de domínio humano e de domínio divino, embora,
nessa nova religião da modernidade, essa separação entrou em colapso e já não é mais possível
distinguir o que é profano e sagrado no sentido clássico religioso. Não se trata apenas de um
fenômeno de secularização levado ao extremo, pelo contrário, em Benjamin, trata-se de uma
substituição substancial do conceito de religião, carregada de rupturas históricas.
Para nos ajudar a entender esse problema da diferenciação entre religião tradicional
e capitalismo, Michael Löwy, em sua interpretação do fragmento, pergunta qual seria o exemplo
de um ‘culto expiatório’ oposto ao ‘espírito capitalista’ que parasita o Cristianismo: “[...] talvez
se tratasse do judaísmo, cujo dia sagrado mais importante é, [...] o Yom Kippour, designado
geralmente como ‘dia do perdão’, mas cuja tradução mais literal seria ‘dia da expiação’”
(LÖWY, 2019, p. 18). Essa celebração se resume em confessar e se arrepender dos pecados a
fim de ser perdoado por Deus. Embora isso possa ser um exemplo de ‘culto expiatório’, o ‘dia
da expiação’ no judaísmo não é citado no fragmento diretamente, ficando parcialmente
entendido que se trata da promessa de ‘salvação cristã’. Além disso, quando Benjamin expressa
categoricamente que “o capitalismo é uma religião puramente de culto, desprovida de dogma”
(BENJAMIN, 2013a, p. 23), podemos entender que o objetivo da crítica à religião capitalista
não diz respeito às confissões religiosas ou aceitação de dogmas, mas à prática do culto em si,
recorrendo à ideia de ‘culpa’ para estabelecer uma conexão substancial com o conceito
tradicional de religião.
De acordo com Löwy, a ambiguidade da palavra Schuld, traduzível tanto como
‘culpa’, quanto ‘dívida’, funda-se na “[...] premissa de que não se pode separar, no sistema da
religião capitalista, a culpa mítica e a dívida econômica” (LÖWY, 2019, p. 19), nesse sentido,
retomando as ideias de continuidade e ruptura entre o Mito e o Direito, expostas por Gagnebin
(GAGNEBIN, 2020, p. 1941). Löwy afirma, ainda, que é possível encontrar raciocínios
55

parecidos a esse de Benjamin em Max Weber, precisamente quando expõe a relação ambígua
que o burguês puritano tem com o sentido de ‘dever’ ou ‘obrigação’:

A ideia de obrigação do ser humano para com a propriedade que lhe foi confiada, à
qual se sujeita como prestimoso administrador ou mesmo como “máquina de fazer
dinheiro”, estende-se por sobre a vida feito uma crosta de gelo. Quanto mais posses,
tanto mais cresce – se a disposição ascética resistir a essa prova – o peso do sentimento
de responsabilidade não só de conservá-la na íntegra, mas ainda de multiplicá-las para
a glória de Deus através do trabalho sem descanso. Mesmo a gênese desse estilo de
vida remonta em algumas de suas raízes à Idade Média como aliás tantos outros
elementos do espírito do capitalismo moderno, mas foi só na ética do protestantismo
ascético que ele encontrou um fundamento ético consequente (WEBER, 2004, p. 155)

Nessa exposição de Weber sobre a ascese intramundana protestante, podemos


entender como funciona a dupla imposição da culpa no adorador, a ‘crosta de gelo’ atua
figurativamente como a representação da ‘dívida’ com Deus, o fardo duro e gélido da
responsabilidade moral com a riqueza e a ‘predestinação’. Nenhuma ação poderia ter sentido
de ser se não fosse significado através do culto constante e incessante a Deus. Os deuses, aos
quais, faz-se necessário prestar adoração, dentro da religião capitalista, fazem parte da
realização do culto em si, são os intermediários da ação econômica, seus próprios meios e seu
próprio fim.
O interesse de ‘Deus’, no culto e na culpabilização universal, consiste no
entendimento abstrato e confuso entre a esfera da sociabilidade capitalista e a esfera religiosa,
a confusão entre o interesse de Deus pela riqueza no imaginário protestante e o sentimento de
culpa do adorador perante sua devoção profissional e sua riqueza, ou falta dela. A religião
capitalista, definida por Benjamin, distancia-se cada vez mais da conceituação tradicional de
religião, suas características podem ser explicadas dentro da teologia de religiões antecedentes,
embora seus fenômenos práticos sejam totalmente desvinculados de qualquer dimensão
efetivamente religiosa, com o estabelecimento bem definido de um dogma ou o
desenvolvimento racional de uma teologia propriamente dita.
Entretanto, Robert Kurz observa uma possibilidade interpretativa diferente, a
religião capitalista não seria uma religião propriamente dita, para ele, “[...] o capitalismo deve
ser algo pior que uma religião” (KURZ, 2012), isto é, dentro de sua interpretação proposta do
fragmento, Kurz tece uma crítica a identificação imediata do capitalismo com uma religião.
Apesar de aceitar a tese crítica central do fragmento de Benjamin, Kurz a entende apenas como
uma ‘analogia’ meramente fenomenológica. Em suas palavras:
56

“É um facto que a segunda característica referida por Benjamin, a duração permanente


do culto, está correcta em termos empíricos, na medida em que todas as manifestações
da vida no capitalismo estão permeadas, com a densidade historicamente crescente,
pela lógica da “riqueza abstracta” e dos seus constrangimentos à acção. Mas, no fundo,
é isto mesmo que configura, como o próprio Benjamin assinala, uma diferença
relativamente às formações agrárias de constituição religiosa em que o dia-a-dia e o
dia festivo ritual tendiam a estar separados, pelo menos em termos exteriores. Sem
dúvida poderíamos supor a característica de uma permanência do culto para relações
arcaicas, pré-históricas, nas quais é provável que todas as acções sem exceção tenham
sido de caráter ritual e diretamente associadas à relação de sacrifício. Neste ponto, já
poderia vislumbrar-se a funesta intuição de que o fetiche do capital, de certo modo,
não é só um “progresso” para além das constituições religiosas mas, ao mesmo tempo,
o regresso modificado de algo arcaico, e assim a razão iluminista do capitalismo se
resume, no seu âmago, a uma barbárie quase arcaica (KURZ, 2012).

Essa é a tese central do texto de Robert Kurz, O sacrifício e o regresso perverso do


arcaico (2012). Como dito anteriormente, Kurz está interessado em O Capitalismo como
Religião, na medida em que este colabora para uma compreensão da ideia de crise no
capitalismo e interpreta o fragmento de Benjamin à luz de uma comparação com o pensamento
de Karl Marx sobre o fetiche do capital, não se importando muito com o contexto da redação
do fragmento, rejeitando a influência da teologia no pensamento do jovem Benjamin. O que
nos interessa, principalmente, com sua interpretação é seu contraponto argumentativo, oposto
ao de Agamben e Löwy, que demonstram conhecer mais a fundo o contexto do fragmento.
Para Kurz, as características atribuídas ao capitalismo como estrutura
essencialmente religiosa, são apenas ‘analogias’ que jogam com a superficialidade dos
fenômenos religiosos e econômico-capitalistas. Também a noção de culpabilização no
fragmento estaria operando uma comparação, “[...] ainda que refinada” (KURZ, 2012).
Benjamin explora justamente a ambiguidade da palavra Schuld, o que ele chama de
‘ambiguidade demoníaca’ é essa significação dupla de ‘culpa’ e ‘dívida’. Essa polissemia, para
Kurz, pode significar tanto “[...] a culpa no sentido de uma falta pessoal que tem de ser expiada
ou compensada”, ou seja, o sentido da culpa constituída historicamente na teologia, expresso
nas relações de “[...] obrigações pessoais (e institucionais), [...] determinante para as sociedades
pré-modernas”; quanto pode ser entendida também “no sistema moderno do trabalho, do
dinheiro e do crédito”, nesse sentido a culpabilização “[...] transformou-se em algo
qualitativamente diferente” (KURZ, 2012). Para Kurz a tentativa de Benjamin de afirmar uma
identidade entre capitalismo e religião é um equívoco, embora com boas intensões. Nas palavras
de Kurz:

Parecenças históricas na figura de relações putativamente iguais, como empréstimo


de dinheiro e crise da dívida, não passam de aparências, visto que a relação de
obrigação fetichista imediata e a relação do capital fetichista objectivada são coisas
57

fundamentalmente diversas, por muito que as formas se apresentem superficialmente


como idênticas. Tanto em termos de história real como da história linguística, existem
traços de união, mas justamente apontam para tudo menos uma continuidade religiosa
(KURZ, 2012).

Contudo, Kurz ignora certo aspecto teológico do Jovem Benjamin, embora sua
interpretação crítica seja uma tentativa de atualização da tese benjaminiana, de fato o que se
observa é um regresso de formas arcaicas de constituição do poder. O ‘regresso perverso do
arcaico’ se dá na medida em que a sociabilidade capitalista atua de forma semelhante à
dominação psicológica desenvolvida no calvinismo e, em certa medida, no ascetismo monástico
da Idade Média, mas não somente enquanto formas abstratas, mas como ética, ou seja, em forma
de prática e ação no mundo, certo aspecto da dominação técnica. Benjamin não chega a citar
diretamente o termo ‘técnica’, mas como podemos verificar nesta passagem: “Conexão entre
dogma da natureza dissolutiva do saber (que, nessa qualidade, ao mesmo tempo redime e mata)
e o capitalismo: o balanço de sua condição de saber que redime e mata” (BENJAMIN, 2013a,
p. 25). Se Benjamin estaria se referindo ao ‘poder soberano’ não podemos ter certeza,
entretanto, podemos supor que tal afirmação, sobre o ‘saber’, seja uma sugestão de crítica
epistemológica sobre a natureza destrutiva e violenta da Teocracia, também, presente em outros
textos de Benjamin da mesma época, a exemplo do Fragmento Político-Teológico42.
Dando continuidade à interpretação de Michael Löwy, na passagem em que
Benjamin usa a expressão “[...] para martelá-la na consciência” (BENJAMIN, 2013a, p. 22),
Löwy afirma que seja uma possível referência a noção de “culpa” (ou a obrigação/dever)
observada por Weber dentro das “práticas puritanas capitalistas” (LÖWY, 2019, p. 20).
Entretanto, ainda de acordo com o comentador, o argumento de Benjamin é mais geral, a culpa
que a religião capitalista implica sobre os adoradores não depende de uma confissão pessoal,
mas de uma situação de desespero em expansão, não apenas universal, mas universalizante.
Nas palavras de Löwy, “[...] não é somente o capitalista que é culpado e “em dívida” com seu
capital” (ibidem), Benjamin quer superar a compreensão weberiana de secularização,
retomando a ideia da “predestinação” para pensar a divisão de classes na realidade capitalista,
para o calvinista o sucesso e suas riquezas são a prova de que é um escolhido por Deus e terá
sua alma salva no pós-morte, em detrimento disto, o pobre é visto “[...] por definição como um
condenado” (ibidem). O sentimento de culpa dos pobres é, dentro da lógica da religião
capitalista, devido seus “[...] fracassos de não terem conseguido fazer dinheiro e estarem
endividados” –, tal raciocínio é verificável dentro de O Capitalismo como Religião quando no

42
Cf. BENJAMIN, 2013b.
58

último parágrafo do fragmento, Benjamin fala sobre as semelhanças que observa no paganismo
original e no capitalismo:

Contribui para o conhecimento do capitalismo enquanto religião ter presente que o


paganismo original certamente foi o primeiro a não conceber a religião como interesse
“moral’, “mais elevado”, mas como interesse prático o mais imediato possível; em
outras palavras, é preciso ter presente que ele, a exemplo do capitalismo atual,
tampouco tinha clareza sobre sua natureza ideal ou transcendente”, mas considerava
o indivíduo irreligioso ou de outra crença de sua comunidade como um membro
inquestionável, exatamente no mesmo sentido em que a burguesia atual encara seus
integrantes economicamente inativos (BENJAMIN, 2013a, p. 25).

Desse modo, Benjamin rastreia na história da religião em geral, não apenas as


características protestantes ou católicas ortodoxas da religião capitalista, mas formas de
constitutivas de religiões mais antigas, arcaicas e consequentemente imanentes (diferenciando
a religião capitalista das formas transcendentais do cristianismo em geral), corroborando com
sua polemica tese da gênese parasitária do capitalismo, ampliando radicalmente sua crítica às
ideias weberianas. Lowy afirma que Benjamin, ao denunciar o interesse de Deus no culto e na
culpabilização, teria sofrido influência de Adam Müller; de acordo com Löwy, foi um “[...]
filósofo social romântico/conservador, crítico impiedoso do capitalismo – citado por Benjamin
na bibliografia” (LÖWY, 2019, p. 20) e que teria pensado a hereditariedade da Schuld como
dívida econômica, ou seja, como forma imanente, não transcendente, da noção de
culpabilização. Como não tivemos acesso à obra original de Adam Müller, iremos recorrer à
citação que Löwy faz da obra de Müller que Benjamin cita como referência:

[...] o infortúnio econômico, que antigamente era de imediato carregado[...] pela


geração afetada e morria com o perecimento dela, reside atualmente, desde que toda
ação e comportamento se expressa em ouro, em massas de dívidas (Schuldmassen)
cada vez mais sobrecarregadas, que acabam pesando e ficando para a geração seguinte
(MÜLLER apud LÖWY, 2019, p.58)43

Löwy interpreta essa citação de Adam Müller, a partir da ideia de universalização


da culpa em Benjamin, a ‘culpa’ entendida tanto como dívida econômica, quanto culpa mítica,
“[...] se os pobres são culpados e excluídos da graça e se, no capitalismo, eles são condenados
à exclusão social, ‘é vontade de Deus’” (MÜLLER apud LÖWY, 2019, p.20). Disso decorre
do ‘interesse de Deus’ no culto e na culpabilização que retoma na religião capitalista os
estímulos psicológicos ascéticos da religiosidade cristã, mas agora como interesse econômico
individual e coletiva, como conclui Löwy: “[...] Deus é inextricavelmente associado ao processo

43
Na nota de rodapé do comentário: Adam Müller, Zwölf Redenüber die Beredsamkeit und derem Verfall in
Deutschland.
59

de culpabilização universal” (MÜLLER apud LÖWY, 2019, p.21). A presença da referência a


Adam Müller indica mais uma possibilidade de diálogo crítico que Benjamin, provavelmente,
estaria interessado em desenvolver com maior precisão. Na época de Müller, a riqueza abstrata
ainda era convertida materialmente em quantidade de ouro, mas com a desmaterialização
histórica do dinheiro, tal convertibilidade torna-se totalmente abstrata, como anunciado por
Agamben44. Portanto, poderíamos considerar que a universalização da culpa em Benjamin, diz
respeito ao endividamento crescente, a constante crise do crédito contemporâneo, não só dos
capitalistas, mas de toda a população que está sujeitada a situação capitalista. Nas palavras de
Agamben:
Na pistis paulina volta a viver a antiquíssima instituição indo-europeia [...] a
‘fidelidade pessoal’: Aquela que detém a fides posta nele por um homem mantém tal
homem em seu poder... na sua forma primitiva, esta relação implica uma
reciprocidade: por a própria fides em alguém proporcionava, em troca, a sua garantia
e a sua ajuda (AGAMBEN, 2013a).

A hipótese da religião capitalista é atualizada por Agamben, não se trata de crenças


ou uma confissão religiosa declarada, muito pelo contrário, essa religião tende à ocultação dessa
estrutura religiosa –, a dominação capitalista é uma forma atualizada da violência mítica das
religiões arcaicas, um movimento monstruoso que opera como culto, no qual nada possui valor
senão dentro do conjunto de valores que o perpassam e lhe garantem legitimidade institucional
e política. Seria tentador afirmar que Benjamin está se referindo, com sua crítica à religião
capitalista, a uma crítica à teocracia, à realização do “Reino de Deus” na Terra. Essa é uma
hipótese de um futuro trabalho que deverá ser realizado mais adiante.
Por enquanto, interessa-nos a conclusão de Agamben sobre o fragmento
benjaminiano: a religião capitalista se fundaria inteiramente na ideia de fé e, nesse sentido, é
baseado na administração do ‘crédito’, isto é, na ambiguidade latente entre crédito fiduciário e
crédito pessoal. Essa nova religião da modernidade “[...] é uma religião cujos adeptos vivem
sola fide (unicamente da fé)” (ibidem), e se é como afirma Benjamin, há uma ambiguidade
demoníaca entre a ‘culpa’ e a ‘dívida’. Então estamos nos referindo a uma certa metafisica do
dinheiro que como afirma Agamben: “[...] dito de outra maneira, pelo fato de o dinheiro ser a
forma pura do crédito, é uma religião em que Deus é o dinheiro” (ibidem).
O quarto traço dessa religião é a ‘ocultação’ e, de acordo com Benjamin, essa
característica está estritamente ligada ao terceiro traço, a culpabilização: “O quarto traço dessa
religião é que seu Deus precisa ser ocultado e só pode ser invocado no zênite de sua

44
AGAMBEN, 2013a; AGAMBEN, 2013b.
60

culpabilização” (BENJAMIN, 2013a, p. 22). Poderíamos supor que não passa de mais uma
ironia de Benjamin, na medida em que, na religião cristã, o dogma se fundamenta na ideia de
revelação, já na religião capitalista, sem teologia e sem dogma, difere-se finalmente em sua
fundamentação epistemológica, como ocultação, ou como um movimento que opera com
estímulo psicológico subjetivos, ou como relações sociais –, entendidas, nesse sentido, através
da noção de ‘culpa mítica’ e ‘dívida econômica’. O ‘Deus’ da religião capitalista é a forma
intermediaria da relação econômica entre os humanos, ele está oculto em toda ação que se
realiza dentro da dimensão econômica, que domina todas as esferas da vida humana atualmente.
Quando Benjamin afirma: “O culto é celebrado diante de uma divindade imatura”
(BENJAMIN, 2013a, p. 22) –, poderíamos entender como uma referência a ideia de expansão
territorial e ideológica do capitalismo, no contínuo de sua ânsia de crescimento da riqueza e,
consequentemente, da produção de mercadorias. Podemos observar, na interpretação de
Agamben, raciocínios que colaboram para essa hipótese, quando por exemplo ele fala sobre a
relação entre ‘capital produtivo’ e ‘capital monetário’:
[...] o capital das empresas hoje recorre em medida crescente ao capital monetário,
tomando de empréstimo junto ao sistema bancário. Isso significa que as empresas,
para poderem continuar a produzir, devem por assim dizer hipotecar antecipadamente
quantidades cada vez maiores do trabalho e da produção futuro. O capital produtor de
mercadorias alimenta-se ficticiamente do próprio futuro. A religião capitalista, em
coerência com a tese de Benjamin, vive um contínuo endividamento [...]. Mas não são
apenas as empresas que vivem, neste sentido, sola fide, a crédito (ou a débito).
Também os indivíduos e as famílias, que recorrem a isso de modo crescente, estão da
mesma forma religiosamente envolvidos neste contínuo e generalizado ato de fé sobre
o futuro (AGAMBEN, 2013a).

O fragmento de Benjamin parece falar sobre uma sociedade que depositou todas
suas esperanças numa promessa, a esperança prometida pelo progresso iluminista. Agora as
‘preocupações’, outrora míticas, podem ser relacionadas a preocupações da nossa sociedade
capitalista, as preocupações envolvidas em torno do trabalho, da alimentação, da saúde, do
terrorismo, da ecologia e a fé depositada no capitalismo, a fim de que esse sistema consiga
resolver todos os problemas da sociedade. As ‘preocupações’ são devido à situação sem saída
que é decorrente desse sistema religioso-econômico e não é somente através do ‘espírito’ do
capitalismo’ como teoria e prática, expressa no liberalismo econômico, mas da simples
realização do culto, ou seja, a realização das práticas econômicas cotidianas.
O ‘Deus’ da religião capitalista foi ocultado, isto é, foi inserido no destino humano,
é o que Benjamin parece indicar nesse último traço da estrutura da religião capitalista: “[...]
toda representação dela e toda ideia sobre ela viola o mistério de sua madureza” (BENJAMIN,
2013a, p. 22). Ironicamente, as representações e ideias sobre essa divindade não são reveladas
61

misteriosamente, ao contrário estariam muito bem expressas nessa história parasitária do


capitalismo. Quando Benjamin fala sobre o quarto traço, anteriormente, faz uma breve menção
a Nietzsche que, justamente, dialoga com esse problema da ocultação e da culpabilização. A
religião capitalista não é uma religião transcendental, mas compartilharia com as religiões
arcaicas um [...] interesse prático o mais imediato possível” (BENJAMIN, 2013a. p. 25),
distanciando-se da noção tradicional de religião como interesse moral ou ‘ideal’. Nas palavras
de Benjamin:
[...] A transcendência de Deus ruiu. Mas ele não está morto; ele foi incluído no destino
humano. Essa passagem do planeta “ser humano” pela casa do desespero na solidão
absoluta de sua orbita constitui o éthos definido por Nietzsche. Esse ser humano é o
ser super-humano [Übermensch], o primeiro que começa a cumprir conscientemente
a religião capitalista (BENJAMIN, 2013a. p. 22).

Como pensa Jeanne Marie Gagnebin, o fragmento de Benjamin é com toda


evidência inspirado por Max Weber e, em certa medida, por Friedrich Nietzsche, “[...] por meio
de duas noções fundamentais: o desencantamento do mundo [...] e a morte de Deus”
(GAGNEBIN, 1999, p. 197). Mas o que Benjamin quer dizer ao afirmar que o super-humano
é o primeiro a cumprir a religião capitalista? De acordo com Michael Löwy, essa menção a
Nietzsche pode ser uma possível interpretação da ideia de amor fati, algo próximo a ‘amor ao
destino’ (LÖWY, 2019, p. 22). Não vamos investigar mais a fundo a filosofia nietzschiana
nesse trabalho, entretanto, o que nos interessa com esse conceito é tentar explicar o sentido que
Benjamin dá a ideia de ‘super-humano’. Para Benjamin, tal realização desse destino trágico,
pelo qual a humanidade atravessa, só foi possível através da intensificação do ‘espírito
capitalista’. O ‘super-humano’ é esse ser humano que está destinado a viver sob a ‘jaula de aço’
do capitalismo. Além disso, nas palavras de Nietzsche (2008): “Não apenas suportar o
necessário, menos ainda ocultá-lo – todo idealismo é mendacidade ante o necessário – mas
amá-lo...” (NIETZSCHE, 2009, p. 49).
Löwy afirma ainda que Nietzsche não está se referindo diretamente ao fenômeno
capitalista, mas a certa crítica aos valores religiosos de sua época, portanto, a certo aspecto
religiosos que Weber vai associar à gênese do capitalismo moderno. Nas palavras de Löwy: “É
o nietzschiano Max Weber que vai constatar [...] o caráter inevitável do capitalismo como
destino da época moderna” (LÖWY, 2019, p. 22). Parece que é nesse sentido que Benjamin
aponta sua crítica à religião capitalista, a salvação que se esperaria do estado de desespero
universal não é mais possível de ser alcançada dentro desse sistema religioso, muito menos de
62

sua reforma45 ou de uma recusa ou fuga46 dessa situação. Benjamin denuncia, nesse fragmento,
aquilo que Maria Rita Kehl chama de sentido benjaminiano da melancolia47. É a sintomatologia
da nossa época, a ideia de que toda ação política e toda ideia que vá contra esse sistema estaria
sendo anulada e dominada pelo culto e pelo multicolorido espírito utilitarista do capitalismo,
agora, erigido ao status de uma nova religião.

45
Benjamin esboça ainda uma crítica a Sigmund Freud e a Karl Marx que não será desenvolvido com maior
precisão nesse trabalho.
46
Benjamin cita como referência bibliográfica do fragmento o livro Politik und Metaphysik de Erich Unger. De
acordo com Löwy (2019), Unger pensa uma “migração dos povos” (UNGER apud Löwy, 2019, p. 27), o que
poderíamos entender como uma possível saída da religião capitalista presente no fragmento benjaminiano.
Entretanto, nas palavras de Löwy, mesmo sabendo da influência de Unger no pensamento de Benjamin, “[...]
não sabemos se ele considerava válida esta “saída para além da esfera capitalista” (LÖWY, 2019, p. 28. Grifo
do autor).
47
KEHL; BENJAMIN, 2013.
63

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apenas uma leitura superficial de O Capitalismo como religião não é suficiente


para revelar a riqueza crítica do fragmento. A maior dificuldade em sua compreensão se dá pelo
caráter de inacabamento do texto. De fato, Benjamin apenas esboçou e indicou alguns
apontamentos importantes para a compreensão da ‘estrutura’ dessa religião. Entretanto, o
fragmento possui uma ideia geral, que pode ser lastreada em diversos interlocutores indicados
por Benjamin no corpo do texto e mediante contextualização de comentadores da obra do
filosofo judeu. Primeiramente, Benjamin indica Max Weber como ponto de partida, embora,
no corpo do texto, estejam também presentes o teólogo Ernst Troeltsch e o ensaísta Bruno
Archibald Fuchs. Estes últimos são interlocutores de Weber e dão continuidade aos seus estudos
em torno da Ética protestante e o ‘espírito” capitalista’. A crítica de Benjamin à religião
capitalista, ao mesmo tempo que afirma uma semelhança, também rejeita a ideia de que o
capitalismo é igual às religiões pré-capitalistas. Em outras palavras, Benjamin nega que o
capitalismo possa resolver as assim chamadas ‘preocupações’ humanas, tal como as religiões
pré-capitalistas prometiam.
A demonstração da estrutura religiosa do capitalismo, entretanto, levaria Benjamin
a cair numa polêmica generalizada e desmedida, isto é, o filósofo alemão afirma que sua tese
ainda estaria naquela mesma polêmica que Max Weber protagonizou, a associação entre
economia e religião, mais precisamente da polemica do surgimento do ‘espírito capitalista’ a
partir da ética calvinista. Benjamin não só se apoia nesses estudos, como tenta superá-los, ao
afirmar que a religião capitalista compartilha elementos modernos protestantes, feudais
católicos e arcaicos das religiões pagãs.
O capitalismo não é apenas, como pensou Weber, uma formação condicionada pela
religião, mas teria se tornado uma religião. Benjamin expõe a descrição de quatro traços
constituintes da ‘estrutura’ dessa religião: ele começa por delimitar o conceito de religião o qual
o capitalismo pertence, que se difere radicalmente das formas religiosas pré-capitalistas em sua
essência. O capitalismo seria uma religião que se definiria exclusivamente através da ideia de
‘culto’. Tal ‘culto’ é definido como traço central e, ligando-se a ele, três traços constituintes se
seguem, a ‘permanência do culto’, o ‘processo de culpabilização’ e o ‘ocultamento de Deus’.
Os quatro traços definidos por Benjamin parecem dialogar diretamente com os seus
interlocutores.
64

A primeira característica que Benjamin atribui à estrutura da religião capitalista é a


forma de ‘culto’ que, de acordo com Gagnebin (2020), pode ter sido inspirado pelo sociólogo
alemão Georg Simmel, pelos seus estudos sobre religião e religiosidade. Entretanto, não está
expresso no fragmento nenhuma menção à Simmel. Como vemos, no texto de Benjamin, essa
característica primeira é definida a partir da ausência de um dogma fundante ou uma teologia
para lhe fundamentar, restando o puro rito que se expressaria no culto. Em outras palavras, um
culto extremo, no qual tudo só adquire significado mediante realização do culto. Nesse sentido,
a religião capitalista é imediatamente associada ao utilitarismo, mas não é simplesmente um
culto utilitarista e, sim, uma forma de entender o utilitarismo a partir de sua forma religiosa,
estabelecendo essa ética utilitarista como uma espécie de fundamento último para normatizar o
culto capitalista.
A segunda característica é a duração permanente desse culto, isto é, a extensão e a
perpetuação do culto territorialmente e psicologicamente. Na definição dessa característica,
aparentemente, Benjamin está dialogando diretamente com os estudos de Weber (2004) sobre
a religião protestante, em especifico a questão da valorização do trabalho da ascese
intramundana protestante. A ideia da permanência do culto capitalista aparece como uma
denúncia das formas de dominação econômica real que também aparecem como estímulos
psicológicos individuais e em práticas efetivamente realizadas no ambiente fabril/empresarial
em todo o mundo. Benjamin fala em celebração, uma festa na qual o capitalismo se desenrola,
uma ironia em relação à proibição dos prazeres do gozo que a ascese intramundana, cultivada
pelos protestantes, ditava. A recusa do gozo em nome do trabalho e da acumulação, que tinha
como plano de fundo a crença na predestinação pela graça (riqueza), a ideia de que todas as
suas ações devem necessariamente ser em nome de Deus, para assim realizar sua vontade.
Alcançar a riqueza é o sinônimo de alcançar a graça divina, que já estava gravado no destino
desse indivíduo. A terceira característica é o processo de culpabilização que o culto opera.
Benjamin está denunciando a falsa promessa de ‘resolução das preocupações’ que se havia
anunciado.
O capitalismo não cumpre essa promessa de salvação ou resolução e, ao invés disso,
implica a intensificação da culpa, entendida pela sua ambiguidade com a dívida. A religião
capitalista, portanto, não opera o culto em nome de uma redenção, ou melhoramento da
humanidade, mas de seu esfacelamento, a intensificação de sua condição de endividamento,
uma possível referência à relação de culpabilização que Weber expõe na Ética protestante e o
‘espírito do capitalismo’ (2004). Os protestantes experimentariam a culpa em sua ambiguidade
ao mesmo tempo que estão em dívida com Deus pelas suas riquezas. E, inversamente, da mesma
65

forma, os pobres estão em constante dívida com Deus, os quais buscam redimir o seu estado de
culpa pelo seu estado de pobreza. Nesse sentido, o capitalismo é um culto no qual não há saída
possível e que, consequentemente, todos os seres humanos que nascem nessas condições estão
sujeitos para toda vida, o que implica o quarto traço dessa estrutura diabólica do capitalismo.
A quarta característica da estrutura da religião capitalista é a mais enigmática, mas
podemos entendê-la a partir da sua contextualização dentro do fragmento. Assim sendo, temos
a menção muito breve à filosofia de Friedrich Nietzsche, na qual Benjamin afirma que o culto
capitalista dissolveu o Deus no destino humano, ou seja, esse Deus foi ocultado, inserido na
vida cotidiana do capitalismo moderno, faz parte das ações econômicas que são desenvolvidas
todos os dias nessa sociedade. A religião capitalista, portanto, se difere radicalmente das
religiões pré-capitalistas, principalmente a religião cristã no geral. Benjamin parece fazer uma
ironia ao afirmar que a religião capitalista é caracterizada pelo ocultamento, em oposição direta
ao dogma da revelação cristã. Contudo, conseguimos poucas informações sobre essa passagem
do fragmento, sua possível explicação deverá ser tema para trabalhos futuros, juntamente com
a análise das três críticas que Benjamin desenvolve sobre Karl Marx, Sigmund Freud e
Nietzsche, que podem colaborar com o entendimento da característica do ocultamento na
religião capitalista. Provavelmente, Benjamin coloca esses três autores como um paradigma do
conceito de crítica, já que fala que na religião capitalista “[...] toda representação dela e toda
ideia sobre ela viola o mistério de sua madureza” (BENJAMIN 2013a, P. 22). Portanto, a crítica
a essa religião esbarra nessa condição de imaturidade da sociedade capitalista, o que precisa ser
explicado melhor.
66

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bossi e Ivone Castilho


Benedetti. 5ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
AGAMBEN, Giorgio. Benjamin e o capitalismo. 2013a.Trad. Selvino José Assmann. Blog
da Boitempo. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2013/08/05/benjamin-e-o-
capitalismo. Acesso em: 01.fev.2022.
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo
Editorial, 2007.
AGAMBEN, Giorgio. Quando a religião do dinheiro devora o futuro. 2013b Trad.Moisés
Sbardelotto. Blog da Boitempo. Disponível em:
https://blogdaboitempo.com.br/2013/02/21/quando-a-religiao-do-dinheiro-devora-o-futuro.
Acesso em: 01.fev.2022.
BENJAMIN, Walter. O Anjo da História. Trad.João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2013b.
BENJAMIN, Walter. Geld und Wetter (zur Lesandendio-Kritik). Trad. Roberto Carlos
Conceição. In: Cadernos Walter Benjamin, Fortaleza, n. 25, p.218-219, 2020. Disponível
em: https://www.gewebe.com.br/cadernos_vol25.htm. Acesso em: 01.fev.2022.
BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften IV. Org. Tollman Rexroth, Frankfurt,
Suhrkamp, 1972,
BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften VI. Org. Rolf Tiedemann e Hermann
Schweppenhäuser, Frankfurt, Suhrkamp, 1985.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história
da cultura. Obras escolhidas vol. 1.Trad. Sergio Paulo Rouanet. 3ed. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1987.
BENJAMIN, Walter. O Anjo da História. Trad.João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2013b.
BENJAMIN, Walter. O capitalismo como religião. Org. Michael Löwy. Trad. Nélio
Schneider e Renato Ribeiro Pompeu. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013a.
BENJAMIN, Walter. Rua de Mão única. Obras escolhidas vol. 2. Trad. Rubens Rodrigues
Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. 3ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Mito, Direito e Justiça em Walter Benjamin. Revista Direito e
Práxis. Rio de Janeiro, v.11, n.3, p.1934-1945. 2020.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Teologia e Messianismo no Pensamento de Walter Benjamin.
Estudos Avançados. São Paulo, v.13, n.3.1999.
KEHL, Maria Rita; LÖWY, Michael. Maria Rita Kehl e Michael Löwy – Walter
Benjamin, intérprete do capitalismo como religião. Youtube, 2013. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=4st9V8wnayY. Acesso em: 02.fev.2022.
KURZ, Robert. O sacrifício e o regresso perverso do arcaico. 2012. Disponível em:
http://www.obeco-online.org/rkurz408.htm. Acesso em: 21.fev.2020.
67

LÖWY, Michael. A Jaula de Aço: Max Weber e o marxismo weberiano. Trad. Mariana
Echalar. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.
LÖWY, Michael. Revolução é o Freio de Emergência: Ensaio sobre Walter Benjamin. Trad.
Paolo Colosso. São Paulo: Autonomia Literária, 2019.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Trad. Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
VILLEGAS, Francisco Gil. Max Weber y la guerra académica de los cien años: História
de las ciências sociales em el siglo XX. La Polémica em torno a La ética protestante y el
spíritu del capitalismo (1905 – 2012). Mexico: Fondo de Cultura Económica, 2015.
WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Trad. José Marcos
Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
WITTE, Bernd. Walter Benjamin: uma biografia. Trad. Romero Freitas. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2017.

Você também pode gostar