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RELIGIAO E POLITICA
NOVOS DESAFIOS À SOCIOLOGIA

E stas reflexões buscam


recuperar aspectos
centrais de pesquisa
desenvolvida ao longo de
cinco anos, no Brasil e em
JÚlIA MIRANDA *
natureza secular. Logo, não
será no nível da descrição do
objetivo a alcançar que po-
deremos identificar a peculi-
aridade desse projeto. Há que
Québec (Canadá), sobre o RESUMO buscá-Ia na natureza religio-
fenômeno a que chamo de Já desafiada pela chamada crise da sa do discurso; no fato de ele
"deslocamento do religio- racional idade OCidental e do conhecimento obedecer episteme e lógica
so". J Os limites impostos à que dela resulta, com implicações sobre os distintas das formulações po-
essa comunicação me levam paradigmas tradicionais de apreensão da líticas de corte secular; nas ra-
a assumir o risco da síntese, realidade, a sociologia se vê diante de uma zões internas à uma tradição
tentando, não obstante, ga- modernidade que, não apenas não fez de- religiosa impossibilitada de
rantir o essencial do reques- saparecer a religião, mas criou novas for- renunciar à forma eclesial, e
tionamento ali proposto. mas de religiosidade, bem como novas arti-
marcada pela "vocação para
culações, entre importâncias de pensamen-
O interesse central é a a totalidade".
to e ação. É o caso da combinação entre o
combinação contemporânea Coloca-se a questão da efi-
religioso e o político, centro desta reflexão.
entre o religioso e o políti- cácia, ou da força histórica
co; as múltiplas formas de *Doutora em Sociologia e professora do Curso de transformadora das idéias re-
promover essa ligação, com Comunicaçõo Social e do Programo de Pós-Graduo- ligiosas, no interior da qual se
vistas a fazer uma adequa- côo em Sociologia do UFC. situa o problema do ajusta-
ção entre reve-Iação e crise mento entre o discurso mo-
social, tão recorrentes nas sociedades do chamado bilizador dos movimentos político-religiosos e suas
Terceiro Mundo, neste último quarto de século. O chances reais de ação. Faz-se necessário descer à
cristianismo de libertação latíno-amerícano,ê enten- doutrina, onde se originam as crenças e práticas
dido como um movimento político-religíoso! com que determinam as motivações para a ação.
características próprias, e o discurso a que dá ori- O surgimento da sociedade dita moderna, com
gem e que o justifica e orienta - a teologia da liber- suas particularidades econômicas, sociais, culturais
tação - servem de referência principal para as ques- e políticas, é o contexto condicionador das profun-
tões repostas. das transformações do universo doutrinário cristão,
O objetivo é explorar a particularidade represen- sobretudo no que tange à fase marcada, no interior
tada por um discurso teológico de explícitas pre- do catolicismo, pelo movimento antimodernista. Daí
tensões políticas, que busca justificar a ação minha hipótese de que essa tensão e diálogo per-
revolucionária identificada como cristã, além de lhe manentemente renovados entre cristianismo e mun-
servir de orientação, apoiando-se, ademais, num mo- do moderno é responsável pelas reformulações dou-
vimento que reativa ou cria tecidos comunitários. trinárias que pretendem oferecer respostas e/ou
Essa teologia, além de procurar justificar a ação adequações do primeiro ao segundo, nas suas com-
política, do ponto de vista religioso, é portadora de plexas expressões contemporâneas.
um projeto: transformar radicalmente a sociedade, Situado nesse contexto mais amplo exigido pe-
para instaurá-Ia em novas bases, mais igualitárias, los fenômenos referidos à tradição cristã, e surgido
justas e solidárias. Nessa sociedade "outra", viverá num período marcado pelo florescimento de ou-
o "novo" homem. tros movimentos político-religiosos, bem como
Mas um projeto assim expresso se identifica com pelas formas "emocionais" de religiosidade contem-
o geral das utopias desenvolvidas pelo homem oci- porânea, é que o cristianismo de libertação e a res-
dental, tanto as de corte religioso como aquelas de pectiva teologia são capazes de mostrar as particu-

MRANDA, [úlic. Religião e política, novos desafias à sociologia. pp. 13 023 13


laridades sociologicamente importantes. tes católicas que a ignoram, explícita ou implici-
A pesquisa que serve de suporte a estas refle- tamente.
xões não busca oferecer respostas definitivas para Presa sobretudo a algumas afirmações, mais ge-
a questão da existência ou não, no seio das socie- rais e coincidentes entre si, de certos textos clássi-
dades ocidentais modernas de vários tipos, de uma cos de Marx, Durkheim e Weber, a sociologia iden-
relação entre crenças religiosas e condutas coleti- tificou de forma imediata o fim da religião - e nes-
vas, de modo a fazer de idéias religiosas eficazes se caso particularmente do cristianismo - com o
forças históricas de transformação. Até porque, neste processo de modernização que, ao desclassificar a
caso, não contempla a forma pela qual essa re-lei- religião como objeto relevante, passou ao largo de
tura do Evangelho é apropriada pelas classes po- observações que seria interessante fazer a respeito
pulares. do que dizem os clássicos sobre o futuro da religião.
A preocupação básica é a de levantar questões Para a maior parte das teorias sociológicas da se-
que parecem relevantes, quando ao sociólogo é dado cularização, de acordo com as quais a religião desa-
analisar essa conjugação do religioso com o político parecerá gradualmente ante o avanço das formas
(sua natureza específica), de forma sistemática e racionais de existência, Max Weber é a fonte de
teórica, como qualquer outro fenõmeno sociocultural referência. Mas parece que, mesmo diante das exi-
e político, e de forma, portanto, a abstrair a nature- gências postas pelo refinamento do pensamento
za apaixonada e apaixonante de certas abordagens e pelo estilo do autor, houve simplificações
que eles suscitaram. mutiladoras.
O pressuposto fundamental é que esses movi- Para não me deter exaustivamente sobre aspec-
mentos político-religiosos se inserem no contexto tos conhecidos da obra de Weber, importa, no
mais geral de recomposição contemporânea do momento, reter um fato essencial destacado pelos
campo religioso, o que recoloca a problemática da sociólogos da religião, sejam os anglo-saxões, às
crise da modernidade no centro das reflexões, ao voltas com o estudo dos novos movimentos religi-
mesmo tempo em que os aproxima dos desloca- osos; sejam os latinos, interessados nesses e nos
mentos também verificados em relação ao social e fenômenos concernentes ao campo das religiões
ao político. Parto ainda da suposição de que, para tradicionais. Weber, ao dissociar as análises das trans-
entender a relação entre modernidade e religião, formações do campo religioso de toda profecia
para dar conta dos fenômenos religiosos atuais, não relativa ao "sentido da história", criou, teoricamen-
se pode excluir a apropriação, pela sociologia, da te, a possibilidade de isolar o estudo empírico da
noção de "secularização". perda de prestígio e espaço social das religiões tra-
dicionais, do prognóstico positivista da morte dos
Novos DESAFIOS deuses na sociedade moderna.
Parece fora de dúvidas que, na atual conjuntura A grande questão é, portanto, como, num campo
de favorecimento do religioso como objeto de científico constituído na e pela afirmação da incom-
questionamento teórico, a sociologia se encontra patibilidade entre religião e modernidade, encon-
diante de um novo desafio: trazer para o centro das trar os meios para analisar a importância do fato
reflexões, para reconstruí-Ias como conceitos, religioso fora do mundo cristão ocidental, assim
noções como "religião" e "secularização", até aqui como as transformações e deslocamentos do religi-
mais comumente integradas ao universo da teolo- oso, atestados pelos fenômenos atuais em socieda-
gia. E se essas noções somente se esclarecem na des dos mais diversos tipos.
relação mútua, é remontando a história do Ociden- A definição e os limites do objeto apenas iniciam
te e analisando o processo a que se convencionou os desafios postos à sociologia, que enfrenta ainda
chamar modernidade, que a sociologia contempo- o reducionismo responsável pela ênfase exclusiva
rânea irá identificar as fontes de ambigüidade e atribuída às análises do declínio das práticas como
polissemia de que esses termos e seus correlatos sinônimo de desaparecimento da religião, dessa
têm sido objeto. forma reduzida à sua dimensão social e ao campo
Primeiramente, a secularização, identificada ora religioso tradicional.
como fim do cristianismo, ora como fim do sa- A verdade é que o foco dos interesses atuais se
grado (no sentido religioso) no mundo moder- desloca, no que concerne à religião, da dimensão
no, não integra uma temática suficientemente eclesial, tradicionalmente representada pelo cristi-
sociologizada, tendo permanecido no âmbito te- anismo, para as tentativas de compreensão da atu-
ológico, onde forneceu argumento tanto à alidade religiosa, em termos de deslocamento, de
moderna teologia protestante quanto às corren- capacidade de as sociedades modernas criarem

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novas formas de religiosidade, de uma definição al, no interior do campo de forças sociais e
que rompe o campo que cada religião se atribui, políticas, por exemplo, se constitui num imenso
e não se contenta apenas com a denominação desafio.
dessas novas formas como "religião analógica". Yves Goussault (1990) fala da dificuldade de
Fugir à definição da religião apenas pelo social, tentar perceber o fato religioso por meio da análise
e a uma concepção de objetividade que invalida dos objetivos que ele propõe às sociedades e das
a sociologia compreensiva - o que parece ter transformações que ele aí opera. A dificuldade teó-
sido a regra na sociologia francesa pós- rica estaria na apreensão do objeto, que se faz de
durkheimiana -, para percebê-Ia como uma forma indireta, sendo ele captado por seus efeitos
experiência que implica, além da função cognitiva - sociais, políticos, ideológicos - sem que se possa
- como em Marx e Engels -, um sentido cuja sempre identificar o que concerne à dinâmica de
origem é também subjetiva assim como sua ma- cada um desses campos e aquilo que é, propria-
nifestação, traz o perigo de cair na pura mente, da ordem do religioso. Parece-me que re-
fenomenologia - como em Rudolf Otto, Mircea conhecer aquilo que é propriamente da ordem do
Eliade e G. Van der Leeuw - e na irredutibilidade religioso exige que se conheça o universo doutri-
do religioso como justificativa para colocá-Io fora nário da confissão em causa, sobretudo neste caso,
do alcance da ciência. da tradição cristã.
Mas limitar a definição ao campo que cada reli- É consenso, entre os teólogos engajados na aná-
gião se atribui - como sugere Émile Poulat, muito lise das sociedades modernas, a existência de uma
próximo de Henri Desroche - implica o problema "crise de sentido" que seria resultado do "ateísmo"
epistemológico de aceitar que o próprio objeto crescente, ou da "secularização" cada vez mais acen-
delimite o campo de investigação científica. Logo, tuada. Conforme essas considerações, a religião,
no meu entender, ela é uma orientação que deve responsável pela atribuição de sentido à ação hu-
ser vista com reservas, apenas como ponto de par- mana, ao ser banida do universo do homem mo-
tida. Caso contrário, tanto estaria comprometida a derno, provocou a situação atual. Primeiramente, o
criatividade do pesquisador e reduzidas as possibi- pluralismo religioso, que vem substituir o bloco
lidades de descoberta do novo, como colocado em monolítico da cristandade medieval, deixa atordoa-
questão o procedimento mesmo de construção do dos os católicos. Depois, crentes das diversas con-
objeto como etapa inicial do trabalho científico. fissões ocidentais, para os quais a referência última
Essa questão, como se vê, nada perdeu de sua vem de uma fonte revelada, de um Deus transcen-
complexidade. Também não existem respostas de- dente, se chocam com a função substitutiva que
finitivas. Poder-se-ia, no entanto, afirmar que, para exercem as chamadas ideologias seculares globais.
o sociólogo, três procedimentos contrariam direta- Finalmente, o ocaso destas últimas faz renascer,
mente a análise científica do objeto religioso, por agora, de forma raras vezes admitida, a convicção
um viés que se pretende específico. São eles: sempre presente de que a religião, ao se referir às
• separar a religião da cultura para a qual ela realidades últimas da existência humana, é o que
funciona como tal; lhe confere um sentido.
• buscar definir uma "essência" da religião; Mas o que diz a ciência? A sociologia em particu-
• não levar em conta as formas de organização lar? A questão filosófica levantada por Paul Ricoeur,
social nas quais se apóia uma forma de religiosida- ao lembrar que não é suficiente apenas saber quem
de e a que ela dá origem. faz avançar a história, mas também quem lhe con-
Para o sociólogo, em geral, não apenas é com- fere um sentido, faz eco entre os pesquisadores
plexo o acesso ao religioso mas, sobretudo, a defi- sociais.
nição do método para analisâ-lo. Sua natureza
polimorfa, que exige a intervenção de várias disci- A PROPÓSITO DE SECUlARIZAÇÃO
plinas das ciências sociais, responde pela extrema Significativamente, a modernidade, à qual se atri-
dificuldade de encontrar categorias adequadas ao buiu uma redução sem restos do religioso ao cientí-
seu estudo, de forma que evite as explicações sub- fico, entendido aquele apenas como uma matriz
jetivas. ideológica - ou, em outros casos, primitiva - de
Tal é o caso, quando o objeto está representado apreensão da realidade social, ao exigir um refina-
por um religioso do qual se pretende dar conta na mento das análises sobre suas múltiplas formas de
sua combinação com outras realidades autônomas, implantação, de seus resultados práticos para as
como no caso do político. A incidência da renova- sociedades implicadas, finalmente, sobre a raciona-
ção religiosa, ou do deslocamento do religioso atu- lidade do conhecimento que a tem justificado, é o

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que torna atual a discussão da religião. corresponde no plano da ação. Concebendo-se o
Que a modernidade tenha sido utilizada como movimento de racionalização ao mesmo tempo em
categoria de análise ou como conceito, nos marcos sua dimensão histórica (processo cujas etapas
de um paradigma funcionalista (e com objetivos sucessivas podem ser seguidas) e em sua dimensão
ideológicos, se nos lembramos das teorias da mo- utópica (horizonte e projeção imaginária desse
dernização tal como foram levadas aos países ter- processo), o mito da modernidade se incorpora,
ceiro-mundistas), não é razão suficiente para que então, ao processo da modernidade, não como
seja simplesmente abandonada como realidade his- produção ideológica puramente reflexa, mas como
tórica de cujas implicações não escapam socieda- princípio ativo, como etbos da modernidade.
des como a brasileira. Impossível pensar as trans- Tem-se, então, que o processo histórico da
formações ocorridas no seio desta sociedade, sem modemidade dissolve a religião, enquanto a utopia
fazer alusão à complexa relação entre modernidade da modernidade - motor desse processo -
e tradição, sem relacionar a ela os estudos sobre a reconstitui, permanentemente, as condições de um
religião e, menos ainda, sobre suas formas cristãs. pensamento que interpreta a distância entre a rea-
Em um ponto parecem concordar todos os estu- lidade vivida e o horizonte utópico, como expres-
dos sobre a atualidade religiosa, quer se trate das são e resultado da tensão entre dois mundos anta-
análises sobre as recomposições do campo especí- gônicos: o das determinações cotidianas e o das
fico, que privilegiam as mutações ocorridas no seio significações.
do cristianismo (sobretudo do catolicismo) e o Mais importante do que os conteúdos desse âm-
surgimento dos chamados "novos movimentos reli- bito de significações é a tensão específica que o
giosos", quer se trate dos estudos que dão ênfase constitui, à distância do cotidiano, como horizonte
aos movimentos político-religiosos de tipo fun- que justifica e orienta os esforços nele realizados,
damentalista. Essa concordância reside no reconhe- muito além das simples exigências de sobrevivên-
cimento de que todas essas manifestações religio- cia. Igualmente importante seria a configuração das
sas se identificam por seu caráter antiocidentalista, expectativas socialmente diferenciadas criadas por
ou seja, pela denúncia do fracasso das ilusões de essa tensão, e o tipo de dispositivo institucional
uma modernidade fruto do racionalismo ocidental complexo responsável pelo controle e gerencia-
agora reposto em questão. mento dessas expectativas.
Os movimentos políticos fundamentalistas dos A modernidade abole, pois, a religião como siste-
quais nos fala Gilles Kepel (991) buscam ultrapas- ma de significações e motor dos esforços humanos,
sar uma modernidade falida, porque se afastou da mas cria, ao mesmo tempo, o espaço-tempo de uma
palavra sagrada. Mesmo no caso dos movimentos utopia que, estruturalmente, guarda afinidade com
político-religiosos em que, diferentemente daque- uma problemática religiosa de finalidade e salvação.
les, a doutrina e os pensadores religiosos sofrem a Entendido como "representações religiosas" (no
ação em retorno da prática política, é uma sentido lato), o conjunto das construções ideais que
modernidade estranha e imposta sem o respeito às resolvem simbolicamente a contradição irredutível
particularidades sociopolíticas, culturais e econõmi- entre as determinações concretas e os valores e fins,
cas locais que está no centro das denúncias e seu espaço próprio de manifestação permanente
resistências de que eles são representantes. É uma seria exatamente essa margem utópica
racionalidade "outra", destruidora de identidades, constantemente recriada.
que o recurso ao religioso busca colocar em evi- Como zona mais consistente, estruturada e elabo-
dência. São os limites de um progresso que tem rada desse campo de representações religiosas, as
como resultante a aceleração das desigualdades "tradições religiosas historicamente constituídas" (os
sociais, a dependência externa e a marginalização sistemas religiosos) seriam a área mais sensível dessa
de grande parte da população das decisões con- decomposição-recomposição do campo religioso
cernentes à todos, que esses movimentos, soman- que tem caracterizado a modernidade. Alvos privi-
do-se a outras organizações no seio da sociedade legiados da crítica racional, elas são também um
civil - como no caso brasileiro - buscam pôr a nu. reservatório inesgotável de significações utópicas
Na tentativa de responder à questão de como um constantemente reformuladas, deslocadas do lugar
movimento que exclui a religião pode produzir re- de origem e reativadas.
ligião, Daníêle Hervieu-Léger (986) propõe o en- Essa reativação pode assumir um caráter mais se-
riquecimento do tipo ideal de modernidade, para cular, com as expectativas adotando uma lingua-
além da simples progressão da racionalidade tecno- gem de gestão dos meios humanos disponíveis (lin-
científica e da operacionalidade que lhe guagem própria à modernidade), mas também pode

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se fazer sob uma forma expressamente religiosa, doutrinária correta, aquela que remete à pureza
referida diretamente às tradições historicamente original. Os limites desse processo aqui chamado
constituídas. Naturalmente, esses dois tipos ideais de "secularização interna" estão colocados pela
não excluem as variações e aproximações entre própria necessidade de manter a integridade do
eles, conforme as situações históricas particulares. campo.
Uma tal forma de entender a modernidade e de A teologia católica do pós-guerra passou por um
relacioná-Ia com a religião, leva à concepção da amplo movimento de renovação que se evidenciou
secularização não como o simples desaparecimen- sobretudo no Concílio Vaticano lI. Essa renovação
to desta, confrontada à racionalidade, mas como o também pode ser entendida por adaptação ao mun-
processo de reorganização permanente do trabalho do. Visto que comentar todos os aspectos desse
da religião, numa sociedade estruturalmente processo extrapolaria os limites dessa comunicação,
impotente para satisfazer as expectativas que ela é retenhamos alguns deles.
obrigada a suscitar para continuar existindo. As reflexões no seio do cristianismo, só a partir
No âmbito das realidades socioculturais plurais, isso de meados deste século, com as transformações
implica a compreensão da secularização como introduzi das pela teologia protestante, incorpora-
seguindo matrizes heterogêneas e a modernidade ram a secularização como objeto de análise. Cum-
como processo ao qual se conferiu, indevidamente, pre salientar que, nas hostes do catolicismo, o ter-
uma uniformidade de constituição e manifestação. mo, além de ter um sentido mais restrito, ainda
Visto que trato aqui do cristianismo de libertação parece representar, de certa forma, um "tabu". Ati-
e da teologia a que dá origem, é uma dessa formas tude talvez devida às ambigüidades que o envol-
expressamente religiosas que buscamos entender. vem. Beneficiado pelo consenso no que tange à
É exatamente o mergulho no universo doutrinário descrição do fenômeno em causa, ele cria proble-
que, nesse caso (e sem exclusão de outros elemen- mas no momento de sua interpretação, conforme
tos), irá possibilitar o acompanhamento desse pro- lembrado pelo teólogo católico Claude Geffré
cesso de reorganização. (976). Para ele, a referida cautela se justifica pelo
Questionando, embora não o faça de maneira fato de que, abordagem científica e interesse ideo-
explícita, a laicidade do político, buscando estabe- lógico se confundem inexoravelmente, quando se
lecer entre a mensagem religiosa e a crise da soci- trata da secularização.
edade uma adequação que se pretende diretamente Empregado originalmente na França, no contex-
operatória naquele campo, o referido discurso in- to das guerras de religião, para significar a passa-
terpela fortemente. O que teria permitido que, do gem dos bens da Igreja Católica à propriedade ci-
seio do cristianismo católico, sem promover ou vil, como sinônimo de laicização, o termo seculari-
mesmo ameaçar cismas, pudesse surgir uma pro- zação passa ao Direito Canônico, para significar a
posta desse tipo? As condições em que se desen- volta ao estado laico de um religioso ou padre.
volveram novas práticas pastorais, em situações de Existe uma neutralidade inicial na utilização do termo,
injustiça social e opressão, pode ser uma resposta. desde seu aparecimento, em 1803, abrindo-se, pos-
Mas ela não seria suficiente para dar conta da ne- teriormente, o campo de significações a uma gran-
cessária inserção das alternativas simbólicas num de variedade. No seio mesmo do catolicismo, ele
mesmo espaço eclesial de cujos limites e unidade perde seu caráter descritivo inicial, para assumir
institucional Roma está cada vez menos disposta a juízos de valor. A palavra secularização foi utiliza-
abrir mão. da, como sinônimo de laicização, pelos anticlericais
Ao buscar comprometer-se com a realidade soci- (progressistas), como libertação do homem moder-
al latino-americana, partindo dos movimentos de no diante da tutela religiosa, e pelos tradicionalis-
libertação e, ao recorrer às ciências sociais para tas, como descristianização, paganização, etc.
analisar os elementos explicativos dessa exigência Dentro do contexto das análises sociológicas,
de libertação, o referido discurso se situa num pro- expressões como o francês décbristianisation já
cesso interno ao cristianismo e ao seu universo não davam conta da força e multiplicidade dos fe-
doutrinário, representado por uma secularização nômenos empíricos observados, determinando a
interna. Essas modificações devem ser vistas como adoção do termo secularização. Ele é introduzido
resultado de lutas anteriores, agora incorporado a na França principalmente por meio dos estudos
novo movimento no interior do campo. Sem colo- anglo-saxões, onde representa uma concepção mais
car em questão a legitimidade da religião (cristia- englobante, significando a autonomização do secu-
nismo), grupos periféricos se engajam na disputa lar ou profano, mas também as mutações interiores
pelo reconhecimento da sua como a formulação ao campo religioso. A expressão dá conta, assim,

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de diferentes processos de recuo do religioso, e E a teologia da libertação, como concebe a se-
de fenômenos concernentes às várias religiôes. cularização? É possível utilizar essa concepção par-
No período que se segue à Segunda Guerra Mun- ticular e sua relação com aquela que identifica o
dial, as concepçôes sociológica e teológica se di- papado de João Paulo 11 para estabelecer as im-
versificam, com o termo designando ao mesmo plicações políticas, limites e pressupostos não
tempo uma constatação, uma interpretação e um explicitados desse discurso e das práticas de onde
projeto. surge e que orienta'
Embora não se possa dizer que a reflexão teoló- Perguntar sobre a natureza transcendental ou não
gica católica sobre a secularização seja calcada no de um referencial religioso - difícil de ser isolado -
pensamento protestante que a precede de algumas e que serve de sentido para as condutas, assim
décadas e que se desenvolve, de certa forma, ten- como sobre seu caráter integrista, é o que traz de
do como horizonte sociocultural sociedades onde a volta a necessidade de pensar a secularização. Nos
modernidade se constituiu diferentemente dos movimentos em causa, a referência religiosa ou é
países industrializados de forte tradição católica, excludente de qualquer outra, ou se conjuga a ide-
existe, no entanto, um diálogo implícito entre as ologias sociopolíticas laicas, como é o caso do cris-
duas correntes. Os alemães Karl Rahner e johann tianismo de libertação. Ele conjuga uma linguagem
Baptist Metz são os primeiros grandes teólogos doutrinária-espiritual e outra política. Sua combina-
católicos deste século a afirmar que a secularização ção passa pela dimensão simbólica, instância na qual
constitui um fenômeno sociocultural e político ela se efetiva e se transforma em justificação para
positivo, e que é mesmo autenticamente cristão. a prática.
Essa nova hermenêutica do cristianismo é com-
plexa e polêmica. Da origem às teologias protes- NEM MODERNIDADE NEM TRADIÇÃO
tantes liberais e da morte de Deus, tanto quanto às Muito já se disse, nessas últimas três décadas, sobre
teologias católicas política e da esperança, com o contexto em que surge o cristianismo de libertação
impasses vários criados entre teólogos católicos e latino-americano, pelo que me sinto dispensada de
a Cúria Romana. fazê-lo. Gostaria, no entanto, de ressaltar o lugar
Muito embora tenha sido um acontecimento tipi- central em que é comumente colocado o Brasil, por
camente europeu, cujos resultados mais objetivos quantos se têm dedicado à compreensão desse
foram as transformações no aparelho religioso, é processo de transformação nas relações entre
impossível ignorar as possibilidades criadas pelo cristianismo e sociedade na América Latina, para
Concílio Vaticano II para a emergência do novo. O alguns considerado como uma mudança na cultura
fato mesmo de que os textos finais se afastam bas- católica do Continente. Não se desconhece aqui,
tante dos documentos preparatórios oficiais, já in- que esse movimento, latino-americano nos seus
dicava uma disposição de abertura construída du- primórdios, seguiu mais de uma vertente, se
rante o evento. A "adaptação ao mundo moderno", considerados os diferentes países, nas suas particu-
seguindo a ótica eurocêntrica, e, mais especialmen- laridades nacionais, na especificidade de suas lutas
te, primeiro-mundista ocidental, criou um espaço sociais e políticas, e na natureza das igrejas locais.
de contestação que permitiu a emergência, no Embora as possíveis mudanças no pensamento
período pós-conciliar, de críticas fundadas nas religioso escapem às preocupações do sociólogo,
exigências pastorais de sociedades que não se iden- quando elas se fazem no confronto permanente com
tificam com os países industrializados da Europa e o engajamento sociopolítico, interpelam fortemen-
América do Norte. Assim, no caso latino-america- te as ciências sociais. No presente caso, apóio-me
no, a Conferência Episcopal de 1968, em Medellin, na hipótese de que, uma vez que essas mudanças
é que representou o verdadeiro momento de re- não chegam a promover rupturas com a referência
flexão proporcionado pela abertura conciliar. última representada pela verdade revelada, a
A diversidade das igrejas locais e regionais, como despeito da "re-Ieitura" do Evangelho que se
se sabe, não tardou a ser alvo de limites impostos pretende fazer, é possível identificar, no discurso,
pelo Vaticano e, em 1985, o Sínodo Especial opõe pressupostos não explicitados que funcionam como
uma "Igreja-comunhão" à "Igreja-Povo de Deus", chaves para a compreensão dos limites e
substituindo o que considera uma conotação políti- implicações da ação por ele orientada.
ca, por outra mais mística. Além do mais, saúda o O cristianismo de libertação, volto a insistir, é aqui
"retorno do sagrado", positivamente, como resul- analisado por meio do discurso que lhe conferiu
tado da sede de transcendência e antídoto contra a unidade e sistematizou suas linhas de pensamento
secularização. e ação, sendo ele entendido a partir das suas condi-

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ções de produção e circulação. Discurso teológi- origens me parecem dever ser buscadas,
co sim, mas alimentado pelas ciências sociais e sobretudo, na chamada "corrente progressista",
apoiado na prática de setores cristãos, além de contraposta ao tradicionalismo de ]oseph de
explicitar suas pretensões políticas, propondo-se Maistre. A figura importante, no primeiro caso,
a ajudar na construção de uma sociedade radical- será Emmanuel Mounier e o antiindividualismo
mente outra, por intermédio da ação política seguirá a doutrina personalista que ele desenvol-
orientada religiosamente (embora esse aspecto ve, logo após a Primeira Guerra Mundial. Gutierrez
não seja assumido). contrapõe indivíduo e pessoa, sem levar em conta
O discurso possui um núcleo central, a partir o fato de o primeiro ter implicações políticas que
do qual se fizeram adequações variadas. Esse o segundo não tem. Ao contrário, as distinções,
núcleo é representado pelo pensamento do padre nesse aspecto, são silenciadas.
peruano Gustavo Gutierrez , sistematizador das Impossibilitada de renunciar à natureza eclesial
reflexões sobre as novas práticas pastorais e o da tradição a que se refere, a teologia da libertação
engajamento político de setores cristãos, sobretudo incorpora o pensamento comunitário, consciente da
no Brasil, a partir do final dos anos 50. De uma necessidade, para a religião, de bases sociais que
então chamada teologia da libertação, ele se atualizem a mensagem, por meio de crenças e
desmembrou em correntes plurais, mantendo, não práticas, referidas a um mesmo universo simbólico.
obstante, um denominador comum quanto às Mas o impasse representado pela combinação entre
idéias-força, que representam a especificidade essa dimensão e as exigências de uma sociedade
cristã na análise da realidade social concernente. plural, pela necessidade de viver a fé em comuni-
Interessada na particular concepção do religioso dade sem abstrair a "vocação para a totalidade",
e do político combinados no pensamento de parecem permanecer.
Gutíerrez," o objetivo é refletir sobre o tratamento A intenção dos articuladores do discurso teológi-
por ele dado, especialmente à questão do indivi- co-político de libertação é de conferir caráter pú-
dualismo e do comunitarismo, entendidos ambos blico à religião e de mostrar que embora autõno-
como aqueles que melhor podem conduzir à com- mos, o político e o religioso não são dissociáveis.
preensão da forma como é concebida a autonomia Como se relacionam nos diferentes níveis em que
entre instâncias de pensamento e ação. Ou, dito de é feita a re-simbolização cristã e com que implica-
outra forma, mostram qual o espaço que seu pen- ções, são questões a exigir respostas da teologia e
samento reserva à religião no seio da sociedade. das ciências sociais. Refletidas a partir do lugar do
Não restam dúvidas quanto ao fato de a teologia pesquisador social, elas me levam a fazer algumas
em causa mostrar a assimilação, pelo cristianismo considerações.
de libertação, das chamadas liberdades modernas, Gutierrez diz que é por meio da utopia que fé e
na sua configuração geral, como a separação entre ação política se relacionam no cristianismo de liber-
Estado e Igreja, e a democracia, além da aceitação tação. O político sendo entendido como um espa-
também, do conhecimento científico. Vale lembrar ço de expressão das liberdades, situa-lhe as preo-
que este serve à análise que será objeto de inter- cupações sobretudo no campo da ética. Embora seu
pretação posterior pela teologia. pensamento tenha sido reinterpretado e, por vezes,
Seria esse discurso então secularizante e moderno? transformado em referência exclusiva para a prática
A crítica ao individualismo e ao liberalismo, como política, cumpre lembrar que, mesmo ele, ao fazer
na mais intransigente das tradições antimodernistas a primeira sistematização da teologia da libertação,
católicas, a particular crítica ao capitalismo, a recu- se propõe, como projeto, a transformação radical
sa da privatização da fé e do progresso com base da sociedade, seguindo os propósitos dos
no desenvolvimentismo, além da veemente denún- segmentos cristãos engajados nos movimentos
cia da instrumentalização do político poderiam, por revolucionários.
sua vez, levar a julgamento oposto. Sua análise, na qual o dependentismo se combi-
Nada há de paradoxal, porém, nessas constata- na à lógica da inclusão/exclusão inerente ao pensa-
ções. Elas apenas reforçam a natureza particular da mento cristão, fornece, ademais, pela ênfase
relação que aqui se estabelece entre pensamento conferi da ao procedimento denunciativo de injusti-
e ação, e a impossibilidade de entender sua dimen- ças, apoio à idealização de uma Igreja caracterizada
são política fora dessa compreensão. pela função de crítica da sociedade.
O cristianismo e a teologia da libertação são anti- O autor concebe a ideologia, de forma exclusiva,
liberais, e nisso seguem a tradição católica, mas seu como mascaramento da realidade, e se recusa a
antiindividualismo merece consideração à parte. Suas admitir o caráter ideológico do cristianismo, do qual

MRANDA, [úlic. Religião e política, novos desafios à sociologia. pp. 130 23 19


somente a natureza utópica é enfatizada. Cria, as- de século depois, aquela que ele considerou a
sim, novos impasses. grande questão não parece ter obtido resposta. Seria
Ele não dá conta da complementaridade existen- possível, sem cair na elaboração de uma política
te entre ideologia e utopia nem, conseqüentemen- cristã, fugir à abstenção nessa área?
te, da necessária distinção a fazer entre ideologias Recoloca-se, assim, a questão da teologia políti-
religiosas e seculares. Suponho que isso se expli- ca, cujo desaparecimento é contestado por Carl
que pelo fato de a ação política, para ele, dever Schrnitt. 5 De grande plasticidade, essa noção ad-
distanciar-se de toda ideologia, em vez de precisar quire, após a Segunda Grande Guerra, uma cono-
incorporá-Ia, no caso de se pensarem as transfor- tação eminentemente teológica. Para ]ean-Louis
mações sociais, como indispensável à elaboração Schlegel? ela designa um movimento animado pela
do projeto, à criação das mediações, ao estabeleci- esquerda cristã, e representado pelos alemães]. B.
mento de objetivos e escolha dos meios. Afinal, o Metz e]. Moltmann, além dos teólogos da libertação.
nível da utopia é o da construção, simbólica, de Nessas correntes, é do combate à privatização da
alternativas, ao modo de telas pintadas, e onde não fé que se trata. Abrir o espaço público ao cristianis-
entram em causa as mediações. O que não é o caso mo, com base nas suas implicações políticas, e rei-
da ação política, muito embora ela compreenda vindicar para os cristãos e as Igrejas uma função
também o utópico. crítica da sociedade, em nome da "reserva
Permito-me concluir que o político, tal como en- escatológica" dessa tradição religiosa.
tendido na obra de Gutierrez, coloca limites preci- Carl Schrnitt, o polêmico teórico do "excepcio-
sos a toda tentativa de, a partir dele, se elaborar nal" na política e das decisões soberanas e pessoais
um projeto de transformação das bases da socieda- como única forma de enfrentâ-lo, vai ao encontro
de e, menos ainda, orientar práticas nesse sentido. da aludida corrente teológica no reconhecimento
A menos, naturalmente, que se assuma o caráter das implicações políticas do cristianismo. O que ele
genérico do projeto utópico e a imprecisão do po- busca mostrar é que o cristianismo, e mais especi-
lítico, situando as transformações no nível da ética. almente o catolicismo, é a matriz prática e teórica
Em que pese a necessidade de entender o dis- do Estado moderno. O autor multiplica as analogias
curso de libertação em foco como teológico e não entre noções teológicas e conceitos políticos,
político é, por outro lado, difícil ignorar-lhe as pre- afirmando que "todos os conceitos básicos da teoria
tensões políticas. O fato de se apresentar como uma moderna do Estado são conceitos teológicos
teologia política, e mais, como uma reformulação secularizados. Não apenas pelo seu desenvolvimen-
da proposta de Metz no sentido de torná-Ia concre- to histórico, mas pela sua estrutura, cujo conheci-
ta e adequada à realidade latino-americana, não mento é necessário para uma análise sociológica
apenas permite sua análise nesse nível, como colo- desses conceitos".
ca a questão do significado de uma teologia políti- Schmitt tem, no entanto, o cuidado de lembrar
ca, nos dias atuais. que a teologia política é um domínio extremamen-
O que tem a religião a dizer ao político no con- te polimorfo, além de possuir duas faces distintas:
texto das sociedades contemporâneas, sejam eco- uma teológica e outra política, cada uma seguindo
nomicamente desenvolvidas ou dependentes? Qual noções específicas.
o status dessa palavra, quem fala e de que lugar? A teologia da libertação vem recuperar, no interi-
Seria esse um projeto religioso ou político? Se é or do universo religioso, essa tradição de combina-
político, o que teria a religião a acrescentar, para ção entre teologia e política, ao seu modo. Mas não
que ele incorpore uma distinção, politicamente sig- explicita, se é que a leva em conta, a natureza di-
nificativa, em relação às orientações seculares? ferente de suas duas faces. Ao contrário, busca diluí-
Se é religioso, leva-nos a pensar numa contesta- Ia numa concepção do político que se reduz à sua
ção da laicidade do político. Exige que se faça alu- dimensão utópica e ao exercício da liberdade.
são ao difícil reconhecimento da autonomia moder- O contexto dos anos 70 ajudou a reforçar tais
na das instâncias de pensamento e ação que tem convicções, substituindo-se, na prática, os canais tra-
marcado a tradição católica. E aponta para o perigo dicionais para a ação política - sobretudo os par-
representado pelas mudanças orientadas pela tidos - e as ideologias seculares atéias, pela Igreja e
referência última à verdade revelada. a religião, esta última numa síntese entre a palavra
Gutierrez (ETL) chamara a atenção para as alter- revelada e empréstimos feitos às ciências sociais.
nativas prováveis a uma teologia política; criar uma Vale ressaltar que essa síntese buscava ofere-
nova doutrina política para a Igreja, ou apenas con- cer respostas às novas demandas, representadas
ferir um sentido último ao engajamento. Um quarto pelas exigências revolucionárias dos segmentos

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cristãos que, decepcionados com os limites da partir das lideranças religiosas, laicas ou não.
doutrina social da Igreja, começavam a ignorá-Ia, Para se tornar um fenõmeno público, para ter
priorizando a luta ao lado de ateus, orientados eficácia social do ponto de vista das transformações,
por ideologias seculares. Ou, como diz Gutierrez, a religião requer um universo simbólico comum,
deixavam que o projeto da revolução substituísse capaz de garantir, por meio de crenças e práticas,
o projeto do Reino. motivações que se traduzam em disposições para
Não é difícil imaginar que, tanto na cidade como agir, assegurando a consecução dos objetivos. Seria
no campo, a mobilização e as ações coletivas com isso possível num contexto de pluralismo, entre
objetivos transformadores tornavam necessária a outros elementos, quanto ao nível de informação,
justificativa religiosa para a participação dos seto- às ideologias professadas ou à pertença de classe?
res identificados como cristãos, com ou sem os quais No seio das sociedades plurais contemporâneas,
elas prosseguiriam. Gutierrez deixa isso claro, ao onde os símbolos religiosos obedecem a empregos
lembrar que a preocupação em dialogar e de se cada vez mais arbitrários, e no interior das quais a
engajar ao lado dos não-cristãos poderia fazer per- religião já perdeu o caráter prescritivo, mesmo no
der de vista a originalidade da mensagem cristã plano da ética o estabelecimento desse horizonte
(ETL). Sem que se conseguisse fazer a adequação simbólico comum já não parece fácil.
entre o projeto do Reino e a revolução, a fé seria jean-Paul Willaime (981) lembra que toda soci-
recolhida ao âmbito do privado, coisa contra a qual edade se refere, de uma forma ou de outra, a uma
era preciso lutar. dimensão extra-social, para significar que seu fun-
Ao substituir a separação entre fé e religião - com damento último está situado fora dela mesma. Nas
a qual não concorda - pela necessidade de separar sociedades ocidentais, o cristianismo representaria
Igreja e religião, Gutierrez apenas deixa clara sua essa referência extra-social. Ele em nada mais in-
discordância em relação a uma Igreja concebida flui, quanto à institucionalização das referidas soci-
como instituição hierárquica, autoritária e descola- edades, mas é o responsável pela criação de um
da das bases. Mas destaca a necessidade da submis- espaço simbólico que confere aos atores o senti-
são do temporal a Deus, da não autonomia do mento de agirem no interior de uma estrutura fun-
político diante dele. damental de sentido, que delimita um mesmo mun-
do. A essa característica do cristianismo o autor chama
ALGUMAS IMPLICAÇÕES de "função infrapolitica ", aquilo que outros
A complexidade dessa combinação entre religio- entendem por dimensão cultural do cristianismo.
so e político, a incipiência dos estudos que preten- No caso do cristianismo de libertação e da teo-
dem explicá-Ia e, sobretudo, os limites propostos logia a que dá origem, o impasse esteve repre-
para esta análise, em vez de conclusões, sugerem sentado, de forma significativa, pela não
a via mais modesta da identificação de algumas im- observância do fato de que esse "denominador
plicações, válidas para o caso do cristianismo e da comum" exige cada vez mais nuances ao pensa-
teologia da libertação. mento que o toma como referência. Nem a sepa-
Nelas, a impossibilidade de se imaginar uma rea- ração entre "o Terceiro Mundo religioso" e "o Norte
lidade histórica cuja existência não implique já uma ateu", como faz Gutierrez, dissolve as distinções
mediação simbólica não é considerada. Afirmar, internas no que tange às formas de religiosidade
como faz Gutierrez, que todo homem é cristão de referidas à mesma tradição cristã, isto é, aquilo que
alguma forma, leva a considerar, implicitamente, o a religião representa para as diferentes classes so-
cristianismo como o modo, por excelência, de apre- ciais (ou indivíduos). Mesmo entre os integrantes
ensão da realidade (comum e homogêneo), utili- da categoria de "pobre" é possível imaginar dife-
zando-o como justificação para a ação, embora sua renças no papel atribuído à religião.
caracterização como ideologia (mesmo na sua fun- Logo, a questão não é apenas de conferir caráter
ção íntegradora, sistema simbólico entre outros) seja verdadeiramente universal ao cristianismo, por
explicitamente recusada. meio do reconhecimento da natureza particular dos
A identificação entre Igreja e povo passa das for- problemas socioeconõmicos vividos pelas
mulações doutrinárias para o plano da prática, im- sociedades do Terceiro Mundo e do oferecimento
plicando supressão de mediações. Aí, conseqüen- de respostas teológico-políticas às exigências que
temente, se a Igreja é o povo, pode-se pensar, no eles colocam para a fé, em vez de pautá-Ias em
caso das ações populares, por exemplo, em ma- realidades estranhas.
nipulação por parte de partidos ou do Estado, A realidade religiosa vivida pelo cristianismo exi-
mas tal não será o caso, quando a orientação ge o exame de sua dimensão simbólica, que esteve

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dissociada da análise socioeconômica, seguindo que se caracteriza, no Brasil, pela atuação "por
esta um paradigma estruturalista, enquanto baixo", isto é, mantém, por intermédio de setores
aquela requeria a consideração de elementos religiosos e laicos (e não prioritariamente na qua-
como produção e reprodução de sentido, lidade de membros de CEBs), presença marcante
intencionalidade e motivaçôes. nos movimentos sociais. Mas as CEBs desaparecem
Gutierrez hoje, embora não o confesse, gradativamente do cenário, inclusive do ponto de
parece se dar conta do írnpasse a que levou a vista numérico. Essa Igreja popular, cada vez mais
combinação entre religião e política na forma se- identificada como católica, define como cristãs
guida pela teologia da libertação. Afirmando que propostas em que o religioso é basicamente re-
política é a luta por justiça e que cabe aos que presentado pela insistência na busca de
falam como cristãos apenas posicionarem-se quan- solidariedade, de igualdade e justiça sociais.
to a princípios gerais, ele diz que o político possui Entretanto, vale observar que o espaço físico pro-
instãncias técnicas próprias que não lhe interes- porcionado pela Igreja Católica, a autonomia de que
sam. Mas reconhece que há no cristianismo um goza perante o Estado e a facilidade representada
fundo totalitário que faz misturar planos. por sua rede de órgãos e agentes internacionais,
As mudanças, ele as situa no plano das cons- têm sido de grande utilidade para os movimentos
ciências, e a solidariedade é o que as promove. populares que, sempre que possível, a eles
Ele admite que podem surgir novas vias políticas recorrem.
e que a solidariedade não está ligada, necessari- Em que pese essa colaboração efetiva, alguns si-
amente, ao socialismo. O individualismo - diz nais dão conta da atenção que emprestam setores
ele - é que não é solidário. A opção preferenci- desses movimentos, ao risco de subrnetê-los à dire-
al pelos pobres é o mais importante para ele, ção de agentes religiosos ou laicos autorizados pela
que se diz mesmo indiferente à possibilidade de Igreja, bem como às imposições de um pensamento
desaparecimento da teologia da libertação. Ele referido à verdade revelada.' É como se, tacitamen-
se confessa mais interessado nos aspectos éticos te, todos aceitassem a função infrapolítica aqui de-
das transformaçôes sociais. sempenhada pelo cristianismo, prontos, no entanto,
É forçoso reconhecer que o movimento aqui con- a recusar qualquer tentativa de extrapolá-la.
siderado e a teologia que o acompanha represen- Nenhum prognóstico em relação ao futuro pare-
tam uma inserção cultural do cristianismo, de for- ce ser possível sem que se busque conhecer o sen-
ma inusitada, pela tentativa de análise da conjuntu- tido atribuído pelos segmentos populares envolvi-
ra socioeconômica e política, com vistas a incorpo- dos a essa re-simbolização política do religioso. E,
rar novos elementos à reflexão de fé. em que medida, ele cria motivações para determi-
A re-apropriação do imaginário cristão, pelo viés nado tipo de ação. Esse é um caminho aqui somen-
da crítica social, oferece a possibilidade de que a te apontado.
simbologia seja percebida como espaço de expres- O Brasil vive um rico momento de legitimação
são de liberdades, ao mesmo tempo em que per- dos conflitos sociais, não mais entendidos como
mite que a Igreja seja interpelada pelos segmentos "caso de polícia", e da construção de uma cidada-
dominados das sociedades em causa. nia moldada na emergência de subjetividades até
Mas, e do ponto de vista social e político? Passa- bem pouco tempo abafadas pela tutela ou pelo
da a euforia dos anos 70, em que os segmentos autoritarismo estatais. A experiência dos movimen-
representativos das novas correntes cristãs perse- tos sociais é muito nova para que não admita
guiam as transformaçôes revolucionárias com a inflexões constantes de prismas de análise e re-
certeza de que a particular síntese entre teoria so- latívização de respostas. Igualmente recente e de-
cial e religião era suficiente para passar da utopia à safiadora é a participação, nesses movimentos, de
prática e à consecução dos objetivos, as transfor- uma matriz ideológica caracterizada como cristã.
mações conjunturais (re-democratização principal- Concluo, fazendo minhas as palavras de Gous-
mente) levaram a relativizações e nuances. Alguns sault, para quem essa conjugação do religioso com
autores chegaram a afirmar que as CEBs como es- o político nos movimentos político-religiosos do Ter-
paço político se acabavam, voltando aos antigos ceiro Mundo mostrará sua pertinência apenas se dela
Círculos Bíblicos. Na cidade como no campo, os emergirem um pensamento, uma cultura e uma
grupos identificados como Igreja são criticados ética sociais renovados e capazes de se emancipar
pelos limites que caracterizariam sua prática política das tutelas religiosas. Bem como de substituir, sem
transformadora. abrir mão da natureza secular, o paradigma estran-
O cristianismo de libertação é hoje um movimento geiro rejeitado.

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NOTAS partir do sofrimento do inocente" e "Beber no Próprio
1. Este trabalho foi apresentado no GT Religião e Poço", por terem sido considerados mais como
Sociedade, na XIX Reunião Anual da Anpocs, em ou- reflexões espirituais, não possuindo a mesma força
tubro de 1995. A pesquisa, originariamente tese de interpelativa para as ciências sociais. As colocações
doutorado apresentada ã Universidade de Brasília, foi sobre o pensamento de Gutierrez neste início de
publica da pela Editora Maltese, com o título Horizon- década prendem-se ao que foi dito por ele em
tes de Bruma: os limites questionados do religioso e do seminário, entrevistas e conferência que marcaram
político. sua passagem pela Universidade de Montreal, em
2. A expressão "cristianismo de libertação" é utili- setembro de 1993. Como leitura de apoio foram
zada, também, por Michael Lowy, em suas análises utilizados textos de outros teólogos identificados com
da teologia da libertação. as novas correntes, no Brasil e demais países do
3. O termo é aqui utilizado, conforme Yves continente, bem como de teólogos que, fora da
Goussault (1990), para identificar aqueles movimen- América Latina, apóiam ou criticam as referidas
tos cuja característica fundamental é o fato de, por formulações.
meio de reinterpretações cuja natureza varia em razão 5. Em dois trabalhos intitulados "Teologia política",
das tradições e das conjunturas, essa hermenêutica a primeira de 1922 e a segunda de 1970. A edição
buscar estabelecer, entre a mensagem religiosa e a aqui consultada foi: Schmitt, Carl Tbéologie politique,
crise da sociedade, uma adequação que se pretende Paris, Galimard, 1988.
diretamente operatória no campo político. 6. No prefácio da obra de Schmitt, op. cit.
4. Para efeito desta análise, foram selecionados os 7. Uma mostra parece ser a recusa a se aceitar a
escritos de Gutierrez considerados mais significativos, inscrição de Comunidades Eclesiais de Base na
pelo fato de representarem as primeiras reflexões sobre organização que pretende reunir, em nível nacional,
as novas práticas pastorais da Igreja na América Latina, os diversos movimentos populares existentes no pais.
por assumirem o engajarnento político de setores iden-
tificados como cristãos, buscando compreender a BIBLIOGRAFIA
conjuntura sociopolítica que o condiciona, por GEFFRÉ, Claude. (1976), "La fonction idéologique
representarem o cerne da tentativa de justificar de Ia sécularisation dans l e christianisme
teologicamente essa militância com base numa re- conternporain", in E. Castelli (dír.), Herméneutique de
leitura da Bíblia e, finalmente, por sintetizarem aquela Ia sécularisation; Paris, Aubier/Montaigne.
a que se chamou de teologia da libertação. São eles GOUSSAULT, Yves. (990), "Les frontiêres contestées
os seguintes: "Réinventer le Visage de l'Église" (RVE), du politique et du religieux dans le tiers monde". Revue
"Essai pour une Théologie de Ia Libération" (ETL) e Tiers -Monde, XXXI, nO.123/ 485 - 497.
"Participar en el Proceso de Liberacion" (PPL), todos HERVIEU-LÉGER, Daniêle. (986), "Sécularisation et
dos anos 60; além de "Teologia da Libertação" (TL), modernité religíeuse". Esprtt, n". 106.
"Praxis de Libération, Théologie e Annonce de KEPEL, Gilles. (991), La reuancbe de Dieu. Paris,
l'Êvangile" (PLTAE), "Teologia desde el Reverso de Ia Seuil.
História" (TRH) e "La Fuerza Histórica de los Pobres" WILLAIME, jean-Pau], (981), "De Ia fonction infra-
(FHP), produzidos nos anos 70. Não foram incluídos politique du relígíeux". Tbe Annual Review of tbe Social
textos dos anos 80, como "job - falar de Deus a Sciences of Religion, n" 5/167-186.

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