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Frank Usarski* 1
1. Introdução
A indicação de um objeto único pelas nomenclaturas consensuais em
nossa comunidade acadêmica como «Ciência da Religião», «História da
Religião» ou «Sociologia da Religião» é apenas plausível à segunda vista.
Isso vale, pelo menos, para colegas que não compartilham da convicção,
propagada por fenomenólogos da religião da geração influenciada por
Rudolf Otto (1869-1937), de que as diferentes tradições religiosas devem
ser concebidas como nuanças da reação universal do ser humano ao cha-
mado «sagrado». Deste ponto de vista, o singular «religião» aponta para
uma base subjacente comum de qualquer expressão religiosa apesar da
aparente heterogeneidade com a qual o mundo religioso se apresenta em
seus determinados contextos culturais. Quem não concorda com tal pers-
pectiva amplamente criticada a partir dos anos 1960 encontra bons argu-
mentos no conceito de Clifford Geertz que parte da ideia de que religiões
(plural!!) são «sistemas simbólicos», tão diversificados como as línguas
humanas que, na busca das suas «gramáticas» particulares, devem ser
consideradas entidades com plausibilidades próprias.
Enquanto há diversos motivos epistemológicos e meta-teóricos para a
substituição de uma abordagem essencialista por um conceito da religião
que reconhece o caráter sistêmico-plural do mundo religioso, a exclusão da
fenomenologia da religião à la Rudolf Otto do seu repertório tem gerado o
problema de como dar continuidade a uma das tarefa centrais da nossa dis-
ciplina, isto é: a comparação entre religiões. Dúvidas sobre possíveis efei-
tos colaterais da rejeição do axioma de que no fundo do fundo as religiões
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Raro é aquele que, ansiando pela imortalidade, fecha os olhos para o exte-
rior e contempla o Eu» (Os Upanshads 1999, 42).
Com trechos deste tipo, a tradição upanishádica estabelece um cami-
nho alternativo a modalidade de revelação favorecida pelas religiões mono-
teístas e postula a introspecção como meio de acesso ao absoluto. Usando
um termo técnico hindu pode-se dizer que o conhecimento do Brahman
é fruto de anubhava. Trata-se de uma noção polissêmica que abrange
denotações como «experiência direta», «realização» e «intuição» da
última realidade como verdadeiramente existente (Myers 2001, 107). Em
todos estes sentidos, Weber tem razão quando afirma que o absoluto pos-
tulado pela «família asiática» das religiões «só é acessível por meio de
contemplação».
Outra diferença entre os dois tipos ideais do mundo religioso consta em
relação ao conceito do tempo, isto é, a quarta dimensão do nosso modelo
comparativo. Enquanto a tradição judaico-cristã se orienta em uma crono-
logia linear, o Hinduísmo é conhecido por sua visão cíclica do tempo. Em
analogia ao primeiro tipo ideal, este conceito abrange tanto os processos
cósmicos quanto o nível biográfico individual.
O termo técnico «kalpa» tem a ver com o conceito «macro» de
tempo. A noção designa o «período entre a origem do universo, sua disso-
lução e o período em que toda matéria retorna à forma de semente no oce-
ano cósmico, representando a condição indiferenciada do cosmos antes do
surgimento da forma». (Geaves 2008, 401) Voltando a usar uma metáfora
já apresentada, a expressão designa o intervalo em que o oceano, depois de
um período de silêncio e devido a seu potencial criativo inerente, começa
produzir suas ondas, mantém-se ativo e finalmente reassume seu status
primordial. A dissolução (pralaya) do mundo manifesto inaugura o inter-
valo da não-atividade do Brahman. Em termos mais detalhados, «pralaya
significa a dissolução das formas e o retorno da energia e matéria em uma
massa amorfa, comparável ao derretimento do gelo que, pelo calor, se
transforma em água, enquanto a substância é preservada». (Dettelbacher
2008, 61) A duração da «noite do universo», isenta de qualquer manifes-
tação material, corresponde a extensão do «dia». A oscilação entre as duas
fases representa o eterno ritmo cósmico.
O pensamento em categorias de ciclicidade se desdobra na escala
menor no âmbito da reflexão sobre a biografia individual. Partindo do
conceito de atman, a instância imutável e eterna em nós, a tradição hindu
afirma que «a morte não é o fim de tudo, mas também não é o início de
uma vida eterna ultraterrena» Em vez disso, «o atman transmigra de uma
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Quando uma ação é concluída, a ação em si não existe mais em sua forma
bruta, mas o efeito dela acaba por manifestar-se mais cedo ou mais tarde.
Ambos, ação e efeito, são armazenados em suas formas sutis na mente
inconsciente. […] Trata-se de um círculo vicioso que, uma vez colocado em
movimento, toma-se difícil pará-lo. Esse círculo –de ações criando impres-
sões que, por sua vez, motivam outras ações– é a lei do karma (Tigunait
1997, 24-25).
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uma direção diferente daquela indicada pela ideia do pecado original típica
para a tradição judaico-cristã.
A mesma divergência em comparação com o Luteranismo vale para a
Soteriologia dos Upanishads e do Advaita Vedanta. Enquanto o Lutera-
nismo destaca o papel da graça oferecida por Deus, a tradição hindu, de
acordo com sua lógica monista, salienta o potencial do ser humano. O indi-
víduo é capaz de se auto resgatar desde que não procure a salvação «fora»
de si, mas cultive o olhar para «dentro». Os respectivos procedimentos
espirituais recomendados pelos Upanishdes e por Shankara têm como
objetivo de que o praticante transcenda tanto «as camadas da aparência
tangível e visível» quanto «todos os estratos intelectuais e emocionais
da psique». (Zimmer 1986, 91) Estes métodos pretendem cortar o véu
da maya, corrigir a aparência errônea da existência multiforme e treinar a
consciência humana para experimentar o próprio atman imutável e eterno
como idêntico ao Brahman. O atman, sem ação, pousado em si e autossufi-
ciente é caracterizado como consciência eterna de beatitude em que todas
as aspirações cessaram. É o estado de moksha, termo técnico hindu para
a liberação do ser humano da sua determinação cármica. Esta realização
espiritual se dá, segundo Shankara, «quando todos os defeituosos esta-
dos mentais tiverem sido rejeitados» (Śankara 1992, 103) ou seja, quando
forem removidos todos os bloqueios da fisiologia sutil que impedem uma
reflexão autêntica do Brahman na consciência do praticante. Tudo isso é
fruto de esforços autorresponsáveis do ser humano.
Resumindo:
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7. Referências
Azria, Régine (2000): O Judaísmo, Bauru, EDUSC.
Barth, Karl (2006): Esboço de uma Dogmática, São Paulo, Fonte Editorial.
Berger, Peter L. (1985): O Dossel Sagrado, São Paulo, Paulus.
Catecismo da Igreja Católica (1998), São Paulo, Paulinas.
Cohn, Gabriel (2003): «Introdução», en G. Cohn, Gabriel (Coord.):
Max Weber, São Paulo, Ática, 7-34.
Dettelbacher, Claus (2008): Im Maulbeerhain: die Lehre von den 4 Weltzei-
taltern, Norderstedt, Books on Demand.
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