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cessita do “maior dos mandamentos” para se estabelecer adequada-

mente. Como dito no início do capítulo, nossa intenção não é a de


desqualificar a obra desse celebre intelectual, mas sim de desquali-
ficar argumentos em potencial pró-ateísmo. No caso, o principal
argumento ateu aqui desvencilhado da teoria marxista é a acusação
de ser a fé religiosa um refúgio onde se perpetuam injustiças soci-
ais. O testemunho fornecido pela história da Igreja pode não nos
prover de uma boa defesa da fé, mas os alicerces da fé cristã nos
indicam o caminho no qual um cristão autêntico é um indivíduo so-
cialmente mais bem engajado que muitos militantes autenticamente
marxistas, excepcionalmente por incluir em suas ações, como atitu-
de exigida e necessária, a prática do amor não fingido, já que só as-
sim o mundo poderá ser definitivamente livre das injustiças sociais.

MAX WEBER E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO

Max Weber (1864-1920), nasceu na Alemanha e é conside-


rado um dos fundadores da sociologia. Seu trabalho de maior im-
portância, “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, escri-
to entre 1904 e 1905, chegou a ser considerado por alguns como a
mais importante obra produzida no século XX. Nele, Weber trata
de correlacionar o desenvolvimento do capitalismo ocidental com o
pensamento protestante, especialmente com o calvinismo. Não se
trata de um trabalho de cunho ateu, tampouco de crítica a qualquer
religião, mas de uma obra monumental sobre a qual alguém pode
erigir, de forma arbitrária, ideias negativas em relação a religião
cristã, especialmente sobre as doutrinas protestantes, no sentido de
lhas atribuir uma parcela de culpa nas muitas injustiças sociais de-
correntes da selvageria típica do capitalismo contemporâneo, inclu-
sive pela flagrante propensão de muitos líderes evangélicos atuais
às benesses.
Examinaremos com algum detalhe os conceitos e ideias con-
tidas nessa obra a fim de garantirmos a inexistência de uma relação
de causalidade entre o exercício da fé cristã e a cultura própria do

A CULTURA CRISTÃ E AS CIÊNCIAS SOCIAIS 275


capitalismo, uma vez que esse certamente seria o principal argu-
mento ateu em potencial a se originar dessa leitura.
A leitura da obra citada é obrigatória a qualquer que preten-
da avançar no estudo da sociologia. Weber tem uma contribuição
ampla nas ciências sociais, e o cerne de seu trabalho como um todo
não está relacionado com religião, mas com a compreensão dos fe-
nômenos históricos e sociais, bem como a reflexão acerca do méto-
do investido nessas ciências. Sobre política, por exemplo, Max
Weber definiu o Estado como o monopólio coercivo da sociedade,
e legou que o estadista não pode, no exercício do poder, submeter-
se a ética cristã, dando a outra face a quem o ferir; pois tal atitude
só beatificaria ao próprio indivíduo. A ética adequada a um políti-
co, portanto, seria a ética que privilegie e proteja os fins últimos
preconcebidos para o Estado.

ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL
Escrevendo entre 1904 e 1905, na Alemanha, Weber assegu-
ra a tendência de os protestantes estarem em posições economica-
mente privilegiadas frente aos católicos, garantindo que esta cons-
tatação não é fruto de uma observação isolada, mas recorrente a to-
dos os países de religião mista. Ele indica que essa diferença social
está atrelada as próprias raízes religiosas dos indivíduos. Como in-
dicativo disso, expõe o fato de que estudantes católicos têm maior
interesse por disciplinas das áreas das ciências humanas, enquanto
que estudantes protestantes, demonstram maior interesse por posi-
ções administrativas e por ofícios próprios das fábricas e do comér-
cio. O trabalho de Weber será demonstrar que essas diferenças cul-
turais nasceram e se desenvolveram a partir dos fundamentos dou-
trinários religiosos de cada povo; em especial, segundo avalia, os
protestantes de linhagem calvinista estarão muito mais propensos a
exploração da sua vocação profissional que os católicos, ou seja, o
desenvolvimento do espírito do capitalismo está, por força da influ-
ência da doutrina calvinista, fortemente ligado a povos de cultura

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protestante. Para justificar essa conclusão, ele se põe a esclarecer o
significado exato do que chama de “espírito do capitalismo”.

O ESPÍRITO DO CAPITALISMO
Elucidando o que chama de espírito do capitalismo, Weber
explica que uma pessoa dotada do espírito capitalista não é, como
se pode pensar, alguém obcecado por lucro, ou algum acerbo capi-
talista cujo lucro é construído a partir da exploração da miséria e
necessidade de outros. Pelo contrário, uma sociedade impregnada
pelo espírito capitalista é caracterizada por indivíduos que priori-
zam o trabalho como uma virtude em si. Tal situação constitui uma
inversão de relações trabalhistas mais tradicionais, onde a aquisi-
ção de bens através do trabalho é encarada como uma atividade
que existe em função do ser humano; contrário e em completa in-
versão a essa perspectiva, o homem de espírito capitalista vive em
função da aquisição de bens conquistada pela exploração de suas
vocações trabalhistas. A conquista de crédito e granjeamento de
bens são considerados como virtudes.

De fato, o summum bonum dessa ética, o ganhar mais e mais dinheiro,


combinado com o afastamento estrito de todo prazer espontâneo de viver
é, acima de tudo, completamente isento de qualquer mistura
eudemonista, para não dizer hedonista; é pensado tão puramente como
um fim em si mesmo, que do ponto de vista da felicidade ou da utilidade
para o indivíduo parece algo transcendental e completamente irracional .
O homem é dominado pela geração de dinheiro, pela aquisição como
propósito final da vida. A aquisição econômica não mais está
subordinada ao homem como um meio para a satisfação de suas
necessidades materiais. Essa inversão daquilo que chamamos de relação
natural, tão irracional de um ponto de vista ingênuo, é evidentemente um
princípio guia do capitalismo, tanto quanto soa estranha para todas as
pessoas que não estão sob a influência capitalista. Ela expressa ao
mesmo tempo um tipo de sentimento que está intimamente ligado com
certas ideias religiosas. Se pois formularmos a pergunta por que
devemos fazer dinheiro às custas dos homens, o próprio Benjamin
Franklin, embora não fosse um deísta convicto, responde em sua

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autobiografia com uma citação da Bíblia que lhe fora inculcada pelo pai,
rígido calvinista, em sua juventude : “Vês um homem diligente em seus
afazeres? Ele estará acima dos reis”. (Weber 1905, p.21).

Essa isenção de qualquer mistura eudemonista, ou hedonista,


como comenta Weber, é um fator fundamental para se compreen-
der sua teoria sobre o desenvolvimento do capitalismo. Os indiví-
duos em questão não são aqueles que perseguem o lucro visando
alcançar uma independência financeira e livrar-se do batente diá-
rio, tampouco aqueles que sonham em angariar fortunas para des-
frutar a vida com todo o conforto que o dinheiro pode trazer. O ho-
mem de que se fala aqui é aquele que vive em função do trabalho,
sua glória e finalidade última é ser reconhecido por sua excelência
profissional, tal como uma máquina projetada para o trabalho. Ain-
da que acumule fortunas, não abandona jamais sua vocação traba-
lhista, pois trabalhar é, para ele, um fim e uma virtude em si mes-
mo.
Para ilustrar esse tipo de comportamento, Weber compara a
reação de um típico capitalista com a reação de um trabalhador
destituído desse espírito, o qual denomina “trabalhador
tradicional”, que está envolvido num sistema econômico que intitu-
la de “economia de necessidades”. Se um trabalhador tradicional
recebesse a oferta de aumento de salário por produção, sua reação
natural seria a de calcular o quanto menos teria de trabalhar para
continuar recebendo o mesmo salário anterior, tomando sua vanta-
gem no tempo poupado do trabalho para estar com a família. Já o
trabalhador envolvido no espírito capitalista, terá nesse aumento de
salário uma motivação extra para trabalhar por ainda mais tempo, a
fim de ver seu salário aumentar, ainda que comprometendo seu
tempo livre, tão necessário para o desfrute dos benefícios desse sa-
lário sobressalente.
Weber notou que esse espírito capitalista é apercebido hoje
como algo contrário a ética religiosa. Pessoas ativamente capitalis-
tas tendem a serem hostis à igreja, e sentenciam a religião como

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meio de afastar as pessoas do trabalho; mas essa dissociação entre
ética protestante e espírito capitalista chegou a esse ponto, segundo
avalia, porque esse sistema econômico expandiu-se a ponto de ex-
ceder suas forças originárias, que, ainda segundo Weber, estão en-
raizadas em princípios doutrinários do protestantismo.

O CAPITALISMO E O CRISTIANISMO
A elucidação do fato de que a religião cristã em suas ori-
gens, bem como na ideologia dos reformadores protestantes, não
propõe nem incentiva a construção do sistema capitalista, muito
menos o desenvolvimento do espírito capitalista no indivíduo e na
sociedade, é um ponto importante na explanação de Weber, confor-
me verificamos neste excerto:

O Velho Testamento em particular, nas profecias originais não mostrava


nenhum sinal de tendência para exaltar a moralidade secular, embora em
uns poucos lugares apresente apenas sugestões isoladas e rudimentares,
continha uma ideia religiosa similar, inteiramente em sentido
tradicionalista. Cada um deve sustentar a própria vida e deixar os ateus
correrem atrás do lucro. Este é o sentido de todas as colocações que
opinam diretamente sobre as atividades seculares. E mesmo o Talmud,
embora não fundamentalmente, apresenta atitude semelhante. A atitude
pessoal de Jesus é caracterizada com clássica clareza pela oração típica
da antiguidade oriental: “Dai nos hoje o nosso pão de cada dia”. (...)
Lutero leu a Bíblia do ângulo de sua tendência geral, e no tempo e no
curso de seu desenvolvimento, entre 1528 e 1530 não só permaneceu
tradicionalista, como acentuou esta sua postura. (Weber 1905, p.36).

Temos aqui o ponto preponderante em nosso argumento: o


desenvolvimento do sistema capitalista não é decorrência da cristi-
anização da Europa ou da expansão do protestantismo, apesar de a
vertente calvinista ter participado desse desenvolvimento, como
Weber mostra mais adiante. Sendo bom ou mal, o sistema capita-
lista surgiu dos regimentos humanos, e jamais pode ser considera-
do fruto ou consequência do evangelho.

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Mas essa questão pode ser vista de uma outra forma, por si-
nal, mais perigosa: ainda que o espírito capitalista não seja um en-
sino característico do evangelho de Cristo ou das doutrinas dos re-
formadores, não seria ele uma consequência inevitável da prática
desses ensinos, como um desagradável efeito colateral não preme-
ditado? Dessa forma, poderíamos apontar algum desvirtuamento na
doutrina cristã, um desvirtuamento de natureza psíquica, já que
leva seus adeptos, de forma majoritária e inevitável, a um compor-
tamento padronizado, sistemático e condenável pelo próprio cânon
sagrado, como naquelas palavras de Jesus onde ele repudia a preo-
cupação excessiva com o dia de amanhã em relação ao suprimento
das necessidades: “Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã;
porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o
seu mal” (Mateus 6.33-34).
Para mostrar que de fato não é esse o caso, vamos seguir as
conclusões de Weber sobre a origem do sistema capitalista moder-
no e sobre o quanto o protestantismo tem de participação nessa
construção humana. Quanto a participação da reforma protestante
na formação do capitalismo, o próprio Weber afirma:

Por outro lado, contudo, não temos qualquer intenção de sustentar uma
tese tola e doutrinária, pela qual o espírito do capitalismo (no sentido
provisório do termo acima citado) possa ter surgido apenas como
resultado de certos efeitos da Reforma, ou mesmo que o capitalismo,
como sistema econômico, seja efeito da Reforma. O fato de que certas
formas importantes de organização capitalista dos negócios são
sabidamente mais antigas que a Reforma bastaria, por si só, para refutar
tal afirmação. Ao contrário, queremos apenas nos certificar se, e em que
medida, as forças religiosas tomaram parte na formação qualitativa e na
expansão quantitativa desse espírito pelo mundo (Weber 1905, p.39).

O PROTESTANTISMO E SUAS DOUTRINAS ASCÉTICAS


Weber aborda de forma suficiente a doutrina de algumas das
principais ramificações protestantes, a saber: o calvinismo, o pietis-

280 AS MÁSCARAS DO ATEÍSMO


mo, o metodismo, e os batistas. Sobre o calvinismo, salienta que a
doutrina da predestinação é sua característica principal, pelo menos
em termos de comparações entre doutrinas cristãs diversas. Afirma
ele que Lutero confessou que sua iluminação ocorreu unicamente
por força da graça divina, e não por qualquer mérito seu, mas com
o passar do tempo, esse reformador teria afastado-se gradativamen-
te desse dogma, por forças das circunstâncias. Já com Calvino o
desenvolvimento do pensamento foi diferente: não houve uma re-
velação extraordinária, mas a busca por uma coerência lógica, don-
de extrai a conclusão prática de que sendo Deus soberano, é inad-
missível que os homens possam interferirem em seus projetos. We-
ber sente na teologia calvinista uma frieza para com o ser humano,
conforme fica exposto nestas palavras:

O Pai do Céu do Novo Testamento, tão humano e compreensivo que se


regozija com o arrependimento de um pecador, como uma mulher com a
moeda de prata perdida e reencontrada, desapareceu. Seu lugar foi
ocupado por um ser transcendental, além do alcance da compreensão
humana, que com Seus decretos incompreensíveis decidiu o destino de
cada indivíduo e regulou os mínimos detalhes do universo para a
eternidade. E uma vez que Seus decretos são imutáveis, a Graça seria tão
impossível de ser perdida para aqueles a quem a concedeu como
impossível de ser obtida para aqueles a quem a negou. Esta doutrina, em
sua extrema desumanidade, deve ter tido, acima de tudo, uma
consequência para a geração que se rendeu à sua magnífica consistência:
um sentimento de incrível solidão interior do indivíduo (Weber 1905,
p.45).

A doutrina da predestinação calvinista, para ele, aboliu gra-


dativamente a necessidade de intermediação da Igreja no processo
de salvação do indivíduo. A confissão, por exemplo, já não seria
mais necessária, uma vez que os eleitos jamais perderiam a salva-
ção, mesmo incorrendo em pecados capitais, e no caso dos perdi-
dos, não há Igreja nem Deus que os possa levar a eleição. Por con-
sequência, sem confissão, a necessidade de descarregar a consciên-

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cia do pecado também se esmaeceu.
Weber flagra algumas ambiguidades dessas doutrinas protes-
tantes em sua leitura de “O Peregrino”, clássico protestante de João
Bunyan, escrito em 1678. Segundo indica, o personagem protago-
nista da obra abandona a família e segue viagem rumo as mansões
celestiais, mas só chegando lá, se dá conta da importância de ter a
sua volta seus familiares. Em paralelo a essa observação, ele sali-
enta que a cultura protestante teria a força de incutir na mente do
indivíduo uma obrigação tal com os compromissos profissionais,
que o faria deixar sua própria vida familiar ou social em segundo
plano. Nesse sentido, o amor fraternal cristão deixou de ser uma
prática espontânea para ser o cumprimento de um mandamento,
que objetiva a glorificação divina. Em poucas palavras, Weber
considera que o calvinismo leva o sujeito a amar porque precisa
agradar a um Deus distante e indiferente aos homens, e não pelos
benefícios humanos produzidos por esse sentimento.
Essa necessidade de agradar a Deus não se dá pela busca da
salvação, como se poderia afirmar em outras doutrinas cristãs,
como no catolicismo romano. No calvinismo, a necessidade de
agradar a Deus se dá pela concomitante necessidade de expor ao
mundo a vocação e eleição do indivíduo. Weber sustenta que a au-
toafirmação calvinista se dá quando se consegue manter a fé em
sua salvação acima de qualquer dúvida. Essa necessidade de autoa-
firmação da condição de salvo pela graça produziu indivíduos au-
toconfiantes, como os mercadores puritanos, em contraste aos pe-
cadores desesperados a quem Cristo oferecia consolo. Nas suas pa-
lavras:

Por um lado, era mantido como absoluto dever considerar a si mesmo


como escolhido e combater qualquer dúvida e tentação do diabo, pois
que a perda da autoconfiança era resultado de fé insuficiente, e portanto
de graça imperfeita. A exortação do apóstolo para estimular a própria
vocação é aqui interpretada como um dever para obter a certeza da
própria predestinação e justificativa na luta diária pela vida. No lugar

282 AS MÁSCARAS DO ATEÍSMO


dos humildes pecadores a quem Lutero prometia a Graça, se eles se
entregassem confiantes a Deus numa fé penitente, foram produzidos
estes santos autoconfiantes, a quem podemos redescobrir nos rígidos
mercantes puritanos dos tempos heroicos do capitalismo e, em exemplos
isolados, também na atualidade (Weber 1905, p.49).

Dessa forma, se estabelece uma diferença colossal entre o


estilo de vida católico e calvinista: o católico vive em ciclos de pe-
cado, arrependimento, penitência e perdão, e o calvinista vive num
estado contínuo de graça, um estado rígido e metódico, onde a me-
nor dúvida pode configurar a evidência da não eleição, ou seja, da
condenação eterna e irrevogável. Se no catolicismo romano o indi-
víduo precisa do sacerdote para conduzi-lo no processo de confis-
são e penitência; no protestantismo calvinista, cada fiel é em si um
sacerdote que deve extirpar o pecado de si mesmo.
Para Weber, o dogma da eleição incondicional e irrevogável
criou um terrível efeito colateral: a indiferença pelo pecador mise-
rável e moribundo. Enquanto que no cristianismo bíblico estes
constituem o alvo principal do evangelho, no calvinismo decorren-
te, não são mais pecadores necessitados da graça, mas desgraçados
irremediáveis inimigos de Deus, cuja miséria só vem expor sua
condição de não eleitos. No lugar do amor, nasceu então o ódio:

Esta consciência da graça divina dos santos e eleitos era acompanhada


por uma atitude diante dos pecados do próximo, não de simpática
compreensão baseada na consciência das próprias fraquezas, mas de
ódio e desprezo por ele como um inimigo de Deus, carregando os sinais
da condenação eterna. Este tipo de sentimento atingiu tamanha
intensidade que, por vezes, resultou na formação de seitas. Foi este o
caso quando, como no movimento Independente do século XVII, a
doutrina calvinista genuína segundo a qual a glória de Deus exigia uma
Igreja que mantivesse os condenados sob a lei, foi sobrepujada pela
convicção de que seria um insulto a Deus se uma alma irredenta pudesse
ser admitida em Sua casa e participasse dos sacramentos ou, como
ministro, os administrasse (Weber 1905, p.54).

A CULTURA CRISTÃ E AS CIÊNCIAS SOCIAIS 283


Essa escorregada ao donatismo que o autor testifica, eviden-
cia a forma de compreensão típica sobre a relação entre Deus e o
pecador nessa época, que é assemelhada com a relação entre o lo-
jista e o seu freguês.
As doutrinas protestantes, sobretudo a doutrina da predesti-
nação (principal distintivo calvinista), redundaram em comporta-
mentos incoerentes à própria Escritura, se aceitarmos as conclusões
de Max Weber. Mas seriam mesmo essas doutrinas as responsáveis
por tais deslizes? Haveriam formas de viver essas doutrinas sem se
incorrer nesses erros, ou elas conduzem inevitavelmente a esses
fins? Essas são as perguntas importantes em nossa abordagem; ali-
ás, se há algum argumento ateísta originário desse texto, só pode
ser a associação de causalidade entre a prática da fé cristã com os
desvirtuamentos aqui indicados.

A ÉTICA CRISTÃ E A ÉTICA SECULAR


As conclusões de Weber não são críticas ao protestantismo,
tampouco recomendações sobre religião ou ética. Ele apenas cons-
tata fatos e os apresenta, como um especialista que identifica a cau-
sa de um determinado acontecimento, sem contudo se preocupar
em avaliar se tal acontecimento é bom ou ruim.
Entretanto, é um consenso geral na atualidade que o capita-
lismo tem sido vil e nocivo à sociedade, principalmente por sua
contribuição para a desumanização do indivíduo, que em sua tres-
loucada busca pelo lucro e pela vantagem financeira sobre seus
concorrentes ignora os limites da ética social, gerando um cenário
onde os poderosos criam leis que lhes favorecem e governam, dire-
ta ou indiretamente, de acordo com seus próprios interesses. Nes-
sas circunstâncias, a identificação de um “causador” desse mal é
por si uma grande condenação ao tal “causador”. Weber endossou
que não pretendia indicar o protestantismo como causador do capi-
talismo, como já observamos, mas o conteúdo da obra pode incitar
essa conclusão.

284 AS MÁSCARAS DO ATEÍSMO


É, portanto, importante destacar que nem o evangelho em
sua origem, nem os ideais dos reformadores previam ou pretendi-
am tais resultados. Os erros cometidos pela Igreja, em qualquer de
suas seitas, não justificam argumentos contrários a fé cristã. Ou-
trossim, é de excepcional importância salientar que os questiona-
mentos que são naturalmente levantados contra o chamado espírito
capitalista – o engajamento desenfreado ao trabalho, o descaso com
as questões humanas, a indiferença e o preconceito aos espiritual-
mente necessitados – não são mais que atitudes propriamente con-
trárias aos princípios e valores cristãos. Aliás, esses mesmos ques-
tionamentos podem ser levantados a partir das bases de valores pu-
ramente cristãos.
Como já observado anteriormente, um argumento possível e
ainda mais incisivo seria: a fé protestante não endossa tais absur-
dos, mas eles são sua consequência inevitável. Essa suposição não
é verdadeira, haja vista haverem igrejas e culturas protestantes que
não incorreram nesses mesmos erros. O fato verdadeiro e pouco
apercebido é o que podemos chamar de “paralaxe da história”, e se
resume no que segue: os fatos que entram para a história da Igreja
com algum destaque são produzidos invariavelmente por pessoas
envolvidas com o poder. Observemos: as guerras e cisões foram
produzidas por intensas disputa de poder; mesmo as revoltas popu-
lares são movidas por indivíduos politizados. Em outras palavras, o
cristão simples que cultiva sua fé mantendo a originalidade bíblica
não aspira o poder, senão contrariaria o próprio ensino bíblico; e
assim sendo, não se envolve em grandes controvérsias ou em juízo
alheio. Calvinista ou não, o cristão honesto em seu cristianismo se
comporta de forma bem diferente daqueles que, mesmo envolvidos
religiosamente com a fé cristã, não abandonaram seu próprio egoís-
mo, e de forma recorrente, acabam usurpando o poder eclesiástico,
uma vez que o domínio de multidões por força da fé é uma boa
oportunidade de negócio aos obcecados pelo poder.
Em nossos dias, testificamos uma rápida transformação da
Igreja evangélica no Brasil, transformação encabeçada principal-
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mente pelas denominações chamadas neo pentecostais. A mensa-
gem que essas denominações transmitem nos grandes meios de co-
municação, nada mais é do que a adaptação da cultura consumista
e materialista (típica da nossa cultura secular), a uma religiosidade
cristã. Presenciando tal fato, compreendemos que apesar de possuí-
rem uma importância marcante – daqui a cinquenta anos nossa atu-
al cultura evangélica será avaliada pelos ensinos destes pseudo
evangelistas –, eles não representam o evangelho de Cristo. Essas
deturpações do evangelho ocorrem sempre que por alguma razão
determinada cultura é invadida por conceitos e ideias cristãs, seja
como fruto de uma forte investida evangelística, ou por alguma
forma de imposição, como na época de Constantino, em que o cris-
tianismo foi aplicado ao império romano por força de decreto; ou
como no exemplo do Brasil da atualidade, onde a cultura evangéli-
ca tornou-se rapidamente popular pela deflagração de uma ampla
diversidade de movimentos evangélicos, sobretudo pela súbita ex-
posição intensiva nos meios de comunicação desses movimentos.
Mas em todos esses momentos, o crescimento vertiginoso vem
acompanhado de uma também crescente distorção da essência da
mensagem, e por estranho que seja, o conteúdo que faz história é o
conteúdo deturpado, embora a essência legítima tenha também fru-
tificado naquela época.

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