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Calvino:

Mestre da Igreja
Calvino:

Mestre da Igreja

Felipe Sabino (Editor)

EDITORA MONERGISMO
BRASÍLIA, DF
Todos os direitos em língua portuguesa reservados por
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Brasília, DF, Brasil - CEP 70.842-970
Telefone: (61) 8116-7481 - Sítio: www.editoramonergismo.com.br

1ª edição, 2009
1000 exemplares

Edição e tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto


Revisão: Luciana Braga Seixas
Capa: Raniere Maciel Menezes
Projeto gráfico: Marcos R. N. Jundurian

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Todas as citações bíblicas foram extraídas da


versão Almeida Corrigida e Fiel (ACF),
salvo indicação em contrário.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Sabino de Araújo Neto, Felipe


Calvino: Mestre da Igreja / Felipe Sabino de Araújo Neto
(editor) – Brasília, DF: Editora Monergismo, 2009.
302p.; 21cm.
ISBN 978-85-62478-19-2
1. João Calvino 2. Biografia 3. História 4. Bíblia
CDD 230
SUMÁRIO

Prefácio do Editor............................................................................... 7

Autores.................................................................................................. 13

Cronologia dos Eventos Importantes


na Vida de João Calvino (1509-1564)
Marcus Servan ....................................................................................... 19

1. Carta de um Fã a Calvino
James I. Packer ....................................................................................... 27

2. João Calvino: o Reformador Suíço


Herman C. Hanko ................................................................................ 31

3. A Esposa de Calvino
G. de Felice ............................................................................................ 47

4. O Pastor Erudito
Philip G. Ryken ..................................................................................... 63

5. Calvino – Facetas do Homem e do seu Ministério


Odayr Olivetti ........................................................................................ 69

6. Calvino como Teólogo


Benjamin B. Warfierld............................................................................ 113

7. Calvino como Polemista


Cornelius Van Til .................................................................................. 123

8. A Epistemologia de Calvino
W. Gary Crampton................................................................................ 153

5
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

9. Calvino e a Providência de Deus


Franklin Ferreira ................................................................................... 161

10. Calvino sobre Cristo


W. Gary Crampton................................................................................ 205

11. João Calvino sobre Oração


Rousas John Rushdoony .......................................................................... 221

12. João Calvino e o Papel do Crente no Reino de Deus


Mark Rousas Rushdoony ....................................................................... 229

13. Introdução à Ética Pessoal e Social de Calvino


Hermisten Maia ..................................................................................... 237

14. Direção para Vida: O Conceito de Calvino sobre Vocação


Roger Schultz ......................................................................................... 283

15. Calvino e o Governo Civil


Solano Portela ........................................................................................ 291

6
PREFÁCIO DO EDITOR

10 de julho de 2009 marca o 500º aniversário de João


Calvino (1509-1564). Embora tenha nascido há cinco séculos,
a vida e os labores deste grande homem nos impactam profun-
damente até hoje.
A influência e o impacto de Calvino sobre o mundo
têm sido tão abrangente que um autor contemporâneo o
chamou de “O Homem do Milênio”.1 Joseph C. Morecraft,
III aceita sem hesitação essa avaliação, pois crê que “João
Calvino é a pessoa mais importante e influente dos últimos
mil anos”.2
Alguém pode supor que tais pessoas estejam falando de
forma hiperbólica, mas este não é o caso, pois como lembra
W. Robert Godfrey, “os historiadores sabem que João Calvino
foi um dos homens mais notáveis que viveu nos últimos qui-
nhentos anos e que sua influência sobre o desenvolvimento do
mundo ocidental moderno tem sido imensa”.3 Já J. H. Merle
d’Aubigné diz o seguinte: “Calvino foi o fundador da maior

1 David Hall, The Genevan Reformation and the American Founding (New York:
Lexigton Books, 2003), p. 446.
2 Philip Vollmer, John Calvin: Man of the Millennium (Texas: The Vision Fo-
rum, 2008), p. xix.
3 W. Robert Godfrey, John Calvin: Pilgrim and Pastor (Wheaton: Crossway
Books, 2009), p. 7.

7
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

das repúblicas…a evidência indisputável da História coloca


Calvino entre os pais da liberdade moderna”.4
Analisando a influência de Calvino sobre as origens da
América, o historiador alemão Leopold von Ranke conclui que
“João Calvino foi virtualmente o fundador da América”.5 O
historiador de Harvard, George Bancroft, acusa de ignorância
aqueles que tentam minimizar a contribuição do Reformador
de Genebra sobre o nascimento da América: “Aquele que não
honra a memória, e respeita a influência de Calvino, conhece
muito pouco sobre a origem da liberdade Americana”.6
Encontramos opiniões semelhantes sobre Calvino em
toda a História da Igreja. Como exemplo, citamos abaixo o
que alguns teólogos e pesquisadores disseram sobre sua vida,
influência e obras:

“Depois da leitura da Escritura, a qual ensino, inculcan-


do tenazmente, mais do que qualquer uma outra… Eu
recomendo que os Comentários de Calvino sejam lidos...
Pois afirmo que, na interpretação das Escrituras, Calvino
é incomparável, e que seus Comentários são para se dar
maior valor do que qualquer outra coisa que nos é legada
nos escritos dos Pais — tanto que admito ter ele um certo
espírito de profecia, em que se distingue acima dos ou-
tros, acima da maioria, de fato, acima de todos” (Jacobus
Arminius).7

4 J. H. Merle d’Aubigné, History of the Reformation in Europe in the Time of


Calvin (Harrisonburg, VA: Sprinkle Publications, [1880]. 2000), vol. 1,
págs. 5, 6.
5 Citado em Philip Vollmer, John Calvin: Man of the Millennium (Texas: The
Vision Forum, 2008), p. xx.
6 George Bancroft, The History of the United States of America (Boston,
1853), vol. 1, p. 464.
7 Calvin and His Enemies, In John Calvin Collection. Rio, Wisconsin (USA):
The AGES Digital Library, 2007. CD-ROM. Uma afirmação deveras

8
PREFÁCIO DO EDITOR

“Seria impossível eu enfatizar demasiadamente a impor-


tância de ler as exposições daquele príncipe entre os ho-
mens, João Calvino!” (Charles H. Spurgeon).8
“O que Tucídides é entre os gregos, ou Gibbon entre
os historiadores ingleses do século dezoito, o que Platão
é entre os filósofos, ou a Ilíada entre os épicos, ou ain-
da Shakespeare entre os dramaturgos, isso as Institutas
de Calvino é entre os tratados teológicos” (B. B. War-
field).9
“De Paulo a Calvino não se levantou ninguém maior que
Agostinho; de Paulo aos nossos dias não se levantou nin-
guém maior que João Calvino” (R. C. Reed).10
“O grande centro de toda pregação de Calvino era a graça
de Deus. Tem sido o costume desde então designar como
‘calvinistas’ aqueles que enfatizam o que ele enfatizou”
(Arthur W. Pink).11
“O melhor intérprete do apóstolo Paulo: João Calvino”
(Gordon H. Clark).12
“Institutas: a mais influente teologia sistemática já escrita”
(Robert L. Reymond).13

impressionante daquele que pode ser considerado o “pai do Arminianis-


mo”, um sistema totalmente antagônico às verdades bíblicas que Calvino
proclamou.
8 Charles Haddon Spurgeon, Commenting and Commentaries (Vestavia Hills,
AL: Solid Ground Christian Books, 2006), p. 4.
9 Benjamin Breckinridge Warfield, Calvin and Calvinism (New York: Oxford
University Press, 1931).
10 R. C. Reed, The Gospel as Taught by Calvin (Edinburgh: Banner of Truth,
2009), p.4
11 Arthur W. Pink, Gleanings in the Godhead (Chicago: Moody Press, 1975).
12 Artigo Determinism and Responsibility, em John W. Robbins (editor),
Against the Churches: The Trinity Review, 1989-1998, (Jefferson, Ma-
ryland: The Trinity Foundation, 2002).
13 Robert L. Reymond, John Calvin: His Life and Influence (Ross-shire, Great
Britain: Christian Focus, 2004), p. 127.

9
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

“A originalidade, o poder e a influência das ideias religiosas


de Calvino nos impedem de nos referirmos a ele meramen-
te como um ‘teólogo’ – embora ele certamente o fosse – da
mesma maneira que é inadequado nos referirmos a Lênin
como um mero teórico político. Através de sua extraordi-
nária habilidade em dominar outras línguas, contextos e
ideias, de suas noções sobre a importância da organização
e das estruturas sociais e de seu discernimento intuitivo
acerca das necessidades religiosas e das oportunidades de
sua época, Calvino foi capaz de forjar uma aliança entre o
pensamento religioso e a ação, o que fez do Calvinismo um
fenômeno de sua época” (Alister McGrath).14
“Débil na estrutura física, vigoroso, porém, na organização
intelectual e moral, simples no viver, austero nos costumes,
incansável no trabalho, irredutível na fé, erudito no saber,
nobre nas intenções, invulgar na coragem, hábil no racio-
cínio – soube João Calvino, como poucos neste mundo,
redimir prudentemente o seu tempo e empregar o talento e
os dons de que fora dotado na glorificação do Criador e Re-
dentor de sua alma. O emérito doutrinador e piedoso ho-
mem de Deus ocupará sempre um lugar de destaque entre
os grandes vultos da Igreja” (Vicente Themudo Lessa).15
“Um excelente teólogo, exegeta respeitado, professor re-
nomado, estadista eclesiástico, Reformador influente – ele
era tudo isto e muito mais. Seu nome era João Calvino”
(Steven J. Lawson).16

Resolvi mesclar nesta coletânea ensaios escritos por bra-


sileiros e estrangeiros, vivos e outros que já “dormem”, mas,

14 Alister McGrath, A Vida de João Calvino (São Paulo: Cultura Cristã, 2004),
p. 12.
15 Vicente Themudo Lessa, Calvino (1509-1564) Sua Vida e Sua Obra (São
Paulo: Cultura Cristã, sem data), p. 268.
16 Steven J. Lawson, A Arte Expositiva de João Calvino (São Paulo: Editora
Fiel, 2008), p. 16.

10
PREFÁCIO DO EDITOR

como ficará evidente, todos têm em comum a estima e o re-


conhecimento da riqueza teológica que Calvino nos deixou.
Meus agradecimentos aos nossos autores brasileiros: Rev.
Odayr, Rev. Hermisten, Rev. Franklin e o Pb. Solano Portela.
Para os que se questionarem, o Dr. Crampton é o úni-
co com dois artigos selecionados, pois, além do seu excelente
texto sobre epistemologia, resolvi incluir um sobre cristologia,
pelo fato de haver pouquíssimo material escrito sobre a cristo-
logia de Calvino. A carência é estranha, pois além de ser tema
vital na teologia cristã, foi proeminente (poderia ser diferente?)
nos escritos do Reformador. A teologia de Calvino é profun-
damente cristocêntrica!17
Minha gratidão ao irmão Vanderson Moura pela tradução
do texto sobre a esposa de Calvino,18 outro assunto pouco co-
nhecido e que nos lembra que Calvino não cometeu o erro de
alguns dos seus sucessores.19

17 Sobre cristologia em geral, recomendo os excelentes livros do Dr. Heber


Carlos de Campos: As Duas Naturezas do Redentor, A União das Naturezas
do Redentor e Humilhação do Redentor.
18 Retirado de Calvin and His Enemies, In John Calvin Collection. Rio, Wis-
consin (USA): The AGES Digital Library, 2007. CD-ROM. Vanderson
também traduziu os textos de Packer, Hanko, Ryken e Van Til.
19 David Chilton, escrevendo uma excelente resenha sobre um livro acerca
da vida de George Whitefield, mostra que Whitefield, como muitos de
sua época, tinha uma visão distorcida e antibíblica sobre o casamento.
Embora o seu casamento não tenha acabado em separação (como o de
John Wesley, que tinha uma visão ainda mais distorcida), isso deveu-se
ao fato de sua esposa ter aprendido a “lidar com a solidão”. Ela se con-
siderava “um peso e um fardo para ele”, pois Whitefield não tentava es-
conder o fato que ele “olhava para trás e tinha saudades dos dias quando
não tinha responsabilidades maritais que impedissem o seu serviço ao
Senhor”. Como Chilton lembra, não devemos imitar alguém simples-
mente porque Deus o usou, nem devemos rejeitar a validade das muitas
coisas que realizou meramente por ele ter algumas visões repulsivas. Mas
Calvino, por outro lado, via a sua esposa como uma ajudadora, e não um
empecilho, pois Deus é aquele que disse: “não é bom que o homem es-

11
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

À medida que celebramos o 500º aniversário de Calvino,


que este volume possa ajudar a promover um ressurgimento
das verdades poderosas que esse “Homem do Milênio”, pela
incomensurável graça de Deus, nos legou.

Felipe Sabino de Araújo Neto


10 de junho de 2009

teja só” (Gn 2.18). Para ver a preocupação de Deus com o lar e a família,
confira também Dt 24.5. A resenha de Chilton apareceu em The Biblical
Educator, Vol. II, nº 10, outubro de 1980.

12
AUTORES

Marcus J. Serven obteve seu título de Bacharel


(B.A.,1976) na Universidade da Califórnia, o de Mestre em
Divindade (M.Div., 1979) no Fuller Theological Seminary, o de
Mestre em Teologia (Th.M.,1992) e Doutor em Ministério
(D.Min, em andamento) no Covenant Theological Seminary. É
ministro Presbiteriano desde 1980 e serve atualmente como
pastor da Covenant Family Church em Troy, Missouri. Ele e sua
esposa Charyl vivem na área rural do Missouri com seus nove
filhos desde 2005.
J. I. (James Ian) Packer é um teólogo anglicano calvi-
nista e professor de teologia no Regent College, em Vancouver,
Canadá. Estudou no Corpus Christi College, obtendo os títulos
de Bacharel (1948), Mestre (1952) e PhD (1955). Foi editor da
revista Christianity Today e membro do comitê de novas tradu-
ções da Bíblia.
Herman C. Hanko (nascido em 1930) foi ordenado ao
ministério das Protestant Reformed Churches em 1955. Depois de
pastorear congregações em Michigan e Iowa, em 1965 foi de-
signado professor de Novo Testamento e História Eclesiástica
na Escola Teológica das Igrejas Reformadas Protestantes em
Grandville, Michigan. Serviu nessa função até a sua aposenta-
doria em 2001. Em sua aposentadoria, continua ocupado ensi-
nando em vários cursos de seminário, liderando classes bíbli-
cas, pregando em diferentes igrejas e escrevendo.

13
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

Odayr Olivetti é natural de Rio Claro, São Paulo. Foi


capelão da Universidade Presbiteriana Mackenzie, professor
do Seminário Presbiteriano do Sul e presidente e estilista da
Comissão de Tradução da Nova Versão Internacional da Bíblia
(NVI) e um dos seus tradutores. É tradutor de mais de 125
livros, entre os quais Teologia Sistemática, de L. Berkhof, e as
Institutas de Calvino (primeira edição francesa, de 1541). Escre-
veu algumas obras, entre elas Natal, Prosa e Verso, Vida Vitorio-
sa, Aprimorando a Escola Dominical, e Consultório Bíblico. Por dez
anos foi missionário (cinco pela JMN; cinco pela JME), além
de dar os primeiros passos para o estabelecimento da Obra
Presbiteriana nas seguintes localidades: Canoas e Sapucia do
Sul, RS; Campinas (em diversos bairros), Pirassununga e Águas
da Prata, SP; Poços de Caldas, MG. É casado com Azená Va-
lim Olivetti, tem três filhos e seis netos. Reside em Águas da
Prata, São Paulo.
W. Gary Crampton recebeu seu título de Bacharel (B.A.)
no Randolph-Macon College, em 1965. Ele obteve seu título de
Mestre em Estudos Bíblicos (M.B.S) no Atlanta School of Biblical
Studies, e o de Mestre em Teologia (Th.M.), Doutor em Teologia
(Th.D.), e Ph.D. no Whitefield Theological Seminary. O Dr. Craptom
é um ministro ordenado na Reformed Presbyterian Church General
Assembly. Atualmente ele vive no estado da Virgínia (EUA) com
sua esposa. Eles têm duas filhas e cinco netos.
Benjamin Breckinridge Warfield, que nasceu em 5
Novembro de 1851, foi um renomado e mundialmente co-
nhecido teólogo que ensinou no Seminário de Princeton por
quase 34 anos, até sua morte em 16 de fevereiro de 1921. Ele
foi o último dos grandes teólogos conservadores que defende-
ram a ortodoxia calvinista da cadeira de teologia no Seminário
Princeton. Após sua educação na Universidade Princeton e no
Seminário Princeton, Warfield viajou na Europa e ensinou o
Novo Testamento no Seminário Western em Allegheny, Pen-

14
AUTORES

silvânia. Ele sucedeu Archibald Alexander Hodge como pro-


fessor de didática e teologia polêmica em Princeton, em 1887.
Warfield escreveu um vasto número de artigos, revisões e mo-
nógrafos para a imprensa popular e para jornais acadêmicos.
Sua erudição era precisa, amplamente abrangente e bem fun-
damentada na literatura científica. Ele foi um dos maiores te-
ólogos acadêmicos da virada do século, e sua obra permanece
viva hoje entre os protestantes teologicamente conservadores
que compartilham de suas atitudes para com a Escritura.
Franklin Ferreira é ministro batista, graduado em teo-
logia pela Escola Superior de Teologia da Universidade Pres-
biteriana Mackenzie e mestre em teologia pelo Seminário Te-
ológico Batista do Sul do Brasil. Serve como editor das obras
de João Calvino na Editora Fiel, em São José dos Campos,
São Paulo.
Rousas John Rushdoony (1916-2001), americano fi-
lho de imigrantes armênios, foi um famoso filósofo, teólogo
e apologeta da fé cristã, tendo escrito mais de trinta livros. Ele
obteve o seu título de Bacharel e Mestre na Universidade da
Califórnia e recebeu seu treinamento teológico na Pacific School
of Religion. Um ministro ordenado, foi missionário durante oito
anos e meio numa reserva indígena distante, entre os índios
Paiute e Shoshone, bem como pastor de duas igrejas na Cali-
fórnia. Dr. Rushdoony foi o fundador da Chalcedon Foundation
em 1965, e seu presidente até 2001, ano de sua morte. Seus es-
critos no Chalcedon Report e seus inúmeros livros têm produzido
uma geração de crentes ativos na transformação do mundo
para a glória de Jesus Cristo.
Mark Rousas Rushdoony, filho de Rousas John
Rushdoony, é o presidente da Chalcedon Foundation desde a
morte do seu pai. É também presidente da Ross House Books,
bem como editor-chefe da Faith for All of Life (antiga Chalcedon
Report) e outras publicações da Chalcedon.

15
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

Hermisten M. P. Costa é ministro da Igreja Presbiteria-


na do Brasil e mestre e doutor em Ciências da Religião. Atua
como Diretor da Escola Superior de Teologia da Universidade
Presbiteriana Mackenzie. É professor e pesquisador do PPG-
CR (Mackenzie), professor de Teologia Sistemática e Teologia
Contemporânea do Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel
da Conceição e integra a equipe de pastores da Igreja Presbite-
riana de São Bernardo do Campo.
Roger Schultz recebeu seu título de Bacharel (B.A.) na
Bemidji State University, o de Mestre (M.A.) na Trinity Evan-
gelical Divinity School (Th.D.), e Ph.D. na Universidade do
Arkansas. O Dr. Schultz é Deão da Faculdade de Artes e Ci-
ências na Liberty University, e ensina História Eclesiástica no
Christ College. Seus ensaios e artigos têm aparecido em inúmeras
revistas, dentre elas Banner of Truth; Faith for All of Life; Fides et
Historia; Chalcedon Report; Contra Mundum e The Journal of Chris-
tian Reconstruction. Schultz e sua esposa têm tem nove filhos e
dois netos.
Solano Portela é presbítero da Igreja Presbiteriana do
Brasil (IPB), presidente da Junta de Educação Teológica da
IPB, presidente do Conselho Deliberativo da Associação In-
ternacional de Escolas Cristãs (ACSI), curador da Fundação
Educacional Presbiteriana e ex-superintendente de Educação
Básica do Instituto Presbiteriano Mackenzie. Fez o Mestrado
em Teologia no Bíblical Theological Seminary, Hatfield, PA,
EUA. É palestrante convidado em cursos do CPAJ, em progra-
ma de pós-graduação lato sensu da Escola Superior de Teologia
(Universidade Presbiteriana Mackenzie) e autor de livros e ar-
tigos sobre temas pedagógicos.

16
“A tarefa dos mestres consiste em preservar e propagar as sãs doutrinas
para que a pureza da religião permaneça na Igreja.”

J. Calvino
CRONOLOGIA

CRONOLOGIA DOS
EVENTOS IMPORTANTES
NA VIDA DE JOÃO CALVINO
15091564

MARCUS SERVEN

SEUS PRIMEIROS ANOS: NASCIMENTO E PREPARAÇÃO


(1509-1531)
• 1509 — Nasce em 10 de julho de 1509, em Noyon,
França (segundo de seis filhos)
• 1513 — A mãe de João, Jeanne, morre e seu pai casa de
novo (as datas exatas são incertas)
• 1521 — Em 19 de maio recebe benefício do altor de
Gesine na catedral de Noyon
• 1523 — Enviado por seu pai em agosto para estudar na
Universidade de Paris
• 1528 — Termina o Bacharel em Artes no Collège de Mon-
taigu, no começo do ano
• 1528 — Enviado por seu pai à Universidade de Orleans
para estudar Direito

19
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

• 1529 — Muda-se para a Universidade de Bourges para


estudar direito aos pés de Alciat
• 1531 — Em 26 de maio seu pai morre, tornando possí-
vel seu retorno à Paris para estudar teologia

EM PARIS: SEU MOMENTO DECISIVO TEOLÓGICO


(1531-1533)
• 1531 — Estuda no Collège de France grego, hebraico e
teologia
• 1532 — Retorna brevemente em maio para Orleans e se
gradua com o Juris Doctorate
• 1532 — Possivelmente experimenta uma “conversão
súbita” (a data exata é incerta)
• 1533 — Em 1 de novembro, Nicolas Cop prega o dis-
curso inaugural como Reitor e foge de Paris
• 1533 — Calvino é associado com o fugitivo Cop e foge
de Paris

VIAJANDO: NA ESTRADA COMO FUGITIVO (1534)


• 1534 — O Wartburg1 de Calvino: a biblioteca de Louis
du Tillet em Angouleme — durante os meses de inver-
no ele lança os fundamentos para as Institutas da Religião
Cristã
• 1534 — Em 4 de maio ele retornar para Noyon e abre
mão dos seus benefícios, rompendo formalmente com
o Catolicismo Romano (preso por um breve tempo?)
• 1534 — “Questão dos Cartazes”; nas noites de 17-18 de
outubro, com posterior perseguição

1 Castelo onde Lutero se refugiou. [N. do E.]

20
CRONOLOGIA

EM BASILÉIA: ESCREVENDO A IMORTAL INSTITUTAS


(1535-1536)
• 1535 — Em janeiro ele está morando a salvo na protes-
tante Basileia com Oswald Myconius
• 1536 — Conduzido por Guillame Farel, em 21 de mar-
ço. Genebra decide-se pela Reforma
• 1536 — Em março publica Institutas da Religião Cristã na
Basileia

EM GENEBRA: A PRIMEIRA REFORMA


(1536-1538)
• 1536 — Calvino muda de direção e chega até Genebra
em julho; ele planeja passar apenas uma noite, mas é
fortemente persuadido por Guillame Farel para perma-
necer na protestante Genebra como um cooperador
• 1536 — Em 5 de setembro é assalariado como um “sa-
carum literarum doctor” pelo Conselho da Cidade
• 1536 — Em 10 de novembro a Confissão de Genebra é
adotada pelo Concílio da Cidade
• 1537 — Em janeiro uma Declaração Protestante da Fé é
apresentada ao Concílio da Cidade
• 1538 — Após muita dissensão, Calvino, Farel e Coralt
são banidos em 25 de abril

EM ESTRASBURGO: PASTOR, PROFESSOR, ESCRITOR


(1538-1541)
• 1538 — Na primavera ele foge, passando por Berne,
Zurique, e finalmente se estabelece em Estrasburgo
• 1539 — Réplica à carta do Bispo Jacopo Sadolet de Ge-
nebra, em agosto

21
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

• 1540 — Em março publica Comentário sobre a Epístola aos


Romanos em Estrasburgo
• 1540 — Em 6 de agosto se casa com a viúva Idelette de
Bure

DE VOLTA A GENEBRA: OS ANOS DE LUTA (1541-1548)


• 1541 — Após muitas tentativas de diálogo, Calvino re-
torna a Genebra em 13 de setembro
• 1541 — Em 20 de novembro as “Ordannances eccle-
siastiques” são estabelecidas em Genebra
• 1542 — Nascimento e morte (20 de julho) do filho de
Calvino e Idelette,
• Jacques
• 1543 — O estabelecimento dos “Libertinos” (enfants de
Geneve – crianças de Genebra) em Genebra
• 1543 — Praga em Genebra; o Concílio da Cidade vota
em livrar Calvino do “dever da praga”
• 1543 — Em dezembro levanta-se um conflito com Se-
bastian Castellio sobre suas qualificações para o minis-
tério em Genebra — ele não é aceito e deixa Genebra
• 1544 —Em 30 de maio Sebastian Castellio retorna e in-
terrompe a Congregação (o estudo semanal da Bíblia com
o Pastor) com a questão das qualificações ministeriais
• 1545 — Em 8 de abril, Pierre Ameaux é sentenciado ao
arrependimento público por difamar Calvino
• 1546 — Em 24 de janeiro, publica Comentário sobre a
Epístola de 1 Coríntios em Genebra
• 1546 — Em fevereiro, Michael Servetus inicia corres-
pondência com João Calvino sobre vários assuntos

22
CRONOLOGIA

teológicos — mais tarde impressos num livro herético


(1553)
• 1546 — Problemas com a esposa de Ami Perrin sobre
dança em público
• 1546 — Em 1 de agosto publica Comentário sobre 2 Corín-
tios em Genebra
• 1547 — Em 27 de junho uma carta ameaçadora foi en-
contrada pregada no púlpito de St. Pierre
• 1547 — Após confissão, o autor culpado, Jacques Gruet,
é decapitado em 26 de julho
• 1548 — Em 1 de fevereiro publica Comentário sobre as
Epístolas de Gálatas, Efésios, Filipenses e Colossenses em Ge-
nebra
• 1548 — Em 25 de julho publica Comentário sobre as Epís-
tolas de 1 Timóteo e 2 Timóteo

NO CRISOL: PROVAS SEVERAS EM GENEBRA (1549-1555)


• 1549 — Ami Perrin, líder dos Libertinos, é escolhido
como o primeiro Síndico em fevereiro
• 1549 — Em 29 de março a esposa de Calvino, Idelette,
morre após uma breve enfermidade
• 1550 — Publica Institutas da Religião Cristã (4ª edição) em
Genebra
• 1553 — Em janeiro, Christianismi restitutio, de Michael
Servetus, é impresso anonimamente
• 1553 — Michael Servetus comparece ao culto em Ge-
nebra em 13 de agosto e é preso
• 1553 — Em 3 de setembro uma crise na Ceia do Senhor
é evitada por pouco, quando Calvino recusa firmemente
servir alguém que tenha sido excomungado

23
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

• 1553 — Michael Servetus é executado na fogueira em


Genebra, em 27 de outubro
• 1555 — Em 24 de janeiro o Concílio da Cidade adota
as Ordannances ecclesiastiques
• 1555 — Um motim público instigado pelos “Liberti-
nos” em 16 de maio falha, e os principais líderes são
presos ou fogem da cidade

EM GENEBRA: OS ANOS DE TRIUNFO (1555-1564)


• 1555 — Em 1 de agosto publica Comentário sobre os Evan-
gelhos Sinóticos em Genebra
• 1557 — Em 22 de julho publica Comentário sobre os Sal-
mos em Genebra
• 1559 — Fundação da Academia de Genebra, 5 de ju-
nho, com Theodore Beza como Reitor
• 1559 — Em 1 de agosto Calvino publica Institutas da
Religião Cristã (5ª edição)
• 1560 — Publicação da Bíblia de Genebra com notas escri-
tas sob a supervisão de Calvino
• 1564 — A última aparição de Calvino no púlpito da
Catedral de St. Pierre, em 6 de fevereiro
• 1564 — Morte de João Calvino em Genebra, 27 de
maio
• 1564 — Theodore Beza escreve Vida de Calvino e postu-
mamente publica o Comentário sobre Josué de Calvino

24
“Os tempos estão nas mãos e à disposição de Deus, de modo que devemos
crer que tudo é feito na ordem prefixada e no tempo predeterminado.”

J. Calvino
CAPÍTULO 1

CARTA DE
UM FÃ A CALVINO

JAMES I. PACKER

Caro João,
Esta é a carta de um fã, nua e sem pudor, uma que eu há
muito precisava escrever, mesmo que por razões óbvias eu não
a possa remeter a você. Mas reconhecer publicamente as pró-
prias dívidas é bom para a alma, e quando alguém é um mestre
de teologia é bom para a igreja também. Não sei porque, mas
os cristãos que eu encontro dão a impressão de pensar que os
teólogos que ensinam surgem totalmente formados do útero
e trabalham isolados um do outro – daí o “eu sou de Calvi-
no” / “eu sou de Finney” / “eu sou de Pannenberg”, o que
Paulo decerto condena como puro corintianismo. Espero que
ao declarar a minha dívida eu possa reduzir a possibilidade do
mundo ou da igreja algum dia ser importunada pelos “eu sou
de Packer”.
Desejo que as pessoas entendam que os teólogos, como
os outros cristãos, aprendam com os santos na comunhão mul-
ti-geracional que é a igreja, onde mentores, pastores e colegas
nos ajudem a ver coisas que não tínhamos visto antes. Agos-
tinho teve Ambrósio, e você teve Agostinho, Lutero e Bucer,

27
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

e eu tive Owen, Warfield e você. Chegamos onde chegamos


ficando sobre os ombros de outros e nos beneficiando do tra-
balho intelectual deles. Você era claro sobre isso – muito mais
claro do que alguns dos adoradores de heróis que escrevem
livros sobre você! Nenhum teólogo de verdade trabalha como
um exército de um homem só.
Uma coisa que você me ajudou a ver é onde os teólogos
realmente se enquadram. A igreja vive através da potência da
pregação – o mistério do Espírito de Deus aplicando a palavra
de Deus ao povo de Deus por meio do porta-voz de Deus.
Assim, a função primária dos teólogos é garantir, tanto quanto
seres humanos o possam, que a Bíblia seja explicada correta-
mente e aplicada da forma apropriada. Penso que somente dou
a versão em filme de seu pensamento quando conto ao povo
que os teólogos são os encanadores, os técnicos hidráulicos e
os trabalhadores da rede de esgoto – rapazes de bastidores cujo
trabalho crucial, mas não espetacular, é assegurar para os púl-
pitos um fluxo de verdade bíblica pura e incontaminada. Você,
naturalmente, tinha um papel mais amplo; era um pastor-pre-
gador, e educava a outros pastores-pregadores na academia.
Como você conseguia realizar isso tudo, sobretudo naqueles
últimos anos sinistros, quando estava morrendo aos poucos,
eu nunca descobrirei. Porém, é pelo seu entendimento claro da
tarefa dos teólogos que eu, no presente, o admiro.
Uma outra coisa que aprendi de você foi a verdadeira
natureza e a forma ideal do que atualmente denominamos te-
ologia sistemática. As suas Institutas são uma maravilhosa tece-
dura de sabedoria evangélica que modelou para mim a maneira
apostólica de atar e juntar os muitos fios da verdade revelada
acerca da graça de Deus para um mundo pecador. Você pôs
a soberania de Deus, a mediação de Cristo e a ministração do
Espírito diretamente no centro; você estabeleceu a vida de fé e
louvor como a meta; e você não escreveu uma frase especula-

28
CARTA DE UM FÃ A CALVINO

tiva do princípio ao fim de suas 700.000 palavras! Gostaria que


soubesse que há 40 anos possuo as Institutas, que continuo a
achar sabedoria nova em suas páginas em um grau que é abso-
lutamente misterioso, e que sou muito grato.
A forma com que lidava com a predestinação, em parti-
cular, atinge-me como um fulgor não superado. Como Paulo
em Romanos, você a separou da doutrina da providência e a
postergou até que houvesse decifrado o evangelho, como suas
promessas bona-fide e para todos; depois, introduziu a verdade
da eleição e da reprovação, tal como em Romanos 8 e 9, não
para assustar alguém, mas para dar aos crentes tranqüilização,
esperança e vigor. É um tratamento lindamente bíblico e po-
derosamente pastoral.
A ironia é, como espero que você saiba, que no último
século espalhou-se a ideia de que todos os teólogos sérios
organizam tudo em torno de um pensamento de foco único,
e o seu era a predestinação, de modo que perderam vista da
amplidão e balanço bíblicos de você e o retrataram como um
monomaníaco dado à especulação que arrancava as Escrituras
do molde para fazê-la ajustar-se a um esquema seu inventado.
Essa ainda é a sua imagem pública, e biblicistas como você
ainda são chamados de calvinistas de um jeito que sugere que
perderam o fundamento bíblico deles. Essa é a vida! Espero
que você esteja contente por estar fora dela.
Com o mais profundo respeito e gratidão,

J. I. Packer

29
“Sejam quais forem os dons que possuamos, não devemos ensoberbecer-nos
por causa deles, visto que eles nos põem sob as mais profundas obrigações
para com Deus.”

J. Calvino
CAPÍTULO 2

JOÃO CALVINO:
O REFORMADOR SUÍÇO

HERMAN C. HANKO

INTRODUÇÃO
Quando Karl Barth estava preparando uma série de pa-
lestras sobre João Calvino, ele escreveu a um amigo:

Calvino é uma catarata… faltam-me completamente os


recursos, as ventosas, até mesmo para assimilar esse fenô-
meno, isso para não falar sobre a sua apresentação satisfa-
tória. O que recebo é apenas um pequeno e tênue jorro e
o que posso dar em retorno, então, é apenas uma porção
ainda menor desse pequeno jorro. Eu poderia feliz e pro-
veitosamente assentar-me e passar o resto de minha vida
somente com Calvino.
Impossível alguém questionar a asserção de que João Cal-
vino é o maior reformador de todos os tempos. Mais livros
têm sido escritos sobre ele e sua teologia do que sobre qual-
quer outra figura na história da igreja. Todos aqueles que nos
últimos 450 anos têm estimado as doutrinas da graça reivindi-
cam Calvino como seu líder espiritual. E todos os que confes-
sam uma teologia inteiramente bíblica e incorporada em todos

31
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

os grandes credos dos séculos XVI e XVII chamam a teologia


deles de calvinismo. Além das próprias Escrituras Sagradas, há
poucos livros, se os há, que têm exercido a influência nos sécu-
los subseqüentes mais do que as Institutas da Religião Cristã têm
exercido até o presente.
Não obstante, Calvino, depois que iniciou sua vida de
trabalho, jamais se afastou para longe de Genebra, uma cida-
de relativamente pequena na Suíça Francesa. Foi aqui que ele
apareceu em uma noite tempestuosa; foi aqui que ele perma-
neceu, alarmado pela ameaça de William Farel; foi aqui que ele
realizou toda a sua obra. Porém, agora a obra dele circula pelo
globo. A única explicação para isso só pode ser a de que Deus,
mediante Calvino, trazia a reforma à sua igreja sitiada.

CONTEXTO NA SUÍÇA
A parte da Suíça que nos interessa era denominada Su-
íça Francesa, porque fazia fronteira com a França e se falava
ali o francês. Era composta dos cantões de Genebra, Vaud e
Neûchatel. No cantão de Genebra encontrava-se a cidade de
mesmo nome às margens de um lago também chamado Ge-
nebra.
O governo de Genebra exige uma breve explanação, pois
havia de desempenhar um papel considerável na Reforma lá.
Os cidadãos da cidade encontravam-se anualmente na Assem-
bléia Geral para eleger quatro síndicos e um tesoureiro. Os
cidadãos, por seu turno, eram governados por um Pequeno
Conselho de 25 síndicos, o qual incluía os síndicos correntes
e aqueles dos anos anteriores. O Conselho de 60, nomeado
pelo Pequeno Conselho, decidia assuntos políticos de maior
monta. Em 1527 um Conselho de 200 foi adicionado, o qual
incluía o Pequeno Conselho e 175 outros escolhidos por este.
Foi, sobretudo, este último grêmio que proporcionou a Calvi-
no muitos de seus problemas.

32
JOÃO CALVINO: O REFORMADOR SUÍÇO

A Reforma chegara não somente à Alemanha, mas se es-


palhara para outras partes da Europa. Na Suíça, Zuínglio efe-
tuara a maior parte da obra, e, em Genebra, o caminho para
Calvino fora preparado pelo fervoroso e radical reformador,
William Farel.
Berna, ao norte de Neûchatel, juntara-se à Reforma em
1528 e enviou mensageiros à Suíça Francesa para pregar ali o
evangelho. Farel foi o líder, ou seja, uma figura mais poderosa
dificilmente podia ser achada.
Todo o trabalho de Farel foi levado a efeito com grande
esforço e em turbulência. Em 1532 Farel foi expulso da cidade.
Em 1534 regressou e, através de controvérsias e pregações,
conquistou um pouco de descanso para os protestantes que se
converteram sob sua pregação. Contudo, a seu favor estava o
fato de que, por Genebra ser tão pequena, estava tecnicamen-
te sob o governo da Basiléia, e a Basiléia apoiava a Reforma.
Gradualmente os padres, frades e freiras começaram a deixar
a cidade, e a Reforma foi oficialmente estabelecida em 1535 e
1536. Mas a cidade continuava a herdeira do catolicismo roma-
no: um lugar de assustadoras condições morais.

A JUVENTUDE DE CALVINO
Calvino nasceu em 10 de julho de 1509 em Noyon, Fran-
ça, 26 anos após o nascimento de Lutero. Ao passo que esse
nasceu em uma parte da igreja onde se enfatizava a piedade e
a religião, Calvino nasceu em uma parte daquela que tinha em
grande conta educação e cultura. Pouco se sabe de sua mãe;
seu pai era secretário apostólico do bispo de Noyon, mas caiu
em dificuldades financeiras, tornou-se um constrangimento à
igreja e foi excomungado.
Quase desde o princípio Calvino estava destinado ao cle-
ro, e aos doze anos recebeu parte da receita de uma capelania
que o sustentava em seus estudos. Esses, apesar de realizados

33
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

em várias escolas, deram-se principalmente em Paris. Talvez


eles todos possam ser mais bem resumidos pela seguinte des-
crição do trabalho dele no Colégio de Montaigu, uma famo-
sa escola conhecida por sua disciplina austera e sua comida
ruim. Erasmo, que estudou aqui poucos anos antes de Calvino,
queixou-se mais tarde dos ovos estragados que era forçado a
comer no refeitório. Os contínuos problemas de Calvino com
indigestão e insônia provavelmente se derivavam da rígida ali-
mentação e de sua inclinação por estudar até altas horas em
Montaigu. Reza uma lenda posterior que, durante esses anos,
seus colegas de estudo premiaram Calvino com o apelido de
“o caso acusativo”. Embora isso não seja verdade, Beza, em
sua adorável biografia, reconheceu que o jovem estudante era
de fato “um rigoroso censor de todas as coisas imorais em
seus companheiros”. Enquanto seus colegas estavam pinote-
ando nas ruas ou festas turbulentas, Calvino estava ocupado
com as minúcias da lógica nominalista ou com as quaestiones da
teologia escolástica.
De modo geral, Calvino recebeu uma das melhores edu-
cações nas humanidades disponíveis naquela época e emergiu
de sua educação um humanista consumado. Ele tornou a teo-
logia o objeto de seus estudos, mudou para o direito, e depois
retornou à teologia. Em 1532, ainda aparentemente intocado
pela graça, escreveu um comentário a respeito do antigo ensaio
pagão romano de Sêneca, “Sobre a Misericórdia”.

A CONVERSÃO E O TRABALHO INICIAL DE CALVINO


Porém, Deus começara Sua obra em Calvino. Já as pri-
meiras influências algo benéficas vieram de dois mestres, um
de nome Cordier, que mais tarde se tornou um protestante, e o
outro chamado Wolmar, de profissão luterana.
Ao contrário de Lutero, Calvino sempre foi reticente
acerca de si mesmo e de sua conversão. Beza nos relata que o

34
JOÃO CALVINO: O REFORMADOR SUÍÇO

pai de Calvino persuadiu a esse para estudar teologia porque


Calvino “era, por natureza, inclinado [à teologia]; porque mes-
mo com pouca idade era notavelmente religioso, e também um
censor rigoroso de todas as coisas depravadas em seus compa-
nheiros”. Calvino, em uma nota autobiográfica encontrada em
sua carta ao Cardeal Sadoleto, escreveu: “Entretanto, embora eu
haja realizado todas estas coisas (reparação pelas ofensas e fuga
para os santos), ainda que eu tivesse alguns intervalos de sossego,
ainda estava longe da verdadeira paz de consciência; pois, sempre
que eu descia para dentro de mim mesmo, ou alçava minha mente
a ti, o extremo terror se apoderava de mim – terror que nem ex-
piações nem reparações podiam curar.”
Isso soa muito como Lutero.
Calvino chegou a Paris na mesma época em que as ideias
reformadoras estavam alterando o pensamento de muitos.
Em 1533 Nicholas Cop tornou-se reitor da Universidade
de Paris e transmitiu um apelo por reforma em seu discurso
inaugural, o qual alguns alegam que foi preparado pelo pri-
meiro. A perseguição irrompeu quando um texto, fortemente
crítico da massa, foi largamente distribuído em Paris e uma
cópia pregada à porta do palácio. Cop e ele foram forçados
a fugir para salvar suas vidas. E assim Calvino foi trazido ao
ponto onde repudiou à igreja de Roma e escreveu sua primei-
ra obra teológica, por incrível que pareça, um ensaio sobre o
sono da alma.
Por cerca de três anos Calvino perambulou como um
evangelista no sul da França, na Suíça e na Itália. Parte do tem-
po esteve debaixo da proteção da Rainha Margarida de Navar-
ra, irmã do rei da França; parte do tempo esteve em Ferrara da
Itália na corte da Duquesa de Renee; e parte do tempo visitou
a Basiléia, onde entrou em contato com alguns dos reforma-
dores suíços.

35
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

Esses devem ter sido anos de intenso estudo nas Escri-


turas, porque durante esse período Calvino começou sua obra
sobre as Institutas, cuja primeira edição foi publicada em 1536.
Mas, quisesse Calvino ou não, Genebra tinha de ser seu
lar pelo restante de sua vida. Tudo começou quando Calvino, a
caminho da Basiléia, foi forçado a desviar por Genebra. Nesta
cidade ele passou a noite pensando que viria e iria sem ser
observado. Porém, sua presença foi notada e Farel foi infor-
mado dela. Esse, incontinenti, o visitou e lhe implorou para
que ficasse em Genebra e ajudasse com a obra de reforma.
Calvino estava inflexível em sua recusa. Tímido por natureza e
determinado a devotar sua vida ao mundo acadêmico e aos es-
tudos, ele não queria tomar parte na barafunda resultante dos
esforços para tornar Genebra uma cidade devotada à verdade
escriturística. Contudo, depois de invocar do céu maldições so-
bre Calvino caso este não aceitasse, Farel persuadiu-o de que o
lugar desse era, verdadeiramente, na cidade.

PRIMEIRA ESTADIA EM GENEBRA


E assim começou a obra de Calvino nessa cidade. A data
era 6 de setembro de 1536.
A cidade, com os efeitos de muitos séculos debaixo do
catolicismo romano entrelaçados na trama de sua vida, estava
repleta de toda imoralidade e requeria grande labor para tra-
zer seus cidadãos sob o jugo do evangelho. Para realizar isso,
Calvino começou ensinando, convencido de que a instrução
na verdade era a única estrada para a reforma. Ele deu início a
palestras expositivas sobre Paulo e o Novo Testamento, e um
ano mais tarde era ordenado pastor.
Juntos, Farel e Calvino compuseram uma confissão de fé
e regras de disciplina que foram aprovadas pelo Conselho. Na
verdade, este apoiou todos os esforços em prol da reforma na
doutrina, na liturgia e na moral.

36
JOÃO CALVINO: O REFORMADOR SUÍÇO

Contudo, isso não significou que a oposição havia sido


persuadida. Gradualmente os inimigos de Calvino puderam
dispor em ordem suas forças. A oposição deles era, sobretu-
do, contra o catecismo e as leis que foram passadas contrárias
aos pecados predominantes. À medida que ganhavam força,
ganhavam números no Conselho e conseguiam moderar os es-
forços rumo à reforma.
Duas coisas em especial chegaram a um ponto crítico. O
Conselho dos 200 decidiu instruir os reformadores a pratica-
rem a comunhão aberta de sorte que ninguém fosse barrado da
mesa do Senhor. Isso era um golpe de morte na disciplina de
Calvino. A segunda questão foi uma decisão do Conselho de
fazer uso da liturgia bernense no culto. Calvino não objetava
quanto à liturgia utilizada em Berna, porém, objetava vigoro-
samente contra o direito do Conselho de decidir semelhantes
matérias para a Igreja. Nenhuma das duas partes quis ceder e o
resultado foi que o Conselho decidiu expulsar Calvino e Farel
da cidade.

CALVINO EM ESTRASBURGO
Depois de uma breve estadia na Basiléia, Calvino foi para
Estrasburgo, uma cidade no sul da Alemanha onde a reforma
suíça já se havia arraigado. Os três anos que passou nessa ci-
dade foram provavelmente os mais felizes de sua vida. Ele não
precisou combater um Conselho, não precisou batalhar contra
inimigos por toda parte. Ele teve paz e quietude, tempo para
estudar e escrever, oportunidade para efetuar o trabalho nos
campos da liturgia e do governo da igreja.
Calvino foi nomeado para a faculdade da Universidade
na cidade e chamado para ser pastor de uma igreja de refugia-
dos franceses. Ele teve ocasião para se encontrar com teólogos
luteranos e aprofundar seus próprios pontos de vista teoló-
gicos. Trabalhou nas revisões de suas Institutas e desenvolveu

37
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

suas concepções sobre governo eclesiástico, cujos princípios


básicos estão incorporados em nossa própria “Ordem Ecle-
siástica de Dordrecht”. Desenvolveu uma liturgia para a igreja
que incluía uma ordem de culto (muito semelhante à que ainda
usamos), formas litúrgicas, bem como versões dos Salmos.
Esses foram anos produtivos. Calvino ocupou-se com
uma volumosa correspondência com todas as principais figu-
ras da Europa. Ele escreveu várias de suas obras importan-
tes, uma das quais foi sua missiva a Sadoleto. Sadoleto era um
cardeal católico romano que escreveu uma carta ao povo de
Genebra num esforço para os ganhar de volta para Roma. De
certo ponto de vista humano, um trabalho magistral e persu-
asivo. A resposta de Calvino foi sem qualquer amargura ou
rancor contra os genebrenses, mas a mais clara e útil defesa
da reforma que podia ser encontrada em algum lugar. É uma
leitura “obrigatória” a qualquer um que deseje saber por que a
reforma no século XVI era necessária.
Calvino até se casou durante sua permanência em Estras-
burgo. Sua esposa era Idelette de Bure, a viúva de um eminente
anabatista a quem Calvino convertera à fé verdadeira e que
morrera na peste. Ela era a mãe de vários filhos, porém, pobre
e de débil saúde. Calvino tomou a responsabilidade por eles
tanto quanto por ela, todavia, viveu com essa somente nove
anos. Ficou solteiro o resto de sua vida. Com Idelette Calvino
teve um filho que faleceu na infância, uma perda que suportou
pelo resto da vida.

SEGUNDA ESTADIA EM GENEBRA


Porém, os anos felizes em Estrasburgo logo chegaram a
um fim. A situação em Genebra deteriorava-se constantemen-
te. Três partidos estavam se rivalizando pelo poder e a cidade
estava mergulhando na anarquia.

38
JOÃO CALVINO: O REFORMADOR SUÍÇO

Em 1541 pediram formalmente a Calvino que regressas-


se. Estrasburgo tinha relutância em deixá-lo ir. Ele estava até
mais relutante em deixar sua vida feliz ali e aceitar os horrores
de Genebra. Mas, compelido por Deus, retornou ao turbilhão
(termo de Calvino) da contenda e controvérsia, onde perma-
neceu até que a morte o tomasse para a igreja triunfante.
Uma comprovação da estatura do homem foi sua condu-
ta em seu retorno. No primeiro domingo ele entrou no púlpito
de Saint Pierre perante uma enorme multidão agrupada, em
parte para o ouvir outra vez, mas em outra parte para o ouvir
ralhar com seus oponentes e, todo cheio de si, proclamar “eu
vos disse isso”. Contudo, em uma carta a Farel, Calvino conta o
que fez: “Depois de um preâmbulo, retomei a exposição onde
eu havia parado – pelo que eu indiquei que tinha interrompi-
do meu ofício de pregar momentaneamente, não que tivesse
desistido inteiramente”. Nada podia ter sido mais prosaico e,
todavia, mais eficaz. Era como se Calvino reiniciasse seu mi-
nistério com as palavras: “Como eu estava dizendo...”
As lutas com o Conselho não foram por muito tempo,
e os esforços para subjugar a cidade para que o governo de
Cristo se fizesse presente não cessaram até que muitos que
se opunham a Calvino partissem para outros lugares. Seus
inimigos eram detestáveis e não tinham medo de exibir isso.
As pessoas davam a seus cachorros o nome de Calvino, aber-
tamente o insultavam nas ruas, por vezes ameaçavam a vida
dele, perturbavam-no em seus estudos, e juravam fazer mal à
família dele. Calvino suportou a tudo isso pregando, ensinan-
do, escrevendo, levando o jugo do sofrimento de Cristo pela
causa do evangelho. Dinheiro e prazer nada significavam para
ele. Ele repetidamente recusava mais dinheiro oferecido a ele
pelo Conselho. Ele vivia de modo frugal e sem luxo. Esteve
disposto até a vender seus amados livros quando se tornou ne-
cessário. O próprio papa ficou tão impressionado com a total

39
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

falta de cupidez de Calvino que expressou sua firme convicção


de que, se apenas tivesse em seu séquito doze homens como
Calvino, poderia conquistar o mundo.
Calvino pregava regularmente na igreja em Genebra, às
vezes, numa freqüência de cinco vezes por semana; seus ser-
mões foram anotados em escrita cursiva, e muitos publicados.
Resultaram esses em uma literatura muito atilada. Ele estabe-
leceu a famosa Academia em Genebra, a qual virou um centro
de aprendizagem para estudantes de todas as partes da Europa.
Estes, tendo recebido sua educação em Genebra, regressaram
para suas terras para disseminar o evangelho da Reforma ao
próprio povo deles. John Knox estudou em Genebra, e foi ele
quem observou que a mais perfeita escola de Cristo que podia
se encontrar na terra desde os dias dos apóstolos era a cidade de
Genebra. Na Academia ele deu aulas, e seus comentários, ainda
dos melhores, foram os produtos de tais dissertações. Raramen-
te, se é que alguma vez já ocorreu, eu preparo um sermão sem
verificar o que Calvino tinha a dizer sobre um dado texto.

CONTROVÉRSIAS DE CALVINO
Dentro da cidade mesma os conflitos de Calvino se da-
vam com um partido denominado Patriotas. Eram eles os des-
cendentes dos cidadãos originais da cidade, católicos romanos
inflexíveis quando Calvino chegou, e mui dados à vida desco-
medida. Visto que grande número de refugiados, de todas as
partes da Europa, se mudava para Genebra para escaparem
da perseguição, os Patriotas se ressentiam do fato de que o
controle da cidade estava passando para mãos estrangeiras.
Odiavam Calvino e faziam tudo que estava em seu poder para
o destruir. Quando a Igreja finalmente conseguiu excomungar
os líderes por sua licenciosidade e o Conselho aprovou, esses
homens fugiram.
Mas as controvérsias teológicas eram as mais importan-
tes. Calvino escrevia contra o papado para mostrar os males

40
JOÃO CALVINO: O REFORMADOR SUÍÇO

desse e demonstrar quão longe o segundo se apartara das dou-


trinas de Cristo. Ele tinha de lutar para defender as verdades da
trindade e da divindade de Cristo contra muitos que atacavam
tais doutrinas, dentre os quais estava Serveto, queimado na es-
taca em Genebra por blasfêmia.
Contudo, suas controvérsias giravam, sobretudo, acerca
de sua defesa das verdades da graça soberana e particular na
obra de salvação. E, como normalmente se dá, os mais perver-
sos ataques se concentravam contra a doutrina da predestina-
ção soberana. Muitos detestavam esta doutrina e procuravam
destruí-la. Talvez a mais interessante controvérsia sobre tal
doutrina foi com o herege Bolsec. Este interrompeu a prega-
ção de um dos pastores de Genebra para se levantar no meio
do sermão e fazer um discurso contra a verdade da predestina-
ção. O que Bolsec não sabia era que Calvino havia adentrado
o santuário e estava escutando a arenga. Depois que aquele
terminou, Calvino subiu ao púlpito e, em um magistral sermão,
extemporâneo, mas de uma hora de duração, explicou a doutri-
na e a provou pelas Escrituras.
Porém, Bolsec não se dissuadiu e continuou a pelejar pu-
blicamente em Genebra contra a verdade. Foi preso por sua
oposição à Igreja e ao Conselho e foi julgado por heresia e
difamação pública dos ministros. A opinião dos outros refor-
madores e igrejas suíços foi buscada antes dele ser condenado.
Para amarga decepção de Calvino, com a exceção de Farel, ne-
nhuma igreja ou reformador pôde ser achado para endossar
a sua posição por completo e sem transigência. A cautela ou
discordância era a respeito da doutrina de Calvino da predes-
tinação.
Não obstante, esse perseverou e Bolsec foi condenado
e banido da cidade. Da controvérsia emergiu uma das mais
importantes obras de Calvino, “Um Tratado sobre a Eterna
Predestinação de Deus”, uma obra que, junto com uma outra

41
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

acerca da Providência, foi publicada no livro “O Calvinismo


de Calvino”.

MORTE E IMPORTÂNCIA DE CALVINO


Calvino partiu para estar com seu Senhor em 27 de maio
de 1564. Ele sofrera muitas enfermidades antes de sua morte,
na verdade, tantas que é de se admirar como pôde superá-las
todas. Um estudante da história da igreja afirma que Calvino
tinha não menos do que 12 grandes doenças no final de sua
vida, muitas das quais acarretavam dor excruciante.
Em 19 de maio Calvino mandou chamar os pastores de
Genebra e lhes deu adeus. Desde então ficou de cama, embora
continuasse a ditar a um secretário. Farel, agora com 80 anos
de idade, veio para ver seu velho amigo, apesar de Calvino in-
sistir com ele para que não viesse. Passou seus últimos dias
em oração quase contínua e suas orações eram na maior parte
citações dos Salmos. Conquanto a voz dele estivesse definhada
pela asma, seus olhos e mentes continuavam fortes. Via que
todos desejavam vir, mas pedia que antes orassem por ele. À
medida que o sol estava se pondo, por volta das 8:00 caiu em
um calmo sono do qual não se despertou até acordar na glória.
Ele tinha vivido 54 anos, 10 meses e 17 dias.
Calvino é a prova de que Deus emprega homens segun-
do Sua boa vontade. Fraco e tímido por natureza, Calvino foi
lançado na entrada do turbilhão da reforma. Foi um papel que
ele jamais desejou, e o qual ele denominou de sua cruz diária.
Contudo, ele conhecia, como poucos homens conhecem, que
o discipulado é caracterizado exatamente pela negação de si
mesmo, tomando sua cruz, e seguindo o Senhor.
E assim Deus o usou como a figura chave na Reforma e
na história subseqüente da igreja. Ainda que, ressalvada a dou-
trina dos sacramentos, Lutero e Calvino concordassem sobre
todos os pontos da doutrina, aquele foi ordenado por Deus

42
JOÃO CALVINO: O REFORMADOR SUÍÇO

para arrebentar a imponente e aparentemente indestrutível


cidadela do catolicismo romano. O segundo foi divinamente
nomeado para erigir sobre as ruínas uma casa nova, um templo
glorioso, a igreja onde Deus faz Sua habitação.
Calvino era um homem de vontade férrea. Durante quase
toda sua estada em Genebra ele esteve enfermo. Todavia, ven-
ceu todas as suas indisposições e nunca deixou que a moléstia
e a dor interferissem com seu trabalho. Ele trabalhou incessan-
temente com pouco ou nenhum descanso que até mesmo sua
esposa, exasperada, pediu um pouco de tempo para o ver.
Calvino era, acima de tudo, um pregador e expositor das
Sagradas Escrituras. Sua pregação era seu forte e permanece
como de influência sem paralelo até o presente. Sua teologia
estava arraigada na exegese porque a Palavra de Deus era para
ele o padrão de toda verdade e direito. Seus comentários ainda
são os melhores dentre todos os disponíveis, e os modernos
comentários “eruditos”, muitos dos quais realmente vendidos
à alta crítica, mal parecem dignos de nota em comparação.
A influência de Calvino espalhou-se por toda a Europa e
no fim por todo o mundo. E essa influência não foi apenas a
teologia dele, mas também sua liturgia, sua política eclesiástica
e sua piedade. A herança de Calvino é – que isso jamais seja
olvidado – também a herança da piedade genuinamente refor-
mada. Seria bom se fosse escrito um livro somente sobre tal
aspecto da vida de Calvino.
Calvino não era a personalidade dramática que Lutero era.
Nem “abria seu coração”, como este abria. Particularmente na
velhice, Lutero se tornou algo caturra e falava com veemência
muitíssimo demasiada em sua oposição àqueles que discorda-
vam dele sobre a doutrina da Ceia do Senhor. Porém, Calvino
sempre respeitou Lutero pelo grande trabalho que esse fez na
obra de reforma. Dizia a outros, não tão generosos para com o

43
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

segundo, que, mesmo se Lutero o chamasse de diabo, ainda o


honraria como vaso escolhido de Deus.
Porém, ele podia apreciar Lutero pelo que esse fez por-
que a vida de Calvino estava consumida pela glória de Deus.
Seus inimigos denominavam-no um homem intoxicado de
Deus – embriagado de Deus! Que coisa mais maravilhosa se
podia dizer de um homem? O mais profundo princípio de
sua teologia era a glória de Deus e a real essência de tudo que
escreveu era essa grande verdade. Mas era também a vida de
Calvino. Ele viveu e morreu tendo a glória de Deus como seu
mais profundo desejo. Ele é um nessa nuvem de testemunhas
cuja voz brada a nós pelos corredores do tempo.

44
“Onde a esposa é uma auxiliadora de seu esposo, fazendo sua vida feliz,
então está em concordância com a intenção de Deus. Porque Deus assim o
ordenou no princípio, ou seja, que o homem sem esposa é apenas a metade
de homem, por assim dizer, e se sente carente do apoio que pessoalmente
necessita; e a esposa é, por assim dizer, o complemento do homem.”

J. Calvino
CAPÍTULO 3

A ESPOSA DE CALVINO

G. DE FELICE

O seguinte relato sobre a esposa de Calvino, bem como


da vida doméstica e da índole desse, será a um só tempo inte-
ressante e corroborará mui cabalmente nossa opinião acerca da
personalidade dele. Tal descrição é fornecida pelas palavras de
Monsieur G. de Felice e tirada do New York Observer, do qual é
o correspondente qualificado e sempre digno de interesse.

IDELETTE DE BURRE

A ESPOSA DE CALVINO

Observações Preliminares — Calvino banido de Genebra e esta-


belecido em Estrasburgo – Traços da Personalidade dele – Vários
Planos de Casamento — Idelette De Bure — Nota Biográfica – A
Cerimônia de Casamento – A Viagem de Calvino – O Regresso
dele a Genebra.

Em minha carta sobre os dias religiosos de Paris eu disse


que o Sr. Jules Bonnet, um distinto escritor, o qual despende-

47
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

ra vários anos colecionando a correspondência manuscrita de


Calvino, tinha lido, no encontro da Sociedade em prol da História
do Protestantismo Francês, uma nota sobre Idelette De Bure, a esposa
do grande Reformador. O trabalho tem sido publicado desde
então, e fico feliz em comunicar aos vossos leitores um esboço
dele, acrescendo alguns fatos obtidos de outras fontes.
Idelette de Bure pode ser um nome novo mesmo para os
bem informados teólogos, os quais estudam cuidadosamente
os anais da Reforma. Humildemente confesso que, de minha
parte, dificilmente lia aqui e ali três ou quatro linhas sobre a
mulher de Calvino, e nada conhecia da vida doméstica dele.
Provavelmente existe a mesma ignorância na maioria daqueles
que põem os olhos em minha carta. O Sr. Jules Bonnet presta,
pois, um real e importante serviço aos numerosos amigos do
Reformador genebrino: tal apontamento sobre esse é uma res-
surreição histórica.
Da esposa de Lutero todos ouviram – aquela Catarina de
Bora, que deixou um convento de freiras para entrar no sa-
grado estado matrimonial. O Reformador alemão alude com
frequência à personalidade, hábitos e opiniões de sua cara Katy,
como ele a chamava. Ele nos revela, sob as diferentes atitudes
dela, essa mulher boa e de coração simples, a qual era de pouca
cultura intelectual, porém, de piedade sincera, fazendo-nos fi-
car minuciosamente familiarizados com a vida doméstica dele.
Choramos com ele sobre o túmulo de sua Magdalen; ouvimos
suas conversas com o filho, a quem fala dos gozos do Paraíso
em termos poéticos. Em uma palavra, a casa de Lutero é deixa-
da aberta, e a posteridade vê a doce face de Catarina de Bora,
desenhada pela pena do ilustre Lucas Kranach, quase tão nitida-
mente quanto a de Lutero. Por que não se dá o mesmo com
Calvino e sua mulher? Por que o santuário doméstico deles é
tão pouco conhecido?
A principal razão encontra-se na acentuada diferença en-
tre os dois grandes fundadores do protestantismo. Lutero, o fiel

48
A ESPOSA DE CALVINO

representante do gênero alemão ou saxão, amava a vida caseira,


e atribuía valor aos menores incidentes dessa; ele era afetuoso,
sempre pronto a introduzir seus amigos às alegrias e pesares de
seu lar, e tinha prazer em compartilhar com sua esposa e filhos
todas as suas emoções. Calvino também tinha, como veremos,
um coração amoroso, capaz de fortes afetos. Contudo, sua dis-
posição natural era reservada e austera. Ele teria considerado
como uma fraqueza, talvez um ato de orgulho culpável, atrair
atenção frequente para si, para seus sentimentos e para seus
interesses pessoais. Ele evitava expressões de sentimento ca-
loroso. “Sua alma, absorta pelas trágicas emoções da luta que
susteve em Genebra e pelos labores de seu vasto propagandis-
mo no exterior”, diz o Sr. Bonnet, “raramente se revelava, e
isso apenas em palavras breves: as quais são os relâmpagos da
sensibilidade moral, desvendando profundezas desconhecidas,
mas sem as mostrar totalmente à nossa vista”. Não admira que
Idelette de Bure permaneceu meio escondida, mais ainda por
ter vivido somente alguns anos, não restando filho algum do
casamento deles. Todavia, entre as cartas de Calvino acham-se
interessantes notas sobre tal mulher, a qual decerto era digna
do benemérito homem que lhe ofereceu a mão.
Durante a juventude, Calvino não havia pensado em con-
trair laços matrimoniais: ele deveras não podia se casar. Caçado
por perseguidores implacáveis, sem casa na qual repousar sua
cabeça; forçado a se esconder por vezes em Angouleme, por
vezes em Bale; pregando de lugar em lugar, e celebrando a
santa ceia com alguns amigos nos interiores dos bosques ou
em cavernas; além disso, ocupava-se dia e noite em compor
seu livro sobre as Institutas da Religião Cristã, a qual tinha por fito
pleitear a causa de seus irmãos perante o Rei Francisco I, con-
denados a medonhas penas; como podia ele desejar se casar?
Teria agido de modo sábio ao agravar seus males por meio dos
cuidados domésticos, convidando uma esposa para suportar
meio a meio um tão pesado fardo?

49
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

Em agosto de 1536, Calvino tornou-se mestre e pastor


em Genebra. Ele havia adquirido uma casa; contudo, suas la-
butas ainda eram grandes. Tinha que lutar contra os homens
denominados libertinos, os quais, após quebrarem a canga do
papismo, entregaram-se à mais crassa licenciosidade. Eles viam
a Reforma como licença para desrespeitar todas as leis huma-
nas e divinas. Esses libertinos ocupavam altas funções públicas
em Genebra. Estavam nos conselhos de Estado e tinham atrás
de si uma desregrada população. Calvino percebia que os pre-
ciosos interesses da fé evangélica estavam em risco. Ele erguia
sua voz com invencível energia contra os libertinos, recusando
recebê-los em sua santa mesa, expondo seu sangue, sua vida,
para executar seu dever. Com certeza, esse não era o momento
para procurar uma esposa.
Ele foi banido de Genebra pelo partido libertino em abril
de 1538; e, tendo sido convidado pelo piedoso Bucer para vir a
Estrasburgo, foi designado pastor de uma paróquia de refugia-
dos franceses. Pela primeira vez, então, o casamento parece ter
ocupado seus pensamentos; ou melhor, seus amigos, particu-
larmente Farel, tentavam achar uma companheira sábia e boa
para ele.
Em uma carta dirigida a Farel em maio de 1539, Calvino
(que tinha então trinta anos de idade) delineia seu ideal de es-
posa: “Lembra-te”, diz ao seu amigo, “do que eu sobremodo
desejo encontrar em uma esposa. Tu sabes que eu não sou
do número daqueles amantes irrefletidos que adoram até os
erros da mulher que os cativa. Somente posso me compra-
zer com uma senhora que seja doce, casta, modesta, frugal,
paciente e que cuide da saúde do marido. Essa da qual me fa-
laste possui tais qualidades? Venha com ela... Caso contrário,
não falemos mais”.
Uma outra carta para o mesmo pastor, Farel, datada de
6 de fevereiro de 1540, mostra-nos Calvino habilmente se es-

50
A ESPOSA DE CALVINO

quivando de uma proposta de matrimônio. “Foi indicada para


mim”, diz, “uma jovem senhora rica, de linhagem nobre e cujo
dote ultrapassa a tudo que eu possa desejar. Não obstante, dois
motivos me induzem a declinar: ela não conhece nossa língua
(era da Alsácia, uma província alemã), e imagino que seja por
demais orgulhosa de seu nascimento e de sua educação. O ir-
mão dela, dotado de invulgar piedade e cegado por sua amiza-
de para comigo, a ponto mesmo de negligenciar o próprio inte-
resse, insta-me a escolhê-la, e os desejos da esposa dele apóiam
o seu. O que eu posso fazer? Eu teria sido forçado a capitular
caso o Senhor não tivesse me tirado de meu embaraço. Repli-
quei que consentiria se a senhora, de sua parte, prometesse
aprender a língua francesa. Ela pediu tempo para refletir...”
O plano foi abandonado. Calvino havia previsto isso, e se
congratulava por não esposar uma senhora que, com grande
fortuna, estava longe de possuir o requisito simplicidade e hu-
mildade. Tal correspondência confirma o que a história relata
sobre a personalidade de Calvino. Ele era sumamente desinte-
ressado. Um largo dote era aos seus olhos uma coisa pequena.
De que importância lhe era ter uma mulher rica se ela não
fosse uma cristã? Esse é o mesmo homem que rejeitou todas as
ofertas pecuniárias do soberano conselho de Genebra, e quase
não deixou dinheiro para pagar as despesas de seu funeral – a
reles quantia de cinquenta coroas de prata.
Uma segunda proposta de matrimônio foi feita. A senhora
em questão não possuía fortuna alguma, mas distinguia-se por
suas virtudes. “O louvor dela está em todas as bocas”, escreve
Calvino a Farel em junho de 1540. Desse modo, Calvino pediu
a seu irmão, Antônio Calvino, em conexão com outros amigos,
para fazer pedido de casamento. Infelizmente, ele foi informado
algum tempo depois de algo desfavorável acerca da índole da jo-
vem senhora; ele retirou sua proposta, e escreveu com tristeza ao
colega dele: “Não encontrei ainda uma companheira; não é mais

51
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

sábio abandonar minha busca?” Assim, ficou desencorajado por


essas tentativas infrutíferas, aparentando desistir da perspectiva
de se casar, como se as doçuras dessa união não fossem feitas
para ele. Deve-se observar que, conquanto possuísse ele tal fir-
meza viril nas questões relativas à fé cristã, e conquanto fosse
capaz de dar a própria vida pela causa da verdade, Calvino era
tímido e reservado nas pequenas coisas da vida ordinária. Ele diz
em certo lugar: “Eu sou de disposição acanhada e tímida; sem-
pre gostei de quietude, e procuro o retiro. Sei que por natureza
sou tímido, fraco e pusilânime”.
Ele preferia manter-se celibatário, para que não fosse mal
recebido pelas jovens senhoras a quem se dirigisse ou para que
não fizesse uma má escolha. Um incidente inesperado alterou
sua resolução. Havia em Estrasburgo uma piedosa senhora cujo
nome era Idelette de Bure. Ela era uma viúva, e passava todo seu
tempo educando os filhos que tivera de seu primeiro marido,
John Storder, da seita anabatista. Ela nasceu em uma pequena ci-
dade de Guelders, na Holanda. Ele chegou à capital da Alsácia
por ser um lugar de refúgio para as vítimas de perseguição. O
erudito Dr. Bucer conhecia Idelette de Bure, e aparentemente
foi ele quem a recomendou à atenção de Calvino.
Exteriormente, não havia nessa mulher nada de muito
atraente. Ela estava sobrecarregada com vários filhos de um
primeiro matrimônio; não tinha fortuna alguma; estava vestida
de luto; sua pessoa não era particularmente graciosa. Para Cal-
vino, porém, ela possuía o melhor dos tesouros, uma fé viva e
provada, uma consciência reta, bem como virtudes atraentes e
fortes. Segundo disse a respeito dela posteriormente, ela teria
tido a coragem de com ele aguentar o exílio, a pobreza e a
própria morte em atestação da verdade. Essas eram as nobres
qualidades que conquistaram o Reformador.
A cerimônia nupcial realizou-se em setembro de 1540.
Calvino tinha então trinta e um anos e dois meses. Ele não foi

52
A ESPOSA DE CALVINO

constrangido pela paixão juvenil, mas obedeceu à voz da natu-


reza, da razão e do dever. Os papistas que amiúde vituperam
os Reformadores estão enganados. Os dois, Calvino e Lutero,
casaram-se em idade madura: fizeram o que deveriam fazer e
nada mais.
Nenhuma pompa nas bodas de Calvino, nenhuma ale-
gria inoportuna. Tudo foi calmo e solene, como adequado à
piedade e circunspecção do par unido em casamento. Os con-
sistórios de Neuchatel e de Valengia, na Suíça, enviaram dele-
gados a Estrasburgo para comparecerem a esse matrimônio;
uma indicação contundente da amizade e do respeito deles por
Calvino.
Nem mesmo se passaram as núpcias quando o líder da
Reforma francesa foi constrangido a deixar os encantos dessa
união doméstica. Uma dieta em Worms foi convocada, na qual
as questões mais importantes, relativas às futuras condições do
protestantismo, tinham de ser discutidas. Naturalmente, Cal-
vino foi chamado para tomar parte delas. Ele foi a Worms,
depois a Ratisbonne, tentando concluir uma paz entre os dois
ramos da Reforma. Durante sua ausência confiou sua esposa
ao cuidado de Antônio Calvino e da nobre família de Richebourg,
onde executou por algum tempo a função de preceptor. Para
grande preocupação sua, a peste irrompeu em Estrasburgo e
penetrou na casa onde Idelette de Bure vivia. Louis de Riche-
bourg e outro ocupante da casa da família haviam caído presas
da doença. Calvino tremeu por causa de sua querida esposa.
“Tento”, escreve, “resistir à minha dor – recorro à oração e
às santas meditações para que não perca toda a coragem”.
Durante a residência dele em Ratisbonne, onde os interesses
fundamentais das novas igrejas eram discutidos, Calvino rece-
beu uma delegação de Genebra, implorando-lhe ardentemente
para retornar àquela cidade. O partido libertino havia divulga-
do seus detestáveis desígnios. A vontade forte e o poder mo-

53
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

ral de Calvino eram necessários para restaurar a ordem. Ele


resistiu a tal chamado por um longo período. Sua hesitação,
suas lágrimas, sua angústia atestavam que ele via com certo
horror o pesado fardo que foi posto sobre si. Por derradeiro
ele se rendeu, dizendo: “Não o meu querer, Ó Deus, mas o
teu seja feito! Ofereço meu coração como sacrifício à tua santa
vontade!” E no dia 13 de setembro de 1541 ele voltou, depois
de um exílio de três anos da cidade de Genebra, cujos aspecto
e destinos ele mudou.
Sou, etc.,(?)

G. DE F.

Idelette de Bure estabelecida em Genebra — Suas Virtudes Cristãs


— Aflições Domésticas — Sua frequente Moléstia — Últimos
Momentos — Morte — Tristeza de Calvino — Conclusão.

Antes de fixar residência definitiva em Genebra, Calvino


determinara-se a ir lá e examinar por si mesmo o verdadeiro
estado de coisas. Foi sozinho, deixando sua mulher em Estras-
burgo. Mas mal adentrou as paredes da cidade e os genebrinos,
temendo mais uma vez perderem um homem de quem perma-
neciam em tão grande necessidade, tomaram todas as medidas
apropriadas para o deterem. Os conselhos públicos decidiram
que um mensageiro de Estado seria enviado a Idelette em Estras-
burgo, trazendo-a com os membros da família dela (esses foram os
termos da resolução) para a casa especificada para o Reforma-
dor. Dessa maneira, essa humilde mulher cristã recebeu honras
decretadas a uma princesa de sangue real, tendo um mensagei-
ro de Estado para guiá-la e conduzi-la à nova moradia.
Investigações cuidadosas recentes foram publicadas a
respeito dessa casa que os magistrados deram para Calvino
utilizar depois de seu regresso do exílio. Ela pertencera antes
a uma abadia, e estava situada em uma localização agradável

54
A ESPOSA DE CALVINO

que dava acesso à extensa paisagem das risonhas margens do


Lago Leman e ao majestoso anfiteatro dos Alpes. É notável
que essa casa esteja agora novamente nas mãos dos católicos
romanos, os quais a converteram em uma instituição de ca-
ridade, sob a proteção de São Vicente de Paula. A despeito
das honras que foram conferidas pelos conselhos políticos
de Genebra, Idelette de Bure não tinha ambição de desem-
penhar um papel brilhante na sociedade. Sempre modesta e
reservada, praticando as virtudes apropriadas ao seu sexo, e
evitando o burburinho e a pompa com tanta solicitude quan-
to as outras mulheres os buscam, consagrava os dias dela às
obrigações de sua piedosa vocação. Sua correspondência pri-
vada com Calvino – nas raras ocasiões em que ele menciona
sua esposa – faz-nos vê-la sob uma posição de muito engaja-
mento. Ela visitava os pobres, consolava os aflitos e recebia
com hospitalidade os numerosos estranhos que chegavam
batendo à porta do Reformador. Com efeito, todos reconhe-
ciam nela a pia mulher de quem se diz nas Escrituras ter “um
espírito manso e quieto, que é precioso diante de Deus” e digna de ser
louvada para sempre por suas obras.
Idelette de Bure devotava-se particularmente ao cuidado
do marido. Exaurido por seus constantes labores, Calvino com
frequência ficava doente; e tratando rudemente seu corpo, se-
gundo o exemplo de Paulo, persistia em meio aos sofrimentos
corporais para desempenhar os múltiplos deveres de seu mis-
ter. Então sua mulher vinha e, ternamente, lhe recomendava
repousar um pouco e velar em seu travesseiro quando a doen-
ça dele havia assumido um caráter alarmante. Ademais (e isso
surpreenderá o leitor) Calvino tinha às vezes, à semelhança dos
homens normais, sentimentos de desânimo; era propenso à
depressão. “Por vezes”, ele mesmo diz, “embora eu esteja bem
no corpo, fico deprimido com tristeza, o que me impede de fa-
zer qualquer coisa, e tenho vergonha de viver tão inutilmente”.
Em tais momentos de melancolia, quando o heróico Refor-

55
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

mador parecia, apesar de sua energia e atividade incomparável,


afundar sob o peso de nossas enfermidades comuns, Idelette
de Bure estava por perto, com palavras ternas e encorajadoras,
as quais somente o coração de mulher pode achar; e a mão
dela, tão débil, mas tão bem-vinda e tão afeiçoada, recobrava
o gigante da Reforma, o qual fazia o Papa e os reis tremerem
em seus tronos! Ó, o precioso apoio e o poder mágico de uma
esposa religiosa, atenta e carinhosa!
Quem pode descrever a salutar influência que a humilde
Idelette de Bure exerceu sobre o Reformador? Calvino, como
observa o Sr. Jules Bonnet, sofria com frequência por causa da
oposição que encontrava, pois os homens com relutância se
submetem aos desígnios do gênio. “Quão amiúde”, acrescenta
o biógrafo, “nesses anos de luta e de secretas fraquezas que
a correspondência dele revela, aquietava-se diante da mulher
corajosa e doce que não transigia com a obrigação! Quantas
vezes, talvez, ele se abrandou e se acalmou com uma daquelas
palavras que provinham do coração!... E depois, quando os
dias mais sombrios chegavam, e a porfia de opiniões evocou
Bolsec, Michel Servetus, Gentilis, (Idelette de Bure não mais estava
viva) quem poderá dizer o quanto faltou ao Reformador o con-
selho e a doce influência dessa mulher?”
Retornando à nossa narrativa. O maior prazer de Idelette
era escutar as santas exortações de Farel, Pierre Viret e Theodore
de Bèze, os quais muitas vezes se sentavam à hospitaleira mesa
de seu ilustre chefe, sentindo prazer em renovar a coragem em
conversa com ele. Algumas vezes – mas raramente – ela acom-
panhava o marido em suas caminhadas a Cologny, a Belle-Rive
nas encantadoras margens do Lago Leman. Em outros tempos,
a fim de repousar das fadigas, ou quando Calvino era chamado
para sair e tratar dos negócios das Igrejas Reformadas, Idelette
ia e passava alguns dias em Lausanne com a esposa de Viret.
Vemo-la nessa família cristã em 1545 e 1548, tendo cuidado
para não dar trabalho a seus anfitriões, e incomodada por não

56
A ESPOSA DE CALVINO

lhes poder prestar alguns bons serviços em troca daqueles que


eles lhe demonstravam.
Amargas aflições domésticas sobrevieram a Calvino e a
sua mulher. No segundo ano do casamento deles, no mês de
julho de 1542, Idelette teve um filho. Mas, ai! Essa criança,
por quem haviam devotamente dado graças a Deus e ofereci-
do tão ferventes orações, foi logo tirada deles pela morte. As
igrejas de Genebra e Lausanne deram aos pais demonstrações
de pêsames, débil mitigação de uma tão pesada prova! É mais
fácil imaginar do que expressar o pesar de um coração de mãe.
Calvino nos deixa ver o sofrimento dele e de sua companheira
em uma carta de 10 de agosto de 1542 a Pierre Viret: “Saú-
da a todos os nossos irmãos”, diz ele, “saúda também a tua
esposa, a quem a minha apresenta seus agradecimentos por
suas consolações ternas e piedosas... Ela gostaria de responder
a elas de próprio punho, porém, sequer tem força para ditar
algumas palavras. O Senhor nos desferiu um doloroso golpe
ao tirar de nós nosso filho; mas ele é nosso Pai, e sabe o que é
adequado para seus filhos”. A afeição paternal e a resignação
cristã são ambas mostradas nas cartas de Calvino nesse tempo.
Em 1544, uma nova prova do tipo afligiu os corações desses
pais. Uma filha lhes nasceu; ela viveu apenas uns poucos dias,
como percebemos em uma carta dirigida ao pastor Viret em
1544. Novamente, um terceiro filho lhes foi tomado. Idelette
chorou amargamente; e Calvino, provado tão amiudadas vezes,
procurava sua força no Senhor; e lhe ocorreu o pensamento de
que estava destinado a ter apenas filhos na fé. Assim ele disse
a um de seus adversários, que o censurou com suas perdas
domésticas: “Sim”, replicou Calvino, “o Senhor me deu um
filho; ele o tirou de mim. Que meus inimigos, caso considerem
apropriado, repreendam-me por essa provação. Não tenho eu
milhares de filhos no mundo cristão?”
A saúde de Idelette, já delicada, foi debilitada por es-
sas repetidas dores. As cartas familiares do Reformador nos

57
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

informam que ela passou seus últimos dias em um estado


de langor e sofrimento. Frequentemente fala dessa como en-
ferma no leito, e pede as orações dos amigos dela. Amiúde
relata como ela reviveu. A afeição de Calvino por sua esposa
aparece nessas comunicações: “Saúda tua mulher”, escreve
a Viret em 1545; “a minha é a triste companheira dela na
fraqueza corporal. Eu temo o desfecho. Não há bastante mal
nos ameaçando no presente? Quiçá o Senhor revele um sem-
blante mais favorável”.
Havia então em Genebra um médico versado de nome
Benedict Textor. Era este um homem piedoso, cheio de zelo
pelo Senhor e amigo particular de Calvino. Era assíduo em seu
cuidado por Idelette, e se exauria em procurar todo o auxílio
que a capacidade humana podia proporcionar. Porém, seus es-
forços eram infrutíferos, e a febre aumentava. Calvino sentia
profunda gratidão pelo médico, e dirigiu a ele uma carta em
julho de 1550, dedicando-lhe seu comentário sobre a segun-
da epístola aos tessalonicenses. No começo de abril de 1549,
a condição de Idelette inspirava profunda aflição. Theodore
de Bèze, Hottman, Desgallers e outros colegas do Reforma-
dor apressavam-se em consolá-lo bem como à sua mulher, na
última moléstia desta. Idelette, sustentada até o fim pela pie-
dade, consentira em romper os seus laços terreais; sua única
inquietação dizia respeito ao destino dos filhos que teve de seu
primeiro matrimônio. Um dos amigos dela pediu-lhe para falar
deles a Calvino. “Por que devo fazê-lo?”, respondeu; “o que
me interessa é meus filhos serem criados na virtude... Se eles
forem virtuosos encontrarão nele um pai, se não forem, por
que eu os recomendaria a ele?” Contudo, o próprio Calvino sa-
bia dos desejos dela, e prometeu tratar dos filhos dela como se
eles fossem seus. “Eu já os recomendei a Deus”, disse Idelette.
“Mas isso não impede que eu também cuide deles”, disse Cal-
vino. “Bem conheço”, disse ela, “que tu jamais abandonarás
aqueles a quem eu confiei ao Senhor.”

58
A ESPOSA DE CALVINO

Idelette via com calma a aproximação da morte. A alma


dela estava inabalável em meio aos sofrimentos, os quais eram
acompanhados por frequentes desfalecimentos. Quando ela
não podia falar, seu olhar, seus gestos, a expressão de sua face
revelavam a fé que a fortaleceu em sua última hora. Na ma-
nhã de 6 de abril, um pastor chamado Bourgoin dirigiu a ela
piedosa exortação. Esta articulava exclamações fracas, as quais
pareciam uma antecipação do céu: “Ó gloriosa ressurreição! Ó
Deus de Abraão e de nossos pais!... Esperança dos cristãos por
tantas eras, em ti espero.”
Às 7 horas da manhã ela desfaleceu outra vez; e, sentindo
que a voz estava para parar, ela disse: “Orai, ó meus amigos,
orai por mim!” Ao achegar-se Calvino do lado dela na cama,
ela demonstrou seu gozo por meio do olhar. Com emoção ele
lhe falou da graça que existe em Cristo; da peregrinação terre-
na; da certeza de uma eternidade abençoada; e encerrou com
uma oração fervorosa. Suas palavras foram acompanhadas por
Idelette, a qual ouviu atentamente a santa doutrina da salvação
em Jesus crucificado. Por volta de nove horas ela deu o último
suspiro, mas com tanta paz que por alguns momentos era im-
possível descobrir se cessou de viver ou se estava dormindo.
Tal é o relato que Calvino dá a seus colegas da morte de
sua querida esposa. Então, ele tristemente voltou os olhos para
a sua agora desolada condição de viuvez. “Perdi”, disse ele a
Viret em uma carta de 7 de abril de 1549, “perdi a excelente
companhia de minha mulher, a qual nunca me deixou, seja no
exílio, seja na dor, seja na morte. Enquanto ela viveu, foi-me
uma preciosa ajuda. Jamais se ocupou consigo, e jamais foi ao
seu marido um problema nem um empecilho... Reprimo mi-
nha dor o tanto que posso; meus amigos cumprem o dever
deles de me consolar; mas eles e eu mesmo pouco conseguem.
Sabeis da sensibilidade de meu coração, para não dizer de sua
fraqueza. Eu sucumbiria se não fizesse um esforço sobre mim

59
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

mesmo para moderar minha aflição”. Quatro dias depois, es-


creveu a seu velho amigo, Farel: “Adeus, caro e querido irmão;
que Deus te dirija pelo Espírito dele e me sustente em minha
prova! Não teria sobrevivido a esse golpe se Deus não houves-
se estendido sua mão do céu. É ele quem levanta a alma desa-
lentada, quem consola o coração quebrantado, quem fortifica
os joelhos fracos”.
Calvino, não obstante estar sob o peso de uma tão dolo-
rosa perda, foi capacitado para cumprir todas as obrigações de
seu ministério; e a constância que exibiu em meio às próprias
lágrimas despertava a admiração dos amigos, como lemos na
resposta de Viret a Calvino. A lembrança daquela que ele não
mais tinha não foi apagada de seu coração. Ainda que tivesse
apenas quarenta anos de idade, jamais pensou em contrair ou-
tros laços matrimoniais; e só proferia o nome de Idelette de
Bure com profundo respeito pelas virtudes e com uma intensa
veneração pela memória dela.
Fecho com estas palavras do biógrafo: “Calvino era gran-
de sem deixar de ser bom; ele juntava as qualidades do coração
aos dons do gênio... Provou a felicidade doméstica em uma
união demasiadamente breve, cujos segredos, vagamente re-
velados por sua correspondência, lançaram melancolia e uma
doce luz sobre sua vida.”

G. DE F.

60
“A verdade só é preservada no mundo através do ministério da Igreja.
Daí, que peso de responsabilidade repousa sobre os pastores, a quem se
tem confiado o encargo de um tesouro tão inestimável.”

J. Calvino
CAPÍTULO 4

O PASTOR ERUDITO

PHILIP G. RYKEN

Na opinião particular de João Calvino, quase nada era


mais urgente para a igreja do que a reforma do ministério pas-
toral. Por séculos, a maioria dos ministros havia estado horri-
velmente ignorante acerca das Escrituras e, desse modo, mal
equipada para pregar o evangelho. Como Calvino disse em um
debate com um cardeal católico (pretendendo defender a cau-
sa protestante diante de Deus): “Aqueles que eram estimados
como os líderes da fé nem compreendiam Tua Palavra, nem se
importavam grandemente com ela. Conduziam pessoas infeli-
zes para lá e para acolá com doutrinas estranhas, e iludiam-nas
com sei lá que asneiras.”
Calvino estava determinado a ser diferente e fazer, as-
sim, tudo que pudesse para promover o ideal do pastor-eru-
dito – um ministro que tivesse um conhecimento profundo
das Escrituras e fosse capaz de pregar as doutrinas delas ao
seu povo.
Tal compromisso com a erudição veio naturalmente, vis-
to que Calvino fora treinado como estudioso de leis antes de
dar sua vida a Cristo e entrar no ministério. Era também sua
vocação. Baseado em sua interpretação de Efésios 4.11, Cal-

63
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

vino fazia uma clara distinção entre “pastores” (que serviam


como pastores de uma igreja local) e “mestres” (que serviam à
igreja mais ampla interpretando a Palavra de Deus, defendendo
a verdadeira doutrina e treinando outros homens para o minis-
tério, mui similar aos docentes de seminário de hoje). Contudo,
porquanto Calvino detinha esses dois ofícios, ele estabeleceu
um modelo de pastor-erudito que as igrejas da Reforma têm
seguido desde então.
Calvino possuía uma elevada opinião sobre o ministério
evangélico. Os ministros, dizia ele, são “as mãos de Deus” para
realizar a sua obra salvífica e santificadora no mundo. Quando
a igreja possui “bons e fiéis mestres, bem como outros que
labutam para nos mostrar o caminho da salvação, é um sinal de
que nosso Senhor Jesus Cristo não nos deixou, nem se esque-
ceu de nós, mas que está presente conosco, e vela por nossa
salvação”.
Obviamente, Deus não se havia esquecido de seu povo
em Genebra, posto que a igreja ali foi abençoada pelo minis-
tério de pregação de Calvino por quase trinta anos. A carga de
trabalho do Reformador era pesada. Ele pregava quase todo
dia, e duas vezes no domingo – aproximadamente quatrocen-
tos sermões no total, cuidadosamente transcritos e coligidos
em quarenta e oito volumes. Além de sua pregação, Calvino era
um prolífico escritor, produzindo cartas pessoais, ensaios so-
bre a reforma da igreja, tratados teológicos, comentários sobre
quase toda a Bíblia e, naturalmente, suas famosas Institutas.
A meta de Calvino em toda sua pregação e escrita era
ensinar a Palavra de Deus fielmente, de maneira que o Espírito
Santo pudesse utilizar suas palavras para trazer o povo à fé
salvífica em Jesus Cristo e ajudá-los a crescer em piedade. Ele
sabia que somente Deus podia fazer a real obra do ministério.
A pregação nada efetua, dizia ele, “a menos que o Espírito de
Deus toque os corações dos homens no íntimo”. Não obstan-

64
O PASTOR ERUDITO

te, Calvino igualmente acreditava que a obra do Espírito incluía


seus próprios melhores esforços para ensinar a Bíblia: “Através
da operação interior [do Espírito], produz os mais poderosos
efeitos [a pregação]”.
A fim de que seu ministério obtivesse tal efeito, o minis-
tro tinha que ser fiel na interpretação e aplicação das Escrituras.
Isso, por seu turno, requeria estudo cuidadoso. Malgrado sua
pregação não ser para uma audiência letrada, Calvino adotava
uma abordagem acadêmica na sua preparação. Tipicamente,
pregava sobre livros inteiros do Novo Testamento (ou os Sal-
mos) nos domingos e sobre o Antigo Testamento no restante
da semana. Em ambos os casos pregava partindo diretamente
da Bíblia em suas línguas originais.
Ainda que Calvino habitualmente pregasse por mais de
uma hora, ele discursava extemporaneamente, sem texto ou
notas. Entretanto, ele não falava “de improviso”, uma vez que
tudo o que dizia era o produto de sua própria exegese cuida-
dosa e de primeira mão, bem como de vasta leitura nos pais
da igreja primitiva e em outros comentaristas da Bíblia. Como
observou Calvino certa feita diante de sua congregação: “Caso
eu entrasse em um púlpito sem me dignar a dar uma olhada em
um livro, e imaginasse frivolamente comigo mesmo, ‘Ó, bem,
quando eu pregar, Deus dar-me-á bastante coisa para dizer’ – e
chegasse aqui sem me dar ao trabalho de ler, ou pensar no que
eu devo declarar, não ponderando com cuidado sobre como
devo aplicar as Sagradas Escrituras para a edificação do povo
– então eu seria um arrivista arrogante”.
Desnecessário dizer que Calvino não era tal arrivista ar-
rogante, mas um humilde e rigoroso expositor da Palavra de
Deus. Se a fé em Cristo é um conhecimento seguro e certo
da graça de Deus no evangelho, e se esse conhecimento vem
através da pregação da Palavra de Deus, então todo ministro
é chamado para ser um estudante diligente de tal Palavra. “O

65
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

ensinamento de um ministro”, disse Calvino uma vez, “deve


ser aprovado unicamente sobre o fundamento de estar ele apto
a demonstrar que o que diz provém de Deus”.
O modelo de pastor-erudito de Calvino é de instrução
para hoje. Para os pastores, a vida dele serve como um cha-
mado ao trabalho duro no ministério, dando nossos melho-
res esforços para entender as Escrituras. Para os membros da
congregação, o ministério de Calvino pode nos ajudar a com-
preender a vocação dada por Deus aos nossos pastores. Ao
devotarem o tempo deles ao preparo da pregação, não estão
servindo a si mesmos, mas a Cristo e à sua Igreja.
Contudo, certamente o chamado para estudar a Palavra
de Deus é para todos nós, ao longo de toda a vida. Aqui Cal-
vino deve ter a última palavra: “Deus não nos quer treinados
no evangelho por dois ou três anos apenas, mas nos quer apli-
cados a isso exaustivamente, de modo que, se vivermos cem
anos ou mais neste mundo, temos que, todavia, permanecer
como estudiosos, sabendo que ainda não nos aproximamos da
perfeição, mas que necessitamos ir em frente”.

66
“Ninguém possui coisa alguma, em seus próprios recursos, que o faça
superior; portanto, quem quer que se ponha num nível mais elevado não
passa de imbecil e impertinente.”

J. Calvino
CAPÍTULO 5

CALVINO  FACETAS
DO HOMEM E DO SEU
MINISTÉRIO

ODAYR OLIVETTI

“...honrai sempre a homens como esse.” (Fp1.29)

Este artigo não pretende ser uma produção especializada,


nem tampouco um ensaio acadêmico. São algumas anotações
decorrentes de leituras várias das quais destaco alguns aspectos
da pessoa de João Calvino e sua obra como cristão e Refor-
mador.

O ESTUDANTE
Primeiramente, alguns toques sobre Calvino como estu-
dante.
Seus primeiros estudos foram em Noyon, recebendo au-
las particulares junto com rapazes da família Hangest, e depois
no Collège des Capettes – colégio dos capuzes (que os alunos
usavam). Calvino não esqueceu os benefícios recebidos pela
educação recebida no seio da família Hangest. Obteve ali edu-
cação clássica e ali aprendeu maneiras polidas.

69
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

Em reconhecimento, João Calvino dedicou seu primeiro


livro (Comentário sobre Sêneca) a um dos seus colegas de estudos
daquela família, Claudio de Hangest. Na agradecida dedicató-
ria declarou: “...a primeira instrução que recebi foi derivada de
vossa nobre família”.1
Em 1523, acompanhando os mesmos colegas, Calvino
foi para Paris. Estava com catorze anos de idade. Ali estu-
dou no Collége de La Marche, onde teve o privilégio, graças
à Providência, testificaria ele mais tarde, de ter como profes-
sor exímio, o ex-padre Mathurin Cordier, que preferia ensinar
principiantes para lhes propiciar conhecimentos fundamentais,
não somente teóricos, mas também práticos. Ensinava latim e
francês seguindo um método que dava vida ao latim, que se ia
tornando uma língua morta, e vigor ao francês nascente. Que
o aluno era bom prova-o o fato de que ele veio a ser um dos
melhores latinistas de seu tempo (segundo alguns, o melhor) e
praticamente o pai do francês moderno!
Anos mais tarde Calvino mostraria sua gratidão a Cordier
dedicando-lhe o comentário de 1 Tessalonicenses. Na dedica-
tória estão incluídas estas palavras: “...a Providência ordenou
que por algum tempo eu tivesse o privilégio de tê-lo como
meu professor, para que eu aprendesse o verdadeiro método
de instrução”.2
Depois João Calvino estudou teologia no Collège Mantai-
gu, famoso pela falta de higiene, pela má comida e pelos açoites
aplicados aos alunos preguiçosos ou morosos. João Calvino, su-

1 Vicente Themudo Lessa, Calvino (1509-1564) Sua Vida e Sua Obra, São
Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 2ª. edição, sem data, p. 27. (Impropria-
mente grafado Temudo.)
2 Thea B. Van Halsema, João Calvino Era Assim, tradução de Jaime Wright,
São Paulo, Editora Vida Evangélica S/C, 1ª. edição brasileira, junho de
1988, p. 19.

70
CALVINO: FACETAS DO HOMEM E DO SEU MINISTÉRIO

perando isso tudo e seus problemas de saúde com o estômago,


estudou com afinco, dominando os clássicos da literatura latina,
a lógica, e os escritos de pais da igreja, mormente de Agostinho,
e também os de Tomás de Aquino. Apesar da fraqueza do cor-
po, impôs a si próprio rigorosa disciplina. Faço destaque dos
seguintes pontos da vida estudantil de João Calvino:
Destaques desse período:

Gratidão
Vemos nas anotações acima duas demonstrações de gra-
tidão da parte de João Calvino. E não de uma gratidão ape-
nas demonstrada superficialmente logo depois dos benefícios
recebidos. Nos dois casos, muito depois do recebimento dos
serviços a ele prestados, ele inscreveu seu reconhecimento em
dedicatórias, primeiro, do Comentário sobre Sêneca, a Claudio de
Hangest; depois, do seu comentário de 1 Tessalonicenses, ao
professor Mathurin Cordier.

Nesta nossa época em que com certa frequência vemos pessoas que
recebem favores reagirem dizendo ou dando a entender que os seus
ajudadores têm obrigação de ajudá-los, é salutar ver um genuíno
espírito de gratidão num homem que é admirado por seus dotes inte-
lectuais, quando não por seu testemunho espiritual.

Alto nível moral


Que Calvino tinha alto nível moral como estudante infe-
re-se legitimamente do fato de que os seus colegas lhe deram o
apelido de “caso acusativo”,3 porque velava pela boa conduta
deles. Não consta que o criticavam por isso. Tampouco diziam
que ele era hipócrita – o que seria se exigisse bom comporta-
mento dos outros sem o exigir de si mesmo.

3 Uma das declinações da língua latina.

71
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

Pode-se dizer de Calvino o que Beeke e Pederson disse-


ram acerca de William Ames: ele foi “a bússola e a consciência
moral” da faculdade em que estudou.4

Alto nível cultural


Além dos testemunhos que seus biógrafos registram a
respeito das qualidades intelectuais de Calvino e dos seus dis-
ciplinados e dedicados esforços para dominar múltiplos co-
nhecimentos da cultura geral e da cultura histórico-teológica,
é interessante esta inferência: Como João Calvino recebeu o
grau de mestre com dezoito anos de idade, e escreveu a suma
teológica da Reforma, as Institutas, em latim quando tinha 26
anos de idade, e em francês poucos anos depois, é válido e
legítimo concluir que ele foi um aluno de primeira grandeza:
estudioso, aplicado e capaz.

O INTELECTUAL

(Lembrando que em tudo Calvino estava subordinado ao espiritual.)


É notável como muitas pessoas proclamam a sua própria
ignorância quando rotulam grandes personalidades reduzindo
enormemente a sua grandeza. Refiro-me aos que se referem a
Calvino somente em relação, uns, a Serveto, outros, à doutrina
da predestinação, e alguns, como alguns professores de dois
colégios católico-romanos (casos de que tenho conhecimento
de fonte limpa), repetindo invenções ultramontanas a respei-
to da sua cruel condenação de todos os que não pautam por
sua cartilha! Quando adolescente, graças a Deus tive algumas
informações sobre a vida e a obra de João Calvino, e já bas-
tou para que eu o admirasse. Tanto que, enquanto empurrava

4 Beeke, J.R. e Pederson, R.J., Meet the Puritans, 2006. Grand Rapids, Michi-
gan: Reformation Heritage Books p. 40. (Obra que estou tendo o privi-
légio de traduzir para a Editora PES.)

72
CALVINO: FACETAS DO HOMEM E DO SEU MINISTÉRIO

carrocinha num dos meus empregos antes de voltar a estudar


depois do “grupo primário”, sonhava: Ah, se um dia eu pudesse
traduzir as Institutas de Calvino! Sonho que Deus me possibilitou
cumprir, mediante chamado da Casa Editora Presbiteriana.
Aos dezoito anos de idade, Calvino escreveu seu primeiro
livro, Comentário sobre Sêneca. Feito que revela sua dedicação aos
estudos, não só novidadeiros, como hoje muitos se limitam a
fazer, mas também sobre vultos da literatura clássica. Sêneca
(c. 55 a.C. – c. 40. d.C.), retórico, prolífico escritor, estilo claro
e convincente, despertou o interesse do jovem Calvino. É inte-
ressante notar que o movimento cultural chamado Renascença
ou Renascimento foi um instrumento da divina providência
para a Reforma Protestante. No afã de estudarem autores anti-
gos, os renascentistas estudaram também os escritos religiosos
antigos, e então se abriu o caminho para aqueles que sentiam a
necessidade de retorno às prístinas fontes do cristianismo.
No campo religioso, a produção de Calvino é monumen-
tal. Além da Instituição da Religião Cristã (Institutas), produziu ou-
tros livros e o comentário de todos os livros da Bíblia, exceto
do Livro de Apocalipse – certamente porque lhe faltou tempo.
Para toda a sua produção literária conhecida, Calvino teve um
período de trinta e sete anos (de 1527 a 1564); além do fato de
que não gozava boa saúde.
Uma enciclopédia secular inglesa,5 nos verbetes “Calvin,
John” e “Calvinism”, faz declarações significativas a respeito
de João Calvino e de sua obra. Na primeira referência que faz
ao livro Instituição da Religião Cristã declara que é uma obra
das que “marcam época”, e logo adiante diz: “É a primeira
tentativa de uma definição e vindicação lógica e completa do
protestantismo”. Calvino foi co-autor de uma confissão de fé,

5 Everyman’s Encyclopædia, ibid.

73
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

e produziu pessoalmente um excelente catecismo. Mostrou sua


preocupação com o preparo de pastores, criando o Colégio
de Pastores. Criou, além disso, a academia de Genebra. “Sua
atividade foi prodigiosa até sua morte em 1564.”
Quanto ao saber intelectual, entre outras coisas Calvino
tornou-se famoso como mestre da língua latina e mestre e pai
da língua francesa moderna. Muitos sabem que Lutero é consi-
derado o pai da língua alemã moderna; ao que parece, poucos
sabem que Calvino é considerado o pai do francês moderno.
Sobre a competência linguística de Calvino quanto ao idioma
francês, tive uma experiência notável. Certa vez, quando eu ia
tomar um ônibus em Santo Antônio do Jardim para Campi-
nas, alguém me disse: “Aquele homem, à janela do ônibus, é
o padre Henrique, um padre francês”. Fui sentar-me ao lado
dele e me apresentei. Conversamos durante a viagem. Quando
íamos chegando a Campinas, ele me disse: “Vou confessar-lhe
algo: Quando estudei em Paris, no seminário, Calvino era usa-
do como modelo da língua francesa”.
Quanto ao saber bíblico/teológico, Calvino é reconhe-
cido como o líder intelectual da Reforma e como excelente
exegeta. Segundo a enciclopédia acima citada, “O Dr. Jowett
achava que Calvino ‘era o maior comentador das Escrituras
que a Europa conhecera’”.6

ATIVIDADE INCESSANTE

Trabalho
Calvino trabalhava ativamente em várias frentes: produ-
ção de livros, pastorado, participação do Consistório, que ti-
nha o governo da cidade, a Academia e o Colégio de Pastores

6 Benjamin Jowett (1817-93), erudito e teólogo inglês.

74
CALVINO: FACETAS DO HOMEM E DO SEU MINISTÉRIO

– fundado por ele – farta correspondência, etc. Quanto à cor-


respondência, era não só dentro da Suíça, mas também inter-
nacional. Há um livro sobre suas cartas intitulado Calvin and his
Letters, 1909, de autoria de H. F. Henderson. Através de suas
cartas Calvino procurou ajudar a obra da Reforma noutros pa-
íses, como Inglaterra, França, Holanda, Polônia etc.
Espanta-nos sua “atividade incessante”, ainda mais quan-
do lembramos que João Calvino não teve vida longa, teve “frá-
gil constituição” e padeceu diversas enfermidades – “febre,
asma, gota e stone [cálculo renal]”. Vicente Themudo Lessa fala
das enfermidades de Calvino: febre quartã, enxaqueca, pedra,
dispepsia, gota e uma “asma torturante que, só por si, torna
desconfortável uma existência”. Lessa prossegue: “Todos estes
incômodos se acentuaram naquele ano [1559]. Todavia cum-
pria todos os deveres com a maior pontualidade, no púlpito,
na Academia, no Consistório, em toda parte. Seus amigos viam
isso com assombro e solicitavam dele que poupasse as poucas
forças que restavam. Queria ser encontrado vigilante à hora da
partida”.7

Produção Literária
Calvino foi escritor prolífico. Não é objetivo deste en-
saio falar de suas obras. Aqui apenas destaco o fato como uma
das suas facetas: Seus escritos sobre Sêneca e outros, seus co-
mentários, seus tratados, suas cartas, a fabulosa produção das
Institutas, com o extraordinário resumo teológico-histórico que
constitui o conteúdo de sua carta ao rei Francisco I. Todos o
exaltam não somente como um escritor prolífico, mas tam-
bém, e principalmente, como um escritor de obras importan-
tíssimas.

7 Vicente Temudo Lessa, op. cit., p. 262.

75
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

Curiosamente, ele metrificou o mesmo Salmo (46) base-


ado no qual Lutero produziu a letra do hino Castelo Forte. A
versificação de Calvino começa assim: “Notre Dieu nos est ferme
appuy”.8
É notável o levantamento que, apoiado no historiador
Schaff e noutros autores, Vicente Themudo Lessa faz das
obras literárias de João Calvino (op. cit., pp. 151-154), obras es-
critas sempre com clareza e elegância, tanto em francês como
em latim. Anoto aqui só os títulos da enumeração feita por
Schaff (dez categorias):

1. Escritos exegéticos (comentários).


2. Escritos doutrinários: Institutas, Catecismo, trata-
dos, opúsculos (entre estes o precioso pequeno livro
A verdade para todos os Tempos, que tive o privilégio
de traduzir para PES.9 É divulgação doutrinária para
o povo em geral. Mostra a preocupação pastoral e
evangelística de Calvino.
3. Escritos polêmicos e apologéticos (numerosos escri-
tos sobre ampla gama de assuntos controvertidos).
4. Escritos litúrgicos e eclesiásticos.
5. Sermões e homilias (avalia-se “em três mil o número
de escritos deste gênero que dele possuímos” (Go-
guel).
6. Pequenos tratados (numerosa coleção).
7. Conselhos diversos.

8 Lessa, op. cit., p. 168.


9 Publicado em 2008, primeira edição, por Publicações Evangélicas, Cai-
xa Postal 1287 – 01059-970 – São Paulo, SP > www.editorapes.com.br
Tradução de Odayr Olivetti.

76
CALVINO: FACETAS DO HOMEM E DO SEU MINISTÉRIO

8. Cartas (coletadas em dez volumes).


9. Escritos poéticos: alguns hinos e versões métricas de
diversos Salmos.
10. Outros escritos, incluindo traduções, como a da ma-
gistral obra de Melanchton, Loci Comunes.

Destaque – Cartas
Da numerosa correspondência de João Calvino, faço es-
tes breves destaques: com Sadoleto e com altas autoridades
inglesas:
Sadoleto divulgou sua carta na qual exalta a Igreja Cató-
lica Romana e critica os protestantes com muita ironia. Escre-
veu com arte, artifícios e artimanhas. Fizeram chegar a Calvino
cópia dessa carta, à qual ele respondeu em alto estilo, com no-
breza e com sua costumeira competência. A carta de Sadoleto
cobriu 48 páginas; a de Calvino, 152 páginas. Lessa comenta
extensamente as duas cartas.10
Houve boa divulgação da carta de Calvino. Sobre ela disse
Martinho Lutero, a seu modo típico: “Eis um escrito que tem
pés e mãos. Alegro-me ao ver Deus suscitar homens assim.
Continuarão e terminarão, com o auxílio do Senhor, a obra que
eu encetei contra o Anticristo”.11
Houve notável correspondência de Calvino com Lorde
Somerset, Regente no início do reinado de Eduardo VI, da In-
glaterra, e com o arcebispo Cranmer, primaz da Inglaterra.12
Naquela época de forte perseguição de Roma contra os
Reformados, Calvino escreveu cartas aos condenados, con-

10 Lessa, op. cit., 129-133.


11 Id., p. 133.
12 Id., pp. 223-225.

77
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

solando, procurando fortalecer-lhes a fé. Por exemplo, em


artigo sobre “A Piedade Obediente de Calvino” publicado na
Fides Reformata,13 o Rev. Herminsten Maia Pereira da Costa re-
gistra partes de uma carta de Calvino a dois prisioneiros “que
aguardavam condenação por terem aderido à Reforma Pro-
testante” e a resposta de um deles. Calvino diz: “... estejam
certos de que Deus, que se manifesta em tempos de necessi-
dade e aperfeiçoa sua força em nossa fraqueza, não os deixa-
rá desprovidos daquilo que poderosamente glorificará o seu
nome...”. Louis de Marsac, um dos destinatários da referida
carta respondeu a Calvino dizendo: “Senhor e irmão, eu não
posso expressar o grande conforto que recebi... da carta que
você enviou para meu irmão Denis Peloquim, que passou-a a
um de nossos irmãos que estava numa cela abobadada acima
de mim, e leu-a para mim em voz alta, porque eu não pude
lê-la por mim mesmo, sendo incapaz de ver qualquer coisa
em meu calabouço...”.
Citei apenas alguns exemplos de sua farta correspondên-
cia. Há registro de 427 cartas de Calvino ou a ele dirigidas.14

Liturgia
Quanto à liturgia, Lessa faz o seguinte resumo da ordem
do culto público normalmente seguida por Calvino: “Invoca-
ção, confissão de pecados, palavras para tranquilizar as cons-
ciências, absolvição; canto de cinco mandamentos pela assem-
bléia. Sobe, então, o pastor ao púlpito, deixando a mesa da
comunhão; faz a oração, que termina pelo Pai Nosso; prega o
sermão e depois eleva uma oração litúrgica com paráfrase do
Pater. Depois canta-se um salmo e o pastor dá a bênção”.15

13 XIII, Nº. 1 (2008), p. 81, derivada da obra John Calvin Collections.


14 Id., p. 153.
15 Id., p. 119.

78
CALVINO: FACETAS DO HOMEM E DO SEU MINISTÉRIO

Pastor
Como pastor, Calvino era operoso e atencioso. Dedicava-
se à visitação dos mais necessitados de atenção, entre eles os
refugiados. Não se negava a percorrer os bairros, as vielas e os
canais para atender pessoas e famílias de condições sociais e
financeiras desfavorecidas. Isso não o levava a relaxar no pre-
paro para o púlpito. É geralmente reconhecido o alto nível do
seu trabalho como pregador e mestre de doutrina.16

Moralização
Calvino fez grandes esforços em favor da moralização
dos costumes. Seu empenho nesse sentido mostrou-se inicial-
mente na confissão de fé que ele e Farel produziram. Aprovada
pelo povo, foi repudiada pelo Partido dos Libertinos, devido
ao rigor ético exigido por aquele importante documento. A
reação dos libertinos foi tal que Calvino saiu de Genebra em
1539 e se estabeleceu em Estrasburgo.
“Enquanto estava em Estrasburgo, viu-se [em Genebra]
que mesmo a regra mais rigorosa de Calvino era melhor que
não haver nenhuma regra, e em 1540 ele foi chamado de vol-
ta.” Voltou com relutância, mas então “se dedicou pelo resto
de sua vida à tarefa de estabelecer Genebra e a teologia pro-
testante”.17

Política
Com relação às atividades políticas de Calvino, muita
coisa tem sido dita modernamente por homens servilmente
aceitos como autoridades, mas que, no mínimo, interpretaram
superficialmente as preocupações de Calvino, em particular
quanto à política. Digo somente o seguinte:

16 Ibid.
17 Everyman’s Encyclopædia, ibid.

79
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

1. Calvino exerceu a política no seu sentido original e


puro, no que deveria ser imitado por seus admiradores e por
seus detratores. Quer dizer, ele fez o que pôde para melhorar
moral, educacional e socialmente a cidade de Genebra. Ele,
deportado de seu país, agiu com Genebra de um modo que
me faz lembrar o que Deus, por meio de Jeremias, disse aos
líderes e ao povo que tinham sido deportados para a Babilônia:
“Busquem a prosperidade da cidade para a qual os deportei e
orem ao SENHOR em favor dela, porque a prosperidade de
vocês depende da prosperidade dela” (Jr 29.7, NVI). – Política
pura: cuidar da “polis”.
2. As alterações político-sociais resultantes da Reforma
em geral, e de Calvino em particular, não se deram em função
da preocupação política do Reformador. Foram resultados da
grande obra de libertação do jugo de um poder eclesiástico
despótico e esterilizante. A doutrina evangélica e o sistema de-
mocrático-representativo da Reforma calvinista promoveram a
libertação do jugo de uma “igreja” que exercia controle ditato-
rial sobre as vidas dos seus súditos por meio do confessioná-
rio e de doutrinas e práticas intimidantes exigidas junto com a
ameaça de excomunhão aos rebeldes – excomunhão apresen-
tada como o terrível e inevitável lançamento ao inferno daque-
les que por ela fossem atingidos.
Qualquer leitor sincero e honesto vê nos escritos de Cal-
vino e nas referências a ele feitas por seus companheiros de
ministério e de existência intenções espirituais, religiosas, evan-
gelísticas e éticas dominando todo o seu ser e todas as suas
ações.
Há décadas li um artigo publicado na revista Presbyterian
Life um artigo, resultado de séria pesquisa, no qual o autor des-
creveu a cidade de Genebra anterior a Calvino. Cidade poluída
em muitos aspectos, inclusive quanto à saúde pública. Entre
outras coisas, em Genebra o esgoto corria a céu aberto.

80
CALVINO: FACETAS DO HOMEM E DO SEU MINISTÉRIO

O lema do escudo de Genebra diz: “Post Tenebras Lux”


– lema inscrito também na porta do prédio em que se reu-
niam os representantes do povo. Sobre esse lema diz Thea B.
van Halsema: “Mais do que qualquer outro homem, Calvino
tinha tornado em realidade aquela legenda na cidade junto ao
lago”.18 E, numa carta escrita a seu amigo Farel, Calvino faz
uma declaração que define seus propósitos – muito distantes
dos alegados por seus detratores conscientes ou inconscientes.
Disse ele:

“Basta que eu viva e morra para Cristo,


que é a recompensa para aqueles que são dele, na vida e na morte”.19

E a citada escritora não poderia concluir melhor seu livro


do que declarando o que declarou na página 206:

“Era assim o homem humilde que viveu sob um lema:


‘Soli Deo Gloria’, dizia. Glória somente a Deus”.

RECORDANDO ALGO FEITO NO CHILE


Antes de descrever resumidamente os dias finais e a mor-
te do brioso Reformador, tomo a liberdade de transcrever em
castelhano trecho de um sermão que preguei em Santiago, Chi-
le, em 31 de outubro de 1965. Nesse sermão, intitulado “La
Reforma Anecdótica”, citei o testemunho de alguns dos Refor-
madores do século XVI. Sobre Calvino anotei o seguinte:

Juan Calvino fue un Reformador francés que tuvo que abandonar


su país a causa de la persecución de la Inquisición romana. Dirigió
la obra de la Reforma en Suiza. Siempre exigió de si y de los demás

18 Thea B. van Halsema, op. cit., p. 201.


19 Id., p. 206.

81
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

elevados patrones de moral. Cuando estudiava en el seminario, en


París, alcanzó tal fama de austeridad que sus compañeros le dieron
el apodo de “Caso Acusativo” (tomado de las declinaciones latinas)
[Le Vasseur, apud D’Aubigné, apud Lessa].

Em fuga de las persecuciones de la Inquisición, Calvino pasó por


La ciudad de Ginebra. Farel, otro Reformador francés que se había
establecido em Suiza, estaba seguro de que Juan Calvino era el hom-
bre preciso para dirigir la Reforma en el país. Fue necesaria mucha
insistencia por parte de Farel para que el joven Calvino aceptase el
desafío. Juan Calvino pensava arrinconarse en algún lugar tranquilo
para seguir estudiando y escribiendo. Cuando pasó por Ginebra era
ya autor de varias obras, las famosas “Institutas” inclusive. Digase
de paso que los expertos consideran Calvino el mejor latinista de
su tiempo. Calvino empezó una tremenda capaña de instrucción y
moralización de la ciudad de Ginebra, con tal empeño que los ene-
migos de la disciplina firme acabaron por expulsar el Reformador.
Con La ausência de Calvino quedó aun más evidente para todos los
interesados en el progreso de la ciudad y de la Reforma la profunda
necesidad que tenían de un hombre como él. Fueran a buscarle.
Los resultados de la actuación firme y sabia de Jun Calvino van
mucho más allá de lo que se puede medir y pesar. Citemos algunas
referencias ligeras:

• Durante mucho tiempo La fama de honestidad de los habitan-


tes de Ginebra era tanta que cuando algún ciudadano de esse
pueblo llegaba a París para negócios, nadie lhe exigia cualquier
documento de garantia para crédito.

• Nadie que entienda algo de La evolución política y social de las


modernas repúblicas negará que, como afirman buenos historia-
dores, Juan Calvino es el padre de las modernas democracias.

• Alfonso López Michelson, profesor de Derecho en La Univer-


sidad Nacional de Colombia, publicó um resumen de una serie
de conferencias suyas presentadas en la misma universidad. El

82
CALVINO: FACETAS DO HOMEM E DO SEU MINISTÉRIO

libro se titula: “La estirpe calvinista de nuestras instituciones”.


Defiende la tésis de que “en las constituciones de La América
Latina campea el principio calvinista de la voluntad popular
y del gobierno por consentimiento de los gobernados”. Y es el
propio autor católico romano López Michelson quien asevera
que si las democracias latinoamericanas tienen tantos defectos
como es sabido, es porque les falta a sus pueblos la base de la fe
y de los princípios Reformados o protestantes (apud Rycroft, W.
Stanley, Religion and Faith in Latin America, The Westmins-
ter Press, Filadelfia, sim data, pp. 60-62).

FIRMEZA DOUTRINÁRIA

Sumário inicial:
1. O fundamento teológico-doutrinário de João Calvino
é a Escritura Sagrada. Não desprezava os acessórios: clássi-
cos da literatura universal, escritos dos “pais da igreja”, livros
apócrifos, não como base, mas como ilustrativos de pontos
defendidos por ele.
Com relação às doutrinas da graça, ele deu os fundamen-
tos claros para a “Tulip” – os cinco pontos do calvinismo...
Em inglês: Total Depravation, Uncondicional Election, Limited Ato-
nement, Irresistible Grace, Perseverance of the Saints (Depravação
Total, Eleição Inconcidional, Expiação Limitada, Graça Irre-
sistível, Perseverança dos Santos).
É oportuno lembrar algo do que diz o Rev. Hermins-
ten Maia Pereira da Costa sobre o que estou tentando pas-
sar. Diz ele: “Para Calvino, todo o pensar teológico está
conectado com a piedade. A teologia envolve toda a nossa
mente, coração e vontade. Por isso, ‘o fim de um teólogo
não pode ser deleitar o ouvido, senão confirmar as consci-
ências ensinando a verdade e o que é certo e proveitoso’”. A
sua teologia nada mais era do que um esforço por comentar

83
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

as Escrituras...”.20 Noutro lugar (p. 76), Hermisten cita esta


declaração de Calvino: “...de modo nenhum a fé se deve
separar do afeto piedoso”,21 expressão que contesta os que
têm uma ideia de que o famoso Reformador era um doutri-
nador zeloso mas frio.
Ao contrário do que muitos dos adversários de Calvino
nos querem fazer pensar, ele não se limitou a aprofundar-se na
doutrina da predestinação. Depois da segunda parte deste su-
mário, vou enumerar títulos das Institutas, com uma ou outra
observação.
2. Transcrição quase completa do sumário feito por Rei-
nhold Seeberg:22

“Nosso estudo da teologia de Calvino deve limitar-se


aos pontos particularmente pertinentes à história do
desenvolvimento doutrinário. Começando pela fonte da
verdade cristã vemos que esta é a Escritura e somente
a Escritura: ‘Pois as Escrituras são a escola do Espírito
Santo, na qual não se omite nada que seja necessário ou
útil conhecer, e não se ensina nada senão o que é provei-
toso saber’ (III.21.3).23 Deus depositou nas Escrituras
o ‘oráculo’ de sua verdade, e, uma vez que elas descem
do céu, têm plena autoridade (plena autoritas) entre os ho-
mens (I.7.1. “A crença (fides) na doutrina não se estabe-
lece enquanto não somos indubitavelmente persuadidos

20 Em Fides Reformatata XIII, Nº. 1 (2008), p. 73. A citação de Calvino é de


As Institutas – Edição Clássica, 1.14.4.
21 Citando As Institutas, III.2,8.
22 R. Seeberg, Manual de Historia de las Doctrinas. Tradução de José
Miguez Bonino, Casa Bautista de Publicaciones, Argentina etc. Se-
gunda edição, 1967. Tomo II, pp. 383-385. Faço a versão para o
português.
23 Esta citação e outras semelhantes indicam respectivamente o livro, o
capítulo e o parágrafo da última edição [latina] das Institutas.

84
CALVINO: FACETAS DO HOMEM E DO SEU MINISTÉRIO

de que Deus é seu autor’ (ib. 4). Deus revelou primeira-


mente a lei, e ‘a seguir vieram os profetas, mediante os
quais Deus publicou, por dizê-lo assim, novos oráculos’.
Por mandamento divino os profetas registraram esses
oráculos, todos os quais servem para a explicação da lei.
‘Com eles vieram, ao mesmo tempo, as narrativas, que
também são obra da pena dos profetas, mas compostas
sob o ditado (dictante) do Espírito Santo’ (IV.8.6). Seguiu-
se depois o Novo Testamento (ib. 8). Dos autores desses
escritos se diz: ‘Eram amanuenses infalíveis e autênticos
do Espírito Santo, pelo que os seus escritos devem ser
considerados oráculos de Deus’ (ib. 9). Portanto, a vera-
cidade desses oráculos espirituais fica estabelecida pelo
fato de haverem sido ditados e inspirados, como igual-
mente sucedeu com as narrativas históricas, pelo Espíri-
to de Deus (cf. I.18.3). Esta convicção quanto à origem
das Escrituras é confirmada pelo testemunho do Espírito
Santo, que nos é dado eficazmente por meio delas e pela
majestade divina que as caracteriza (I.7.4). Mediante este
testemunho único adquirimos certeza acerca do caráter
da Palavra (I.8. e I.9.3). Por conseguinte, Calvino estabe-
lece a autoridade das Escrituras, em parte por haverem
sido ditadas por Deus e em parte pelo testemunho do
Espírito Santo, que opera por seu intermédio. Calvino
é, pois, o autor da chamada teoria da inspiração dos sis-
temáticos antigos. Dos antigos símbolos e decretos dos
concílios, diz Calvino, que formularam a verdade bíblica
com maior exatidão em oposição aos hereges (I.13.3s.)
‘Pois não contêm outra coisa senão uma interpretação
pura e prístina das Escrituras’ (IV.9.8). Calvino atribuía
à doutrina pura grande valor para a igreja (II.2.7), mas
também reconhecia que ninguém deve abandonar sua
igreja por causa de ‘alguma pequena diferença de opi-
nião’ (IV.1.12)”.

85
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

Títulos das Institutas com breves observações:24

A Fonte por Excelência:


Do “Argumento do Presente Livro”, pp. 33,34, faço estas bre-
ves anotações, nas quais se vê que Calvino fundamentava seus
argumentos na Escritura Sagrada. Ele declara que “A Escritura
Sagrada contém uma doutrina perfeita, à qual nada se pode
acrescentar”.
Responsabilidade dos ministros, mestres e pregadores em
geral:
Incumbe “aos que receberam mais ampla iluminação de
Deus... encontrar a essência do que Deus nos quer ensinar em
Sua Palavra”.

Humildade:
Lembrando os bereanos: “É recomendável que se re-
corra à Escritura para considerar os testemunhos por mim
citados”.

Carta ao Rei, pp. 35-54:


A carta de dedicatória que Calvino escreveu e enviou
ao rei da França, Francisco I, é em si mesma um compêndio
estupendo de teologia dogmática e prática. Aqui me limito
a transcrever boa parte dos argumentos de Calvino em res-
posta às principais acusações que os romanistas em geral
faziam aos Reformados. As perguntas resumem as críticas.
Há outras questões críticas tratadas na carta, mas me res-
trinjo a estas.

24 Baseados em minha tradução de As Institutas, São Paulo, Editora Cultura


Cristã, 1ª. edição; 2006.

86
CALVINO: FACETAS DO HOMEM E DO SEU MINISTÉRIO

“DOUTRINA NOVA?”
Resposta: “Primeiramente, dizendo que é nova fazem
grande ofensa a Deus, pois a sua Palavra não merece a acu-
sação de que não passa de uma novidade. Claro, não tenho
dúvida de que é nova para aqueles para quem o próprio Cristo
e o seu evangelho são novos. – Mas aqueles que sabem que a
pregação feita pelo apóstolo Paulo – que Jesus Cristo morreu
pelos nossos pecados e ressuscitou para a nossa justificação25
– é antiga, não encontrarão nada de novo entre nós”.

“DESCONHECIDA?”
Resposta: “O fato de que esta doutrina permaneceu ocul-
ta e desconhecida por muito tempo é crime cometido pela im-
piedade humana. Agora, quando pela bondade de Deus ela nos
é restaurada, ao menos devia ser recebida com reconhecimen-
to da sua autoridade antiga”.

“INCERTA?”
Resposta: “Da mesma fonte de ignorância vem a acusa-
ção de que a nossa doutrina é duvidosa e incerta. É deveras
disso que o Senhor se queixa, por intermédio do seu profe-
ta, quando afirma que o boi conhece o seu possuidor, e o
jumento, o dono da sua manjedoura, mas o seu povo não
o conhece.26 Mas, como eles zombam da incerteza da nossa
doutrina, se tivessem de selar a deles com o seu próprio san-
gue27 e à custa da sua vida, então se poderia ver bem quanto
a prezam. Muito diferente é a nossa confiança, pois esta não
tem medo, nem dos horrores da morte, nem do julgamento
feito por Deus”.

25 Rm 4.25.
26 Is 1.3.
27 Rm 8.36.

87
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

“MILAGRES?”
Resposta: “Na exigência que nos fazem de milagres eles
são insensatos. Porquanto não estamos forjando um evange-
lho novo, mas nós mantemos aquele evangelho já confirma-
do por todos os milagres que Jesus Cristo e os seus apóstolos
realizaram. Os nossos adversários poderiam dizer que levam
vantagem sobre nós, porque, dizem eles, podem confirmar a
sua doutrina com a constante realização de milagres, até o dia
de hoje. Mas, quanto a isso, eles alegam milagres que podem
perturbar o espírito de uma pessoa e enchê-la de dúvida, quan-
do sem esses milagres a pessoa estaria bem e tranquila,28 tão
frívolos e falsos eles são! Contudo, mesmo que esses milagres
fossem prodigiosos e admiráveis, não se deveria dar a eles ne-
nhum valor contra a vontade de Deus, pois o importante é que
o nome de Deus seja santificado sempre e em toda parte, quer
havendo milagres, quer seguindo a ordem natural das coisas.
– Poderia acontecer que eles nos impressionassem mais, se a
Escritura não nos avisasse sobre o uso legítimo dos milagres”
(Aqui Calvino cita e comenta as seguintes passagens que mos-
tram a natureza e os objetivos dos milagres biblicamente con-
siderados: Mc 16.20; At 14.3; Rm 15.18,19; Jo 5.44 e Dt 13.2
com 2 Ts 2.9,10. Com relação a estas duas últimas passagens,
Calvino afirma: “Também devemos lembrar-nos de que Sata-
nás tem os seus milagres, os quais, embora sendo meras ilusões
e não prodígios reais, podem enganar os simples e incultos”.
Prossegue Calvino citando os donatistas com seus pretensos
milagres e a resposta dada a eles por Agostinho, e com outros
argumentos bíblicos.)
No fim dessa resposta, João Calvino diz: “A verdade é
que milagres temos muitos, e milagres autênticos e não mere-

28 Nas citações, atualizo a ortografia, como em todo o texto.

88
CALVINO: FACETAS DO HOMEM E DO SEU MINISTÉRIO

cedores de zombaria. Por outro lado, os pretensos milagres29


dos nossos adversários não passam de enganos de Satanás que
afastam o povo do culto devido a Deus e o arrastam para a
ilusão vã e vazia”.

“A AUTORIDADE DOS PAIS DA IGREJA” (Estariam


eles contra nós?)
Resposta: “Além disso tudo, colocam injustamente con-
tra nós os antigos ‘pais’ [em meu entendimento, os escritores
cristãos dos primeiros tempos da igreja] como se eles fossem
favoráveis à impiedade dos nossos atuais adversários. Tenho a
certeza de que, se a nossa contenda fosse resolvida pela auto-
ridade dos referidos ‘pais’, a melhor parte da vitória caberia a
nós.30 Mas, se é verdade que muitas coisas excelentes e sábias
foram escritas por esses ‘pais’, por outro lado, como aconte-
ce com todos os homens, eles também falharam e erraram; e
estes bons e obedientes filhos [os romanistas], segundo a sua
habilidade de entendimento, de julgamento e de decisão, só
veneram os erros e os enganos dos ‘pais’. Entretanto, o que
eles escreveram com acerto, estes não entendem ou disfarçam
ou pervertem. ... E então nos perseguem clamando contra nós
como se fôssemos desprezadores e inimigos dos ‘pais’! Mas
tão longe de sermos seus desprezadores estamos que, se fosse
este o nosso propósito aqui, com facilidade eu provaria com
os escritos deles a maior parte daquilo que nós dizemos hoje.
Quando os lemos, porém, nós o fazemos com tão cuidadoso
critério que sempre temos diante dos nossos olhos o que Paulo

29 Dt 13.1-18
30 Esta constatação facilitou ao ex-monge, hoje ministro presbiteriano e
presidente do Presbitério de São João da Boa Vista, SP, Rev. Luiz Fer-
nando dos Santos, a aceitação da doutrina Reformada “com a mente e
com o coração”, como disse ele. Quando monge, estudou e ensinou os
chamados pais da igreja.

89
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

disse: que tudo é nosso para nos servir, não para nos dominar,31
e que todos nós pertencemos a Cristo, a quem se deve obedi-
ência em todas as coisas, sem exceção. Os que não seguem
esta ordem não terão segurança em nenhum ponto da fé, visto
que aqueles santos personagens em questão ignoram muitas
coisas, têm divergências entre si e, às vezes, até se contradizem.
... Da lista de ‘pais’ houve um que disse32 que Deus não come
nem bebe, e, portanto, não precisa de pratos e cálices. Outro33
disse que os sacramentos dos cristãos não requerem ouro nem
prata, e que não é com ouro que eles agradam a Deus. Assim
os nossos adversários ultrapassam os limites dos ‘pais’ quando
em suas cerimônias tanto se deleitam com o ouro, a prata, o
mármore, o marfim, as pedras preciosas e as sedas, e acham
que Deus não pode ser adorado como se deve se não houver
grande número destas coisas supérfluas.
“Um dos ‘pais’34 dizia que, visto que ele era cristão, ou-
sava comer livremente carne na quaresma, quando os outros
dela se abstinham. Portanto, os seus pretensos filhos rompem
os limites quando excomungam quem, na quaresma, tenha co-
mido carne.”35 Outro “disse que ‘é uma horrível abominação
ver-se uma imagem de Cristo ou de algum santo nos templos
cristãos’.36Muito longe estão de respeitar estes limites...”.
“Outro ‘pai’ aconselhou que, após haver-se exercido o
ofício humanitário de conceder sepultura aos mortos, que

31 1 Co 3.21-23.
32 Acácio, em Hist. Tripar. (Cassiodoro, I.XI.16; Migne, 69, 1198).
33 Ambrósio, liv. I, sobre os ofícios, II. cap. XXVIII, 158 (Migne, 16, 140).
34 Espiridião, no livro Hist. Tripar., c. 10 (Cassiodoro, I, 10 (Migne, 69, 894).
35 Prática que agora, com a pressão do mundo moderno, se restringe,
para alguns, à semana da Páscoa, e para outros, somente à “Sexta-feira
Santa”.
36 Epifânio, epístola traduzida por Jerônimo (Ad Iohann, ep. 51, 9; Migne,
22, 526).

90
CALVINO: FACETAS DO HOMEM E DO SEU MINISTÉRIO

estes fossem deixados em paz. Estes limites são desrespei-


tados quando exigem que se tenha perpétua solicitude pelos
mortos”.
“Um dos ‘pais’ negou que, no sacramento da Ceia, sob o
pão, está o verdadeiro corpo de Cristo, e afirmou que é apenas
um mistério do seu corpo; e ele fala assim de cada uma das
palavras.37 Portanto, vão além das medidas quando dizem que
o corpo de Cristo está incluído ali, localmente”.
E prossegue Calvino na enumeração de pais que deixa-
ram ensino contra o qual o romanismo se insurge, praticando
o que eles não recomendam e não praticando o que eles reco-
mendam. Da, ainda longa, explanação que mostra a solidez de
Calvino em firmar-se nas Escrituras e em só aceitar ensinos
que nela se fundamentem, extraio esta declaração:
“Mas até onde eu iria nesta oração, se quisesse nar-
rar tudo o que os nossos adversários fazem para livrar-se
do jugo dos ‘pais’, dos quais se dizem filhos obedientes?
Gastaria meses e anos no cumprimento desse propósito!
E, no entanto, é tão absurda a sem-vergonhice deles [dos
romanistas] que se atrevem a acusar-nos de desrespeitar os
limites antigos”.

Institutas
Considerada por muitos, mesmo dentre não calvinistas, como a
suma teológica da Reforma. Dentro do escopo deste ensaio, vejamos
títulos dos capítulos e subtítulos significativos.38 Lembremos que os ar-
gumentos são acompanhados por muitas citações bíblicas, em geral em
notas de rodapé.

37 Testemunho que consta entre as obras de Crisóstomo (ed. de Paris, 1835,


VI, 796).
38 Coloco em itálicos os meus comentários pessoais.

91
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

Volume 1

Capítulo I
O Conhecimento de Deus

Para Calvino o conhecimento é indispensável e fundamental. Não é


superficialmente que ele define a fé cristã em termos de conhecimento. Vale
lembrar aqui que quando, falando com o Pai, Jesus Cristo define a vida
eterna, define-a em termos de conhecimento: “E a vida eterna é esta: que te
conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste”.

1. A sabedoria integral está no conhecimento de Deus


e do homem
2. Conhecer o homem depende de conhecer a Deus
3. Espantoso contraste: o homem face à majestade e à
perfeição de Deus!
4. Universalidade da ideia da existência de Deus e do
sentimento religioso
6. O conhecimento de Deus nos ensina a viver
9. A religião pura e verdadeira
10. A finalidade da vida feliz
11. Revelação de Deus no universo
17. Revelação que nos deixa sem defesa
18. Dádiva de um recurso melhor
19. O ensino da Palavra
20. A autoridade da Escritura não se subordina ao inte-
resse da igreja
21. A Escritura constitui o fundamento da igreja
22. A autoridade da Escritura atestada pelo testemunho
interno do Espírito

92
CALVINO: FACETAS DO HOMEM E DO SEU MINISTÉRIO

23. A primazia da fé
24. A força da simplicidade da Escritura
25. A importância relativa da autoridade da igreja
26. O testemunho dos mártires
27. Indevida exaltação do Espírito em detrimento da Pa-
lavra
28. A Escritura constitui o critério para habilitar-nos a
discernir o Espírito
29. Na letra o Espírito
30. A luz do Espírito na Palavra
31. A Escritura fala do único Deus vivo e verdadeiro

Capítulo II
O Conhecimento do Homem e o Livre-arbítrio

3. Fome de lisonjas, e seus estragos


4. Conhecer-nos a nós mesmos
5. Do que se orgulha o homem?
6. A primeira condição do ser humano: é criatura.

É interessante a consideração que Rudolph Otto faz em sua obra


Das Heillige (O Santo), particularmente na exposição de Isaías 6. A
primeira percepção do homem, quando se confronta com Deus, é da sua
“criaturidade”. Cf. Teologia Sistemática, Louis Berkhof, tradução de
Odayr Olivetti, pp. 76 e 535.

7. A imagem de Deus no homem


8. A Queda

93
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

9. O pecado original
13. Definição de pecado original
14. Culpa herdada e culpa atual
16. A culpa não está em Deus
18. A universalidade do pecado
21. Faculdades do ser humano
25. Definição do livre-arbítrio
26. Discussão da proposição supra
27. Enfeite soberbo para algo insignificante
28. Livre-arbítrio: livre ou escravo?
29. Esclarecimento, não preconceito
30. A natureza do homem
37. A única fonte da verdade
38. Tripé da sabedoria espiritual (conhecer Deus; conhe-
cer Sua vontade; saber regrar nossa vida segundo a
vontade de Deus)
39. A grande limitação da luz da natureza
40. Como regrar a nossa vida
41. A lei natural ajuda e condena
42. Um padrão da justiça perfeita (“...a lei de Deus... é
um padrão da justiça perfeita”)
43. A vontade e a liberdade (“Devemos examinar agora
a vontade, que inclui a liberdade, se é que existe al-
guma liberdade no homem”)
44. Dois erros
45. Que existe no homem, senão vaidade?

94
CALVINO: FACETAS DO HOMEM E DO SEU MINISTÉRIO

46. Explicando a presença da bondade humana


47. Restrição ou eliminação do mal que há na natureza
humana? (Que se deve fazer, procurar restringir ou
eliminar o mal que há em nós?)
48. Distinção entre necessidade e constrangimento
49. O remédio da graça de Deus
50. A graça e a vontade
52. Testemunhos da Escritura (sobre a relação da graça
e a vontade)
53. Como oravam os antigos
54. Duas partes das boas obras
55. Antes e depois de Adão
56. O dom da perseverança (dom, não capacidade pró-
pria)
59. Sumário deste ponto
60. A graça de Deus como libertação
61. O combate cristão
62. Conflito entre a carne e o Espírito
63. Grave erro anabatista
64. O espírito da Escritura
65. Sumário
66. Quem é diretamente responsável pelas más obras?
67. [Deus] Autor do Mal?
68. Temor das conseqüências de dizer a verdade39

39 Terêncio (195-159 a.C.), poeta cômico romano: “Veritas odium parit”, “A


verdade gera o ódio’. O. O.

95
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

72. A soberania do Criador


73. Falsos mestres da liberdade alongam a discussão
deste assunto
74. Méritos ou dom?
75. A mesma natureza determina as mesmas qualidades
na prática?
76. Exortações para quê? (as exortações à prática do
bem não provam que o homem tem capacidade para
fazer perfeitamente o bem)
77. Desculpas vãs
78. Sumário: dupla ação divina (“Deus age duplamente
em nós: por dentro, por seu Espírito; por fora, por
sua Palavra...”)
79. Vão esforço de usar a Bíblia em prol do erro!
80 a 96: Argumentos dos oponentes e respostas
97. Conclusão: “...o entendimento do homem está de
tal maneira e tão completamente alienado da justi-
ça de Deus que ele não pode imaginar, conceber e
compreender outra coisa que não a maldade, a ini-
qüidade e a corrupção; e... o seu coração acha-se tão
envenenado pelo pecado que só pode produzir per-
versidade de toda sorte. E se suceder que, de algum
modo, o homem faça algo que tenha a aparência de
bem, não obstante, o seu entendimento permanece
sempre envolto na hipocrisia e na vaidade, e o seu
coração está sempre entregue à malícia”.40

40 Confirma isso a história de Israel – na qual há constantes períodos de


rebelião, tanto que a maior parte da nação (o Reino do Norte) acabou
sendo eliminada na Assíria, e a parte menor (o Reino do Sul) sofreu cas-
tigos que culminaram no cativeiro babilônico; e mais, quando o Verbo

96
CALVINO: FACETAS DO HOMEM E DO SEU MINISTÉRIO

Capítulo III
A Lei

Em dias como os atuais, quando a tendência geral é des-


considerar o Decálogo, é importante lembrar que Jesus Cristo
não o anulou nem o desprezou, bastando ler com atenção Ma-
teus 5.17-20 para ver confirmada a afirmação que aqui faço.
Também é importante, e desafiador, observar que os Refor-
madores e grandes pregadores das diversas épocas têm valo-
rizado adequadamente o ensino e a prática dos mandamentos
de Deus. Tenho chamado a atenção por onde ando para o fato
de que um homem moderno (Allen) teve a sabedoria de escre-
ver um livro sobre a psiquiatria de Deus – livro que li há boas
décadas. Fixei o fato de ele receitar aos perturbados nevrálgica,

se encarnou encontrou a igreja dirigida por homens que, na maioria,


falsificavam a verdade, alteravam a Lei de Deus e mereceram de Cristo o
apodo de hipócritas. Na história da igreja, exteriormente a falsidade sem-
pre teve vitória estrondosa, pois a cristandade cobre com suas brilhantes,
mas maléficas sombras, o vero cristianismo, e nas igrejas ditas cristãs um
“cristianismo” nominal zomba dos poucos que insistem no ensino e na
prática da verdade revelada na Escritura. A sociedade atual confirma a
terrível conclusão de Calvino adotando e praticando costumes comple-
tamente contrários à Palavra de Deus, com a conivência ou complacên-
cia da maioria da população – de crentes e descrentes. Até o Judiciário,
derradeira esperança de uma democracia falida, exemplifica o predomí-
nio da tendência má da natureza humana, acatando e cumprindo leis que
favorecem mais o criminoso do que o homem que procura viver com
honestidade. Basta lembrar recursos “legais” como o “habeas corpus”,
bom para poucos inocentes, ótimo para os criminosos; as liminares, que
podem sustar injustiças, mas que muitas vezes suspendem a ação da vera
justiça; o direito que se dá ao acusado de ficar calado. Para a mente sã,
“quem cala consente”. Se o acusado não quer falar, tome-se seu silêncio
como reconhecimento de culpa; e a escandalosa inversão que se faz:
as pessoas que têm títulos de educação superior gozam privilégios no
julgamento e na prisão, quando a pura e simples lógica e a verdade cristã
ensinam que, quanto mais alta a categoria cultural de uma pessoa, maior
a gravidade do seu crime e maior deve ser sua punição. O. O.

97
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

psíquica e mentalmente estas três fabulosas medicinas: O De-


cálogo, o Salmo 23 e o Sermão do Monte. A medida em que
meu leitor estranhe ou não estranhe essa declaração vai indicar
a extensão da sua maturidade ou falta de maturidade cristã.
Calvino faz amplas considerações sobre “A lei interior”
– que responsabiliza todos os seres humanos, e sobre cada um
dos Dez mandamentos. Destaco alguns subtítulos, anotando
a numeração que consta no livro (Volume 1, Capítulo III): “6.
Tendência humana de mudar a lei de Deus com fantasiosas
invenções”; “12. Religião e ética; culto e justiça”; “13. A divi-
são do decálogo e a supressão do segundo mandamento”; “19.
Idólatras antigos – e atuais”; “22. Frouxa defesa da idolatria;
23. A experiência diária nos ensina sobre a tendência geral para
a idolatria; 24. São idólatras ou não?; 25. A defesa inútil dos
idólatras; 26. Muito melhor a palavra da cruz do que as cru-
zes ornamentais!”; “34. Cuidado com juramentos verdadeiros,
mas supérfluos!”; “42. Primazia do sentido espiritual do quarto
mandamento”; “45. Observar o domingo é judaísmo?”; “48. A
honra que devemos aos nossos pais”; “52. Limitação imposta
à nossa obediência aos pais”.
Quanto ao sexto mandamento, “Não matarás”, em me-
nos de duas páginas Calvino dá explicação sobre a abrangência
(ampla) do mandamento e sobre a sua “Dimensão espiritual”.
É notável que Calvino limita-se a considerar o que o manda-
mento realmente visa: Tratar das relações interpessoais. Aqui,
nem Calvino nem o mandamento se referem aos deveres das
autoridades constituídas (Rm 13.1-4), mas ao dever que cada
pessoa tem, não somente de não ferir nem matar ninguém,
mas também de procurar zelar da vida do próximo, com amor
e diligentemente.
Quanto ao sétimo mandamento, “Não adulterarás”, nem
Calvino nem o mandamento fazem distinção entre “adultério”
– entre pessoas casadas, ou contra uma pessoa casada, e “for-

98
CALVINO: FACETAS DO HOMEM E DO SEU MINISTÉRIO

nicação”, relações fora do casamento. Ele não se estende sobre


isso porque em sua época a sem-vergonhice não estava tão
generalizada e tão paparicada pela sociedade como acontece
hoje. Mas eis um excerto que faço de sua introdução desse
mandamento: “Visto que Deus ama a pureza e a castidade, ele
exige que toda impureza esteja longe de nós. Em resumo: que
não nos manchemos com nenhuma imundície ou intemperan-
ça ou excessos da carne. (...) que em todas as nossas ações, a
nossa vida seja regrada pela castidade e pela continência”. Na
sequência Calvino exalta o casamento, condena o celibato cle-
rical, argumentando extensamente contra essa impiedade do
catolicismo romano, mostra as limitações morais dentro do ca-
samento (“Casamento não é licença ilimitada”) e conclui essa
parte respondendo à pergunta: “Quem é o legislador?” Essa
parte ele começa dizendo: “Finalmente, devemos considerar
quem é o legislador que condena pensamentos e atos dissolu-
tos. É Deus, o Senhor absoluto sobre nós. Portanto, ele tem
todo o direito de exigir de nós integridade do corpo, da alma
e do espírito”.
Prosseguindo: “65. Diferentes categorias de furtos e
roubos”; “70. Deus detesta e proíbe a mentira, a falsidade e
a maledicência; 71. Deus ama e exige a verdade, a equidade,
a justiça”; “75. Diferença entre intenção e cobiça; 76. Réplica
suspeita”; “78. Definidas a intenção e a finalidade da lei; 79. O
amor é o resumo por excelência da lei”; “86. A falsa distinção
entre pecados mortais e veniais.
Nas páginas finais do primeiro volume da obra “As Insti-
tutas” (subtítulos 89 em diante), Calvino trata proficientemen-
te, como lhe era comum fazer, de importantes pontos – dentre
outros, estes: A suficiência da lei para salvação, se a pudésse-
mos cumprir perfeitamente; a perfeição da lei “choca-se terri-
velmente com a incapacidade do homem para cumpri-la per-
feitamente”; a permanente vigência da lei, não como meio de

99
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

salvação, mas como norma para o viver cristão; e os usos da lei.


Conclui lembrando que há “no cerimonial, algo que vai além
e acima da exterioridade: Cristo, que, fez a purificação dos pe-
cados em sua morte, uma vez por todas, e aboliu todas aquelas
observâncias externas, pelas quais os homens se confessavam
devedores a Deus, e os seus débitos não eram cancelados”.

VOLUME 2

Capítulo IV

A Fé, ou Explicação do Credo dos Apóstolos

Breves excertos:
“5. A Palavra é um espelho no qual a fé pode contemplar
Deus”; “7. Definição de fé: “... a fé é um conhecimento firme
e certo da boa vontade de Deus para conosco, e, fundamenta-
da na promessa gratuita em Jesus Cristo, é revelada ao nosso
entendimento e selada em nosso coração pelo Espírito”. “16.
A arma da fé: a Palavra de Deus”. “24. Todas as promessas da
graça concentram-se em Cristo”; “43. O Credo dos Apóstolos:
quadro que dá perfeita explicação da fé”; “46. Exposição do
Credo dos Apóstolos”. Daqui por diante é feita a exposição
do Credo, até a página 128 deste volume. No item 128, página
125, Calvino condena o erro pueril dos quiliastas do seu tem-
po, que delimitavam “o Reino de Cristo e a sujeição do Diabo
e seus membros a mil anos”. No item 129 ele fala da relação
entre fé e esperança, e conclui esse item e o capítulo com estas
palavras: “Nós, ao contrário [daqueles que dizem que a segura
esperança cristã é ‘presunção’], quando vemos que Deus vi-
sivelmente ordena aos pecadores que tenham firme e segura
esperança de salvação, ousadamente presumimos tanto da sua
verdade que, mediante a sua misericórdia, rejeitando toda a

100
CALVINO: FACETAS DO HOMEM E DO SEU MINISTÉRIO

confiança em nossas obras, esperamos sem nenhuma dúvida


o que ele nos promete”.
Observe-se que, como de hábito, Calvino responde às
objeções que em geral eram levantadas. E, tanto nas respos-
tas a objeções como na exposição das doutrinas, é rica a sua
fundamentação bíblica. Lembro isso aqui para fixar a mais
importante faceta de Calvino: seu apego fiel e irredutível às
Escrituras Sagradas.

Capítulo V
O Arrependimento

Ampla exposição do arrependimento, desde os seus an-


tecedentes até os seus frutos. No item 26 Calvino faz um “Co-
tejo contrastante: indulgências versus evangelho” – e na sequ-
ência contesta “argumentos fracos”. Nas páginas 170 a 174 o
Reformador faz uma “firme declaração de fé bíblica”.
Nos itens 35 a 37 Calvino faz ampla argumentação contra
a doutrina herética do purgatório.41

Capítulo VI
A Justificação pela Fé e os Méritos das Obras

Só destaco uns poucos itens deste importantíssimo ca-


pítulo: “6. Definição: (...) a justiça da fé é a reconciliação com
Deus, e... esta consiste na remissão dos pecados”; “12. O único

41 Tenho dito em vários lugares que considero a invenção do purgatório


um crime que o catolicismo comete contra os seus fiéis (católicos roma-
nos praticantes), porque a única esperança que lhes concede com essa
heresia é a de ficarem não muito tempo no purgatório, e isso desde que
contem com alguém que continue rezado missas por suas almas!

101
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

recurso é a misericórdia de Deus”; “15. Uma regra curta e boa.


(...) na proporção em que cada um se firmar em si mesmo, nes-
sa mesma proporção aumentará os empecilhos para a obtenção
da graça de Deus”; “30. ‘Servos inúteis’ podem alegar obras
de supererrogação?”; “31. Duas pragas no coração: ...uma é a
confiança em nossas obras; a outra é dar a elas algum louvor”.
Na página 226, respondendo à pergunta se não há nenhum
valor em nossas obras, entre outras coisas Calvino diz: “... ‘não
nos cansemos de fazer o bem’... Não há dúvida de que tudo o
que merece louvor em nossas obras deve-se à graça de Deus,
e de que não há uma só gota de bem que devamos atribuir
apropriadamente a nós mesmos”; “58. Tiago está contra nós?”
– Calvino argumenta magnificamente defendendo a unidade
da Escritura e a harmonia fundamental entre Tiago e Paulo.

VOLUMES 3 E 4
Para não estender-me em demasia, vou restringir-me da-
qui em diante a citar os capítulos dos volumes 3 e 4 das Insti-
tutas. Como algures já disse, insisto em transcrever partes das
Institutas porque já me vou cansando de ouvir gente de variada
categoria referir-se a Calvino como se ele só tivesse ensina-
do a doutrina da predestinação, ou, outra gente, como se ele
fosse o responsável pelo capitalismo selvagem que a ganância
humana desenvolveu, e que, como a nossa política nacional
atual mostra, domina corações não só de capitalistas decla-
rados mas também os de muitos daqueles que exteriormente
são inimigos do capitalismo. Uma vez um famoso socialista
brasileiro entrou numa sala em que estávamos eu, um pastor
de tendências socialistas, de outra denominação, e uma irmã e
um cunhado dele – homem de pura e cristalina vida cristã. Em
certo momento, o pastor estava dizendo ao cunhado: “Você
é uma ótima pessoa, mas precisa inclinar-se um pouco para a
esquerda...”. Nisso bateram à porta, abri, e entrou o socialista.

102
CALVINO: FACETAS DO HOMEM E DO SEU MINISTÉRIO

Bati nas costas dele e fui dizendo: “Vejam aqui um capitalista


que prega o socialismo”. Semanas antes ele havia adquirido
uma excelente casa, de várias dimensões, pagando o alto valor
à vista! – Ele apenas sorriu.
Vejamos então os títulos dos capítulos dos volumes 3 e 4.

VOLUME 3
Capítulo VII – Semelhanças e Diferenças entre o Antigo e
o Novo Testamentos
Capítulo VIII – A Predestinação e a Providência de Deus
Capítulo IX – A Oração, com a Explicação da Oração do
Senhor
Capítulo X – Os Sacramentos
Capítulo XI – O Batismo

VOLUME IV
Capítulo XII – Sobre a Ceia do Senhor
Capítulo XIII – Sobre as cinco outras cerimônias falsamen-
te chamadas sacramentos; quais sejam: a con-
firmação, a penitência, a extrema-unção, as
ordens eclesiásticas e o casamento
Capítulo XIV – Sobre a liberdade cristã
Capítulo XV – Sobre o poder eclesiástico
Capítulo XVI – Sobre o governo civil
Capítulo XVII – Sobre a vida cristã
O último item (45) deste último volume diz: “A nossa
vocação deve ser levada em conta em tudo quanto planejamos
e fazemos”.

103
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

Schaff nos oferece um excelente sumário sobre a firmeza


doutrinária de João Calvino e seu apego à Palavra de Deus.
Assim o historiador descreve a religião do Reformador:42

“Absoluta obediência de seu intelecto à Palavra de Deus, e obediência de


sua vontade à vontade de Deus: esta foi a alma de sua religião”.

TESTEMUNHO DE JEAN HENRI MERLE D’AUBIGNÉ (1794-1872)


Despertamento 1
Em seu livro sobre Calvino que tive o privilégio de tra-
duzir,43 J.H. Merle D’Aubigné narra uma experiência que teve.
Em contato com o teólogo escocês Robert Haldane durante
a estada deste na Suíça, o jovem foi despertado para a realida-
de de que a vitalidade que deveria expandir-se vibrantemente
das doutrinas apregoadas pela Reforma se haviam embotado,
gerando uma religião formal com poucos frutos na piedade
pessoal e na ação prática. A religião cristã ficava em geral pa-
rada no intelecto, não descendo ao coração. A ideia de depra-
vação total era ignorada ou omitida. Quando Haldane expôs
essa doutrina a um grupo de estudantes, D’Aubigné lhe disse:
“Agora eu vejo essa doutrina na Bíblia”, ao que Haldane repli-
cou: “Sim, mas você a vê em seu coração?”
“A breve permanência de Haldane em Genebra fortale-
ceu grandemente le Revéil, o Despertamento ocorrido na cida-
de e que parece ter durado até 1830.”

42 Cit. por Herminsten Maia Pereira da Costa em Fides Reformata XIII, Nº.
1 (2008), p. 86.
43 Seja Cristo Engrandecido – O Ensino de Calvino para Hoje, J. H. D’Aubigné,
tradução (do inglês) de Odayr Olivetti, Publicações Evangélicas Selecio-
nadas (PES), São Paulo, Primeira edição: 2008.

104
CALVINO: FACETAS DO HOMEM E DO SEU MINISTÉRIO

Despertamento 2
Em 1817 D’Aubigné esteve presente nas celebrações das
95 teses de Lutero, realizadas no Castelo de Wartburg. A ênfase
maior foi ao significado intelectual e político de Lutero, fican-
do no esquecimento sua significação espiritual. Esse triste fato
teve um fruto feliz: Impressionado negativamente, D’Aubigné
decidiu escrever uma história da Reforma que salientasse o
sentido religioso do estupendo movimento do século XVI. O
moço tinha apenas vinte e três anos de idade quando tomou
essa decisão, e aí está, à disposição de quem quiser ler, a mo-
numental obra, a História da Reforma do Século XVI, publicada
pela Casa Editora Presbiteriana, São Paulo.44 O autor comple-
tou essa obra no ano de 1853. No período de 1863 a 1878,
D’Aubigné escreveu o livro História da Reforma na Europa no
Tempo de Calvino, em oito volumes. Cinco destes foram publi-
cados durante a vida do autor; os três últimos, postumamente.

Procurando Despertar
Nos dois primeiros momentos o Despertamento foi de
D’Aubigné; neste, ele, fiel crente em Jesus Cristo, procurou
despertar outros para a amortecida herança da Reforma, quan-
do foi convidado para falar no seguinte grande evento:

TRICENTENÁRIO DA MORTE DE JOÃO CALVINO


(27.05.1564-1864)
A mensagem proferida na ocasião por J. H. Merle
D’Aubigné está num precioso livro que traduzi, intitulado Seja
Cristo Engrandecido.45

44 Sem data. Adquiri os seis volumes na década de 1950.


45 Seja Cristo Engrandecido – O Ensino de Calvino para Hoje, J. H. Merle
D’Aubigné, traduzido por Odayr Olivetti (de uma versão em inglês). Pu-
blicações Evangélicas Selecionadas (PES), São Paulo, 1ª. ed.: 2008.

105
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

Na introdução constam preciosas informações sobre


Calvino. Proclamando a humildade pessoal de Calvino e re-
conhecendo que ele cometeu erros, o autor cita o Reforma-
dor (p. 37): “Para isto fomos trazidos a este mundo, e fomos
iluminados pela graça, para que O engrandeçamos em nossa
vida e em nossa morte”, e então declara: “Toda a vida de Cal-
vino proclamou glória, glória, glória a Cristo, e ao eu confusão
de rosto. Glória à sua Palavra, glória à Sua Pessoa, glória à Sua
Graça, glória à Sua Vida. São essas as quatro ‘glórias’ que tanto
o apóstolo46 como o Reformador convidam vocês a render ao
Senhor”. E essas expressões de glória constituem os quatro ca-
pítulos do livro, cujos títulos são: A Palavra de Cristo, a Pessoa
de Cristo, A Graça de Cristo, A Vida de Cristo.
Dentro da minha afirmação de que o apego à Escritura
constitui importantíssima faceta de João Calvino, transcrevo
as primeiras palavras do capítulo 1: “O evangelho de Cristo é
o que Calvino, doutor dos tempos antigos como também dos
tempos modernos, glorificava primeiramente em sua vida”.
No final do grandioso sermão de D”Aubigné a ouvintes
de vários países, o pregador fez um candente apelo visando
ao despertamento do brio dos Reformados, à luz da gloriosa
herança recebida dos Reformadores. Eis a conclusão do gran
finale:
“Para o alto, cristãos, mais alto! Excelsior! Ascenda a
Igreja às alturas nas quais Calvino, melhor dizendo, nas quais
Cristo a colocou. Que as comemorações destes dias reavivem
em nossos rebanhos, não decretos legais, mas fé, profundo
conhecimento das Escrituras, ardente apego à verdade, san-
tificação no Senhor, compaixão pelos aflitos, um espírito de

46 Pouco antes o orador tinha feito alusão à declaração do apóstolo Paulo


em Filipenses 1.20, que estão fortemente reproduzidas na declaração
feita por João Calvino.

106
CALVINO: FACETAS DO HOMEM E DO SEU MINISTÉRIO

devoção e de sacrifício, infatigável atividade e amor por Jesus


Cristo, aspectos dos quais o grande Reformador nos deixou
tão grande exemplo.
“Haja, para cada um de nós, neste dia da morte, uma real
ressurreição. ‘O que está frio venha a ser aquecido’, como Cal-
vino diz, ‘pois um pequeno fogo logo se apagará, a não ser que
seja alimentado pelo sopro e pelo acréscimo de nova lenha’.
“Vem, Senhor, acrescenta lenha e sopra sobre o fogo,
uma vez que somente o Teu sopro comunica chama e vida.
Sopra sobre estas brasas meio consumidas, e que um fogo ce-
lestial chameje em Teu povo.
“‘Batiza-nos com o Espírito e com fogo. ’ E, apesar de
todas as enchentes de água gelada que obreiros imprudentes
estão atualmente derramando sobre o altar que acendeste na
terra, ‘Torne-se a casa de Jacó um fogo, e a casa de José uma
chama’; e todos nós, filhos da Reforma, sejamos luzes no mun-
do e manifestemos nele, deste dia em diante, a Tua Palavra, a
Tua Pessoa, a Tua Graça, a Tua Vida, a Tua Glória, ó Jesus
Cristo, Rei da Igreja, Senhor nosso e nosso Deus!”
Amém e Amém!

O MELHOR DIA DO CRENTE47


As narrativas dos últimos dias, da morte e dos funerais
de João Calvino são altamente consoladoras para os que ver-
dadeiramente creem no Senhor Jesus Cristo e nos ternos bene-

47 O dia de sua morte. Porque nesse dia ele passa para a eternidade glorio-
sa. Tomei essa expressão do título de um dos livros do puritano inglês
Thomas Brooks (1608-1680): O Último Dia do Crente é o Seu Melhor Dia.
O. O.

107
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

fícios de sua obra redentora. Uma enciclopédia inglesa registra


o seguinte sobre a morte de João Calvino: “Ele expirou sere-
namente nos braços do seu fiel amigo Beza na noite de 27 de
maio, com cinquenta e cinco anos de vida”.48
Vicente Themudo Lessa, em sua citada obra, descreve
com pormenores os últimos dias de João Calvino. Faço aqui
alguns breves destaques:49

• Em 1564 recrudesceram as provações de Calvino,


e ele não recuou em suas realizações. “... em toda
parte, seus amigos viam isso com assombro e solici-
tavam dele que poupasse as poucas forças que res-
tavam. [Mas ele] Queria ser encontrado vigilante à
hora da partida”.
• Veio “a falecer em plena lucidez”.
• Em sua “última enfermidade, traduziu do latim para
o francês a Harmonia sobre Moisés, fez a revisão
da tradução de Gênesis, escreveu sobre o Livro de
Josué e, finalmente, passou em revista e corrigiu a
maior parte das anotações francesas sobre o Novo
Testamento... Além disso, não se poupou aos inte-
resses da igreja, respondendo por palavra e por es-
crito sempre que se fazia necessário...”.
• “Em 27 de março fez-se transportar à casa do Con-
selho. (...) Propôs ao Senado a nomeação do novo
reitor e agradeceu a Suas Excelências as provas de
bondade nesta última doença. Disse, então, ser aque-
la a última vez que ali o notariam. Todos ficaram co-
movidos”.

48 Everyman’s Encyclopædia, ibid.


49 Lessa, op. cit., extratos das páginas 262 a 268.

108
CALVINO: FACETAS DO HOMEM E DO SEU MINISTÉRIO

• No dia 25 de abril, domingo, ele foi “pela derradeira


vez à igreja. Recebeu reverentemente das mãos de
Beza os elementos eucarísticos. Suas mãos trêmu-
las... Um raio de alegria iluminava agora a sua face,
e com voz débil entoou o hino: ‘Despede, Senhor, o
teu servo em paz’”.
• Testamento (com zeloso registro do notário atestan-
do da rigorosa veracidade dos termos colhidos de
Calvino): “Seu reduzido pecúlio, produto aproxima-
tivo da venda da biblioteca e do mobiliário, legou-o a
seu irmão Antônio Calvino e aos filhos deste, fazen-
do uma pequena doação à caixa dos estudantes po-
bres e outra aos estrangeiros necessitados”. Sobre a
modéstia e o caráter não ambicioso de Calvino, Les-
sa registra este comentário de Goguel:50 “Tudo isso
prova o desinteresse deste homem que havia sido o
árbitro da República de Genebra e de uma parte da
Europa ocidental. Sua fortuna não atingia a cifra de
255 escudos!”
• No período anterior a sua morte, dirigiu um afe-
tuoso adeus aos 25 síndicos (25.04) e convidou os
pastores de Genebra para fazerem sua costumeira
reunião e refeição em sua casa (19.05); compareceu
à mesa por breve tempo e depois teve que retornar
ao quarto. Ao fazê-lo, disse: “Uma parede entre nós
não estorvará a nossa comunhão espiritual”. Não era
do seu feitio reclamar. Nos momentos de dores mais
cruciais ele se limitava a exclamar “com o salmista:
‘Emudeci; não abro a minha boca, porquanto tu o
fizeste’ (Sl 39.9), e nas palavras de Isaías: ‘Como a
pomba, eu gemia’ (Is 38.14)”.

50 G. Goguel, Le Reformateur de La France et de Genève, Jean Calvin, p. 69.

109
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

• Falecimento. No dia 27 de maio de 1564, dia do seu


falecimento, Calvino “pôde falar com mais desem-
baraço...”. Numa declaração inacabada, “repetiu ele
as palavras de S. Paulo: ‘Os sofrimentos da presente
vida não podem ser comparados com a glória vin-
doura’. Não pôde acabar a última palavra”.
• “No terceiro centenário da Reforma em Genebra,
em 1835, cunhou-se uma medalha comemorativa,
tendo num lado a imagem de Calvino com o nome
e data do nascimento e da morte. No reverso via-
se o púlpito de Calvino com o texto: ‘Conservou-se
firme como se visse o invisível” (Hb 11.27), e a ins-
crição latina: ‘Corpore fractus, Animo potens, Fide victor,
Ecclesiæ Reformator, Genevæ pastor et tutamen’”.51
• Lessa conclui assim suas referências aos dias finais
e à morte de João Calvino: “Débil na estrutura fí-
sica, vigoroso, porém, na organização intelectual e
moral, simples no viver, austero nos costumes, in-
defeso no trabalho, irredutível na fé, erudito no sa-
ber, nobre nas intenções, invulgar na coragem, hábil
no raciocínio – soube João Calvino, como poucos
neste mundo, redimir prudentemente o seu tempo
e empregar o talento e os dons de que fora dotado
na glorificação do Criador e Redentor de sua alma.
O emérito doutrinador e piedoso homem de Deus
ocupará sempre um lugar de destaque entre os gran-
des vultos da igreja, sem embargo dos anátemas que
os adversários de todos os tempos procuram fazer
descer sobre sua memória respeitável”.

51 “Fraco no corpo, poderoso na alma, vitorioso na fé, Reformador da


igreja, pastor e tutor de Genebra”, tradução deste autor.

110
CALVINO: FACETAS DO HOMEM E DO SEU MINISTÉRIO

• Opinião do historiador Schaff sobre João Calvino:


“Levando em conta todas as suas falhas, [Calvino]
deve ser julgado como um dos maiores e melhores
homens que Deus fez aparecer na história do cristia-
nismo”.52

Facetas da vida e obra de João Calvino? – Ele é grande


demais, sua obra é extensa e profunda demais para que, mesmo
tratando de facetas, esgotemos o assunto. Existem em sua pes-
soa, em seu modo de viver, em seu ministério e em seus livros
muitos outros aspectos que mereceriam menção.
Concluo este breve ensaio com esta tríplice comparação:
Abel, John Cotton e João Calvino, citando a importantíssima
obra Meeting the Puritans, de J.R. Beeke e R.J Pederson.

Aplicam-se com mais forte razão a João Calvino o que o puritano John
Norton disse do puritano John Cotton:
“Estando morto, ainda fala”, em seus preciosos escritos.
Ainda mais quando lembramos que os seus escritos glorifi-
cam Deus o Pai e o Filho e o Espírito Santo.

52 Philip Schaff, History of the Christian Church, p.101, apud Lessa, op. cit., p.
253.

111
“O fim de um teólogo não é deleitar os ouvidos, com arguir loquazmen-
te, mas firmar as consciências, em ensinando o verdadeiro, o certo, o
proveitoso.”

J. Calvino
CAPÍTULO 6

CALVINO COMO TEÓLOGO

BENJAMIN B. WARFIELD

O assunto desse discurso é “João Calvino como Teólo-


go”, e considero que o que será esperado de mim é transmitir
alguma ideia sobre o tipo de teólogo que era João Calvino, e de
sua qualidade como um pensador teológico.
Receio que deva pedir desde o início que vocês extirpem
de suas mentes uma impressão muito comum, a saber, que as
principais características de Calvino como teólogo era, por um
lado, a audácia – talvez até, eu poderia dizer, imprudência – da
especulação; e por outro lado, a crueldade do desenvolvimento
lógico, do escolasticismo frio e insensível. Temos sido infor-
mados, por exemplo, que ele argumenta sobre os atributos de
Deus precisamente como argumentaria sobre as propriedades
de um triângulo. Nenhuma concepção errônea poderia ser mais
grosseira. O teólogo especulativo da Reforma era Zwínglio,
não Calvino. O teólogo escolástico entre os primeiros Refor-
madores era Peter Martyr, não Calvino. Isso foi perfeitamente
entendido por seus contemporâneos. “Os dois teólogos mais
excelentes dos nossos tempos”, observa Joseph Scaliger, “são
João Calvino e Peter Martyr, o primeiro porque tem lidado com
as Sagradas Escrituras como elas deveriam ser tratadas – com
sinceridade, quero dizer, pureza e simplicidade, sem quaisquer

113
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

sutilezas escolásticas… Peter Martyr, porque parece ter caído


sobre ele engajar-se com os Sofistas, tem sobrepujado-os sofis-
ticamente, e os fulminado com as suas próprias armas”.
Não deve ser negado, sem dúvida, que Calvino era um
gênio especulativo de primeira ordem, e na força de sua análise
lógica ele possuía uma arma que o tornou terrível para os seus
adversários. Mas não era desses dons que ele dependia para
formar e desenvolver suas ideias teológicas. Seu método teoló-
gico era persistentemente, rigorosamente, alguns poderiam até
dizer exageradamente, a posteriori. Todo raciocínio a priori aqui,
ele não somente evitava, mas repelia vigorosamente. Seu ins-
trumento de pesquisa não era a amplificação lógica, mas a in-
vestigação exegética. Em poucas palavras, ele era distintamente
um teólogo bíblico, ou, digamos francamente, por eminência o
teólogo bíblico da sua era. Para onde a Bíblia o tomava, para ali ele
ia: onde faltavam as declarações escriturísticas, ali ele parava.
É isso que concede ao ensino teológico de Calvino a qua-
lidade que é sua característica primária e sua real ofensa aos
olhos dos seus críticos – quero dizer, sua positividade. Não há
como ignorar a nota de confidência em seu ensino, e talvez não
seja surpresa que essa nota de confidência irrite seus críticos.
Eles se ressentem com o ar de decisão que ele dá às suas decla-
rações, não parando para considerar que ele lhes dá esse ar de
decisão porque ele as apresenta, não como seus ensinos, mas
como os ensinos do Espírito Santo em sua Palavra inspirada.
Dessa forma, a positividade de tom de Calvino não é marca de
extravagância, mas de sobriedade e moderação. Ele até mes-
mo fala com impaciência da especulação, e do que podemos
chamar de teologia dedutível por inferência, sendo, portanto,
ele mesmo mencionado com impaciência por historiadores
modernos do pensamento como um “teólogo meramente bí-
blico” – que não tinha, portanto, qualquer doutrina particular
sobre Deus, tal como tinha Zwínglio. A repreensão, se é que é

114
CALVINO COMO TEÓLOGO

repreensão, é justa. Calvino recusou ir além “do que está escri-


to” – escrito claramente no livro da natureza ou no livro da re-
velação. Ele insistia que, por exemplo, não podemos conhecer
nada de Deus, exceto o que ele escolheu nos fazer conhecido
em suas obras e Palavra; tudo, além disso, é apenas fantasia
vazia, que meramente “flutua” no cérebro. E é justamente por-
que ele recusou ir um passo além do que está escrito que ele se
sentia tão seguro em seus passos. Ele não poderia apresentar
os ditados do Espírito Santo como uma série de proposições
contestáveis.
Tal atitude para com as Escrituras poderia consistir con-
cebivelmente com um profundo intelectualismo, e Calvino
certamente é considerado em todo o mundo como um inte-
lectualista à outrance. Mas isso novamente é uma completa má
compreensão. A positividade do ensino de Calvino tem uma
raiz bem mais profunda que meramente a convicção do seu
entendimento. Quando Ernest Renan o caracterizou como o
homem mais cristão de sua geração, ele não disse isso com
a intenção de um grande louvor, mas ele fez uma considera-
ção mais verdadeira e profunda do que pretendeu. A qualida-
de fundamental da natureza de Calvino era precisamente essa:
a religião. Não é meramente que todos os seus pensamentos
eram coloridos por um profundo sentimento religioso; mas
sim que toda substância do seu pensamento era determinada
pelo motivo religioso. Dessa forma, sua teologia, se alguma
vez existiu uma teologia do coração, era distintamente uma te-
ologia do coração. Nele a máxima que “é o coração que faz o
teólogo” encontra talvez sua mais eminente ilustração.
Sua inteligência ativa e poderosa, sem dúvida, penetrou
nas profundezas de cada assunto que tocou, mas ele era in-
capaz de lidar com qualquer assunto religioso de uma forma
que ministraria somente ao que pareceria para ele a curiosidade
fútil da mente. Não era que ele se refreasse de tais exercícios

115
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

meramente intelectuais sobre os temas da religião, mas sim que


a própria força do seu interesse religioso os inibia instintiva-
mente.
Calvino marcou uma época na História da doutrina da
Trindade, mas de todos os grandes teólogos que têm se ocupa-
do com esse tópico elevado, nenhum tem sido mais determina-
do do que ele a não se perder nas sutilezas intelectuais às quais
ele convida a mente inquiriadora; e Calvino marcou uma época
no desenvolvimento da doutrina precisamente porque seu in-
teresse nela era vital, e não mera ou primariamente especulati-
vo. Ou tome a grande doutrina da predestinação que se tornou
identificada com o seu nome, e com respeito a qual ele é, talvez
mais comumente de todas as coisas, suposto ter dado as rédeas
à construção especulativa e ter levado o desenvolvimento lógi-
co aos extremos injustificáveis. Calvino, sem dúvida, na clareza
cristalina e na honestidade incorruptível do seu pensamento,
bem como na fidelidade de sua reflexão sobre o ensino bíblico,
compreendeu plenamente e sustentou fortemente a doutrina
da vontade de Deus como a prima causa rerum. Este, para Cal-
vino era também um conceito religioso. E foi constantemen-
te afirmado, simplesmente, porque era um conceito religioso
– sim, num alto e verdadeiro sentido, o mais fundamental de
todos os conceitos religiosos. Mas, mesmo assim, não foi a
essa predestinação cósmica que o pensamento de Calvino com
maior persistência se voltou. Antes, porém, intensificou-se na
predestinação soteriológica sobre a qual, como um pecador
sem esperança carecendo da salvação pela livre graça de Deus,
ele deve descansar. E, portanto, Ebrard está muito correto
quando diz que a predestinação aparece no sistema de Calvino
não como o decretum Dei, mas como o electio Dei.
Não foi meramente a habilidade de debate que levou
Calvino a ignorar a predestinação quando falando da dou-
trina de Deus e da providência, e reservá-la para o ponto

116
CALVINO COMO TEÓLOGO

onde está falando da salvação. Aqui era onde residia seu mais
profundo interesse. O que enchia o seu coração e jorrava em
abundância em todas as câmaras da sua alma era um senso
profundo de sua eterna dívida à livre graça de Deus seu Sal-
vador. Seu zelo em afirmar a doutrina da dupla predestinação
está fundamentado na clareza com a qual ele percebia – como
de fato percebido com ele por todos os Reformadores – que
somente assim o fermento maligno do “sinergismo” pode ser
eliminado e a livre graça de Deus ser preservada em sua pu-
reza no processo salvífico. As raízes do seu zelo estão planta-
das, resumindo, em sua consciência da absoluta dependência
como um pecador da livre misericórdia de um Deus salvador.
A soberania de Deus na graça era um constituinte essencial
de sua profunda consciência religiosa. Como seu grande mes-
tre, Agostinho – como Lutero, Zwínglio, e Bucer, e todo o
restante daqueles espíritos sublimes que trouxeram o grande
reavivamento da religião que chamamos de Reforma – ele
não poderia suportar que a graça de Deus não deveria rece-
ber toda a glória da glória do resgate dos pecadores daquela
destruição na qual eles estavam envolvidos, e da qual, sim-
plesmente porque estavam envolvidos nela, eram incapazes
de fazer algo em prol do seu próprio resgate.
O interesse fundamental de Calvino como teólogo reside,
é claro, na região amplamente designada como soteriológica.
Talvez possamos ir mais adiante e adicionar que, dentro desse
amplo campo, seu interesse era mais intenso na aplicação à
alma pecadora da salvação adquirida por Cristo – resumindo,
no que é tecnicamente conhecido como ordo salutis. Isso tem
até se tornado sua repreensão em alguns lugares, e temos sido
informados que a principal falta das Institutas como um tratado
em ciência teológica, reside em seu caráter muito subjetivo. Seu
efeito, em todo caso, tem sido constituir Calvino pré-eminen-
temente o teólogo do Espírito Santo.

117
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

Calvino fez contribuições de primeira importância para


outros departamentos do pensamento teológico. Já foi obser-
vado que ele marca uma época na História da doutrina da Trin-
dade. Ele também marca uma época no modo de apresentar a
obra de Cristo. A apresentação da obra de Cristo sob as rubri-
cas do triplo ofício de Profeta, Sacerdote e Rei foi introduzida
por ele: e a partir dele foi assumida por toda a Cristandade
– nem sempre, é verdade, em seu espírito ou com sua comple-
tude de desenvolvimento, mas ainda com grande vantagem.
Na ética cristã, também, seu impulso provou fazer época, e
essa grande ciência foi por uma geração cultivada somente por
seus seguidores.
É provável, contudo, que a maior contribuição de Cal-
vino para a ciência teológica resida no rico desenvolvimento
que ele deu – e que ele foi o primeiro a dar – à doutrina da
obra do Espírito Santo. Sem dúvida, desde a origem do Cris-
tianismo, todo o mundo, mesmo aqueles que têm sido apenas
ligeiramente imbuídos do espírito cristão, tem crido no Espíri-
to Santo como o autor e doador da vida, e tem atribuído tudo
o que é bom no mundo, e particularmente em si mesmo, aos
seus santos ofícios. E, sem dúvida, ao tratar da graça, Agosti-
nho desenvolveu a doutrina da salvação como uma experiência
subjetiva com grande vividez e em grande detalhe, e o curso
inteiro dessa salvação foi plenamente entendido, sem dúvida,
como sendo a obra do Espírito Santo. Mas no mesmo sentido
no qual podemos dizer que a doutrina do pecado e a graça
datam desde Agostinho, a doutrina da satisfação desde Ansel-
mo, a doutrina da justificação pela fé desde Lutero, – devemos
dizer que Calvino foi o primeiro a relacionar toda a experiên-
cia da salvação especificamente à operação do Espírito Santo,
explicá-la em seus detalhes, e contemplar seus vários passos e
estágios em progresso ordeiro como o produto da obra espe-
cífica do Espírito Santo em aplicar a salvação à alma. Dessa

118
CALVINO COMO TEÓLOGO

forma, ele deu expressão sistemática e adequada a toda a dou-


trina do Espírito Santo e fez dela a possessão segura da Igreja
de Deus.
Tem sido comum dizer que a obra teológica inteira de
Calvino pode ser resumida nisto – que ele emancipou a alma
da tirania da autoridade humana e a livrou das incertezas da
intermediação humana nas coisas religiosas: que ele trouxe a
alma à presença imediata de Deus e a lançou, para sua saúde
espiritual, sobre a livre graça de Deus somente. Onde o Ro-
manista colocou a Igreja, é dito, Calvino fixou a Deidade. O
dito é verdade, e talvez, quando corretamente entendido e pre-
enchido com seu conteúdo apropriado, pode suficientemente
caracterizar o efeito do seu ensino teológico. Mas é expresso
de uma forma muito generalizada para ser adequado. O que
Calvino fez foi, especificamente, substituir a doutrina da Igreja
como a única fonte de conhecimento seguro de Deus e a úni-
ca instituição de salvação, pelo Espírito Santo. Anteriormente,
os homens olhavam para a Igreja em busca de todo conheci-
mento de Deus confiável e alcancável, e bem como para to-
das as comunicações de graça acessíveis. Calvino ensinou-lhes
que nenhuma dessas funções tinha sido legada à Igreja, mas
a Deus, o Espírito Santo retinha ambas em suas mãos e con-
feria conhecimento de Deus e comunhão com Deus a quem
quisesse.
As Institutas é, portanto, apenas um tratado sobre a obra
de Deus, o Espírito Santo, em fazer Deus salvificamente co-
nhecido ao homem pecador, e trazer o homem pecador à santa
comunhão com Deus. Portanto, ela abre com a grande doutri-
na do testimonium Spiritus Sancti – outra das doutrinas frutíferas
que a Igreja deve a Calvino – na qual ele ensina que o único
conhecimento vital e vitalizante de Deus que um pecador pode
obter, é comunicado a ele por meio da obra interior do Espí-
rito Santo em seu coração, sem a qual está espalhada em vão

119
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

diante dos seus olhos a revelação da glória de Deus nos céus,


e a revelação de sua graça nas páginas claríssimas da Palavra.
E, portanto, ela se centra na grande doutrina da regeneração
– o termo é amplo o suficiente em Calvino, cobrindo todo o
processo da restauração subjetiva do homem a Deus – na qual
ele ensina que o único poder que pode despertar num coração
pecador os movimentos de uma fé viva, é o poder desse mes-
mo Espírito de Deus movendo-se com uma operação verda-
deiramente criativa sobre a alma morta. Quando essas grandes
ideias são desenvolvidas em sua plena expressão – com expli-
cação de todas as suas pressuposições no amor de Deus e na
redenção de Cristo, e de todas as suas relações e consequentes
– temos a teologia de Calvino.
Ora, sem dúvida, uma teologia que confia todas as coisas
às operações daquele Espírito de Deus que “opera quando e
onde e como quer”, coloca tudo sobre a boa vontade soberana
de Deus. A teologia de Calvino é, portanto, predestinação em
sua essência, e ele não falha em sua fidelidade aos ensinos da
Escritura e com gênio sistematizador e perspicaz, em desen-
volver seu predestinarianismo com plenitude e com ênfase; de
ver em tudo o que acontece a vontade de Deus se cumprindo,
e vindicar a Deus a glória que lhe é devida como Senhor e
disponente de todas as coisas. Mas essa não é a peculiaridade
da sua teologia. Agostinho tinha ensinado isso mil anos antes
dele. Lutero e Zwínglio e Martin Bucer, seu próprio professor
nesses altos mistérios, estavam ensinando isso tudo enquanto
ele estava aprendendo. Todo o corpo dos líderes do movimen-
to da Reforma estava ensinando isso juntamente com ele. O
que é especial nele é a clareza e a ênfase de sua referência sobre
tudo que Deus faz acontecer, especialmente no processo da
nova criação, a Deus o Espírito Santo, e o desenvolvimento
a partir desse ponto de vista de uma doutrina rica e plena da
obra do Espírito Santo.

120
CALVINO COMO TEÓLOGO

Aqui então está provavelmente a maior contribuição de


Calvino para o desenvolvimento teológico. Em suas mãos, pela
primeira vez na História da Igreja, a doutrina do Espírito Santo
chegou aos seus direitos. No coração de ninguém mais do que
no dele a visão da glória de Deus brilhou, e ninguém estava
mais determinado do que ele a não dar a glória de Deus a ou-
trem. Quem foi mais devotado do que ele ao Salvador, por cujo
sangue ele tinha sido comprado? Mas, acima de tudo o mais,
é o senso da operação soberana da salvação pelo poder oni-
potente do Espírito Santo que caracteriza todo o pensamento
de Calvino sobre Deus. E acima de tudo o mais, ele merece,
portanto, o grande nome de o teólogo do Espírito Santo.

121
“Pois o Senhor nomeou-nos ministros de sua doutrina com este pré-requi-
sito, que temos de ser tão firmes na defesa da fé quanto na comunicação
dela.”

J. Calvino
CAPÍTULO 7

CALVINO COMO POLEMISTA

CORNELIUS VAN TIL

A atividade de Calvino como polemista começou com sua


“repentina conversão” à fé protestante. Virar um protestante
era, tanto para Calvino quanto para Lutero, tornar-se um agosti-
niano que testava o ensino de Agostinho pelas Escrituras.
Todas as polêmicas acerca da natureza do homem, de seu
pecado e de sua salvação, devem ser decididas pela exegese
daquelas. Pois “embora o Senhor descreva tanto a si quanto o
seu Reino eterno no espelho das obras dele com mui grande
clareza, a nossa estupidez é tal que cada vez mais ficamos estú-
pidos para com tão manifestos testemunhos, e esses se escoam
sem nos beneficiar. Pois, com respeito à mais bela estrutura e
ordem do universo, quantos de nós há que, quando elevam os
olhos ao céu ou põem a vista nas várias regiões da terra em der-
redor, voltam as mentes para se lembrar do Criador, sem des-
considerar o Autor delas, parando em contemplação das obras
dele? Na realidade, no tocante àqueles eventos que diariamente
ocorrem fora do curso ordinário da natureza, quantos de nós
não reconhecem que os homens são girados e torcidos pela
fortuna cegamente indiscriminada, em vez de governados pela
providência divina? Algumas vezes somos levados pela orien-
tação e direção de tais coisas a contemplar a Deus; isso ocorre

123
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

necessariamente a todos os homens. Não obstante, depois que


imprudentemente apreendemos um conceito de algum tipo de
divindade, incontinenti retrocedemos para os desvarios ou más
imaginações de nossa carne, e por nossa vaidade corrompe-
mos a pura verdade de Deus. Em certo sentido não somos de
fato diferentes, pois, que cada um de nós, particularmente, for-
ja seu próprio erro particular; todavia, somos mui similares por
abandonarmos todos nós o único Deus verdadeiro pelas fri-
volidades prodigiosas. Não somente a gente vulgar e os lerdos
de inteligência, mas igualmente os mais excelentes e aqueles de
outro modo os mais excelentes e os mais dotados de discerni-
mento apurado estão infestados de tal moléstia.
“Nesse sentido, quão voluvelmente a tribo toda dos filó-
sofos revela sua estupidez e tolice! Porque, ainda que possamos
escusar os outros (que agem como loucos arrematados), Pla-
tão, o mais religioso de todos e . mais circunspecto, também se
desvanece em seu globo redondo”.1
Não é que algumas nações sejam melhores ou piores que
outras, argumenta Calvino. É “a mente humana” que faz jorrar
“uma imensa multidão de deuses”.
“Por esse motivo, Paulo declara que os efésios estavam
sem Deus até aprenderem pelo evangelho o que era adorar
o Deus verdadeiro (Ef 2.12,13). E isso não deve ficar restri-
to a um único povo, porquanto em outra parte ele declara de
maneira genérica que todos os mortais “tornaram-se vãos em
seus raciocínios” (Rm 1.21) depois de a majestade do Criador
lhes haver sido descerrada na criação do universo. Por essa
razão, as Escrituras, para darem lugar ao Deus verdadeiro e
único, condenaram como falsidade e mentira toda e qualquer
divindade que havia sido outrora celebrada entre os pagãos;

1 John Calvin, Institutes of the Christian Religion, vol. XX, pp. 63-64.

124
CALVINO COMO POLEMISTA

nem restou qualquer presença divina, exceto no Monte Sião,


onde o conhecimento apropriado de Deus continuava a flo-
rescer (Hc 2.18,20). Decerto, entre os pagãos na época em que
Cristo viveu, os samaritanos pareciam chegar o mais perto da
genuína piedade; todavia, ouvimos da boca de Cristo que eles
não conheciam o que cultuavam (João 4.22). Segue-se disso
que foram iludidos pelo erro vão”.2
“Logo, é em vão que tantas candeias acesas brilhem para nós
na feitura do universo para mostrar a glória de seu Autor. Embora
elas nos banhem inteiramente em seu resplendor, não podemos
nós mesmos nos guiar, de forma alguma, na reta senda”.3
A “divindade invisível” é claramente manifesta em todo
o mundo ao nosso redor. “Não temos os olhos para enxergar
isso a menos que eles sejam iluminados pela revelação íntima
de Deus mediante a fé”.4
“Esse brilho que é trazido aos olhos de todos tanto no
céu quanto na terra é mais do que suficiente para retirar todo
apoio da ingratidão dos homens – da mesma forma que Deus,
para envolver a raça humana na mesma culpa, expõe a todos,
sem exceção, sua presença retratada em todas as suas criaturas.
A despeito disso, é necessário que uma outra e melhor ajuda
seja adicionada para nos dirigir corretamente ao próprio Cria-
dor do universo. Não foi debalde, pois, que ele acrescentou a
luz de sua Palavra pela qual se torna conhecido para salvação; e
estimou como dignos de tal privilégio aqueles de quem se agra-
dou congregar para si, mais perto e com maior intimidade”.5
De especial importância é o que Calvino diz do conheci-
mento de nós mesmos. “Ninguém pode contemplar a si mes-

2 Ibid., p. 67.
3 Ibid., p. 68.
4 Ibid. 5.
5 Ibid., pp. 69-70.

125
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

mo”, diz, “sem imediatamente voltar seus pensamentos à con-


templação de Deus, em quem ele ‘vive e se move’ (e tem o seu
ser) (Atos 17.28)”. 6
Calvino alude a essa afirmação no Livro I, Capítulo XV,
p. 183. Ele ora fala da necessidade de compreender a natureza
da queda do homem em Adão. “O conhecimento de nós pró-
prios”, diz Calvino, “é duplo: a saber, conhecer a que nos as-
semelhávamos quando formos primeiramente criados e o que
virou a nossa condição depois da queda de Adão”.7
O homem foi criado à imagem de Deus. Porém, “não há
dúvidas de que Adão, quando decaiu de seu estado, foi, por
essa deserção, alheado de Deus. Logo, mesmo que admitamos
que a imagem divina não tenha sido totalmente aniquilada e
destruída nele, ela ficou tão corrompida que, seja o que for
que reste, trata-se de assustadora deformidade. Consequente-
mente, o princípio de nossa recuperação da salvação está nessa
restauração que obtemos por meio de Cristo, que é igualmente
denominado o Segundo Adão por nos restaurar à verdadeira e
completa integridade”.8
O que está incluído nessa renovação da imagem de Deus
no homem? Sob essa renovação Paulo compreende o “conhe-
cimento”, “a pura justiça e santidade” e “o que era primário na
regeneração da imagem de Deus também detinha o mais alto
lugar na própria criação”.9
Ora, os filósofos, argumenta Calvino, não têm nenhum
conhecimento sobre o fato do fracasso do homem. Visto que
“isso lhes estava oculto, não é de se admirar que misturem céu
e terra!”10 Os “filósofos, ignorantes a respeito da natureza origi-

6 Ibid., p. 35.
7 Ibid., book I, chapter XV, section 3.
8 Ibid., section 4, p. 189.
9 Ibid.
10 Ibid., section 8, p. 196.

126
CALVINO COMO POLEMISTA

nada por causa da pena pela deserção do homem, erroneamen-


te confundem os dois estados mui diversos do homem”.11
A conclusão da matéria é que, se temos de nos conhecer
apropriadamente, devemos nos conhecer como sendo restau-
rados para Deus em verdadeiro conhecimento, justiça e san-
tidade por intermédio de Cristo – e do dom de seu Espírito.
Como o coloca B. B. Warfield, segundo Calvino, o homem ca-
ído carece de nova luz, dada a ele nas Escrituras que falam de
Cristo, bem como de nova vista, dada a ele pela regeneração
do Espírito Santo.
A fim de que a “verdade pudesse durar no mundo com
uma sucessão contínua de ensino e sobreviver por todos os
séculos, comprazeu-se em registrar os mesmos oráculos que
havia dado aos patriarcas, por assim dizer, em tábuas de escre-
ver públicas”. 12
“Ora, para que a verdadeira religião refulja sobre nós, de-
vemos sustentar que ela deve ter seu começo originando-se
da doutrina celestial e que ninguém pode obter nem mesmo o
mais ligeiro gosto da doutrina sã e reta a menos que seja um
estudante das Escrituras. Por isso, emerge também ali o iní-
cio do genuíno entendimento quando, com reverência, adota
o que aprouve a Deus testemunhar de si mesmo. Porém, não
somente a fé, perfeita e, de todas as maneiras, completa, mas
todo o correto conhecimento de Deus nasce da obediência. E,
seguramente Deus, nesse sentido, por sua singular providência,
preocupou-se com os mortais de todas as eras”.13
E a fé operada em nós pelo Espírito Santo é o olho pelo
qual vemos a luz das Escrituras enquanto ela ilumina todas as

11 Ibid., section 7, p. 194.


12 Ibid., chapter VI, section 2, p. 71.
13 Ibid., p. 72.

127
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

coisas. “A fé é a obra inicial do Espírito Santo... pela fé somen-


te ele nos guia à luz do evangelho, como ensina João: aos fiéis
em Cristo é dado o privilégio de se tornarem filhos de Deus,
os quais não nasceram da carne e do sangue, mas de Deus
(João 1.12,13). Contrastando Deus com a carne e o sangue, ele
declara ser um dom sobrenatural o fato de que aqueles que de
outro modo permaneceriam na incredulidade recebam a Cristo
pela fé. Semelhante a isso é aquela resposta de Cristo: ‘A carne
e o sangue não o revelaram a ti, mas meu Pai que está no céu’
(Mt 16.17)”.14
O Espírito Santo sempre aponta para as Escrituras. Ele
não dá ao homem revelações independentes das Escrituras.15
Ao falar das Escrituras do jeito que faz, Calvino diz ao
Rei Francisco I que simplesmente adotar “a causa comum de
todos os crentes, aquela do próprio Cristo” e defendê-la con-
tra aqueles que os perseguem em seu domínio não é defender
o subjetivismo dos fanáticos que ignoram as Escrituras como
sendo uma letra morta e apelar diretamente ao Espírito Santo
por revelações vindas de Deus.
Em sua defesa das Escrituras como a única fonte final
e o único critério de verdade para os homens pecaminosos
Calvino está, com Lutero, preocupado em defender a obra de
salvação para os homens, a qual foi finalizada de uma vez por
todas pela morte e ressurreição de Cristo. Tanto a Igreja Ca-
tólica Romana quanto os “fanáticos” fazem seu apelo final ao
homem que quer ser auto-suficiente. Ao principiar com uma
filosofia de Aristóteles e erigir sua teologia sobre ela, o pa-
pismo tem uma opinião errada sobre Deus e com isso uma
opinião errada dos homens.

14 Ibid., book III, chapter I, section 4, p. 541.


15 Ibid., book I, chapter IX.

128
CALVINO COMO POLEMISTA

O DEUS TRINO
O que a causa evangélica requer, portanto, é uma clara afir-
mação no sentido de que o verdadeiro conhecimento de si e
o verdadeiro conhecimento de Deus estão envolvidos um no
outro e que esse Deus verdadeiro é o Deus trino das Escrituras.
Deus é a “única testemunha legítima de si mesmo, e não é co-
nhecido senão mediante ele próprio. Porém, devemos
‘deixar isso para ele’ se o concebemos como sendo tal como
se revela a nós, sem inquirir a respeito dele em nenhum outro
lugar além de sua Palavra”.16 E Deus se revela nas Escrituras
como o Deus trino. “Com efeito, se nos agarrarmos ao que foi
satisfatoriamente ensinado acima, tirado das Escrituras – que a
essência do único Deus é simples e não dividida, e que pertence
ao Pai, ao Filho e ao Espírito; e, por outro lado, que por uma
determinada característica o Pai se distingue do Filho, e o Filho,
do Espírito – a entrada ficará fechada não apenas para Anus e
Sabélio, mas também a outros antigos autores de erros”. 17
Calvino, portanto, estava muito interessado no fato de
que ninguém podia achar qualquer desculpa para imaginar o
Filho e o Espírito como menos Deus em si mesmos do que o
Pai. A ideia de Sola Scriptura sugere e é sugerida pela ideia de
Solus Christus. As Escrituras não possuem nenhuma autoridade
absoluta a não ser que sejam a Palavra de Cristo como o Filho
de Deus, Deus em si mesmo, tanto quanto o Pai as deu pelo
Espírito Santo.

DEUS EM SI MESMO
Não admira que aqueles que desdenhosamente rejeitavam
as Escrituras como a fonte e o padrão final do conhecimento
do homem sobre si próprio e de Deus também se opunham

16 Ibid., chapter XIII, section 21, p. 146.


17 Ibid., chapter XII, section 22, p. 147.

129
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

à insistência de Calvino na aseidade de Cristo. Diz Warfield:


“Particular motivo de ofensa se oferecia pelo fato de Calvino
atribuir ‘autoexistência’ (aseidade, aujtousi;a) ao Filho e a con-
sequente designação dEle pelo termo aujtovqeo”.18 Calvino
fez tal asserção sobre a “auto-existência” de Cristo contra os
gentios que “afirmavam que exclusivamente Deus Pai podia
ser assim designado”.19

O DECRETO DE DEUS
O afã teológico de Calvino era definir o ponto de vis-
ta bíblico sobre o homem e Deus sem rodeios, opondo-se a
toda forma de filosofia centrada no homem. Agostinho leva-
ra a maior parte de sua vida após a conversão para livrar o
evangelho da concepção platônico-plotiniana da escala do ser.
Calvino ficou sobre os ombros de Agostinho e, por conseguin-
te, viu mais claramente do que esse a necessidade de pensar
biblicamente em cada ponto. Toda a filosofia do fiel sobre a
natureza e a História é somente uma expressão conceitual do
que Cristo, nas Escrituras, contou-lhe sobre o passado, o pre-
sente e o futuro.
Todos os filósofos, incluindo Platão, o melhor deles, per-
deram-se em seu globo redondo. Induziram sua brilhante fa-
culdade de pensamento no interesse de “manter debaixo” a
verdade acerca de si mesmos como pecadores perante Deus,
seu criador. Todos os homens são como que portadores da
imagem de Deus e como tais não podem ajudar senão conhe-
cendo que são criaturas dele e pecadores contra esse. De que
maneira eu, como crente em Cristo, sei que o incrédulo “sabe”
disso? Porque Cristo me diz isso nas Escrituras. E como sei
que Cristo me está dizendo a verdade sobre tal assunto nas
Escrituras? Porque ele me disse.

18 Calvin and Calvinism (Oxford University Press, 1931), p. 233.


19 Ibid, p. 234.

130
CALVINO COMO POLEMISTA

O Deus trino falando a mim nas Escrituras me relata que


Deus falou a todos os homens em Adão e disse a esse para ser
um rei, um sacerdote e um profeta debaixo dele. Mas Adão es-
cutou Satanás e ao agir assim presumiu que Deus, juntamente
com ele, estava cercado pela contingência fatual. Isso era puro
irracionalismo. Porém, para saber que a situação era essa Adão
teve também que admitir que era capaz de dizer com inteligên-
cia que Deus não podia ser o que disse que era, i.e., aquele que
havia determinado o curso inteiro da História desde seu início.
Não podia haver nada tal como um plano de Deus consoante
o qual todas as coisas acontecem.
Ora, os teólogos e filósofos católico-romanos, sobretu-
do Tomás de Aquino, possuíam uma filosofia e uma teologia
que eram a síntese entre o pensamento centrado no homem
dos gregos e o pensamento centrado em Deus das Escrituras.
Neste sistema síntese o ponto de vista centrado no homem
tornara-se predominante na época de Calvino. No nome de
Cristo a igreja estava perseguindo aqueles, e apenas aqueles que
verdadeiramente confiavam em Cristo para a salvação.
Tanto Calvino quanto Lutero vieram na defesa dos pe-
queninos de Cristo. Ele tinha certeza de que esses necessita-
vam de um manual que expusesse o evangelho da justificação
pela fé, de modo claro, em oposição ao erro básico da “mãe-
Igreja”.
A “história” das Escrituras deve ser narrada mais uma
vez, e deve ser apresentada em todas as suas implicações. O
crente deve ser ensinado sobre o que Paulo quer dizer quando
diz que os fiéis devem fazer todas as coisas, seja comer ou be-
ber ou tudo o mais para a glória de Deus. Os crentes não con-
seguem perceber o que isso significa e, portanto, não podem
agir com base nisso, a menos que compreendam que as coisas
são o que são enquanto indicadoras do plano de Deus. Aqueles
que não creem nisso ainda estão em trevas; ainda estão iludidos

131
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

pelo deus deste mundo; ainda estão onde eu estava antes de


nascer de novo pelo Espírito de Deus, pela graça eletiva do
Deus trino. “Nada que é obrado por seus inimigos é aceitável
a Deus. E todos aqueles a quem imputa pecado são inimigos
dele”. Essa última frase, diz Polman, “vale ouro. Ela ataca o
coração da posição tomística e faz com que a verdade agos-
tiniana, com seu contraste absoluto entre a carne e o espírito,
triunfe”.20
Calvino sente em seus ossos o terrível pensamento de
“que Deus é o vingador e o justo juiz no tocante a todo desvio
da parte daqueles que pensam e dizem coisas não planejadas
para aumentar a glória dele”.21
Pecado imputado, que ideia injusta e imoral, diria qual-
quer bom teólogo católico romano, qualquer bom teólogo
neo-ortodoxo. E só aqueles a quem a justiça de Cristo é impu-
tada sabem o que o pecado imputado significa. Eles, e só eles,
sabem que a ira de Deus repousava sobre eles por seu pecado
e que agora estão redimidos de tal ira pela justiça de Cristo pela
graça eletiva de Cristo somente, imputada a eles.
Diz Polman: “Desta sorte, a graça de Deus em Jesus
Cristo, visto como eleva a glória de Deus, apresentando-se
nas Escrituras e aceita pela fé com certeza pétrea e apropria-
da pessoalmente com gozo, constitui o coração da instrução
cristã”.22 Polman está falando aqui da primeira edição das Ins-
titutas de Calvino. Essa primeira edição tinha um propósito
obviamente prático. Ela procura livrar os filhos de Deus da
sujeição de uma política eclesiástica baseada em uma teologia
fundamentada sobre uma filosofia centrada no homem. “Em

20 A. D. R. Polman, De Predestinatielar van Augustinus, Thomas van Aquino en


Calvyn (T. Wever, 1936), p. 314.
21 Ibid.
22 Ibid., p. 319.

132
CALVINO COMO POLEMISTA

completa harmonia com esse objetivo prático da primeira


edição de suas Institutas”, diz Polman, “Calvino nela trata da
eleição por Deus dos crentes em Cristo somente, em Cristo
como cabeça deles”.23
O termo “predestinação” é mencionado somente uma
vez na primeira edição das Institutas. Calvino está interessado
na soberana eleição por Deus dos membros de Cristo em sua
cabeça antes da fundação do mundo.24 Por seu decreto Deus
controla e dirige todas as coisas que criou, i.e., o curso inteiro
da História, incluindo a vida diária e o destino final de todo
homem. “As Escrituras incontestavelmente ensinam que, se-
gundo sua eterna boa vontade, sem considerar o pecado ou a
virtude, Deus predestinou alguns à vida eterna e outros à con-
denação eterna”. “Para Calvino,” diz Polman, “Romanos 9.11
é a passagem clássica sobre o tema. Sua convicção, portanto,
não é o produto de especulação filosófica, mas de exegese bí-
blica”.25 Para Calvino não há nenhum princípio de racionali-
dade e causalidade acima do qual o homem possa ou consiga
inteligentemente apelar para a explicação de si próprio em re-
lação ao cosmo. Roubamos Deus de parte de sua glória se não
atribuímos a ele o direito de determinar o desfecho definitivo
da vida e morte humanas para o homem.

MÉTODO DE CALVINO
Do que foi dito fica evidente que a teologia de Calvino
requeria uma “revolução copérnica” do método tradicional de
recomendar o cristianismo aos não crentes. O método tradicio-
nal de apologética, melhor desenvolvido por Tomás de Aqui-
no, construiu seu entendimento do homem em relação a Deus

23 Ibid.
24 Ibid.
25 Ibid., p. 328.

133
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

do ponto inferior para o superior. Tomás não achava que os


“filósofos” misturavam céu e terra porque não conhecessem
acerca da queda da humanidade em Adão. A filosofia de Aris-
tóteles não deve ser rejeitada, mas suplementada pela narrativa
cristã. A história cristã precisa do teísmo dos filósofos como
fundação. De outra maneira, como podem os fiéis, argumenta
Tomás, explicar aos incrédulos que o relato é razoável?
Aquino buscava ensinar ao incrédulo que a narrativa cris-
tã está de acordo com a lógica e de acordo com os fatos. Cal-
vino buscava ensinar que a “lógica” e o “fato” têm sentido so-
mente nos termos da “história”. O infiel apela a uma “lógica”
que está acima da distinção Criador-criatura – ou seja, apela ao
pensamento em geral – humano e divino como idênticos no
ser. Aquino julga poder satisfazer as exigências do incrédulo
com respeito aos requisitos da lógica e do pensamento como
tais. Calvino requer ao “filósofo” que dê seu lugar próprio à
queda do homem e reconheça que a criatura deve submeter
seus esforços lógicos ao Criador-Redentor do homem. Aquino
pensa que pode satisfazer as demandas do infiel no tocante à
ideia dos fatos, como tais. Calvino exige ao “cientista” que dê
seu lugar próprio à queda do homem e reconheça que os fatos
são, e não podem ser nada senão expressões do plano todo-
controlador de Deus.
Aquino oferece o cristianismo ao homem natural como
uma hipótese que, em sua busca de mente aberta pela verdade,
descobrirá ser melhor do que qualquer outra. Calvino desafia
o homem natural a desistir de sua pretensão de ser o justo
juiz quanto a se as reivindicações de Cristo de ser o caminho,
a verdade, e a vida são verdadeiras ou falsas e, com genuíno
arrependimento por seguir o deus deste mundo, prostrar-se
perante o Deus trino das Escrituras.
O homem não pode se conhecer a não ser que se conheça
como um pecador salvo pela graça. Quando pelo dom do Es-

134
CALVINO COMO POLEMISTA

pírito Santo ele se torna um cristão, após o que ele se torna, ao


mesmo tempo, um teísta. Quando ele assim se torna um teísta
cristão, volta seu olhar para a cova da qual foi desenterrado.
“Porventura não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo?
Visto como na sabedoria de Deus o mundo pela sua sabedo-
ria não conheceu a Deus, aprouve a Deus salvar pela loucura
da pregação os que creem.” Seguindo Calvino e não Aquino,
podemos hoje assinalar que em toda a história do pensamento,
salvo aquela fundada sobre o relato cristão, o homem não pode
identificar a si mesmo. Ele teria que fazer isso em relação a um
mundo de factualidade contingente e pura, tornado correlativo
a um princípio abstrato e atemporal de racionalidade que, na
natureza do caso, neutralizam-se. Se os modernos cientistas,
os modernos filósofos e os modernos teólogos quiserem se
safar de sua incapacidade de, mesmo inteligentemente, levan-
tar alguma questão e mesmo de encontrar qualquer resposta,
somente podem fazer isso aceitando a resposta que o Deus
trino dá ao homem nas Escrituras. Sem aceder a esse Deus, ele
é um profeta sem capa, um sacerdote sem sacrifício e um rei
sem coroa.

135
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

PARTE II

Lá atrás Calvino redigiu um texto sobre o profundo gozo


pelos pecados perdoados. Ele sabia que, mediante Cristo, fora
reconciliado com Deus. Por conseguinte, contemplava com pro-
funda compaixão as multidões de homens ao seu redor que des-
conheciam tal reconciliação com Deus. Essas não possuíam nin-
guém para lhes apontar a Cristo e ao que ele operou pelos pecados
na cruz do Calvário. Em vez de conduzi-los a Cristo através das
Escrituras, a Igreja de Roma usurpava o lugar dele. Proibindo os
homens de repousarem seguros nas promessas de Cristo, a Igreja
os mantinha suspensos sobre o abismo do inferno.
Como Calvino se regozijava na obra de Lutero, por meio
de quem Cristo e sua justiça foram trazidos para humilhar os fi-
éis! Com que zelo escrevia breves declarações da fé a fim de que
cada um de pronto possuísse as verdades centrais do evangelho!
Uma vida inteira de labor adentrou a exegese das Escrituras e a
redação de suas Institutas a fim de que os ministros pregassem a
Cristo a partir da Palavra, de acordo com a analogia da fé, para a
edificação do povo de Deus na santíssima fé.

DEFESA
Porém, Calvino percebia que o evangelho não podia ser
fielmente pregado a não ser que fosse fielmente defendido:
“Pois o Senhor nomeou-nos ministros de sua doutrina com
este pré-requisito, que temos de ser tão firmes na defesa da fé
quanto na comunicação dela”.26 E “quando se deve suportar
a luta pela vida, poucos sabem o que é defender a causa de
Cristo”. 27

26 Calvin’s Tracts, Edimburgo, 1851, Vol. III, p. 345.


27 Idem, p. 242.

136
CALVINO COMO POLEMISTA

Calvino sabia que era de Satanás que vinha toda oposição


à pura pregação e ao puro ensinamento de Cristo. E sabia que
esse busca efetuar a destruição da Igreja de Cristo de diversas
formas.

EXTREMA OPOSIÇÃO
Durante os primeiros anos de Calvino, Francisco I, o rei
da França, empreendeu em sua terra uma violenta perseguição
aos protestantes.
“Os príncipes alemães, que haviam esposado a causa do
Evangelho, e cuja amizade Francisco estava então cortejando,
sentiram-se ofendidos com a perseguição dele aos protestantes,
a desculpa oferecida, … era que não tinha punido ninguém, a
não ser os anabatistas, os quais substituíam o próprio espírito
deles pela Palavra divina, e tinham todos os magistrados civis
em desprezo”. 28
Em tal circunstância Calvino se levanta à plena altura e diz:

“A característica do verdadeiro soberano é reconhecer


que, na administração do reino, ele é um ministro de
Deus.” 29
Identificando-se com seu povo, ele acrescenta que esse sofre
perseguição porque crê ser vida eterna conhecer o único Deus
verdadeiro e a Jesus Cristo, a quem aquele enviou (João 17.3).
Mas por trás do rei, Calvino sabe, está a Sé Apostólica.
A clerezia de Roma tornou-se o adversário do povo de Deus.
“A genuína religião que é transmitida nas Escrituras” pouco
importa para ela “contanto que não se erga um só dedo con-

28 “The Life of John Calvin,” Teodoro de Beza em Calvin’s Tracts, Vol. I, p.


XXVII.
29 Institutes of the Christian Religion—Prefatory Address, Edimburgo, 1845, p. 6.

137
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

tra a primazia da Sé apostólica e a autoridade da santa mãe


igreja”.30

IMPORTÂNCIA DAS ESCRITURAS


“Se tão-somente o Papa se retirasse e não mais permane-
cesse na luz do sol! Aqueles que são ensinados no íntimo pelo
Espírito Santo aquiescem às Escrituras implicitamente. . .” 31
“Iluminados por ele, não mais acreditamos pelo discerni-
mento nosso ou de outros que as Escrituras provêm de Deus;
mas, de um modo superior ao julgamento humano, sentimo-
nos perfeitamente assegurados – tanto como se víssemos a
imagem divina visivelmente impressa nisto – que vieram elas
a nós pela instrumentalidade de homens, da própria boca de
Deus”. 32
É assim que Calvino procura manter aberta a linha de
comunicação entre Cristo e sua Igreja. Que aquilo que pretexta
ser a Igreja, mas não está sujeito à voz de Cristo falando nas
Escrituras, age como uma tirana do povo de Deus, seja direta,
seja indiretamente através do poder civil. E aqueles que alegam
não carecer de igreja alguma, mesmo quando falam sobre a
autoridade de Cristo na Palavra dele, vivem em trevas. Satanás
emprega o rei Francisco, a “Santa Sé” e os próprios desatinos
dos homens a fim de os afastar da obediência a Cristo.
Como, pois, os homens devem ser libertados de uma
consciência má? Somente se, partindo das Escrituras, como a
própria boca de Deus, aprenderem que Cristo Jesus “morreu
por nossos pecados, e ressurgiu para a nossa justificação”. 33
Então eles terão conhecimento existencial de Deus por inter-

30 Idem, p. 9.
31 Institutes, Vol. I, p. 95.
32 Ibid.
33 Idem, Prefatory Address, p. 10.

138
CALVINO COMO POLEMISTA

médio de Cristo. Pois aí eles não mais darão ouvidos às espe-


culações dos clérigos acerca da essência de Deus à parte de
sua revelação em Cristo. O pacto-confrontação com Deus em
Cristo então toma o lugar da “frígida especulação” dos teólo-
gos escolásticos”.
Com Cristo lhes falando nas Escrituras, os homens tam-
bém se darão conta de que “a autêntica religião deve ser passí-
vel de conformação com a vontade divina como seu inerrante
padrão”. 34

COMUNICAÇÃO PACTUAL
Para Calvino, defender a fé significa, portanto, (a) impedir
Satanás de introduzir interferência estática dentro do instrumen-
to através do qual Cristo fala à sua Igreja e (b) impedir Satanás de
obstruir a resposta de fé e obediência que a Igreja deve dar à sua
Cabeça. A comunicação pactual entre Cristo e sua Igreja deve
ser mantida a todo custo. Em seu ódio a Cristo, Satanás tenta
destruir tal comunicação. O verdadeiro servo de Deus deve vi-
giar para que todo seu labor na pregação e no ensino não sirva
aos propósitos de Satanás em vez de servir àqueles de Cristo.
Os verdadeiros servos de Cristo devem proteger as ovelhas de si
mesmos, dos falsos pastores e de Satanás. De que outra maneira
podem os crentes crescer na graça e no conhecimento de seu
Salvador? E de que outra maneira pode a Igreja, o povo de Deus,
proclamar a mensagem do Salvador ao mundo?
Ao longo de toda a sua vida, Calvino seguiu o curso reto
que estabeleceu para si mesmo quando primeiro defendeu os
protestantes na França, apanhados pelas trevas noturnas.
Seu interesse básico sempre foi a edificação do povo de
Deus na fé. Mas também sempre se manteve de guarda para

34 Idem, p. 61.

139
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

que, de um jeito ou de outro, tal processo de construção não


fosse obstruído por Satanás. Apenas uma pequena fração de
sua obra nesse campo pode ser indicada.

CONFISSÃO ABERTA
Um dos mais sutis esquemas satânicos era aquele de im-
pedir os fiéis de confessarem abertamente a fé, “sustentando
ser suficiente cultuar a Cristo na mente, embora externamente
frequentassem os rituais papistas”. 35
Com a mais profunda empatia Calvino escreve a um ami-
go sobre esse assunto. Ele se condói do fato de esse viver “na-
quele Egito em que tantos ídolos e tanta idolatria monstruosa”
são diariamente apresentados a seus olhos. 36 Porém, que ele
não comece a considerar nenhuma política de guardar silêncio
quando Cristo for confessado diante dos homens, para que
não principie a própria ruína.
“Todas as vezes em que alguma aparência de bem ou con-
veniência nos tire um só fio de cabelo de obediência ao Pai celes-
tial, o primeiro pensamento que deve se apresentar para a nossa
consideração é, que tudo, seja o que for, que obteve a sanção de
uma ordem divina, torna-se desse modo tão sagrado que não só
está fora de discussão, mas também de deliberação.” 37
“Em resumo, o Senhor chama seus seguidores à confis-
são, e aqueles que dela declinam devem buscar um outro amo,
dado que ele não pode tolerar dissimulação [falsa aparência,
hipocrisia].” 38 Por dissimulação serviríamos àquele cruel amo
Satanás, em vez de nosso misericordioso Salvador que confes-

35 Beza—Life of Calvin, Op. cit. p. XXXI.


36 Calvin’s Tracts, Vol. III, p. 360.
37 Idem, p. 365.
38 Idem, p. 366.

140
CALVINO COMO POLEMISTA

sou uma boa confissão diante de Pôncio Pilatos e foi crucifi-


cado quando o fez.

COLEGAS TÍMIDOS
A Confissão da Igreja, sustentava Calvino, deve não
somente ser do crente individual, deve ser também da igre-
ja. Quando primeiro se estabeleceu em Genebra ele “publi-
cou uma curta fórmula de doutrina cristã, adaptada à igreja
de Genebra, a qual havia há pouco escapado das profanações
do papista”. Seu “primeiro objetivo era obter dos cidadãos,
(…) que esconjurassem abertamente o Papado, e que jurassem
adesão à religião cristã e à sua disciplina, abrangida sob alguns
tópicos”. 39
Calvino, pois, quis introduzir aqui uma confissão de Cris-
to pública, corporativa e precisa. Mas “a maioria de seus cole-
gas, por timidez, conservando-se distantes da controvérsia, e
alguns deles (isto dava àquele o maior constrangimento) secre-
tamente frustrando mesmo seu trabalho” 40, provando inten-
samente a coragem de Calvino. Tal coragem foi recompensa-
da e Satanás, derrotado, pois “o senado e o povo de Genebra
declararam solenemente sua adesão às doutrinas cardeais e à
disciplina da religião cristã”. 41

DISCIPLINA
Toda abordagem de Calvino à Reforma da igreja era
existencial porque era escriturística. A clareza da revelação de
Deus em Cristo pelas Escrituras era básica em tudo de que se
encarregou. Daí sua oposição a toda especulação, como obser-
vado. Daí também sua insistência em que a mesa do Senhor
não devia ser contaminada.

39 Calvin’s Tracts, Vol. I, p. XXIX.


40 Ibid.
41 Idem, p. XXX.

141
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

Em uma contínua controvérsia com Roma Calvino rejei-


tou, portanto, a doutrina da missa por ser um ataque ao sacri-
fício acabado de Cristo. E em Genebra, Farel e ele “declarou
francamente, que não podiam dispensar a ceia do Senhor da
forma devida a um povo em desacordo entre si, e tão distancia-
do de toda disciplina eclesiástica”.42 “Imoralidades flagrantes”
e “velhos feudos” “entre algumas das melhores famílias” fo-
ram o motivo dessa ousada posição de Calvino e seus colegas.
Por causa da audaz atitude, receberam a ordem de deixar a
cidade.

ARTIMANHA DA “MÃE IGREJA”


Estaria a igreja em Genebra apta a continuar seu bravo
testemunho corporativo a Cristo após Calvino ser banido?
Não se desvaneceria aquele por falta de liderança intrépida?
Satanás era metódico. Ele vestiu-se com o manto de piedade a
fim de conduzir o povo da cidade de volta ao cativeiro.
O Cardeal Sadoleto escreveu uma carta ao povo gene-
brino chamando-os de seus “mui queridos irmãos em Cristo”.
43
Pareceu bem, diz ele, “ao Espírito Santo e a mim... escrever
algo a vós”. Ele fala da “esperança deles em Cristo”, e da “bên-
ção da completa e perpétua salvação”: a qual eles só podem ter
“pela fé em Deus e em Jesus Cristo”. 44 Eles têm que perceber
que é isso que a Igreja Católica lhes vem transmitindo.
“Essa Igreja regenera-nos a Deus em Cristo, nutre-nos e
confirma-nos, instrui-nos sobre o que pensar, o que crer, em
que colocar nossa esperança, e também nos ensina por qual
caminho devemos tomar rumo ao céu ”.45

42 Idem, p. XXXII.
43 Idem, Vol. I, p. 3 ss.
44 Idem, p. 9.
45 Idem, p. 10.

142
CALVINO COMO POLEMISTA

Os seus “caríssimos irmãos” não querem então regressar à


mãe igreja, abandonando as novidades modernas? Pensai no dia
do juízo. Se retornardes à igreja, podereis com convicção enca-
rá-lo, tendo nela sido obedientes ao Evangelho. Contudo, se não
regressares devereis receber o dia do julgamento com temor.
Suponha que sejas um dos “autores de dissensão”. Vós, pois,
teríeis de dizer ao Juiz, entre outras coisas, que tens descartado
a igreja, e apelado diretamente ao sagrado sangue de Cristo a
fim de seres depois capaz de, com maior liberdade, fazer tudo o
que desejares. 46 Com semelhante fraude ardilosa a “Mãe Igreja”
buscava cortejar seus filhos errantes de volta para si.
Nessa época, diz Beza, não havia ninguém em Genebra
apto para responder Sadoleto. Calvino virá em defesa deles?
Eles não o expulsaram? Se Sadoleto e Satanás haviam posto a
confiança nessa circunstância, não perceberam que Cristo pre-
parara para si, em Calvino, um pastor fiel. Ele informa a Sado-
leto que, “embora no presente liberado do encargo da Igreja
de Genebra, … Deus, quando o deu a mim, … comprometeu-
me a ser fiel a ele para sempre”. 47

O ESPÍRITO SANTO
“Sou compelido,” diz Calvino, “queira ou não, a resistir a
ti abertamente. Porque os pastores só edificam a Igreja quan-
do, além de guiar as dóceis almas a Cristo, placidamente, como
com a mão, estão igualmente armados para repelir as maquina-
ções daqueles que lutam para impedir a obra de Deus”. 48
Quando Sadoleto apela ao Espírito de Cristo, Calvino
pergunta: “O que vem da Palavra do Senhor, aquela mais clara
de todas as marcas, a qual o Senhor mesmo, ao pôr a Igreja

46 Idem, p. 18.
47 Idem, p. 27.
48 Idem, p. 29.

143
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

em relevo, tão amiúde recomenda a nós? Porque, vendo quão


perigoso seria jactar-se do Espírito sem a Palavra, ele decla-
rou que a Igreja é realmente governada pelo Espírito Santo;
porém, para que tal governo não ficasse indefinido e instável,
incorporou a esse a Palavra”. 49

SUBJETIVISMO
Apelar à Igreja como estando acima da Palavra é, argu-
menta Calvino, apelar ao homem em vez de a Cristo.
“Somos assaltados por duas seitas, as quais parecem
diferir o mais amplamente uma da outra. Pois, na aparência,
que semelhança há entre o Papa e os anabatistas? Não obs-
tante, vedes que Satanás nunca se transmuta tão astutamen-
te, para que não se denuncie em nada: a principal arma com
a qual aqueles dois nos atacam é a mesma. Pois, quando ga-
bam-se de modo extravagante do Espírito, a tendência com
certeza é afundar e enterrar a Palavra de Deus, para que
deem lugar às suas falsidades. E tu, Sadoleto, ao tropeçar
no próprio limiar, pagaste a penalidade daquela afronta que
demonstraste para com o Espírito Santo, quando separaste
a este da Palavra”. 50
A nossa Igreja tem que ser aquela “cujo supremo cui-
dado é humilde e religiosamente venerar a Palavra de Deus, e
submeter-se à sua autoridade”. 51 Uma alma, “quando privada
da Palavra de Deus, é entregue ao diabo desarmada, para a
destruição”. 52
Calvino nega para si e para todos os fiéis a aptidão de
expor a Palavra de Deus com tanta perfeição a ponto de

49 Idem, p. 35.
50 Idem, p. 36.
51 Idem, p. 50.
52 Idem, p. 53.

144
CALVINO COMO POLEMISTA

não cair em erro. Mas é por isso que é de todo importante,


defende ele, que o julgamento de todos os crentes, e por
consequência da Igreja, deva estar sujeito à voz de Cristo
como ela fala nas Escrituras. 53 Quando o fiel diligentemen-
te procura obedecer desse modo à voz de Cristo, então, e só
então, ele não precisa temer o dia do juízo. Pensai em um
desses crentes, diz Calvino em sua réplica a Sadoleto, e o
ouvi naquele dia:

“Eles me acusaram de dois dos piores crimes – heresia


e cisma. E a heresia foi que eu ousei protestar contra os
dogmas que eles receberam. Mas o que eu podia ter fei-
to? Ouvi de tua boca que não havia nenhuma outra luz
de verdade que pudesse dirigir nossas almas para o ca-
minho da vida senão aquele que foi iluminado pela tua
Palavra”.54

Quando a Igreja trocou a Palavra como a regra de fé fi-


nal “não houve ninguém que refletisse devidamente naquele
sacrifício que ele ofereceu na cruz, e pelo qual nos reconciliou
consigo – ninguém que sequer sonhasse em pensar no seu sa-
cerdócio eterno e na intercessão dependente disso, ninguém
que confiasse em sua justiça somente”. 55
Calvino queria proteger seu rebanho para que esse pu-
desse viver e morrer na fé de Cristo, justiça deles.

O CONCÍLIO DE TRENTO
Mas não foi somente a igreja local de Genebra que
Calvino visava a defender contra um teólogo papista indi-
vidual. No Concílio de Trento (1546) a Igreja de Roma en-

53 Ibid.
54 Idem, p. 56.
55 Idem, p. 57.

145
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

controu-se para fazer por argumento o que não conseguira


fazer pela perseguição. Esse “Sagrado, Ecumênico e Geral
Concílio de Trento, legalmente reunido no Espírito Santo”
56
estava interessado em “Extirpar Heresias e Maneiras Re-
formadoras”. O concílio juntou-se sob a presidência dos
legados da Santa Sé.
Ao responder passo a passo aos pronunciamentos do
Concílio, Calvino outra vez torna central a doutrina das Es-
crituras:

“Repudiamos, sobretudo, o desejo deles de fazer com que


a segurança da doutrina dependa tanto do que chamam
de agrapha (não escrito) quanto das Escrituras. Devemos
sempre aderir à regra de Agostinho, ‘a fé é concebida a
partir das Escrituras’.” 57
E com a recusa da Igreja Romana à autoridade exclusiva
da Palavra vai sua recusa à exclusiva suficiência da obra de Cris-
to na salvação dos pecadores.
“Paulo reclama a obra toda para Deus; eles nada lhe
atribuem senão um pequeno auxílio”. 58 Além disso, os falsos
mestres desonram o Espírito Santo tanto quanto desonram o
Filho. Rejeitam fazer de “Deus o autor de um bom querer”.59 E
a fé, argumenta Calvino, é o que é devido ao seu objeto, Cristo.
“Lembremo-nos de que a natureza da fé tem de ser avaliada
a partir de Cristo”.60 Com Cristo claramente revelado nas Es-
crituras e as Escrituras, aceitas como a Palavra de Cristo pelo
testemunho do Espírito Santo, o crente pode viver e morrer na

56 Calvin’s Tracts, Vol. Ill, p. 61.


57 Idem, p. 70.
58 Idem, p. 110.
59 Idem, p. 111.
60 Idem, p. 119.

146
CALVINO COMO POLEMISTA

certeza da aceitação de Deus. A fé “é destruída tanto quanto a


convicção é removida”. 61

ELEIÇÃO
Finalmente, a fim de proteger os pequeninos de Cristo
de uma igreja que lhes retira Cristo, Calvino traça a salvação
deles até a eleição. Porém, tal eleição é em Cristo. Apelar à
eleição além de Cristo é, para ele, o supra-sumo da especu-
lação autoilusória. Diz que “nada é mais pernicioso do que
inquirir no secreto conselho de Deus, com o fito de obter por
esse meio um conhecimento de nossa eleição...” Isso é “um
redemoinho no qual seremos tragados e ficaremos perdidos”.
Porém, a coisa é bem diferente quando contemplamos que
“nosso Pai Celestial propõe em Cristo um espelho de nossa
adoção eterna”. Uma vez que “ninguém se apodera verdadei-
ramente do que nos foi dado por Cristo senão o que se sente
assegurado de que o próprio Cristo lhe foi dado pelo Pai,
para que não pereça”. 62
Para Calvino, a ideia de eleição não é apenas uma con-
cepção filosófica para ser colocada, seja no princípio, seja no
fim de uma construção de pensamento humano. Para ele é
Cristo, falando mediante sua Palavra, quem convida os ho-
mens a traçar a salvação deles recuando até Deus Pai, que os
escolheu em seu Filho para serem seus filhos. A clareza da
revelação de Cristo nas Escrituras, a certeza da fé e da eleição
andam juntas. Estas verdades são coerentes entre si. Não são
deduzidas de uma outra. Elas são ensinadas por Cristo, que
é a Verdade. Ao suprimir Cristo como a Verdade a igreja pa-
pista tira do povo de Deus todas as riquezas adquiridas para
ele por Cristo.

61 Idem, p. 125.
62 Idem, p. 135.

147
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

VERDADE E PAZ
Calvino então só defendia a Verdade e não a paz? Longe
disso. Com bastante frequência agia como mediador entre os
extremistas no redil protestante. 63
Mas ele sabia que a verdade do evangelho de Cristo é o
único vínculo da paz. 64 Por isso, não temos de “barganhar a
respeito da eterna e imutável Verdade de Deus, sobre até que
ponto ela deva prevalecer!” 65 Há aqueles que querem forjar
“uma espécie de Pacificação capciosa” que nos deixaria “um
meio Cristo” “mas de uma tal maneira que não exista parte
alguma de sua doutrina que não obscureçam ou salpiquem
com alguma nódoa de falsidade. E tal artifício para deformar
a piedade eles publicam —que Deus os ajude!— sob o nome
de Reforma.” 66
“Seja o que for que aconteça, que seja nossa resoluta de-
terminação não dar ouvidos a nenhum termo de paz que mistu-
re as invenções dos homens com a pura verdade de Deus”.67
Para pacificar a dissensão os paladinos de uma “Pacifi-
cação capciosa” afirmam “que não temos de nos manter com
pertinácia firmes sobre outros pontos, contanto que a doutrina
da justificação gratuita permaneça a salvo”. 68 Não podemos
nós, como protestantes, reagruparmo-nos em torno desse
ponto central de modo a haver paz entre nós mesmos e repelir
nosso inimigo comum?

63 As muitas discussões de Calvino sobre a ceia do Senhor foram todas de


uma natureza mediadora. Cf. Tracts, Vol. II.
64 Idem, The True Method of Giving Peace to Christendom and Reforming the
Church, p. 240.
65 Idem, p. 241.
66 Ibid.
67 Idem, p. 242.
68 Idem, p. 243.

148
CALVINO COMO POLEMISTA

Calvino responde que “há uma grande diferença entre


meramente proferir a expressão única – somos justificados
pela fé – e expor a matéria inteira em uma interpretação dís-
par”. 69
E a segunda pergunta que deve ser feita é se, realmente,
a Igreja tem de ser reformada. Sem dúvida, catecismos e bre-
ves declarações de fé devem ser empregados para a instrução
do povo de Deus. Porém, tal instrução em si mesma deve estar
protegida por uma exposição do pleno alcance da doutrina da
justificação pela fé, contra os erros de Roma. A negação dessa
doutrina é, no caso do papismo, uma parte de seu sistema espe-
culativo. Em particular é sua falsa doutrina do homem e de Deus
que subjaz à falsificação romanista da justificação pela fé.
Não é, portanto, “por um amor ao debate” ou porque
“não queremos permitir que nada que não nos agrade comple-
tamente seja ignorado” que devemos nos ocupar em demons-
trar que no papismo temos o entrelaçamento da doutrina da
justificação com um sistema pagão de pensamento. A fim de
“sustentar a doutrina inteira da justificação” cabe-nos “ter uma
segura definição de fé”. 70
“Então, no tocante à obtenção de Justiça diante de Deus,
digo que temos que forçosamente defender os seguintes pon-
tos de vista concernentes à Fé:

Primeiro, que é um convencimento que não deixa dúvi-


das, convencimento pelo qual recebemos a palavra trazi-
da pelos Profetas e Apóstolos como verdade enviada de
Deus.
Segundo, que aquilo a que propriamente nos atemos na
Palavra de Deus, são as suas promessas gratuitas- par-

69 Ibid.
70 Idem, p. 249.

149
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

ticularmente Cristo, penhor e fundamento delas. Pois,


descansando na paternal mercê divina podemos, então,
tomar a liberdade de nutrir uma esperança confiante de
salvação eterna.
Terceiro, que não é um conhecimento nu e cru que rodo-
pia na mente, mas ele traz consigo uma vívida afeição, a
qual possui seu trono no coração.
Quarto, que essa fé não surge da perspicácia da mente hu-
mana, ou do movimento próprio do coração, mas é a obra
especial do Espírito Santo, a qual tanto ilumina a mente
quanto impressiona o coração.
Por derradeiro, que tal eficácia do Espírito não é sentida
por todos indiscriminadamente, mas por aqueles que es-
tão ordenados para a vida”. 71
“A menos que esses pontos estejam fora de disputa,
ainda que sempre repitamos, qual papagaios, que somos jus-
tificados pela fé, nunca teremos a verdadeira doutrina da Jus-
tificação”.72
Somente foi dado um vislumbre de Calvino como pole-
mista. Das implicações mais vastas de sua obra para a ciência,
arte e filosofia não conseguimos em absoluto falar. Contudo, o
tanto que nos foi mostrado habilita-nos a vê-lo como valente
da verdade. E para ele Cristo era a verdade. Calvino deveras re-
putava todas as coisas por perda pelo conhecimento de Cristo.
Apenas se Cristo falar a seu povo e se o seu povo falar a Cristo
o Deus trino será glorificado.
Calvino não cometeu equívocos? Temos de nos ocupar
com o culto ao herói? Calvino mesmo confessou seus erros e
faltas graves. Não há uma única verruga que possamos ver em

71 Idem, p. 250.
72 Idem, p. 254.

150
CALVINO COMO POLEMISTA

sua face? Todavia, em seu testamento, assinado pouco antes de


sua morte diante de testemunhas, ele disse:

“Também atesto e declaro, que, em todas as discórdias e


disputas em que me envolvi com os inimigos do Evange-
lho, não usei imposturas nem artimanha ímpia e sofística,
mas agi cândida e sinceramente na defesa da fé”. 73
Que possamos ser capazes de falar de igual maneira quan-
do nosso dia chegar.

73 Calvin’s Tracts, Vol. I, p. LXXXVII.

151
“Enquanto o Senhor não os abrir, os olhos de nosso coração são cegos.”

J. Calvino
CAPÍTULO 8

A EPISTEMOLOGIA DE
CALVINO

W. GARY CRAMPTON

JOÃO CALVINO começou sua obra prima, As Institutas


da Religião Cristã, com essas sentenças: “Quase toda a soma de
nosso conhecimento que, de fato, se deva julgar como verda-
deiro e sólido conhecimento, consta de duas partes: o conhe-
cimento de Deus e o conhecimento de nós mesmos. Como,
porém, se entrelaçam com muitos elos, não é fácil discernir
qual deles precede ao outro, e ao outro origina” (Institutas, I:
I:1). Sem um conhecimento de si mesmo, não há conhecimen-
to de Deus. Mas para conhecer a si mesmo (e o mundo todo
em geral), deve primeiro existir um conhecimento de Deus.
Deus é conhecido melhor e anteriormente a qualquer coisa ou
pessoa (Institutas I:I:1-3).
Calvino começou suas Institutas com epistemologia (a te-
oria do conhecimento); ele não começa com “como sabemos
que existe um deus”, e então procede para tentar provar que
esse deus é o Deus da Escritura. Seu ponto de partida era a
revelação. A doutrina de Deus segue a epistemologia (Institutas
I:13ss.). Calvino mantinha que há uma revelação dupla de Deus
ao homem: geral (Institutas I:3-5) e especial (Institutas I:6-12). A

153
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

primeira é geral em audiência (toda a humanidade) e limitada


em conteúdo; a última é mais restrita em audiência (aqueles
que leem a Bíblia) e muito mais detalhada em conteúdo. A últi-
ma é agora encontrada na Escritura somente. Além do mais, a
revelação geral e especial estão em perfeita harmonia (Institutas
I:I3ss.).
Numa reversão espetacular e totalmente bíblica da filo-
sofia e teologia tradicional, Calvino ensinou que Deus – não
a pessoa ou o mundo – é o objeto melhor conhecido pelo
homem.

REVELAÇÃO GERAL
Calvino ensinou que o Espírito de Deus implantou uma
consciência inata de Deus em todos os homens, uma consci-
ência que é proposicional e inerradicável: “Que existe na men-
te humana, e na verdade por disposição natural, certo senso
da divindade, consideramos como além de qualquer dúvida…
Deus mesmo infundiu em todos certa noção de sua divina rea-
lidade” (Institutas I:3:1). O homem, como portador da imagem
de Deus, tem a lei moral impressa em seu coração: “foi por
Deus esculpida na mente dos homens” (Institutas IV:20:16).
B. B. Warfield afirmou corretamente que, tanto para Calvino
quanto para Agostinho, o conhecimento inato no homem re-
sidia no fundamento de tudo do seu conhecimento de Deus;
aqui o homem tem a revelação proposicional inata.1
Esse conhecimento inato capacita o homem a ver a rica
revelação de Deus na criação. “… para todo e qualquer rumo
a que dirijas os olhos, nenhum recanto há do mundo, por mí-
nimo que seja, em que não se vejam a brilhar ao menos algu-
mas centelhas de sua glória (…). Inumeráveis são, tanto no céu
quanto na terra, as evidências que lhe atestam a mirífica sabe-

1 B. B. Warfield, Calvin and Augustine, 117.

154
A EPISTEMOLOGIA DE CALVINO

doria” (Institutas I:5:1-2). Todos os homens têm uma consciên-


cia de Deus que os deixa sem escusa (Institutas I:3-5; Comentário
sobre Romanos 1.18-21; 2.14-15).
Todavia, devido aos efeitos do pecado sobre a mente,
o homem caído, embora possua essa semente da verdadeira
religião, suprime continuamente o conhecimento que ele tem
e sabe ser verdadeiro (Institutas I:3-5). “Mas, embora careça-
mos de capacidade natural para podermos chegar ao puro e
líquido conhecimento de Deus, entretanto, porque o defeito
dessa obtusidade está dentro de nós, somos impedidos de toda
e qualquer escusa. Pois não temos direito a tergiversação, nem
justificativa alguma, porque não podemos pretender tal igno-
rância sem que nossa própria consciência nos convença de ne-
gligência e ingratidão” (Institutas I:5:15). Sem os “espetáculos”
da verdade proposicional da Palavra de Deus, o homem peca-
dor não é capaz de chegar a um conhecimento sadio e salvífico
de Deus (Institutas I:6:1).
Pode ser visto que embora Calvino aderisse à revelação
natural ou geral (em contraste com Karl Barth, por exemplo),
ele não desenvolveu uma teologia natural. Ele ensina que o
entendimento divinamente implantado (e proposicional) de
Deus e (por causa disso) a demonstração diária do poder de
Deus na natureza são mais que suficientes para provar que o
Deus da Escritura é o único e verdadeiro Deus (Institutas I:3-5).
Calvino falou da persuasão do argumento religioso e/ou moral
(Institutas I:3:1-2; I:5:8-10), do argumento cosmológico (Insti-
tutas I:5:6; I:16:8-9), do argumento a partir da graça comum
(Institutas I:5:7), e do argumento a partir da anatomia humana
(Institutas I:5:2-3), mas desassistidos da Escritura, todos esses
falam em vão (Institutas I:5:14). Nem mesmo o conhecimento
da ressurreição de Jesus Cristo levou os discípulos à fé; ela me-
ramente confirmou a fé que eles já possuíam (Institutas II:2:2-
5). Calvino escreve: “As provas da fé devem ser transmitidas

155
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

[procuradas na] pela boca de Deus somente. Se disputamos


sobre questões que concernem aos homens, então que a razão
humana tome lugar; mas na doutrina da fé, a autoridade de
Deus somente deve reinar, e dela devemos depender” (Comen-
tário sobre Atos 17.2). Em outras palavras, uma pessoa não ten-
ta provar a existência de Deus; ele é a premissa necessária de
todas as provas, o objeto de conhecimento melhor conhecido
que qualquer outro.

REVELAÇÃO ESPECIAL
João Calvino ensinou que a verdade proposicional da re-
velação especial é necessária para alguém chegar ao conheci-
mento salvífico de Deus por meio de Jesus Cristo. A revelação
geral revela Deus como criador, mas somente a Escritura o
revela como Salvador (Comentário sobre Romanos 1.16-17).
Calvino escreveu:

Assim a Escritura, coletando-nos na mente conhecimento


de Deus [i.e., consciência inata] que de outra sorte seria
confuso, dissipada a escuridão, nos mostra em diáfana
clareza o Deus verdadeiro. É esta, portanto, uma dádiva
singular [i.e., a revelação especial], quando, para instruir a
Igreja, Deus não apenas se serve de mestres mudos, mas
ainda abre seus sacrossantos lábios, não simplesmente
para proclamar que se deve adorar a um Deus, mas ao
mesmo tempo declara ser esse Aquele a quem se deve
adorar; nem meramente ensina aos eleitos a atentarem
para Deus, mas ainda se mostra como Aquele para quem
devem atentar… Deus proveu o subsídio da Palavra a to-
dos aqueles a quem quis, a qualquer tempo, instruir efi-
cientemente, porque antevia ser pouco eficaz sua efígie
impressa na formosíssima estrutura do universo… Afir-
mo que importa achegar-se à Palavra onde, de modo real
e ao vivo, Deus nos é descrito em função de suas obras.
[Institutas I:6:1,3].

156
A EPISTEMOLOGIA DE CALVINO

O conhecimento verdadeiro, disse Calvino, “é aquele que


nos é entregue pela lei e os profetas” (Comentário sobre Jeremias
44.1-7). O Reformador de Genebra mantinha que a Escritura
é autoatestadora e autoevidente (Institutas I:7:5). Existem, diz
Calvino, inúmeras evidências, tanto internas como externas,
que a Bíblia é a revelação infalível de Deus para a humanidade.
Há a antiguidade da Bíblia (I:8:3-4), vários milagres e profecias
(I:8:12), e a fidelidade dos mártires (I:8:13). Mas à parte do tes-
temunho interior do Espírito Santo, essas evidências são “vãs”;
elas são “subsídios secundários para nossa limitada compreen-
são” (I:8:13; compare I:7:1-5).
Calvino estava em perfeita concordância com a Confissão
de Fé de Westminster (I:4-5):

A autoridade da Escritura Sagrada, razão pela qual deve ser


crida e obedecida, não depende do testemunho de qualquer
homem ou igreja, mas depende somente de Deus (a mesma
verdade) que é o seu autor; tem, portanto, de ser recebida,
porque é a palavra de Deus… Pelo testemunho da Igre-
ja podemos ser movidos e incitados a um alto e reverente
apreço da Escritura Sagrada; a suprema excelência do seu
conteúdo, e eficácia da sua doutrina, a majestade do seu
estilo, a harmonia de todas as suas partes, o escopo do seu
todo (que é dar a Deus toda a glória), a plena revelação que
faz do único meio de salvar-se o homem, as suas muitas
outras excelências incomparáveis e completa perfeição, são
argumentos pelos quais abundantemente se evidencia ser
ela a palavra de Deus; contudo, a nossa plena persuasão e
certeza da sua infalível verdade e divina autoridade provém
da operação interna do Espírito Santo, que pela palavra e
com a palavra testifica em nossos corações.
Calvino não tentou provar por argumentos extra-bíblicos
que a Bíblia é a Palavra de Deus.2 Ele escreveu: “Pois, com

2 B. B. Warfield poderia discordar dessa declaração (Calvin and Augustine,


29-130), assim como R. C. Sproul, John Gerstner e Arthur Lindsley

157
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

grande escárnio do Espírito Santo, assim indagam: ‘Quem


porventura nos pode fazer crer que essas coisas provieram de
Deus? Quem, por acaso, nos pode atestar que elas chegaram
até nossos dias inteiras e intactas?… Daí, a suprema prova da
Escritura se estabelece reiteradamente da pessoa de Deus fa-
lando nela. Os profetas e os apóstolos não alardeiam, seja sua
habilidade, sejam quaisquer elementos que granjeiam credibi-
lidade aos que falam, nem insistem em razões, mas invocam
o sagrado nome de Deus, mediante o qual todo mundo seja
compelido à obediência” (Institutas I:7:1,4). Portanto, não “é
justo que ela [a Bíblia] se sujeite a demonstração e arrazoados”
(Institutas I:7:5). A Bíblia é o axioma sobre o qual todo o conhe-
cimento e prova é baseado.
Calvino não era antilógico. Philip Schaff afirma que,
como o melhor teólogo e exegeta do período da Reforma,
Calvino “nunca menosprezou a razão… mas atribuiu a ela o
ofício de uma criada indispensável da revelação”.3 Antes, era
ao pensamento humano desassistido que Calvino se opunha
(Institutas I:5:14). Isso é confirmado pelo historiador da igreja
C. Gregg Singer. Singer declara que embora Calvino não tenha

(Classical Apologetics, 198-208). Eles manteriam que Calvino pensava nas


evidências como trabalhando juntamente com o testemunho do Espí-
rito; assim, ele as usaria como argumentos indutivos. O problema aqui
é que todos os argumentos indutivos são falácias lógicas. Mesmo no
Jardim, antes da Queda, o homem era dependente da revelação pro-
posicional para o conhecimento. Ele não poderia, por observação, ter
determinado onde ele estava ou o que deveria fazer. Deus teve que lhe
dizer então, e a nossa presente situação, exacerbada pelo pecado, é ainda
pior. Por exemplo, em seu Comentário sobre Êxodo 4.5, Calvino afirmou
que os milagres, como uma evidência bíblica, são usados “algumas ve-
zes… como preparativos para a fé, e em outras para sua confirmação”.
Eles podem ser usados para “abrir uma porta da fé”. Mas eles devem ser
apresentados apenas como as evidências bíblicas do Deus da Escritura,
e nunca como prova.
3 History of Christian Church, VII, 32.

158
A EPISTEMOLOGIA DE CALVINO

escrito muito sobre filosofia – não obstante isso – advogou a


legitimidade e necessidade de uma filosofia bíblica. De fato,
ele lançou o fundamento para uma filosofia cristã Reformada
baseada somente na Palavra de Deus.4 Historicamente, os cal-
vinistas têm sido caracterizados como sendo muito lógicos, e
não antilógicos.
Embora exista um terreno comum entre crentes e não
crentes devido ao fato de ambos terem sido criados por Deus,
não existe nenhuma noção comum entre o Cristianismo e a
filosofia e teologia não cristã (Institutas I:5:13). A verdadeira
fé descansa somente sobre uma crença implícita na Palavra de
Deus, como revelada pelo Espírito Santo (Institutas III:2:6-10).
Calvino diz que a apologética evidencialista – tentar provar a
existência de Deus e a verdade da Bíblia – é “fazer coisas às
avessas” (I:7:4).
Como então, de acordo com Calvino, o homem chega
ao conhecimento de Deus? Ele não chega! O homem conhe-
ce a Deus inatamente. O conhecimento de Deus é possível
e inescapável porque ele escolheu revelar-se ao homem. Tal
conhecimento não é derivado de sensação ou raciocínio. Esse
conhecimento rudimentar é revelacional e proposicional, e sua
origem é Deus.
Em adição, diz Calvino, Jesus Cristo é aquele que torna
todo conhecimento possível. Ele é o Logos eterno. Cristo faz
com que todos os homens tenham ciência de Deus porque ele
é “a verdadeira luz que ilumina todo homem que vem ao mun-
do” (Comentário sobre João 1.9, 14, 17).

4 Gregg Singer, John Calvin, His Roots and Fruits, 52-55.

159
“Quem quer que não confie na providência divina, bem como não enco-
mende sua vida à fiel diretriz dela, ainda não aprendeu corretamente o
que significa viver.”

J. Calvino
CAPÍTULO 9

CALVINO E A PROVIDÊNCIA
DE DEUS

FRANKLIN FERREIRA

Este ensaio refletirá a respeito do papel da doutrina da


providência de Deus, como sumariada por João Calvino em
sua obra principal, As Institutas da Religião Cristã, e sua con-
tribuição para a construção da cosmovisão cristã. Pretende-se
como objetivo geral, pesquisar a respeito da importância da
doutrina da providência de Deus, especialmente nas Institutas
da Religião Cristã, de João Calvino, e suas implicações para a
cosmovisão cristã.
Podemos destacar alguns problemas que nos defrontare-
mos neste capítulo: De acordo com a fé cristã, quem conduz
a história? Seria ela uma série de eventos desencadeados por
um primeiro motor, mas que são conduzidos segundo a livre
agência do homem? Em outras palavras, Deus teria criado leis
naturais, e se limitando a elas, colocando sobre o homem o
peso da responsabilidade pela condução da história? Ocorrem
os eventos por mero acaso? O que acontece seria aleatório ou
o Criador predeterminou todos os acontecimentos da história?
Que resposta João Calvino ofereceu, nas Institutas da Religião
Cristã, a estas questões?

161
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

Como hipótese, podemos afirmar que um aspecto dis-


tintivo da tradição Reformada é a crença na providência de
Deus. Um importante documento confessional Reformado,
o Catecismo de Heidelberg, faz a pergunta (27): “O que é a pro-
vidência de Deus?” A resposta: “É a força todo-poderosa e
presente, com que Deus, pela sua mão, sustenta e governa o
céu, a terra e todas as criaturas. Assim, ervas e plantas, chuva
e seca, anos frutíferos e infrutíferos, comida e bebida, saúde e
doença, riqueza e pobreza e todas as coisas não nos sobrevêm
por acaso, mas de sua mão paternal”. Este ensino tem tido
profunda influência na tradição Reformada, especialmente
na explicação do uso que Deus faz das causas secundárias,
no paradoxo entre a soberania de Deus e a responsabilidade
humana, no cristocentrismo que guia a pregação e espiritua-
lidade, na luta com o problema do mal e na esperança esca-
tológica.
Sugestivamente, esta doutrina também não é tratada com
a devida seriedade nos círculos evangélicos brasileiros. Uma
certa forma de pelagianismo, aliada a uma compreensão mecâ-
nica-mágica de milagres, ou rejeitou a doutrina da providência
de Deus ou a empurrou para a irrelevância. Então, busca-se
demonstrar a relevância desta doutrina, estudando as implica-
ções práticas da mesma, e os auxílios que recebemos desta para
construirmos uma cosmovisão cristã.
Pode-se demonstrar a relevância acadêmica deste tema
numa pequena pesquisa bibliográfica. Poucos são os textos,
produzidos no Brasil, que buscam enfatizar ou expor esta
doutrina e seu uso em nosso contexto. De passagem, este
trabalho buscará não apenas resumir a doutrina a partir das
Institutas de João Calvino, mas também apontar a relevância
desta doutrina distintiva da tradição Reformada para o con-
texto brasileiro.

162
CALVINO E A PROVIDÊNCIA DE DEUS

1. UMA EXPOSIÇÃO DA PROVIDÊNCIA DE DEUS NAS


INSTITUTAS DA RELIGIÃO CRISTÃ
Segundo Battles, “as Institutas são, em um sentido, um li-
vro de antíteses”.1 Passamos a aplicar isto em nossa análise do
ensino de Calvino sobre a providência. Como se segue:

Providência
1. Capítulo 16a/16b: verdade (Escriturística) vs. falsas
perspectivas (filosóficas)
2. Capítulo 17a/17b: verdade vs. falsas atitudes frente à
providência
3. Capítulo 18a/18b: verdade vs. falsas perspectivas de
como a providência de Deus trabalha com os agentes
ímpios.2

Por “a” e “b” ele não quer dizer que sejam estas as divi-
sões dos capítulos, mas mostrar que neles há duas ideias em
oposição.

1.1. “Deus, por seu poder, sustenta e preserva o mundo


dele criado e, por sua providência, lhe rege cada uma
das partes”
É em seu primeiro livro, sobre “o conhecimento de Deus,
o criador”, que Calvino irá tratar da doutrina da providência, do
capítulo 16 ao capítulo 18. O começo de sua análise tem por
título “Deus, por seu poder, sustenta e preserva o mundo dele
criado e, por sua providência, lhe rege cada uma das partes”.3

1 Ford Lewis Battles, Analysis of the Institutes of the Christian Religion of John
Calvin (Grand Rapids, Michigan: Baker Book, 1980), p. 19.
2 Ibidem, p. 19.
3 João Calvino, As Institutas da Religião Cristã. vol. 1 (São Paulo: Casa Edi-
tora Presbiteriana, 1985), p. 213.

163
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

A primeira divisão do capítulo 16 une as seções 1-4,4 e


é uma exposição da providência especial de Deus, contra as
opiniões dos filósofos. Em Calvino, a criação e a providência
estão inseparavelmente unidas, mas “a mente carnal, uma vez
que tenha reconhecido o poder de Deus na criação, para ali
ou, no máximo, reconhece alguma ação geral da Deidade em
preservar e governar as obras da suas mãos”.5 Mas a fé vai
mais além, pois vê o Criador como o governador e preser-
vador de todas as suas criaturas, sustentando-as, nutrindo-
as, assistindo-as, “com determinada providência singular, a
cada uma destas cousas que criou, até o mais insignificante
pardal”.6 O poder de Deus, então, estende-se não apenas ao
planejamento celestial, mas a todo objeto na terra, incluindo
os negócios humanos.
A providência está inteiramente oposta à concepção de
acaso ou sorte, e é ela que rege o mundo. Ele expõe que a
crença na sorte ou acaso é “algo que avassala a quase todos os
mortais”,7 mas “aquele que aprendeu de Cristo que os cabelos
de sua cabeça são contados, procurará uma causa mais profun-
da e concluirá que os eventos de todos os tipos são governados
pelo conselho secreto de Deus”.8 Esta fé, baseada em sólida
base escriturística sabe que todos os eventos e mesmo objetos
inanimados são instrumentos cuja eficácia é mantida e usada
por Deus para cumprir o propósito da sua própria vontade.
Mesmo o sol, com todo o seu poder, glorifica o comando de
Deus (cf. Js 10.13; 2Rs 20.11; Is 38.8).

4 Ford Lewis Battles, Analysis of the Institutes, p. 74-82. Aqui se segue a


análise proposta por Battles.
5 J. P. Wiles, As Institutas da Religião Cristã: um resumo (São Paulo: PES, 1984),
p. 86.
6 João Calvino, As Institutas, p. 213.
7 Ibidem, p. 216.
8 J. P. Wiles, op. cit., p. 87.

164
CALVINO E A PROVIDÊNCIA DE DEUS

Deus é a causa primeira, e governa tudo por meio de sua


providência. Não por um princípio geral de movimento indis-
tinto, como imaginam os sofistas,9 não por leis naturais univer-
sais que confinam a liberdade de Deus, limitando-o, “mas por-
que, a céu e terra governando por sua providência, a tudo re-
gula de tal modo que nada ocorra senão por sua determinação.
Pois, quando se diz no Salmo [115.3] que ‘[Ele] faz tudo quan-
to quer’, trata-se de uma vontade definida e deliberada”.10 Os
benefícios que advêm da meditação nesta doutrina são o con-
solo dos santos nas adversidades e o não desonrar a bondade
de Deus para cada uma das suas criaturas.
Esta seção é encerrada com uma análise da natureza da
Providência, e somos afastados de dois erros: crer num mero
pré-conhecimento passivo de Deus e de uma providência
apenas geral, com uma confusa abordagem de algumas inter-
venções especiais. Os que “dividem a questão entre Deus e o
homem, como se Deus fornecesse o poder de movimento, e
o homem dividisse suas ações pelo seu propósito voluntário
(...) obscurecem a verdade de uma providência especial, que é
asseverada nas Escrituras de modo tão certo e tão claro que é
de admirar-se que alguém já pudesse duvidar dela”.11 “Os que
crêem assim obscurecem a providência especial de Deus, res-
tringindo-o a certos eventos particulares; em resumo, querem
sejam o universo, as cousas humanas e os próprios homens
governados pelo poder de Deus, não, porém, por [sua] deter-
minação”.12
A segunda divisão trata da doutrina da especial providên-
cia apoiada por evidências das Escrituras, e cobre as seções

9 João Calvino, op. cit, p. 216.


10 Ibidem, p. 216.
11 J. P. Wiles, op. cit., p. 89.
12 João Calvino, op. cit, p. 218.

165
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

5-7. A providência especial de Deus é tratada no âmbito da


própria natureza, onde Deus dá direção geral para as forças
da natureza, como os dias e noites, inverno e verão, sol e chu-
va, abundância e penúria, tudo servindo como instrumentos
de sua bênção ou desagrado. São exemplos das Escrituras: Lv
26.3-4; Dt 11.13-14; 28.12-22; Sl 147.9; 113.5-6; Mt 10.29.
Calvino então passa a abordar a providência especial de
Deus no âmbito da vida humana. Ele afirma que o universo
foi criado por causa do gênero humano, então somos levados
a ver seu governo nele, para o benefício da humanidade. Nem
mesmo os caminhos do homem estão ao seu critério, “enquan-
to que Jeremias e Salomão atribuem a Deus não somente o po-
der, como também a escolha e o propósito no que diz respeito
aos caminhos do homem”.13 Então todas as ocorrências, em
vez de serem guiadas de forma fortuita servem à liberdade de
Deus, todas as coisas existindo conforme o seu plano secreto,
segundo as evidências bíblicas (Pv 16.1, 9, 33; 20.24; 29.13; Sl
75.5-6; Ex 21.13; Jr 10.23).
Calvino encerra esta seção analisando a Providência de
Deus no âmbito dos fatos naturais, demonstrando isto com
exemplos das Escrituras: os eventos servem ao comando de
Deus (Ex 16.13; Nm 11.31; Jn 1.4,6; Sl 104.3-4; 107.25, 29; Am
4.9; Ag 1.11); o poder de procriação vem de Deus (Gn 30.2;
Sl 127.3) e o pão que nos alimentamos também provém de
Deus, por meio do qual somos sustentados (Dt 8.2,3; Mt 4.4;
Is 3.1; Sl 136.25). “Finalmente, quando lemos que os olhos do
Senhor estão sobre todos os justos, e que seus ouvidos estão
abertos ao seu clamor, e que o olho do Senhor está sobre os
ímpios, para fazer cessar sua memória da terra, saibamos que
todas as criaturas estão tão sujeitas ao Criador, que Ele as diri-
ge conforme considera apropriado”.14

13 J. P. Wiles, op. cit., p. 90.


14 J. P. Wiles, op. cit., p. 90.

166
CALVINO E A PROVIDÊNCIA DE DEUS

A terceira divisão, e com esta o capítulo é encerrado, é


uma discussão sobre a fortuna, sorte, e a semelhança com a
eventualidade das ocorrências, e cobre as seções 8-9, do pre-
sente capítulo.

Calvino distinguia sua visão da providência de dois equí-


vocos populares, o do fatalismo, por um lado, e o do (que
se tornou conhecido mais tarde como) deísmo, por outro.
A doutrina estóica do destino pressupunha que todos os
eventos eram governados pela inevitabilidade da natureza,
que continha dentro de si mesma uma série intimamente
relacionada de causa e efeito. Calvino foi acusado de en-
sinar precisamente essa doutrina. Ele negou a acusação,
mostrando que, na visão cristã, “o chefe e governante de
todas as coisas” não era uma força ou corrente impesso-
al de inevitabilidade, mas, sim, o criador pessoal do uni-
verso. (...) Calvino gastou mais energia refutando o outro
erro, ou seja, a ideia de que Deus, tendo criado o universo
no princípio, deixara-o então continuar seu curso mais ou
menos sozinho.15

Ele passa a expor que a doutrina da providência não é


a crença estóica na sorte. O próprio Agostinho foi acusado
disso. Ele mostra a diferença: os estóicos imaginaram uma
“necessidade”, surgindo de uma cadeia perpétua de causas su-
cessivas contidas na natureza. Os cristãos crêem que “de tudo
constituímos árbitro e moderador a Deus, que, por sua sabedo-
ria, decretou desde a eternidade o que haveria de fazer, e agora,
por seu poder, executa o que decretou”.16
Então, não somente o céu e a terra e as criaturas inanima-
das como também os conselhos e propósitos dos homens são

15 Timothy George, Teologia dos Reformadores (São Paulo: Vida Nova, 1994),
p. 205.
16 João Calvino, op. cit., p. 223.

167
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

governados pela sua providência, de forma que são por ela di-
rigidos a um determinado fim. Calvino cita Basílio, o Grande, e
Agostinho para mostrar que fortuna e sorte são termos pagãos
inadmissíveis a cristãos. Deus não está repousando numa torre
ociosa de observação.
Em sua última seção, neste capitulo, Calvino afirma que a
verdadeira causa dos eventos está escondida de nós. Por causa
dos limites que nossa mente sofre frente a tal doutrina, Calvi-
no faz uma distinção entre acaso e o poder secreto de Deus,
acaso sendo uma situação acidental. Em suas palavras, “a fé
reconhecerá que aquilo que nos pareceu um acaso foi, na rea-
lidade, o efeito do poder secreto de Deus”.17 Comentando Jó
14.5, ele afirma: “Deus não somente previu a duração da vida
do homem, como também determinou seus limites”.18 Uma
declaração extremamente desconcertante se feita em círculos
evangélicos hoje.

1.2. “Até onde e a que escopo se deve aplicar esta


doutrina, para que seu proveito se evidencie”
O capítulo 17 recebe o seguinte título: “Até onde e a que
escopo se deve aplicar esta doutrina, para que seu proveito se
evidencie”.19 As seções 1-5 tratam da interpretação da divina
providência com referência ao passado e ao futuro. Calvino
passa a analisar o sentido e o alcance da providência de Deus.
Três coisas precisam ser notadas: (1) A providência de Deus
deve considerar com apreço o futuro e satisfatório o passa-
do (discussão nas seções 3-5); (2) Suas obras: “Deus às vezes
opera mediante causas secundárias, às vezes sem elas, outras
vezes até mesmo contra elas”.20 (3) Ele, desta forma, cuida de

17 J. P. Wiles, op. cit., p. 223.


18 Ibidem.
19 João Calvino, op. cit., p. 226.
20 J. P. Wiles, op. cit., p. 93.

168
CALVINO E A PROVIDÊNCIA DE DEUS

toda a raça humana, mas está especialmente atento para com o


governo de sua igreja. Ocasionalmente a providência de Deus
é obscurecida, de modo que homens são impelidos a crer na
cega fortuna, que é um escárnio, frente a seu julgamento. A
providência de Deus é revelada em seu resultado final, em seu
objetivo, mesmo em eventos que nos parecem dolorosos (Jo
9.3). Ele termina esta seção fazendo uma analogia com a tem-
pestade, que vemos, e a serenidade, acima dela, que não vemos;
daí a necessidade de sermos cautelosos em julgar a Deus, pois
não sabemos o que está no seu conselho.
Este sábio governo de Deus nos leva ao respeito. A me-
lhor atitude frente a Deus, então, é de temor, reverência e hu-
mildade, não a arrogância daqueles que limitam Deus e seus
atos aos juízos de sua razão.

Ninguém pode considerar de modo justo e proveitoso


a providência divina a não ser que se lembre que, nes-
ta questão, tem a ver com o próprio Criador, o Criador
do mundo, e, portanto, trate do assunto com reverência e
devida humildade. Por falta destas qualidades muitos ho-
mens maus assaltam e blasfemam esta doutrina, estando
indispostos a conceder a Deus mais poder do que a pró-
pria razão deles aprova.21

As Escrituras indisputavelmente provam que tudo aquilo


que acontece no universo é governado pelo incompreensível
plano de Deus; a vontade de Deus revelada na lei e no evan-
gelho é distinguida da vontade oculta de Deus, chamada na
Escritura de “abismo” (Dt 30.11-14 cf. Rm 11.33-34). O teste-
munho de Jó mostra isto (Jó 28.21,28). Seu governo não pode
ser separado de sua justiça e retidão, mas a providência, a fonte
da justiça somente, permanece oculta. Como Calvino mesmo

21 Ibidem.

169
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

diz: “Todavia [sua] admirável maneira de governar o mundo,


com razão, um abismo se chama, pois que, a despeito de ser-
nos ignota, deve ser [de nós] reverentemente adorada. Moisés
expressou magnificamente a ambos [esses aspectos] em poucas
palavras: ‘As [cousas] ocultas’ diz [ele]; ‘[pertencem] ao nosso
Deus; [aquelas], porém, que foram aqui escritas pertencem a
vós e a vossos filhos’ [Dt 29.29]”.22
A providência de Deus não tira a responsabilidade do
homem. Calvino se opõe àqueles que na adversidade e na dor
colocam a culpa de seus infortúnios em Deus (como Agame-
non, na Ilíada, e outros poetas pagãos). Se opõe aos chamados
“libertinos”, que por causa de tolo fatalismo não farão uso dos
meios que a providência coloca à sua disposição, tais como
médicos e medicamentos, alimentos, casas bem constituídas,
para cuidarem bem de suas vidas. Uma vez sofrendo, imputam
a Deus os seus problemas.

Pois aquele que colocou limites à nossa vida também nos


comissionou a cuidar dela, nos forneceu modos e manei-
ras de preservá-la, nos deu poder para prever perigos e
nos ensinou a aplicar precauções e remédios. Nosso de-
ver, portanto, é claro. Se Deus entregou a nós o cuidado
da nossa própria vida, devemos zelar por ela; se fornece
meios devemos usá-los.23

A providência de Deus não exclui o uso da prudência,


dos meios de proteção e socorro. Deus é quem estabelece limi-
tes à nossa vida em seu eterno decreto, mas isto não quer dizer
que não devamos fazer uso dos meios e remédios que Ele tem
nos dado para a preservação de nossa vida, e tanto a loucura
quanto a prudência são instrumentos da divina dispensação.

22 João Calvino, op. cit., p. 229.


23 J. P. Wiles, op. cit., p. 95.

170
CALVINO E A PROVIDÊNCIA DE DEUS

A providência não nos desculpa de nossos pecados e


iniqüidades. A acusação levantada é: os atos maus, realizados
no passado, aconteceram sob a intervenção de Deus, então
não podem ser punidos. A resposta dada é: Os que praticam
atos maus estão desobedecendo ao que Deus requer em seus
mandamentos, “e, por esta razão, em fazendo o mal, servimos
a sua justa ordenação, porquanto, em decorrência da imensa
grandeza de sua sabedoria, sabe [ele], bem e convenientemen-
te, usar dos instrumentos maus para efetuar o bem”.24 Calvino
vai mais além: Sustentando Deus não ser o autor do mal, ele
diz: “Destarte, como no homem mau reside a matéria e culpa
do mau, que razão há para que se pense que Deus contrai qual-
quer mácula, se, a seu arbítrio, lhe faz uso da atuação?”25 “Ele
usa a analogia do corpo apodrecendo ao sol. Aquele exala o
mau cheiro, mas ninguém diz que os raios do sol cheiram mal,
e termina dizendo: “Fora, portanto, com esta canina petulân-
cia, que, na realidade, pode ladrar, à distância, contra a justiça
de Deus, não, porém, tocá[-la]!”26
A segunda divisão une as seções 6-7, sob o titulo Medi-
tações sobre os caminhos da Providência: a felicidade no reco-
nhecimento dos atos da providência. Ele começa analisando o
conforto que os crentes recebem desta doutrina. Esta meditação
é um conforto e um antídoto contra as mencionadas críticas.

Portanto, o coração cristão, quando de absoluta certeza


haja sido persuadido de que tudo ocorre pela dispensação
de Deus, de que nada acontece por acaso, sempre a Ele
volverá os olhos como à causa precípua das cousas, con-
tudo, haverá de contemplar as causas inferiores em seu
[devido] lugar. Consequentemente, não nutrirá dúvidas de

24 João Calvino, op. cit., p. 233.


25 Ibidem.
26 Ibidem.

171
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

que a perscrutá-lo está velando a singular providência de


Deus, [providência] que [não] haverá sofrer nada aconte-
ça, senão [o] que lhe reverta ao bem e à salvação.27

Num dos mais belos parágrafos destas seções, Calvino


mostra o testemunho bíblico do cuidado particular de Deus
por todas as suas criaturas, especialmente pelo homem, e de
singular maneira, pela igreja (Sl 55.22; 1Pe 5.7; Sl 91.1; Zc 2.8;
Gn 15.1; Jr 1.18; 15.20; Is 49.25; 49.15).28
A atitude do crente tocado pela visão da benigna provi-
dência de Deus é de fortaleza, por causa das promessas que en-
sinam que todos os homens estão debaixo do poder de Deus, a
certeza de seu favor, mesmo em situação adversa (Ex 3.21; 1Rs
22.22; 12.10-15). É Deus quem desfaz o conselho de Aitofel,
que seria fatal a Davi (2 Sm 17.7,14). Até mesmo o Diabo não
ousa tentar nada contra Jó sem a permissão e o mandado do
Senhor (Jó 1.12). Daí segue-se “gratidão de alma pelo próspero
resultado das cousas, já paciência na adversidade, já, mesmo,
incrível segurança para com o porvir”.29
A serenidade que vem da providência de Deus é uma aju-
da em todas as adversidades. Na adversidade, o servo do Se-
nhor estará pronto a colocar seu coração em Deus para receber
paciência e serena moderação.30 São numerosos os exemplos
das Escrituras que nos ensinam e nos consolam (Gn 45.7,8;
50.20; Jó 1.21; 2 Sm 16.10; Sl 39.9). Calvino diz:

Para que nos reprima de retribuir as ofensas, Paulo sa-


biamente nos adverte [Ef 6.12] de que nossa luta não é
contra a carne e o sangue; ao contrário, é contra o inimigo

27 Ibidem, p. 234.
28 João Calvino, op. cit, p. 234.
29 Ibidem, p. 235.
30 Ibidem, p. 236.

172
CALVINO E A PROVIDÊNCIA DE DEUS

espiritual, o Diabo, a fim de que nos aprestemos a pe-


lejar contra ele. Mas este lembrete é importantíssimo para
aplacar-nos todos os impulsos de ira: que tanto ao Diabo,
quanto a todos os ímpios, Deus os arma para o embate e
toma assento, como se fora um mestre de liça, para que
nos exercite à paciência.31

Mesmo aquilo que ocorre sem operação humana deve


nos lembrar que do Senhor procede a bênção e a maldição (Dt
28.2 cf Lv 26.23), e Deus usa os benefícios que recebemos
para nos estimular ao culto e seus açoites nos estimulam ao
arrependimento (cf. Lm 3.38 e Am 3.6).
Ele nos exorta a prestarmos atenção às causas intermedi-
árias ou inferiores. Àqueles que nos ajudam, teremos gratidão,
ao mesmo tempo louvando a Deus como o verdadeiro autor.
Se sofremos algo, reconhecemos que sofremos por nossa pró-
pria negligência e imprudência; mas também pela vontade de
Deus, contemplaremos “distintamente no mesmo ato doloso a
justiça de Deus [e] a iniqüidade do homem, como se evidencia
uma e outra manifestamente”.32 Strohl afirma:

A Predestinação não elimina a responsabilidade do cul-


pado. “O homem cai segundo o desígnio de Deus, mas
cai por sua própria culpa” (Inst. III. 23,8). Essa expres-
são lapidar, e paradoxal, conserva-se em todas as edições.
A antinomia da experiência religiosa e das exigências da
consciência, fortemente sentida por Calvino, é a razão
da sua animosidade contra os filósofos fatalistas, com os
quais nunca se deixou identificar. Os eventos futuros de-
vem ser encarados da mesma forma. Tomará conselhos,
buscará ajuda nos homens e em outras causas secundárias
reconhecendo nelas instrumentos da divina providência,

31 Ibidem, p. 236-237.
32 João Calvino, op. cit, passim.

173
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

buscando sempre a vontade de Deus, esperando sempre


em Deus (2 Sm 10.12). Isto tira toda a nossa autoconfian-
ça e temeridade, levando-nos a avaliar de forma madura
os perigos que nos cercam.33

Esta certeza nos sustém ante os múltiplos perigos que


nos ameaçam. Numa passagem longa, Calvino expõe todos os
perigos que nos cercam, antecipando o sentido de “abandono”
tão evidente na literatura existencialista moderna.34 A vida se
tornaria extremamente miserável se o homem estivesse entre-
gue à cega sorte, pois somos ameaçados de todos os lados,
revelando de forma clara nossa fragilidade.
A seção é encerrada com uma exposição sobre a jubilosa
confiança em Deus e em sua operação que vem da medita-
ção na Divina Providência. Ela nos consola em meio ao medo
e ansiedade, e nos dá conforto e segurança; seu ensino nos
mostra que tanto o Diabo quanto seus anjos estão debaixo do
comando de Deus (1 Ts 2.18 cf. 1 Co 16.7) e a ignorância desta
doutrina gera o extremo de todas as misérias, já o seu conheci-
mento é a suprema bem-aventurança.
As seções 12-14 são respostas a algumas objeções. Nas
seções 12-13 Calvino trata das passagens a respeito do “arre-
pendimento de Deus”.
Em primeiro lugar há passagens que subentendem que
o propósito de Deus é mutável (Gn 6.6; 1 Sm 15.11; Jr 18.8).
Em segundo lugar, somos informados de que seus decretos às
vezes são cancelados (cf. os exemplos de Nínive e Ezequias).
“Por isso, muitos tiram a conclusão de que Deus não fixou os
negócios dos homens por um decreto eterno, mas sim lavra
seus decretos ano após ano, dia após dia, e hora após hora,

33 Henry Strohl, O pensamento da Reforma (São Paulo: ASTE, 1963), passim.


34 Timothy George, op. cit., p. 204. cf. João Calvino, op. cit., p. 239.

174
CALVINO E A PROVIDÊNCIA DE DEUS

de acordo com os merecimentos de cada homem e as exigên-


cias da equidade”.35 Mais aí somos lembrados do significado
do termo arrependimento, que subentende ignorância, erro ou
falta de poder, isto está longe de Deus, e Calvino mostra que
no mesmo texto que fala de Deus arrepender-se, o Espírito
nos ensina que Deus não se arrepende (1 Sm 15.11,29 cf. Nm
23.19). Arrependimento em Deus, então, seria um antropo-
morfismo pedagógico; “Ele é descrito de uma maneira adap-
tada à nossa capacidade. Ele se representa a nós, não confor-
me nos parece que Ele é”.36 Então, arrependimento significa
que “visivelmente Ele altera seu curso de ação. Seu propósito,
sua vontade e sua mente não sofrem mudança, mas, embora
para os olhos dos homens pareça que uma alteração repentina
ocorreu, Deus leva a efeito num só curso imutável as coisas
que previu, aprovou e decretou, desde toda a eternidade”.37
Em sua última seção (14) Calvino mostra que Deus exe-
cuta firmemente seu plano; isto é demonstrado com o envio
de Jonas a Nínive e o envio de Isaías a Ezequias. Em ambos
os casos, Deus poderia ter derrubado Nínive e morto a Eze-
quias sem qualquer anúncio prévio de seu plano; o fato é que
sua vontade não era a destruição da cidade, mas sua Reforma;
nem a morte do rei, mas o prolongamento de sua vida. “Quem
poderá deixar de perceber que, mediante tais ameaças, era o
prazer do Senhor despertar os homens ao arrependimento, a
fim de que escapassem do julgamento que seus pecados me-
reciam?” 38 Calvino encerra este longo capítulo com o desafio
de Isaías 14.27: “Porque o Senhor dos Exércitos o determinou;
quem, pois, o invalidará? e a sua mão estendida está; quem,
pois, a fará voltar atrás?”

35 J. P. Wiles, op. cit., p. 99-100.


36 Ibidem., p. 100.
37 J. P. Wiles, op. cit., p. 100.
38 Ibidem, p. 101.

175
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

1.3. “Deus usa de tal modo as obras dos ímpios e a


disposição [lhes] verga a executar-lhes os juízos que
[Ele] próprio permaneça limpo de toda mácula”
O capítulo 18 trata de como Deus usa de tal modo as
obras dos ímpios e a disposição [lhes] verga a executar-lhes os
juízos que [Ele] próprio permaneça limpo de toda mácula. Na
primeira seção, Calvino busca provar que a relação de Deus
com os ímpios é de eficiência, não mera permissão! O autor
passa a mostrar a falsa distinção entre “permitir” e “fazer”.
Para Calvino, a mente carnal, para tentar preservar a justiça
de Deus de toda mácula, inventou este termo. Esta distinção
proposta nos leva à conclusão de que há áreas não alcançadas
pelo conhecimento e controle de Deus, quando Ele mesmo
em sua palavra diz o contrário, no caso do cego de nascença
(Jo 9.3). Citando novamente Salmo 115.3, é demonstrado que
todos os ímpios estão debaixo do poder e direção de Deus, e
seus maus intentos são usados para realizar o bem que Ele in-
tenta fazer – mas nem assim, os agentes ímpios são escusados
de seu julgamento.
Ele termina esta seção apoiando sua declaração com
fartos exemplos das Escrituras: (1) Jó reconheceu que foi de
Deus, não do Diabo, que procedeu o que veio sobre ele: os
homens maus e o Diabo foram seus ministros, mas Deus o
autor, “portanto, o que quer que maquinem os homens, ou o
próprio Satanás, Deus, entretanto retém o timão, de sorte que
lhes dirija os pensamentos no sentido de executarem-lhe os
juízos”.39 (cf. Jó 1.21); (2) A cegueira e insanidade de Acabe
(1Rs 22.20,22); (3) Os apóstolos reconhecendo que Pilatos e
os judeus fizeram o que Deus decretou (At 2.23 cf 4.28; 3.18);
(4) Absalão, mesmo cometendo incesto, cumpria a obra de
Deus (2 Sm 16.22; 12.12); (5) Mesmo a crueldade dos caldeus

39 João Calvino, op. cit., p. 246.

176
CALVINO E A PROVIDÊNCIA DE DEUS

sobre Judá procede de Deus, segundo Jeremias (Jr 1.15; 7.14;


50.25 etc.), tudo isto procede do Senhor. “[Aqueles] que são
[ao menos] medianamente versados nas Escrituras veem que,
para que consulte a brevidade, refiro apenas uns poucos exem-
plos dentre muitos, dos quais, no entanto, se faz mais do que
evidente que dizem cousas sem nexo e pronunciam absurdos,
esses, que no lugar da providência de Deus colocam a permis-
são absoluta, como se, assentado em uma guarita, aguardasse
[ele] eventos fortuitos e, destarte, do arbítrio dos homens lhe
dependesse os juízos”.40 Os agentes ímpios são, então, muitas
vezes varas da ira de Deus, como Davi mesmo reconhece (2
Sm 16.40). Esta eficiência da providência é manifesta na mente
e no coração de todos os homens:

Aquilo que Salomão diz a respeito do coração do rei. [Pv


21.1], isto é, que está na mão do Senhor que o dirige para
onde quiser, é, igualmente verdadeiro acerca dos corações
de todos os homens. Até os conceitos de nossa mente são
dirigidos pelo poder sigiloso de Deus para cumprir seus
propósitos.41

E isto, não por mera divina permissão, mas pela efetiva


agência do Espírito, que expressamente declara que a ceguei-
ra e a loucura são infligidas sobre os ímpios pelo reto juízo
de Deus (Lv 26.36; 1Sm 26.12; Dt 28.21; Rm 1.28; Ex 14.17;
Rm 1.20-24). Isto é notável em relação ao endurecimento do
coração de Faraó. Para Calvino é absurdo dizer que o endureci-
mento partiu de Faraó, (Ex 4.21 cf 9.12; 10.20,27; 11.10; 14.8),
mas de Deus procede o endurecimento. O impulso do endure-
cimento procede de Deus, por isto diz-se que Faraó endureceu
seu coração (Ex 8.15,32; 9.34). Freqüentemente Deus usa, em
seus atos, das intervenções de Satanás, de forma que com seu

40 João Calvino, op. cit., p. 247.


41 J. P. Wiles, op. cit., p. 102.

177
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

impulso, o próprio Satanás execute seu papel até onde este foi
limitado. Este tópico é discutido no livro II 4.1-4, mas:

seja esta a síntese: uma vez que a vontade de Deus se diz


ser a causa de todas as cousas, a providência se lhe estatui
[por[ moderatriz em todos os planos e ações dos homens,
de sorte que não apenas patenteie sua eficiência nos elei-
tos, que são regidos pelo Espírito Santo, mas ainda obri-
gue os réprobos à obediência.42

Àqueles que questionam este ensino, dizendo que então


Deus é inconsistente, Calvino afirma que a vontade de Deus
é una e soberana (os que tais coisas afirmam, acusando Deus
de ambiguidade são blasfemos, diz Calvino). Estes afirmam
que Deus tem duas vontades contrárias, uma oculta, secreta, e
outra em sua lei revelada, mas Calvino afirma que a sabedoria
de Deus é multiforme (Ef 3.10) e que Ele, só Ele, habita na
luz inacessível (1Tm 6.16) para sermos lembrados da fraqueza
de nossa mente em entender este mistério. Ele cita Agostinho
para apoiar sua posição:

Alguns homens têm bons desejos que não estão de acor-


do com a vontade de Deus, e outros têm maus desejos
que estão de acordo com a vontade de Deus. Por exem-
plo, um bom filho pode corretamente desejar que seu pai
viva, ao passo que é a vontade de Deus que morra; e um
mau filho pode maldosamente desejar que seu pai morra,
quando é também a vontade de Deus que o pai morra. E
mesmo assim, o filho piedoso agrada a Deus ao desejar
aquilo que não é da vontade de Deus; enquanto o filho
ímpio desagrada a Deus ao desejar aquilo que é da von-
tade de Deus.43

42 João Calvino, op. cit., p. 249.


43 J. P. Wiles, op. cit., p. 103.

178
CALVINO E A PROVIDÊNCIA DE DEUS

Então os anjos apóstatas e todos os ímpios no que lhes


dizia respeito, fizeram aquilo que era contrário à vontade de
Deus; mas, quanto à sua onipotência, era impossível para eles
fazerem qualquer coisa contra a sua vontade. Ainda citando
Agostinho, afirma: “pois, enquanto agem em oposição à von-
tade de Deus, ela é cumprida por eles (...). Um Deus bom não
permitiria que o mal fosse feito, a não ser que um Deus onipo-
tente pudesse transformá-lo em bem”.44
Ele encerra este capítulo considerando que não podemos
incriminar a Deus pelo fato de usar agentes ímpios em seus
bondosos propósitos. Contra o ensino acima exposto surge
uma objeção: Se Deus não somente emprega a instrumentali-
dade dos ímpios, como também governa seus planos e paixões,
porventura não seria Ele o autor do mal? Calvino responde
com uma distinção de grande importância, entre a vontade de
Deus e seu mandamento/preceito, como ele afirma: “Deve-
mos apegar-nos firmemente ao princípio de que os ímpios,
por cujo intermédio Deus realiza os seus justos julgamentos e
decretos, não devem ser considerados inculpáveis como se ti-
vessem obedecido ao Seu mandamento, mandamento este que,
atrevida e deliberadamente, quebram”.45 Deus então não dá
simplesmente rédeas soltas ao Diabo, a suas cortes demoníacas
e aos ímpios, mas os refreia em sua fúria e louca raiva.
Textos difíceis das Escrituras são apresentados, e Calvino
mostra como eles jogam mais luz sobre este assunto, como
no caso da secessão de Judá e Israel (1Rs 12.15-20 cf. Os 8.4;
13.11). Em suas palavras “já hei claramente explicado antes
como, em um mesmo ato, tanto se manifesta o delito do ho-
mem, quanto refulja a justiça de Deus”.46 Agostinho também é

44 Ibidem, p. 104.
45 J. P. Wiles, op. cit., p. 104.
46 João Calvino, op. cit., p. 253.

179
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

citado ao mostrar como a traição de Judas cumpre o propósito


do Senhor, sem que Ele seja o autor do mal. Uma outra distin-
ção importante é mencionada por Klooster:

Outra distinção que Calvino considerou útil levar em


conta, nesta questão, é a que existe entre causa última e
causa remota (...). Para Calvino, pois, a soberana vontade
de Deus é a causa última da queda e reprovação de Adão,
enquanto o pecado humano é a causa próxima (...). Calvi-
no insistiu em que devemos enfatizar aquilo que é claro e
compreensível - a culpa pessoal do homem -, e não tentar
escrutinar indevidamente aquilo que, segundo o ensino da
Escritura, isto é, a vontade de Deus como causa última,
não podemos compreender.47

Terminaremos citando Calvino: “É sábio abraçarmos


com mansidão tudo quanto é ensinado nas Sagradas Escritu-
ras. Aqueles que têm a insolência de difamar suas doutrinas
soltam suas línguas contra Deus e não são dignos de mais re-
futação”.48

47 Fred H. Klooester, A doutrina da predestinação em Calvino (São Paulo: SO-


CEP, 1992), p. 68-69. Segundo Klooster, ainda há outra distinção que
existe entre a vontade de Deus, do Diabo e dos réprobos. Mesmo que
ambos queiram a mesma coisa, eles a querem para fins diferentes. Os
agentes ímpios querem para o mal aquilo que Deus quer para o bem (cf.
Institutas II.4.1-4).
48 J. P. Wiles, op. cit., p. 104. A abordagem de Calvino acerca da
providência em seus sermões, comentários e cartas tanto reflete
quanto expande sua exposição nas Institutas. cf. Timothy Geor-
ge, op. cit., p. 185-188: Em seu tratado contra os libertinos (1545),
Calvino distingue três aspectos da providência. A primeira é a
providência geral ou universal, que é o governo de Deus sobre
todas as criaturas de acordo com a qualidade e inclinação que
colocou nelas. O segundo nível da providência seria a especial,
que diz respeito ao envolvimento de Deus com a comunidade
humana. Esta seria a “graça comum” como teólogos posteriores
a chamariam. O terceiro nível é o governo de Deus sobre os elei-

180
CALVINO E A PROVIDÊNCIA DE DEUS

2. CONTRIBUIÇÕES DO ENSINO ACERCA DA PROVIDÊNCIA DE


DEUS PARA A CONSTRUÇÃO DA COSMOVISÃO CRISTÃ
Hill, comentando as mudanças ocorridas no pensamento
acerca da providência de Deus – de teoria revolucionária para
conservadorismo banal –diz: “Deus, que estivera tão próximo
a Oliver Cromwell, retirou-se para os vastos recessos do espa-
ço newtoniano”.49 De um ponto de vista teológico, Berkhof
afirma:

O domínio do mundo realmente foi tirado das mãos de


Deus e dado às mãos do homem. Nos séculos dezoito e
dezenove a providência foi virtualmente eliminada por um
deísmo que descrevia Deus como tendo-se afastado do
mundo após a obra da criação; e por um panteísmo que
identificava Deus com o mundo, obliterava a distinção en-
tre a criação e a providência e negava a realidade das causas
secundárias. E embora o deísmo possa hoje ser considera-
do uma coisa do passado, seu conceito do domínio e dire-
ção do mundo tem continuidade na posição das ciências
naturais, de que o mundo é dominado e dirigido por um
férreo sistema de leis. E a teologia liberal moderna, com
a sua concepção panteísta da imanência de Deus, também
tende a eliminar a doutrina da providência divina.50

Neste ambiente onde a providência de Deus é colocada


em xeque, quais seriam suas contribuições para a construção

tos, a igreja. Ele menciona isto brevemente no primeiro volume


das Institutas (I.16,6), mas deixou para depois todo o debate, após
abordar os temas da redenção (livro II) e regeneração (livro III).
A doutrina da predestinação é discutida no contexto da soterio-
logia, no seu estudo da obra do Espírito Santo na vida do crente
(Institutas III.21-24).
49 Christopher Hill, O eleito de Deus: Oliver Cromwell e a revolução inglesa (São
Paulo: Companhia das Letras, 1990), p. 221.
50 Louis Berkhof, Teologia Sistemática (São Paulo: Cultura Cristã, 2000), p. 165.

181
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

de uma cosmovisão cristã? A mais vigorosa afirmação desta


doutrina repousa no fato de não estarmos entregues ao acaso
ou às leis naturais cegas.

2.1. A soberania de Deus e o uso dos meios


No capítulo III, “dos eternos decretos de Deus”, da Con-
fissão de Westminster, é afirmado:

Desde toda a eternidade e pelo mui sábio e santo conse-


lho de sua própria vontade, Deus ordenou livre e inaltera-
velmente tudo quanto acontece, porém de um modo que
nem Deus é o autor do pecado, nem violentada é a vonta-
de da criatura, nem é tirada a liberdade ou a contingência
das causas secundárias, antes estabelecidas.

Aqui é declarada, nos mesmos termos de Calvino, a so-


berania de Deus. Mas Deus age por meios secundários. Um
exemplo de uma presunção tão tola e de uma negligência dos
meios é ilustrado no exemplo de William Carey. Quando ele
explicou seu chamado para ir à Índia, um dos que estavam
naquela reunião lhe disse: “sente-se jovem, se Deus quer real-
mente salvar a Índia, Ele pode salvá-la sem a ajuda de William
Carey ou de qualquer outro”. João Calvino diria que isto é
como um “veneno” sobre o conceito de soberania de Deus.
Esta é uma declaração terrível, pois aqueles homens estavam
separando a doutrina da soberania de Deus dos meios pelos
quais essa soberania é exercida.51 Deus é livre para agir como
quer, quando quer e aonde quer, mas, muitas vezes, Ele usa as
causas secundárias.
A doutrina da soberania de Deus nos dá uma base firme
para a evangelização. Enquanto os arminianos afirmam que

51 Joel Beeke, A tocha dos puritanos; evangelização Reformada (São Paulo,


PES, 1996), p. 15-16.

182
CALVINO E A PROVIDÊNCIA DE DEUS

a evangelização não faria sentido se o livre-arbítrio não fosse


também livre da soberania de Deus, podemos observar que
a história da Igreja aponta para justamente o contrário! Para
aqueles que dizem que a fé Reformada mata missões, pode-
mos responder que os fundadores do movimento moderno de
missões, como William Carey e Adoniram Judson, eram Refor-
mados. De fato, os primeiros missionários evangélicos foram
enviados para o Brasil por João Calvino!52
Então, a doutrina da soberania de Deus é um forte incen-
tivo para a evangelização, porque ela garante que a pregação do
evangelho nunca será vã. Ela sempre cumprirá seu alvo. Gran-
des evangelistas, como George Whitefield e Charles Spurge-
on, levaram milhares de pessoas para Cristo. Eles pregavam
e defendiam as doutrinas da graça e da soberania de Deus na
salvação. O fato de que a salvação depende da soberania de
Deus significa que a evangelização não depende de métodos
e técnicas de marketing ou persuasão humana. O evangelista
pode pregar descansando no fato de que a pregação fiel é a sua
responsabilidade, e o resultado é responsabilidade de Deus.

2.2. O paradoxo entre a soberania de Deus e a


responsabilidade humana é mantido
Nosso problema, não apenas no campo da filosofia, mas
no evangelicalismo atual, é uma preocupação excessiva com a
responsabilidade humana. A própria Escritura menciona este
paradoxo (Mt 11.25-30; Lc 22.22), e hoje, em nossa mentali-
dade religiosa rasa e pragmática estas “verdades irmãs” estão
sendo desconsideradas. Mencionemos Berkhof:

52 Para um estudo sobre a vinda dos primeiros missionários Reformados


ao Brasil, cf. o ensaio de Franklin Ferreira, “A presença dos Reformados
franceses no Brasil colonial” em Vox Scripturae vol X no 1 (Dezembro
2000), p. 51-86.

183
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

Às vezes se descreve a cooperação de Deus e o homem


como se fosse algo como os esforços conjuntos de um
grupo de cavalos tirando juntos, cada qual fazendo a sua
parte. Esta é uma visão equivocada da distribuição da
obra. De fato, cada realização é, em sua inteireza, tanto
uma realização de Deus como da criatura. É uma realiza-
ção de Deus no sentido de que não há nada que indepen-
da da vontade de Deus. E é uma realização do homem no
sentido de que Deus a leva a efeito por meio da atividade
própria da criatura. Há uma interpenetração aí, mas ne-
nhuma limitação mútua.53
Como diz a Confissão de Fé de Westminster, “nem é violenta-
da a vontade da criatura, nem é tirada a liberdade ou a contin-
gência das causas secundárias”.54

53 Louis Berkhof, op. cit., p. 22.


54 Os arminianos tentam usar alguns versos isolados para tentar comprovar
que o livre-arbítrio não é determinado. Podemos responder que estes
versos somente mostram que o ser humano faz escolhas, um ponto que
não está em disputa. A questão em jogo é: essas escolhas são causadas
ou o ser humano é autônomo? As Escrituras ensinam que as escolhas
do ser humano não excluem a determinação de Deus, conforme é de-
monstrado em várias passagens da Bíblia. Uma reclamação geralmente
dirigida contra o ensino da soberania de Deus sobre todas as coisas é
que, se fosse assim, o ser humano seria apenas um robô e não seria
responsável por suas ações. Reconhecemos que isso é uma dificuldade
que merece atenção, e precisamos oferecer uma resposta a este dilema.
J. I. Packer chama essa dificuldade – a reconciliação da soberania divi-
na com a responsabilidade humana – de antinomia [ou paradoxo]: uma
aparente contradição entre conclusões que parecem igualmente lógicas,
racionais, ou necessárias. Ele diz: “Uma antinomia existe quando um par
de princípios ficam lado a lado, aparentemente irreconciliáveis, mas am-
bas inegáveis. Existem razões irrefutáveis para se crer em ambos; ambos
descansam sobre evidências claras e sólidas; mas é um mistério como
um pode se encaixar no outro. Você vê que cada um deles deve ser a
verdade em si mesma, mas você não entende como podem ser a verdade
quando aceitos conjuntamente”. Packer continua: “A física moderna en-
frenta uma antinomia, em tal sentido, no estudo que faz da luz. Existem
evidências irrefutáveis de que a luz consiste de ondas, e evidências tam-

184
CALVINO E A PROVIDÊNCIA DE DEUS

2.3. A vida passa a ser cristocêntrica


Jesus Cristo é o centro da história. Nele, Deus estabelece
um relacionamento com suas criaturas, e promete que cum-
prirá seu propósito de renovar a criação, reunir seus eleitos
e conduzir a história a seu triunfo final. O mediador, que é o
Verbo encarnado, estabelece este relacionamento, e n’Ele Deus
fica sendo Deus dos homens, e de todas as criaturas. Deus
ordenou o curso dos eventos em direção a Jesus Cristo e sua
encarnação, e olhando a Providência por esta ótica vemos que
o interesse daqueles dentro da tradição Reformada não é ape-
nas metafísico ou num sentido abstrato. “A soberania de Deus
foi qualificada e concretizada na existência histórica de Jesus
Cristo, o Filho encarnado de Deus”.55
Lutero afirmava que “a única glória dos cristãos estava
em Cristo”.56 William Perkins concluiu seu tratado sobre a
pregação com a declaração: “A soma da soma: pregue um
Cristo por Cristo para o louvor de Cristo”.57 Oliver Cromwell
escrevendo para a sua filha, às vésperas do casamento lhe
dá o seguinte conselho: “Querida Hearth,... não deixe nada
esfriar suas afeições por Cristo... aquilo que é mais digno de
amor em teu marido é aquilo que é da imagem de Deus que
ele conserva. Olha para aquilo e ama-o, e a tudo o mais por
isso”.58

bém irrefutáveis de que ela consiste de partículas. Aparentemente não


se pode entender como a luz pode consistir de ondas e de partículas ao
mesmo tempo, mas as evidências estão ali, e assim nenhuma delas pode
ser abandonada em favor da outra”. J. I. Packer, Evangelização e Soberania
de Deus (São Paulo: Vida Nova, 1990), p. 16-19.
55 Louis Berkhof, op. cit., p. 171.
56 Citado em Timothy George, op. cit., p. 309.
57 Williams Perkins, The Art of Prophecying (Edinburgh: Banner of Truth,
1996), p. 79.
58 Citado por Leland Ryken, Santos no mundo: os puritanos como realmente eram
(São José dos Campos: Fiel, 1992), passim.

185
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

2.4. Por sua providência, Deus está presente no cotidiano,


não apenas nos milagres
Ao relegarmos a doutrina da providência a segundo pla-
no perdemos de vista a presença de Deus no dia-a-dia. Ele
está relegado a milagres. John Bertlet aconselhou os cristãos
a “meditarem na experiência que têm da fidelidade de Deus, e
[da] bondade que têm tido em todas as suas providências (...).
Para ajudá-los nisso, farão bem em fazer uma lista e manter
um diário das especiais providências de Deus”. Perguntamos
como Thomas Shepard: “Podemos, quando contemplamos o
majestoso teatro do céu e da terra, concluir senão que o dedo,
os braços e a sabedoria de Deus têm estado aqui?” 59
Mas qual o propósito dos milagres?

Os milagres estão relacionados com a economia da reden-


ção, uma redenção que com freqüência eles prefiguram e
simbolizam. Não visam uma violação, mas, antes, a uma
restauração da obra criadora de Deus. Daí, vemos ciclos
de milagres ligados a períodos especiais da história da re-
denção, e especialmente durante a época do ministério
público de Cristo e da fundação da igreja. Esses milagres
ainda não resultaram na restauração do universo físico.
Mas, no fim dos tempos, haverá outra série de milagres,
que redundarão na renovação da natureza, para a glória
de Deus – o estabelecimento final do Reino de Deus em
novo céu e nova terra.60

O propósito dos milagres então é apontar a concretiza-


ção do Reino, quando o pecado for destruído e a criação re-
novada.

59 Ibidem, p. 215.
60 Leland Ryken, op. cit., p. 217-218.

186
CALVINO E A PROVIDÊNCIA DE DEUS

2.5. A providência e o problema do mal


De início é necessário entender que enquanto a Bíblia
nos dá esperança em meio ao sofrimento da vida, ela não fala
sobre tudo o que Deus está fazendo, nem no mundo nem em
nossas próprias vidas. Enfim, o plano de Deus é impenetrável
para nós. Pelo menos, antes de chegar ao céu, há muita coisa
que nós não entenderemos. Talvez nesta vida agora não tenha-
mos a capacidade de entender. Mas se nós não entendemos
essas coisas, então de onde vem a esperança que Deus nos
prometeu? É fundamentada nos atributos de Deus. Há três
aspectos do caráter de Deus que são especialmente importan-
tes para entender. Estes são a soberania de Deus, a justiça de
Deus, e o amor de Deus.
Deus é totalmente soberano sobre todas as coisas que
acontecem. Deus tem um plano para a história e Ele está rea-
lizando esse plano no universo que Ele criou. Isso quer dizer
que, no fim, nada acontece fora do plano de Deus. Mesmo que
muitas coisas que Deus condena aconteçam, essas coisas não
acontecem por acaso, nem fora do controle de Deus. Deus
consente o mal e o pecado existirem enquanto ele dirige tudo
para realizar os Seus planos. Isso inclui também as ações de
Satanás, como se verifica na história de Jó. Enquanto o crente
nem sempre sabe por que ele está sofrendo, ele pode ter cer-
teza de que o sofrimento não vem porque Deus é impotente
para fazer alguma coisa. O crente pode sempre descansar no
conhecimento de que ele está nas mãos de Deus.
Deus é o padrão de justiça. Por definição, todas as coisas
que Deus faz são justas. Como Paulo escreveu ninguém tem
o direito de reclamar contra ele. Ele tem o direito de fazer
o que quiser com as criaturas d’Ele (Rm 9.20-21). Então nós
não temos o direito de exigir que Deus aja da maneira mais
justa para conosco, porque ele já está fazendo o que é justo.
Realmente, se Ele tivesse feito o que era justo para conosco,

187
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

nós já estaríamos no inferno. Nós precisamos ter a humildade


de reconhecer que a única coisa que nós merecemos d’Ele é
sermos condenados.
A doutrina da providência nos leva a confiar que criatura
alguma pode nos separar do amor de Deus. Além de ser sobe-
rano, Deus também é amor. E as coisas que ele faz são motiva-
das pelo amor que ele tem por seu povo. O amor de Deus é tão
grande que ele enviou seu eterno Filho, que se encarnou, so-
freu e morreu na cruz para nos salvar. Deus não ficou no céu,
impassível, olhando nossa dor. Na pessoa do Filho, ele sofreu
conosco, experimentando nossa dor. Por isto, podemos falar
com Deus e receber conforto. Cristãos de todas as gerações,
ao contemplarem os sofrimentos de Cristo na cruz, têm obtido
inspiração para suportar com paciência a dor, sem reclamação
ou murmuração.61
A história de Joni Earickson Tada pode ser mencionada
como exemplo. Em meados da década de 1960, ao mergulhar
na baía de Chesapeake, Joni sofreu um terrível acidente, que
a deixou tetraplégica. Ela lutou contra a amargura, a ira e o
desespero. Certa noite, cerca de três anos depois do acidente,
uma de suas melhores amigas, sentada ao lado de sua cama,
destacou um acontecimento na vida de Jesus: “Ele também
ficou paralisado”. Até então, não havia ocorrido à Joni que,
na cruz, Jesus sofreu uma dor parecida com a dela, ficando
incapaz de se mover, paralisado. Este pensamento foi muito
confortador para ela. Então, através do amor dos familiares e
dos amigos, ela passou a confiar na soberania de Deus e cons-
truiu uma nova vida, pintando quadros com a boca e falando
em conferências para cristãos.62 O cristão pode descansar no

61 Para mais informações sobre providência, milagres e o problema do mal,


cf. Franklin Ferreira e Alan D. Myatt, Teologia Sistemática (São Paulo: Vida
Nova, 2007), p. 295-348.
62 John R. W. Stott, A cruz de Cristo (São Paulo: Vida, 1991), p. 290.

188
CALVINO E A PROVIDÊNCIA DE DEUS

conhecimento de que ele está nas mãos do Deus de amor imu-


tável e soberano, que se revela nos sofrimentos de Cristo, na
cruz.
Por que é tão difícil afirmar a providência de Deus no
meio do sofrimento e dor no mundo? Por que o problema
do mal é tão difícil para o nosso século? Talvez seja porque
esperamos demais deste mundo. C. S. Lewis escreveu que se
comparamos este mundo ao hotel, este é um hotel ruim. Mas
se o comparamos com uma prisão, não é uma má prisão. Ele
disse que a melhor comparação é com uma escola; estamos
aqui para aprender, este não é nosso lar. Mas se pensamos que
o mundo é nosso lar, e que ele é tudo que existe, ficaremos de-
sapontados. Depende da nossa visão do mundo. Com a visão
cristã do mundo, podemos continuar afirmando fortemente a
providência de Deus.

2.6. Em sua providência, Deus está guiando a história


para seu fim, a concretização do Reino de Deus
Se Jesus é o centro da história, sua encarnação aponta
para o fim da história, a concretização de seu Reino, em sua
volta triunfal, quando o evangelho for pregado a toda a ter-
ra (Mt 24.14). É nisto que os eventos do fim encontram seu
centro. No passado, isto fez nossos pais espirituais agirem
diante de qualquer dificuldade com esperança inquebrantável!
Os puritanos, por exemplo, buscaram, de forma alegre, se dar
em auto-sacrifício, em obediência radical ao Senhor Deus. Em
1680, John Owen, que, no tempo de Cromwell, havia sido vice-
chanceler de Oxford, e que perdeu esta posição com a volta de
Charles II, afirmou: “Mesmo que caiamos a nossa causa será
vitoriosa porque Cristo está assentado à mão direita de Deus;
o Evangelho triunfará e isso me conforta de forma extraordi-
nária”. James Renwick, um presbiteriano escocês que foi mar-
tirizado em 17 de fevereiro de 1688, em Edinburgh, disse no

189
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

dia de seu martírio: “Tem havido dias gloriosos e grandiosos


do Evangelho nesta terra, mas eles serão nada em comparação
àquilo que haverá no futuro”. 63 Eles continuavam a servir a
Deus de forma corajosa, sem nunca ficarem desiludidos ou
sem esperança. Já que o Senhor Jesus Cristo ressuscitou dentre
os mortos, eles não seriam derrotados de forma alguma, se
Deus estivesse ao seu lado.
O fim da providência é conduzir toda a história até seu
predeterminado fim, para o louvor da glória de Deus. É isto
que enche de confiança o coração do cristão, o fato de que
Deus está no céu, o homem na terra; Deus reina, o homem
é seu instrumento. Não há uma força cega no controle dos
eventos, mas sim o trino Deus, Pai, Filho, Espírito Santo, que
deste a eternidade tem guiado a história para seu fim. Como
escreveu Berkouwer:

As linhas de eventos [da providência de Deus] alcançam


seu clímax no Reino de Deus. Isto não provém da re-
velação natural ou de aspectos econômicos. Terremotos
como movimentos das camadas da terra, a fome como
problema social e econômico e o crescimento da perver-
sidade como uma decadência moral natural. Mas a luz da
revelação do curso da história pode ser vista também de
uma perspectiva religiosa determinista. Como sempre ha-
verá guerras, terremotos, postes. Estas coisas serão reco-
nhecidas como sinais agourentos do fim, quando o julga-
mento de Deus vier sobre o poder do pecado sobre toda
a carne. Com o crescimento da confusão, homens se tor-
narão insensíveis à vida e perderão toda a perspectiva do
significado da história. Ou, outros, por motivos otimistas
e idealistas poderão trabalhar para a reconstrução da cul-

63 Citados em Iain Murray, The puritan hope: revival and the interpretation of
prophecy (Edinburgh: Banner of Truth Trust, 1998), p. xii-xiii.

190
CALVINO E A PROVIDÊNCIA DE DEUS

tura. Mais o Evangelho está à parte, tendo o pessimismo


e otimismo a nos direcionar para o significado da história
contido no Reino de Deus. A complexidade dos eventos
não representa para nós aguilhões de dúvidas ou supers-
tições, e sim, mais fé. Só os crentes serão capazes de ficar
de pé neste dia, porque “a salvação está mais perto do que
quando aceitamos a fé” (Rm 13.11).64

3. INFLUÊNCIA E AVALIAÇÃO DO ENSINO DE CALVINO SOBRE


A PROVIDÊNCIA DE DEUS

Devemos, agora, considerar o lugar da doutrina da pro-


videncia no pensamento Reformado posterior, e oferecer uma
avaliação desta doutrina para nossos tempos.

3.1. Uma contínua influência na tradição Reformada


A fé Reformada se espalhou com força não apenas na
Europa, mas por grande parte do mundo ocidental. A partir
de Genebra, Suíça, as ideias de Calvino logo suplantaram o lu-
teranismo na França, Holanda, Escócia e Hungria, “a ponto de
vir a ser considerado o inimigo número um da Igreja Católica
Romana e dos governos absolutistas”.65
Como instrumentos de sua ampla influência podem ser
mencionados a pregação, que era fundamental na exposição e
comunicação das ideias de Calvino, sua atuação como profes-
sor, sua relação de amizade com as pessoas (Bucer, Bullinger,
Melanchton etc.), sua volumosa correspondência com homens
e mulheres de toda a Europa e seus escritos formais (as Ins-
titutas, comentários, tratados teológicos) que, com a criação

64 G. C. Berkouwer, The providence of God (Grand Rapids, Michigan: Eerd-


mans, 1952), p. 186-187.
65 W. Stanford Reid, “A propagação do calvinismo no século XVI”, em W.
Stanford Reid (ed.), Calvino e sua influência no mundo ocidental (São Paulo:
Casa Editora Presbiteriana, 1990), p. 53.

191
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

da imprensa, se espalharam por toda a Europa,66 consolidando


sua influência.
Segundo Strohl, “se quisermos estabelecer alguma dife-
rença entre a piedade de Lutero e a de Calvino, podemos dizer
que, enquanto Lutero ensina que devemos possuir espírito de
submissão e paciência nas provações, Calvino exorta-nos a en-
frentar todas as dificuldades com coragem invencível”.67
Qual o lugar da doutrina da Providência na influência
destes grupos? Em julho de 1552, cinco jovens estudantes pro-
testantes, que estudavam em Lausanne, foram capturados a ca-
minho de Genebra. Em 15 de julho de 1552 chegou uma carta
“aos nossos irmãos da Igreja de Genebra”. Eles enfrentaram
o martírio, mas antes, em 1553, Calvino envia estas palavras
aos “prisioneiros de Lyon”, evidenciando a aplicação prática
da doutrina da providência, segundo exposta por Calvino:

Meus irmãos (...), estejam certos de que Deus, que se ma-


nifesta em tempos de necessidade e aperfeiçoa Sua força
em nossa fraqueza, não vos deixará desprovidos daquilo
que poderosamente glorificará o Seu nome. (...) E como
você sabe, temos resistido firmemente às abominações
do Papado, a menos que nós renunciássemos o Filho de
Deus, que nos comprou para Si mesmo pelo precioso
preço. Medite, igualmente, naquela glória celestial e imor-
talidade para as quais nós somos chamados, e é certo de
alcançar pela Cruz –– por infâmia e morte. De fato, para
a razão humana é estranho que os filhos de Deus sejam
tão intensamente afligidos, enquanto os ímpios divertem-
se em prazeres; porém, ainda mais, que os escravos de
Satanás esmaguem-nos sob seus pés, como diríamos, e
triunfem sobre nós. Contudo, temos meios de confortar-

66 W. Stanford Reid, “A propagação do calvinismo no século XVI”, p. 49-57.


67 Henry Strohl, op. cit., p. 163.

192
CALVINO E A PROVIDÊNCIA DE DEUS

nos em todas as nossas misérias, buscando aquela solução


feliz que está prometida para nós, que Ele não apenas nos
libertará mediante Seus anjos, mas pessoalmente enxuga-
rá as lágrimas de nossos olhos. E, assim, temos todo o di-
reito de desprezar o orgulho desses pobres homens cegos,
que para a própria ruína levantam seu ódio contra o céu;
e, apesar de não estar neste momento em suas condições,
nem por isso deixamos de lutar junto com vocês em ora-
ção, com ansiedade e suave compaixão, como companhei-
ros, percebendo que agradou a nosso Pai celeste, em Sua
bondade infinita, unir-nos em um só corpo sob Seu Filho,
nossa cabeça. Pelo que eu lhe suplicarei que possa garantir
a vocês essa graça; que Ele os conserve sob Sua proteção
e lhes dê tal segurança disso que possam estar aptos a
desprezar tudo o que é deste mundo. Meus irmãos os saú-
dam mui afetuosamente, e assim também muitos outros.
–– Seu irmão, João Calvino.68

A resposta foi enviada por um dos prisioneiros. A carta


de Calvino havia sido lida por “um dos irmãos que estavam
numa cela abobadada acima de mim (...) porque eu não pude
lê-la por mim mesmo, sendo incapaz de ver qualquer coisa em
meu calabouço”. Ele expressou sua gratidão pelo consolo de
Calvino “pois isso nos convida a chorar e orar”.69
Em outra carta, ao arcebispo Thomas Cranmer, datada
de 1551, fica patente a confiança de Calvino na providência de
Deus em agir para unir e preservar sua igreja:

Mui ilustre senhor, verdadeira e sabiamente julgas que no


presente estado conturbado de Igreja, nenhum remédio

68 John Calvin, “To the Prisoners of Lyon” em: John Calvin Collection [CD-
ROM], nº 320, citado em Hermisten Maia Pereira da Costa, “O culto
cristão na perspectiva de Calvino: uma análise introdutória” em Fides
Reformata VIII, No 2 (2003), p. 97.
69 Citado por Timothy George, op. cit., p. 211.

193
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

mais adequado pode ser adotado que o da reunião con-


junta dos homens piedosos e circunspectos, bem discipli-
nados na escola de Cristo, que professarão abertamente
sua concordância nas doutrinas da religião... Na verdade,
o Senhor, como está acostumado a fazer desde o princípio
do mundo, é maravilhosamente capaz - e por meios que
nos são desconhecidos - de preservar a verdade, impedindo
que seja rasgada em pedaços pelas dissensões dos homens.
Não obstante, de forma alguma Ele deixaria inativas aque-
las pessoas a quem Ele próprio pôs como vigias, visto que
Ele as apontou como seus ministros, e com a ajuda das
quais Ele pode purificar a sólida doutrina da Igreja de toda
a corrupção, e passá-la inteira à posteridade.70

Um excelente modo de ver aplicadas as doutrinas da pro-


vidência de Deus, como ensinadas por Calvino, é estudar seu
impacto na vida dos puritanos.

Relacionada à doutrina da criação (que os levou a repudiar


a velha dicotomia sagrado-profano) estava a forte ênfase
Puritana na providência de Deus. Os puritanos eram por
excelência um povo que via Deus nos eventos de todo dia.
Escreveram diários nos quais delineavam a graça de Deus
em suas vidas cotidianas. Eles confiantemente esperavam
encontrar Deus em “a leiteria, o estábulo, o celeiro, e luga-
res parecidos, onde Deus [visita] a alma” [citação de John
Bunyan]. Os puritanos também interpretavam os eventos
históricos contemporâneos dentro do quadro referencial
da providência de Deus e dos análogos bíblicos.71

Para os puritanos, teologia não era sinônimo de pensa-


mento especulativo. William Ames, puritano, que foi secretário

70 Philip E. Hughes, “Calvino e a Igreja Anglicana”, em W. Stanford Reid


(ed.), Calvino e sua influência no mundo ocidental, p. 226-227.
71 Leland Ryken, op. cit., p. 30-31.

194
CALVINO E A PROVIDÊNCIA DE DEUS

de Johannes Bogerman, Presidente do Sínodo de Dort, na Ho-


landa, escreveu na abertura de sua obra The Marrow of Theology:
“Teologia é a doutrina de viver para Deus”. Como homens
que buscavam viver para Deus, enfatizaram a praticidade da
Teologia. John Bunyan afirmava: “a alma da religião é a parte
prática”.
Ryken busca mostrar como esta ênfase por uma teologia
prática influenciou todas as esferas da vida deste grupo, que
buscava Reforma constante. Para os puritanos “o fim princi-
pal do homem é glorificar a Deus e gozá-lo para sempre”, e
eles lutaram para fazer isto no trabalho, sexo e casamento, no
tratamento com o dinheiro, na família, na pregação, na vida
da Igreja, no culto, na educação, na ação social, no estudo das
Escrituras. Em tudo isto, eles viam a Deus no lugar comum:
“a visão Puritana da santidade do comum jazia em parte num
extraordinário senso da presença de Deus”.72
Eles olharam a vida através da lente ampla da Soberania
de Deus obre todas as áreas da vida, como diz Richard Baxter:
“Não podes pensar nos vários lugares em que viveste e lembrar
de que cada um deles teve suas diversas misericórdias?”73 Toda
a vida é de Deus: “A qualidade extra-mundana dos Puritanos
não era retraimento do mundo, mas um viver no mundo de
acordo com padrões extra-mundanos”.74 Hill afirma:

Os homens comentaram amiúde o aparente paradoxo


de um sistema teológico baseado na predestinação e que
suscita em seus adeptos uma ênfase sobre o esforço e a
energia moral. Uma explicação para esse fato postula que,
para o calvinista, a fé se revela por si mesma através da
obras e que, portanto, o único modo pelo qual o indiví-

72 Leland Ryken, op. cit., p. 217.


73 Citado em Leland Ryken, op. cit., p. 217.
74 Ibidem, p. 278.

195
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

duo poderia ter certeza da própria salvação seria examinar


cuidadosamente seu comportamento noite e dia, a fim de
ver se ele, de fato, resultava em obras dignas de salvação
(...). Os eleitos eram aqueles que se julgavam eleitos, pois
possuíam uma fé interior que os fazia sentirem-se livres,
quaisquer que fossem suas dificuldades externas.75

A doutrina da providência, assim como a da predestina-


ção, não é o dogma central da fé Reformada,76 mas é um im-
portante impulsor do cristão em sua relação com o mundo,
com o mal e com o próprio Deus. O calvinismo então foi mais
do que um credo; foi uma filosofia compreensiva que abrangia
todas as áreas da vida.

3.2. Avaliação posterior do ensino de Calvino sobre a


providência de Deus
Hoje, muito rapidamente, Calvino é acusado de inconsis-
tência filosófica. Mas Calvino (juntamente com Lutero, Zwín-
glio e outros) cria estar indo até onde as Escrituras permitiam.
Como os filhos espirituais da Reforma diziam: “onde a Escri-
tura fala, nós falamos; onde ela cala, nós calamos”.
Hill, professor de Oxford, Inglaterra, comunista, mas in-
tensamente interessado no “elã revolucionário” que a doutrina
da providência legou aos puritanos, afirmou:

Aqueles que mais prontamente aceitaram o calvinismo


eram homens cujo modo de vida se caracterizava pela ati-
vidade (...). Portanto, ao tentarmos analisar a atitude dos
Puritanos, não devemos pressioná-los demais, tendo em
vista uma consistência filosófica que lhes faltava, caracte-
rística que compartilhavam com outros teólogos. Deve-

75 Christopher Hill, op. cit., p. 196-197.


76 cf. Timothy George, op. cit., p. 213.

196
CALVINO E A PROVIDÊNCIA DE DEUS

mos levar em conta como sua teologia os ajudou a viver


e a mudar o mundo, conforme eles o encontraram (...).
Amparados, então, por uma visão da vida que os ajuda-
va nas necessidades cotidianas da existência econômica;
conscientes daquele liame que os unia aos que compar-
tilhavam de suas convicções; percebendo-se a si mesmos
como uma aristocracia do espírito, contra quem os aris-
tocratas desse mundo eram uma nulidade; fortalecidos
pelas vitórias terrenas que essa moral ajudava a pôr em
execução, como poderiam os puritanos deixar de acreditar
que Deus estava com eles e eles com Deus? Ao adotarem
essa crença, como poderiam deixar de lutar com todo seu
empenho?77

Eles caminharam em estreita faixa de terra, se equilibran-


do no paradoxo entre a soberania absoluta de Deus e a res-
ponsabilidade moral do homem, afirmando-as vigorosamente.
Strohl, comentando sobre a doutrina da predestinação, nos
escritos de Calvino, afirma:

O ponto de partida de sua doutrina foi sempre a expe-


riência cristã e o reconhecimento de que a graça não é
oferecida a todos igualmente, e nem por todos igualmente
recebida - fatos que via confirmados na Escritura e pela
observação diária. É admissível que, mesmo partindo des-
se ponto, Calvino tivesse, quando muito, chegado a elabo-
rar uma metafísica em torno do poder ilimitado de Deus.
Aliás, o bispo sueco Tor Andrae, no seu estudo sobre Ma-
omé, demonstra que o sincero sentimento de dependên-
cia absoluta de Deus – análogo ao de Calvino – levou o
fundador do Islão ao fatalismo, tendo este, no curso dos
séculos, exercido ação paralisadora no temperamento de
povos por natureza dotados de vigoroso dinamismo. Que
tal evolução em direção ao fatalismo não tenha ocorri-

77 Christopher Hill, op. cit., p. 198, 205.

197
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

do em Calvino, deve-se a que nele o sentimento religio-


so de dependência absoluta foi sempre contrabalançado
por uma consciência imperiosa que o impedia de duvidar,
por um instante sequer, da responsabilidade do homem.
Qualquer doutrina que não levasse em conta esses dois
fatos irredutíveis era considerada atentado contra a honra
de Deus. Eis porque o Calvinismo histórico nunca pro-
duziu as conseqüências que se podem apontar nos povos
muçulmanos.78

Calvino evitou o conceito daquilo que ele chamou de “deus


ocioso”, uma divindade distante, que criou o mundo, mas não
intervém mais nele, limitada que está por leis naturais mecânicas.
Este não era o Deus bíblico, o Senhor Deus, que atua em julga-
mento e graça. Este é o Deus que, ao mesmo tempo em que se
revela, também se oculta; Calvino muitas vezes, como nós, não
entendia como Deus opera em meio aos sofrimentos e tragédias
de vida, mas ele cria que Deus estava conduzindo todas as situa-
ções terrenas para o louvor de sua glória.
George traz um pouco de ajuda para com nossas dúvidas
com esta doutrina:

Nossa inquietação moderna com a doutrina Reformada


da providência deriva, em parte, de nossa ânsia desorde-
nada por clareza. Não conseguimos entender como um
Deus soberano poderia permitir o sofrimento do inocen-
te. ‘Não fique aí parado. Faça alguma coisa!’ – é ao mes-
mo tempo oração e protesto. Preferiríamos um Deus que
pudéssemos entender ou, pelo menos, gostar, um Deus
que pudéssemos considerar responsável, ou um Deus li-
mitado que lutasse conosco contra o caos, mas que, no
fim, fosse impotente demais para evitá-lo ou até mesmo
dominá-lo. Os Reformadores sentiram a força de teodi-

78 Henry Strohl, op. cit., p. 151.

198
CALVINO E A PROVIDÊNCIA DE DEUS

céias semelhantes em seus próprios dias.


Não ignoravam – e qual o leitor dos Salmos que ignora?
– os protestos veementes contra uma providência ines-
crutável. Calvino admitiu que não há fé verdadeira que
não seja tangida pela dúvida (...) No final, porém, con-
forme Calvino o expressou, as explosões iradas contra
os céus são como cuspir para cima. O Deus com quem
nos relacionamos não é um deus que possamos explicar,
manipular ou domesticar. ‘O nosso Deus é fogo consu-
midor’ (Hb 12.29).
Os Reformadores não apresentaram uma ‘resposta’ mais
adequada ao problema do mal do que os profetas ou os
apóstolos. Em vez disso, indicam-nos o Deus que subsiste
em meio às provações, o Deus que não apenas ‘faz alguma
coisa’, mas que, de fato, ‘está aí’ em sua compaixão soberana,
o Deus que permanece ao nosso lado e segue à nossa frente,
que promete nunca nos abandonar, mesmo – especialmente
– quando todos os indícios mostram o contrário.79

Esta declaração busca confirmar a validade permanente


da doutrina da providência na teologia Reformada. Berkhof
escreveu:

Os pelagianos, os semipelagianos e os arminianos levan-


tam séria objeção a esta doutrina da providência. Susten-
tam eles que uma ocorrência prévia, que não seja me-
ramente geral, mas que predetermine o homem a ações
específicas, faz de Deus o autor do pecado, seja por este
responsável. Os teólogos Reformados (calvinistas) estão
bem cientes da dificuldade que aqui se apresenta, mas não
se sentem livres para iludi-la negando o absoluto domí-
nio de Deus sobre as livres ações das suas criaturas mo-
rais, visto que a Escritura o ensina claramente, Gn 45.5;

79 Timothy George, op. cit., p. 306-309.

199
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

50.19,20; Ex 10.1,20; 2 Sm 16.10,11; Is 10.5-7; At 2.23;


4.27,28. Eles se sentam constrangidos a ensinar: (a) que os
atos pecaminosos estão sob o governo divino e ocorrem
de acordo com a predeterminação e o propósito de Deus,
mas somente pela permissão divina, de modo que Ele não
leva eficientemente os homens a pecarem, Gn 45.5; 50.20;
Ex 14.17; Is 66.4; Rm 9.22; 2 Ts 2.11; (b) que Deus muitas
vezes reprime as obras pecaminosas do pecador, Gn 3.6;
Jó 1.12; 2.6; Sl 76.10; Is 10.15; At 7.51; e (c) que Deus, no
interesse do seu propósito, dirige o mal para o bem, Gn
50.20; Sl 76.10; At 3.13.80
A Confissão de Fé de Westminster, em seu capítulo “da pro-
vidência” (V.4), afirma:

A onipotência, a sabedoria inescrutável, e a bondade infi-


nita de Deus, de tal maneira se manifesta na sua providên-
cia, que se estende até a primeira queda e a todos os ou-
tros pecados dos anjos e dos homens, e isto não por uma
mera permissão, mas por uma permissão tal que, para os
seus próprios e santos desígnios, sábia e poderosamente
os limita, regula e governa em uma múltipla dispensação;
mas essa permissão é tal, que a pecaminosidade dessas
transgressões procede tão-somente da criatura e não de
Deus, que, sendo santíssimo e justíssimo, não pode ser o
autor do pecado e nem pode aprová-lo.

Ao considerarmos a doutrina da providência, estamos


diante de um tremendo mistério, diante do que Lutero chamou
de “o Deus oculto”, que humilha nossa razão.

CONCLUSÃO
Em nosso estudo vimos que, para o teólogo de Gene-
bra, é Deus quem conduz a história. Todos os eventos estão

80 Louis Berkhof, op. cit., p. 175.

200
CALVINO E A PROVIDÊNCIA DE DEUS

debaixo de seu cuidado soberano, mesmo a livre agência do


homem e as chamadas leis naturais. Não existem eventos que
ocorram por mero acaso ou, até mesmo, permissão. O Criador
predeterminou todos os acontecimentos da história. Ao con-
siderarmos a doutrina da providência, estamos diante de um
tremendo mistério, diante do que Lutero chamou de “o Deus
oculto”, que humilha nossa razão.
A doutrina distintamente calvinista da providência de
Deus expulsa de nosso meio o pessimismo e o antropocentris-
mo prevalecente em nosso tempo, pois ela lembra que Deus
está próximo de nós. Ele participa de cada detalhe de nossa
vida, e em seu poder nos conduz de forma que tornemos cada
aspecto de nossas vidas e cultura em terreno santo, para sua
maior glória.
Para sumariar a posição de Calvino sobre a doutrina da
providência, encerraremos mencionando as perguntas 27-29,
do Catecismo da Igreja de Genebra, de 1542:

Professor: Por que chamais a Deus de Criador somente,


pois sustentar e conservar em seu estado as coisas, é mui-
to mais do que havê-las criado uma vez?

Estudante: Por esta palavra não significa somente que


Deus havia feito uma vez suas obras, para não ter depois
cuidado delas. Mas devemos entender que assim como foi
criado o mundo por Ele no princípio, assim agora é por
Ele conservado de tal maneira que o céu e a terra, e todas
as outras criaturas não permaneceram em seu ser senão
por sua força e poder. Além disto, portanto, Ele tem as-
sim todas as coisas em suas mãos, seguindo-se que Ele é o
supremo Senhor e Governador de todas elas. Assim, por
ser Criador do céu e da Terra é necessário entender que
Ele, somente Ele, que com sabedoria, bondade e poder
rege todo o curso e ordem da natureza: que Ele envia
as chuvas e as secas, o granizo, as tempestades, o bom

201
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

tempo, a fertilidade e esterilidade, a saúde e a enfermida-


de. Finalmente, que a seu mandato estão todas as coisas
subordinadas para servir-se delas segundo sua vontade.

Professor: E sobre os ímpios e sobre os demônios, que


havemos de entender? São a Ele subordinados?

Estudante: Conquanto não os governa por seu Espírito San-


to, os tem refreado com seu poder com um freio para que
não possam mover-se senão quando os permite. E também
os faz executores de sua vontade, para que façam o que Ele
quer, ainda que seja contra a intenção e desejo deles.

Professor: Que proveito vem de conhecer isto?

Estudante: Muito grande. Porque seria, para nós, coisa


miserável, se os demônios e os homens maus pudessem
algo contra a vontade de Deus. E não poderíamos ter,
jamais sossego em nossas consciências, por estar perdido
de tudo o que nos quisessem fazer; mas por que sabemos
que estão refreados e acanhados pela vontade de Deus,
de tal maneira que nenhuma coisa podem senão com sua
licença, nos alegramos e estamos seguros; visto que Deus
promete ser segurança e defesa de nossa salvação.81

Que o exemplo do teólogo de Genebra guie nossos estu-


dos, prédica e devoção, nos estimulando a firmar nossa fé nas
Escrituras somente.

81 João Calvino, “O Catecismo de Genebra” em: Catecismos de la Igle-


sia Reformada (Buenos Aires: La Aurora, 1962), passim.

202
“Aquele que se encontra sentado à mão direita do Pai é detentor do mais
elevado governo no céu e na terra, e triunfa gloriosamente sobre os inimigos
que ele conquistou e subjugou.”

J. Calvino
CAPÍTULO 10

CALVINO SOBRE CRISTO

W. GARY CRAMPTON

João Calvino estava em concordância com o seu contem-


porâneo Martinho Lutero, o grande Reformador Alemão, que
uma vez escreveu:

A História da igreja universal tem confirmado em mim


a convicção que aqueles que têm tido e mantido o arti-
go central em sua integridade, aquele de Jesus Cristo, têm
permanecido com sugerança arraigados em sua fé cris-
tã… Aquele que se apega firmemente à doutrina que Je-
sus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, que
morreu e ressuscitou por nós, irá aquiescer e assentir a
todos os outros artigos da fé cristã.1

Os teólogos normalmente dividem o estudo da Cristo-


logia (a doutrina de Jesus Cristo) em duas partes, sua pessoa
e sua obra. Calvino faz isso também. Esses dois estudos
doutrinários são inseparáveis, pois nunca podemos enten-
der a obra do mediador sem primeiro entender sua pessoa.
Este é o porquê, Calvino, em suas Institutas, começa com o

1 “Earliest Christian Creeds”, como citado em John Jefferson Davis,


Handbook of Basic Bible Texts, 61.

205
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

último (Institutas II:12-14) e conclui com o primeiro (Insti-


tutas II:15-17).2
O Concílio de Calcedônia (451 d.C.) declarou que Jesus
Cristo é:

Verdadeiro Deus e verdadeiro homem, constando de alma


racional e de corpo; consubstancial ao Pai, segundo a di-
vindade, e consubstancial a nós, segundo a humanidade;
em todas as coisas semelhante a nós, excetuando o peca-
do, gerado segundo a divindade antes dos séculos pelo Pai
e, segundo a humanidade, por nós e para nossa salvação,
gerado da Virgem Maria, mãe de Deus.

Um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que


se deve confessar, em duas naturezas, inconfundíveis e
imutáveis, inseparáveis e indivisíveis; a distinção das na-
turezas de modo algum é anulada pela união, mas, pelo
contrário, as propriedades de cada natureza permane-
cem intactas, concorrendo para formar uma só pessoa e
subsistência; não dividido ou separado em duas pessoas.
Mas um só e mesmo Filho Unigênito, Deus Verbo, Jesus
Cristo Senhor.

2 Ronald Wallace afirma incorretamente que a Cristologia de Calvino foca-


se sobre o aspecto “funcional”, e não no “essencial” (ou “ontológico”).
Ele contende adicionalmente que essa é igualmente a ênfase dos pró-
prios escritores do Novo Testamento (Calvin, Geneva and the Reformation,
241). Aqui Wallace está em concordância com Oscar Cullmann (e outros
estudiosos do Novo Testamento) (The Christology of the New Testament),
3-4). Robert L. Reymond, contudo, argumenta decididamente contra tal
noção: “Eu… insisto que é muito superficial sugerir que os homens po-
dem se concentrar para sempre no que Jesus fez por eles, e nunca abor-
darem a questão ontológica de quem ele é. De fato, é psicologicamente
impossível os homens modernos, como aconteceu com os homens do
Novo Testamento, ficarem satisfeitos com um interesse apenas no sig-
nificado funcional de Jesus e nunca questionar ou abordar a questão
ontológica que seu significado funcional força sobre eles” (Jesus, Divine
Messiah: The New Testament Witness, 12-13).

206
CALVINO SOBRE CRISTO

Calvino não tentou melhorar essa afirmação; ele expan-


diu o assunto com base nas verdades expressas na fórmula
calcedônica.

A NATUREZA DIVINA
O Reformador mantinha que Jesus Cristo, a segunda pes-
soa eterna da Divindade trina, é plenamente humano (Institutas
I:13:7-13). Em seus Comentários sobre Romanos 9.5, Tito 2.13,
Hebreus 1.8 e 1 João 5.20, Calvino declara que Cristo é Deus
– autotheos – de fato.
De acordo com Calvino, Cristo é “ele próprio a Palavra
eterna e essencial do Pai” (Institutas I:13:7). Ele é um, em essên-
cia com o Pai (Comentário sobre Filipenses 2.6). O mesmo divino
Filho de Deus, embora pré-encarnado, apareceu aos patriar-
cas sob a economia do Antigo Testamento e agora apareceu
encarnado, a nós do Novo (I:13:10). Na encarnação, Deus se
manifestou ao seu povo “plena”, perfeita e “completamente”
(Comentário sobre Colossenses 2.9).
E mais, na encarnação, Deus o Filho não pôs de lado
nenhum dos seus atributos divinos (Comentário sobre João 1.14)
A natureza divina, por definição, nunca pode mudar (i.e., Deus
é imutável). Escreveu Calvino: “Ora, de modo maravihoso, do
céu desceu o Filho de Deus, e, no entanto, ele não deixou o
céu; de modo maravilhoso, quis sofrer a gestação no útero da
Virgem, andar pela terra e pender na cruz, para que sempre
enchesse o mundo, assim como desde o início” (Institutas II:13-
4).3 A doutrina knosis dos teólogos modernistas não pode ser
atribuída a Calvino.

3 Essa doutrina é algumas vezes mencionada como o “extra-calvinisti-


cum” – ou “extra” calvinista. Calvino ensinou que Deus o Filho não
existia somente encarnado em Jesus de Nazaré, mas que ele existia tam-
bém fora (extra) dele ao mesmo tempo. Como a Divindade eterna, o

207
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

A NATUREZA HUMANA
Calvino, com Calcedônia, também sustentou o fato que
Jesus Cristo era plenamente humano bem como plenamente
divino (Institutas II:13:1-4). Ele citou inúmeras passagens da
Escritura para provar o seu ponto: Mateus 1.1; Romanos 1.3,
9.5; Gálatas 4.4; Hebreus 2.14, 16, 4.15; Filipenses 2.5-8; 1 Pe-
dro 3.18 (Institutas II:13:1-2). O nascimento virginal é prova bí-
blica adicional da natureza humana de Jesus (Institutas II:13:3).
Até mesmo o nome “Filho do Homem” fala de sua humani-
dade (Institutas II:13:2). (Calvino não negou que o nome “Filho
do Homem” tinha implicações divinas também).
Quando Deus o Filho tomou sobre si uma natureza hu-
mana, ele se tornou “um homem real composto de corpo e
alma” (Institutas II:13:2). Isto é, ele era (e ainda é) humano no
sentido pleno da palavra. Durante seu ministério terreno, Cris-
to esteve sujeito à “fome, à sede, ao frio e a outras necessidades
de nossa natureza” (Institutas II:13:1). Além disso, “ele escolheu
não somente crescer em corpo, mas fazer progresso na mente”
(Comentário sobre Lucas 2.40). Sem dúvida, o que distingue a hu-
manidade de Cristo da nossa é que ele é “livre de toda falta e
corrupção”, i.e., sem pecado (Institutas II:13:4).
De acordo com Calvino, é absolutamente essencial que
Jesus Cristo seja tanto Deus como homem. Somente então,
como mediador, poderia ele eliminar a distância entre o Deus
santo e o homem pecador. Como homem, Cristo provou a
morte em favor do seu povo; como Deus, ele venceu-a. É a
natureza divina de Cristo que dá valor infinito ao sacrifício
de Cristo (Institutas II:12:1-3; Comentário sobre Hebreus 2.14). Se
Cristo não é plenamente Deus e plenamente homem, então
a salvação não é possível (Comentário sobre Mateus 22.42; He-

Filho não pode de forma alguma estar restrito a um corpo humano; ele
deve sempre reter o atributo divino de onipresença.

208
CALVINO SOBRE CRISTO

breus 5.1). Dessa forma, como uma consequência do decreto


de Deus para salvar o eleito, a encarnação era “absolutamente
necessária”. Não havia outra forma (Institutas II:12:1).

A PESSOA DE CRISTO
Os teólogos chamam a união das naturezas divina e hu-
mana de Jesus Cristo em uma pessoa de “a união hipostática”.
Como expresso na fórmula calcedônica, essa doutrina mantém
que o eterno Filho de Deus tomou sobre si uma natureza hu-
mana: corpo e alma. A natureza humana não se tornou uma
personalidade independente. Antes, ela tornou-se pessoal so-
mente na pessoa do Filho eterno. Portanto, embora o Senhor
Jesus Cristo tivesse duas naturezas distintas, ele era apenas uma
pessoa. Com essa definição da unidade da pessoa, João Calvi-
no estava de acordo (Institutas II:14:1-8). De fato, ele declarou
que a melhor analogia humana que podemos usar para explicar
essa união é aquela da união misteriosa do espírito e corpo
humano que compõe o homem (Institutas II:14:1).
Além disso, as duas naturezas de Cristo nunca são con-
fundidas (i.e., misturadas de alguma forma) ou separadas (Insti-
tutas II:14:2). Todavia, elas devem permanecer distintas. Disse
Calvino: “A unidade da pessoa não impede as duas naturezas
de permanecerem distintas, de forma que sua divindade retém
tudo o que lhe é peculiar, e sua humanidade mantém em se-
parado tudo o que pertence a ela” (Comentário sobre João 1.14).
Como observado antes, em suas Institutas (II:13:4), o Reforma-
dor manteve que, junto e ao mesmo tempo, a pessoa única de
Jesus Cristo, com respeito a sua natureza humana, poderia “so-
frer a gestação no útero da Virgem… andar pela terra… pen-
der na cruz” e, todavia, com respeito a sua natureza divina, ele
continuou a encher “o mundo, assim como desde o início”.
Um dos efeitos da união hipostática é aquela da comu-
nicação dos atributos. Isso significa que tudo o que pode ser

209
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

atribuído à natureza divina ou humana de Cristo, pode ser atri-


buído à pessoa. Por exemplo, a Bíblia fala da pessoa de Jesus
Cristo dormindo na popa de um barco (Marcos 4.38), embora
saibamos que Deus não dorme (Salmo 121.4). Da mesma for-
ma, Atos 20.28 refere-se ao sangue de Deus que foi derramado
na cruz; mas Deus é puro Espírito (João 4.24) e não tem san-
gue (Lucas 24.39). Em cada um desses casos o que é dito sobre
Cristo é atribuído à sua pessoa.
Concernente a essa doutrina, Calvino escreveu que as Es-
crituras

atribuem-lhe [a Cristo], às vezes, coisas que importa sejam


atribuídas especificamente à sua humanidade; às vezes,
coisas que competem exclusivamente à sua divindade; de
quando em quando, coisas que abrangem a uma e outra
natureza, mas que não são bastante próprias de nenhuma
das duas separadamente. E, na verdade, com tão grande
fervor exprimem esta conjunção de uma dupla natureza
que subsiste em Cristo, que algumas vezes as fazem co-
municar-se entre si. Essa figura de linguagem foi chamada
pelos antigos de comunicação de propriedades [i.e., atri-
butos] (Institutas II:14:1).

Por toda a História da igreja, inúmeras heresias têm se


levantado com respeito à pessoa de Cristo. Millard Erickson
observa que há basicamente seis dessas heresias, sendo que
todas apareceram de alguma forma nos primeiros quatro sé-
culos após Cristo. Ele observa: “Elas [as heresias] ou negavam
a genuinidade (ebionismo) ou a completude (arianismo) da di-
vindade de Jesus, ou negavam a genuinidade (docetismo) ou a
completude (apololinarianismo) da sua humanidade, dividiam
a pessoa (nestorianismo), ou confundiam suas naturezas (euti-
cianismo). Todos os distanciamentos da doutrina ortodoxa da
pessoa de Cristo são simplesmente variações de uma dessas

210
CALVINO SOBRE CRISTO

heresias.”4 João Calvino, com típica incisividade, evitou habil-


mente todas elas.
Ao lidarem com o assunto da pessoa de Cristo é comum
também, os teólogos Reformados, falarem dos “estados de
Cristo”. Isso tem a ver com a posição de mediador sob a lei
de Deus. Cristo, o legislador divino (Tiago 4.12), tomou sobre
si uma natureza humana e ficou sob a lei (Gálatas 4.4). Isto é,
durante o tempo da sua humilhação, Cristo foi um servo sob
a lei. Essa doutrina é bem expressa no Breve Catecismo de West-
minster (P. 27, 28):

A humilhação de Cristo consistiu em ele nascer, e isso em


condição baixa, feito sujeito à lei; em sofrer as misérias
desta vida, a ira de Deus e amaldiçoada morte na cruz; em
ser sepultado, e permanecer debaixo do poder da morte
durante certo tempo.

A exaltação de Cristo consiste em ele ressurgir dos mor-


tos no terceiro dia; em subir ao Céu e estar sentado à mão
direita de Deus Pai, e em vir para julgar o mundo no úl-
timo dia.

Como essa doutrina foi basicamente um desenvolvi-


mento do século dezessete, Calvino não discutiu o tópico
separadamente. Contudo, seu ensino sobre o assunto foi cla-
ramente manifesto em seus vários escritos. Por exemplo, na
edição de 1536 das Institutas, e em seu Catecismo da Igreja de
Genebra, Calvino discorreu sobre a doutrina de Cristo como
contida no Credo Apostólico. Ali encontramos um ensino com-
pleto sobre os estados de Cristo, embora não sob esse título,
que concorda plenamente com Westminster (veja também
Institutas II:16:1-19).

4 Millard Erickson, Christian Theology, 738.

211
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

A OBRA DE CRISTO
Quando os teólogos Reformados estudam a obra de Je-
sus Cristo, eles normalmente o fazem sob a rubrica dos seus
três ofícios: profeta, sacerdote e rei. Interessantemente, embo-
ra outros (e.g., Agostinho e Aquino) antes dele tenham falado
do ministério de Cristo neste modelo triplo, foi João Calvi-
no quem desenvolveu plenamente essa abordagem (Institutas
II:15:1-6).
O título Cristo (christos) do Novo Testamento, que é o
equivalente do Messias (mashiach) do Antigo Testamento, sig-
nifica “ungido”. Na era do Antigo Pacto, os profetas (1 Reis
19.16), sacerdotes (Êxodo 29.7; Salmos 133.2) e reis (1 Samuel
10.1; 16.13), eram ungidos para cumprir as suas funções da-
das por Deus. O mesmo é verdadeiro sobre Jesus Cristo. Em
Mateus 3.16-17, lemos que ele foi ungido pelo Espírito Santo
para desempenhar o seu triplo ofício (Comentário sobre Mateus
3.16-17; Institutas II:15:1).
Como profeta, Cristo executa seu ofício “revelando-nos,
pela sua Palavra e pelo seu Espírito, a vontade de Deus para a
nossa salvação”.5 Esse ofício, disse Calvino, era desempenha-
do sob a era do Antigo Pacto por meio dos seus profetas, por
meio de quem ele estava falando (Comentário sobre 1 Pedro 1.10-
12). No Novo Pacto, Cristo veio ele mesmo como o grande
profeta para ser o nosso mestre. Mas após sua ascensão, ele
continuou seu ministério profético por meio dos apóstolos, e
agora na igreja através dos ministros do Evangelho que pre-
gam verdadeiramente a sua Palavra (Institutas II:15:1-2). Deus,
diz Calvino, não pode ser conhecido exceto “através de Cristo”
(Comentário sobre 1 Pedro 1.21).

5 Breve Catecismo de Westminster, P. 24.

212
CALVINO SOBRE CRISTO

Como sacerdote, Jesus Cristo executa seu ofício “ofere-


cendo-se a si mesmo uma vez em sacrifício, para satisfazer a
justiça divina, reconciliar-nos com Deus e fazendo contínua in-
tercessão por nós”6 (Institutas II:15:6). De acordo com Calvino,
o propósito da encarnação de Cristo foi a redenção do eleito
(Institutas II:12:4). (O supralapsarianismo de Calvino é evidente
aqui: O propósito da criação era glorificar a Deus por meio da
redenção da igreja [Institutas II:12:5].)
O Senhor Jesus viveu uma vida sem pecado em obediên-
cia ativa à vontade de Deus, cumprindo assim o pacto das obras
(Calvino não usou o termo “pacto das obras”) em favor dos
eleitos (Comentário sobre Romanos 5.17-19; Institutas II:13:4;16:5).
Então ele foi até a cruz, como um sacrifício, de uma vez por
todas, para expiar os pecados deles, no que é chamado sua
obediência passiva (Institutas II:15:6). (Todos os sofrimentos
de Cristo durante seu ministério terreno são chamdos de sua
obediência passiva.)7
Em seu Comentário sobre Isaías 53.5, Calvino ensinou que
durante toda a sua vida terrena, Cristo estava carregando os
pecados dos eleitos.
Em Cristo, a dupla imputação ocorreu. A justiça de Cris-
to foi imputada aos eleitos, enquanto ao mesmo tempo, seus
pecados foram imputados nele. Dessa forma, os pecados do
povo de Deus, por meio da obra sacerdotal de Cristo, não exis-
tem mais; eles não serão mais lembrados (Institutas II:16:5-6;
Comentário sobre 2 Coríntios 5.21). Dessa forma, Calvino pôde
dizer que foi na cruz que a glória de Deus brilhou com maior
fulgor (Comentário sobre João 13.31).

6 Breve Catecismo de Westminster, P. 25.


7 Calvino não usou as palavras “ativa” e “passiva” quando se referindo à
obediência prestada por Cristo. O significado, contudo, parece presente
(Comentário sobre Mateus 26.17; João 2.13; Hebreus 10.10).

213
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

Foi na cruz, disse o Reformador, que Cristo foi esquecido


pelo Pai. Na cruz ele sofreu os tormentos do Inferno em favor
dos eleitos. Aqui, de acordo com Calvino, é onde Cristo “des-
ceu ao Hades”, como o Credo Apostólico diz (Institutas II:16:10).
De fato, o genebrino preferiu reestruturar as linhas do Credo
da seguinte forma: “padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos,
desceu ao Hades, foi morto e sepultado”; essa ordem, cria ele,
refletia melhor o ensino bíblico que o Deus-homem recebeu o
castigo do Inferno enquanto estava na cruz.8
A obra sacerdotal de Cristo, contudo, não cessou na cruz.
Como o Senhor da glória assunto ao céu, ele sentou-se à mão
direita do Pai de onde continuamente intercede em favor dos
eleitos (Institutas II:15:6). Em seu Comentário sobre Hebreus 7.25,
Calvino declarou que o Cristo assunto está agora “realizando
seu ofício como sacerdote; pois pertence a um sacerdote inter-
ceder pelo povo, para que possam obter o favor de Deus. Isso
é o que Cristo está fazendo desde então…”
O fato que Cristo, como intercessor, está agora à mão
direita do Pai garante que as orações dos santos (todos os elei-
tos) serão ouvidas e respondidas. Orar em seu nome é ter “o
sangue de Cristo… sempre destilando diante da presença do
Pai” (Comentário sobre Hebreus 10.19). Em outras palavras, assim
como o processo de destilação purifica um líquido e o traz à
sua essência básica, assim também a obra intercessória de Cris-
to purifica as orações de todos aqueles e somente aqueles que
ele comprou por meio de sua morte.9
Como rei, Cristo executa seu ofício “sujeitando-nos a si
mesmo, governando-nos e protegendo-nos, contendo e subju-
gando todos os seus e os nossos inimigos”10 (Institutas II:15:3-

8 Veja R. C. Sproul, The Glory of Christ, 161.


9 Douglas Kelly, If God Already Know, Why Pray?, 39.
10 Breve Catecismo de Westminster, P. 26.

214
CALVINO SOBRE CRISTO

5). Calvino aqui enfatiza a natureza espiritual do Reino media-


tório de Cristo. Como divindade eterna, Deus o Filho sempre
foi rei. Mas na plenitude dos tempos, ele veio em carne para
governar sobre sua igreja. Nessa capacidade, o Senhor Jesus
Cristo sujeitou-nos a si mesmo, governando-nos e protegen-
do-nos, e contendo e subjugando todos os nossos inimigos.
Todavia, ao mesmo tempo, Cristo é rei universal. Ele reina so-
bre o universo como Rei dos reis e Senhor dos senhores. Pro-
gressivamente, ele está subjugando seus inimigos sob os seus
pés de acordo com a sua vontade (Institutas II:14:3-5).

A EXPIAÇÃO
Como observado acima, há um sentido no qual podemos
dizer que Calvino sustentava que a expiação era o propósito da
encarnação. Disse o Reformador: “Em qualquer outro lugar a
Escritura não consigna outra finalidade para a qual o Filho de
Deus quis assumir nossa carne, e tenha também recebido este
encargo da parte do Pai, senão que houvesse de tornar-se víti-
ma para aplacar o Pai em relação a nós” (Institutas II:12:4). Isso,
sem dúvida, é parte do ministério sacerdotal do Filho.
Calvino extrai sua teologia sobre a expiação não somente
da revelação do Novo Testamento, mas também do Antigo.
Robert Paul está correto quando delcara que nem de longe tem
sido dada atenção suficiente aos ensinos do Reformador sobre
o sistema sacrificial do Antigo Pacto e a luz que eles lançam
sobre a inteireza da obra expiatória de Cristo.11
Por exemplo, Calvino escreveu:

Ora, que mais inútil ou frívolo que, a fim de se reconci-


liarem com Deus, oferecerem os homens o fétido odor a

11 Robert Paul, “The Atonement: Sacrifice and Penalty”, em Readings in


Calvin’s Theology, Donald K. McKim, editor, 145.

215
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

desprender-se da gordura de animais a fim de expurgar-se


de suas imundícies, e a recorrerem à aspersão de água e de
sangue? Em suma, todo o sistema cultual da lei, se é con-
siderado em si, nem mesmo contém sombras e figuras a
que corresponda a verdade, será coisa inteiramente risível
(Institutas II:7:1).

Calvino estava dizendo que nenhum israelita eleito teria


considerado sua salvação como baseada no sangue de búfalos
e bodes, mas somente no Cristo representado por essas ofer-
tas. Escreve o genebrino: “À parte de Cristo não subsiste o co-
nhecimento salvífico de Deus, e por isso desde o princípio do
mundo ter sido ele posto diante de todos os eleitos, para quem
voltassem os olhos e em quem descansassem sua confiança”
(Institutas II:6:4).
Uma análise dos escritos de Calvino, particularmente na
“segunda parte” do seu comentário sobre o Credo Apostólico
encontrado na edição de 1536 das Institutas e na edição final
das Institutas (Institutas II:12, 15-17), revela o seguinte com res-
peito a sua visão da expiação:12
1. Ela foi ilimitada em poder, mas definida (ou particu-
lar) em propósito e extensão.13

12 Veja também Ronald Wallace, Calvin, Geneva and the Reformation, 242-252;
e Robert A. Peterson, Calvin’s Doctrine of the Atonement.
13 É de certa forma difícil ver como estudiosos tais como Ronald Wallace
(251s) e Augustus H. Strong (Systematic Theology, 777-778) podem con-
cluir a partir de seus estudos que Calvino não sustentou uma visão “li-
mitada” ou “particular” da expiação, i.e., que Cristo morreu para tornar
certa a salvação dos eleitos, e não para tornar possível a salvação de
toda a humanidade (expiação “universal”). Em seu Comentário sobre 1 João
2.2., por exemplo, Calvino chamou a visão universal da expiação de uma
doutrina “monstruosa”, que “não merece nenhuma refutação”. Cristo,
contendeu Calvino, sofreu “eficazmente somente pelos eleitos”. Gregg
Singer confirma isso. Ele escreveu: “Uma expiação que é universal é es-
tranha ao sistema de Calvino. Cristo morreu pelos eleitos. Uma expiação

216
CALVINO SOBRE CRISTO

2. Ela foi um sacrifício propiciatório (Comentário sobre


Mateus 26.3; 1 João 2.1-2). A explicação pagou ple-
namente os pecados dos eleitos, e apazigou a ira de
Deus, satisfazendo assim a sua justiça. Anselmo (c.
1033-1109) tinha endossado anteriormente essa vi-
são da expiação, que ficou conhecida como a Teoria
da Satisfação. (Calvino aqui estaria em radical discor-
dância com aqueles [e.g., C. H. Dodd] que negam o
aspecto propiciatório da expiação de Cristo.) 14
3. Ela foi um sacrifício penal, em que Cristo sofreu a
penalidade pelos pecados do seu povo (Comentário
sobre Lucas 22.37; 2 Coríntios 5.21).
4. Ela foi um sacrifício substitutivo (Comentário sobre
Isaías 53.10). Jesus Cristo sofreu vicariamente em fa-
vor das suas ovelhas. Ele não era uma terceira parte.
Como Deus, ele era a parte ofendida; e o pecado
poderia ser perdoado apenas porque Deus, em Jesus
Cristo o homem, tomou voluntariamente a penalida-
de completa devida aos eleitos.
5. Ela foi um sacrifício de uma vez por todas no qual
Cristo realizou redenção em favor dos eleitos (Insti-
tutas II:17:1-5; Comentário sobre Hebreus 9.26).
6. Ela foi um resgate. Pecadores culpados tinham uma
dívida para com Deus (não Satanás). Cristo pagou
o resgate ao Pai em favor deles, redimindo-os assim
e trazendo reconciliação (Comentário sobre Colossenses
1.21; Institutas III:2:2).

limitada faz parte da doutrina bíblica da eleição, e Calvino fez da eleição


o pivô em sua dotrina da salvação, pois ela ocupa esse lugar nas Escritu-
ras” (John Calvin: His Roots and Fruits, 15).
14 Veja Leon Morris, The Apostolic Preaching of the Cross, 144ss.

217
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

7. Ela estava fundamentada no pacto que Deus tinha


estabelecido com os seus eleitos (Comentário sobre He-
breus 9.15-18).
8. Ela teve como seu ponto de partida o livre amor de
Deus em Cristo (Comentário sobre João 3.1; Hebreus
2.9)

Ela foi uma expiação pela qual Cristo conquistou os qua-


tro inimigos principais da fé cristã: Satanás, a morte, o pecado
e o mundo. Ele destruiu os inimigos do povo de Deus e se
levantou dentre os mortos como vitorioso.

218
“Todos os que invocam a Deus noutro nome que não o de Jesus Cristo
desobedecem ao mandamento de Deus e se contrapõem à sua vontade.”

J. Calvino
CAPÍTULO 11

JOÃO CALVINO SOBRE


ORAÇÃO

ROUSAS JOHN RUSHDOONY

No Livro III das Institutas da Religião Cristã, Calvino de-


votou um longo capítulo de 77 páginas à oração. Este capítu-
lo, XX, é intitulado “Da Oração, que é o Principal Exercício
da Fé, e o Meio de Recebermos Diariamente os Benefícios
de Deus”. O título nos dá um bom resumo do seu conteúdo;
ele não será resumido aqui, mas alguns aspectos serão con-
siderados.
O homem, sustentava Calvino, tem um problema: “[Nós
somos] estúpidos e insensíveis para com nossas misérias”, mas
Deus “vigia por nós e monta guarda sobre nós, e às vezes nos
socorre sem ser solicitado”. Isso não diminui o nosso dever de
orar a Deus.1 Disse Calvino:

Percebemos claramente quão destituído e vazio de todas


as coisas boas é o homem e como lhe faltam todos os
recursos de salvação. Portanto, se ele busca meios pelos

1 John Calvin, Institutes of the Christian Religion, Book III, Chap XX: III,
Vol. II. (Philadelphia: Presbyterian Board of Christian Education,
1936), 95.

221
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

quais socorra as suas necessidades, lhe é necessário que


saia fora de si mesmo e os obtenha em outra parte.2

NECESSIDADES
Para Calvino, as “necessidades” do homem têm a ver
com sua salvação e o seu crescimento na graça. Essa é uma
ênfase sobre oração bem diferente daquela comum hoje. Para
Calvino, Romanos 10.13, 14, 17, é um texto importante não
somente com referência à fé, mas também à oração, pois os
dois estão intimamente ligados. Assim como “a fé vem pelo
ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus” (Rm 10.17), assim tam-
bém a oração é dependente do ouvir, e a capacidade de ouvir
vem da Escritura. Assim como a fé nos capacita a penetrar e
entender a palavra de Deus, assim também o faz a oração:

II. Por meio da oração, então, penetramos até aquelas ri-


quezas que nos foram reservadas junto ao nosso Pai ce-
leste… a oração desenterra aqueles tesouros, que o evan-
gelho do Senhor revela à nossa fé… realmente, não é sem
razão que o Pai celeste declara que a única fortaleza de
salvação consiste na invocação de seu nome, através da
qual de fato evocamos a presença não só de sua provi-
dência, mediante a qual está vigilante em cuidar de nossos
interesses, mas também de seu poder, mediante o qual nos
sustenta, fracos e quase a desfalecer, e de sua bondade,
mediante a qual nos receba à graça, a nós miseramente
sobrecarregados de pecados, pela qual, enfim, consegui-
mos que ele manifeste sua presença conosco em todos os
seus atributos.3

Os homens hoje perdem o ponto principal dessa decla-


ração, pois ignoram sua afirmação primária, a saber, “que a

2 Ibid ., Book III, Chap. XX, I; Vol. II, 93.


3 Ibid., Book III, Chap. XX, Vol. II, 94.

222
JOÃO CALVINO SOBRE ORAÇÃO

única fortaleza de salvação consiste na invocação de seu nome”. A igreja


primitiva, o homem medieval, e o homem Reformado teriam
entendido. Paulo sabia o que significava quando escreveu, em
Filipenses 2.9-11:

Por isso, também Deus o exaltou soberanamente, e lhe


deu um nome que é sobre todo o nome; para que ao nome
de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, e
na terra, e debaixo da terra, e toda a língua confesse que
Jesus Cristo é o SENHOR, para glória de Deus Pai.

Charles Buck (1771-1815), em seu Theological Dictionary,


definiu “Nome de Deus” da seguinte forma:

Por este nome devemos entender, 1. Deus mesmo, Sl


22.1; 2. Seus títulos peculiares, Ex 3.13, 14; 3. Sua pala-
vra, Sl 5.11, Atos 9.15; 4. Suas obras, Sl 8.1; 5. Seu culto,
Ex 20.24; 6. Suas perfeições e excelências, Ex 34, João
17.26. As propriedades ou qualidades do seu nome são estas: 1.
Um nome glorioso, Sl 72.17; 2. Transcendente e incompa-
rável, Ap 19.16; 3. Poderoso, Fp 2.10; 4. Santo e venerado,
Sl 111; 5. Terrível para os ímpíos; 6. Perpétuo, Is 55.13.4

O NOME
A leitura correta de Filipenses 2.9 não é “um nome”, mas
“o nome”. Nome tem uma variedade de conotações no uso he-
braico; representa a própria pessoa, e sua dignidade e glória.
Temos um eco disso na, ainda levemente familiar, declaração
policial: “Alto, em nome da lei”. Nome aqui significa que todo
o poder da lei está por detrás do mandamento e processará o
ofensor. O nome Jesus significa Deus encarnado, aquele que
se tornou como nós e suportou a humilhação e vergonha da

4 Charles Buck, A Theological Dictionary (Philadelphia: Joseph Woodward,


1826), 401.

223
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

cruz e está agora entronizado como Rei sobre toda a criação.


J. J. Muller escreveu:

O “nome de Jesus” significa Jesus mesmo. De acordo


com o uso hebraico da palavra, o nome dá expressão ao
próprio ser, e descreve uma pessoa como ela é, e como
ela se revela.5

Dessa forma, invocar o Nome de Jesus é invocar a sua


Pessoa, poder e presença. Por conseguinte também, simples-
mente portar uma cruz vazia não é invocar aquele que já des-
truiu a morte e é Rei dos Reis, e Senhor dos senhores (1Tm
6.15). Há pouca invocação do Nome em nossos dias porque há
pouca consciência do Reino e presença do Grande Rei, Jesus
o Cristo.
O Terceiro Mandamento nos diz:

Não tomarás o nome do SENHOR teu Deus em vão;


porque o SENHOR não terá por inocente o que tomar o
seu nome em vão.

Portanto, a invocação trivial do nome de Deus, ou de


Cristo, quando se quer dar ênfase a algo, ou em coisas profa-
nas, é um pecado. É um uso desdenhoso do Nome de Deus
para os nossos propósitos, e não nos termos de sua palavra e
glória.
Por outro lado, toda ação cristã deve ser em nome de Je-
sus: “E, quanto fizerdes por palavras ou por obras, fazei tudo
em nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus Pai”
(Cl 3.17). Todo o nosso discurso, ação e oração deveriam ser
em seu Nome.

5 Jac. J. Muller, The Epistles of Paul to the Philippians and to Philemon (Grand
Rapids: Eerdmans, 1955), 88.

224
JOÃO CALVINO SOBRE ORAÇÃO

CRER NO NOME
Podemos crer na historicidade da Escritura e na palavra e
obras de Jesus Cristo; podemos afirmá-lo como sendo Senhor
e Salvador, mas colocamos e estabelecemos uma distância en-
tre os primeiros cristãos da Judéia e nós mesmos, e entre Cristo
no céu e nós, a menos que “creiamos no Nome”. Por con-
seguinte, no Novo Testamento, o chamado é repetidamente
formulado dessa forma:

E acontecerá que todo aquele que invocar o nome do Se-


nhor será salvo. (Atos 2.21)

Seja conhecido de vós todos, e de todo o povo de Isra-


el, que em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, aquele a
quem vós crucificastes e a quem Deus ressuscitou dentre
os mortos, em nome desse é que este está são diante de
vós. (Atos 4.10)

E em nenhum outro há salvação, porque também debaixo


do céu nenhum outro nome há, dado entre os homens,
pelo qual devamos ser salvos. (Atos 4.12)

Essas são apenas umas poucas das muitas referências se-


melhantes. O Nome significa a presença e o poder de Deus o
Filho. Fracassar em invocá-lo e em entender o seu significado é
viver com um senso de distância de Deus. A fé pode ser real o
suficiente, mas será fria e fraca. Dessa forma, o chamado não é
para que apenas creiamos no Senhor Jesus Cristo (Atos 16.31),
mas que creiamos no Nome do Senhor:

E o seu mandamento é este: que creiamos no nome de


seu Filho Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros, se-
gundo o seu mandamento. (1 João 3.23)

Estas coisas vos escrevi a vós, os que credes no nome


do Filho de Deus, para que saibais que tendes a vida

225
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

eterna, e para que creiais no nome do Filho de Deus. (1


João 5.13)

Nosso Senhor deixa claro que não é suficiente fazer gran-


des obras em seu Nome: devemos fazer “a vontade de meu
Pai, que está nos céus” (Mt 7.21-23). Dado esse fato da obedi-
ência, podemos então perdir a Deus em Nome de Cristo por
aquelas coisas que necessitamos:

E tudo quanto pedirdes em meu nome eu o farei, para que


o Pai seja glorificado no Filho. Se pedirdes alguma coisa
em meu nome, eu o farei. (João 14.13-14)

Pedir em seu Nome significa pedir nos termos de seu Reino


e nossa vida em Cristo. Pedir em seu Nome é reconhecer o
seu Senhorio sobre nós, e seu direito soberano de nos dar, da
forma como ele ordena, muito, pouco, ou nada, e agradecê-lo
por tudo.
Somos ordenados a orar em Nome de Jesus: Calvino en-
fatizou corretamente a invocação do seu Nome como nossa
“única fortaleza de salvação”.

226
“Visto que nos reconciliamos com Deus, em Cristo, através de seu verda-
deiro sacrifício, somos, todos nós, por sua graça, feitos sacerdotes com o fim
de podermos consagrar-nos a ele como sacrifício vivo e tributar-lhe toda a
glória por tudo o que temos e somos.”

J. Calvino
CAPÍTULO 12

JOÃO CALVINO E O PAPEL DO


CRENTE NO REINO DE DEUS

MARK ROUSAS RUSHDOONY

A Igreja Católica Romana, durante a Idade Média e a Re-


forma, era, num aspecto, mais biblicamente ortodoxa que a
maioria da igreja moderna. Na tradição medieval tudo da vida
era visto em termos religiosos. Hoje diríamos que ela tinha
uma cosmovisão que era corretamente teocêntrica. Infeliz-
mente, contudo, ela via a obra de Deus em termos hierárqui-
cos, com a igreja institucional como o mediador entre o céu
e a terra, sendo eficazmente uma extensão da encarnação de
Jesus Cristo.
Antes da Reforma, os secularistas tinham começado um
esforço concentrado para reviver uma cosmovisão humanísti-
ca, uma que via a vida política e econômica do homem como
central. A Europa, então, estava sendo dividida entre duas cos-
movisões antes de Martinho Lutero postar suas 95 Teses. A
cosmovisão de Roma era intolerante para com desafios religio-
sos, e a emergente cosmovisão político-econômica humanística
via os interesses nacionais, políticos e econômicos conflitantes
como uma ameaça. O ensino da Reforma não desafiou tan-
to a Igreja Católica Romana como instituição, como desafiou

229
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

a alegação de Roma quanto a ser uma instituição mediadora.


Tanto Roma como os Reformadores tinham cosmovisões teo-
cêntricas. Ambos viam a sociedade em termos religiosos. Mas
foi a Reforma, seguindo Calvino, que reorientou todo o foco
do pensamento e ação cristãos.
O que foi, então, que fez as ideias de João Calvino (pois
foi João Calvino quem desenvolveu as implicações da posição
iniciada por Lutero) tão transformadoras da fé e da sociedade?
A ênfase de Calvino sobre o Reino de Deus e a justificação são
largamente responsáveis. Roma tinha identificado intimamente
o Reino de Deus com a Igreja institucional. A Igreja, com a
Santa Sé como a sua cabeça, era a voz do Reino de Deus. A ca-
beça humana da Igreja era o Vigário de Cristo, o Papa. A Igreja
tinha as chaves do Reino e interpretava a Palavra de Deus para
todos os crentes.

O ÚNICO MEDIADOR ENTRE DEUS E O HOMEM


João Calvino negou à Igreja o direito de mediar entre Deus
e o homem. Para Calvino, Jesus Cristo era o único Mediador.
Calvino via o Reino de Deus como existindo, onde quer que os
homens se submetessem ao reinado de Jesus Cristo. A Igreja
não era o Reino de Deus, mas estava no Reino. O Reino não era
visto como uma instituição, mas como o governo de Jesus Cris-
to, a atividade de Deus pela graça, não do homem pelas obras.
João Calvino fez do crente um membro, não apenas de uma
instituição à qual ele devia sujeição e respeito, mas também de
uma ordem escatológica eterna. João Calvino reorientou a res-
ponsabilidade de domínio do cristão: da autoridade da igreja ins-
titucional para o reinado sem limites de Cristo mesmo. Calvino
não era contra a igreja institucional; ele meramente definiu sua
autoridade como ministerial, e não mediatorial.
Roma, sem dúvida, viu isso (e ainda vê o Protestantismo)
como anarquia. Isso não deveria nos surpreender. Todos os

230
JOÃO CALVINO E O PAPEL DO CRENTE NO REINO DE DEUS

ditadores creem que a ordem depende de uma estrutura insti-


tucional e visível. A ideia de Roma de um mundo centrado em
Deus era, na verdade, uma cosmovisão centrada na igreja.
A segunda ênfase da Reforma que Calvino desenvolveu
poderosamente foi a justificação. Calvino ensinou que a jus-
tificação era um ato da graça de Deus. Ela não depende de
nenhuma atividade humana, de forma que nenhuma media-
ção humana da justificação era possível. Roma não somente
via a si mesma como uma hierarquia institucional que alegava
um papel mediatorial na salvação do homem, mas via tudo
da sociedade como uma hierarquia de instituições mediadoras
que deveriam conduzir os homens a Deus por intermédio de
Roma.
O ensino da Reforma sobre a salvação negava a obra me-
diadora da igreja e de todas as outras instituições.1 Porque a
justificação era um ato de Deus, não há nenhum processo en-
volvido, e nenhuma mediação exceto aquela de Jesus Cristo. A
posição de Roma era que a sociedade e suas instituições deve-
riam conduzir os homens a Deus. As implicações sociais dessa
teologia colocavam os homens e as instituições sob a autorida-
de institucional da Igreja como a voz, se não a manifestação,
do Reino de Deus. A teologia de Roma de redenção mediada
colocava tudo da sociedade debaixo da sua autoridade.

LIBERDADE
Calvino libertou os homens das instituições e tradições
religiosas que presumiam mediar a graça de Deus. Ele visuali-
zou uma sociedade na qual a igreja e as outras instituições eram

1 Nisto, a Reforma desenvolveu as implicações do Conselho da Calcedô-


nia. Veja Mark R. Rushdoony, “The Immanent or the Incarnate? The
Definition of Chalcedon as the Foundation of Western Liberty”, Chalce-
don Report, Dezembro 2003, 4.

231
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

ministeriais da Palavra e sob a autoridade desta. Tanto o Me-


diador como a autoridade da Palavra transcendiam o homem e
a História, embora qualquer um pudesse conhecê-los por meio
do chamado redentivo ao conhecimento, justiça e domínio. A
Reforma não fez das boas obras atos de penitência diante de
um Deus de vingança, mas evidência da nova vida na retidão
do homem justificado. A igreja, as instituições sociais e as boas
obras tornaram-se parte do ministério do homem de proclamar
a graça de Deus, e não sua mediação dessa graça. Libertação do
controle da igreja como um mediador, o desenvolvimento da
salvação do homem em seu chamado e santificação pessoal ex-
plodiram após a Reforma numa multidão de manifestações.2
Porque a Igreja Romana medieval via sua função como
mediatorial, ela prescrevia a fé para promover seu conceito de
ordem piedosa. A Reforma, porque via a função dos fiéis como
ministerial, aplicava a fé para promover a ordem piedosa. Calvi-
no libertou os cristãos do papel mediatório ilegítimo da igreja
para a cidadania no Reino de Deus. Ao fazer isso, ele libertou
a igreja, também, da tarefa impossível que ela tinha assumido
e a capacitou a retornar ao seu papel na ministração de todo o
conselho de Deus.
A doutrina de Calvino do Reino de Deus e a justificação
pela fé levou a uma nova perspectiva no Ocidente, uma que
lançou o continente para a era moderna. Por várias gerações
– antes da cosmovisão secular humanística do Iluminismo pas-
sar a ser predominante – os herdeiros de Calvino controlaram
a direção da Civilização Ocidental. A cosmovisão religiosa de
Roma preocupava-se em controlar os homens, não em deixá-

2 O ensino do “sacerdócio de todos os crentes” é um exemplo dessa influ-


ência. A crença que Deus honra o trabalho honesto de qualquer homem
ou mulher levou a uma dedicação sem precedentes ao trabalho e ao cha-
mado. Na América, o desenvolvimento dessa teologia resultou na “ética
Puritana do trabalho”.

232
JOÃO CALVINO E O PAPEL DO CRENTE NO REINO DE DEUS

los livres para exercer domínio como cidadãos do Reino de


Deus. Uma das lições que aprendemos no Ocidente é que ho-
mens livres podem realizar coisas nas quais as instituições não
podem sonhar. Calvino tornou a atividade do trabalhador mais
humilde nobre no serviço de Jesus Cristo e seu Reino.
Embora a mensagem de Calvino tenha sido suprimida
pelo reavivamento do humanismo secular nos séculos seguin-
tes, esse movimento teve, por causa de Calvino, duas batalhas a
travar. Uma era a promoção da perspectiva político-econômica
secular. Ele teve que pelejar também com a perda de liberdade
que essa mudança envolveu. A perspectiva secular em si levou
a uma perda de liberdade, mas a Reforma fez dessa tendência o
assunto de muita resistência. O amor pela liberdade para servir
a Deus e o respeito pelos labores de indivíduos no avanço do
seu Reino, quando secularizados após uma perda de fé, ainda
deram aos homens um amor pela liberdade e senso de propósi-
to ao seu trabalho que davam ao Estado somente com relutân-
cia. A Reforma teve que responder ao humanismo secular do
Renascimento bem como ao humanismo religioso institucio-
nalizado de Roma. Hoje a situação é de certa forma diferente.
O desafio primário agora é o humanismo pós-Iluminismo, e a
principal Reforma necessária na igreja é seu chamado ao tra-
balho do Reino e o domínio presente em termos do reinado
eterno de Jesus Cristo. Sem um retorno à doutrina da justifica-
ção pela graça soberana de Deus, e a uma vida de santificação e
domínio em nome do único Mediador entre Deus e o homem,
os crentes permanecerão servos inúteis.
Contudo, nem a Reforma nem qualquer outro período
da História deveriam ser vistos como o objetivo máximo da
atividade cristã. Se somos verdadeiramente crentes, orientados
pelo domínio no Reino de Deus, sabemos que o seu reinado
é certo e que sua vontade será feita no tempo bem como na
eternidade. Não há obstáculos para o Reino de Deus, embora

233
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

como mortais sejamos incapazes de ver o curso que a Provi-


dência estabeleceu para ele. Deus não usou a Reforma para
derrubar Roma de sua alegação arrogante à mediadora da obra
de Deus apenas para colocar em seu lugar nosso raciocínio
débil. Deus não media sua graça por meio de sacerdotes huma-
nos, nem por meio do entendimento humano. O nosso dever
é ter fé e servir a Deus em novidade de vida. Devemos levar
adiante essa poderosa mensagem da Reforma.

234
“O amor nos leva a fazer muito mais. Ninguém pode viver exclusivamente
para si mesmo e negligenciar o próximo. Todos nós temos de devotar-nos à
ação de suprir as necessidades do próximo.”

J. Calvino
CAPÍTULO 13

INTRODUÇÃO À ÉTICA
PESSOAL E SOCIAL DE
CALVINO

HERMISTEN MAIA

INTRODUÇÃO:
João Calvino (1509-1564) teve decisiva influência no
desenvolvimento moderno da ética do trabalho. Contudo, a
interpretação de seu pensamento, em geral, nos vem de ma-
trizes comuns e, quase todas, estereotipadas, alheias aos textos
do próprio Reformador. Neste capítulo pretendemos analisar
alguns aspectos de sua ética pessoal e social nos valendo em
especial de textos produzidos pelo próprio Calvino.

1. DEFINIÇÃO DE TRABALHO:

“[Albert von] Wallenstein, o maior de todos os condottie-


ri, descobriu o segredo de manter um exército pagando-
lhe com as contribuições cobradas nas províncias e cida-
des conquistadas e alimentando, vestindo e armando os
seus homens nas suas próprias oficinas, fábricas e minas.
Mas por detrás de Wallenstein estava, sabemo-lo hoje, um
outro homem, cuja presença, por muito tempo oculta, só

237
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

recentemente foi revelada: Hans de Witte, um calvinista


de Antuérpia....

“Hans de Witte, apesar de professar o calvinismo até o


fim, era um péssimo calvinista...” – H.R. Trevor-Roper.1

Trabalho pode ser definido como o esforço físico ou in-


telectual, com vistas a um determinado fim. O verbo “traba-
lhar” é proveniente do latim vulgar tripaliar: torturar com o tri-
pallium. Este é derivado de tripalis, cujo nome é proveniente da
sua própria constituição gramatical: tres & palus (pau, madeira,
lenho, estaca), que significava o instrumento de tortura de três
paus e que também servia para “ferrar os animais rebeldes”.2 O
tripallium também era um instrumento de três paus aguçados
que, algumas vezes munidos de pontas de ferro, eram utiliza-
dos pelos agricultores para bater o trigo, as espigas de milho e
o linho para rasgá-los e esfiapá-los.3 A ideia de tortura evoluiu,
tomando o sentido de “esforçar-se”, “laborar”, “obrar”.4 Le

1 H.R. Trevor-Roper, Religião, Reforma e Transformação Social, Lisboa: Edito-


rial Presença/Martins Fontes, c. 1981, p. 20 e 22.
2 “O nome da máquina [tripalium] de três pés destinada a ferrar os animais
indóceis, tornada a maneira corrente de designar um instrumento de
tortura” (Jacques Le Goff & Nicolas Truong, Uma História do Corpo na
Idade Média, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 65).
3 Cf. Suzana Albornoz, O Que é Trabalho, 6ª ed. São Paulo: Brasiliense,
2004 (6ª reimpressão), p. 10.
4 Cf. Trabalho: In: José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua
Portuguesa, Lisboa: Confluência, 1956, II, p. 2098; Trabalhar: In: Aurélio
B.H. Ferreira, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 2ª ed. rev. aum. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 1695; Antônio Geraldo da Cunha, Di-
cionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa, 2ª ed. Rio de Janei-
ro: Nova Fronteira, 1991, p. 779; Trabajar: In: J. Corominas, Diccionário
Crítico Etimológico de la lengua Castellana, Madrid: Editorial Gredos, (1954),
Vol. 4, p. 520-521; Trabalho: In: Antonio Houaiss, ed. Enciclopédia Mi-
rador Internacional, São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil, 1987,
Vol. 19, p. 10963-10964; Jacques Le Goff, Trabalho: In: Jacques Le Goff
& Jean-Claude Schmitt, coords. Dicionário Temático do Ocidente Medieval,

238
INTRODUÇÃO À ÉTICA PESSOAL E SOCIAL DE CALVINO

Goff nos chama a atenção para uma conexão interessante: a


condenação de Adão – que após a Queda obteria o alimento
em “fadigas” – e Eva – que daria a luz “em meio de dores”,
dizendo: “A origem etimológica da palavra ‘trabalho’ aparece
com um sentido particular na locução ‘sala de trabalho’, desig-
nando ainda hoje a sala de parto em uma maternidade”.5
Etimologia à parte, devemos observar, que o trabalho,
apresenta as seguintes características:6
a) Envolve o uso de energia destinado a vencer a resis-
tência oferecida pelo objeto que se quer transformar
– intencionalidade.
b) O trabalho se propõe sempre a uma transformação.
c) Todo o trabalho está ligado a uma necessidade, ex-
terna ou interna.
d) Todo trabalho traz como pressuposto fundamental,
o conceito de que o objeto, sobre o qual se trabalha,
é de algum modo aperfeiçoável, mediante o emprego
de determinada energia – esforço e perseverança.

2. ALGUMAS PERSPECTIVAS HISTÓRICAS E FILOSÓFICAS:


Na Idade Média – entre duas tradições antagônicas: a gre-
co-romana que desprestigia o trabalho e a cristã que o valoriza7

Bauru, SP/São Paulo:SP.: Editora da Universidade Sagrado Coração/


Imprensa Oficial do Estado, 2002, Vol. 2, p. 559-560.
5 Jacques Le Goff, Trabalho: In: Jacques Le Goff & Jean-Claude Schmitt,
coords. Dicionário Temático do Ocidente Medieval, Vol. 2, p. 560. Do mesmo
modo: Jacques Le Goff & Nicolas Truong, Uma História do Corpo na
Idade Média, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 66.
6 Ver Paul Schrecker, Work and History, 1948, Apud Trabalho: In: José
Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia, São Paulo: Loyola, 2001, Vol. 4, p.
2903a.
7 Cf. Jacques Le Goff, Trabalho: In: Jacques Le Goff & Jean-Claude
Schmitt, coords. Dicionário Temático do Ocidente Medieval, Vol. 2, p. 566;

239
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

– há, de certa forma, um retorno à ideia grega, considerando o


trabalho – no sentido manual, (banausi/a), “arte mecânica”
-, como sendo algo degradante para o ser humano,8 e inferior
a (sxolh/), ao ócio, descanso, repouso, à vida contemplativa e
ociosa (sxola/zw), por um lado, e à atividade militar pelo ou-
tro.9 Na visão de São Tomás de Aquino (1225-1274), o trabalho
era no máximo, considerado “eticamente neutro”.10 Segundo
a Igreja romana, “a finalidade do trabalho não é enriquecer,
mas conservar-se na condição em que cada um nasceu, até que
desta vida mortal, passe à vida eterna. A renúncia do monge é
o ideal a que toda a sociedade deve aspirar. Procurar riqueza é
cair no pecado da avareza. A pobreza é de origem divina e de
ordem providencial,” interpreta Pirenne.11
Ainda na Idade Média, especialmente a partir do século
XI, a posição ocupada pelo trabalho era regida pela divisão
gradativa de importância social: Oradores (oratores) (eclesiás-
ticos), Defensores (bellatores) (guerreiros) e Trabalhadores (la-

Jacques Le Goff, Para um Novo Conceito de Idade Média, Lisboa: Editorial


Estampa, 1980, p. 88ss.
8 banausi/a, está associada à “vida e hábitos de um mecânico” (ba/
nausoj); metaforicamente é aplicada à “mau gosto” e “vulgaridade”.
(Vd. Liddell & Scott, Greek-English Lexicon, Oxford: Clarendon Press,
1935, p. 128b). Ver por exemplo: Aristóteles, A Política, Rio de Janeiro:
Editora Tecnoprint, (s.d.), V.2.1-6. p. 141-143.
9 “A Escolástica [contribuiu] para despojar de todo prestígio e de todo
valor espiritual as atividades profissionais pela precedência que dava à
contemplação sobre a ação” (André Biéler, O Pensamento Econômico e Social
de Calvino, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 539).
10 Vd. Max Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, São Paulo:
Pioneira, 1967, p. 52ss. Havia na realidade opiniões divergentes entre as
ordens eclesiásticas a respeito do valor do trabalho manual [Ver: Jacques
Le Goff, Trabalho: In: Jacques Le Goff & Jean-Claude Schmitt, coords.
Dicionário Temático do Ocidente Medieval, Vol. 2, p. 568-570].
11 H. Pirenne, História Econômica e Social da Idade Média, 6ª ed. São Paulo:
Mestre Jou, 1982, p. 19.

240
INTRODUÇÃO À ÉTICA PESSOAL E SOCIAL DE CALVINO

boratores)12 (agricultores, camponeses).13 Desta forma, os ecle-


siásticos, no seu ócio e abstrações “teológicas” é que tinham
a prioridade, ocupando um lugar proeminente. O trabalho
manual era imposto ao monge apenas como castigo e peni-
tência.14 Mesmo para designar o trabalho, como acentuam Le
Goff e Truong, há duas palavras distintivas: Opus e Labor. Opus
“é o trabalho criador, o vocábulo do Gênesis que define o tra-
balho divino, o ato de criar o mundo e o homem à sua imagem.
Desse termo derivará operari (criar uma obra) operarius (aquele
que cria)”.15 Labor, por sua vez, refere-se ao trabalho laborioso,
“está do lado do erro e da penitência”.16
Biéler comenta: “O trabalho, especialmente o trabalho
criador de bens e riqueza, o trabalho manual, se não decaíra
mais até o nível do trabalho servil da Antiguidade, foi, todavia,
considerado como uma necessidade temporal desprezível com
relação aos exercícios da piedade. E aqueles que se dedicavam
às atividades econômicas e financeiras, os negociantes e ban-
queiros, eram particularmente desconsiderados”.17

12 “A partir do século VIII, os termos originários da palavra labor, como


labores, que designam mais os frutos do trabalho do que castigo, são os
signos tangíveis de uma valorização do trabalho agrícola e rural” (Jac-
ques Le Goff & Nicolas Truong, Uma História do Corpo na Idade Média,
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 66).
13 Ver: Jacques Le Goff, Trabalho: In: Jacques Le Goff & Jean-Claude Sch-
mitt, coords. Dicionário Temático do Ocidente Medieval, Vol. 2, p. 568-569; José
Ferrater Mora, Trabalho: In: Dicionário de Filosofia, São Paulo: Loyola, 2001,
Vol. 4, p. 2901b; Jacques Le Goff & Nicolas Truong, Uma História do Corpo
na Idade Média, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 66-67.
14 Cf. Jacques Le Goff & Nicolas Truong, Uma História do Corpo na Idade
Média, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 66.
15 Jacques Le Goff & Nicolas Truong, Uma História do Corpo na Idade Média,
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 64-65.
16 Jacques Le Goff & Nicolas Truong, Uma História do Corpo na Idade Média,
p. 65.
17 André Biéler, A Força Oculta dos Protestantes, São Paulo: Editora Cultura
Cristã, 1999, p. 118. Vd. Jacques Le Goff, Mercadores e Banqueiros da Idade
Média, São Paulo: Martins Fontes, 1991, passim.

241
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

No próprio currículo das universidades medievais era


explícita a visão desprivilegiada do trabalho: “... as disciplinas
‘mecânicas’ ou ‘lucrativas’, vítimas do duplo preconceito dos
antigos contra o trabalho manual e do cristianismo18 contra o
dinheiro e a matéria, eram banidas da escola, deixadas para os
leigos pecadores e ‘iletrados’ (illiteratus quer dizer aquele que
ignora o latim, que não estudou as artes liberais)”.19
3. A PERSPECTIVA DE CALVINO:
Não nos cabe aqui analisar a história da filosofia do tra-
balho, contudo, devemos mencionar que a Reforma resgatou
o conceito cristão de trabalho. Biéler resume: “Calvino, fun-
damentando-se nas Escrituras, é um dos raros teólogos a pôr
em evidência, com tanta clareza, a participação do trabalho do
homem na obra de Deus. Dessarte, conferiu ele ao labor hu-
mano dignidade e valor espirituais que jamais teve na Escolás-
tica, nem, por mais forte razão, na antiguidade. Este fato irá
ter grandes repercussões no desenvolvimento econômico das
sociedades calvinistas”.20
Na ética do trabalho, Lutero (1483-1546) e Calvino (1509-
1564) estavam acordes quanto à responsabilidade do homem
em cumprir a sua vocação através do trabalho. Não há lugar
para ociosidade. “Quando quis Deus, escreve Calvino, que o
homem se aplicasse a cultivar a terra, na pessoa do homem
condenou Deus a ociosidade e a indolência. Portanto, nada é
mais contrário à ordem da natureza que consumir a vida co-
mendo, bebendo, e dormindo...”.21 Com isto, não se quer dizer

18 Deve ser entendido aqui que o autor está se referindo ao “cristianismo”


então representado pela igreja católica romana.
19 Jacques Verger, Universidade: In: Jacques Le Goff & Jean-Claude Sch-
mitt, coords. Dicionário Temático do Ocidente Medieval, Vol. 2, p. 574.
20 André Biéler, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 538-539.
21 John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, Grand
Rapids, Michigan: Eerdmans Publishing Co., 1996 (Reprinted), Vol. 1,
(Gn 2.15), p. 125.

242
INTRODUÇÃO À ÉTICA PESSOAL E SOCIAL DE CALVINO

que o homem deva ser um ativista, mas sim, que o trabalho é


uma “bênção de Deus”. Lutero teve uma influência decisiva,
quando traduziu para o alemão o Novo Testamento (1522),
empregando a palavra “beruf ” para trabalho, em lugar de “ar-
beit” (palavra derivada do latim arvus,22 terreno arável). “Be-
ruf ” – com toda a dificuldade de encontrar um equivalente em
nossa língua –, acentua mais o aspecto da vocação do que o do
trabalho propriamente dito. As traduções posteriores, inglesas
e francesas, tenderam a seguir o exemplo de Lutero. A ideia
que se fortaleceu, é a de que o trabalho é uma vocação divina.23
Calvino, diz: “Se seguirmos fielmente nosso chamamento divi-
no, receberemos o consolo de saber que não há trabalho insig-
nificante ou nojento que não seja verdadeiramente respeitado e
importante ante os olhos de Deus”.24 O amor ao próximo faz
com que o nosso honesto trabalho não se limite a satisfazer as
nossas necessidades, mas, também, a ajudar aos nossos irmãos:
“O amor nos leva a fazer muito mais. Ninguém pode viver ex-
clusivamente para si mesmo e negligenciar o próximo. Todos
nós temos de devotar-nos à ação de suprir as necessidades do
próximo”.25

22 Arvus signfica “arável”. Arvum significa “terra lavrada”, “campo”, “terreno”


23 Vejam-se, Max Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, p. 52
(e notas correspondentes); André Biéler, O Pensamento Econômico e Social
de Calvino, p. 628; Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, 21ª ed.
Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1989, p. 114; Alain Peyrefitte, A
Sociedade de Confiança: Ensaio sobre as origens e a natureza do desenvolvimento,
Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p. 344ss.
24 João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo: Novo Século, 2000, p.
77. Contudo: “Como há muitas ocupações que pouco valem para socor-
rer os homens em seus deleites lícitos, o apóstolo recomenda-lhes que
escolham aquelas que tragam benefício a si e a seu próximo. Nem pre-
cisamos admirar-nos disso, pois se aquelas classes voluptuosas de ocu-
pações que só podem trazer corrupção eram denunciadas pelos pagãos,
dentre eles Cícero, com sendo em extremo vergonhosas, um apóstolo de
Cristo as incluiria para que figurassem entre as ocupações lícitas reco-
mendas por Deus” [João Calvino, Efésios, (Ef 4.28), p. 146].
25 João Calvino, Efésios, (Ef 4.28), p. 146.

243
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

Entende que “a indolência e a inatividade são amaldi-


çoadas por Deus”.26 “Moisés acrescenta agora que a terra foi
outorgada ao homem com esta condição: que se ocupasse em
cultivá-la, de onde se segue que foram os homens criados para
empregar-se em fazer alguma coisa e não para estarem ocio-
sos e indolentes. Verdade é que esse labor era bem alegre e
agradável, longe de todo aborrecimento e cansaço; todavia,
quando Deus quis que o homem se afizesse a cultivar a terra,
na pessoa dele condenou todo repouso indolente”.27 Todavia,
a graça de Deus atenua a severidade de punição, anexando ao
labor humano uma dose de satisfação que deveria caracterizar
primariamente o trabalho.28
Além disso, o trabalho está relacionado com o progresso
de toda a raça humana: “Há modos diferentes de se trabalhar.
Para quem ajuda a sociedade dos homens pela indústria, ou re-
gendo sua família, ou na administração pública ou em negócios
privados, ou aconselhando, ou ensinando ou de qualquer outra
maneira, não será considerado entre os inativos. Paulo censu-
ra aqueles zangões preguiçosos que querem viver pelo suor
dos outros, não contribuindo assim com nenhum serviço em
comum para ajudar a raça humana”.29 O ganho ilícito, através

26 John Calvin, Commentaries on the Second Epistle to the Thessalonians, Grand


Rapids, Michigan: Baker Book House, (Calvin’s Commentaries, Vol. XXI),
1996 (reprinted), (2Ts 3.10), p. 355.
27 John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, Grand
Rapids, Michigan: Eerdmans Publishing Co., 1996 (Reprinted), Vol. 1,
(Gn 2.15), p. 125.
28 “A aspereza desta pena é ainda atenuada pela clemência de Deus, de sor-
te que por entre os labores dos homens há certa alegria misturada, para
que não sejam de todo ingratos...” [John Calvin, Commentaries on The First
Book of Moses Called Genesis, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans Publish-
ing Co., 1996 (Reprinted), Vol. 1, (Gn 3.17), p. 174].
29 John Calvin, Commentaries on the Second Epistle to the Thessalonians, Grand
Rapids, Michigan: Baker Book House, (Calvin’s Commentaries, Vol. XXI),
1996 (reprinted), (2Ts 3.10), p. 355.

244
INTRODUÇÃO À ÉTICA PESSOAL E SOCIAL DE CALVINO

do qual o patrimônio de nosso próximo é dilapidado, é, na re-


alidade – independentemente do nome que se dê, já que o ser
humano é pródigo em adjetivar a maldade com termos nobres
– não um sinal de inteligência, mas de iniquidade: é, portanto,
uma forma de furto.30 Portanto, “não se deve fazer um uso
pervertido dos labores que outras pessoas empreendem em
seu próprio benefício”.31
Ainda que o dinheiro emprestado a juros seja permitido,32
o trabalho honesto, fruto do nosso labor é que deve ser a nos-

30 Cf. John Calvin, Commentaries on The Four Last Books of Moses, Grand Rap-
ids, Michigan: Eerdmans Publishing Co., 1996 (Reprinted), Vol. 3, (Ex
20.15), p. 110-111.
31 João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998 (1Tm 5.18), p. 149.
32 “O lucro que obtém alguém que empresta seu dinheiro no interesse lí-
cito, sem fazer injúria a quem quer que seja, não está incluído sob o
epíteto de usura ilícita. (…) Em suma, uma vez que tenhamos gravada
em nossos corações a regra de eqüidade que Cristo prescreve em Ma-
teus: ‘Portanto, tudo quanto quereis que os homens vos façam, fazei-lhes
também o mesmo’ [7.12], não será necessário entrar em longa contro-
vérsia em torno da usura” [João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo:
Edições Paracletos, 1999, Vol. 1, (Sl 15.5), p. 299]. Calvino fazia uma dis-
tinção importante entre o “empréstimo de consumo ou de assistência”
e o “empréstimo de produção ou de aplicação”. Aquele visava socorrer
aos necessitados, sendo improdutivo para o devedor. Este, o devedor,
com o seu trabalho poderia adquirir uma ampliação desses recursos. Os
juros neste caso seria legítimo (Ver: André Biéler, O Pensamento Econômico
e Social de Calvino, p. 588). Alguns princípios de Calvino a respeito deste
tema foram expostos em um carta (07/11/1545), escrita em resposta às
indagações de amigo Claude de Sachin. Biéler analisa esta carta e outras
passagens nas quais Calvino se posiciona sobre o assunto (Ver: André
Biéler, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 585ss). Em 1580, Beza,
juntamente com outros pastores, opõem-se veemente à criação de um
Banco em Genebra, entendendo que as riquezas trazem consigo impli-
cações indesejáveis, tais como o luxo, frivolidades, amor ao prazer, etc.,
todas incompatíveis com Genebra, que deseja preservar a já conhecida
moderação dos costumes (Ver: André Biéler, O Pensamento Econômico e
Social de Calvino, p. 239-240; André Biéler, O Humanismo Social de Calvino,
p. 66-67; R.H. Tawney, A Religião e o Surgimento do Capitalismo, São Paulo:
Editora Perspectiva, 1971, p. 124).

245
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

sa fonte de recursos para a manutenção de nossa família; não


devemos nos aproveitar das necessidades alheias, vivendo sim-
plesmente de transações financeiras. Um princípio justo é que
em todas as negociações, haja benefícios para ambas as partes.
Comentando o Sl 15.5, faz uma longa explanação sobre isso:

“Neste versículo Davi prescreve aos santos a não opri-


mirem seu próximo com usura, nem a forçá-lo a aceitar
suborno em favor de causas injustas. (…) Lembremo-nos,
pois, de que toda e qualquer barganha em que uma parte
injustamente se empenha por angariar lucro em prejuízo
da outra parte, seja que nome lhe damos, é aqui conde-
nada. (…) Aconselharia a meus leitores a ser precaverem
de engenhosamente inventar pretextos, pelos quais tirem
proveito de seus semelhantes, e para que não imaginem
que qualquer coisa pode ser-lhes lícita, quando para ou-
tros é grave e prejudicial.
“Com respeito à usura, é raríssimo encontrar no mun-
do um usurário que não seja ao mesmo tempo um ex-
torquidor e viciado ao lucro ilícito e desonroso. Conse-
quentemente, Cato, desde outrora, corretamente colocava
a prática da usura e o homicídio na mesma categoria de
criminalidade, pois o objetivo dessa classe de pessoas é
sugar o sangue de outras pessoas. É também algo mui-
to estranho e deprimente que, enquanto todos os demais
homens obtêm sua subsistência por meio do trabalho, en-
quanto os cônjuges se fatigam em suas ocupações diárias
e os operários servem à comunidade com o suor de sua
fronte, e os mercadores não só se empenham em variados
labores, mas também se expõem a muitas inconveniências
e perigos – os agiotas se deixam levar por vida fácil sem
fazer coisa alguma, recebendo tributo do labor de todas as
outras pessoas. Além disso, sabemos que, geralmente, não
são os ricos que são empobrecidos por sua usura, e, sim,
os pobres, precisamente quem deveria ser aliviado”.33

33 João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 15.5), p. 297-298.

246
INTRODUÇÃO À ÉTICA PESSOAL E SOCIAL DE CALVINO

A) Trabalho, Poupança e Frugalidade:


Calvino defendeu três princípios éticos fundamentais:
Trabalho, Poupança e Frugalidade.34 Note-se que a poupança
deveria ter sempre o sentido social.35 Comentando 2 Co 8.15,

34 É interessante notar que em 1513, N. Maquiavel (1469-1527), na sua


obra O Príncipe, dedicada a Lorenzo di Medicis, diz: “... um príncipe deve
gastar pouco para não ser obrigado a roubar seus súditos; para poder de-
fender-se; para não se empobrecer, tornando-se desprezível; para não ser
forçado a tornar-se rapace; e pouco cuidado lhe dê a pecha de miserável;
pois esse é um dos defeitos que lhe dão a possibilidade de bem reinar”
[N. Maquiavel, O Príncipe, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol.
IX), 1973, p. 72]. (grifos meus).
35 Vd. por exemplo, J. Calvino, As Institutas, III.7.5-6; III.10.4-5; Idem., Ex-
posição de 2 Coríntios, São Paulo: Edições Paracletos, 1995, (2Co 8), p.
165ss.; André Biéler, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 643.
(Veja-se, também, Hermisten M.P. Costa, As Questões Sociais e a Teologia
Contemporânea, São Paulo, 1986. Quanto à ação prática dos conceitos de
Calvino em Genebra, Vejam-se, entre outros: W. Fred Graham, The Cons-
tructive Revolutionary: John Calvin & His Socio-Economic Impact, Richimond,
Virginia: John Knox Press, 1971, p. 97ss.; Ronald S. Wallace, Calvino, Ge-
nebra e a Reforma, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, passim; Alderi
Souza de Matos, Amando a Deus e ao Próximo: João Calvino e o Dia-
conato em Genebra: In: Fides Reformata. São Paulo: Centro Presbiteriano
de Pós-Graduação Andrew Jumper, 2/2 (1997), p. 69-88.
A Igreja Católica sempre condenou o lucro, ainda que a sua prática não
se harmonizasse com a sua teoria, sendo ela mesma, extremamente rica.
“O empréstimo a juros (...) sempre foi proibido ao clero; a Igreja conse-
guiu, a partir do século IX, que se tornasse proibida também aos leigos,
e reservou o castigo desse delito à jurisdição de seus tribunais” (H. Pi-
renne, História Econômica e Social da Idade Média, p. 19).
Pirenne (1862-1935) continua:
“É evidente que a teoria dista muito da prática: os próprios mosteiros,
amiúde, infringiram os preceitos da Igreja. Não obstante, esta impreg-
nou tão profundamente o mundo com seu espírito, que serão necessá-
rios vários séculos para que se admitam as novas práticas que o renasci-
mento econômico do futuro exigirá, e para que se aceitem, sem reservas
mentais, a legitimidade dos lucros comerciais, da valorização do capital e
dos empréstimos com juros” (Idem.,Ibidem., p. 19-20).(Vd. uma anedota
bastante ilustrativa do conflito da Igreja, In: Pirenne, História Econômica

247
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

diz: “Moisés admoesta o povo que por algum tempo fora ali-
mentado com o maná, para que soubesse que o ser humano
não é alimentado por meio de sua própria indústria e labor,
senão pela bênção de Deus. Assim, no maná vemos claramente
como se ele fosse, num espelho, a imagem do pão ordinário
que comemos. (...) O Senhor não nos prescreveu um ômer ou
qualquer outra medida para o alimento que temos cada dia, mas
ele nos recomendou a frugalidade36 e a temperança, e proibiu
que o homem exceda por causa da sua abundância.37 Por isso,

e Social da Idade Média, p. 32-33). (Veja-se um resumo da prática de juros


durante a Idade Média em André Biéler, O Pensamento Econômico e Social
de Calvino, p. 237ss). Para uma visão da concepção e prática em Portugal,
ver: José Calvet de Magalhães, História do Pensamento Econômico em Portugal:
da Idade-Média ao Mercantilismo. Coimbra: Coimbra Editora, 1967, 537p.
Aldo Janotti, comentando a respeito da superioridade intelectual e rique-
za da Igreja romana na Idade Média, observa que:
“A preponderância econômica se manifestava tanto através da rique-
za agrária quanto da monetária: possuía a Igreja inúmeros domínios,
superiores em extensão aos da aristocracia laica, como também em
organização, pois só ela tinha homens habilitados para estabelecer po-
lípticos, ter registros de contas, calcular entradas e saídas e, por con-
seqüência, poder equilibrá-las” (Aldo Janotti, Origens da Universidade: A
Singularidade do Caso Português, 2ª ed. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 1992, p. 31).
36 “A Igreja Romana, afirmava-se, através do exemplo de seus governantes
encorajara o luxo e a ostentação; os membros da Igreja Reformada de-
vem ser econômicos e modestos. (...) O Calvinismo, em suma, significava
não apenas nova doutrina teológica e governo eclesiástico, mas nova es-
cala de valores morais e novo ideal de conduta social” (R.H. Tawney, A
Religião e o Surgimento do Capitalismo, São Paulo: Editora Perspectiva, 1971,
p. 116).
37 Referindo-se ao texto de Tt 2.11-14, Calvino comenta: “O apóstolo re-
sume todas as ações da nova vida em três grupos: sobriedade, justiça e
piedade.
“Indubitavelmente a sobriedade significa castidade e temperança, como
também o uso puro e frugal das bênçãos temporais, incluindo a paciência
na pobreza” (João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 33. Do mesmo
modo: As Institutas, III.7.3). “Tudo quanto extrapola o uso natural é su-

248
INTRODUÇÃO À ÉTICA PESSOAL E SOCIAL DE CALVINO

aqueles que têm riquezas, seja por herança ou por conquista de


sua própria indústria e labor, devem lembrar que o excedente
não deve ser usado para intemperança ou luxúria, mas para
aliviar as necessidades dos irmãos. (...) Assim como o maná,
que era acumulado como excesso de ganância ou falta de fé,
ficava imediatamente putrificado, assim também não devemos
alimentar dúvidas de que as riquezas que são acumuladas à ex-
pensa de nossos irmãos são malditas, e logo perecerão, e seu
possuidor será arruinado juntamente com elas, de modo que
não conseguimos imaginar que a forma de um rico crescer é
fazendo provisões para um futuro distante e defraudando os
nossos irmãos pobres daquela ajuda que a eles é devida”.38
Calvino também nos adverte quanto ao perigo de trans-
formarmos o nosso trabalho em objeto de avareza justamente
pela falta de fé na provisão do Senhor: “O que nos torna mais
avarentos do que deveríamos em relação ao nosso dinheiro
é o fato de sermos tão precavidos e enxergarmos tão longe
quanto possível os supostos perigos que nos podem sobrevir,
e assim nos tornamos demasiadamente cautelosos e ansiosos,
e passamos a trabalhar tão freneticamente como se devêsse-
mos suprir de vez as necessidades de todo o curso de nossa

pérfluo. Não que algum uso mais liberal de possessões seja condenado
como um mal em si mesmo, mas a ansiedade em torno delas é sempre
pecaminosa” [João Calvino, As Pastorais, (1Tm 6.8), p. 169]. Vd. também:
João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 75; Idem., As Institutas, III.10.4.
38 João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1995, (2Co
8.15), p. 177. Vd. também, João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, p. 45.
Em outro lugar: “As Escrituras exigem de nós e nos advertem a conside-
rarmos que qualquer favor que obtenhamos do Senhor, o temos recebido
com a condição de que o apliquemos em benefício comum da Igreja.
“Temos de compartilhar liberalmente e agradavelmente todos e cada um
dos favores do Senhor com os demais, pois isto é a única coisa que os
legitima.
“Todas as bênçãos de que gozamos são depósitos divinos que temos
recebido com a condição de distribuí-los aos demais” (João Calvino, A
Verdadeira Vida Cristã, p. 36).

249
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

vida, e afigura-se-nos como grande perda quando uma mínima


parcela nos é tirada. Mas aquele que depende da bênção do
Senhor tem o seu espírito livre dessas preocupações ridículas,
enquanto que, ao mesmo tempo, tem suas mãos livres para a
prática da beneficência”.39

B) O Comportamento Cristão na Riqueza e na Pobreza:


Calvino, interpretando Hb 13.16, entende que os bene-
fícios que prestamos aos homens se constituem parcialmente
em culto a Deus, sendo isto uma grande honra que Deus nos
concede. Não amar ao nosso próximo constitui-se numa ofen-
sa a Deus e às pessoas. Por outro lado, o nosso auxílio recípro-
co revela a unidade do Espírito em nós.

“Embora Deus não possa receber de nós nenhum benefí-


cio, no entanto considera nosso ato de invocar seu Nome
como Sacrifício; aliás, como o principal dos sacrifícios,
que supre a falta de todos os demais. Além disso, sejam
quais forem os benefícios que façamos pelos homens,
Deus os considera como feitos a Ele próprio, e lhes im-
prime o título de sacrifício, para que fique evidente que
os elementos da lei são agora não apenas supérfluos, mas
até mesmo nocivos, uma vez que nos desviam da genuína
forma de sacrificar.

“Em suma, o significado consiste em que, se porventura


queremos oferecer sacrifício a Deus, então devemos invo-
car seu Nome, fazer conhecida sua munificência através
de ações de graça e fazer o bem aos nossos irmãos. Esses
são os verdadeiros sacrifícios com os quais os verdadeiros
cristãos devem comprometer-se; e não sobra nem tempo
nem lugar para qualquer outro.40

39 João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2Co 8.2), p. 167-168.


40 João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb
13.16), p. 394.

250
INTRODUÇÃO À ÉTICA PESSOAL E SOCIAL DE CALVINO

“Não é uma honra trivial o fato de Deus considerar o


bem que fazemos aos homens como sacrifício oferecido
a Ele próprio, e o fato de valorizar tanto nossas obras,
que as denomina de santas. Portanto, onde nosso amor
não se manifesta, não só despojamos as pessoas de seus
direitos, mas também a Deus mesmo, o qual solenemen-
te dedicou a Si o que ordenou fosse feito em favor dos
homens”.41

“‘Repartir com os outros’ tem uma referência mais ampla


do que fazer o bem. Inclui todos os deveres pelos quais
os homens se auxiliam reciprocamente; e é um genuíno
distintivo do amor que os que se encontram unidos pelo
Espírito de Deus comunicam entre si”.42

Seguem alguns princípios apresentados e vivenciados por


Calvino, concernentes ao uso dos bens concedidos por Deus.
Pode-se perceber em suas orientações a fundamentação teoló-
gica de sua prática.
Sobre a vida exemplar de Calvino, escreve André Bié-
ler:

“.... a pregação do Reformador é o prolongamento de sua


ação. A modéstia em que vive com seus colegas é proverbial
e toca as raias da pobreza.43 Suas providências em favor dos
deserdados são constantes. Importuna persistentemente os
conselheiros da cidade para que tomem medidas de aten-
dimento aos pobres. Depois da chacina dos protestantes
em Provence, em 1545, organiza pessoalmente uma coleta

41 João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 13.16), p. 394.


42 João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 13.16), p. 395.
43 Vejam-se André Biéler, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 229-
230. O testemunho de Farel também é elucidativo. Ver: André Biéler, O
Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 229.

251
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

geral, subindo as escadarias dos edifícios repletos de refu-


giados44 para recolher a esmola de todos”.45
Vejamos, agora, alguns dos princípios estabelecidos nas
Institutas.

1) EM TUDO DEVEMOS CONTEMPLAR O CRIADOR, E DAR-LHE


GRAÇAS:

“Assim também não deixemos passar nenhum tipo de


prosperidade que nos beneficie, ou que beneficie a outros,
sem declarar a Deus, com louvor e ação de graças, que
reconhecemos que tal bênção provém do Seu poder e da
Sua bondade” – João Calvino, As Institutas, (1541), III.9.

A ingratidão para com Deus é resultado, em parte, de


nossa não consideração de Seus feitos:46 “... a desconsideração
quase universal leva os homens a negligenciarem os louvores
a Deus. Por que é que tão cegamente olvidam as operações de
sua mão, senão justamente porque nunca dirigem seriamente
sua atenção para elas? Precisamos ser despertados para este
tema”.47 Portanto, devemos cultivar o tipo de sensibilidade es-
piritual que nos faça enxergar com gratidão e louvor os atos de
Deus em nossa existência, a fim de não sermos injustos para

44 A grande quantidade de refugiados abrigados em Genebra, contribuiu


para modelar determinadas ênfases em sua vida econômica e enriqueci-
mento de diversas profissões. (Vejam-se alguns exemplos: André Biéler,
O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 216ss.).
45 André Biéler, O Humanismo Social de Calvino, p. 45; André Biéler, O Pensa-
mento Econômico e Social de Calvino, p. 230.
46 “Pois jamais somos devidamente sensibilizados do quanto somos de-
vedores a Cristo nem avaliamos suficientemente sua munificência para
conosco, até que a extrema infelicidade de nosso estado seja por ele pos-
ta diante de nossos olhos” [João Calvino, Efésios, São Paulo, Paracletos,
1998, p. 16].
47 João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, Vol. 2, (Sl
66.5), p. 624.

252
INTRODUÇÃO À ÉTICA PESSOAL E SOCIAL DE CALVINO

com Ele: “... Quando Deus, em qualquer tempo, nos socorre


em nossa adversidade, cometemos injustiça contra seu nome
se porventura esquecermos de celebrar nossos livramentos
com solenes reconhecimentos”.48 “Deus é o autor de todo
bem, segue-se que devemos receber tudo como vindo de Sua
mão, e com incessante ação de graças. Reconheçamos igual-
mente que não haverá nenhuma boa maneira de fazer uso dos
benefícios que generosa e abundantemente Ele derrama sobre
nós, se não Lhe estivermos dando constante louvor, com ações
de graças.”49
A gratidão, portanto, é resultado da compreensão de que
tudo que temos, foi criado por Deus a fim de que reconhe-
cêssemos o seu autor, rendendo-Lhe, assim, graças. “Às vezes
pensamos que podemos alcançar facilmente as riquezas e as
honras com nossos próprios esforços, ou por meio do favor
dos demais; porém, tenhamos sempre presente que estas coi-
sas não são nada em si mesmas, e que não poderemos abrir
caminho por nossos próprios meios, a menos que o Senhor
queira nos prosperar”.50
Os recursos de que dispomos devem ser um estímulo a
sermos agradecidos a Deus por sua generosa bondade:

“À luz desse fato aprendemos, também, que os que são


responsáveis pelo presunçoso uso da bondade divina, se
aproveitam dela para orgulhar-se da excelência que pos-
suem, como se a possuíssem por sua própria habilidade,
ou como se a possuíssem por seu próprio mérito; enquan-
to que sua origem deveria, antes, lembrá-los de que ela
tem sido gratuitamente conferida aos que são, ao contrá-

48 João Calvino, O Livro dos Salmos, (Sl 66.3), p. 630.


49 João Calvino, As Institutas, (1541), III.9.
50 João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo: Novo Século, 2000, p.
40-41.

253
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

rio, criaturas vis e desprezíveis e totalmente indignas de


receber algum bem da parte de Deus. Qualquer qualidade
estimável, pois, que porventura virmos em nós mesmos,
que ela nos estimule a celebrarmos a soberana e imerecida
bondade que a Deus aprouve conceder-nos”.51

2) USEMOS DESTE MUNDO COMO SE NÃO USÁSSEMOS DELE:


Devemos viver neste mundo com moderação, sem co-
locar o coração nos bens materiais, pois, tais preocupações
nos fazem esquecer a vida celestial e de “adornar nossa alma
com seus verdadeiros atavios”.52 Comentando o Salmo 30.6
– quando Davi reflete a sua momentânea confiança no suces-
so adquirido –, diz: “... Davi reconhece que havia sido justa e
merecidamente punido por sua estulta e precipitada confiança,
ao esquecer-se de sua mortal e mutável condição de ser huma-
no, e ao pôr demasiadamente seu coração na prosperidade.” 53
Em outro lugar, fazendo menção da mesma passagem, escre-
ve: “Davi afirma que a prosperidade havia obnubilado de tal
forma seus sentidos, que deixou de pôr seus olhos na graça de
Deus, da qual deveria depender continuamente. Em vez disso,
creu que poderia andar por suas próprias forças e imaginou
que não cairia jamais.” 54
Portanto, devemos usar nossos bens com moderação:

“... ainda que a liberdade dos fiéis com respeito às coisas


externas não deva ser limitada por regras ou preceitos,
sem dúvida deve regular-se pelo princípio de que deve re-

51 João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 8.4), p. 165-166.


52 Juan Calvino, Institución de la Religión Cristiana, Rijswijk, Países Bajos: Fun-
dación Editorial de Literatura Reformada, 1967 (Nueva Edición Revisa-
da), III.10.4.
53 João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 30.6), p. 631.
54 João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 47.

254
INTRODUÇÃO À ÉTICA PESSOAL E SOCIAL DE CALVINO

galar-se o mínimo possível; e, ao contrário, que temos que


estar mui atentos para cortar toda superfluidade, toda vã
ostentação de abundância – devem estar longe da intem-
perança! –, e guardar-se diligentemente de converter em
impedimentos as coisas que se lhes há dado para que lhes
sirvam de ajuda”.55 (Jo 15.19; 17.14; Fp 3.20; Cl 3.1-4; Hb
11.16; 1 Jo 2.15).

Devido aos nossos desejos incontrolados, devemos rogar


a Deus que nos dê moderação, “pois a única forma de agir com
moderação própria é quando Deus governa e preside nossos
afetos”.56

Para que não nos ensoberbeçamos, Deus que nos conhe-


ce perfeitamente, preventivamente, para que não sejamos
tentados, equilibra a abundância com a amargura: “Deus
modera a doçura da riqueza com amargura; e não permite
que a mente de Seu servo fique encantada em demasia
com isto. E sempre que uma estimativa enganadora de
riquezas nos impulsiona a desejá-la imoderadamente, por-
que nós não percebemos os grandes prejuízos que trazem
junto com elas; deixa a lembrança desta história [Abraão
e Ló] ajudar a conter tal imoderada fixação. Além disso,
tão freqüentemente o rico ache qualquer dificuldade que
surja da sua riqueza; faz com que aprenda a purificar a sua
mente por este medicamento, que eles não podem se tor-
nar excessivamente devotados às coisas boas da presente
vida. E verdadeiramente, a menos que o Senhor ocasio-
nalmente ponha rédea nos homens, a que profundidades
não cairiam quando abundassem em sua prosperidade?
Por outro lado, se nós somos oprimidos com pobreza,

55 J. Calvino, Institución, III.10.4.


56 João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, Vol. 3, (Sl
106.14), p. 678.

255
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

faz-nos saber, que, por este método também, Deus cor-


rige os males ocultos de nossa carne. E por fim, permite
que aqueles que têm abundância lembrem-se de que estão
rodeados de espinhos e tomem muito cuidado para não
serem picados”.57

3) SUPORTEMOS A POBREZA; USEMOS MODERADAMENTE DA


ABUNDÂNCIA:

Seguindo o que Paulo disse aos Filipenses: “Tanto sei estar


humilhado, como também ser honrado...” (Fp 4.12), comenta:

“Quem sofre a pobreza com impaciência, mostra o vício


contrário na abundância. Quero dizer com isso que quem
se envergonha de andar pobremente vestido, se vangloria-
rá de ver-se ricamente ataviado; que quem não se contenta
com a mesa frugal, se atormentará com o desejo de outra
mais rica e abundante.” 58

“O pobre deveria aprender a ser paciente sob as priva-


ções, para não se encontrar atormentado com uma exces-
siva paixão pelas riquezas.” 59

“Devemos aprender a superar a pobreza quieta e pacien-


temente, e desfrutar da abundância com moderação”.60

“Para assegurarmos que a suficiência [divina] nos satisfa-


ça, aprendamos a controlar nossos desejos de modo a não

57 John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, Grand
Rapids, Michigan: Eerdamans Publishing Co., 1996 (Reprinted), Vol. 1,
(Gn 13.5), p. 369.
58 Juan Calvino, Institución, III.10.5. Conforme já citamos, Calvino entendia
que: “Quando depositamos nossa confiança nas riquezas, na verdade
estamos transferindo para elas as prerrogativas que pertencem exclusiva-
mente a Deus” [João Calvino, As Pastorais, (1Tm 6.17), p. 182].
59 João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 74.
60 João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 73.

256
INTRODUÇÃO À ÉTICA PESSOAL E SOCIAL DE CALVINO

querermos mais do que é necessário para a manutenção


de nossa vida”.61

O nosso desejo incontrolado nos coloca em oposição


direta à vontade de Deus: “Todo aquele que se permite dese-
jar mais do que lhe é necessário, francamente se põe em dire-
ta oposição a Deus, visto que todas as luxúrias carnais se lhe
opõem diretamente”.62
A tendência é de nos envaidecermos com a abundância
e nos deprimirmos com a carência. Para muitos de nós, não
se ensoberbecer com a riqueza pode ser mais difícil do que
não se desesperar com a pobreza.63 “Aquele que é impacien-
te sob a privação manifestará vício oposto quando estiver no
meio do luxo”.64 Paulo sabia, por experiência própria, agir de
modo santo em ambas as circunstâncias. Em tudo Paulo era
agradecido a Deus (1Ts 5.18), sabendo que em Cristo pode-
ria suportar e vencer qualquer situação. Calvino observa que
temos que usar moderadamente dos recursos que Deus nos
deu, para que não caiamos na torpeza do excesso, da vanglória
e da arrogância (Rm 13.14).65 “Os bens terrenos à luz de nossa
natural perversidade, tendem a ofuscar nossos olhos e a levar-
nos ao esquecimento de Deus, e, portanto, devemos ponderar,
atentando-nos especialmente para esta doutrina: tudo quanto
possuímos, por mais que pareça digno da maior estima, não
devemos permitir que obscureça o conhecimento do poder e
da graça de Deus”.66

61 João Calvino, As Pastorais, (1Tm 6.8), p. 169.


62 João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 3, (Sl 106.14), p. 678
63 Vd. John Calvin, Commentary on the Epistle to the Philippians, Grand Rapids,
Michigan: Baker Book House Company, 1996, (Calvin’s Commentaries, Vol.
XXI), (Fp 4.12) p. 124.
64 João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 74.
65 Juan Calvino, Institución, III.10.3.
66 João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 48.3), p. 355-356.

257
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

Calvino insiste no ponto de que aqueles que não apren-


derem a viver na pobreza, quando ricos, revelarão a sua arro-
gância e orgulho. O apóstolo Paulo constitui-se num exemplo
de simplicidade em qualquer situação (Fp 4.12).
Ele também entende que na pobreza é que tendemos a
nos tornar mais humildes e fraternos. Devemos aprender a re-
partir e, também, a ser assistidos pelos nossos irmãos:

“Todas as pessoas desejam possuir o bastante que as pou-


pe de depender do auxílio de seus irmãos. Mas quando
ninguém possui o suficiente para suas necessidades pes-
soais, então surge um vínculo de comunhão e solidarieda-
de, pois que cada um se vê forçado a buscar empréstimo
dos outros. Admito, pois, que a comunhão dos santos só é
possível quando cada um se vê contente com sua própria
medida, e ainda reparte com seus irmãos as dádivas re-
cebidas, e em contrapartida admite ser também assistido
pelas dádivas alheias”.67

Aos pastores e aos crentes em geral, Calvino apresenta


uma recomendação:

“Os ministros devem viver contentes com uma mesa fru-


gal, e devem evitar o perigo do regalo e do fausto. Portan-
to, até onde suas necessidades o requeiram que os crentes
considerem toda a sua propriedade como à disposição
dos piedosos e santos mestres”.68

4) SOMOS ADMINISTRADORES DOS BENS DE DEUS:

“Visto que nosso Pai celestial nos concede todas as coi-


sas por sua livre graça, devemos ser imitadores de sua

67 João Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm


12.6), p. 430.
68 João Calvino, Gálatas, São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 6.6), p. 181.

258
INTRODUÇÃO À ÉTICA PESSOAL E SOCIAL DE CALVINO

graciosa benevolência, praticando também atos de bon-


dade em favor de outrem; e em razão de nossos recursos
virem dele, não somos mais que despenseiros dos dons
de sua graça” – João Calvino, Exposição de 2 Coríntios,
(2Co 8.4), p. 169.

a) Tudo pertence a Deus:


A Bíblia nos ensina que todas as coisas nos são dadas pela
benignidade de Deus e são destinadas ao nosso bem e provei-
to. Deste modo, tudo que temos constitui-se em um depósito
do que um dia teremos de dar conta. “Temos, pois, de admi-
nistrá-las como se, de contínuo, ressoasse em nossos ouvidos
aquela sentença. ‘Dá conta de tua mordomia’ (Lc. 16.2)”.69
Deus concede-nos bens para que o gerenciemos; Ele continua
sendo o Senhor de tudo: “Quando Deus nos envia riquezas
não renuncia a sua titularidade, nem deixa de ter senhorio so-
bre elas (como o deve ter) por ser o Criador do mundo. (...)
E ainda que os homens possuam cada um sua porção segun-
do Deus os há engrandecido mediante os bens deste mundo,
não obstante, Ele sempre continuará sendo Senhor e Dono de
tudo”.70 Portanto, “o uso legítimo de todas as graças é o liberal
e generoso compartilhar com os outros. Nenhuma, nem mais
certa regra, nem mais válida exortação para mantê-la, se podia
excogitar do que onde somos ensinados que todos os dotes de
que somos possuidores são consignações de Deus, creditadas
à nossa confiança com esta condição: que sejam dispensadas
em benefício do próximo (1Pe 4.10)”.71

69 J. Calvino, Institución, III.10.5. Ver também John Calvin, Commentaries on


The First Book of Moses Called Genesis, Grand Rapids, Michigan: Eerda-
mans Publishing Co., 1996 (Reprinted), Vol. 1, (Gn 2.15), p. 125.
70 Juan Calvino, El Señor dio y El Señor quito: In: Sermones Sobre Job, Jeni-
son, Michigan: T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 2), p. 42.
71 João Calvino, As Institutas, III.7.5.

259
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

b) O Sentido da Riqueza:

“Os crentes gozam de genuína riqueza quando confiam


na providência divina que os mantém com suficiência e
não se desvanecem em fazer o bem por falta de fé. (...)
Ninguém é mais frustrado ou carente do que aquele que
vive sem fé, cuja preocupação com suas posses dilui toda
a sua paz” – João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2Co
9.11), p 193-194.

Calvino compreendia que o Cristianismo tem implicações


presentes e futuras. Contudo, o seu alvo principal refere-se ao
porvir: “A religião cristã, sem dúvida, como ensinamos alhures
[1Tm 4.8], contém promessas não só referentes à vida futura,
mas também com referência à vida presente; seu alvo, porém,
é a felicidade espiritual, quanto mais sendo o Reino de Cristo
espiritual”.72
Entende que a riqueza residia em não desejar mais do
que se tem e a pobreza, o oposto.73 Por sua vez, também en-
tendia que a prosperidade poderia ser uma armadilha para a
nossa vida espiritual: “Nossa prosperidade é semelhante à em-
briaguez que adormece as almas”.74 “Aqueles que se aferram

72 João Calvino, Efésios, (Ef 1.3), p. 24.


73 “Confesso, deveras, que não sou pobre; pois não desejo mais além
daquilo que possuo” (João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, p.
46). “Nossa cobiça é um abismo insaciável, a menos que seja ela
restringida; e a melhor forma de mantê-la sob controle é não dese-
jarmos nada além do necessário imposto pela presente vida; pois a
razão pela qual não aceitamos esse limite está no fato de nossa an-
siedade abarcar mil e uma existências, as quais debalde sonhamos
só para nós” [João Calvino, As Pastorais, (1Tm 6.7), p. 168].
74 Juan Calvino, El Uso Adecuado de la Afliccion: In: Sermones Sobre Job,
Jenison, Michigan: T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 19), p. 227. “Certamente,
o marfim, o ouro e as riquezas são boas criaturas de Deus, permitidas, e
até destinadas ao uso dos homens; também em nenhum lugar se proíbe
ao homem rir ou fartar-se ou adquirir novas propriedades ou deleitar-

260
INTRODUÇÃO À ÉTICA PESSOAL E SOCIAL DE CALVINO

à aquisição de dinheiro e que usam a piedade para granjearem


lucros, tornam-se culpados de sacrilégio”.75 Daí que, para o
nosso bem, o Senhor nos ensina através de várias lições a vai-
dade dessa existência.76 Os servos de Deus não podem ser re-
conhecidos simplesmente pela sua riqueza. Esclarecendo uma
interpretação errada de Ec 9.1, afirma: ”Se alguém quiser julgar
pelas coisas presentes quem Deus ama e quem Deus odeia,
trabalhará em vão, visto que a prosperidade e a adversidade
são comuns ao justo e ao ímpio, ao que serve a Deus e ao que
Lhe é indiferente. De onde se infere que nem sempre Deus
declara amor aos que Ele faz prosperar temporalmente, como
tampouco declara ódio aos que Ele aflige”.77

se com instrumentos musicais ou beber vinho. É certo. Mas, quando


alguém goza abundância de bens, se ele se deixar envolver pelas coisas
que lhe causam deleite, embriagar sua alma e seu coração com os praze-
res desta vida e viver buscando outros novos, muito longe estará do uso
santo e legítimo dos dons de Deus” [João Calvino, As Institutas, (1541),
IV.14]. Ver também: João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 30.6), p.
631; As Pastorais, (1Tm 6.17), p. 181.
75 João Calvino, As Pastorais, (1Tm 6.6), p. 168. “Todos quantos têm como
seu ambicioso alvo a aquisição de riquezas se entregam ao cativeiro do
diabo” [João Calvino, As Pastorais, (1Tm 6.8), p. 169].
76 Vd. João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 60.
77 João Calvino, As Institutas, (1541), II.4. Esta mesma linha de argumen-
tação é seguida em outro lugar: “Onde, pois, o temor de Deus não é
prevalecente, a confiança na prosperidade consiste no menosprezo e
motejo de sua imensurável munificência. Segue-se disso que aqueles a
quem Deus tem poupado nesta vida receberão sobre si a aplicação de
um castigo mais severo, visto que têm adicionado sua rejeição ao convite
paternal de Deus a suas demais perversidades. Ainda que todos os favo-
res divinos sejam inumeráveis provas de sua paternal bondade, todavia,
visto que às vezes Ele tem diferentes objetivos em vista, os ímpios se
equivocam ao vangloriar-se de sua prosperidade, como se fossem bem-
amados de Deus, ao mesmo tempo em que este paternal e liberalmente
os sustenta” [João Calvino, Romanos, 2ª ed. São Paulo: Parakletos, 2001,
(Rm 2.4), p. 81-82]. Ver também: João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1,
(Sl 17.14), p. 346.

261
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

Comentando o Salmo 62.10, diz: “Pôr o coração nas riquezas


significa mais que simplesmente cobiçar a posse delas. Implica
ser arrebatado por elas a nutrir uma falsa confiança. (...) É inva-
riavelmente observado que a prosperidade e a abundância en-
gendram um espírito altivo, levando prontamente os homens a
nutrirem presunção em seu procedimento diante de Deus, e a
se precipitarem em lançar injúria contra seus semelhantes. Mas,
na verdade o pior efeito a ser temido de um espírito cego e
desgovernado desse gênero é que, na intoxicação da grandeza
externa, somos levados a ignorar quão frágeis somos e quão
soberba e insolentemente nos exaltamos contra Deus”.78 Ele
considera a cobiça de dinheiro uma “praga” que, conforme
nos ensina Paulo (1Tm 6.10), traz muitos males: “Os que so-
frem dessa praga gradualmente se degeneram até que renun-
ciam completamente a fé”.79
Devemos em todas as coisas ser gratos a Deus, Quem nos
confere tudo o que temos, usando com prudência dos bens que
Ele nos concede para o Seu serviço. “Quanto mais liberalmen-
te Deus trate alguém, mais prudentemente deve ele vigiar para
não ser preso em tais malhas.” 80 “Quando depositamos nossa
confiança nas riquezas, na verdade estamos transferindo para
elas as prerrogativas que pertencem exclusivamente a Deus”.81
A nossa riqueza está em Deus, Aquele que soberanamente nos
abençoa.82 Portanto, “... é uma tentação muito grave, ou seja,
avaliar alguém o amor e o favor divinos segundo a medida da

78 João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 62.10), p. 580.


79 João Calvino, As Pastorais, (1Tm 6.10), p. 170.
80 João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 30.6), p. 633.
81 João Calvino, As Pastorais, (1Tm 6.17), p. 182.
82 “.... a glória de Deus deve resplandecer sempre e nitidamente em todos
os dons com os quais porventura Deus se agrade em abençoar-nos e em
adornar-nos. De sorte que podemos considerar-nos ricos e felizes nele,
e em nenhuma outra fonte” [João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl
48.3), p. 356].

262
INTRODUÇÃO À ÉTICA PESSOAL E SOCIAL DE CALVINO

prosperidade terrena que ele alcança”.83 Do mesmo modo, as


aflições não devem ser vistas de forma mística e supersticiosa:
“É certamente um erro muitíssimo comum entre os homens
olharem eles para os que se acham oprimidos com angústias
como se fossem condenados e réprobos. Visto que, de um
lado, a maioria dos homens, julgando o favor divino pelo pris-
ma de um estado incerto e transitório de prosperidade, aplau-
dem os ricos e aqueles para quem, como dizem, a fortuna sorri.
E então, de outro lado, agem com desprezo em relação aos que
enfrentam infortúnio e miséria, e estultamente imaginam que
Deus os odeia por não exercer sobeja clemência para com eles
como o faz em favor dos réprobos. O erro do qual falamos,
consiste em que a atitude de se julgar injusta e impiamente
é algo que tem prevalecido em todas as eras do mundo. As
Escrituras em muitas passagens clara e distintamente afirmam
que Deus, por várias razões, prova os fiéis com adversidades,
numa ocasião para exercitá-los à paciência, e noutra para sub-
jugar as inclinações pecaminosas da carne, e ainda noutra para
purificá-los dos resíduos que restam das paixões da carne, os
quais ainda persistem neles; às vezes para humilhá-los, às vezes
para fazer deles um exemplo para outros, e ainda outras vezes
para instigá-los à contemplação da vida celestial”.84 Isto por-
que, “Riquezas e outros confortos mundanos devem ser vistos
como que propiciando alguma experiência do favor e benevo-
lência divinos, mas não se deduz daí que os pobres sejam ob-
jetos do desprazer divino; ter um corpo saudável e boa saúde

83 João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 17.14), p. 346. Pelo contrá-
rio, em outros lugares, ele diz: “Se, então, nós temos cometido fornicação
contra Deus, toda nossa prosperidade deveria ser mantida sob suspeição;
por esta desobediência, abusando das bênçãos de Deus” [John Calvin,
Calvin’s Commentary, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1996
(Reprinted), Vol. XIII, (Os 9.1) p. 309]. “Prosperidade é como mofo ou a
ferrugem” [John Calvin, Calvin’s Commentary, Vol. XV, (Zc 13.9) p. 403].
84 João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 41.1), p. 240-241.

263
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

são bênçãos de Deus, porém não devemos conceber que isso


constitua prova de que a fraqueza e a enfermidade devam ser
consideradas com desaprovação”.85 Quanto ao dinheiro, como
tudo que temos provém de Deus, “o dinheiro em minha mão é
tido como meu credor, sendo eu, como de fato sou, seu deve-
dor”.86 Somos sempre e integralmente dependentes de Deus:
“Um verdadeiro cristão não deverá atribuir nenhuma prosperi-
dade à sua própria diligência, trabalho ou boa sorte, mas antes
ter sempre presente que Deus é quem prospera e abençoa”.87
Jesus Cristo é quem nos pedirá conta. O mesmo Jesus,
que em sua vida terrena viveu de forma sóbria e modesta,
combatendo todo excesso, soberba, ostentação e vaidade.

“Portanto, ao fazer o bem a nossos irmãos e mostrar-nos


humanitários, tenhamos em mente esta regra: que de tudo
quanto o Senhor nos tem dado, com o que podemos aju-
dar a nossos irmãos, somos despenseiros; que estamos
obrigados a dar conta de como o temos realizado; que
não há outra maneira de despensar devidamente o que
Deus pôs em nossas mãos, que ater-se à regra da caridade.
Daí resultará que não somente juntaremos ao cuidado de
nossa própria utilidade a diligência em fazer bem ao nosso
próximo, senão que incluso, subordinaremos nosso pro-
veito aos demais”.88

C) A JUSTA GRAÇA DE COMPARTILHAR COM ALEGRIA:

“Notemos bem como podemos ser sempre liberais mes-


mo quando mergulhados na mais terrível pobreza, se su-

85 João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 3, (Sl 91.15), p. 458.


86 João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 56.12), p. 504.
87 João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 42.
88 J. Calvino, Institución, III.7.5. Ver também André Biéler, O Humanismo
Social de Calvino, p. 72-74.

264
INTRODUÇÃO À ÉTICA PESSOAL E SOCIAL DE CALVINO

primos as deficiências de nossas bolsas pela generosidade


de nossos corações” – João Calvino, Exposição de 2 Corín-
tios, (2Co 8.2), p. 167.

A grandeza de nosso trabalho não está simplesmente no


que fazemos, mas como e com qual objetivo o fazemos. É
agradável a Deus que por meio de nosso trabalho a sociedade
seja beneficiada.89
Calvino entende que o ato de repartir o que temos con-
siste em uma prática de justiça relacionada ao propósito de
nossa existência: “Assim como não nascemos unicamente para
nós mesmos, também o cristão não deve viver unicamente
para si mesmo, nem usar o que possui somente para os seus
propósitos particulares ou pessoais”. Continua: “Já que dar as-
sistência às necessidades de nosso próximo é uma parte da
justiça – e de forma alguma é a menor parte –, os que negli-
genciam esta parte de seu dever devem ser tidos na conta de
injustos”.90 A nossa “riqueza”, ou seja, suficiência, como resul-
tado da bondade de Deus, tem um sentido social: “O Senhor
administra em nosso favor tanto quanto nos é proveitoso, às
vezes mais e às vezes menos, mas sempre na medida em que
ficamos satisfeitos e que vale muito mais do que ter o mundo
inteiro e sermos consumidos. Dentro desta suficiência deve-
mos ser ricos para o bem de outrem. Porque Deus não nos faz
o bem com o fim de cada um de nós guardar para si mesmo
o que recebe, mas para que haja mútua participação entre nós,
de acordo com os reclamos das necessidades”.91 A ajuda aos
nossos irmãos só se torna possível quando nos despimos da

89 Cf. John Calvin, Commentary on a Harmony of the Evangelists, Grand Rapids,


Michigan: Baker Book House, 1996 (Reprinted), Vol. 2, (Mt 25.24), p.
444.
90 João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2Co 9.10), p. 193.
91 João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2Co 9.8), p. 191.

265
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

primazia de nossos interesses pessoais; quando renunciamos


ao nosso direito em prol do outro.92 “Esta, portanto, nos seja
a regra para a benevolência e beneficência: tudo quanto a nós
nos dispensou Deus com que possamos assistir ao próximo,
somos disso mordomos, mordomos que estamos obrigados
a prestar conta de nossa mordomia. Essa, afinal, é, após tudo,
a reta mordomia: a que se amolda à norma do amor. Assim
acontecerá que não só o zelo pelo alheio proveito sempre com
a preocupação de nosso próprio benefício conjuguemos, mas
até àquele subordinemos”.93
Ajudar aos necessitados deve ser entendido não como
a perda de algum bem, antes, como um privilégio que é-nos
concedido pela graça de Deus, que nos capacita a sermos
generosos e a suportar com paciência as tribulações. “Os
membros de Cristo têm o dever de ministrar uns aos outros,
de modo que, quando nos dispomos a socorrer nossos ir-
mãos, não fazemos mais do que desempenhar o ministério
que é também dever deles. Por outro lado, negligenciar os
santos, quando necessitam de nosso socorro, é algo mais do
que apenas ausência de bondade; é usurpá-los daquilo que
lhes é devido”.94 Em outro lugar: “Ainda que seja universal-
mente consensual que é uma virtude louvável prestar ajuda
ao necessitado, todavia nem todos os homens consideram o
dar como sendo uma vantagem, nem tampouco o atribuem à
graça de Deus. Ao contrário disso, acreditam que alguma coi-

92 Cf. João Calvino, As Institutas, III.7.5.


93 João Calvino, As Institutas, III.7.5.
94 João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2Co 9.1), p. 186-187. Beza narra
que com o grande crescimento da igreja em Genebra, composta intensa-
mente de imigrantes, “deu azo a que os estrangeiros que aqui vinham ra-
dicar-se formassem uma associação com vistas a subvencionar as diretas
necessidades de seus pobres, para que a cidade não fosse sobrecarregada
em demasia” (Theodoro de Beza, A Vida e Morte de João Calvino, Campi-
nas, SP.: Luz para o Caminho, 2006, p. 38).

266
INTRODUÇÃO À ÉTICA PESSOAL E SOCIAL DE CALVINO

sa sua, ao ser doada, perdeu-se.95 No entanto, Paulo declara


que quando prestamos auxílio aos nossos irmãos, devemos
atribuí-lo à graça de Deus, e devemos considerá-lo um ex-
traordinário privilégio a ser ardorosamente buscado. (...) Os
homens rapidamente fracassam quando não são sustentados
pelo Espírito do Senhor, que é o Autor de toda consolação,
e uma inveterada carência de fé confiante nos permeia e nos
mantém afastados de todos os deveres de amor até que supe-
remos tudo isso pela graça do mesmo Espírito”.96
No entanto, esta ajuda não poderá ser com arrogância;
antes deve ser praticada com amor, prontidão, humildade, cor-
tesia, simpatia e alegria. Aliás, somente assim as nossas esmolas
se constituem em sacrifício agradável a Deus “A esmola é um
sacrifício agradável a Deus. Pois quando diz que Deus ama ao
doador contente, ele deduz o contrário, ou seja: que Deus rejei-
ta o constrangimento e a coerção. Não é sua vontade dominar-
nos como tirano; Ele nos revela como Pai, portanto requer de
nós a espontânea obediência de filhos”.97

95 Quando fazemos o bem nada perdemos; é Deus mesmo que nos recom-
pensará, na eternidade e aqui: “O que sai de nós para alguém, parece
diminuir o que possuímos; mas o tempo da ceifa virá, quando os frutos
aparecerão e serão recolhidos. Pois o Senhor considera o que é doado
aos pobres como sendo doado a Ele mesmo, e um dia reembolsará o
doador com fartos juros. (...) Esta colheita deve ser entendida tanto em
termos de recompensa espiritual de vida eterna com também sendo uma
referência às bênçãos terrenas com as quais o Senhor agracia o benfeitor.
Não é somente no céu que o Senhor recompensará os feitos nobres do
justo, mas o fará ainda neste mundo” [João Calvino, Exposição de 2 Corín-
tios, (2Co 9.6), p. 189].
96 João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2Co 8.1), p. 166.
97 João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2Co 9.7), p. 190. Comentando Ro-
manos, analisando uma possibilidade de interpretação da palavra “litur-
gia” empregada por Paulo, escreve: “Paulo, estou plenamente certo, está
se referindo a algum tipo de sacrifício feito pelos crentes, quando dão
de sua própria subsistência para mitigar a pobreza de seus irmãos. Ao
quitarem uma dívida de amor, à qual se achavam penhorados, oferecem

267
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

Todavia, Calvino constata com tristeza:

“Quase ninguém é capaz de dar uma miserável esmola


sem uma atitude de arrogância ou desdém. (...) Ao prati-
car uma caridade, os cristãos deveriam ter mais do que um
rosto sorridente, uma expressão amável, uma linguagem
educada.

Em primeiro lugar, deveriam se colocar no lugar daquela


pessoa que necessita de ajuda, e simpatizarem-se com ela
como se fossem eles mesmos que estivessem sofrendo.
Seu dever é mostrar uma verdadeira humanidade e mi-
sericórdia, oferecendo sua ajuda com espontaneidade e
rapidez como se fosse para si mesmos.

A piedade que surge do coração fará com que se desva-


neça a arrogância e o orgulho, e nos prevenirá de termos
uma atitude de reprovação ou desdém para com o pobre
e o necessitado”.98

Em nossa beneficência, nada devemos esperar em troca,


ainda que esta seja uma prática comum. Aliás, “quando damos
nossas esmolas, nossa mão esquerda deve ignorar o que a mão
direita fez”.99 Comentando o Salmo 68 enfatiza que o Deus
da glória é também o Deus misericordioso; em seguida ob-
serva a atitude pecaminosa comum aos homens: “Geralmente
distribuímos nossas atenções onde esperamos nos sejam elas
retribuídas. Damos preferência a posição e esplendor, e des-
prezamos ou negligenciamos os pobres”.100 E quanto à ingrati-

a Deus, ao mesmo tempo, um sacrifício de aroma suave” [João Calvino,


Romanos, 2ª ed. São Paulo: Parakletos, 2001, (Rm 15.27), p. 514-515].
98 João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 39.
99 John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker
Book House Company, 1996 (Reprinted), Vol. XVIII, (At 5.1), p. 196.
100 João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 68.4-6), p. 645.

268
INTRODUÇÃO À ÉTICA PESSOAL E SOCIAL DE CALVINO

dão tão comum ao gênero humano? Bem, em nossa ajuda aos


nossos irmãos não devemos nos preocupar com isso, visto que
“ainda que os homens sejam ingratos, de modo que pareça ter-
mos perdido o que lhes damos, devemos perseverar em fazer o
bem”.101 E mais: “.... não dependemos da gratidão humana, e,
sim, de Deus que Se coloca no lugar do pobre como devedor,
para que um dia venha restituir-nos cheio de solicitude, tudo
quanto distribuímos....”.102

d) O Valor de cada um:


As pessoas devem ser avaliadas não pelo seu dinheiro,
mas por sua piedade. Os piedosos aprendem a reverenciar e a
imitar os genuínos servos de Deus:

“Aprendamos, pois, a não avaliar uma pessoa pelo prisma


de seu estado ou seu dinheiro, nem pelo prisma de suas
honras transitórias, mas avaliá-la pelo prisma de sua pie-
dade ou de seu temor a Deus. E certamente que ninguém
jamais aplicará verdadeiramente seu intelecto ao estudo
da piedade que, ao mesmo tempo, também não reverencie
os servos de Deus; da mesma forma, por outro lado, o
amor que nutrimos por eles nos incita a imitá-los em sua
santidade de vida”.103

101 João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2Co 8.10), p. 173. “É realmente


verdade que não há nada que fira tanto os que possuem uma disposição
mental ingênua que quando os perversos e ímpios os recompensam de
forma um tanto desonrosa e injusta. Mas quando ponderam sobre esta
consoladora consideração, de que Deus não é menos ofendido com tal
ingratidão do que aqueles a quem se faz a injúria, eles não têm nenhuma
justificativa de se magoarem com tanto excesso” [João Calvino, O Livro
dos Salmos, Vol. 2, (Sl 38.19-20), p. 192].
102 João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 16.2), p. 500.
103 João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 15.4), p. 294. Vejam-se tam-
bém: João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 17.14), p. 346; Vol. 2, (Sl
41.1), p. 240-241.

269
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

5) SOCORRO E ORAÇÃO:
Da Oração do Senhor Calvino extrai o princípio de que de-
vemos nos preocupar com todos os necessitados. Contudo,
sabendo da impossibilidade de conhecermos a todos e de ter-
mos recursos para ajudar a todos os que conhecemos, diz que
a ajuda não exclui a oração nem esta àquela. Portanto devemos
orar por todos:

“O mandamento de Deus que nos compele a socorrer a


indigência dos pobres é mandamento geral. E, todavia,
os que obedecem a esse mandamento e com este fim
fazem misericórdia estendendo seus bens a todos os que
eles vêem ou sabem que têm necessidade, não obstante
não dão ajuda a todos os que têm igual necessidade, ou
por não poderem conhecê-los a todos, ou porque não
têm meios suficientes para supri-los. De igual modo, não
contrariam a vontade de Deus aqueles que, consideran-
do e tendo em mente a sociedade comum da igreja, a
comunidade cristã, fazem uso das orações particulares
por meio das quais, com palavras particulares, mas com
espírito amplo e afeto comum, encomendam a Deus a si
mesmos ou outros, cuja necessidade Ele lhes quis dar a
conhecer mais de perto. Se bem que nem tudo que diz
respeito à oração é semelhante a fazer caridade. Porque
não podemos socorrer com os nossos bens senão aque-
les cuja pobreza conhecemos, mas podemos e devemos
ajudar pela oração mesmo aqueles dos quais não temos
conhecimento, e que estão distantes de nós por qualquer
distância que haja no tempo ou no espaço. Isso se faz
por causa da amplitude geral das orações, amplitude que
abrange todos os filhos de Deus, no número dos quais
eles também estão incluídos”.104

104 João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para
estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, Vol. 3, (IX.37), p. 121.

270
INTRODUÇÃO À ÉTICA PESSOAL E SOCIAL DE CALVINO

Uma Advertência geral:


Comentando o 9º Mandamento, “Não furtarás”, admite
que “há muitas espécies de ladrões”; contudo, não quer se de-
ter em demasia “fazendo listas das diferentes classes de furtos
e roubos”. Resume então:

“... todos os meios utilizados pelos homens para enrique-


cimento com prejuízo de outros, afastando-se da sinceri-
dade cristã, que deve ser mantida com carinho, e agindo
com fingimento e astúcia, enganando e prejudicando o
próximo – os que assim procedem devem ser conside-
rados ladrões. Embora os que agem desse modo muitas
vezes ganhem na defesa da sua causa diante do juiz, Deus
não os considerará como outra coisa senão ladrões. Por-
que ele vê as armadilhas que pessoas da alta sociedade de
longe armam para pegar gente simples em suas redes; Ele
vê os pesados impostos e taxas que os grandes da terra
impõem aos pequenos, para oprimi-los; Ele vê como são
venenosas as lisonjas utilizadas por aqueles que querem
destruir o próximo por meio de mentiras e outras formas
de falsidade. Essas coisas geralmente não chegam ao co-
nhecimento dos homens.

“Além disso, transgressão deste mandamento não é só


prejudicar alguém quanto a dinheiro, comércio ou direito
de propriedade, mas também quanto ao não atendimento
a qualquer dever nosso e a qualquer direito do próximo.
Porque tanto defraudamos o nosso próximo usurpando
os seus bens como lhe negando os serviços que lhe deve-
mos prestar. Assim, se um procurador ou mordomo ou
administrador, em vez de zelar dos bens entregues aos
seus cuidados, viver na ociosidade, sem se preocupar com
o seu dever de procurar o bem daquele que lhe dá o sus-
tento; se desperdiçar ou empregar mal o que lhe foi con-
fiado, ou o gastar em coisas supérfluas; se o empregado

271
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

zombar do seu chefe ou patrão, se divulgar os seus segre-


dos, ou se planejar algo contra os bens dele ou contra a
sua reputação ou contra a sua vida [Rm 13;1Pe 2; Tt 3];
se, por outro lado, o chefe ou patrão ou pai tratar desu-
manamente os seus subordinados ou a sua família, para
Deus é um ladrão. Porque, aquele que não pratica o que a
sua vocação o manda fazer pelos outros, com isso retém
o que pertence a outros”.105

Em 1562 Calvino escreve esta oração para ser feita antes


do trabalho:

“Nosso bom Deus, Pai e salvador, uma vez que a ti te


aprouve ordenar que trabalhemos para podermos aten-
der à nossa indigência, por tua graça, de tal modo aben-
çoa nosso labor que tua bênção estenda até nós, sem o
que ninguém poderá prosperar no bem, e que tal favor
nos sirva para testemunho de sua bondade e assistên-
cia mercê da qual reconheçamos o paternal cuidado que
tens de nós. Ademais, Senhor, que te apraza assistir-nos
por teu Santo Espírito, para que possamos exercer fiel-
mente nossos múnus e vocação sem qualquer dolo ou
engano, pelo contrário, que tenhamos antes o propósito
de seguir tua injunção que satisfazer o desejo de enri-
quecer-nos; que se, não obstante, a ti te apraz prosperar

105 João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para
estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, Vol. 1, (III.68-69), p.
207-208. Em outro lugar: “Quando, pois, a fraude, a astúcia, a traição, a
crueldade, a violência e a extorsão reinam no mundo; em suma, quando
todas as coisas são arremessadas em total desordem e escuridão, pela
injustiça e perversidade, que a fé sirva como uma lâmpada a capacitar-
nos para visualizarmos o trono celestial de Deus, e que essa visão nos
seja suficiente para fazer-nos esperar pacientemente pela restauração das
coisas a um melhor estado” [João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo:
Paracletos, 1999, Vol. 1, (Sl 11.4), p. 240]. No mundo, “Deus não é um
espectador indolente” [João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl
11.4), p. 241].

272
INTRODUÇÃO À ÉTICA PESSOAL E SOCIAL DE CALVINO

nosso labor, que também nos dês a disposição de pro-


porcionar a assistência àqueles que estão na indigência,
segundo os recursos que nos houveres dado, retendo-
nos em toda humildade, a fim de que nos não elevemos
acima daqueles que não hajam recebido tal abundância
da tua dadivosidade. Ou, se nos queres tratar em maior
pobreza e indigência do que desejaria nossa carne, que te
apraza fazer-nos a graça de acrescentar fé em tuas pro-
messas, para fazer-nos seguros de que nos haverás de,
por tua bondade, prover-nos sempre o sustento, de sorte
que não caiamos na desconfiança; antes, pelo contrário,
esperemos pacientemente que nos cumules não somente
de tuas graças temporais, mas também de suas graças es-
pirituais, para que tenhamos sempre mais amplo motivo
e ocasião de render-te graças e descansar inteiramente
em tua só bondade. Ouve-nos, Pai de misericórdia, por
Jesus Cristo, teu Filho, nosso Senhor”.106

4. O TRABALHO NO BRASIL: ANOTAÇÕES FORTUITAS:


Ainda que de passagem, quero citar a questão do Brasil no
século XIX. O trabalho escravo teve uma atuação fundamental
na construção de nosso país.107 Apesar de não sabermos preci-
sar quando chegou a primeira leva de negros em nosso territó-

106 João Calvino, Opera Calvini, tomo VI. p. 137. Apud André Biéler, O Pen-
samento Econômico e Social de Calvino, p. 513.
107 “Com grande surpresa chegamos à conclusão de que os judeus ibéricos
foram os principais detentores do comércio negreiro, e mais: que um
clã, ligado por interesses econômicos, quando não também por laços
sangüíneos, o explorou largamente. De modo que, afora isso, o tráfico
seria quase impossível, assim como a colonização do Brasil e da Amé-
rica Espanhola, por falta de outros mercadores habilitados, carência de
embarcações, escassez de povoadores brancos e de obreiros que se su-
jeitassem a trabalhos servis, a exemplo dos exigidos pela indústria açuca-
reira e pelo entabulamento das jazidas mineralógicas.” (José Gonçalves
Salvador, Os Magnatas do Tráfico Negreiros: Séculos XVI e XVII, São Paulo:
Pioneira/EDUSP, 1981, p. XIV).

273
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

rio, é provável que tenha sido já em 1531.108 Enquanto que era


comum o trabalho branco na América (os escravos só seriam
introduzidos em 1619 por traficantes holandeses), no Brasil
jamais se cogitou em “ensaiar o trabalho branco”, seguindo
assim, a tradição portuguesa que tinha escravos desde o início
do século XV.109
O trabalho escravo, além de duro, prolongava-se por todo
o dia e, às vezes adentrava à noite. Mesmo assim, Koster obser-
va que os escravos europeus, apesar de disporem de melhores
condições de tratamento, tinham um trabalho mais pesado.110
O que aliviava um pouco o trabalho escravo, era o fato de o
brasileiro ter bastantes dias santos (35 dias durante o ano) nos
quais, juntamente com os domingos, os escravos não trabalha-
vam para os seus senhores.111 Aliado a tudo isso, o nosso país
era uma festa contínua, sempre procurando motivos para co-
memorações, havendo também as festas populares – que eram

108 Caio Prado Júnior, História Econômica do Brasil, 21ª ed. São Paulo, Brasi-
liense, 1978, p. 22, nota 5.
109 Veja-se: Caio Prado Júnior, História Econômica do Brasil, p. 21-22.
110 “Observei que, em geral, os europeus são menos indulgentes para seus
escravos que os brasileiros. Os primeiros alimentam melhor mas exigem
trabalhos mais pesados, enquanto os segundos deixam que os negócios
de suas propriedades sigam o caminho a que estão habituados a seguir.
Essas diferenças entre as duas classes de senhores é facilmente explica-
da. O europeu adquiriu a maioria de seus escravos a crédito e durante
o curso de sua vida a acumulação de riquezas é o objeto principal. O
brasileiro herdou sua propriedade e não há urgência em obter largos
proveitos. Continua o ritmo que fora mantido pelos primeiros possui-
dores. Seus hábitos de tranqüilidade e de indolência o levam a ser doce
mas indiferente, e não toma o cuidado com a própria manutenção de sua
escravaria que um europeu teria, tendo menos tempo e fiscalizando a
comida pessoalmente.” [Henry Koster, Viagens ao Nordeste do Brasil, 2ª ed.
Recife, PE.: Secretaria de Educação e Cultura, Governo do Estado de
Pernambuco, Departamento de Cultura, (Coleção Pernambucana, Vol.
XVII), 1978, p. 376-377]. (O livro foi editado em inglês em 1816).
111 Cf. Henry Koster, Viagens ao Nordeste do Brasil,, p. 389

274
INTRODUÇÃO À ÉTICA PESSOAL E SOCIAL DE CALVINO

inúmeras, variando de região para região –112 as quais, de certa


forma, contribuíam, ainda que de maneira tênue para amenizar
a estafante rotina escrava.
O que causava espanto aos europeus que por aqui passa-
vam, era a ociosidade de nosso povo, sempre dependente do
escravo, negando-se a executar tarefas corriqueiras e, ao mes-
mo tempo, sendo ávido por um emprego público. Para con-
cluir esta pequena nota, cito alguns testemunhos da época.
A educadora Ina von Binzer (1856-c.1916), escreve à sua
amiga, Grete, em 14/08/1881:

“Neste país [Brasil], os pretos representam o papel princi-


pal; acho que no fundo, são mais senhores do que escra-
vos dos brasileiros.

“Todo trabalho é realizado pelos pretos, toda a riqueza é


adquirida por mãos negras, porque o brasileiro não traba-
lha, e quando é pobre prefere viver como parasita em casa
dos parentes e de amigos ricos, em vez de procurar uma
ocupação honesta.

“Todo o serviço doméstico é feito por pretos: é um cocheiro


preto quem nos conduz, uma preta quem nos serve, junto ao
fogão, o cozinheiro é preto e a escrava amamenta a criança
branca; gostaria de saber o que fará essa gente, quando for
decretada a completa emancipação dos escravos”.113

O casal Agassiz, que viajou pelo Brasil nos anos de 1865-


1866, observou:

112 Vd. Maria Beatriz Nizza da Silva, et. al., O Império Luso-Brasileiro (1750-
1822), Lisboa: Editorial Estampa, (Nova História da Expansão Portu-
guesa, Vol. VIII, Coordenada por Joel Serrão & A. H. de Oliveira Mar-
ques), 1986, p. 532ss.
113 Ina von Binzer, Os Meus Romanos: alegrias e tristezas de uma educadora alemã
no Brasil, 5ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 34.

275
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

“A importância exagerada que em toda parte se dá aos


empregos públicos é uma desgraça; relega para a sombra
todas as demais ocupações e sobrecarrega o Estado com
uma massa de empregados pagos que, sem utilidade, atra-
vancam os serviços públicos e esgotam o Tesouro. Todo
homem que aqui tenha recebido alguma instrução aspira
a uma carreira política, como meio aristocrático e fácil de
ganhar a vida. Somente há pouco tempo é que os moços
de boa família começaram a entrar no comércio”.114

CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Retornando, vemos que o Protestantismo, com os seus
princípios econômicos, com a sua ênfase no livre exame das Es-

114 Luiz Agassiz & Elizabeth C. Agassiz, Viagem ao Brasil 1865-1866, Belo
Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Editora da Universidade de São Paulo:
1975, p. 293. Jean Louis Rodolphe Agassiz, era suíço de nascimento po-
rém, naturalizou-se americano. Ele era filho de um ministro protestante
e, a sua esposa, Elizabeth Cary Agassiz, que fez parte da sua expedição
ao Brasil, era filha de um pastor calvinista. (Cf. Boanerges Ribeiro, A
Igreja Presbiteriana no Brasil, Da Autonomia ao Cisma, São Paulo: O Seme-
ador, 1987, p. 9; L. Agassiz & E.C. Agassiz, Viagem ao Brasil 1865-1866,
p. 75). Agassiz veio chefiando a “Expedição Thayer” (patrocinada pelo
milionário Nathaniel Thayer), composta de cerca de quinze pessoas. (Cf.
Prefácio de Luiz Agassiz & Elizabeth Agassiz, Viagem ao Brasil 1865-
1866, p. 9-10). Fletcher foi um dos que incentivaram a vinda de Agassiz
ao Brasil (Veja-se, David G. Vieira, O Protestantismo, A Maçonaria e A
Questão Religiosa no Brasil, Brasília, DF.: Editora Universidade de Brasília,
1980, p. 73, 74, 76ss.). Antes da vinda de Agassiz, Fletcher viajou ao
Brasil (1862-1863), recolhendo peixes raros do Amazonas para o natu-
ralista. Agassiz registra em seu livro: “Acrescentarei também que, alguns
anos antes da minha viagem ao Amazonas, devi à gentileza do Rev. M.
Fletcher (sic) uma preciosa coleção de peixes desta localidade e de outras
do Amazonas. O prévio conhecimento que assim adquirira do assunto
me foi de grande utilidade quando continuei os meus estudos no próprio
local.” (L. Agassiz & E.C. Agassiz, Viagem ao Brasil 1865-1866, p. 124).
Na sessão do dia 19/05/1865, Agassiz foi agraciado pelo Instituto His-
tórico e Geográfico, com o título de membro honorário (Cf. David G.
Vieira, O Protestantismo, A Maçonaria e A Questão Religiosa no Brasil, p. 79).

276
INTRODUÇÃO À ÉTICA PESSOAL E SOCIAL DE CALVINO

crituras, na salvação pessoal e na responsabilidade de cada ho-


mem diante de Deus, contribuiu, na esteira Renascentista, para
a maturidade do homem moderno, enfatizando a responsabili-
dade individual perante Deus, sem excluir, contudo, o aspecto
comunitário da vida cristã e a relevância da sociabilidade entre
os fiéis. Onde quer que o Protestantismo fincasse suas raízes, a
sua influência se tornaria notória como uma força modeladora
da cultura, não apenas da vida religiosa.115 Lembremo-nos de
que a Revolução Industrial ocorreu na Inglaterra Protestante e,
de que F.W. Taylor (1856-1915), “o fundador da administração
científica”, era protestante e norte-americano.116
Max Weber (1864-1920) ao analisar o progresso econô-
mico protestante, não conseguiu captar adequadamente este
aspecto fundamental no protestantismo, que enfatiza o traba-
lho, não simplesmente pelo dever ou vocação, conforme We-
ber entendeu, mas sim, para a glória de Deus; este é o fator
preponderante que escapou à sua compreensão.117
As Escrituras nos ensinam que Deus nos criou para o
trabalho (Gn 2.8,15). O trabalho, portanto, faz parte do pro-
pósito de Deus para o ser humano, sendo objeto de satisfação
humana: “Em vindo o sol, (...) sai o homem para o seu trabalho, e para
o seu encargo até à tarde” (Sl 104.22-23). Na concepção cristã, o
trabalho dignifica o homem, devendo o cristão estar motivado
a despeito do seu baixo salário ou do reconhecimento huma-
no; embora as Escrituras também observem que o trabalhador
é digno do seu salário (Lc 10.7). Seu trabalho deve ser enten-

115 Vd. André Biéler, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 540.


116 Vd. Idalberto Chiavenato, Teoria Geral da Administração, 3ª ed. São Paulo:
McGraw-Hill, 1987, Vol. 1, p. 65. Veja-se também, André Biéler, A Força
Oculta dos Protestantes, p. 113ss.
117 Vejam-se também: Christopher Hill, O Eleito de Deus: Oliver Cromwell e a
Revolução Inglesa, São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 195ss.; R.H.
Tawney, A Religião e o Surgimento do Capitalismo, São Paulo: Editora Pers-
pectiva, 1971, p. 114-115.

277
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

dido como uma prenda feita a Deus, independentemente dos


senhores terrenos; deste modo, o que de fato importa, não
é o trabalho em si, mas sim o espírito com o qual ele é fei-
to; a dignidade deve permear todas as nossas obras, visto que
as realizamos para o Senhor. A prestação de contas de nosso
trabalho deverá ser feita a Deus; é Ele com o seu escrutínio
perfeito e eterno Quem julgará as obras de nossas mãos, daí a
recomendação do Apóstolo Paulo:

“E tudo o que fizerdes, seja em palavra, seja em ação, fazei-o em


nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus (...). Servos,
obedecei em tudo aos vossos senhores segundo a carne, não servindo
apenas sob vigilância, visando tão-só agradar homens, mas em
singeleza de coração, temendo ao Senhor. Tudo quanto fizerdes,
fazei-o de todo o coração, como para o Senhor, e não para homens,
cientes de que recebereis do Senhor a recompensa da herança. A
Cristo, o Senhor, é que estais servindo; pois aquele que faz injus-
tiça receberá em troco a injustiça feita; e nisto não há acepção de
pessoas. Senhores, tratai aos servos com justiça e com eqüidade,
certos de que também vós tendes Senhor no céu.” (Cl 3.17,22-
4.1) (Vd. Ef 6.5-9).

Portanto, não há desculpas para a fuga do trabalho, mes-


mo em nome de um motivo supostamente religioso (1 Ts 4.9-
12/Ef 4.28; 1 Tm 5.11-13).
Um comentarista bíblico resume bem o espírito cristão
do trabalho, afirmando: “O trabalhador deve fazê-lo como se
fosse para Cristo. Nós não trabalhamos pelo pagamento, nem
por ambição, nem para satisfazer a um amo terreno. Traba-
lhamos de tal maneira que possamos tomar cada trabalho e
oferecê-lo a Cristo”.118 (Vd. 1 Tm 6.1-2).

118 William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado, Buenos Aires: La Aurora,


1973, Vol. 11, p. 176.

278
INTRODUÇÃO À ÉTICA PESSOAL E SOCIAL DE CALVINO

Lamentavelmente, o conceito Protestante do trabalho,


no pensamento moderno, foi secularizado, abandonando aos
poucos a concepção religiosa que lhe dera suporte, tornando-
se agora apenas uma questão de racionalidade, não necessaria-
mente de “vocação” ou de “glorificação a Deus”. Perdeu-se
a “infra-estrutura”, ficou-se apenas com a “superestrutura”.119
Delumeau resume com pertinência: “Na verdade, o Protestan-
tismo não engendrou em seus fiéis a mentalidade capitalista
a não ser na medida em que perdeu seu tônus religioso e se
tornou infiel a Calvino”.120
Desde a criação o homem foi colocado numa posição
acima das outras criaturas, cabendo-lhe o domínio sobre os
outros seres criados, sendo abençoado por Deus com a capa-
cidade de procriar-se (Gn 1.22)121 e dispondo de grande parte
da criação para o seu alimento (Gn 1.26-30; 2.9). Como indi-
cativo da posição elevada em que o homem foi colocado, o
Criador compartilha com ele – abençoando e capacitando-o122

119 Biéler faz uma constatação relevante: “A íntima interpenetração da Re-


forma e da Renascença contribuiu amplamente para a sua promoção no
Ocidente. Mas o materialismo e as ideologias substitutivas engendradas
pela secularização do pensamento, no decurso dos séculos subseqüentes,
acabaram por fazer crer que uma civilização arrancada de suas raízes
espirituais conseguiria produzir espontaneamente todos esses valores.
Essas ideologias substitutivas proliferaram. (...) Todas essas ideologias,
que tomaram o lugar da fé cristã, transformaram-se em crenças que, uma
vez dissipadas, deixaram no Ocidente e no mundo atual um vácuo espiri-
tual, e muitas vezes um desespero, que se mostram propícios a toda sorte
de novidades inflamadas da demagogia religiosa, filosófica ou política.”
(André Biéler, A Força Oculta dos Protestantes, p. 54-55).
120 Jean Delumeau, Nascimento e Afirmação da Reforma, São Paulo: Pioneira,
1989, p. 305.
121 “Embora aos homens seja de natureza infundido o poder de procriar,
Deus quer, entretanto, que seja reconhecido a Sua graça especial que a uns
deixa sem progênie, a outros agracia com descendência, pois que dádiva
Sua é o fruto do ventre.” [Sl 127.3]. (João Calvino, As Institutas, I.16.7).
122 Ver Gerard Van Groningen, Revelação Messiânica no Velho Testamento, Cam-
pinas, SP.: Luz para o Caminho, 1995, p. 97.

279
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

– do poder de nomear os animais – envolvendo neste proces-


so inteligência e não arbitrariedade –, e também de dar nome
à sua mulher (Gn 2.19,20,23; 3.20). E mais: Deus delega-lhe
poderes para cultivar e guardar o jardim do Éden (Gn 2.15),
demonstrando a sua relação de domínio sobre a natureza. No
entanto, todas estas atividades envolvem o trabalho comparti-
lhado por Deus com o ser humano. O nomear, procriar, domi-
nar, guardar e cultivar refletem a graça providente e capacitante
de Deus.
O homem é um ser que trabalha. A sua mão é uma arma
“politécnica”, instrumento exclusivo e incomparável de constru-
ção, reconstrução e transformação.123 Faz parte da essência do
homem trabalhar. O homem é um artífice que constrói, trans-
forma, modifica; a sua vida é um eterno dever, que se realiza no
fazer como expressão do seu ser orientado e direcionado para
valores que acredita serem relevantes. Portanto, o trabalho deve
ter sempre um sentido axiológico.124 O ser, como não pode se
limitar ao simples fazer, está sempre à procura de novas criações,
que envolvem trabalho. No trabalho o homem concretiza a sua
liberdade de ser. Acontece, que se o homem é o que é, o seu
trabalho revela parte da sua essência. A “originalidade” do seu
trabalho será uma decorrência natural da sua autenticidade.125
O homem autentica-se no seu ato construtivo, ainda que este

123 Sobre as mãos como instrumento de trabalho, Vd. Oswald Spengler, O


Homem e a Técnica, Lisboa: Guimarães e Cª Editores, 1980, III.5. p. 63ss.;
Battista Mondin, O Homem, Quem é Ele?, São Paulo: Paulinas, 1980, p.
195-196.
124 Tomei este conceito de Raymond Ruyer, Metaphisique du Travail, 1948. Cf.
José Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia, Vol. 4, p. 2902.
125 Lewis observou que, “O homem que valoriza a originalidade jamais será
original. Mas tente dizer a verdade tal como você a vê, tente tra-
balhar com perfeição por amor ao trabalho, e aquilo que os homens
chamam de originalidade surgirá espontaneamente.” (C.S. Lewis, Peso de
Glória, 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 1993, p. 47).

280
INTRODUÇÃO À ÉTICA PESSOAL E SOCIAL DE CALVINO

seja resultado de suas tensões.126 Por isso, nunca poderemos ter


como meta da sociedade, a ausência do trabalho. O trabalho não
é resultado do pecado. O homem foi criado para o trabalho não
para permanecer na inatividade e indolência.127 Portanto, apo-
sentar-me de um determinado trabalho não significa abandonar
a condição de “ser” que trabalha. No trabalho nós expressamos
e aperfeiçoamos a nossa humanidade. Deixar de trabalhar, sig-
nifica deixar de utilizar parte da sua potência, equivale a deixar
parcialmente de ser homem; em outras palavras, seria uma desu-
manidade. A nossa verdadeira humanidade só é encontrada na
glorificação de Deus por meio do emprego correto de todos os
talentos que Ele mesmo nos concedeu. Portanto, sejamos ho-
mens, honremos ao Senhor com os nossos talentos, frutos de
Sua graça (1 Co 15.10/1 Co 10.31).

126 Se o “excesso” de trabalho em determinadas ocasiões assume a carac-


terística de uma “fuga”, como observou Rollo May, (A Arte do Aconse-
lhamento Psicológico, Petrópolis, RJ.: Vozes, 1977, p. 24ss), não importa;
de qualquer maneira, o “fazer” estará revelando o homem que faz, bem
como as suas circunstâncias.
127 Cf. John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis,
Grand Rapids, Michigan: Eerdamans Publishing Co., 1996 (Reprinted),
Vol. 1, (Gn 2.15), p. 125.

281
“Para que através de nossa estultícia e temeridade, de cima abaixo, não se
misturem todas as coisas, Deus ordenou a cada um seus deveres de gêneros
distintos de vida… chamou vocações a essas modalidades de viver.”

J. Calvino
CAPÍTULO 14

DIREÇÃO PARA VIDA:


O CONCEITO DE CALVINO
SOBRE VOCAÇÃO

ROGER SCHULTZ

Enquanto trabalhando num restaurante na década de


1970, observei duas atitudes bem diferentes para com o traba-
lho. O chefe super-dinâmico odiava a ociosidade e com frequ-
ência nos exortava à maior produtividade: “Tempo para recli-
nar é tempo para limpar” era a sua máxima orientadora. Meu
amigo Mike, por outro lado, não era convencido pelos apelos
à diligência. “Eles não me pagam para trabalhar duro”, expli-
cava, “salário mínimo – trabalho mínimo!” Rejeitando todas
as tentativas de fazê-lo trabalhar mais duro, “Mike Mínimo”
tornou-se uma espécie de lenda na cozinha.
Nossa cultura, temo, adotou uma atitude minimalista e
secularista similar para com o chamado. O trabalho é algo para
você fazer dinheiro e, por meio disso, financiar o objetivo real
da vida: a busca de lazer, prazer, riqueza ou poder. O trabalho
da pessoa torna-se um mal necessário, o meio obrigatório para
alcançar um fim mais importante. Com sorte o emprego de al-
guém será agradável e gratificante, mas este é apenas um bene-
fício periférico para conseguir um salário. Mesmo estudantes

283
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

cristãos, quando inquiridos sobre os seus objetivos, responde-


rão com frequência: “formar, conseguir um bom emprego e
ganhar dinheiro”.

A ÉTICA DE TRABALHO PROTESTANTE


A Reforma Protestante restaurou um senso de dignidade
e valor bíblico à vocação humana. Tanto Lutero como Calvi-
no enfatizaram a importância do chamado e a oportunidade
de servir ao homem e glorificar a Deus através do trabalho.
Existem em abundância estudos com respeito ao impacto da
Reforma sobre as atitudes para com a vocação, sendo A Ética
Protestante e o Espírito do Capitalismo, de Max Weber, um estudo
fundacional.1
A própria Bíblia enfatiza a importância da vocação e do
chamado. Deus deu ao homem o domínio sobre a nova terra
e comissionou-o a subjugá-la, governá-la e enchê-la (Gn 1.28).
Ele incumbiu o homem adicionalmente de cultivar e proteger
o Jardim (Gn 2.15). Embora num mundo amaldiçoado onde
o labor tornou-se difícil e frustrante (Gn 3.16-19, Ec 8.17), o
pacto do domínio é reafirmado num dos grandes Salmos Mes-
siânicos (Sl 8). Os cristãos têm obrigação de trabalhar, e traba-
lhar duro (1Ts 4.11, 2 Ts 3.8-12).2 Os cristãos deveriam prestar
serviço aos seus superiores como para o Senhor (Ef 6.5-9), e

1 A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo foi publicado pela primeira


vez há mais de cem anos. Outras obras clássicas incluem Religion and the
Rise of Capitalism, de R. H. Tawney, The Social Teaching of the Christian
Churches, de Ernst Troeltsch. Para uma análise Reformada recente lidan-
do com o assunto, veja Gary North, “The Economic Thought of Luther
and Calvin”, Journal of Christian Reconstruction (Summer, 1975), 76-108.
2 Recentemente disse a um amigo que seu filho tinha se distinguido num
protesto contra a união homossexual. Isso é bom, replicou meu amigo
no espírito de 2 Tessaloniceses 3, mas o garoto precisa aprender o valor
de “T-R-A-B-A-L-H-O”. Em outras palavras, distrair-se, não importa
quão nobre a causa, não deveria substituir o labor produtivo.

284
DIREÇÃO PARA VIDA: O CONCEITO DE CALVINO SOBRE VOCAÇÃO

saber que o Senhor mesmo recompensa-los-á pelo serviço fiel


(Cl 3.23s). Acima de tudo, os cristãos deveriam reconhecer que
eles foram comprados com um preço, e requer-se que glorifi-
quem a Deus com suas vidas (1Co 6.20).
O serviço fiel pode trazer a bênção de Deus, mas há um
perigo sempre presente de tornar-se tão focado nos chamados
e bençãos terrenas, que nos esquecemos do Senhor. Os Puri-
tanos advertiam com frequência sobre os perigos que vinham
com a grande produtividade. O cenário que eles temiam era
algo semelhante a isto: o povo de Deus trabalhava duro e era
fiel em seu chamado; eles eram abençoados por Deus; torna-
vam-se materialistas; e se esqueciam de Deus. No começo do
experimento da Nova Inglaterrra Puritana, em 1630, John Win-
throp concluiu o sermão “Cidade sobre a Colina” com esta ad-
vertência: “Mas se formos seduzidos e adorarmos outros deu-
ses, nossos prazeres e lucros, e servirmos a estes… certamente
pereceremos fora da boa terra”.3 E no final da era Puritana,
Cotton Mather lamentou: “A religião trouxe prosperidade – e a
irmã devorou a mãe!”. Essa é uma advertência oportuna para
os cristãos americanos que têm acesso a tal riqueza.

CALVINO SOBRE VOCAÇÃO


O foco de Calvino sobre a vocação é particularmente
rico, argumentam os historiadores, enfatizando a importância
da comunidade. Para Calvino, a vocação fornece os limites so-
ciais, ajuda o povo a manter o foco em suas vidas, e encoraja
ao contentamento e à perseverança.
A doutrina da vocação de Calvino, primeiro, enfatiza a
estabilidade da ordem social. Como ele coloca nas Institutas da
Religião Cristã: “O Senhor ordena a cada um de nós, em todas

3 John Winthrop, “A Model of Christian Charity,” in An American Primer,


ed. Daniel Boorstin (N.Y.: Meridian, 1985), 41.

285
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

as ações da vida, que atentemos para a sua vocação”. Porque


somos inconstantes e frequentemente perturbados, Calvino
continuou: “Para que através de nossa estultícia e temeridade,
de cima abaixo, não se misturem todas as coisas, Deus ordenou
a cada um seus deveres de gêneros distintos de vida… chamou
vocações a essas modalidades de viver”. A vocação de uma pes-
soa, Calvino conclui, é um “posto de serviço, para que não seja
levado em volta às cegas por todo curso da vida”.4
Segundo, a doutrina de Calvino sobre a vocação fornece
foco para a vida, nos encorajando a empregar energia e fazer
o que fomos chamados a fazer. “A vocação do Senhor é em
tudo o princípio e fundamento do agir correto, à qual quem
não se reportar, jamais se aterá ao caminho reto em seus deve-
res”.5 Em outras palavras, se formos orientados pelo objetivo e
propósito ao desempenhar nossa vocação, seremos muito mais
bem-sucedidos.
Um dos meus amigos desafia seus filhos quando chegam
à escola secundária para que considerem sua vocação na vida.
Os jovens não deveriam gastar o tempo de maneira frívola,
ele argumenta, mas deveriam estar preocupados em ver como
poderiam ser úteis ao Senhor. Afinal, Deus nos chamou para
glorificá-lo em tudo o que fazemos. A meta louvável do meu
amigo é fazer seus filhos considerarem como poderiam ser
úteis ao Senhor, e focar suas energias para esse fim.
Terceiro, a doutrina de Calvino sobre a vocação enfatiza
o contentamento: “Todo homem suportará e vencerá as irrita-
ções, desgastes e inquietações em seu caminhar, quando estiver
persuadido que o fardo foi posto sobre ele por Deus”.6 Há

4 John Calvin, Institutes of the Christian Religion , ed. John T. McNeill (Lou-
isville: Westminster/John Knox Press, 1960), III: X: 6.
5 Ibid.
6 Ibid.

286
DIREÇÃO PARA VIDA: O CONCEITO DE CALVINO SOBRE VOCAÇÃO

grande encorajamento em saber que estamos fazendo o que


Deus nos colocou sobre a Terra para fazer. Quando as pessoas
são convencidas disso, e comprometidas à sua vocação, eles
podem suportar qualquer adversidade.
Quarto, a doutrina de Calvino sobre a vocação encora-
ja a perseverança. Há uma “consolação singular”, argumenta
Calvino, em que “nenhuma obra haverá de ser tão humilde e
vil que diante de Deus não resplandeça e seja tida como muito
preciosa”.7 Minha esposa afirma que trocar fraldas deixou de
ser odioso quando passou a se aproximar da rotina com uma
perspectiva similar: ela foi chamada para ser uma dona de casa,
fiel no serviço para com as crianças, e por isso trocar fraldas
sujas, diligente e alegremente, era para a maior glória de Deus.
Certa vez conheci um companheiro que, vocacionalmen-
te, “tinha perambulado de forma negligente” por toda a sua
vida. Ele era um cristão, um profissional, e muito bom no que
fazia. Todavia, ele estava sempre descontente, sempre tentan-
do se mudar, encontrar outra igreja, entrar numa relação ne-
gocial melhor. As pessoas tinham o costume de brincar: “O
que X fará quando crescer?”. Essa era uma triste situação, e
em sua frustração e descontentamento o homem nunca usou
seu potencial para o Reino de Cristo. É uma coisa maravilhosa
conhecer o seu chamado e propósito na vida.

DETERMINANDO UMA VOCAÇÃO


Como alguém identifica uma vocação? O conselho de
Calvino com respeito ao chamado ministerial incluía conse-
lhos práticos, úteis para outras vocações.8 Com respeito a um

7 Ibid.
8 Calvino fala do chamado interior e exterior do pastor. (Um ministro
irá algumas vezes se referir ao seu “chamado macedônico”, tomado de
Atos 16.9, referindo-se a uma visão ou experiência autenticadora.) Mas

287
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

chamado externo ou solene, Calvino disse: “Mas há o bom tes-


temunho de nosso coração que recebemos o ofício outorgado
não por ambição, nem por avareza, nem por qualquer outra
cobiça, mas por sincero temor de Deus e zelo pela edificação
da Igreja”.9 O que é importante é a convicção interior que esta-
mos buscando uma vocação por motivos puros (não ambições
egoístas), um temor de Deus, e o desejo de avançar o Reino de
Deus. Isso pode ser útil ao avaliar qualquer vocação.
Aqui estão algumas perguntas simples para considerar
uma vocação ou chamado, seja secular ou religioso:

Primeiro, tenho o desejo de fazer esse trabalho? É ver-


dade que Deus pode algumas vezes ter algumas coisas desagra-
dáveis para fazermos, ou coisas que não gostamos. Mas quan-
do Deus nos chama para fazer uma tarefa, ele ordinariamente
nos dá um desejo ou paixão por esse trabalho.
Segundo, tenho os dons ou a aptidão para fazer o tra-
balho? Existem trabalhos que poderíamos gostar, mas para os
quais não tenhos nenhuma habilidade ou treinamento. Muitos
gostariam de jogar na ligal nacional de futebol, ou ser atores,
tornar-se o Presidente da República, mas carecem da habili-
dade ou treinamento. Da mesma forma, na igreja, Deus nos
equipa para tarefas diferentes (1Co 12.12ss).
Terceiro, Deus abriu as portas? Alguém pode ter inte-
resse e dons num chamado particular, mas descobrir que Deus
não forneceu as oportunidades por sua providência.
Quarto, o chamado é legal, honra a Deus e é útil para
avançar o seu Reino? Deus não chamaria uma pessoa para fa-
zer uma tarefa que seja proibida em sua Palavra, e ninguém

Calvino parece mais interessado no chamado solene e externo do que na


experiência subjetiva.
9 Ibid, IV: III: 11.

288
DIREÇÃO PARA VIDA: O CONCEITO DE CALVINO SOBRE VOCAÇÃO

deveria investir sua vida num chamado que seja frívolo ou sem
significado.
Quinto, tenho uma testemunha que confirme isso? Con-
selheiros piedosos podem oferecer um assentimento objetivo
de uma oportunidade ou chamado e oferecer boa orientação
bíblica.

Essas foram considerações que fiz, há vários anos, quan-


do escolhi deixar uma igreja e região que amava para assumir
um cargo na Liberty University. Eu estava interessado naquele
cargo, tinha as credenciais e experiência apropriadas, e acredita-
va que aquela era uma oportunidade dada por Deus. Mas antes
de aceitar o emprego, consultei os presbíteros da minha igreja
a fim de receber conselho piedoso. Os presbíteros odiaram ver
eu e a minha família partir, mas concordaram que era o chama-
do do Senhor e que o cargo me daria uma maior oportunidade
para usar os meus dons para a causa de Cristo. Mudar-se com
uma família de onze pessoas não é algo fácil, especialmente
após viver num único lugar por muitos anos. Foi maravilhoso
saber que era o chamado do Senhor, e que vivemos e nos mo-
vemos de acordo com a sua boa providência.
Temos um chamado na vida. Somos chamados a glorificar
a Deus em todas as coisas, mesmo em nossos labores terrenos.
Deveríamos trabalhar duro, como para o Senhor, não impor-
ta qual vocação tenhamos. A doutrina bíblica da vocação que
Calvino desenvolveu ajudará a fornecer um foco e orientação
no Reino. Os cristãos nunca devem se tornar Mikes Mínimos.
Deveríamos servir ao Senhor com todo o nosso coração, alma
e mente (Mt 22.36), e tudo o que ele nos chamou para fazer.

289
“Deus designou os magistrados para que governem o mundo de forma jus-
ta e legítima. Uma vez que foram escolhidos e delegados por Deus mesmo,
é diante deste que são responsáveis.”

J. Calvino
CAPÍTULO 15

CALVINO E O GOVERNO
CIVIL

SOLANO PORTELA

Calvino, francês de nascimento, viveu, pastoreou e tra-


balhou em solo suíço. Ele é um dos teólogos que mais escre-
veu sobre o governo civil e, em suas ideias, se firma a tradição
Reformada sobre política. Sua atuação, na cidade de Gene-
bra, não foi somente teológica e eclesiástica, mas, seguindo o
entrelaçamento com o Estado que ainda prevalecia naqueles
tempos, teve intensa atuação na estruturação da sociedade civil
daquela cidade, participando, igualmente, da administração e
dos detalhes operacionais do seu dia-a-dia.
Os escritos de João Calvino revelam uma percepção in-
comum à época, traçando claramente os limites de atuação do
Estado e especificando com clareza a esfera da Igreja. Vamos
verificar o pensamento de Calvino apresentado nas Institutas da
Religião Cristã,1 seu mais famoso trabalho, no Livro Quatro, Ca-

1 O texto das “Institutas”, disponível em inglês, pode ser acessado em diver-


sos sítios na Internet. Em português, há anos, temos a conhecida tradução
“As Institutas ou tratado da religião cristã”, por Waldyr Carvalho Luz (São Pau-
lo, 1985, 1989: Cultura Cristã). Apesar de precisa, esta tradução foi muito
contestada, em função do seu preciosismo linguístico-editorial, com base

291
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

pítulo 20 (o último capítulo de seu livro), que tem o título: “Do


Governo Civil”. Na terminologia de Calvino, os governantes são
chamados de “magistrado civil”, seguindo a própria termino-
logia paulina de Romanos 13.1-7.

1. O GOVERNO CIVIL – ESFERA ESPECÍFICA E LEGÍTIMA AO


CRISTÃO

O Capítulo 20, do Quarto Livro das Institutas, contém 32


seções que tratam sobre o governo civil.2 Grande parte do que
Calvino escreveu foi dirigida aos Anabatistas,3 contradizendo

no latim, e seu português rebuscado (alguns têm dito que “é necessário


um dicionário de português para se entender o trabalho do tradutor”),
no entanto, ela é utilíssima para um estudo mais aprofundado da obra de
Calvino. Recentemente (2006) a Editora Cultura Cristã a republicou com
a designação de “edição clássica”; em paralelo apresentou uma outra versão,
mais simplificada e inteligível, com úteis anotações pelo Dr. Hermisten
Maia Pereira da Costa (As Institutas). A tradução é do Rev. Odayr Olivetti.
A Editora PES tem um resumo e adaptação, feita por J. P. Willes (cobre
apenas os livros 1 a 3, faltando o 4), com o título “Ensino Sobre o Cristia-
nismo” (1984). A Editora SOCEP (Santa Bárbara do Oeste, SP) começou
a publicar (1991) a obra em alguns fascículos (As Institutas em Linguagem
Simplificada), mas o projeto parece que foi suspenso no fascículo VI (ou
seja, no capítulo 13 do primeiro livro). O esforço mais recente de trazer
“As Institutas” ao português e ao conhecimento do povo brasileiro vem do
campo acadêmico, curiosamente sem nenhuma conotação evangélica. Tra-
ta-se da versão publicada pela Universidade Estadual Paulista (A Instituição
da Religião Cristã – (São Paulo, SP: Fundação Editora UNESP, 2008) 521
pgs.), porém este lançamento cobre apenas os livros 1 e 2, até o presente.
O projeto foi financiado, por solicitação do ex-governador de São Paulo,
Cláudio Lembo, ao já falecido dono do Banco Itaú, Olavo Setúbal (1923-
2008), ambos católico-romanos.
2 Nossas referências aos números das seções – colocados, por vezes, entre pa-
rênteses – serão sempre daquelas contidas dentro deste vigésimo capítulo
do quarto livro das Institutas.
3 Os anabatistas foram contemporâneos de Lutero e, de uma certa forma,
também filhos da Reforma. O nome significa “re-batismo”. Além de não
aceitarem o entendimento sobre o batismo dos luteranos, “os anabatistas,
de uma forma geral, rejeitavam a doutrina forense da justificação somente

292
CALVINO E O GOVERNO CIVIL

os argumentos destes que diziam ser o governo civil uma área


de atuação ilegítima ao cristão. Calvino exalta o ofício do magis-
trado civil e extrai da Palavra de Deus definições e parâmetros
que, mais tarde, iriam fazer parte da tradição Reformada, es-
pecialmente de documentos importantes como a Confissão de
Fé de Westminster.
Logo na seção primeira, Calvino indica que o governo
civil é algo diferente e separado do Reino de Cristo, uma ques-
tão, que ele diz, não compreendida pelos judeus. Assim, ele já
toca na separação entre Igreja e Estado, dizendo: “Aquele que
sabe distinguir entre o corpo e a alma; entre a vida presente
efêmera e aquela que é eterna e futura; não terá dificuldade em
entender que o Reino espiritual de Cristo e o governo civil são
coisas completamente separadas”.
Na segunda seção, entrando na terceira, ele afirma que,
mesmo restrito à esfera temporal, o governo civil é área legíti-
ma ao cristão. Calvino chama de “fanáticos” os que se colocam
contra a instituição do governo. Entre as funções primordiais
do governo, ele relaciona: “… que a paz pública não seja per-
turbada; que as propriedades de cada pessoa sejam preservadas
em segurança; que os homens possam tranquilamente exercitar
o comércio uns com os outros; que seja incentivada a honesti-
dade e a modéstia”.
Nas seções quarta à sétima, ele fala sobre a aprovação
divina do governante, ou seja, do ofício do Magistrado Civil,
ancorando suas observações em Pv 8.15-16 e em Rm 13, res-
pondendo também a objeções. Entretanto, ele insiste que a pri-
meira consequência dessa aprovação é a grande responsabili-

pela fé, de Lutero, porque viam nela uma barreira à verdadeira doutrina de
uma fé ‘viva’, que resulta em uma vida santa” (Timothy George, Theology of
the Reformers (Nashville: Broadman, 1988), 269. A visão deles, de separação
entre Igreja e Estado, era tão radical que proibia o envolvimento de qual-
quer cristão com o governo ou com os governantes.

293
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

dade que os próprios governantes têm consigo mesmo perante


Deus. Existe, pois, a necessidade de um autoexame constante,
para aferirem se estão sendo justos e se estão se enquadran-
do com toda propriedade na categoria de ministros de Deus.
Calvino escreve, sobre os governantes: “… se eles cometem
qualquer pecado isso não é apenas um mal realizado contra
pessoas que estão sendo perversamente atormentadas por eles,
mas representa, igualmente, um insulto contra o próprio Deus
de quem profanam o sagrado tribunal. Por outro lado, pos-
suem uma admirável fonte de conforto quando eles refletem
que não estão meramente envolvidos em ocupações profanas,
indignas de um servo de Deus, mas ocupam um ofício por de-
mais sagrado, até porque são embaixadores de Deus”.

2. EXAME DE FORMAS DE GOVERNO


Na seção oitava, Calvino examina três formas de gover-
no: monarquia, aristocracia e democracia. Ao fazer isso ele está
adentrando política em toda a sua extensão. Ele classifica as dis-
cussões que pretendem provar conclusivamente ser uma for-
ma melhor do que a outra, de futilidade. Para Calvino, as três
formas são passíveis de críticas: a monarquia tende à tirania;
na aristocracia, a tendência é a regência de uma facção de pou-
cos; na democracia, ele vê uma forte tendência à quebra da or-
dem. Tendo dito isto, ele se revela um defensor da aristocracia
– como sendo a forma menos danosa de governo. O raciocínio
de Calvino é que a História não favorece a monarquia, pois reis
e imperadores despóticos marcam esta forma de governo. No
entanto, Calvino não se sente confortável em uma democracia,
sob o temor de que as massas não saibam conter seus “vícios e
defeitos”.4 No governo de alguns sobre muitos (aristocracia) ele

4 É importante notar que “democracia”, na forma como a entendemos


nos dias de hoje, não era um conceito praticado, ou até discutido ampla-
mente, a não ser alguns séculos depois de Calvino.

294
CALVINO E O GOVERNO CIVIL

vê a possibilidade de controle de uns sobre os outros; de acon-


selhamento mútuo; e de preservação desses “vícios e defeitos”. A
essência de qualquer forma de governo, para Calvino, é a liber-
dade. Ele escreve: “Os governantes [magistrados] devem fazer
o máximo para impedir que a liberdade, à qual foram indicados
como guardiões, seja suprimida ou violada. Se eles desempe-
nham essa tarefa de forma relaxada ou descuidada, não passam
de pérfidos traidores ao ofício que ocupam e ao seu país”.

3. DEVERES DOS GOVERNANTES PARA COM A RELIGIÃO


Calvino reflete ainda a visão da época, de que um dos de-
veres dos governantes era a promoção da religião verdadeira.
Essa compreensão viria a fazer parte, inclusive, do texto origi-
nal da Confissão de Fé de Westminster, quase 100 anos depois,
em 1648, tendo sido, posteriormente, significativamente mo-
dificado, em 1788, nos Estados Unidos. A seção nove desen-
volve, exatamente, esta linha de pensamento. Calvino, de fato,
faz referência a várias passagens bíblicas que conclamam os
governantes a exercer os princípios divinos de justiça, como Jr
23.2 e Sl 82.3-4. Mas não é somente nessa abrangência que ele
enxerga a atuação do governo. Ele afirma que a esfera de auto-
ridade se “estende a ambas as tábuas da lei”. Ou seja, se os primei-
ros quatro mandamentos (a primeira tábua) falam dos deveres
dos homens para com Deus, o governo estaria legitimado não
somente em promover o exercício da religião verdadeira, como
também em punir os que não a seguissem. Esse pensamento
seria posteriormente refinado por vários outros pensadores
e documentos Reformados, que, diferentemente de Calvino,
viriam a considerar a esfera legítima de atuação no governo
como situada na segunda tábua da lei (os mandamentos que
regulam as atividades e relacionamentos com o nosso próxi-
mo, 6 a 10). Na seção dez Calvino ainda trata deste assunto,
respondendo a objeções colocadas contra este ponto de vista,
especialmente as que surgiam do campo anabatista.

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CALVINO – MESTRE DA IGREJA

4. PRERROGATIVAS DOS GOVERNOS


Da seção 11 até 13, Calvino fala de várias prerrogativas
dos governos, começando com a de se envolver em guerras.
Ele não é um incentivador do Estado beligerante, mas vê como
uma realidade o fato de que os governos terão que pegar em
armas para a defesa de seus governados e de seus territórios.
Nessa linha, o governo deve ser forte e deve se armar para ga-
rantir a vida pacífica interna, de seus governados, reprimindo
pela força os criminosos. Em todas essas seções, Calvino faz
várias referências à restrição necessária aos governantes, para
que não abusem da prerrogativa da força, citando, inclusive,
Agostinho para fundamentar sua posição. A segunda prerroga-
tiva, tratada agora na seção 13, é a de cobrar impostos. Nesse
sentido, Calvino aponta para a legitimidade dos governantes
de cobrarem impostos e taxas até para o seu próprio sustento
– isso não deveria espantar, nem confundir os cristãos.

5. OS GOVERNOS E AS LEIS
Calvino apresenta um extenso tratamento da lei de Deus
nas seções 14 a 16. Ele introduz a distinção entre a lei religiosa,
a lei civil e a lei moral – encontrada nas Escrituras. Reconhe-
cendo os dois primeiros aspectos como temporários, pertinen-
tes apenas ao Antigo Testamento, ele reafirma a permanência
da Lei Moral. Diz Calvino: “… é evidente que aquela lei de
Deus a qual chamamos de moral, nada mais é do que o tes-
temunho da lei natural e da consciência que Deus fez gravar
na mentes dos homens... Assim [esta lei] deve ser o objeto, a
regra, e o propósito de todas as leis. Em qualquer lugar que
as leis venham a se conformar com esta regra, direcionada a
este propósito, e restrita a esta finalidade, não existe qualquer
razão porque deveriam ser reprovadas por nós...”. Calvino cita
Agostinho (A Cidade de Deus, Livro 19, c.17) como apoio à sua
exposição e termina examinando as leis de Moisés –quais po-
dem ser aplicadas e quais foram ab-rogadas.

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CALVINO E O GOVERNO CIVIL

6. OS GOVERNADOS E A LEI – RELACIONAMENTOS DE UNS


PARA COM OS OUTROS

Cinco seções são agora utilizadas (17 a 21) para tratar


um tema que é sempre controvertido – Qual o uso que os
governados podem fazer das leis para ajustarem os seus com-
portamentos uns para com outros? Calvino trata da questão
explorando até onde é legítima uma demanda judicial entre
governados. Uma de suas preocupações era a de refutar os
anabatistas, que condenavam qualquer forma de procedimen-
to judicial. Em seu tratamento ele responde especificamente
a duas objeções. A primeira, a indicação de que Cristo nos
proíbe resistir ao mal (Mt 5.39-40); a segunda, a de que Paulo
condena toda e qualquer ação judicial (1Co 6.6). Na visão de
Calvino, os crentes são pessoas que devem suportar “afrontas
e injúrias”. Isto contribui para a formação de caráter e produz
uma geração que não tem a fixação em retaliação – o que ca-
racteriza os descrentes. No entanto, ele não chega a dizer que
o cristão nunca deveria levar um caso à justiça. Paulo, em 1 Co
6, trata de uma situação em uma igreja que tinha o litígio como
característica de vida, e com o envolvimento de estranhos à co-
munidade. Tudo isso causava grande escândalo ao evangelho.
Assim, afirma Calvino, devemos estar até predispostos a sofrer
perdas, mas ele complementa: “... quando alguém vê que a sua
propriedade imprescindível está sendo defraudada, ele pode,
sem nenhuma carência de amor [caridade], defendê-la. Se ele
assim o fizer, não estará ofendendo, de nenhuma maneira, esta
passagem de Paulo” (21).

7. OS GOVERNADOS E A LEI – RESPEITO E SUBMISSÃO AOS


GOVERNANTES

As dez últimas seções (22 a 32) são ocupadas com o trata-


mento da questão de submissão dos governados. Calvino trata
do respeito e obediência devidos aos governantes (22 e 23),

297
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

passando a examinar a questão da submissão aos tiranos (24 e


25). Ele demonstra que as Escrituras consideram o ofício do
regente civil na mais alta conta e, portanto, não resta ao cristão
senão ter a mesma visão que a Palavra de Deus tem. Baseando-
se em Romanos 13, Calvino reforça que a desobediência civil é
desobediência a Deus. Calvino não dá abrigo aos pensamentos
de revolta contra as autoridades, até mesmo contra os tiranos.
Ele diz: “Insisto intensamente em provar isto, que nem sem-
pre é perceptível aos homens, que mesmo um indivíduo do
pior caráter; aquele que não é merecedor de qualquer honra;
se estiver investido de autoridade pública, recebe aquele poder
divino ilustre de sua justiça e julgamento que o Senhor, pela
sua palavra, derramou sobre os governantes; assim, no que diz
respeito à obediência pública, ele deve ser objeto da mesma
honra e reverência que recebe o melhor dos reis”.
Nesse sentido, Calvino passa a fazer referência a vários
textos da Palavra de Deus (26 e 27), alguns dos quais demons-
trando que os reis ímpios não estão ausentes do plano sobera-
no de Deus, mas servem de braço vingador do próprio Deus,
cumprindo os seus propósitos. Faz referência a passagens
como Dn 2.21;37; 4.17; 20; 5.18-19 e Jr 27.5-8; 12, que ele
classifica como sendo um dos trechos mais impressionantes.
Calvino responde às objeções mais comuns, a esta pos-
tura de obediência (28) e passa a traçar algumas considerações
para que consigamos exercitar paciência, quando submetidos à
tirania (29 e 30). Ele ensina três posturas: (1) que devemos nos
concentrar não na pessoa do que oprime, mas no ofício que
aquela autoridade recebeu de Deus; (2) que, quando estiver-
mos sendo alvo de opressão, devemos nos lembrar de nossos
próprios pecados e, isto posto, (3) devemos confiar que Deus
é justo juiz e executará justiça no seu devido tempo, vingando
o oprimido. No entanto, Calvino admite que, às vezes, Deus
levanta corporativamente uma nação para controlar a tirania

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CALVINO E O GOVERNO CIVIL

e mal exercitada por outra (30 e 31). Ele insiste que há uma
diferença entre a postura individual (o dever de submissão e
obediência) e a corporativa (que pode ser contestatória, sem-
pre baseada nos princípios divinos de justiça).
Calvino encerra a sua exposição (32), traçando os limites
de obediência e submissão – os Governantes não podem co-
mandar ações que contradigam a Palavra de Deus. Resistência
a esses comandos não podem ser classificados de insubmissão,
mas de demonstração de lealdade a Deus. Ele mostra a resis-
tência de Daniel (6.22) e como a submissão do povo, sob Jero-
boão, que os levou à adoração de bezerros de ouro (1 Re 12.28)
é condenada em Ho 5.11. Além de tratar de At 5.29 (a palavra
de Pedro indicando a importância de obedecer a Deus acima
dos homens), Calvino comenta sobre 1 Co 7.23, mostrando
que não devemos subjugar a liberdade recebida em Cristo às
impiedades e desejos depravados dos homens.

SÍNTESE DO PENSAMENTO DE CALVINO


Concluímos com uma breve síntese do pensamento do
Reformador sobre a questão do governo civil e das respon-
sabilidades, tanto dos governantes quanto dos governados. O
pensamento de Calvino tem uma visão altíssima da importân-
cia dos governantes (chamados de “magistrados civis”). Con-
trariamente ao que alguns escritores contemporâneos têm en-
sinado sobre Calvino, procurando colocá-lo como um contes-
tador nato e como base de movimentos de resistência civil, tais
versões não encontram o respaldo da História e representam
fracas ilações e deduções de pseudo-calvinistas. Calvino não
“abre brechas” para focos de insubmissão ou de insurreição.
Em adição, ele apresenta um aspecto muito ligado ao seu tem-
po – a colocação do Estado como “protetor” da Igreja (essa
posição seria depois melhor examinada pelos teólogos Refor-
mados e as áreas de atuação melhor identificadas, no desenvol-
vimento da tradição da Reforma, sem o paternalismo estatal

299
CALVINO – MESTRE DA IGREJA

que, por vezes, transparece, nos escritos mais remotos). No en-


tanto, Calvino não deixa de classificar com precisão as esferas
de cada um – Estado e Igreja, agindo em regiões e situações di-
ferentes. Mas, o mais importante, ele coloca tanto governantes
como governados responsáveis perante Deus, por suas ações
ou omissões. Um senso de responsabilidade diante do Criador
que precisamos urgentemente resgatar, nos nossos dias.

300
“Mestre é aquele que forma e instrui a Igreja na Palavra da verdade.”

J. Calvino

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