Aula 10 – Liberais, neo-ortodoxos e fundamentalistas
Pressupostos da modernidade • Durante os séculos 18 e 19, no alvorecer da ciência, parte crescente dos eruditos rejeitou os conceitos dogmá;cos medievais da religião (que já vinham sendo rejeitados desde o renascimento) e estabeleceu novos pressupostos para o estudo da natureza, sustentando a evolução e negando a existência dos eventos sobrenaturais. Nesse período, o calvinismo (como todo o protestan;smo) se viu envolvido em um relacionamento direto com os ideais do Iluminismo e da modernidade. Pressupostos da modernidade • Estritamente o Iluminismo (Au#lärung do alemão: aclarar) foi um movimento que abrangeu um conjunto de ideias e a;tudes caracterís;cas do período de 1720-1780, como o uso livre e constru;vo da razão em uma tenta;va de destruir velhos mitos que, segundo a ó;ca iluminista, man;nham indivíduos e sociedades presos à opressão do passado (McGrath, 2005, p. 125). Contudo, é evidente que os efeitos do Iluminismo não se restringiram às décadas citadas, estendendo-se por todo o período moderno até os dias atuais. A principal doutrina do Iluminismo foi que a razão humana ;nha condições de descobrir por si mesma os mistérios do universo. Razão totalitária • Com isso, não se pode dizer que na Idade Média não se fazia uso da razão, é evidente que se fazia, mas era um uso diferente. Para o pensamento medieval, a razão estava a serviço da fé (“creio para entender” de Anselmo). No Iluminismo, a razão se tornou absolutamente autônoma e passou a medir todas as coisas com suas próprias medidas. Em princípio, a religião foi considerada aceitável porque podia ser deduzida racionalmente e a revelação não era considerada incompa\vel com a razão, porque o aposteriorismo metodológico não estava firmemente estabelecido. Aos poucos, porém, a razão foi considerada superior à revelação e passou a considerá- la obsoleta. Impacto sobre a teologia • Os desdobramentos do Iluminismo levaram a razão a medir a teologia e isso produziu reações variadas. Os dois caminhos opostos mais comuns que foram adotados pelos teólogos foram: acomodação ou reação ferrenha. A acomodação gerou o chamado “liberalismo teológico” e seus subprodutos. A reação ferrenha gerou o fundamentalismo também com seus desenvolvimentos e estágios intermediários. Impacto sobre a teologia • McGrath lista seis aspectos em que o Iluminismo em seu racionalismo se chocou com o cris;anismo: a possibilidade de milagres, o conceito de revelação, a doutrina do pecado original, a questão do mal, o status e a interpretação das Escrituras, a iden;dade de Jesus Cristo e seu significado (2005, p. 129-132). Na verdade, esse é um modo de focar em algo bem específico. Em termos gerais, o Iluminismo tentou estabelecer uma cosmovisão completa, na qual Deus ou o sobrenatural não eram mais necessários, e até mesmo indesejáveis. O escolas6cismo calvinista O escolas9cismo calvinista • O período pós-Reforma testemunhou o desenvolvimento de uma abordagem fortemente escolás;ca e racional à teologia que ficou conhecida como “escolas;cismo protestante”. Nesse período, se sen;u a necessidade de sistema;zar os desenvolvimentos teológicos e, para isso, recorreu-se à filosofia grega, especialmente ao aristotelismo. McGrath diz que “o aristotelismo que Calvino encarava com certa suspeita, passou a ser considerado um aliado” (2007, p. 188). Os teólogos escolás;cos calvinistas u;lizaram as ferramentas da lógica aristotélica para tornar a teologia reformada um sistema coerente e completo. Isso teria começado com o próprio Beza, o sucessor de Calvino em Genebra, embora talvez seja ir longe demais dizer que Beza fosse um escolás;co. Efeitos do iluminismo • O século 18, por sua vez, viu os fortes efeitos do Iluminismo sobre a teologia na própria cidadela da Reforma, a cidade de Genebra. Klauber diz que nesse período, especialmente sob os teólogos Jean-Alphonse Turre;n (1671-1737) e seu sucessor Jacob Vernet (1698-1789), “a razão começou a ganhar importância sobre a revelação divina e muitas das doutrinas centrais da fé saíram da frente de discussões” (1999, p. 257). Klauber mostra como nesse período a Contra-Reforma deixou de ser o foco das discussões e o envolvimento com o deísmo e o ateísmo ocupou a frente de batalha obrigando os teólogos reformados a defender a fé numa abordagem mais apologé;ca e radicalmente diferente do período da Reforma, apelando para um aspecto mais racional e tentando manter apenas aqueles aspectos da fé que fossem compaaveis com a razão (Klauber, 1999, p. 257). A obra do Espírito • Klauber diz: “Jean-Alphonse Turre;n usou argumentos externos baseados na razão para defender a verdade da Escritura rejeitando o argumento de Calvino de que o testemunho interno do Espírito Santo confirma a origem divina e a verdade da Escritura” (1999, p. 259). Essa é uma informação muito importante. De acordo com a nova concepção, as provas racionais poderiam demonstrar a origem divina das Escrituras e, por isso, o testemunho interno do Espírito Santo (central para Calvino) não foi mais enfa;zado. O Testemunho do Espírito • O ponto chave é que Calvino defendia a questão do testemunho interno do Espírito Santo como “prova” defini;va para o cristão da veracidade da Bíblia, não a submissão aos testes empíricos. Calvino ficou conhecido como “o teólogo do Espírito Santo”, pois, como talvez nenhum outro, ele enfa;zou a importância da obra do Espírito Santo na vida do crente, e principalmente na Palavra de Deus. Calvino escreveu: • Se queremos, pois, velar pelas consciências, a fim de que não sejam de conanuo levadas de cá para lá carregadas de dúvidas e que não vacilem nem se estanquem e se detenham em qualquer escrúpulo, é necessário que esta persuasão proceda de mais acima do que de razões, juízos ou conjecturas humanas, a saber do testemunho secreto do Espírito Santo (Ins$tutas, I,7,5). O Testemunho do Espírito • Calvino disse: “É verdade que se eu quisesse tratar desta matéria com argumentos e provas, poderia aduzir muitas coisas, as quais facilmente provariam que se há um Deus no céu, esse Deus é o autor da Lei, dos profetas e do Evangelho” (Ins2tutas, I,7,5). O fato, porém, é que Calvino entendia que esse não era o caminho correto de argumentação: “Contudo, vão fora do caminho e pervertem a ordem os que pretendem e se esforçam em manter a autoridade e crédito da Escritura com argumentos e disputas” (Ins2tutas, I,7,5). A razão é simples: “Mesmo que houvéssemos defendido a Palavra de Deus das detrações e murmurações dos ímpios, isso não quer dizer que por isso logramos imprimir no coração dos homens uma certeza tal qual exige a piedade” (Ins2tutas, I,7,5). O Testemunho do Espírito • Por isso, Calvino entende que somente o testemunho que o Espírito Santo dá pode realizar isso, pois “é muito mais excelente que qualquer outra razão” (Ins2tutas, I,7,5). A conclusão de Calvino é límpida: “não há homem algum, a não ser que o Espírito Santo lhe haja instruído interiormente, que descanse deveras na Escritura” (Ins2tutas, I,7,6). Por isso, como diz Reid, “sua opinião era que a Bíblia é reconhecida como a Palavra de Deus, não por deduções lógicas ou por observações e testes experimentais, mas porque o Espírito Santo tes;fica ao crente que ela é a Palavra de Deus” (Reid, 1990, p. 48). O Racionalismo na teologia • O fato é que os teólogos escolás;cos começaram a ter dificuldades em defender a Bíblia sob esses termos e, além disso, estavam empolgados em estabelecer provas aceitáveis da confiabilidade da fé reformada. Mackintosh resume o ;po de empolgação que parecia comum naquela época influenciada pelo despertar do Iluminismo com as seguintes palavras: • Podemos defender o credo ortodoxo u;lizando-nos da razão, e devemos fazê-lo. Mostrando-se que a verdade cristã tem seu fundamento nas leis universais do pensamento, ou pelo menos que há uma harmonia com o resto de nosso conhecimento ordinário, cons;tuirá uma verdadeira conquista para a verdade cristã (2004, p. 23-24). O Racionalismo e a teologia • A razão se tornou o primeiro árbitro para a pesquisa teológica e, desta maneira, a necessidade dos mistérios da fé que são centrais ao Novo Testamento, como a Encarnação de Cristo e a Trindade, ;veram espaço secundário na teologia de J. A. Turre;n, J. Vernet e de muitos outros eruditos reformados desse período e do posterior. Sobre J. A. Turre;n, Klauber diz: “Ele foi o autor de uma ortodoxia iluminista que tentou enquadrar a fé cristã com a metodologia do Iluminismo” (1999, p. 261). Na mesma linha, Vernet enfa;zou a importância da teologia natural como prova da veracidade e razoabilidade da fé, novamente estabelecendo um lugar comum com os incrédulos (Klauber, 1999, p. 262). Precursor do liberalismo • Os sucessores de Vernet foram bem além nesse afastamento da teologia trinitária e, em 1814, o catecismo revisado de Genebra ignorava totalmente as doutrinas da Redenção e da Divindade de Cristo (Klauber, 1999, p. 269). Por tudo isso, percebe-se que o escolas;cismo protestante foi uma tenta;va de adequar a teologia às conquistas da razão, trabalhando em um contexto em que a razão começava a receber a máxima consideração. Como demonstra Ramm, também parafraseando a época, “se é esta a situação, então os teólogos cristãos devem sujeitar elementos irracionais ou misteriosos da fé cristã à razão. As doutrinas que ofendem a razão – em qualquer das suas funções – devem então ser eliminadas por não serem tópicos viáveis da teologia” (1987, p. 15). Nesse sen;do, de certo modo, o escolas;cismo protestante foi o precursor do liberalismo. O Liberalismo teológico Liberalismo • A maior adaptação teológica já feita em relação à modernidade foi o chamado “liberalismo teológico”. O liberalismo teológico foi o filho legí;mo do Iluminismo, pois “foi o esforço no sen;do de reformular a fé cristã em harmonia com o iluminismo, e a par;r das perspec;vas do iluminismo” (Ramm, 1987, p. 17). Foi o modo como os teólogos modernos se adaptaram aos novos tempos, procurando transmi;r a mensagem cristã para o mundo moderno. Liberalismo • Não é possível dizer estritamente que o liberalismo teológico foi um desenvolvimento moderno do calvinismo porque foi uma linha teológica mais alemã e de inspiração mais luterana, mas que não deixou de influenciar o calvinismo, pois o liberalismo influenciou a teologia em todo o mundo, tanto no lado católico quanto no lado protestante. Liberalismo • O período clássico do liberalismo foi o século 19. O obje;vo inicial era manter o cris;anismo relevante e intelectualmente viável para a sociedade moderna. Grenz e Olson dizem: “Assim como Schleiermacher, os liberais estavam decididos a reconstruir a fé cristã à luz do conhecimento moderno. Acreditavam que certos desenvolvimentos culturais desde o Iluminismo simplesmente não podiam ser ignorados pela teologia cristã, mas precisavam ser assimilados de modo posi;vo” (2003, p. 58). Os liberais entendiam que precisavam ter certa liberdade para tratar com os dogmas e com a tradição a fim de adequar o cris;anismo às novas descobertas e ao status concedido à razão pelo Iluminismo. Crí9ca Radical • Como diz McGrath, “Naqueles pontos em que os métodos clássicos de interpretação bíblica ou os dogmas tradicionais parecessem ameaçados pelos avanços do conhecimento humano, era impera;vo que fossem descartados ou reinterpretados, para que se alinhassem àquilo que agora se sabia a respeito do mundo” (2005, p. 138-139). • Entendendo que somente com a negação dos pressupostos sobrenaturalistas se poderia manter a mensagem cristã para o mundo moderno, os teólogos liberais procuraram aplicar o método cien\fico ao estudo das Escrituras. Esse método ficou conhecido como crí;ca radical. Repúdio ao sobrenatural • O \tulo faz jus porque depois de anos de pesquisas, pouca coisa da Escritura ficou considerada autên;ca. Entretanto, é preciso que se entenda que a intenção não era destruir por destruir. Os liberais entendiam que a Escritura ;nha ficado enfraquecida após as descobertas e os novos métodos cien\ficos e que não era mais possível falar em inspiração verbal, então, resolveram abrir mão daquelas partes da Bíblia que apelavam para o sobrenatural para manter a essência do cris;anismo que eles entendiam como sendo a manifestação do reino de Deus em termos é;cos. O Jesus Histórico • Uma grande busca dos teólogos liberais foi a do chamado “Jesus histórico”. Acreditando que o verdadeiro Jesus teria sido distorcido pelos Evangelhos que criaram o “Cristo da fé”, os liberais queriam descobrir o Jesus de Nazaré por detrás do mito. Para isso, empreenderam uma verdadeira odisseia em busca do personagem Jesus, o carpinteiro da Galileia. Uma vez que a ideia de um mestre sobrenatural era inaceitável para os ideais do Iluminismo, os teólogos se dispuseram a encontrar um mestre do bom senso por detrás dos mitos criados em torno da figura de Jesus. Um homem comum, porém cheio de sabedoria e bom senso, se encaixava bem melhor em seus pressupostos do que um homem divino que andava sobre as águas e ressuscitava mortos. Encontrar esse “homem” seria um modo de validar o próprio método do liberalismo. O Jesus Histórico • O primeiro grande teólogo a se lançar nessa busca foi Hermann Samuel Reimarus (1694-1798). Ele defendeu uma teoria de que Jesus foi apenas um revolucionário políLco que foi condenado e morto, mas cujos discípulos não se conformaram e criaram o mito da ressurreição e da redenção espiritual. Para ele, o verdadeiro Jesus da história Lnha sido ocultado pela igreja apostólica e em seu lugar colocado um Cristo redentor ficTcio. Apesar de ter havido pelo menos mais duas tentaLvas de descobrir o Jesus histórico depois de Reimarus (McGrath, 2007, p. 292-303). O fato é que essa busca se demonstrou totalmente infruTfera. Quase não há informações de Jesus fora da Bíblia. E fazer “corte e recorte” dos textos bíblicos para montar um personagem é uma tarefa totalmente subjeLva e de resultado imprevisível. De fato, “a história da pesquisa da vida de Jesus é a história do fracasso desta pesquisa” (Goppelt, 1976, p. 22). Gerd Theissen e Annece Merz listam cinco fases na busca do Jesus histórico: A primeira, com Reimarus e D. F. Strauss; a segunda, através do oLmismo da pesquisa liberal sobre a vida de Jesus; a terceira, como o colapso da pesquisa sobre a vida de Jesus; a quarta, como a nova pergunta pelo Jesus histórico; e a quinta fase como a terceira pergunta pelo Jesus histórico (2002, p. 21-30). História da religião • Como não foi possível encontrar o Jesus histórico, o foco da pesquisa mudou. As influências racionalistas (e an;ssobrenaturalistas), como diz Ladd, quando focalizadas sobre o estudo da teologia, levaram à conclusão de que a erudição não deveria procurar uma teologia na Bíblia, mas apenas a história da religião (1997, p. 14). Isso porque a Bíblia foi considerada apenas uma compilação de escritos religiosos an;gos, que preservavam em alguma medida a história de um povo semí;co an;go, e que devia ser estudada apenas sob uma perspec;va histórica. Sonho dourado • Apesar de bem intencionada, ao ser seduzida pelo Iluminismo, a crí;ca radical destroçou a Bíblia, deixando apenas um conjunto de regras é;cas e morais, absolutamente esvaziadas do impacto original do cris;anismo e que acabou sendo, curiosamente, totalmente irrelevante para a sociedade moderna. Nesse ponto, talvez, esteja a maior crí;ca ao liberalismo teológico: Sua “boa intenção” provou-se ineficaz. McGrath diz que “o liberalismo foi inspirado pela visão de uma humanidade em ascensão rumo a novas esferas de progresso e prosperidade” (2007, p. 252). Seguindo os rumos da mentalidade moderna de que a razão traria uma era dourada de paz e prosperidade mundial, o liberalismo viu no cris;anismo somente a base da é;ca dessa nova sociedade evoluída. O fato é que essa sociedade evoluída jamais deixou de ser apenas um sonho, como a pós- modernidade por fim deixou claro. Método infalível • Atualmente, o que se percebe é que estudiosos da época do Iluminismo e após ele, como Schleiermacher (1768-1834), Ritschl (1822-1889) e Harnack (1851-1930), que rejeitaram as informações dos Evangelhos, estavam tentando ler a Bíblia com os conceitos de sua própria época. Ao tentar comunicar a mensagem do evangelho para o homem pós-iluminista, o liberalismo teológico subsLtuiu o conceito de infalibilidade das Escrituras pelo da “infalibilidade” do método cienTfico, seguindo os tempos e épocas de sua própria geração. Nesse senLdo, ele se demonstrou um movimento extremamente falível por duas razões: por considerar a homogeneidade da experiência religiosa universal num senLdo totalizante Tpico do Iluminismo e por tornar a mensagem cristã subserviente à cultura. Embora Schleiermacher não seja estritamente um “liberal”, uma vez que ele é anterior ao liberalismo teológico e ao método histórico críLco. Na verdade, com sua ênfase no senLmento em relação ao racionalismo do Iluminismo, Schleiermacher serviu como ponto de controvérsia que originou o próprio liberalismo (McGrath, 2005, p. 133-135). O Liberalismo acabou? • O liberalismo não acabou. Apesar de a neo-ortodoxia, como se tratará abaixo, ter dado um golpe poderoso no liberalismo, ele con;nua no mundo, propondo uma reformulação da fé cristã para os patamares modernos e “se considerando um mediador entre duas alterna;vas inaceitáveis: a mera repe;ção da fé cristã tradicional (normalmente descrita por seus crí;cos liberais como ‘tradicionalismo’ ou fundamentalismo’) e a rejeição total do cris;anismo” (McGrath, 2007, p. 253). A neo-ortodoxia A neo-ortodoxia • Uma forte tenta;va de reação ao racionalismo do liberalismo teológico foi o movimento que ficou conhecido como “neo- ortodoxia”. Mais do que o liberalismo, a neo-ortodoxia foi um movimento de forte inspiração calvinista. • Percebendo o fracasso do velho liberalismo em encontrar o Jesus histórico e desanimados com o forte racionalismo iluminista da teologia liberal, uma nova geração de pensadores influenciados pelo existencialismo filosófico e liderados pelo célebre teólogo reformado alemão, Karl Barth (1886-1968), fundou um movimento de tenta;va de retorno à Reforma e à Palavra de Deus, tentando buscar algo mais do que a pesquisa meramente histórica poderia oferecer. Karl Barth • Karl Barth, pastor reformado de 1911 a 1921 na aldeia de Safenwil no cantão de Aargau, na Suíça, foi o homem que deu o golpe de misericórdia no an;go liberalismo com seu comentário de Romanos, estava completamente desanimado com os resultados e com o próprio método do liberalismo, que não oferecia nada para o pregador. • O apoio de seus an;gos mestres liberais à Primeira Guerra Mundial o fez ver que havia algo de terrivelmente errado na teologia deles. Karl Barth • Quando escreveu seu famoso comentário sobre Romanos, que marcou época e foi o primeiro (e talvez maior) golpe aos ideais e métodos do liberalismo, no prefácio à primeira edição, ele disse as palavras que todos naquela época queriam ouvir: • O método histórico-crí;co aplicado ao estudo da Bíblia prepara a mente ao que é sempre ú;l; porém, se eu fora constrangido a optar entre esse método e a arcaica doutrina da inspiração eu, decididamente, escolheria por esta, pois ela é, de direito, maior, mais profunda e mais importante; porque a inspiração visa ao próprio processo do entendimento sem o que toda e qualquer estruturação do raciocínio é vã. Sinto-me feliz por não precisar escolher entre essas duas formas (2002, p. 13). Método de Barth? • É dipcil categorizar um homem como Karl Barth. Sua teologia sempre esteve em mutação e ele morreu sem concluir sua maior obra. É dipcil até mesmo estabelecer qual foi o método teológico de Barth. Ele próprio disse no prefácio da sua segunda edição da carta aos Romanos (1922): • Se tenho um sistema, este se restringe em mente, tanto quanto possível, àquilo que Kierkegaard chamou de ‘dis;nção qualita;va infinita’ entre o tempo e a eternidade em seus aspectos nega;vos e posi;vos. ‘Deus está no céu e você está na terra’. Para mim, a relação entre esse Deus e essa pessoa, a relação entre essa pessoa e esse Deus é, em resumo, o tema da Bíblia e a totalidade da filosofia. Os filósofos chamam isso de crise humana de conhecimento da causa primária; a Bíblia vê Jesus Cristo nessa encruzilhada (Apud McGrath, 2007b, p. 360). Teologia da Crise • Talvez em virtude dessa declaração, a teologia de Barth ficou conhecida como “teologia da crise”, ou “teologia dialé;ca”. Outros preferiram chamar de “teologia cristocêntrica”, ou de “teologia da Palavra de Deus”. É preciso fazer jus;ça a Barth e reconhecer que, posteriormente, ele abandonou o existencialismo e procurou re;rar da segunda edição da sua Dogmá;ca qualquer referência ao existencialismo (Mackintosh, 2004, p. 280), mas o que fica evidente é a completa dis;nção entre o método de Barth e de seus predecessores liberais. Barth e Calvino • Não há a menor possibilidade de localizar o relacionamento com Deus por meio da cultura ou da história. Deus é transcendente. Não parece ter havido em Barth um esforço em adequar a teologia à modernidade (como se vê em Bultmann). Talvez Oden esteja certo: ele é muito mais um pré-moderno do que um “moderno” (1990, p. 65). Nesse sen;do, a visão barthiana não pode ser considerada realmente plenamente calvinista, pois ela diminuiu a amplitude do calvinismo e prejudicou a relação com todos os aspectos da vida. Em uma palavra: ela o re;rou do mundo. Calvino queria a religião no mundo. Por outro lado, Barth foi bem além de Calvino em seu cristocentrismo que pra;camente virava um “cristomonismo” e em seu universalismo soteriológico. Rudolph Bultmann • Apesar de Barth ter sido a grande estrela da neo-ortodoxia, outro teólogo polarizou a atenção devido aos seus estudos no Novo Testamento: Rudolf Bultmann (1884-1976). Bultmann estava muito mais envolvido com os ideais da modernidade do que Barth, e manteve a ênfase existencialista mesmo depois de Barth desis;r dela. Bultmann fez um esforço por recuperar a mensagem do Novo Testamento para o homem moderno, e fez isto não tentando re;rar os mitos (milagres) da Bíblia, como fazia o liberalismo, mas interpretá-los (ou melhor, reinterpretá- los), para que a mensagem (kerygma) falasse ao homem moderno. Bultmann • Bultmann não acreditava no método da teologia liberal, mas também não acreditava em milagres. Sua proposta foi diferente, mas talvez tenha acabado no mesmo lugar: Ele propôs que, ao invés de “demi;zar” a Bíblia, ela deveria ser “desmitologizada”. Ele não propôs um trabalho de tesoura na Bíblia para recortar e jogar fora tudo o que fosse sobrenatural como faziam os an;gos liberais, mas que esses eventos fossem interpretados para que a mensagem desses mitos falasse ao homem moderno. Os mitos ficavam lá, porém sua mensagem era redescoberta. De qualquer modo, o milagre como evento histórico foi descartado. • Bultmann foi fortemente influenciado pela interpretação existencialista da história. Cristo da fé X Jesus Histórico Racionalismo e subje9vismo • A neo-ortodoxia não foi realmente uma volta à ortodoxia, apesar da admiração de Barth por Calvino, pois não trouxe de volta os fundamentos bíblico-históricos dos reformadores, antes, lançou a teologia do Novo Testamento no subje;vismo. É interessante que Brunner, ainda na década de 20, tenha percebido que o rela;vismo brotava do modernismo, pois declarou: “O homem moderno não crê mais num absoluto, em qualquer forma que ele possa ser oferecido, quer aquele da fé cristã, do idealismo, ou do mis;cismo. Se ele crê em alguma coisa é em absoluta incerteza” (2000, p. 31). A teologia neo-ortodoxa, com seu igual abandono da autoridade da Escritura e com sua ênfase exagerada no transcendente, e seu fideísmo, em nada contribuiu para reverter este processo, só o acelerou ainda mais. O fundamentalismo O fundamentalismo • No século 19, com o crescimento do liberalismo teológico radical entre as principais denominações históricas dos Estados Unidos, teólogos conservadores se coligaram para defender a fé cristã diante dos ataques do liberalismo nos seminários e nas igrejas. Assim, de 1910 a 1915, em uma série de ar;gos em 12 volumes ins;tuídos “Os Fundamentos”. Os pontos fundamentais da fé cristã foram expostos e defendidos, e o modernismo foi atacado em seus pressupostos fundamentais. Em virtude disso, as pessoas que advogaram este movimento ficaram conhecidas como “fundamentalistas”. Entre elas, um número grande se dizia calvinista. O termo “fundamentos” foi usado para os elementos das doutrinas tradicionais da inspiração e autoridade da Escritura, da divindade de Jesus, do nascimento virginal, dos milagres, etc. O fundamentalismo • O fundamentalismo é baseado em um ;po par;cular de tradição religiosa e usa a forma (mais do que a realidade) da autoridade bíblica para providenciar um campo para sua tradição (Barr, 1977-78, p. 11). Barr entende que o fundamentalismo se deriva diretamente dos reavivamentos evangélicos dos séculos 18 e 19, mas não tem apenas um aspecto emo;vo, pois acumulou uma considerável estrutura intelectual (1977-78, p. 11, 18). O fundamentalismo produz “uma ansiedade a respeito da garan;a da doutrina pura” (1977-78, p. 13), sempre está atento às conspirações contra a verdade e a pureza do evangelho e faz questão de estabelecer a diferença entre os verdadeiros cristãos e os cristãos nominais. A inerrância das Escrituras • A principal doutrina do fundamentalismo é a doutrina da “inspiração e inerrância da Escritura”. Segundo Barr, os fundamentalistas insistem que a Bíblia não tem qualquer imprecisão, quer seja em termos de doutrina, geologia, astronomia, ou o que quer que seja, pois ela não tem qualquer ;po de erro (1977-78, p. 40). É interessante que, como visto acima, Hodge admi;a algum ;po de imprecisão e não achava que isso comprometesse a inspiração. Para os fundamentalistas, a menor imprecisão inviabilizava o projeto inteiro. Esse rigor se parece bastante com o método cien\fico de provar racionalmente algo para que seja verdadeiro. Interpretação das Escrituras • Um aspecto muito interessante que Barr destaca dos fundamentalistas é que eles procuravam estar em conformidade com as descobertas cien\ficas, mas certamente não ao es;lo da “Old Princeton”. Na verdade, para o fundamentalismo, se algum texto da Bíblia é frontalmente contradito pelas descobertas cien\ficas, os fundamentalistas às vezes tratam de reinterpretar o texto, geralmente dizendo que o texto não pode ser considerado literalmente (Barr, 1977-78, p. 45). Racionalismo fundamentalista? • A grande pergunta que precisa ser feita é se o fundamentalismo repudiou o modernismo e o Iluminismo como um todo ou se apenas parcialmente. Na verdade, o fundamentalismo não conseguiu se livrar do Iluminismo. Seu combate foi forte contra as ideias liberais surgidas do Iluminismo, mas ao mesmo tempo, o Iluminismo influenciou o fundamentalismo lhe dando um racionalismo árido em torno de doutrinas e fórmulas cristalizadas. • Tanto o liberalismo quanto o fundamentalismo acreditavam que poderiam provar a veracidade do cris;anismo por sua sua verdadeira origem histórica. É claro que o liberalismo fez isso abandonando a Bíblia, enquanto que o fundamentalismo fez isso tentando adequar a Bíblia à história e, com mais frequência, a história à sua própria interpretação da Bíblia. Por isso, o fundamentalismo é um movimento absolutamente entrelaçado com a modernidade, pois, “ele nunca se tornou suficientemente desiludido com a modernidade” (Oden, 1990, p. 67-68). Calvinismo e a Bíblia Reconstruir os fundamentos ou construir a casa? • O grande desafio para o calvinismo, bem como para todo o cris;anismo, parece ser o de recuperar os fundamentos. Ao longo de seu embate com a modernidade, do qual saiu em frangalhos algumas vezes, o calvinismo usou argumentos para responder à crí;ca sobre a existência de Deus ou dos milagres e, acima de tudo, para defender a Bíblia, mas agora essa pode não ser a preocupação central. Na pós-modernidade desconstrucionista, diz-se que defender a existência de uma verdade obje;va soa a fascismo e apregoar uma moral universal é ;do como um instrumento de dominação. Embora já tenha sido observado que ninguém consegue viver plenamente com essa asseveração, pois a própria pós- modernidade se torna dogmá;ca na defesa de suas teses e é ideológica sobre suas posições an;moralistas, é um fato que a mentalidade atual se recusa a aceitar, pelo menos em tese, postulados dogmá;cos. A questão da Bíblia • A questão da obje;vidade da verdade sempre foi crucial para o calvinismo. O apego à Escritura foi o instrumento principal da Reforma para resis;r a Roma. A Reforma apregoou o “Sola Scriptura”, dizendo que somente a Escritura (não o Papa, nem a igreja ou a tradição), podia dizer aquilo que devia ser aceito como verdade absoluta. Durante as Idades Média e Moderna, as pessoas acreditavam na existência de referências que podiam definir o que é verdade do que é falso. Contudo, como defender a verdade bíblica na pós-modernidade? • No caso deste estudo, primeiramente não repe;ndo um erro comum come;do na modernidade. Refere-se à tendência de interpretar a Bíblia com os óculos de uma só época. Isso se deu tanto no liberalismo quanto no fundamentalismo. O primeiro usou os óculos da modernidade para dizer que a Bíblia não era um livro sobrenatural, já o segundo, usou os óculos da modernidade para dizer que a Bíblia era um livro confiável. • Para ilustrar isso u;lizando um único ponto de discussão entre religião e modernidade, observe-se a espinhosa questão da descrição bíblica da criação do mundo. Talvez esse tenha sido o maior ponto de discussão no debate entre ciência e religião (ainda bastante sensível) por meio do sedimentado debate “evolucionismo-criacionismo”, que se desenvolveu em linhas gerais do seguinte modo: A ciência procurando negar a existência de Deus ao desmen;r que o mundo foi criado como a Bíblia descreve, e os religiosos tentando provar que a ciência estava errada e que a Bíblia estava certa. • McGrath faz uma inquietante avaliação desse debate: • DESDE O SÉCULO 19, A RELIGIÃO E A CIÊNCIA FREQUENTEMENTE PARECEM ESTAR PRESAS A UM COMBATE MORTAL, NA CULTURA OCIDENTAL. ALGUNS ESCRITORES SUGERIRAM QUE ISSO RETRATA UMA INFLUÊNCIA EXCESSIVA DE CALVINO SOBRE O CRISTIANISMO OCIDENTAL. CONTUDO, DE FORMA PARADOXAL, ISTO SE DÁ PRECISAMENTE EM RAZÃO DE CALVINO TER TIDO UMA INFLUÊNCIA MUITO PEQUENA SOBRE SEUS SEGUIDORES POSTERIORES (2004, P. 289). • As observações de McGrath são baseadas no comentário de Calvino a respeito do texto de Gênesis 1, que narra a criação do mundo em seis dias. Talvez McGrath esteja indo longe demais ao quase dizer que Calvino poderia concordar com as teorias cien\ficas, mas é um fato que, falando sobre o uso an;go das expressões “tarde-manhã” para descrever a duração do dia, Calvino diz que Moisés “acomodou seu discurso para um sistema estabelecido” (Calvino, Gn 1.5). Ou seja, Moisés u;lizou o sistema de sua época que contava o dia desse modo para fins de comunicação. • Falando contra a opinião daqueles que negavam que o mundo ;vesse sido criado em etapas, Calvino diz que, “Deus mesmo tomou o espaço de seis dias, para o propósito de acomodar suas obras para a capacidade dos homens” (Calvino, Gn 1.5). E ao fazer isso, segundo Calvino, ele se revelou ainda mais como um Deus glorioso e gracioso. • Isso está conectado ao conceito de inspiração advogado por Calvino. Calvino desenvolveu, no século 16, uma teoria incrivelmente sofis;cada sobre a natureza e a função da linguagem humana Nas Escrituras, segundo Calvino, Deus se revela por meio de palavras. Essas palavras humanas conseguem falar algo sobre Deus, mas são limitadas. Aqui está uma das grandes contribuições de Calvino para o pensamento cristão: o princípio da acomodação. Ou seja, a palavra divina adapta-se ou acomoda-se à capacidade humana, para suprir as necessidades da situação. • São muitos os textos de Calvino que descrevem esse processo. No comentário de Deuteronômio, ele assinalou: • Os crentes têm que sempre recordar que Deus não falou de acordo com sua natureza. Se ;vesse falado com sua própria linguagem, que mortal poderia ter compreendido? Não! Como ele tem nos falado na Escritura Sagrada? Tem se adaptado a nossa reduzida natureza como uma babá balbucia palavras a uma criança adaptando-se a seu nível de entendimento. Assim, Deus tem se adaptado a nós, uma vez que nunca estaríamos em condições e compreender o que ele diz, se não ;vesse se aproximado de nós. Consequentemente, ele faz o papel de uma babá na Escritura (Citado por Polmann, 1974, p. 110) • Calvino não ;nha dificuldades em entender que certos termos u;lizados na Bíblia foram acomodados para a compreensão de um povo que era, segundo suas palavras, rude, ignorante e imperfeito (Ver comentários de Calvino em Dt 22.23, Ex 24.9, Ex 33.21, Dt 30.1). Para Calvino, quando Deus fala, “ele se acomoda à nossa capacidade” (1996, p. 82, 1Co 2.7). • Onde quer que falemos dos mistérios de Deus, temos que tomar a Escritura como Guia, adotar a linguagem que ela ensina e não nos exceder nesses limites, já que Deus sabe que nossa mente não pode ascender tão alto como para compreender a ele se ;vesse que empregar palavras dignas de sua majestade, e, por isso, ele se adapta a nossa pequenez. E como uma babá balbucia ao infante, assim ele emprega uma linguagem especial para nós, de forma que possamos compreendê-lo (Citado por Polmann, 1974, p. 111)