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Introdução à Bíblia

Aula 10 – Liberais, neo-ortodoxos e fundamentalistas


Pressupostos da modernidade
• Durante os séculos 18 e 19, no alvorecer da ciência, parte crescente
dos eruditos rejeitou os conceitos dogmá;cos medievais da religião
(que já vinham sendo rejeitados desde o renascimento) e estabeleceu
novos pressupostos para o estudo da natureza, sustentando a
evolução e negando a existência dos eventos sobrenaturais. Nesse
período, o calvinismo (como todo o protestan;smo) se viu envolvido
em um relacionamento direto com os ideais do Iluminismo e da
modernidade.
Pressupostos da modernidade
• Estritamente o Iluminismo (Au#lärung do alemão:
aclarar) foi um movimento que abrangeu um conjunto
de ideias e a;tudes caracterís;cas do período de
1720-1780, como o uso livre e constru;vo da razão em
uma tenta;va de destruir velhos mitos que, segundo a
ó;ca iluminista, man;nham indivíduos e sociedades
presos à opressão do passado (McGrath, 2005, p. 125).
Contudo, é evidente que os efeitos do Iluminismo não
se restringiram às décadas citadas, estendendo-se por
todo o período moderno até os dias atuais. A principal
doutrina do Iluminismo foi que a razão humana ;nha
condições de descobrir por si mesma os mistérios do
universo.
Razão totalitária
• Com isso, não se pode dizer que na Idade Média não se
fazia uso da razão, é evidente que se fazia, mas era um
uso diferente. Para o pensamento medieval, a razão
estava a serviço da fé (“creio para entender” de
Anselmo). No Iluminismo, a razão se tornou
absolutamente autônoma e passou a medir todas as
coisas com suas próprias medidas. Em princípio, a
religião foi considerada aceitável porque podia ser
deduzida racionalmente e a revelação não era
considerada incompa\vel com a razão, porque o
aposteriorismo metodológico não estava firmemente
estabelecido. Aos poucos, porém, a razão foi
considerada superior à revelação e passou a considerá-
la obsoleta.
Impacto sobre a teologia
• Os desdobramentos do Iluminismo levaram a razão a medir a teologia
e isso produziu reações variadas. Os dois caminhos opostos mais
comuns que foram adotados pelos teólogos foram: acomodação ou
reação ferrenha. A acomodação gerou o chamado “liberalismo
teológico” e seus subprodutos. A reação ferrenha gerou o
fundamentalismo também com seus desenvolvimentos e estágios
intermediários.
Impacto sobre a teologia
• McGrath lista seis aspectos em que o Iluminismo em
seu racionalismo se chocou com o cris;anismo: a
possibilidade de milagres, o conceito de revelação, a
doutrina do pecado original, a questão do mal, o status
e a interpretação das Escrituras, a iden;dade de Jesus
Cristo e seu significado (2005, p. 129-132). Na verdade,
esse é um modo de focar em algo bem específico. Em
termos gerais, o Iluminismo tentou estabelecer uma
cosmovisão completa, na qual Deus ou o sobrenatural
não eram mais necessários, e até mesmo indesejáveis.
O escolas6cismo calvinista
O escolas9cismo calvinista
• O período pós-Reforma testemunhou o desenvolvimento
de uma abordagem fortemente escolás;ca e racional à
teologia que ficou conhecida como “escolas;cismo
protestante”. Nesse período, se sen;u a necessidade de
sistema;zar os desenvolvimentos teológicos e, para isso,
recorreu-se à filosofia grega, especialmente ao
aristotelismo. McGrath diz que “o aristotelismo que Calvino
encarava com certa suspeita, passou a ser considerado um
aliado” (2007, p. 188). Os teólogos escolás;cos calvinistas
u;lizaram as ferramentas da lógica aristotélica para tornar a
teologia reformada um sistema coerente e completo. Isso
teria começado com o próprio Beza, o sucessor de Calvino
em Genebra, embora talvez seja ir longe demais dizer que
Beza fosse um escolás;co.
Efeitos do iluminismo
• O século 18, por sua vez, viu os fortes efeitos do Iluminismo
sobre a teologia na própria cidadela da Reforma, a cidade
de Genebra. Klauber diz que nesse período, especialmente
sob os teólogos Jean-Alphonse Turre;n (1671-1737) e seu
sucessor Jacob Vernet (1698-1789), “a razão começou a
ganhar importância sobre a revelação divina e muitas das
doutrinas centrais da fé saíram da frente de discussões”
(1999, p. 257). Klauber mostra como nesse período a
Contra-Reforma deixou de ser o foco das discussões e o
envolvimento com o deísmo e o ateísmo ocupou a frente de
batalha obrigando os teólogos reformados a defender a fé
numa abordagem mais apologé;ca e radicalmente diferente
do período da Reforma, apelando para um aspecto mais
racional e tentando manter apenas aqueles aspectos da fé
que fossem compaaveis com a razão (Klauber, 1999, p. 257).
A obra do Espírito
• Klauber diz: “Jean-Alphonse Turre;n usou argumentos externos
baseados na razão para defender a verdade da Escritura rejeitando o
argumento de Calvino de que o testemunho interno do Espírito Santo
confirma a origem divina e a verdade da Escritura” (1999, p. 259).
Essa é uma informação muito importante. De acordo com a nova
concepção, as provas racionais poderiam demonstrar a origem divina
das Escrituras e, por isso, o testemunho interno do Espírito Santo
(central para Calvino) não foi mais enfa;zado.
O Testemunho do Espírito
• O ponto chave é que Calvino defendia a questão do
testemunho interno do Espírito Santo como “prova”
defini;va para o cristão da veracidade da Bíblia, não a
submissão aos testes empíricos. Calvino ficou conhecido
como “o teólogo do Espírito Santo”, pois, como talvez
nenhum outro, ele enfa;zou a importância da obra do
Espírito Santo na vida do crente, e principalmente na
Palavra de Deus. Calvino escreveu:
• Se queremos, pois, velar pelas consciências, a fim de que
não sejam de conanuo levadas de cá para lá carregadas de
dúvidas e que não vacilem nem se estanquem e se
detenham em qualquer escrúpulo, é necessário que esta
persuasão proceda de mais acima do que de razões, juízos
ou conjecturas humanas, a saber do testemunho secreto
do Espírito Santo (Ins$tutas, I,7,5).
O Testemunho do Espírito
• Calvino disse: “É verdade que se eu quisesse tratar
desta matéria com argumentos e provas, poderia aduzir
muitas coisas, as quais facilmente provariam que se há
um Deus no céu, esse Deus é o autor da Lei, dos
profetas e do Evangelho” (Ins2tutas, I,7,5). O fato,
porém, é que Calvino entendia que esse não era o
caminho correto de argumentação: “Contudo, vão fora
do caminho e pervertem a ordem os que pretendem e
se esforçam em manter a autoridade e crédito da
Escritura com argumentos e disputas” (Ins2tutas, I,7,5).
A razão é simples: “Mesmo que houvéssemos
defendido a Palavra de Deus das detrações e
murmurações dos ímpios, isso não quer dizer que por
isso logramos imprimir no coração dos homens uma
certeza tal qual exige a piedade” (Ins2tutas, I,7,5).
O Testemunho do Espírito
• Por isso, Calvino entende que somente o testemunho que o Espírito
Santo dá pode realizar isso, pois “é muito mais excelente que
qualquer outra razão” (Ins2tutas, I,7,5). A conclusão de Calvino é
límpida: “não há homem algum, a não ser que o Espírito Santo lhe
haja instruído interiormente, que descanse deveras na Escritura”
(Ins2tutas, I,7,6). Por isso, como diz Reid, “sua opinião era que a Bíblia
é reconhecida como a Palavra de Deus, não por deduções lógicas ou
por observações e testes experimentais, mas porque o Espírito Santo
tes;fica ao crente que ela é a Palavra de Deus” (Reid, 1990, p. 48).
O Racionalismo na teologia
• O fato é que os teólogos escolás;cos começaram a ter
dificuldades em defender a Bíblia sob esses termos e,
além disso, estavam empolgados em estabelecer
provas aceitáveis da confiabilidade da fé reformada.
Mackintosh resume o ;po de empolgação que parecia
comum naquela época influenciada pelo despertar do
Iluminismo com as seguintes palavras:
• Podemos defender o credo ortodoxo u;lizando-nos da
razão, e devemos fazê-lo. Mostrando-se que a verdade
cristã tem seu fundamento nas leis universais do
pensamento, ou pelo menos que há uma harmonia
com o resto de nosso conhecimento ordinário,
cons;tuirá uma verdadeira conquista para a verdade
cristã (2004, p. 23-24).
O Racionalismo e a teologia
• A razão se tornou o primeiro árbitro para a pesquisa
teológica e, desta maneira, a necessidade dos mistérios
da fé que são centrais ao Novo Testamento, como a
Encarnação de Cristo e a Trindade, ;veram espaço
secundário na teologia de J. A. Turre;n, J. Vernet e de
muitos outros eruditos reformados desse período e do
posterior. Sobre J. A. Turre;n, Klauber diz: “Ele foi o
autor de uma ortodoxia iluminista que tentou
enquadrar a fé cristã com a metodologia do
Iluminismo” (1999, p. 261). Na mesma linha, Vernet
enfa;zou a importância da teologia natural como prova
da veracidade e razoabilidade da fé, novamente
estabelecendo um lugar comum com os incrédulos
(Klauber, 1999, p. 262).
Precursor do liberalismo
• Os sucessores de Vernet foram bem além nesse
afastamento da teologia trinitária e, em 1814, o catecismo
revisado de Genebra ignorava totalmente as doutrinas da
Redenção e da Divindade de Cristo (Klauber, 1999, p. 269).
Por tudo isso, percebe-se que o escolas;cismo protestante
foi uma tenta;va de adequar a teologia às conquistas da
razão, trabalhando em um contexto em que a razão
começava a receber a máxima consideração. Como
demonstra Ramm, também parafraseando a época, “se é
esta a situação, então os teólogos cristãos devem sujeitar
elementos irracionais ou misteriosos da fé cristã à razão. As
doutrinas que ofendem a razão – em qualquer das suas
funções – devem então ser eliminadas por não serem
tópicos viáveis da teologia” (1987, p. 15). Nesse sen;do, de
certo modo, o escolas;cismo protestante foi o precursor
do liberalismo.
O Liberalismo teológico
Liberalismo
• A maior adaptação teológica já feita em relação à
modernidade foi o chamado “liberalismo teológico”. O
liberalismo teológico foi o filho legí;mo do Iluminismo,
pois “foi o esforço no sen;do de reformular a fé cristã
em harmonia com o iluminismo, e a par;r das
perspec;vas do iluminismo” (Ramm, 1987, p. 17). Foi o
modo como os teólogos modernos se adaptaram aos
novos tempos, procurando transmi;r a mensagem
cristã para o mundo moderno.
Liberalismo
• Não é possível dizer estritamente que o liberalismo teológico foi um
desenvolvimento moderno do calvinismo porque foi uma linha
teológica mais alemã e de inspiração mais luterana, mas que não
deixou de influenciar o calvinismo, pois o liberalismo influenciou a
teologia em todo o mundo, tanto no lado católico quanto no lado
protestante.
Liberalismo
• O período clássico do liberalismo foi o século 19. O
obje;vo inicial era manter o cris;anismo relevante e
intelectualmente viável para a sociedade moderna. Grenz e
Olson dizem: “Assim como Schleiermacher, os liberais
estavam decididos a reconstruir a fé cristã à luz do
conhecimento moderno. Acreditavam que certos
desenvolvimentos culturais desde o Iluminismo
simplesmente não podiam ser ignorados pela teologia
cristã, mas precisavam ser assimilados de modo posi;vo”
(2003, p. 58). Os liberais entendiam que precisavam
ter certa liberdade para tratar com os dogmas e com a
tradição a fim de adequar o cris;anismo às novas
descobertas e ao status concedido à razão pelo
Iluminismo.
Crí9ca Radical
• Como diz McGrath, “Naqueles pontos em que os
métodos clássicos de interpretação bíblica ou os
dogmas tradicionais parecessem ameaçados pelos
avanços do conhecimento humano, era impera;vo que
fossem descartados ou reinterpretados, para que se
alinhassem àquilo que agora se sabia a respeito do
mundo” (2005, p. 138-139).
• Entendendo que somente com a negação dos
pressupostos sobrenaturalistas se poderia manter a
mensagem cristã para o mundo moderno, os teólogos
liberais procuraram aplicar o método cien\fico ao
estudo das Escrituras. Esse método ficou conhecido
como crí;ca radical.
Repúdio ao sobrenatural
• O \tulo faz jus porque depois de anos de pesquisas, pouca coisa da
Escritura ficou considerada autên;ca. Entretanto, é preciso que se
entenda que a intenção não era destruir por destruir. Os liberais
entendiam que a Escritura ;nha ficado enfraquecida após as
descobertas e os novos métodos cien\ficos e que não era mais
possível falar em inspiração verbal, então, resolveram abrir mão
daquelas partes da Bíblia que apelavam para o sobrenatural para
manter a essência do cris;anismo que eles entendiam como sendo a
manifestação do reino de Deus em termos é;cos.
O Jesus Histórico
• Uma grande busca dos teólogos liberais foi a do chamado
“Jesus histórico”. Acreditando que o verdadeiro Jesus teria
sido distorcido pelos Evangelhos que criaram o “Cristo da
fé”, os liberais queriam descobrir o Jesus de Nazaré por
detrás do mito. Para isso, empreenderam uma verdadeira
odisseia em busca do personagem Jesus, o carpinteiro da
Galileia. Uma vez que a ideia de um mestre sobrenatural
era inaceitável para os ideais do Iluminismo, os teólogos se
dispuseram a encontrar um mestre do bom senso por
detrás dos mitos criados em torno da figura de Jesus. Um
homem comum, porém cheio de sabedoria e bom senso,
se encaixava bem melhor em seus pressupostos do que um
homem divino que andava sobre as águas e ressuscitava
mortos. Encontrar esse “homem” seria um modo de
validar o próprio método do liberalismo.
O Jesus Histórico
• O primeiro grande teólogo a se lançar nessa busca foi Hermann
Samuel Reimarus (1694-1798). Ele defendeu uma teoria de que Jesus
foi apenas um revolucionário políLco que foi condenado e morto, mas
cujos discípulos não se conformaram e criaram o mito da ressurreição
e da redenção espiritual. Para ele, o verdadeiro Jesus da história Lnha
sido ocultado pela igreja apostólica e em seu lugar colocado um Cristo
redentor ficTcio. Apesar de ter havido pelo menos mais duas
tentaLvas de descobrir o Jesus histórico depois de Reimarus (McGrath,
2007, p. 292-303). O fato é que essa busca se demonstrou totalmente
infruTfera. Quase não há informações de Jesus fora da Bíblia. E fazer
“corte e recorte” dos textos bíblicos para montar um personagem é
uma tarefa totalmente subjeLva e de resultado imprevisível. De fato,
“a história da pesquisa da vida de Jesus é a história do fracasso desta
pesquisa” (Goppelt, 1976, p. 22). Gerd Theissen e Annece Merz listam
cinco fases na busca do Jesus histórico: A primeira, com Reimarus e D.
F. Strauss; a segunda, através do oLmismo da pesquisa liberal sobre a
vida de Jesus; a terceira, como o colapso da pesquisa sobre a vida de
Jesus; a quarta, como a nova pergunta pelo Jesus histórico; e a quinta
fase como a terceira pergunta pelo Jesus histórico (2002, p. 21-30).
História da religião
• Como não foi possível encontrar o Jesus histórico, o foco da pesquisa
mudou. As influências racionalistas (e an;ssobrenaturalistas), como
diz Ladd, quando focalizadas sobre o estudo da teologia, levaram à
conclusão de que a erudição não deveria procurar uma teologia na
Bíblia, mas apenas a história da religião (1997, p. 14). Isso porque a
Bíblia foi considerada apenas uma compilação de escritos religiosos
an;gos, que preservavam em alguma medida a história de um povo
semí;co an;go, e que devia ser estudada apenas sob uma
perspec;va histórica.
Sonho dourado
• Apesar de bem intencionada, ao ser seduzida pelo Iluminismo, a
crí;ca radical destroçou a Bíblia, deixando apenas um conjunto
de regras é;cas e morais, absolutamente esvaziadas do impacto
original do cris;anismo e que acabou sendo, curiosamente,
totalmente irrelevante para a sociedade moderna. Nesse ponto,
talvez, esteja a maior crí;ca ao liberalismo teológico: Sua “boa
intenção” provou-se ineficaz. McGrath diz que “o liberalismo foi
inspirado pela visão de uma humanidade em ascensão rumo a
novas esferas de progresso e prosperidade” (2007, p. 252).
Seguindo os rumos da mentalidade moderna de que a razão
traria uma era dourada de paz e prosperidade mundial, o
liberalismo viu no cris;anismo somente a base da é;ca dessa
nova sociedade evoluída. O fato é que essa sociedade evoluída
jamais deixou de ser apenas um sonho, como a pós-
modernidade por fim deixou claro.
Método infalível
• Atualmente, o que se percebe é que estudiosos da época do
Iluminismo e após ele, como Schleiermacher (1768-1834), Ritschl
(1822-1889) e Harnack (1851-1930), que rejeitaram as informações
dos Evangelhos, estavam tentando ler a Bíblia com os conceitos de
sua própria época. Ao tentar comunicar a mensagem do evangelho
para o homem pós-iluminista, o liberalismo teológico subsLtuiu o
conceito de infalibilidade das Escrituras pelo da “infalibilidade” do
método cienTfico, seguindo os tempos e épocas de sua própria
geração. Nesse senLdo, ele se demonstrou um movimento
extremamente falível por duas razões: por considerar a
homogeneidade da experiência religiosa universal num senLdo
totalizante Tpico do Iluminismo e por tornar a mensagem cristã
subserviente à cultura. Embora Schleiermacher não seja
estritamente um “liberal”, uma vez que ele é anterior ao liberalismo
teológico e ao método histórico críLco. Na verdade, com sua ênfase
no senLmento em relação ao racionalismo do Iluminismo,
Schleiermacher serviu como ponto de controvérsia que originou o
próprio liberalismo (McGrath, 2005, p. 133-135).
O Liberalismo acabou?
• O liberalismo não acabou. Apesar de a neo-ortodoxia, como se tratará
abaixo, ter dado um golpe poderoso no liberalismo, ele con;nua no
mundo, propondo uma reformulação da fé cristã para os patamares
modernos e “se considerando um mediador entre duas alterna;vas
inaceitáveis: a mera repe;ção da fé cristã tradicional (normalmente
descrita por seus crí;cos liberais como ‘tradicionalismo’ ou
fundamentalismo’) e a rejeição total do cris;anismo” (McGrath, 2007,
p. 253).
A neo-ortodoxia
A neo-ortodoxia
• Uma forte tenta;va de reação ao racionalismo do liberalismo
teológico foi o movimento que ficou conhecido como “neo-
ortodoxia”. Mais do que o liberalismo, a neo-ortodoxia foi
um movimento de forte inspiração calvinista.
• Percebendo o fracasso do velho liberalismo em
encontrar o Jesus histórico e desanimados com o forte
racionalismo iluminista da teologia liberal, uma nova geração
de pensadores influenciados pelo existencialismo filosófico e
liderados pelo célebre teólogo reformado alemão, Karl Barth
(1886-1968), fundou um movimento de tenta;va de retorno
à Reforma e à Palavra de Deus, tentando buscar algo mais do
que a pesquisa meramente histórica poderia oferecer.
Karl Barth
• Karl Barth, pastor reformado de 1911 a 1921 na aldeia de Safenwil no
cantão de Aargau, na Suíça, foi o homem que deu o golpe de
misericórdia no an;go liberalismo com seu comentário de Romanos,
estava completamente desanimado com os resultados e com o
próprio método do liberalismo, que não oferecia nada para o
pregador.
• O apoio de seus an;gos mestres liberais à Primeira Guerra
Mundial o fez ver que havia algo de terrivelmente errado na teologia
deles.
Karl Barth
• Quando escreveu seu famoso comentário sobre Romanos,
que marcou época e foi o primeiro (e talvez maior) golpe
aos ideais e métodos do liberalismo, no prefácio à primeira
edição, ele disse as palavras que todos naquela época
queriam ouvir:
• O método histórico-crí;co aplicado ao estudo da Bíblia
prepara a mente ao que é sempre ú;l; porém, se eu fora
constrangido a optar entre esse método e a arcaica doutrina
da inspiração eu, decididamente, escolheria por esta, pois
ela é, de direito, maior, mais profunda e mais importante;
porque a inspiração visa ao próprio processo do
entendimento sem o que toda e qualquer estruturação do
raciocínio é vã. Sinto-me feliz por não precisar escolher
entre essas duas formas (2002, p. 13).
Método de Barth?
• É dipcil categorizar um homem como Karl Barth. Sua
teologia sempre esteve em mutação e ele morreu sem
concluir sua maior obra. É dipcil até mesmo estabelecer qual
foi o método teológico de Barth. Ele próprio disse no
prefácio da sua segunda edição da carta aos Romanos
(1922):
• Se tenho um sistema, este se restringe em mente, tanto
quanto possível, àquilo que Kierkegaard chamou de
‘dis;nção qualita;va infinita’ entre o tempo e a eternidade
em seus aspectos nega;vos e posi;vos. ‘Deus está no céu e
você está na terra’. Para mim, a relação entre esse Deus e
essa pessoa, a relação entre essa pessoa e esse Deus é, em
resumo, o tema da Bíblia e a totalidade da filosofia. Os
filósofos chamam isso de crise humana de conhecimento da
causa primária; a Bíblia vê Jesus Cristo nessa encruzilhada
(Apud McGrath, 2007b, p. 360).
Teologia da Crise
• Talvez em virtude dessa declaração, a teologia de Barth ficou
conhecida como “teologia da crise”, ou “teologia dialé;ca”. Outros
preferiram chamar de “teologia cristocêntrica”, ou de “teologia da
Palavra de Deus”. É preciso fazer jus;ça a Barth e reconhecer que,
posteriormente, ele abandonou o existencialismo e procurou re;rar
da segunda edição da sua Dogmá;ca qualquer referência ao
existencialismo (Mackintosh, 2004, p. 280), mas o que fica evidente é
a completa dis;nção entre o método de Barth e de seus
predecessores liberais.
Barth e Calvino
• Não há a menor possibilidade de localizar o
relacionamento com Deus por meio da cultura ou da
história. Deus é transcendente. Não parece ter havido em
Barth um esforço em adequar a teologia à modernidade
(como se vê em Bultmann). Talvez Oden esteja certo: ele é
muito mais um pré-moderno do que um “moderno”
(1990, p. 65). Nesse sen;do, a visão barthiana não pode
ser considerada realmente plenamente calvinista, pois ela
diminuiu a amplitude do calvinismo e prejudicou a relação
com todos os aspectos da vida. Em uma palavra: ela o
re;rou do mundo. Calvino queria a religião no mundo. Por
outro lado, Barth foi bem além de Calvino em seu
cristocentrismo que pra;camente virava um
“cristomonismo” e em seu universalismo soteriológico.
Rudolph Bultmann
• Apesar de Barth ter sido a grande estrela da neo-ortodoxia,
outro teólogo polarizou a atenção devido aos seus estudos
no Novo Testamento: Rudolf Bultmann (1884-1976).
Bultmann estava muito mais envolvido com os ideais da
modernidade do que Barth, e manteve a ênfase
existencialista mesmo depois de Barth desis;r dela.
Bultmann fez um esforço por recuperar a mensagem do
Novo Testamento para o homem moderno, e fez isto não
tentando re;rar os mitos (milagres) da Bíblia, como fazia o
liberalismo, mas interpretá-los (ou melhor, reinterpretá-
los), para que a mensagem (kerygma) falasse ao homem
moderno.
Bultmann
• Bultmann não acreditava no método da teologia liberal, mas
também não acreditava em milagres. Sua proposta foi
diferente, mas talvez tenha acabado no mesmo lugar: Ele
propôs que, ao invés de “demi;zar” a Bíblia, ela deveria ser
“desmitologizada”. Ele não propôs um trabalho de tesoura
na Bíblia para recortar e jogar fora tudo o que fosse
sobrenatural como faziam os an;gos liberais, mas que esses
eventos fossem interpretados para que a mensagem desses
mitos falasse ao homem moderno. Os mitos ficavam lá,
porém sua mensagem era redescoberta. De qualquer modo,
o milagre como evento histórico foi descartado.
• Bultmann foi fortemente influenciado pela interpretação
existencialista da história. Cristo da fé X Jesus Histórico
Racionalismo e subje9vismo
• A neo-ortodoxia não foi realmente uma volta à ortodoxia,
apesar da admiração de Barth por Calvino, pois não trouxe
de volta os fundamentos bíblico-históricos dos
reformadores, antes, lançou a teologia do Novo Testamento
no subje;vismo. É interessante que Brunner, ainda na
década de 20, tenha percebido que o rela;vismo brotava do
modernismo, pois declarou: “O homem moderno não crê
mais num absoluto, em qualquer forma que ele possa ser
oferecido, quer aquele da fé cristã, do idealismo, ou do
mis;cismo. Se ele crê em alguma coisa é em absoluta
incerteza” (2000, p. 31). A teologia neo-ortodoxa, com seu
igual abandono da autoridade da Escritura e com sua ênfase
exagerada no transcendente, e seu fideísmo, em nada
contribuiu para reverter este processo, só o acelerou ainda
mais.
O fundamentalismo
O fundamentalismo
• No século 19, com o crescimento do liberalismo teológico
radical entre as principais denominações históricas dos
Estados Unidos, teólogos conservadores se coligaram para
defender a fé cristã diante dos ataques do liberalismo nos
seminários e nas igrejas. Assim, de 1910 a 1915, em uma
série de ar;gos em 12 volumes ins;tuídos “Os
Fundamentos”. Os pontos fundamentais da fé cristã foram
expostos e defendidos, e o modernismo foi atacado em seus
pressupostos fundamentais. Em virtude disso, as pessoas
que advogaram este movimento ficaram conhecidas como
“fundamentalistas”. Entre elas, um número grande se dizia
calvinista. O termo “fundamentos” foi usado para os
elementos das doutrinas tradicionais da inspiração e
autoridade da Escritura, da divindade de Jesus, do
nascimento virginal, dos milagres, etc.
O fundamentalismo
• O fundamentalismo é baseado em um ;po par;cular de
tradição religiosa e usa a forma (mais do que a realidade)
da autoridade bíblica para providenciar um campo para sua
tradição (Barr, 1977-78, p. 11). Barr entende que o
fundamentalismo se deriva diretamente dos reavivamentos
evangélicos dos séculos 18 e 19, mas não tem apenas um
aspecto emo;vo, pois acumulou uma considerável
estrutura intelectual (1977-78, p. 11, 18). O
fundamentalismo produz “uma ansiedade a respeito da
garan;a da doutrina pura” (1977-78, p. 13), sempre está
atento às conspirações contra a verdade e a pureza do
evangelho e faz questão de estabelecer a diferença entre os
verdadeiros cristãos e os cristãos nominais.
A inerrância das Escrituras
• A principal doutrina do fundamentalismo é a doutrina
da “inspiração e inerrância da Escritura”. Segundo Barr,
os fundamentalistas insistem que a Bíblia não tem
qualquer imprecisão, quer seja em termos de doutrina,
geologia, astronomia, ou o que quer que seja, pois ela
não tem qualquer ;po de erro (1977-78, p. 40). É
interessante que, como visto acima, Hodge admi;a
algum ;po de imprecisão e não achava que isso
comprometesse a inspiração. Para os fundamentalistas,
a menor imprecisão inviabilizava o projeto inteiro. Esse
rigor se parece bastante com o método cien\fico de
provar racionalmente algo para que seja verdadeiro.
Interpretação das Escrituras
• Um aspecto muito interessante que Barr destaca dos
fundamentalistas é que eles procuravam estar em conformidade com
as descobertas cien\ficas, mas certamente não ao es;lo da “Old
Princeton”. Na verdade, para o fundamentalismo, se algum texto da
Bíblia é frontalmente contradito pelas descobertas cien\ficas, os
fundamentalistas às vezes tratam de reinterpretar o texto, geralmente
dizendo que o texto não pode ser considerado literalmente (Barr,
1977-78, p. 45).
Racionalismo fundamentalista?
• A grande pergunta que precisa ser feita é se o
fundamentalismo repudiou o modernismo e o Iluminismo
como um todo ou se apenas parcialmente. Na verdade, o
fundamentalismo não conseguiu se livrar do Iluminismo. Seu
combate foi forte contra as ideias liberais surgidas do
Iluminismo, mas ao mesmo tempo, o Iluminismo influenciou
o fundamentalismo lhe dando um racionalismo árido em
torno de doutrinas e fórmulas cristalizadas.
• Tanto o liberalismo quanto o fundamentalismo acreditavam
que poderiam provar a veracidade do cris;anismo por sua
sua verdadeira origem histórica. É claro que o liberalismo fez
isso abandonando a Bíblia, enquanto que o fundamentalismo
fez isso tentando adequar a Bíblia à história e, com mais
frequência, a história à sua própria interpretação da Bíblia.
Por isso, o fundamentalismo é um movimento absolutamente
entrelaçado com a modernidade, pois, “ele nunca se tornou
suficientemente desiludido com a modernidade” (Oden,
1990, p. 67-68).
Calvinismo e a Bíblia
Reconstruir os fundamentos ou construir a
casa?
• O grande desafio para o calvinismo, bem como para todo o
cris;anismo, parece ser o de recuperar os fundamentos. Ao
longo de seu embate com a modernidade, do qual saiu em
frangalhos algumas vezes, o calvinismo usou argumentos para
responder à crí;ca sobre a existência de Deus ou dos milagres
e, acima de tudo, para defender a Bíblia, mas agora essa pode
não ser a preocupação central. Na pós-modernidade
desconstrucionista, diz-se que defender a existência de uma
verdade obje;va soa a fascismo e apregoar uma moral
universal é ;do como um instrumento de dominação. Embora
já tenha sido observado que ninguém consegue viver
plenamente com essa asseveração, pois a própria pós-
modernidade se torna dogmá;ca na defesa de suas teses e é
ideológica sobre suas posições an;moralistas, é um fato que a
mentalidade atual se recusa a aceitar, pelo menos em tese,
postulados dogmá;cos.
A questão da Bíblia
• A questão da obje;vidade da verdade sempre foi crucial
para o calvinismo. O apego à Escritura foi o instrumento
principal da Reforma para resis;r a Roma. A Reforma
apregoou o “Sola Scriptura”, dizendo que somente a
Escritura (não o Papa, nem a igreja ou a tradição), podia
dizer aquilo que devia ser aceito como verdade
absoluta. Durante as Idades Média e Moderna, as
pessoas acreditavam na existência de referências que
podiam definir o que é verdade do que é falso. Contudo,
como defender a verdade bíblica na pós-modernidade?
• No caso deste estudo, primeiramente não repe;ndo um erro comum
come;do na modernidade. Refere-se à tendência de interpretar a
Bíblia com os óculos de uma só época. Isso se deu tanto no
liberalismo quanto no fundamentalismo. O primeiro usou os óculos
da modernidade para dizer que a Bíblia não era um livro sobrenatural,
já o segundo, usou os óculos da modernidade para dizer que a Bíblia
era um livro confiável.
• Para ilustrar isso u;lizando um único ponto de
discussão entre religião e modernidade, observe-se a
espinhosa questão da descrição bíblica da criação do
mundo. Talvez esse tenha sido o maior ponto de
discussão no debate entre ciência e religião (ainda
bastante sensível) por meio do sedimentado debate
“evolucionismo-criacionismo”, que se desenvolveu em
linhas gerais do seguinte modo: A ciência procurando
negar a existência de Deus ao desmen;r que o mundo
foi criado como a Bíblia descreve, e os religiosos
tentando provar que a ciência estava errada e que a
Bíblia estava certa.
• McGrath faz uma inquietante avaliação desse debate:
• DESDE O SÉCULO 19, A RELIGIÃO E A CIÊNCIA FREQUENTEMENTE PARECEM ESTAR
PRESAS A UM COMBATE MORTAL, NA CULTURA OCIDENTAL. ALGUNS ESCRITORES
SUGERIRAM QUE ISSO RETRATA UMA INFLUÊNCIA EXCESSIVA DE CALVINO SOBRE O
CRISTIANISMO OCIDENTAL. CONTUDO, DE FORMA PARADOXAL, ISTO SE DÁ
PRECISAMENTE EM RAZÃO DE CALVINO TER TIDO UMA INFLUÊNCIA MUITO
PEQUENA SOBRE SEUS SEGUIDORES POSTERIORES (2004, P. 289).
• As observações de McGrath são baseadas no
comentário de Calvino a respeito do texto de Gênesis
1, que narra a criação do mundo em seis dias. Talvez
McGrath esteja indo longe demais ao quase dizer que
Calvino poderia concordar com as teorias cien\ficas,
mas é um fato que, falando sobre o uso an;go das
expressões “tarde-manhã” para descrever a duração do
dia, Calvino diz que Moisés “acomodou seu discurso
para um sistema estabelecido” (Calvino, Gn 1.5). Ou
seja, Moisés u;lizou o sistema de sua época que
contava o dia desse modo para fins de comunicação.
• Falando contra a opinião daqueles que negavam que o mundo ;vesse
sido criado em etapas, Calvino diz que, “Deus mesmo tomou o espaço
de seis dias, para o propósito de acomodar suas obras para a
capacidade dos homens” (Calvino, Gn 1.5). E ao fazer isso, segundo
Calvino, ele se revelou ainda mais como um Deus glorioso e gracioso.
• Isso está conectado ao conceito de inspiração
advogado por Calvino. Calvino desenvolveu, no século
16, uma teoria incrivelmente sofis;cada sobre a
natureza e a função da linguagem humana Nas
Escrituras, segundo Calvino, Deus se revela por meio
de palavras. Essas palavras humanas conseguem falar
algo sobre Deus, mas são limitadas. Aqui está uma das
grandes contribuições de Calvino para o pensamento
cristão: o princípio da acomodação. Ou seja, a palavra
divina adapta-se ou acomoda-se à capacidade humana,
para suprir as necessidades da situação.
• São muitos os textos de Calvino que descrevem esse
processo. No comentário de Deuteronômio, ele assinalou:
• Os crentes têm que sempre recordar que Deus não falou de
acordo com sua natureza. Se ;vesse falado com sua própria
linguagem, que mortal poderia ter compreendido? Não!
Como ele tem nos falado na Escritura Sagrada? Tem se
adaptado a nossa reduzida natureza como uma babá
balbucia palavras a uma criança adaptando-se a seu nível de
entendimento. Assim, Deus tem se adaptado a nós, uma vez
que nunca estaríamos em condições e compreender o que
ele diz, se não ;vesse se aproximado de nós.
Consequentemente, ele faz o papel de uma babá na
Escritura (Citado por Polmann, 1974, p. 110)
• Calvino não ;nha dificuldades em entender que certos termos
u;lizados na Bíblia foram acomodados para a compreensão de um
povo que era, segundo suas palavras, rude, ignorante e imperfeito
(Ver comentários de Calvino em Dt 22.23, Ex 24.9, Ex 33.21, Dt 30.1).
Para Calvino, quando Deus fala, “ele se acomoda à nossa capacidade”
(1996, p. 82, 1Co 2.7).
• Onde quer que falemos dos mistérios de Deus, temos
que tomar a Escritura como Guia, adotar a linguagem
que ela ensina e não nos exceder nesses limites, já que
Deus sabe que nossa mente não pode ascender tão alto
como para compreender a ele se ;vesse que empregar
palavras dignas de sua majestade, e, por isso, ele se
adapta a nossa pequenez. E como uma babá balbucia ao
infante, assim ele emprega uma linguagem especial para
nós, de forma que possamos compreendê-lo (Citado por
Polmann, 1974, p. 111)

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