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Série Comentários Bíblicos – Gênesis, Volume 1

João Calvino

Traduzido do inglês: Calvin’s Commentaries: Commentary on the book of Genesis by John


Calvin.

Publicado originalmente em latim, em 1554.

Edição baseada na tradução inglesa (1847) de John King M. D. Também foi consultada a
edição inglesa de James Anderson, publicada por Baker Book House, Grand Rapids, MI,
USA, 1998.

Copyright © 2018 Editora CLIRE – Centro de Literatura Reformada.

1.a edição em português: 2018

Todos os direitos em língua portuguesa desta edição reservados por Editora CLIRE.

CONSELHO EDITORIAL:
Kenneth Wieske
Jim Witteveen
Adriano Gama
Waldemir Magalhães
Ademir Souza

PRODUÇÃO EDITORIAL
Editor: Waldemir Magalhães
Colaborador: Manoel Canuto
Tradutor: Valter Graciano Martins
Revisores: Gerson Júnior, Waldemir Magalhães
Designer: Heraldo Almeida
www.editoraclire.com.br
S U MÁ R IO

Capa
Créditos
Prefácio à edição brasileira
Epístola dedicatória do autor
Argumento
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23

Nossos livros
Mídias
“A Palavra não pode ser separada do Espírito. É o espírito de
Satanás que é separado da Palavra, não o Espírito Santo de
Deus”
Prefácio à edição brasileira
João Calvino é reconhecido, por todos aqueles que efetivamente
leem e estudam seus escritos, como um dos maiores comentaristas
da Bíblia de todos os tempos. Não é difícil perceber que ele não
apenas tinha preparo intelectual como também demonstrava reve-
rência e submissão à Palavra de Deus. De fato, ele considerava a
Palavra escrita como inspirada, inerrante, autoritativa e infalível.
Além disso, ele acreditava que essa Palavra e o Espírito Santo são
unidos de modo inseparável e, por essa razão, o Espírito age por
meio dela.
Calvino foi um dos primeiros a aplicar princípios de exegese
bem fundamentada. Ele também acreditava que a verdadeira tarefa
do intérprete é encontrar o significado do texto a partir do próprio
texto – a Bíblia interpreta a própria Bíblia. Sua habilidade exegética
o conduzia sempre à concisão, simplicidade, clareza, precisão, pro-
fundidade, fidelidade e aplicação. Um dos objetivos de todo o seu
trabalho exegético era pastoral, pois em cada linha ele busca o nos-
so coração com o propósito de levá-lo cativo à adoração e à obedi-
ência a Deus.
Calvino não procurava deleitar-se em um mero academicismo,
embora não se afastasse totalmente dele. Isso fica claro pelo conhe-
cimento e habilidade que ele possuía das línguas originais da Bíblia
(hebraico e grego) e também do latim. Ele detestava especulações e
rejeitava interpretações alegóricas. Quando se deparava com os
mistérios da Palavra de Deus, exclamava: “as coisas reveladas são
para nós, as ocultas para nosso Deus”; dessa forma limitava-se de
modo absoluto ao “Assim diz o Senhor”. Mas isso não significa que
ele não recorria aos clássicos da exegese bíblica de que dispunha.
Na verdade, ele não apenas os conhecia, mas também frequente e
abundantemente os citava.
É exatamente isso o que encontraremos na Série Comentários
Bíblicos de João Calvino, começando por este primeiro volume de
Gênesis.
Publicado em latim, em 1554, Gênesis não foi o primeiro livro
comentado por Calvino. Mas ser o primeiro livro desta Série é de ab-
soluta importância porque o livro de Gênesis é a chave para a corre-
ta interpretação e entendimento de toda a Bíblia, pois, é nele que
encontramos os relatos centrais da revelação de Deus: Criação,
Queda e Redenção. Mais especificamente, é nele que encontramos
a primeira revelação de Deus e o protoevangelho pregado por ele
mesmo, quando anunciou pela primeira vez o Senhor e Salvador Je-
sus Cristo: “da semente da mulher virá um que esmagará a cabeça
da serpente”. Uma interpretação errada de Gênesis irá comprometer
o restante da interpretação da Bíblia.
Embora sua análise dos primeiros capítulos do livro de Gênesis
seja detalhado, não é prolixo, e as narrativas posteriores referentes
a Noé, Abraão, Isaque, Jacó e José não são tratadas de modo su-
perficial. De fato, Calvino expõe os princípios do relacionamento
pactual de Deus com a sua criação, e mostra, fiel e francamente,
mas com ternura e coração pastoral, a fraqueza e o pecado de toda
a humanidade, uma vez que a nossa queda e a nossa miséria são
claramente descritas em Gênesis. Porém, igualmente evidente é a
promessa de consolação por intermédio do “Descendente da Mu-
lher”, que também é claramente exposta.
Finalmente, Calvino acreditava firmemente que a compreensão
dessas verdades depende da iluminação do Espírito Santo, e que
isso somente é possível por meio da oração. Pois, para ele, “os te-
souros da sabedoria celestial” estão fora do alcance da cultura hu-
mana. Sim, pois esses mistérios estavam ocultos até serem revela-
dos pelo Espírito de Deus. Dessa maneira, Calvino humilha toda a
arrogância da sabedoria humana.
Em síntese, todo o trabalho de Calvino visava um único objeti-
vo: servir a Deus e edificar a Igreja.
— Os editores.
Epístola dedicatória do autor

J O Ã O C A LV I N O

Ao ilustríssimo Príncipe Henrique,


Duque de Vendome,
Herdeiro do Reino de Navarra.1

Se muitos censuram meu propósito, mui ilustre Príncipe, em ousar-


me a dedicar-te esta obra, para que a mesma venha à luz sanciona-
da por teu nome, nada novo ou inesperado me terá sucedido. Pois
eles podem objetar que, por tal dedicatória, o ódio dos perversos,
que já estão mais do que exasperados contra ti, se inflamará ainda
mais. Mas, visto que, em tua tenra idade,2 em meio a vários alarmes
e ameaças, Deus te inspirou com tal magnanimidade que nunca te
desviaste da sincera e simples profissão da fé, não vejo que prejuí-
zo podes sofrer por teres essa profissão, a qual desejas que seja
abertamente manifesta a todos, confirmada por meu testemunho.
Portanto, posto que não te envergonhas do evangelho de Cristo,
essa tua independência me dá justa base de confiança para parabe-
nizar-te por um começo tão promissor, e para exortar-te à invencível
constância no futuro. Pois aquela versatilidade que pertence aos se-
res racionais é a propriedade comum dos jovens, até que seu cará-
ter se torne mais amadurecido. Entretanto, por mais desagradável
que o meu labor seja a alguns, se ele for aprovado (como espero
que o seja) por tua nobilíssima mãe, a Rainha,3 então terei condi-
ções de desprezar tanto os juízos injustos como as calúnias malicio-
sas dos opositores; pelo menos por eles, não serei desviados do
meu propósito. Em uma coisa é possível ter eu agido com pouca
consideração, a saber, em não havê-la consultado, a fim de nada
tentar senão o que estivesse em concordância com o juízo e desejo
dela; contudo, por essa omissão eu tenho à mão uma desculpa. Se,
de fato, eu deixei de consultá-la por negligência, devo me condenar
como culpado não apenas de imprudência, mas também de precipi-
tação e arrogância.
Quando, porém, eu perdi toda esperança de tão cedo obter
uma publicação, posto que o Tipógrafo adiaria até a próxima prima-
vera, pensei ser desnecessário, por certas razões, apressar minha
obra. Entretanto, enquanto outros insistiam mais veementemente
sobre isso do que eu, de repente recebi uma mensagem de que a
obra poderia estar acabada em quinze dias, algo que antes eu have-
ria pertinazmente recusado. Assim, além de minha expectativa, con-
tudo não contrário ao meu desejo, fui privado da oportunidade de
lhe pedir permissão. Contudo, a excelentíssima Rainha se animou
por tal zelo pela propagação da doutrina de Cristo e a pura fé e pie-
dade, que já não me sinto sob qualquer ansiedade extrema sobre se
ela voluntariamente irá aprovar esse meu serviço e o defender com
seu apoio. Ela, de modo algum, dissimula seu absoluto afastamento
das superstições e corrupções com que a verdadeira religião tem
sido desfigurada e poluída. E, em meio às turbulentas agitações pe-
las quais passa o reino da França, tem-se tornado evidente, por
convincentes provas, que, mesmo sendo mulher, lidera como um
homem. E eu desejo que até mesmo os homens se sintam envergo-
nhados, e que essa útil “inveja” os estimule a imitarem seu exemplo.
Pois ela se conduziu com uma modéstia tão peculiar, que raramente
alguém presumiria ser ela capaz de suportar os mais violentos ata-
ques, e, ao mesmo tempo, corajosamente resisti-los. Além disso,
apenas poucas pessoas (dentre as quais eu me encontro) são teste-
munhas de quão profundamente Deus a exercitou com conflitos in-
ternos.
Verdadeiramente tu, ilustríssimo Príncipe, não precisas buscar
um melhor exemplo, com o propósito de moldar tua própria mente
ao perfeito padrão de todas as virtudes. Considera-te obrigado, de
uma maneira especial, a aspirar, a lutar, a labutar pela concretização
desse objetivo. Porque, como a heroica disposição que brilha em ti
te deixará ainda menos desculpável, caso te degeneres a ti mesmo,
assim a educação, auxílio incomum para uma excelente disposição,
é igualmente outro vínculo para permaneceres em teu dever. Pois a
instrução liberal tem sido sobejamente acrescentada à disciplina só-
bria. Já envolvido com os rudimentos da literatura, não tens rejeita-
do (como quase todos costumam fazer) esses estudos com descon-
tentamento, mas ainda avanças com entusiasmo no cultivo de teu
gênio. Ora, ao lançar este livro a público sob teu endosso, meu de-
sejo é que ele te induza eficazmente a professares mais livremente
como um discípulo de Cristo; justamente como se Deus, estendendo
sua mão sobre ti, estivesse te reivindicando novamente para si. E,
de fato, não podes dar nenhuma recompensa mais pura à Rainha,
tua mãe, recompensa essa que não pode ser estimada de um modo
mais sublime do que ouvir que estás fazendo contínuo progresso na
piedade.
Embora muitas coisas contidas neste livro estejam além da ca-
pacidade de tua idade, não estou agindo irracionalmente por ofere-
cê-lo à tua leitura, inclusive ao teu atento e diligente estudo. Pois
visto que o conhecimento das coisas antigas é prazeroso aos jo-
vens, tu logo atingirás aqueles anos em que a História da Criação
do Mundo, e também da grande parte da Antiga Igreja, ocuparão
teus pensamentos com igual proveito e deleite. E, certamente, se
Paulo com razão condena a perversa estupidez dos homens porque
com olhos fechados ignoram o esplêndido espelho da glória de
Deus que lhes está constantemente presente na estrutura do mundo
e, assim, injustamente suprimem a luz da verdade, não menos vil e
vergonhosa tem sido aquela ignorância da origem e criação da raça
humana que tem prevalecido em quase todas as épocas. De fato, é
provável que, logo após a construção de Babel, a memória daquelas
coisas que deveriam ter sido discutidas e celebradas foi suprimida.
Pois visto que para os homens profanos sua dispersão seria um tipo
de emancipação do puro culto divino, não cuidaram de levar consi-
go, para todas as regiões da terra que porventura visitassem, o que
ouviram de seus pais acerca da Criação do Mundo, ou da sua sub-
sequente restauração. Daí haver sucedido que nenhuma nação,
com a única exceção da posteridade de Abraão, conheceu por mais
de dois mil anos sucessivos, ou de que fonte ela proveio, ou quando
a universal raça do homem começou a existir. Pois Ptolomeu, ao
prover, por fim, que os Livros de Moisés fossem traduzidos para o
grego,4 realizou uma obra que era mais louvável do que útil (ao me-
nos para aquele período), posto que a luz que ele tentava trazer às
trevas fora, no entanto, abafada e ocultada pela negligência dos ho-
mens. Disso se pode facilmente deduzir que, os que deveriam ter
empregado toda a força da razão para obterem conhecimento do
Criador do mundo, por uma maligna impiedade se envolveram, ao
contrário, em voluntária cegueira.
Nesse ínterim, as ciências liberais floresceram, os homens de
exaltado gênio se ergueram, tratados de todos os tipos se publica-
ram; mas concernente à História da Criação do Mundo, pairou um
profundo silêncio. Além do mais, o maior dos filósofos,5 que exce-
deu a todos os demais em agudeza e erudição, aplicou toda a habili-
dade que possuía em defraudar a Deus de sua glória, disputando
em favor da eternidade do mundo. Embora seu mestre, Platão, fora
um pouco mais religioso e mostrou maior interesse por conhecimen-
to mais amplo, corrompeu e misturou, com tantas ficções, os pau-
pérrimos princípios da verdade que recebera, que esse tipo fictício
de ensino seria mais injurioso do que aproveitável. Além do mais,
aqueles que se dedicaram a escrever a história, ainda que fossem
homens engenhosos e de cultura mui elevada, e embora se glorias-
sem arrogantemente de que estavam para tornar-se testemunhas
de uma mais remota antiguidade, contudo, antes mesmo de atingi-
rem o auge, como nos tempos de Davi, entretêm seus escritos com
um misto tão confuso, que tais escórias os têm privado de toda cla-
reza; e, quando remontam ainda mais, amontoam uma imensa
quantidade de mentiras, e ficam mui longe de alcançar, por uma ge-
nuína e clara conexão de narrativa, a verdadeira origem do mundo.
Os egípcios também constituem uma evidente prova de que os ho-
mens se tornaram conscientemente ignorantes das coisas que não
teriam que buscar muito, se meramente estivessem dispostos a afei-
çoar suas mentes à investigação da verdade; pois ainda que a lâm-
pada da palavra de Deus resplandecesse às suas próprias portas,
contudo, sem qualquer pudor, propagariam as exuberantes fábulas
de sua invenção, quinze mil anos antes da fundação do mundo. Não
menos pueril e absurda é a fábula dos atenienses, os quais se ufa-
naram de que são oriundos de seu próprio solo,6 mantendo para si
uma origem distinta do resto da raça humana, e assim vindo a ser ri-
dículos até mesmo para os bárbaros. Ora, ainda que todas as na-
ções tenham sido mais ou menos envolvidas na mesma culpa de in-
gratidão, não obstante imaginei ser correto selecionar aquelas cujo
erro seja menos desculpável, porque têm se julgado mais sábias do
que todas as demais.
Ora, se todas as nações que anteriormente existiram intencio-
nalmente puseram um véu sobre si mesmas, ou se sua própria indo-
lência foi o único obstáculo ao seu conhecimento, o Primeiro Livro
de Moisés merece ser considerado como um tesouro incomparável,
posto que, ao menos, dá uma indisputável segurança acerca da Cri-
ação do Mundo, sem a qual seríamos indignos de ter um lugar sobre
a terra. Omito, por enquanto, a História do Dilúvio, a qual contém
uma representação da vingança divina na destruição da raça huma-
na, tão tremenda quanto a admirável história que ela fornece da divi-
na misericórdia em sua restauração. Essa única consideração impri-
me um inestimável valor sobre o Livro, que, por si só, revela aquelas
coisas cujo conhecimento é de primordial necessidade, a saber, de
que maneira Deus, após a destrutiva queda do homem, adotou para
si uma Igreja; de que maneira ele constituiu o verdadeiro culto e em
que ofícios da piedade os santos pais se exercitaram; de que manei-
ra a pura religião, havendo por algum tempo declinado pela indolên-
cia dos homens, foi restaurada, por assim dizer, à sua integridade;
aprendemos ainda, quando Deus depositou num povo especial sua
graciosa aliança de eterna salvação; de que maneira uma pequena
descendência, procedendo gradualmente de um só homem, que
era, respectivamente, estéril e sem vigor, já cansado e (como o cha-
ma Isaías) solitário [Is 51.2], contudo, de repente, veio a ser uma
grande multidão; por qual inesperado meio Deus tanto exaltou quan-
to defendeu uma família que escolhera para si, muito embora pobre,
destituída de proteção, exposta a tormentas e cercada de todos os
lados por inumeráveis hostes de inimigos.
Que cada um, a partir de sua própria prática e experiência, for-
me seu juízo acerca da necessidade do conhecimento dessas coi-
sas. Vemos com que veemência os papistas aterrorizam os ingê-
nuos mediante sua falsa reivindicação do título de A Igreja. Moisés
de tal modo delineia as genuínas características da Igreja, a ponto
de eliminar esse medo absurdo, dissipando tais ilusões. É por uma
ostentosa exibição de esplendor e de pompa que os papistas condu-
zem os menos informados a uma tola admiração de si mesmos e
ainda os tornam estúpidos e arrogantes. Mas, se volvermos nossos
olhos para aquelas marcas pelas quais Moisés designa a Igreja, es-
ses fúteis fantasmas já não terão poder de enganar. Frequentemen-
te somos perturbados e quase desanimamos com a escassez dos
que seguem a pura doutrina de Deus; e especialmente quando ve-
mos quantas e quão vastas superstições ampliam o domínio dos pa-
pistas. E, como outrora, o Espírito de Deus, pela boca do profeta
Isaías, ordenou aos judeus que olhassem para a Rocha da qual fo-
ram talhados, assim ele nos intima à mesma consideração e nos ad-
moesta da absurdidade de medir a Igreja por seus números, como
se sua dignidade consistisse em sua multidão. Se algumas vezes,
em vários lugares, a religião é menos florescente do que se poderia
desejar, se o corpo dos santos jaz disperso, e o estado de uma Igre-
ja bem governada caiu em decadência, não apenas nossa mente
afunda, mas se derrete inteiramente dentro de nós. Ao contrário, en-
quanto vemos nessa história de Moisés a construção da Igreja a
partir de ruínas, e o ajuntamento dela a partir de fragmentos quebra-
dos e de sua própria desolação, tal exemplo da graça de Deus de-
veria nos erguer para uma sólida confiança. Visto, porém, que a pro-
pensão, para não dizer a leviana disposição, da mente humana para
arquitetar falsos sistemas de culto é tão imensa, nada pode ser mais
útil para nós do que buscar nossa norma de cultuar a Deus de modo
puro e sincero naqueles santos patriarcas, cuja piedade Moisés nos
salienta principalmente por esta marca: que dependiam somente da
Palavra de Deus. Pois, por maior que seja a diferença entre eles e
nós em cerimônias externas, aquilo que deve florescer com imutável
vigor é comum a eles e a nós, isto é, que a religião deve extrair sua
forma unicamente da vontade e do prazer de Deus.
Não ignoro a riqueza de materiais aqui fornecido e da insufici-
ência de minha linguagem para alcançar a dignidade dos temas nos
quais discuto apenas sucintamente; visto, porém, que cada um de-
les, em ocasiões próprias, já foi por mim, em outro lugar, mais abun-
dantemente discutido, ainda que não com adequado brilhantismo e
elegância de estilo, agora me é suficiente informar sucintamente a
meus piedosos leitores quão bem compensariam seu labor, se
aprenderem a aplicar prudentemente a seu próprio proveito o exem-
plo da Igreja antiga, como descrita por Moisés. E, de fato, Deus nos
associou com os santos patriarcas na esperança da mesma heran-
ça, para, desconsiderando a distância de tempo que nos separa, su-
portarmos os mesmos conflitos. Tanto mais detestável, pois, são
certos homens desordeiros que, incitados por não sei que ardor de
furioso zelo, assiduamente se empenham por dividir a Igreja de nos-
so próprio tempo, a qual já está mais que suficientemente dispersa.
Não falo dos inimigos declarados que, por franca violência, se vol-
tam contra os santos para destruí-los e apagam completamente sua
memória; mas falo de professores incompetentes do evangelho, que
não só fornecem sempre conteúdos novos para fomentar discórdias,
mas que por sua inquietação perturbam a paz que os homens san-
tos e sábios cultivam alegremente. Vemos que esses se associam
com os papistas em perversa conspiração contra o evangelho, ainda
que em algumas coisas mantenham mortal intriga entre si. Nem é
necessário dizer quão pequeno é o número dos que sinceramente
mantêm a doutrina de Cristo, quando comparados com as vastas
multidões desses oponentes. Enquanto isso, surgem audaciosos
mestres incompetentes, até mesmo de nosso próprio meio, que não
só obscurecem a luz da sã doutrina com nuvens de erro, ou envai-
decem os simples e os menos experientes com seus perversos des-
varios, mas, por uma profana licença de ceticismo, se permitem er-
radicar toda a religião. Porque, como se, por suas exuberantes ironi-
as e sofismas, pudessem provar que são genuínos discípulos de
Sócrates, não têm nenhuma máxima mais agradável do que esta:
que a fé deve ser livre e que a mente não deve ser mantida cativa,
de modo que seja possível, por reduzir tudo a uma questão de dúvi-
da, tornar a Escritura, por assim dizer, um “nariz de cera”.7 Portanto,
aqueles que se deixam cativar pelos encantos dessa nova escola e
que agora se deleitam em especulações duvidosas, por fim obtêm
tal proficiência: que estão sempre aprendendo, sem, contudo, ja-
mais chegar ao conhecimento da verdade.
Até aqui tratei sucintamente, como a ocasião o requer, da utili-
dade dessa História contida no Livro de Gênesis. Quanto ao restan-
te, tenho labutado – quão habilmente não sei, mas, por certo, fiel-
mente – para que a doutrina da Lei, cuja obscuridade no passado
muitos repeliram, se torne familiarmente conhecida. Não tenho dúvi-
da de que haverá leitores que gostariam de ter uma explanação
mais ampla de passagens particulares. Eu, porém, que naturalmen-
te evito prolixidade, a mim mesmo confinei, nesta obra, a limites
bem definidos, por duas razões. Primeira, visto que os Cinco Livros
de Moisés já intimidam alguns por sua extensão, temi que, se eu os
detalhasse, produziria um estilo tão difuso e, com isso, apenas au-
mentasse tal aversão. Segunda, posto que em meu progresso com
frequência tenho me afligido na vida, então preferi dar uma exposi-
ção sucinta a deixar uma mutilada, após mim. Contudo, os leitores
sinceros, possuídos de são juízo, verão que eu tive diligente cuida-
do, não sendo astuto nem negligente, de não deixar passar algo
complexo, ambíguo ou obscuro. Visto, pois, que eu tenho me esfor-
çado por discutir todos os pontos duvidosos, não vejo por que al-
guém se queixaria da brevidade, a menos que deseje derivar seu
conhecimento exclusivamente dos comentários. Ora, de bom grado
permitirei que esse tipo de homens, a quem nenhum acúmulo de
prolixidade pode saciar, busquem para si algum outro mestre.
Mas se, meu Príncipe, te apraz fazer prova, de fato saberás, e
por ti mesmo crerás, que o que eu declaro é mui verdadeiro. És ain-
da jovem; Deus, porém, quando ordenou aos reis que compuses-
sem um Livro da Lei para seu próprio uso, não isentou o piedoso Jo-
sias disso, mas, antes, preferiu apresentar o mais nobre exemplo de
piedosa instrução a um menino, com o objetivo de reprovar a indo-
lência dos idosos. E teu próprio exemplo ensina a grande importân-
cia de se terem hábitos formados desde a tenra idade. Pois o gér-
men oriundo da raiz que os princípios da religião recebidos por ti as-
sumiram não só germina sua flor, mas também aromas de um grau
de maturidade. Portanto, com infatigável diligência, labutas para al-
cançar o alvo posto diante de ti. E não permitas que sejas atrapalha-
do ou perturbado por designares homens a quem parece inoportuno
que jovens sejam chamados a essa precoce sabedoria (como eles
denominam). Pois o que pode ser mais absurdo ou intolerável do
que, diante de todo o tipo de corrupção que nos cerca, proibir esse
remédio? Visto que os prazeres de uma corte corrompem até mes-
mo teus servos, quanto mais perigosas são as redes armadas para
os grandes príncipes, que se espojam em todo luxo e iguarias; por-
ventura surpreende caso se deixam envolver-se totalmente em las-
cívia? Pois certamente é contrário à natureza possuir todos os mei-
os de prazeres e refrear-se de desfrutá-los.
Entretanto, a dificuldade para manter a castidade impoluta em
meio às cenas de divertimentos é mais que suficientemente eviden-
te na prática. Tu, porém, ó mui eminente Príncipe, considera como
peçonha tudo quanto tende a produzir amor pelos prazeres. Pois se
aquilo que reprime a continência e temperança já te encanta, o que
não cobiçarás quando chegares à idade adulta? Talvez o sentimento
seja tão abruptamente expresso, que profunda preocupação pelo
corpo negligencie grandemente a virtude; contudo, é mui verdadeiro
o que Cato fala. O seguinte paradoxo dificilmente se admitirá na
vida cotidiana: “Eu sou maior, e nasci para maiores coisas do que
ser escravo de meu corpo, cujo desprezar está em minha plena li-
berdade.”. Então descartemos aquele excessivo rigor pelo qual da
vida se remove todo desfrute; contudo, há tantos exemplos a mos-
trar quão fácil é a descida da segurança e autoindulgência para a li-
cenciosidade do desre gramento. Além do mais, terás de lutar não
só com a luxúria, mas também com muitos outros vícios. Nada pode
ser mais atraente do que tua afabilidade e modéstia; mas nenhuma
disposição é tão afável e bem regulada que não se degenere em
brutalidade e ferocidade, quando embriagada com bajulações. Ora,
visto que há inúmeros bajuladores que provarão ser fortes tentado-
res a inflamar tua mente com várias concupiscências, como te com-
portarás vigilantemente para te precaveres deles? Mas, enquanto te
acautelo contra as adulações de uma Corte, nada mais de ti espero
senão que, sendo revestido com moderação, te tornes invencível.
Pois alguém disse com verdade: “Não se louva a quem nunca viu a
Ásia, e sim àquele que viveu com modéstia e continência na Ásia”.
Portanto, visto que obter esse estado é algo mui desejável, Davi
prescreve um conciso método de agir assim – se pelo menos imita-
res seu exemplo! –, quando declara que os preceitos de Deus eram
seus conselheiros [Sl 119.24]. E, realmente, seja de que outra fonte
for, o conselho sugerido perecerá, a menos que partas desse ponto
para tornar-te sábio. Portanto, resta, ó mui nobre Príncipe, que o
que é dito por Isaías concernente ao santo rei Ezequias ocorra per-
petuamente à tua mente. Pois, ao enumerar suas excelentes quali-
dades, o profeta o honra especialmente com a seguinte exaltação:
que o temor de Deus fosse seu tesouro.
Adeus, mui eminente Príncipe; que Deus te preserve em segu-
rança sob sua proteção; que ele te adorne mais e mais com dons
espirituais e te enriqueça com todo gênero de bênção.

1 Mais tarde, esse príncipe tornou-se o célebre Henrique IV, da França. Um bravo e extro-
vertido príncipe, mas habituado às frivolidades e escravizado pela licenciosidade da época.
Pela coroa real francesa, ele se viu obrigado a renunciar seus princípios protestantes; e,
por fim, caiu pela mão de um assassino, por causa de sua tolerância aos huguenotes.
2 Ele nasceu em 1553, e, portanto, em 1563, ano desta dedicatória, ele tinha dez anos de
idade.
3 Jeanne d’Albret, rainha de Navarra, filha de Henrique d’Albret e de Margarida de Valois,
irmã de Francisco, o Primeiro, rei da França. Henrique foi seu terceiro filho; porém, os dois
anteriores morreram na infância. Inicialmente, tanto ela quanto o seu esposo, Antônio de
Bourbon, era favoráveis à Reforma; mas Antônio, notável por sua inconstância, desertou-
se da causa do Protestantismo no tempo de perseguição e, por fim, tomou armas contra
seus adeptos e pereceu no combate. Jeanne permaneceu constante na fé que professava,
e continuou a estabelecê-la em seus domínios. Em 1568, ela deixou sua capital, Bearne,
para unir-se aos protestantes franceses, e apresentou seu filho Henrique ao príncipe do
Conde, com a idade de quinze anos, juntamente com suas jóias, com o propósito de man-
ter a guerra contra os perseguidores da fé reformada. Ela morreu subitamente, em 1572,
em Paris, para onde foi tratar dos preparativos do projetado casamento de seu filho com a
irmã de Carlos IX. A suspeita é que ela morreu envenenada; porém, isso nunca ficou pro-
vado.
4 Uma nítida referência à Septuaginta, a famosa tradução grega do Antigo Testamento.
5 Uma referência ao filósofo grego Aristóteles.
6 Uma referência à crença de alguns gregos que se vangloriavam por terem a convicção
de que sua origem era o próprio solo em que habitavam. Esses eram conhecidos como
(autochthonas).
7 A expressão “nariz de cera” é usada para denotar um parágrafo introdutório que retarda a
entrada no assunto específico do texto. É sinal de prolixidade. No contexto jornalístico, a
expressão refere-se a uma frase usada no início das matérias noticiosas para “enrolar” o
leitor e não acrescenta nada ao assunto anunciado no título.
Argumento
Visto que a infinita sabedoria de Deus é manifestada na admirável
estrutura do céu e da terra, é absolutamente impossível expor A His-
tória da Criação do Mundo em termos iguais à sua dignidade. Pois,
não apenas a medida de nossa capacidade é demasiadamente pe-
quena para compreender coisas de tal magnitude, como também
nossa linguagem é igualmente incapaz de dar um pleno e substanci-
al relato delas. Contudo, como merece louvor quem, com modéstia
e reverência, se aplica à consideração das obras de Deus (mesmo
que fique aquém do que poderia desejar), assim também, se nesse
tipo de empreendimento eu me esforçar para ajudar a outros segun-
do a habilidade que me foi dada, confio que meu trabalho não será
menos aprovado por homens piedosos do que aceito por Deus.
Pressuponho isso em razão não só de me desculpar, mas de admo-
estar meus leitores a que, se sinceramente desejam se beneficiar
juntamente comigo em meditar sobre as obras de Deus, devem tra-
zer consigo um espírito sóbrio, dócil, brando e humilde. De fato, ve-
mos o mundo com nossos olhos, pisamos a terra com nossos pés,
tocamos inumeráveis tipos de obras divinas com nossas mãos, aspi-
ramos suave e agradável fragrância das ervas e flores, desfrutamos
de infindáveis benefícios; mas naquelas coisas a partir das quais al-
cançamos algum conhecimento, reside tal imensidade do poder, da
bondade e da sabedoria divinos, que superam todos os nossos sen-
tidos. Portanto, que os homens fiquem satisfeitos por apenas experi-
mentarem moderadamente essas coisas, de acordo com a sua pró-
pria capacidade. E cabe-nos assim imprimir esta marca durante toda
nossa vida: que (até a extrema velhice) não nos arrependamos do
progresso que fizemos, se só temos avançado bem pouco em nossa
trajetória.
Ao começar seu Livro com a criação do mundo, a intenção de
Moisés é fazer com que Deus, por assim dizer, nos seja visível em
suas obras. Aqui, porém, se erguem homens presunçosos e inqui-
rem com escárnio: de onde foi isso revelado a Moisés? Portanto,
supõem-no falando por meio de fábulas das coisas desconhecidas,
porque ele não era um espectador dos eventos que ora registra,
nem aprendeu a veracidade delas mediante leitura. Esse é o raciocí-
nio deles; mas é fácil de expor sua desonestidade. Pois, se podem
destruir o crédito dessa história só porque ela é traçada mediante
lembranças de uma longa sequência de eras passadas, que provem
também que sejam falsas aquelas profecias nas quais a mesma his-
tória prediz ocorrências que só se concretizaram muitos séculos de-
pois. Afirmo que aquelas coisas que Moisés testifica com respeito à
vocação dos gentios são claras e óbvias, cuja concretização ocorreu
quase dois mil anos após sua morte. Porventura não era ele, que
pelo Espírito previu um evento remotamente futuro e desconhecido
da humanidade, capaz de entender se o mundo foi criado por Deus,
sobretudo visto que fora ensinado por um Mestre divino? Pois aqui
ele não propõe adivinhações de si mesmo, mas é o instrumento do
Espírito Santo para a publicação daquelas coisas que eram de im-
portância para todos os homens conhecerem.
Erram grandemente em julgar como absurdo que a ordem da
criação, que previamente era desconhecida, por fim fosse descrita e
explicada por ele. Pois ele não comunica à memória as coisas antes
inaudíveis, mas pela primeira vez decidiu escrever fatos que os pais
haviam passado de geração em geração, a seus filhos, por muitos e
muitos anos. Poderíamos conceber que o homem fosse de tal modo
colocado na terra para desconhecer sua própria origem, bem como
da origem daquelas coisas de que desfrutava? Nenhuma pessoa de
mente sã duvida que Adão fosse bem instruído acerca de todas
elas. Porventura mais tarde ele veio a ficar mudo? Porventura os
santos patriarcas eram tão ingratos que suprimissem com o silêncio
uma instrução tão necessária? Noé, advertido por um juízo divino
tão memorável, não o transmitiria à posteridade? Abraão é expres-
samente honrado com este louvor: que ele é o mestre e senhor de
sua família [Gn 18.19]. E sabemos que, muito antes do tempo de
Moisés, era comum a todo o povo ter familiaridade com a aliança
que Deus havia feito com seus pais. Ao dizer que os israelitas eram
descendentes de uma raça santa, a qual Deus escolhera para si, ele
não propõe esse fato como algo novo, mas simplesmente celebra o
que todos mantinham, o que os próprios anciãos haviam recebido
de seus ancestrais, e o que, em suma, era inteiramente indiscutível
entre eles. Portanto, não devemos duvidar que a Criação do Mundo,
como aqui descrita, fosse já conhecida através da antiga e perpétua
tradição dos Pais. Contudo, visto que nada é mais fácil do que a ver-
dade de Deus ser de tal modo corrompida pelos homens, que, num
longo período de tempo, fosse ela, por assim dizer, degenerada em
seu próprio conteúdo, aprouve ao Senhor registrar a história por es-
crito, com o propósito de preservar sua pureza. Moisés, pois, esta-
beleceu a credibilidade dessa doutrina que está contida em seus es-
critos, e que, pela displicência dos homens, poderia ter sido perdida.
Agora me dirijo para o propósito de Moisés, ou melhor, do Espí-
rito Santo que falou por sua boca. Só conhecemos a Deus, que em
si mesmo é invisível, através de suas obras. Portanto, o apóstolo
elegantemente denomina os mundos, como se alguém dissesse: “a
manifestação das coisas não aparentes” [Hb 1.3]. Eis a razão por
que o Senhor, a fim de nos atrair ao conhecimento de si mesmo,
põe a estrutura do céu e da terra ante nossos olhos, tornando-se ele
mesmo, de certa maneira, manifesto neles. Pois seu eterno poder e
divindade (no dizer de Paulo) são ali manifestados [Rm 1.20]. E
aquela declaração de Davi é muito pertinente: que os céus, ainda
que destituídos de linguagem, contudo são eloquentes arautos da
glória de Deus, e que essa belíssima ordem da natureza silenciosa-
mente proclama sua admirável sabedoria [Sl 19.1]. É preciso obser-
var isso ainda mais diligentemente, porque poucos se apropriam do
método certo de se conhecer a Deus, enquanto a maioria se apega
às criaturas, sem qualquer consideração pelo próprio Criador. Pois
os homens geralmente se sujeitam a estes dois extremos, a saber,
que alguns, esquecidos de Deus, aplicam toda a força de sua mente
à consideração da natureza; e, outros, esquecendo as obras de
Deus, desejam, com uma tola e insana curiosidade, investigar sua
Essência. Ambos trabalham em vão. Ocupar-se, assim, na investi-
gação dos segredos da natureza, a ponto de nunca direcionar os
olhos para seu Autor, é um estudo mui pervertido; e desfrutar de
toda a natureza sem qualquer conhecimento do Autor desse benefí-
cio é a maior e mais vil das ingratidões. Portanto, quem presume ser
filósofo sem religião, e quem, ao especular, de tal modo age que
afasta Deus e todo o senso de piedade para longe de si, um dia
sentirá a força da expressão de Paulo, relatada por Lucas: que Deus
nunca ficou sem testemunhas [At 14.17]. Pois não se permitirá que
escapem impunemente, porquanto se tornaram surdos e insensíveis
a testemunhos tão ilustres. E, na verdade, nunca perceber a Deus,
que por toda parte mostra sinais de sua presença, é parte de ig-
norância culpável. Mas, se os zombadores agora escapam por usa-
rem astuciosamente de sofismas, no futuro sua terrível destruição
dará testemunho de que foram ignorantes de Deus, só porque esta-
vam, espontânea e maliciosamente, cegos.
Quanto aos que orgulhosamente pairam acima do mundo para
buscar a Deus em sua essência não revelada, é impossível que se
lhes suceda outra coisa senão que, por fim, se embaracem em uma
multidão de ficções absurdas. Pois Deus – por outros meios, invisí-
vel (como já dissemos) – se veste, por assim dizer, com a imagem
do mundo, na qual ele se apresenta à nossa contemplação. Os que
não admitem contemplá-lo assim magnificamente ataviado da in-
comparável veste dos céus e da terra, mais tarde sofrerão a justa
punição de seu desprezível orgulho em seus próprios desvarios.
Portanto, tão logo o nome de Deus soe em nossos ouvidos, ou o
pensamento dele ocorra à nossa mente, vistamo-lo também com
esse belíssimo ornamento; finalmente, que o mundo seja nossa es-
cola, caso queiramos conhecer a Deus de uma maneira correta.
Aqui também se refuta a impiedade dos que usam astuciosa-
mente de sofismas contra Moisés, por ele relatar em tão breve espa-
ço de tempo aquilo que transcorreu desde a Criação do Mundo. Pois
perguntam por que ocorreu tão repentinamente à mente de Deus
criar o mundo; por que ele permanecera por tanto tempo inativo no
céu. Assim, em se divertirem com as coisas santas, exercitam sua
engenhosidade para sua própria destruição. Na História Tripartida,8
registra-se uma resposta dada por um homem piedoso, com a qual
tenho sempre me deleitado. Pois quando certo cão imundo zombou
de Deus dessa maneira, esse homem piedoso replicou que Deus de
modo algum vivera inativo naquele tempo, porquanto estivera prepa-
rando o inferno para os capciosos. Mas, por quais raciocínios pode
o leitor restringir a arrogância daqueles para quem a sobriedade é
confessamente desprezível e odiosa? E, certamente, os que agora
tão livremente exultam em acusar Deus de inatividade, descobrirá, a
seu próprio e grande custo, que ele usou o seu poder infinito para
lhes preparar o inferno.
No que se refere a nós mesmos, não deveria parecer absurdo
que, embora satisfeito em si mesmo, Deus julgou ser necessário cri-
ar o mundo, tão logo achou por bem fazê-lo. Além do mais, visto
que sua vontade é a norma de toda sabedoria, devemos ficar con-
tentes somente com isso. Pois Agostinho afirma corretamente que a
Deus se faz injustiça pela boca dos Maniqueus, porquanto estes exi-
gem uma causa superior à vontade divina; e prudentemente adverte
a seus leitores a não se entregarem às suas inquirições com respei-
to ao conceito de duração (tempo) infinita, como não se deve fazer o
mesmo com respeito ao conceito de espaço infinito. De fato, não so-
mos ignorantes de que o universo é finito, e que a terra, como um
pequeno globo, é posta no centro.9 Quem assume ser fora de pro-
pósito que o mundo não foi criado mais cedo, é bem possível que
esteja a censurar a Deus por não haver feito incontáveis mundos.
Sim, desde que julgam ser absurdo que muitas eras tenham trans-
corrido sem a existência de nenhum mundo, poderiam ainda reco-
nhecer ser uma prova da grande corrupção de sua própria natureza
que, em comparação com o infinito espaço que permanece vazio, o
céu e a terra ocupam apenas uma ínfima parte. Visto, porém, que
tanto a eternidade da existência de Deus quanto a infinitude de sua
glória provariam ser um duplo labirinto, contentemo-nos com desejar
modestamente não avançar mais em nossas investigações além do
que o Senhor, pela orientação e instrução de suas próprias obras,
nos convida.
Ora, ao descrever o mundo como um espelho no qual devemos
contemplar a Deus, não gostaria de ser entendido como a asseve-
rar, ou que nossos olhos são suficientemente clarividentes para dis-
cernir o que representa a estrutura do céu e terra, ou que o conheci-
mento daí obtido é suficiente para a salvação. E, enquanto o Senhor
nos convida a si por meio das coisas criadas, com nenhum outro
propósito senão que por esse meio nos tornemos inescusáveis [Rm
1.20], ele acrescentou (como era necessário) um novo remédio, ou,
ao menos, por um novo auxílio, ele tem amenizado à ignorância de
nossa mente. Pois, pela Escritura como nosso guia e mestre, ele
não somente faz com que aquelas coisas sejam tão claras, que de
outro modo escapariam à nossa observação, mas quase nos com-
pele a contemplá-las; como se ele assistisse à nossa dúbia visão
com lentes específicas. Moisés insiste sobre esse ponto (como já
observamos). Pois se a instrução silenciosa do céu e da terra fosse
suficiente, o ensino de Moisés teria sido supérfluo. Esse arauto,
pois, para atrair nossa atenção, entra em cena com o objetivo de
nos levar a percebermos que fazemos parte desta cena, e assim po-
dermos contemplar a glória de Deus; não, de fato, para as observar-
mos como meras testemunhas, e sim para desfrutarmos de todas as
riquezas que aqui são exibidas, como o Senhor lhes ordenara e as
sujeitara ao nosso uso. E, em termos gerais, ele não apenas declara
que Deus é o Arquiteto do mundo, mas que, através de toda a ca-
deia da história, ele mostra quão admirável é seu poder, sua sabe-
doria, sua bondade e, especialmente, sua terna solicitude para com
a raça humana. Além disso, visto que a eterna Palavra de Deus é a
vívida e expressa imagem de si mesmo, Moisés nos direciona para
esse ponto. E, assim, verifica-se a afirmação do apóstolo de que é,
por nenhum outro meio, senão pela fé, que se pode entender que os
mundos foram feitos pela palavra de Deus [Hb 11.3]. Pois a fé pro-
cede exatamente disto: que, ao sermos ensinados pelo ministério de
Moisés, já não vagueamos por tolas e pueris especulações, e sim
que contemplamos o verdadeiro e único Deus em sua verdadeira
imagem.
Contudo, pode-se objetar dizendo que isso parece discordar do
que Paulo declara: “Visto como, na sabedoria de Deus, o mundo
não o conheceu por sua própria sabedoria, aprouve a Deus salvar
aos que creem, pela loucura da pregação” [1Co 1.21]. Pois ele as-
sim afirma que Deus é por nós buscado em vão, se o buscarmos
sob a diretriz das coisas visíveis; e que nada nos resta senão recor-
rermos imediatamente a Cristo; e que nem por isso devemos come-
çar com os elementos deste mundo, e sim com o evangelho, que é
o único que põe Cristo, com sua cruz, diante dos nossos olhos, e
nos mantém nele. Minha resposta é que é fútil questionar, como fa-
zem os filósofos, sobre a estrutura do mundo, exceto os que, tendo
sido, antes de tudo, humilhado pela pregação do evangelho, apren-
deram a submeter toda sua sabedoria intelectual (como Paulo o ex-
pressa) à loucura da cruz [1Co 1.21]. Nada acharemos, repito, aci-
ma e abaixo, que nos faça subir a Deus, até que Cristo nos tenha
instruído em sua própria escola. Entretanto, não se pode fazer isso
a menos que, tendo emergido dos abismos mais profundos, seja-
mos elevados acima de todos os céus, na carruagem de sua cruz,
para que, pela fé, apreendamos aquelas coisas que os olhos jamais
viram, os ouvidos jamais ouviram, e as quais estão infinitamente
além de nosso coração e mente. Pois a terra, com sua provisão de
frutos para nossa nutrição diária, não está ali posta diante de nós;
contudo, Cristo se oferece a nós para a vida eterna. Muito menos o
céu, pelo esplendor do sol e estrelas, ilumina nossos olhos físicos;
mas o próprio Cristo, a Luz do Mundo e o Sol da Justiça, resplande-
ce em nossa alma; nem a atmosfera nos estende seu espaço vazio
para respirarmos; mas o próprio Espírito de Deus nos vivifica e nos
faz viver. Em suma, ali o reino invisível de Cristo enche todas as coi-
sas, e sua graça espiritual se difunde através de tudo. Contudo, isso
não nos impede de aplicarmos nossos sentidos à consideração do
céu e da terra, para que possamos a partir deles buscar a confirma-
ção no verdadeiro conhecimento de Deus. Pois Cristo é aquela ima-
gem na qual Deus se apresenta à nossa vista, não só seu coração,
mas também suas mãos e seus pés. Intitulo “seu coração” aquele
amor secreto com o qual ele nos abraça em Cristo; por “suas mãos
e pés”, entendo aquelas obras nas quais ele se revela diante de
nossos olhos. Assim, tão logo nos apartamos de Cristo, não há nada
que em si mesmo seja tão grosseiro ou insignificante a respeito do
qual não sejamos necessariamente enganados.
E, de fato, ainda que Moisés comece, neste Livro, com a Cria-
ção do Mundo, no entanto, ele não nos limita a esse tema. Pois es-
tas coisas devem ser relacionadas: que o mundo foi fundado por
Deus, e que o homem, após haver sido dotado com a luz da inteli-
gência e adornado com tantos privilégios, caiu por sua própria culpa
e, assim, se viu privado de todos os benefícios que havia recebido;
mais tarde, pela compaixão de Deus, foi restaurado à vida da qual
se vira privado, e isso através da benignidade de Cristo; de modo
que haveria sempre algum povo na terra, o qual, sendo adotado na
esperança da vida celestial, pudesse nessa confiança cultuar a
Deus. O objetivo de todo o escopo da história é este: que a raça hu-
mana tem sido preservada por Deus de tal maneira que manifesta
seu especial cuidado por sua Igreja. Pois este é o argumento do Li-
vro: após o mundo ser criado, o homem foi nele posto como em um
teatro, para que ele, contemplando todas as maravilhosas obras de
Deus, reverentemente adorasse seu Autor. Em segundo lugar, que
todas as coisas foram ordenadas para o uso do homem, para que
ele, estando sob a mais profunda obrigação, se devotasse e se de-
dicasse inteiramente à obediência a Deus. Em terceiro lugar, que o
homem foi dotado com entendimento e razão para que, sendo dis-
tinto dos animais irracionais, pudesse meditar sobre uma vida supe-
rior, e pudesse também inclinar-se diretamente para Deus, cuja ima-
gem ele portava esculpida em sua própria pessoa. Mais tarde, se-
guiu a queda de Adão, pela qual se afastou de Deus; consequente-
mente, ele se viu privado de toda retidão.
Assim, Moisés representa o homem como que destituído de
todo bem, cegado no entendimento, pervertido no coração, viciado
em cada parte e sob a sentença de morte eterna; mas logo acres-
centa a história de sua restauração, onde Cristo se manifesta com o
benefício da redenção. A partir desse ponto, Moisés não apenas re-
lata continuamente a singular Providência de Deus no governo e
preservação da Igreja, mas também nos recomenda o verdadeiro
culto divino; ensina em que a salvação do homem está baseada, e
nos exorta, a partir do exemplo dos Pais, à constância em suportar a
cruz. Portanto, quem quer que deseje ter um razoável entendimento
deste Livro, então ocupe sua mente com esses tópicos principais.
Mas, especialmente, observe que (após Adão, por seu próprio de-
sespero, por sua queda, arruinar a si e a sua posteridade) esta é a
base de nossa salvação, esta é a origem da Igreja: que nós, sendo
resgatados de trevas tão profundas, obtivemos uma nova vida so-
mente pela graça de Deus; que os Pais (segundo a oferta que lhes
foi feita através da palavra de Deus) são feitos, pela fé, participantes
dessa vida; que essa palavra, em si mesma, estava fundada em
Cristo; e que todos os santos que desde então passaram a viver fo-
ram sustentados pela mesma promessa de salvação, pela qual
Adão foi o primeiro a ser levantado da queda.
Portanto, a perpétua sucessão da Igreja tem fluído desta fonte:
que os santos Pais, um após o outro, tendo, pela fé, abraçado a pro-
messa original, tornaram-se participantes da família de Deus, para
que pudessem ter uma vida comum em Cristo. É preciso observar
cuidadosamente isso, para que saibamos qual é a comunidade da
verdadeira Igreja, e qual a comunhão da fé entre os filhos de Deus.
Considerando que Moisés foi ordenado o mestre dos israelitas, não
há dúvida de que ele tinha uma referência especial a eles, para que
se reconhecessem como sendo um povo eleito e escolhido por
Deus, para que buscassem a certeza dessa adoção com base na
aliança que o Senhor confirmara com seus Pais, e para que soubes-
sem que não havia outro Deus e nem outra fé verdadeira. Mas sua
vontade era igualmente testificar a todas as eras que, quem porven-
tura desejar cultuar a Deus corretamente e ser julgado membro da
Igreja, então que não siga outro caminho além daquele que é aqui
descrito. Mas, visto que este é o começo da fé, a saber, que há so-
mente um Deus verdadeiro a quem cultuamos, assim não é uma
confirmação comum dessa fé o fato de que somos companheiros
dos Patriarcas; pois, visto que possuíram a Cristo como o penhor de
sua salvação, mesmo quando ele ainda não havia se manifestado,
assim mantemos o Deus que outrora se lhes manifestou. Disso infe-
rimos a diferença que há entre o culto divino puro e legítimo, e todas
aquelas liturgias adulteradas que, desde então, têm sido fabricadas
pela fraude de Satanás e a perversa audácia dos homens. Além dis-
so, o Governo da Igreja deve ser considerado, para que o leitor che-
gue à conclusão de que Deus tem sido seu perpétuo Guarda e Go-
vernante, mas de forma a exercê-lo na batalha da cruz. Aqui, de
fato, os conflitos peculiares da Igreja se apresentam à vista, ou me-
lhor, o caminho é posto diante de nossos olhos como num espelho,
no qual nos compete, com os santos Pais, perseguir o alvo da feliz
imortalidade.
Ouçamos agora a Moisés.

8 Um destacado manual de História da Igreja, amplamente utilizado na Europa Medieval.


9 No tempo em que Calvino escreveu este livro, o equivocado sistema da filosofia natural
que havia prevalecido por séculos visava apenas a dar vazão aos conceitos mais em voga.
Copérnico, no crepúsculo do século XV, começou a suspeitar das opiniões correntes sobre
o tema, mas o medo de ser mal-entendido e ridicularizado o levou a esquivar-se por algum
tempo das descobertas que havia feito; e só foi em 1543, poucas horas antes de sua mor-
te, que pessoalmente viu publicada uma cópia de sua própria obra. Até aquele período, a
terra era considerada o centro do sistema, e supunha-se que todo o universo se movia ao
redor dela.
C A P ÍT U L O 1

1. No princípio. Explicar o termo “princípio” como sendo uma refe-


rência a Cristo é totalmente fútil. Pois a intenção de Moisés é sim-
plesmente asseverar que, em seu próprio início, o mundo não era
organizado, do modo como agora se vê, mas que foi criado um caos
vazio do céu e da terra. Sua linguagem, pois, pode ser assim expli-
cada. Quando Deus, no princípio, criou o céu e a terra, esta era va-
zia e deserta. Além do mais, Moisés ensina, pela palavra “criou”,
que, o que antes não existia, agora foi feito; pois ele não usou o ter-
mo (yatsar), que significa estruturar ou formar, e sim (bara),
que significa criar.
Portanto, o intuito de Moisés é dizer que o mundo foi feito do
nada. A partir disso fica refutada a tolice dos que imaginam que,
desde a eternidade, existiu matéria informe, e que nada mais se de-
duz da narrativa de Moisés senão que o mundo foi munido com no-
vos ornamentos, e recebeu a forma da qual antes era destituído. De
fato, antigamente essa era uma fábula comum entre os pagãos, os
quais haviam recebido apenas uma obscura informação acerca da
criação, e que, costumeiramente, adulteraram a verdade de Deus
com estranhas ficções; mas os cristãos labutarem (como faz Steu-
chus1) para manter esse erro crasso, é absurdo e intolerável. Por-
tanto, que se mantenha isto em primeiro lugar: que o mundo não é
eterno, mas que foi criado por Deus. Não há dúvida de que Moisés
dá o nome de céu e terra àquela massa informe que ele, logo depois
[v. 5], denomina de águas. Razão por que essa matéria teria sido
considerada a semente do mundo inteiro. Além do mais, essa é a di-
visão do mundo geralmente reconhecida.
Deus. Moisés usou o termo Elohim, um substantivo plural. Des-
se fato, muitos inferem que aqui são citadas as três Pessoas da Dei-
dade; mas, visto que, como prova de uma questão tão séria, tal infe-
rência me parece ter pouca solidez, não insistirei na palavra; porém,
antes, advirto os leitores a se precaverem de interpretações absur-
das como essa. Acreditam que tem um testemunho contra os aria-
nos para provar a Deidade do Filho e do Espírito, mas ao mesmo
tempo se envolvem no erro de Sabélio;2 porque Moisés, mais adian-
te, acrescenta que Elohim falou, e que o Espírito de Elohim repousa-
va sobre as águas. Se presumirmos que esse termo se refere a três
pessoas, não haverá distinção entre elas. Pois se seguirá que tanto
o Filho gerou a si mesmo, quanto o Espírito não é do Pai, e sim de
si mesmo. Para mim é suficiente que o número plural expresse
aqueles poderes que Deus exerceu na criação do mundo. Além do
mais, reconheço que a Escritura, embora recite muitos poderes da
Deidade, contudo, ela sempre nos remete ao Pai, e à sua Palavra, e
ao Espírito, como veremos adiante. Mas esses absurdos que há
pouco mencionei, nos impossibilitam, por causa da sua sutileza em
deturpar, de perceber o que Moisés simplesmente declara a respeito
do próprio Deus, aplicando-o às Pessoas da Deidade em separado.
Contudo, considero isto além de controvérsia: que, à luz da circuns-
tância peculiar da passagem em si, aqui se atribui a Deus um título,
expressão daquele poder que previamente estava, de alguma ma-
neira, incluso em sua essência eterna.

2. A terra, porém, estava sem forma e vazia. Não serei muito pro-
lixo na exposição dos epítetos (tohu) e (bohu). Os hebreus os
empregavam para designar algo que é vazio e confuso, vão, ou sem
qualquer valor. Indubitavelmente, Moisés os empregou em contraste
com todos aqueles objetos criados que pertencem à forma, ao orna-
mento e à perfeição do mundo. Se, agora, removêssemos da terra
tudo o que Deus acrescentou após o tempo aqui referido, então terí-
amos esse caos rude e tosco, ou melhor, sem forma. Portanto, con-
sidero o que ele imediatamente acrescenta: que “havia trevas sobre
a face do abismo”, como parte daquele vácuo confuso, porque a luz
começou a dar ao mundo alguma aparência externa. Pela mesma
razão, ele o chama abismos e águas, posto que naquela massa de
matéria nada era sólido ou estável; nada era distinto.
E o Espírito de Deus. Há intérpretes que distorcem essa pas-
sagem de várias maneiras. A opinião de alguns, de que ela significa
o vento, é superficial demais para requerer refutação. Aqueles que a
entendem como sendo uma referência ao Eterno Espírito de Deus,
estão certos; contudo, nem todos se atêm à intenção de Moisés no
enredo de seu discurso e, por isso, surgem as várias interpretações
do particípio (merachepeth). Em primeiro lugar, afirmo qual era
(em minha opinião) a intenção de Moisés. Já ouvimos que antes que
Deus houvesse aperfeiçoado o mundo, este era uma massa desor-
denada; agora nos é ensinado que o poder do Espírito era necessá-
rio para sustentá-lo. Pois é possível que à mente ocorra esta dúvida:
como pode ser que tal amontoado permanecesse em desordem,
uma vez que agora contemplamos o mundo preservado pelo gover-
no ou ordem? Ele, pois, assevera que essa massa, por mais confu-
sa que fosse, se tornara estável ao longo do tempo pela secreta efi-
cácia do Espírito. Ora, há dois sentidos da palavra hebraica que se
ajustam bem nesse contexto: ou que o Espírito se movia ou se agi-
tava sobre as águas, com o propósito de gerar energia; ou que ele
pairava sobre elas para aquecê-las. Porque faz pouca diferença na
interpretação, o juízo do leitor é livre para optar por qualquer uma
dessas explanações. Mas, se esse caos requeria a inspiração se-
creta de Deus para prevenir sua rápida dissolução, como poderia
essa ordem, tão clara e distinta, subsistir por si só, a menos que de-
rivasse energia de outra fonte? Portanto, cumpre-se aqui aquela Es-
critura: “Envias o teu Espírito, eles são criados, e, assim renovas a
face da terra” [Sl 104.30]; assim, por outro lado, tão logo o Senhor
afaste seu Espírito, todas as coisas voltam ao pó e se desintegram
[v. 29].

3. Disse Deus. Moisés agora, pela primeira vez, introduz Deus no


ato de falar, como se houvera criado a massa do céu e da terra sem
sua Palavra. Contudo, João testifica que “sem ele, nada do que foi
feito se fez” [Jo 1.3]. E é indubitável que o mundo teve seu início
pela mesma eficácia da Palavra pela qual ele foi completado. Deus,
contudo, não manifestou sua Palavra, até que ele desse origem à
luz porque, no ato de distinguir as coisas criadas, sua Sabedoria3
começa a ser vista. Esse único dado é suficiente para refutar a blas-
fêmia de Serveto. Esse imundo sofista assevera que o ponto de par-
tida da existência da Palavra foi quando Deus ordenou que a luz vi-
esse à existência, como se realmente a causa não fosse anterior ao
seu efeito. Contudo, visto que pela Palavra de Deus as coisas que
não existiam de repente vieram a existir, devemos, antes, inferir a
eternidade de sua essência. A partir disso, os apóstolos corretamen-
te provam a Deidade de Cristo, a saber, que, uma vez que ele é a
Palavra de Deus, todas as coisas foram criadas por ele. Serveto
imagina uma nova qualidade em Deus,4 quando “Deus disse”. Mas
o que devemos pensar acerca da Palavra de Deus é exatamente o
oposto disso, a saber, que ela é a Sabedoria residente em Deus,
sem a qual Deus jamais poderia existir, e cujo efeito, contudo, se
tornou evidente quando a luz foi criada.
Haja luz. Era próprio que a luz, por meio da qual o mundo havia
de ser adornado com tal excelente beleza, fosse primeiramente cria-
da; e esse foi também o começo da distinção entre as criaturas.5
Contudo, não é sem motivo ou por acidente que a luz precedesse o
sol e a lua. A nada somos mais inclinados do que reduzir o poder de
Deus àqueles instrumentos pelos quais ele age. O sol e a lua nos
fornecem a luz; e, em conformidade com nossas noções, de tal
modo incluímos esse poder a gerar luz neles que, se fossem remo-
vidos do mundo, pareceria impossível que alguma luz subsistisse.
Portanto, o Senhor, pela própria ordem da criação, dá testemunho
de que mantém em sua mão a luz, a qual ele é capaz de nos comu-
nicar sem o sol e a lua. Além do mais, com base no contexto, é in-
dubitável que a luz foi criada de tal maneira que veio a ser intercam-
biável com as trevas. Mas se poderia questionar se a luz e as trevas
sucederam entre si, por seu turno, através de todo o globo terrestre;
ou se as trevas ocupavam uma metade dele, enquanto a luz brilha-
va na outra metade. Contudo, não há dúvida de que a ordem de sua
sucessão era alternante; mas, se essa alternância correspondia a
ser dia, em todo o globo terrestre, e depois noite, também em todo o
globo terrestre, prefiro não conjecturar.

4. E viu Deus que a luz era boa. Aqui, Moisés apresenta Deus su-
pervisionando sua obra, para deleitar-se nela. Ele, porém, fez isso
para o nosso bem, para nos ensinar que Deus nada fizera sem uma
determinada razão e desígnio. E não devemos entender as palavras
de Moisés como se Deus não soubesse que sua obra seria boa até
que a terminasse. Mas o significado da passagem é que a obra, tal
como ora a vemos, foi aprovada por Deus. Portanto, nada nos resta
senão consentirmos com esse critério divino. E essa admoestação é
muito proveitosa; pois, enquanto o homem deve aplicar todos os
seus sentidos em considerar e admirar as obras de Deus, vemos a
que licenciosidade ele realmente se entrega ao depreciá-las.

5. Chamou Deus à luz Dia. Isto é, Deus quis que houvesse uma al-
ternância regular de dias e noites, a qual também se seguiu imedia-
tamente quando o primeiro dia foi concluído. Pois ele removeu a luz
da vista, para que houvesse o começo de outro dia. Contudo, o que
Moisés diz admite uma dupla interpretação: ou que essa foi a tarde
e manhã pertinentes ao primeiro dia, ou que o primeiro dia consistiu
de tarde e de manhã. Seja qual for a interpretação escolhida, não
faz diferença no sentido, pois ele simplesmente subtende o dia
como sendo composto de duas partes. Além do mais, Moisés, se-
gundo o costume de sua nação, começa o dia com a tarde. Não
com o propósito de disputar se essa é ou não a melhor e legítima or-
dem. Sabemos que as trevas precederam o próprio tempo; quando
Deus subtraiu a luz, ele terminou o dia. Não tenho dúvida de que os
Pais mais antigos, para quem a vinda da noite era o fim de um dia e
o começo do outro, seguiram esse modo de raciocinar. Embora aqui
Moisés não pretendesse prescrever uma norma cuja violação fosse
crime, contudo (como acabamos de dizer) ele acomodou seu discur-
so ao que era aceito segundo o costume. Portanto, como os judeus
tolamente condenam o modo como outros povos calculam a relação
entre o dia e a noite – como se Deus tivesse sancionado somente
esse – também é igualmente tolo quem argumenta que o modo de
calcular descrito por Moisés é absurdo.
O primeiro dia. Aqui se refuta claramente o erro dos que afir-
mam que o mundo foi feito num único momento. Pois é um uso as-
tucioso de sofisma demasiadamente grosseiro argumentar que Moi-
sés distribui em seis dias a obra que aperfeiçoou de uma só vez
com o simples propósito didático de transmitir instruções. Ao contrá-
rio, concluímos que o próprio Deus usou o espaço de seis dias com
o propósito de acomodar suas obras à capacidade dos homens. De
maneira desatenta, consideramos rapidamente a infinita glória de
Deus que aqui refulge; de onde surge isso senão de nossa excessi-
va estupidez em considerar sua grandeza? Além disso, a vaidade
de nossa mente nos faz delirar. Para a correção dessa falha, Deus
aplicou o remédio mui adequado quando distribuiu a criação do
mundo em porções sucessivas, para fixar nossa atenção e nos im-
pelir, como se nos conduzisse com as suas mãos, à pausa e refle-
xão. Para a confirmação da equívoca interpretação acima referida,
cita-se inoportunamente uma passagem de Eclesiástico. “Aquele
que vive eternamente criou todas as coisas em seu conjunto” [18.1].
Pois o advérbio grego (koinê), usado pelo escritor, não significa
isso, nem se reporta ao tempo, mas a todas as coisas universalmen-
te.

6. Haja firmamento. A obra do segundo dia é preencher um espaço


vazio em torno da circunferência da terra, para que céu e terra não
se misturassem. Pois visto que o provérbio “confundir terra e céu”
significa uma desordem extrema, deve-se considerar essa distinção
como sendo de grande importância. Além do mais, a palavra
(rakia) compreende não só toda a região atmosférica, mas todo o
espaço acima de nós, como às vezes a palavra céu é entendida pe-
los latinos. Assim, tanto a disposição do céu como da atmosfera in-
ferior é chamada (rakia), sem discriminação entre si; mas às ve-
zes a palavra significa a conjunção de ambos; outras, só uma parte,
como transparecerá mais claramente em nossa exposição.
Não sei por que os gregos decidiram verter a palavra (ste-
reôma), a qual os latinos imitaram no termo firmamentum, pois, lite-
ralmente, ela significa expansão. E a isso Davi alude quando diz que
“os céus são estendidos por Deus como uma cortina” [Sl 104.2].
Caso alguém questione se esse vazio não existia antes, respondo
que, por mais verdadeiro seja que todas as partes da terra não esta-
vam cobertas pelas águas, contudo agora, pela primeira vez, orde-
nou-se uma separação, enquanto anteriormente existia um misto
confuso.
Moisés descreve a utilidade especial dessa expansão: “separa-
ção entre águas e águas”, de cujas palavras surgiu uma grande difi-
culdade. Pois parece oposto ao senso comum, e totalmente incrível,
que houvesse águas sobre o firmamento. Por isso, alguns recorre-
rem à alegoria e filosofam acerca dos anjos; mas isso não faz qual-
quer sentido. Pois, em minha opinião, este é um princípio indubitá-
vel: que aqui de nada mais se trata senão da forma visível do mun-
do. Quem quiser aprender astronomia ou artes ocultas, então que
procure outra fonte. Aqui, o Espírito de Deus quer ensinar a todos os
homens sem exceção; e por isso o que Gregório declara falsa e inu-
tilmente com respeito às estátuas e quadros é realmente aplicável à
história da criação, a saber, que esta é o livro dos indoutos. Portan-
to, as coisas que Moisés relata servem como adorno daquele teatro
que ele põe diante de nossos olhos. Disso concluo que as águas
aqui implícitas são expressas em termos que os rudes e indoutos
podem perceber.
A afirmação de alguns de que elas abraçam, pela fé, o que
leem concernente às águas sobre o firmamento, além de sua ig-
norância a esse respeito, não está em concordância com o propósi-
to de Moisés. E, de fato, uma investigação mais detalhada de uma
questão tão clara é supérflua. Vemos que as nuvens suspensas no
ar, as quais nos ameaçam como se caíssem sobre nossa cabeça,
contudo, nos deixam espaço para respirarmos. Aqueles que negam
que isso é efetuado pela maravilhosa providência de Deus, em vão
se inflam com a insensatez de sua própria mente. De fato, sabemos
que a chuva é naturalmente produzida; mas o dilúvio mostra sufici-
entemente quão depressa poderíamos ser esmagados pelo irromper
das nuvens, a menos que as cataratas do céu fossem detidas pela
mão de Deus. Davi não se precipita quando inclui isto entre os mila-
gres divinos: que Deus “pôs às águas divisa que não ultrapassarão”
[Sl 104.9]; e, em outro lugar, ele intima as águas do céu a louvarem
a Deus [Sl 148.4]. Visto, pois, que Deus criou as nuvens e lhes atri-
buiu uma região acima de nós, não se deve esquecer que elas são
restringidas por seu poder, para que não jorrem com súbita violência
e nos destruam; e, especialmente, visto que nenhuma outra barreira
se lhes opõe além do líquido e da produção do ar, isso facilmente
aconteceria, a menos que prevalecessem estas palavras: “Haja uma
expansão entre as águas.”. Entretanto, Moisés não concluiu a obra
desse dia com o epílogo “E Deus viu que isso era bom”; talvez por-
que não houvesse razão para ela, até que as águas terrestres se
juntassem em seu lugar próprio, o que foi feito no dia seguinte e, por
isso, há uma dupla reiteração.
9. Ajuntem-se as águas. Este é também um célebre milagre: que
as águas, por seu afastamento, propiciaram uma habitação aos ho-
mens. Até os filósofos6 admitem que a posição natural das águas
era a de cobrir toda a terra, como Moisés declara que assim era no
princípio; primeiro, porque, sendo um elemento, ela seria circular, e
porque esse elemento, sendo mais pesado que o ar, e mais leve
que a terra, deveria cobrir esta em toda a sua circunferência.7 Mas
que os mares, se juntando como que em grandes montes, cedes-
sem ao homem um espaço, é algo aparentemente supernatural e,
por isso, a Escritura com frequência enaltece a bondade de Deus
nesse particular. Veja-se o Salmo 33.7: “Ele ajunta em montão as
águas do mar; e em reservatório encerra as grandes vagas.”. Igual-
mente o Salmo 78.13: “Dividiu o mar, e fê-los seguir; aprumou as
águas como num dique.”. Jeremias 5.22: “Não temereis diante de
mim, que pus a areia para limite do mar, limite perpétuo, que ele não
traspassará? Ainda que se levantem suas ondas, não prevalecerão;
ainda que bramem, não traspassarão.”. E Jó 38.8-11: “Ou quem en-
cerrou o mar com portas, quando irrompeu da madre; quando eu lhe
pus as nuvens por vestidura, e a escuridão por fraldas? Quando eu
tracei os limites e lhe pus ferrolhos e portas, e disse: Até aqui virás,
e não mais adiante, e aqui se quebrará o orgulho de tuas ondas?”.
Portanto, saibamos que habitamos em solo seco porque Deus, por
sua ordem, removeu as águas para que não cobrissem toda a terra.

11. Produza a terra relva. Até aqui a terra era vazia e estéril; então
o Senhor, por sua palavra, a faz frutífera. Pois, embora já estivesse
destinada a produzir fruto, contudo, até que nova virtude emanasse
da boca de Deus, ela permaneceria seca e vazia. Pois ela não esta-
va naturalmente apta a produzir tudo, nem possuía um princípio ger-
minante de alguma outra fonte, até que a boca do Senhor se abris-
se. Pois o que Davi declara concernente aos céus deve também es-
tender-se à terra: que ela foi “feita pela palavra do Senhor, e foi
adornada e suprida pelo hálito de sua boca” [Sl 33.6]. Além do mais,
não é por acaso que as ervas e árvores fossem criadas antes da cri-
ação do sol e da lua. Agora vemos que, de fato, a terra é vivificada
pelo sol para fazê-la produzir seus frutos; Deus não desconhecia
essa lei da natureza, a qual desde então ele mesmo ordenou; mas,
a fim de nos ensinar que todas as coisas dependem dele, o Senhor
não fez uso do sol ou da lua. Ele nos permite perceber a eficácia do
poder que infunde nas ervas e árvores, por meio da instrumentalida-
de do sol e da lua; mas, posto que costumamos considerar como
propriedades naturais aquilo que eles derivam de outro lugar, era
necessário que o vigor que agora parecem comunicar à terra se ma-
nifestasse antes que fossem criados. É verdade que reconhecemos,
nas palavras, que a Primeira Causa é autossuficiente, e que as cau-
sas intermédias e secundárias possuem apenas o que elas empres-
tam desta Primeira Causa; mas, na realidade, representamos a
Deus a nós mesmos como pobre ou imperfeito, a menos que enten-
damos que ele apenas se utiliza das causas secundárias.
Quão poucos, de fato, há que vão além do sol quando tratam
da fecundidade da terra! Por isso, o que declaramos haver Deus fei-
to deliberadamente era indispensavelmente necessário, para que
aprendamos da própria ordem da criação que Deus age através das
criaturas, não como se necessitasse de auxílio externo, mas porque
isso foi de seu agrado. Ao dizer “produza a terra relva, que deem se-
mente, e árvores frutíferas que deem fruto segundo sua espécie”,
ele tem em vista não apenas que as ervas e as árvores fossem en-
tão criadas, mas que, ao mesmo tempo, fossem revestidas com o
poder da reprodução, para que suas várias espécies fossem perpe-
tuadas. Portanto, vemos diariamente a terra nos cobrindo com tais
riquezas desde os seus arredores, visto que vemos as ervas produ-
zindo semente, e que essa semente é recebida e nutrida na terra,
até que germine; e, posto que vemos árvores brotando de outras ár-
vores, tudo isso flui da mesma Palavra. Se, portanto, perguntarmos
como sucede que a terra seja frutífera, que o gérmen é produzido da
semente, que os frutos fiquem maduros, e seus vários tipos são
anualmente reproduzidos, nenhuma outra causa se encontrará se-
não que Deus uma vez falou, isto é, ele promulgou seu eterno de-
creto; e que a terra, e todas as coisas que dela procedem, rendem
obediência ao comando de Deus, o qual elas sempre ouvem.

14. Haja luzeiros. Moisés avança para o quarto dia, quando os as-
tros são criados. Deus criara previamente a luz, mas agora institui
uma nova ordem na natureza: que o sol seria o despenseiro da luz
diurna, e a lua e os astros brilhariam durante a noite. E ele lhes de-
signa esse ofício para nos ensinar que todas as criaturas estão su-
jeitas à sua vontade e executam o que ele lhes prescreveu. Pois
Moisés nada mais relata senão que Deus ordenara a certos instru-
mentos que difundissem pela terra, mediante mudanças recíprocas,
aquela luz que fora previamente criada. A única diferença é que a
luz que outrora era dispersa, agora, porém, procede de corpos lumi-
nosos que, ao servirem a esse propósito, obedecem a ordem de
Deus.
Para fazerem separação entre o dia e a noite. Moisés quer di-
zer o dia “artificial”, que começa com o raiar do sol e termina com
seu ocaso. Pois o dia natural (o qual ele mencionou acima) inclui,
em si, a noite. Disso inferimos que o intercâmbio de dias e noites
será contínuo, porque a palavra de Deus, que determinou que os
dias fossem distintos das noites, dirige o curso do sol a esse fim.
Sejam eles para sinais. Deve-se lembrar de que Moisés não
fala com exatidão filosófica dos mistérios ocultos, mas relata aque-
las coisas que são por toda parte observáveis, até mesmo pelos in-
doutos, e que são do uso comum. Uma dupla vantagem do curso do
sol e da lua é principalmente percebida: a primeira é de ordem natu-
ral; a outra se aplica às instituições civis. Sob o termo natureza, tam-
bém compreendo a agricultura. Pois, embora semeadura e colheita
requeiram a arte e técnica humanas, contudo, é natural que o sol,
por sua aproximação mais direta, aqueça nossa terra; que ele pro-
duza a primavera; que ele seja a causa de verão e outono. Mas,
para ajudar a sua memória, os homens numeram entre si anos e
meses; que desses, eles formam lustro e olimpíadas; que guardam
dias estatuídos; isto, digo, é peculiar à política civil. Aqui se faz men-
ção de cada um desses. Entretanto, em poucas palavras, devemos
afirmar a razão por que Moisés os chama sinais; porque certas pes-
soas curiosas usam mal essa passagem, a fim de enfeitarem suas
frívolas predições.
Denomino a esses homens de caldeus e fanáticos, os quais
tudo adivinham pelos aspectos dos astros. Porque Moisés declara
que o sol e a lua foram designados para sinais, acreditam que estão
autorizados a extrair desses astros tudo o que quiserem. Mas refutar
isso é fácil, pois são chamados sinais em relação a coisas específi-
cas, e não para indicar tudo o que concorde com a nossa fantasia.
O que, de fato, Moisés assevera que deva ser significado por eles,
senão as coisas que pertencem à ordem da natureza? Pois o mes-
mo Deus que aqui ordena os sinais, é o mesmo que, conforme Isaí-
as testifica, diz que “desfaço os sinais dos profetizadores de menti-
ra” [Is 44.25]; e nos proíbe: “nem vos espanteis com os sinais do
céu” [Jr 10.2]. Visto, porém, ser manifesto que Moisés não se aparta
do costume ordinário dos homens, desisto de uma discussão mais
demorada.
A palavra (moadim), que alguns traduzem por “certo tem-
po”, é entendida entre os hebreus de modo variado, pois significa
tanto tempo quanto lugar, e também as assembleias de pessoas. Os
rabinos comumente explicam a passagem como se referindo às
suas festas. Eu, porém, a amplio para significar, em primeiro lugar,
as ocasiões propícias de tempo, aquilo que os franceses chamam
tempos (estações); e, então, todas as ocupações e assembleias fo-
renses.
Finalmente, Moisés celebra a infinita bondade de Deus em fa-
zer com que o sol e a lua não só nos iluminem, mas nos propiciem
várias outras vantagens para o uso diário da vida. Assim, desfrutan-
do simplesmente das múltiplas bênçãos de Deus, aprendamos a
não profanar dádivas tão excelentes mediante nosso ridículo abuso
delas. Entretanto, admiremos esse maravilhoso Artífice, que tão ma-
ravilhosamente dispôs todas as coisas acima e abaixo, para que
correspondam umas às outras no mais harmonioso concerto.

15. E sejam para luzeiros. É oportuno repetir o que dissemos an-


tes: que aqui não se discute, filosoficamente, quão grande é o sol no
céu, e quão grande, ou quão pequena, é a lua; e sim quanta luz nos
advém de ambos. Pois aqui Moisés se dirige aos nossos sentidos,
para que o conhecimento das dádivas divinas, das quais desfruta-
mos, não passe sem ser percebido. Portanto, para apreendermos a
intenção de Moisés, de nada vale voarmos acima dos céus; apenas
abramos nossos olhos à contemplação dessa luz que Deus nos
acendeu na terra. Por esse método (como já observei), a desonesti-
dade daqueles homens é suficientemente reprimida, os quais censu-
ram Moisés por não falar com maior exatidão. Pois, como se tornou
um teólogo, ele demonstrou mais respeito por nós do que pelos as-
tros. Na verdade, nem era ele ignorante do fato de que a lua não ti-
nha suficiente luminosidade para iluminar a terra, a menos que a
emprestasse do sol; porém julga suficiente declarar o que todos nós
pudéssemos claramente perceber: que a lua nos é despenseira de
luz. Admito ser verdade que ela é, como asseveram os astrônomos,
um corpo opaco, embora eu negue ser ela um corpo escuro. Pois,
em primeiro lugar, uma vez que ela está posta acima do elemento
do fogo, necessariamente deve ser um corpo ígneo. Consequente-
mente, ela é também luminosa; mas, visto que não tem suficiente
luz para irradiar-nos, emprestou do sol a que lhe faltava. Comparati-
vamente é chamada de “luzeiro menor” porque a porção da luz que
ela nos emite é pequena em comparação com o infinito esplendor
do sol.8

16. O luzeiro maior. Eu já disse que Moisés, aqui, não discorre com
sutileza, como um filósofo, sobre os segredos da natureza, como se
pode ver nessas palavras. Primeiro, ele designa um lugar, na expan-
são do céu, para os planetas e estrelas; mas os astrônomos fazem
uma distinção de esferas e, ao mesmo tempo, ensinam que as es-
trelas fixas têm seu lugar próprio no firmamento. Moisés apresenta
dois grandes luminares; mas os astrônomos provam, por razões
conclusivas, que o astro de Saturno, o qual, em razão de sua gran-
de distância, parece o menor de todos, é maior que a lua. A diferen-
ça é que Moisés escreveu num estilo simples sobre aquelas coisas
que todas as pessoas simples, sem instrução, mas dotadas com
senso comum, são capazes de entender; mas os astrônomos inves-
tigam com grande labor tudo o que a sagacidade da mente humana
pode compreender. Contudo, esse estudo não deve ser reprovado,
nem essa ciência, condenada, porque algumas pessoas frenéticas
costumam rejeitar ousadamente tudo quanto não lhes pode ser co-
nhecível. Pois a astronomia é não só agradável, mas também muito
útil ao conhecimento; não se pode negar que essa arte descortina a
admirável sabedoria de Deus.
Por isso, como os homens engenhosos devem ser honrados, os
quais têm despendido proveitoso trabalho sobre esse tema, assim
aqueles que dispõem de tempo e capacidade não devem negligenci-
ar esse tipo de exercício. Moisés realmente não quis nos afastar
dessa busca, omitindo tais coisas que são peculiares à essa arte;
mas, porque foi ordenado como mestre tanto do indouto e rude,
quanto do erudito, ele não poderia cumprir seu ofício de outro modo,
senão descendo a esse método mais rude de instrução. Tivesse ele
falado de coisas geralmente desconhecidas, o indouto poderia ale-
gar, como desculpa, que tais temas estavam além de sua capacida-
de.
Finalmente, visto que o Espírito de Deus abre, aqui, uma escola
comum a todos, não surpreende que principalmente escolhesse
aqueles temas que fossem inteligíveis a todos. Se o astrônomo
questiona acerca das dimensões reais dos astros, ele descobrirá
que a lua é menor que Saturno; mas isso é algo velado, pois, a olho
nu, parece muito diferente. Moisés, portanto, prefere adaptar seu
discurso ao uso comum. Porque, posto que o Senhor, por assim di-
zer, estenda sua mão para nos fazer desfrutar do brilho do sol e da
lua, quão grande seria nossa ingratidão se preferíssemos fechar
nossos olhos contra nossa própria experiência!
Não há, portanto, razão para os barulhentos zombarem da ina-
bilidade de Moisés em fazer a lua o luminar secundário; pois ele não
nos faz subir ao céu, apenas propõe coisas que jazem diante de
nossos olhos. Que os astrônomos possuam seu mais exaltado co-
nhecimento; mas, enquanto isso, pela lua, os que percebem o es-
plendor da noite são convencidos, pela utilidade dela, de perversa
ingratidão, a menos que reconheçam a beneficência divina.
Governar. Moisés não atribui tal domínio ao sol e à lua a ponto
de, no mínimo grau, diminuir o poder de Deus; mas porque o sol, no
meio do espaço do céu, governa o dia, e a lua, por sua vez, a noite,
ele, pois, lhes designa um tipo de governo. Recordemos, porém,
que esse governo, como tal, implica que o sol é ainda um servo, e a
lua, uma serva. Entretanto, descartamos o devaneio de Platão, que
atribui aos astros razão e inteligência. Devemos nos contentar com
a simples exposição de que Deus governa os dias e as noites pelo
ministério do sol e da lua, porque ele os tem como seus ministros a
comunicar luz apropriada a cada estação do ano.
20. Povoem-se as águas de enxames de seres viventes. No quin-
to dia, as aves e os peixes foram criados. A bênção divina é conce-
dida para que eles, de si mesmos, possam produzir sua prole. Aqui
há um tipo de reprodução diferente daquela das ervas e árvores;
porque ali o poder de frutificar está nas plantas, e o de germinar
está na semente; aqui, porém, ocorre a geração.
Entretanto, parece pouco condizente com a razão que Moisés
declare que as aves procedam das águas e, portanto, isso é utiliza-
do pelos homens capciosos como ocasião de calúnia. Mas, embora
aí não pareça haver outra razão senão que assim foi do agrado de
Deus, não nos seria conveniente aceitarmos o seu juízo? Por que
não seria lícito àquele que criou o mundo do nada produzir aves da
água? E, pergunto, qual seria o maior absurdo: as aves provir da
água ou a luz proceder das trevas? Portanto, que aqueles que tão
arrogantemente agridem seu Criador olhem para o Juiz que os re-
duz a nada. Contudo, se temos de usar o raciocínio na disputa, sai-
bamos que a água tem maior afinidade com o ar do que tem a terra.
Moisés, porém, deve antes ser ouvido como nosso mestre, o qual
nos transporta com admiração a Deus, através da consideração de
suas obras. E, de fato, embora seja o Autor da natureza, o Senhor
de modo algum seguiu a natureza como seu guia na criação do
mundo, mas, antes, preferiu fazer tais demonstrações de seu poder,
como deveríamos ser constrangidos a admirar.

21. Criou, pois, Deus. Aqui, a palavra criou impõe uma questão.
Pois antes já discutimos que, uma vez que o mundo foi criado, ele
foi produzido do nada; agora, porém, Moisés diz que coisas foram
formadas a partir de matéria já criada. Quem real e propriamente as-
severa que os peixes foram criados porque as águas de modo al-
gum eram suficientes ou adequadas para sua produção, simples-
mente recorre a um subterfúgio; pois, nesse caso, permaneceria o
fato de que o material do qual foram feitos já existia; o que, com es-
trita propriedade, a palavra “criou” não admite.
Portanto, não restrinjo a criação aqui mencionada à obra do
quinto dia, mas, antes, suponho que se reporta àquela massa infor-
me e confusa, a qual foi como que a fonte do mundo inteiro. Lemos,
pois, que Deus criou as baleias e outros peixes; não que se deva
considerar o princípio de sua criação a partir do momento em que
recebem sua forma, mas porque estão compreendidos na matéria
universal que foi criada do nada. De modo que, com respeito à es-
pécie, então só lhes foi acrescida a forma; mas criação é, contudo,
um termo realmente usado em relação tanto ao todo quanto às par-
tes. Em minha opinião, a palavra baleias pode ser traduzida, normal
e apropriadamente, por thynnus ou atum, como correspondente à
palavra hebraica thaninim.
Ao dizer que “as águas produziram”, Moisés continua comen-
tando a eficácia da palavra, à qual as águas atendem tão pronta-
mente e, que, ainda que em si mesma sem vida, de repente se torna
prolífica com uma prole viva; contudo, a linguagem empregada por
ele expressa mais, a saber, que inumeráveis peixes são diariamente
produzidos das águas porque a palavra de Deus, pela qual uma vez
lhe falou, continua em vigor.

22. E Deus os abençoou. A força dessa bênção é imediatamente


declarada por Moisés. Pois Deus não ora, à semelhança dos ho-
mens, para que sejamos abençoados; mas, pela clara indicação de
seu propósito, efetua o que os homens buscam por meio de since-
ras súplicas. Ele, pois, abençoa suas criaturas quando lhes ordena
que aumentem e se desenvolvam; isto é, ele lhes infunde fecundida-
de por meio de sua palavra. Mas parece fútil que Deus fale aos pei-
xes e aos répteis. A isso respondo que esse modo de falar não era
outro senão aquele que pudesse ser facilmente entendido. Pois a
própria experiência ensina que a força da palavra que foi dirigida
aos peixes não era transitória, mas, antes, sendo infusa na natureza
deles, lançou raízes e produz fruto constantemente.

24. Produza a terra seres viventes. Moisés chega ao sexto dia, no


qual os animais foram criados, e então o homem. “Que a terra”, diz
ele, “produza seres viventes.”. Mas, de onde provém que um ele-
mento inanimado tenha vida? Portanto, há nesse aspecto um mila-
gre tão imenso como se Deus começasse a criar, do nada, aquelas
coisas que ele ordenou procedessem da terra. E ele não toma da
terra seu material porque dependesse dela, mas para que combi-
nasse melhor as partes separadas do mundo com o próprio univer-
so.
Contudo, pode-se perguntar por que ele, aqui, não acrescenta
também sua bênção. A isso respondo que, o que Moisés expressou
antes numa ocasião similar, aqui deve estar também subentendido,
embora ele não repita palavra por palavra. Além do mais, digo que é
suficiente para o propósito de significar a mesma coisa o fato de que
Moisés declare que os animais foram criados “segundo sua espé-
cie”, pois essa distribuição continha algo estável. Pode-se ainda in-
ferir disso que a prole dos animais estava inclusa; pois, para que
propósitos existem espécies distintas, senão para que cada uma de-
las, em seus variados tipos, fossem multiplicados?
Animais. Alguns dentre os hebreus assim distinguem entre
“gado” e “animais terrestres”: que o gado se alimenta de relva, mas
que os animais terrestres são os que se alimentam de carne. Mas o
Senhor, logo depois, designa as ervas como alimento comum a am-
bos; e pode-se observar que, em várias partes das Escrituras, essas
duas palavras são usadas indiscriminadamente. Aliás, não tenho dú-
vida de que Moisés, depois de havê-los chamado (Behemoth)
gado, acrescentou o outro como explicação mais completa. Por
“répteis”, nesse caso, entende-se aqueles que são de uma natureza
terrestre.

26. Façamos o homem. Embora o tempo verbal aqui empregado


seja o futuro, todos devem reconhecer que essa é a linguagem de
alguém que aparentemente delibera. Até aqui Deus foi apresentado
simplesmente a ordenar; agora, quando se aproxima da mais exce-
lente de suas obras, ele passa à consulta. Certamente que aqui
Deus podia ordenar, simplesmente por sua palavra, o que queria
que fosse feito; porém, prefere comunicar esse atributo à excelência
do homem: que, de certa maneira, realizaria uma consulta acerca da
criação do homem.
Essa é a mais elevada honra com que Deus nos dignificou para
um devido propósito pelo qual Moisés, por esse modo de falar, esti-
mularia nossa mente. Porquanto Deus não está agora primeiramen-
te começando a considerar que forma ele daria ao homem, e com
que ornamentos seria conveniente adorná-lo, nem está fazendo
pausa para uma obra difícil; mas, justamente como já observamos,
a saber, que a criação do mundo foi distribuída em seis dias em con-
sideração a nós, para que nossa mente fosse mais facilmente retida
na meditação das obras de Deus, do mesmo modo, agora, para o
propósito de encomendar à nossa atenção a dignidade de nossa na-
tureza, Deus, tomando conselho acerca da criação do homem, testi-
fica que está para empreender algo imensurável e maravilhoso.
Na verdade, há muitas coisas nessa natureza corrompida que
poderiam induzir ao desprezo; mas, se o leitor pesar corretamente
todas as circunstâncias, o homem é, entre outras criaturas, certo
modelo preeminente da sabedoria, justiça e bondade divinas, de
modo que ele é merecidamente chamado pelos antigos [mik-
rokosmos], “um pequeno cosmos”. Mas, posto que o Senhor não ne-
cessita de nenhum outro conselheiro, não pode haver dúvida de que
ele consultava a si mesmo.
Ao insinuarem que Deus mantinha comunicação com a terra e
com os anjos, os judeus se tornam totalmente ridículos. A terra, sem
dúvida, era uma conselheira mui excelente! E atribuir aos anjos a
mínima porção de uma obra tão inusitada é um sacrilégio a ser tido
em profunda aversão. Onde, de fato, acharão que fomos criados se-
gundo a imagem da terra ou dos anjos? Porventura Moisés não ex-
clui, direta e claramente, todas as criaturas quando declara que
Adão foi criado segundo a imagem de Deus? Outros, que se julgam
mais perspicazes, são indubitavelmente presunçosos ao dizer que
Deus falava de si próprio no plural, segundo o costume dos prínci-
pes. Como se, na verdade, esse bárbaro estilo de linguagem, cujo
uso proliferou em uns poucos séculos passados, tenha ainda assim
prevalecido no mundo. Mas é bom que sua perversidade canina ti-
vesse se juntado a uma estupidez tão imensa, para que sua tolice
fosse revelada às crianças. Os cristãos, pois, insistem, com proprie-
dade, com base nesse testemunho, que aí existe uma pluralidade
de Pessoas na Deidade. Deus não intima nenhum conselheiro fora
de si; consequentemente, ele encontra em si mesmo algo distinto;
como, na verdade, sua eterna sabedoria e poder residem em seu ín-
timo.
À nossa imagem. Os intérpretes não são unânimes no que se
refere ao significado dessas palavras. A grande maioria acredita que
a palavra imagem deva ser distinguida de semelhança. E a distinção
comum é que imagem existe na substância; semelhança, nos aci-
dentes de alguma coisa. Os que preferem definir o tema de modo
breve, dizem que na imagem estão contidos aqueles dotes que
Deus conferiu à natureza humana em geral, enquanto explicam se-
melhança no sentido de dons gratuitos. Agostinho, porém, além de
todos os outros, especula com excessivo refinamento, com o propó-
sito de projetar uma trindade no homem. Pois, ao valer-se das três
faculdades da alma enumeradas por Aristóteles: o intelecto, a me-
mória e a vontade, ele deriva delas muitas outras. Se algum leitor,
que dispõe de tempo, deseja desfrutar de tais especulações, então
que leia os livros décimo e décimo quarto sobre A Trindade, também
o livro décimo primeiro de A Cidade de Deus. De fato, reconheço
que há algo no homem que se reporta ao Pai, ao Filho e ao Espírito;
e não tenho dificuldade em admitir a distinção das faculdades da
alma feita acima; embora a divisão mais simples em duas partes,
que é mais usada na Escritura, seja mais bem adaptada à sã doutri-
na da piedade; mas uma definição da imagem de Deus deve repou-
sar sobre uma base mais sólida do que em tais sutilezas.
No que me diz respeito, antes de definir a imagem de Deus, ne-
garia que ela difira de sua semelhança. Pois quando Moisés, mais
adiante, repete a mesma coisa, ele ignora a semelhança e se con-
tenta com mencionar apenas a imagem. Alguém poderia replicar di-
zendo que ele estava meramente buscando brevidade; a isso eu
respondo que, onde ele usa duas vezes a palavra imagem, não faz
menção da semelhança. Sabemos ainda que era comum entre os
hebreus repetirem a mesma coisa em diferentes palavras. Além dis-
so, a frase em si mostra que o segundo termo foi acrescido como
explanação. “Façamos”, diz ele, “o homem à nossa imagem, confor-
me nossa semelhança”, isto é, para que ele seja semelhante a
Deus, ou possa representar a imagem de Deus.
Finalmente, no quinto capítulo, sem fazer qualquer menção de
imagem, ele põe semelhança em seu lugar [Gn 5.1]. Mesmo que te-
nhamos descartado toda e qualquer diferença entre as duas pala-
vras, ainda não averiguamos o que é essa imagem ou semelhança.
Os antropomorfitas foram demasiadamente grosseiros em buscar
essa semelhança no corpo humano; que tal desvario, portanto, per-
maneça sepultado. Outros procedem um pouco mais sutilmente, a
saber, ainda que não imaginem Deus como sendo corpóreo, contu-
do sustentam que a imagem de Deus está no corpo do homem, por-
que sua admirável estrutura brilha aí fulgurantemente. Essa opinião,
porém, como veremos, não está de forma alguma em concordância
com a Escritura. A exposição de Crisóstomo não é mais correta, o
qual se reporta ao domínio que ao homem foi dado a fim de poder,
em certo sentido, agir como vice-regente de Deus no governo do
mundo. Essa, realmente, é alguma parte, ainda que muito pequena,
da imagem de Deus.
Posto que a imagem de Deus foi em nós destruída pela queda,
podemos julgar, a partir de sua restauração, o que ela fora original-
mente. Paulo diz que, pelo evangelho, somos transformados na ima-
gem de Deus. E, segundo ele, a regeneração espiritual nada mais é
do que a restauração da mesma imagem [Cl 3.10; Ef 4.23]. É medi-
ante a figura de sinédoque9 que ele fez essa imagem consistir em
“justiça e verdadeira santidade”; pois ainda que essa seja a parte
principal, não é o todo da imagem de Deus. Portanto, por essa pala-
vra se designa a perfeição de toda nossa natureza, como apareceu
quando Adão foi dotado com um reto juízo, quando tinha os afetos
em harmonia com a razão, tinha todos os seus sentidos íntegros e
bem regulados, e realmente se sobressaia em tudo o que é bom.
Assim, a principal sede da imagem divina estava em sua mente e
coração, onde ela era eminente; contudo, não havia parte dele em
que não refulgissem algumas cintilações dela. Pois havia um equilí-
brio nas diversas partes da alma que correspondia aos seus vários
ofícios. Na mente florescia e reinava perfeita inteligência, a retidão
estava presente como sua companheira, e todos os sentidos esta-
vam preparados e moldados para a devida obediência à razão; e no
corpo havia uma correspondência própria a essa ordem interior.
Agora, porém, embora alguns obscuros delineamentos dessa ima-
gem se encontram permanentes em nós, contudo se encontram tão
viciados e mutilados, que se pode dizer com razão que estão destru-
ídos. Pois além da deformidade que por toda parte parece repug-
nante, acrescenta-se também este mal: que nenhuma parte está
isenta da infecção do pecado.

À
À nossa imagem, conforme a nossa semelhança. Não insis-
to escrupulosamente sobre as partículas (bet) e (caf). Não sei se
há algo sólido na opinião de alguns que sustentam que isso é dito
porque a imagem de Deus apenas se insinuou no homem, até que
atingisse sua perfeição. De fato isso procede, porém não creio que
algo do gênero passou pela mente de Moisés. É verdade também
que Cristo é a única imagem do Pai; no entanto, as palavras de Moi-
sés não comportam a interpretação de que “à imagem” significa “em
Cristo”. Pode-se acrescentar também que mesmo o homem, ainda
que num aspecto diferente, é chamado a imagem de Deus. Nisso al-
guns dos Pais da igreja se enganaram, ao imaginarem que poderi-
am vencer os arianos com essa arma, a saber, que Cristo é a única
imagem de Deus. É preciso levar em conta uma dificuldade ainda
maior, a saber, por que Paulo negaria à mulher a imagem de Deus,
quando Moisés honra a ambos, indiscriminadamente, com esse títu-
lo? A solução é simples: a referência de Paulo, ali, é somente à rela-
ção doméstica. E, portanto, restringe a imagem de Deus ao governo
do lar, no qual o homem, como cabeça, é superior à mulher, e certa-
mente Moisés tem em vista nada mais que o fato de que o homem é
superior no grau de honra. Aqui, porém, a questão é acerca daquela
glória de Deus que resplandece particularmente na natureza huma-
na, onde a mente, a vontade, e todos os sentidos representam a or-
dem divina.
Tenha ele domínio. Aqui Moisés celebra aquela parte da digni-
dade com que Deus decretara honrar o homem, a saber, que este
teria autoridade sobre todas as criaturas viventes. É verdade que
Deus designou que o homem fosse o senhor do mundo, mas ex-
pressamente lhe sujeita os animais porque eles, possuindo uma in-
clinação ou instinto inerentemente próprio, parecem estar menos
sob a autoridade externa. O uso do plural notifica que essa autorida-
de não foi dada unicamente a Adão, mas a toda sua posteridade, no
mesmo grau que a ele. E disso inferimos qual era o fim a que todas
as coisas foram criadas, a saber, que nenhuma das conveniências e
necessidades da vida faltasse aos homens. Na própria ordem da cri-
ação, se faz notável a solicitude paternal de Deus pelo homem, por-
que ele, mesmo antes de formar o homem, supriu o mundo com to-
das as coisas indispensáveis, e inclusive com uma imensa profusão
de riqueza. Assim, o homem já era rico, mesmo antes de nascer.
Mas, se Deus teve tal cuidado de nós antes que viéssemos à exis-
tência, de modo algum nos deixará destituídos de alimento e de ou-
tras coisas necessárias à vida, agora que já estamos postos no
mundo. Contudo, quando frequentemente ele retém sua mão, isto é,
a mantém fechada, isso deve ser imputado aos nossos pecados.

27. Criou Deus, pois, o homem. A menção reiterada da imagem de


Deus não constitui uma repetição fútil. Pois é um notável exemplo
da bondade divina que nunca pode ser suficientemente proclamada.
E, ao mesmo tempo, ele nos admoesta de que estado excelente nós
caímos, com o intuito de excitar em nós o desejo de descobri-la. Ao
acrescentar imediatamente que Deus os criou “macho e fêmea”,
Moisés está enaltecendo aquele laço conjugal pelo qual a sociedade
humana é mantida. Pois afirmar que “Deus criou o homem, macho e
fêmea o criou” é uma forma de linguagem que significa a mesma
coisa de como ele dissesse que o homem por si só era incompleto.
Sob essas circunstâncias, a mulher lhe foi dada como companheira,
para que ambos fossem um só, como claramente se expressa no
segundo capítulo. Malaquias também tem em vista a mesma coisa
quando relata [Ml 2.15] que um só homem foi criado por Deus, ainda
quando, contudo, possuísse a plenitude do Espírito. Pois aqui ele
trata da fidelidade conjugal, a qual os judeus passaram a violar por
sua poligamia. Com o propósito de corrigir essa falha, ele denomina
aquele par, consistindo de homem e mulher, o qual Deus no princí-
pio havia ajuntado, um homem, a fim de que cada um aprenda a vi-
ver contente com sua própria esposa.

28. E Deus os abençoou. Pode-se considerar essa bênção divina


como sendo a fonte da qual a raça humana emanou. E assim deve-
mos considerá-la não só em referência ao todo, mas também, como
dizem, em cada caso particular. Pois somos frutíferos ou estéreis
com respeito à geração, quando Deus comunica seu poder a alguns
e o subtrai a outros. Aqui, porém, Moisés simplesmente declararia
que Adão, com sua esposa, foram formados para dar origem a uma
descendência, para que os homens enchessem a terra.
De fato, Deus mesmo poderia ter coberto a terra com uma mul-
tidão de seres humanos; porém, sua vontade foi que procedêsse-
mos de uma única fonte, para que nosso desejo de concórdia mútua
fosse ainda maior, e que cada um pudesse abraçar mais livremente
o outro como sua própria carne. Além disso, como os homens foram
criados para ocupar a terra, assim devemos concluir com certeza
que Deus marcou, como uma fronteira, aquele espaço de terra que
seria suficiente para o acolhimento dos homens, e lhes proveria uma
habitação adequada. Qualquer desigualdade que contrariar esse ar-
ranjo nada mais é que uma corrupção da natureza que procede do
pecado. Contudo, nesse caso a bênção divina de tal modo prevale-
ce que a terra, por toda parte, jaz aberta a receber seus habitantes,
e que uma imensa multidão de seres humanos encontre, em alguma
parte do globo, seu lar.
Ora, deve-se manter em mente o que tenho dito concernente ao
matrimônio: que a intenção de Deus é que a raça humana se multi-
plique de fato por geração, porém não, como nos animais irracio-
nais, por relação indiscriminada. Pois ele uniu o homem à sua espo-
sa, para que produzam uma semente divina, isto é, legítima. Obser-
vemos, pois, a quem Deus aqui fala quando lhes ordena que cres-
cessem, e a quem ele limita sua bênção. Certamente ele não passa
as rédeas às paixões humanas, mas, começando com o santo e
casto matrimônio, ele prossegue falando da geração de uma des-
cendência. Pois é digno de nota o fato de que Moisés aqui alude su-
cintamente a um tema que adiante pretende explicar mais plena-
mente, e que inverte a sequência regular da história, de tal modo
que torna evidente a verdadeira sucessão de eventos. Entretanto,
propõe-se a questão se os fornicários e adúlteros se tornam frutífe-
ros pelo poder de Deus; o que, se for verdade, então a bênção de
Deus se estende a eles da mesma maneira? Minha resposta é que
essa é uma corrupção da instituição divina; e, considerando que
Deus produz geração desse charco lamacento, e também da pura
fonte do matrimônio, tal coisa implicará uma maior destruição. Entre-
tanto, que o método puro e legítimo de proliferação, o qual Deus or-
denou desde o princípio, permanece sólido; essa é aquela lei da na-
tureza que o senso comum declara ser inviolável.
Sujeitai-a. Ele confirma o que dissera previamente acerca do
domínio. O homem já havia sido criado com esta condição: de sujei-
tar a terra a si mesmo; agora, porém, por fim, ele toma posse de seu
direito, quando ouve o que lhe fora dado pelo Senhor; e Moisés ex-
pressa isso ainda mais plenamente no versículo seguinte, quando
apresenta Deus concedendo ao homem as ervas e os frutos. Pois é
de grande importância que não abusemos da generosidade de
Deus, mas que saibamos o que ele nos permite fazer; posto que
não podemos desfrutar de nada com boa consciência, a menos que
o recebamos da mão de Deus. E por isso Paulo nos ensina que, ao
comermos e bebermos, pecamos sempre, a menos que a fé se faça
presente [Rm 14.23].
Assim somos instruídos a buscar de Deus apenas o que nos
seja necessário, e, no uso próprio de seus dons, devemos exercitar-
nos na meditação sobre sua bondade e cuidado paternal. Pois as
palavras de Deus visam a este propósito: “Eis que te preparei ali-
mento antes mesmo que fosses formado; reconhece-me, portanto,
como teu Pai que tem tão diligentemente te provido quando nem
ainda eras criado. Além do mais, minha solicitude por ti vai ainda
mais longe; tua ocupação era sustentar as coisas que te foram en-
tregues, mas ainda tenho tomado sobre mim também esse encargo.
Portanto, ainda que tu sejas, em certo sentido, constituído o pai da
família terrena, não cabe a ti viver demasiadamente ansioso acerca
da manutenção dos animais.”.
Há quem infira dessa passagem que os homens se contenta-
ram com as ervas e frutos até o dilúvio, e que inclusive lhes era ilíci-
to comer carne. E isso parece ainda mais provável porque Deus de
alguma maneira restringe a alimentação da raça humana dentro de
certos limites. Então, depois do dilúvio, lhes outorga expressamente
o uso de carne. Essas razões, contudo, não são suficientemente for-
tes; pois, pode-se alegar contrariamente que os primeiros homens
ofereciam sacrifícios de seus rebanhos. Além do mais, a lei de sacri-
ficar corretamente é não oferecer a Deus nada senão o que ele ou-
torgara ao nosso uso. Finalmente, os homens se vestiam de peles;
portanto, lhes era lícito matar animais. Por essas razões, creio que
nos será melhor nada asseverar com respeito a essa matéria.
Que nos seja suficiente que as ervas e os frutos das árvores
lhes foram dados como alimento comum aos homens; contudo, não
há dúvida de que isso era sobejamente suficiente para sua mais ele-
vada gratificação. Pois julga prudentemente quem sustenta que a
terra ficou tão desfigurada pelo dilúvio, que raramente retemos uma
parte moderada da bênção original. Mesmo imediatamente após a
queda do homem, já havia começado a produzir frutos degenerados
e nocivos, mas, com o dilúvio, a mudança veio a ser ainda maior.
Contudo, seja como for, Deus certamente não tencionava que o ho-
mem fosse sustentado frugal e parcamente; mas, ao contrário, por
essas palavras, ele promete uma abundância generosa, que nada fi-
casse faltando para uma vida amena e agradável. Pois Moisés rela-
ta quão beneficente o Senhor fora para com Adão e Eva, outorgan-
do-lhes todas as coisas que pudessem desejar, para que sua ingrati-
dão fosse ainda menos desculpável.

31. Viu Deus tudo. Uma vez mais, na conclusão da criação, Moisés
declara que Deus aprovou tudo o que fizera. Ao falar de Deus como
vendo, ele age de acordo com o modo humano de falar; pois aprou-
ve ao Senhor que este seu critério fosse uma norma e exemplo para
nós: que ninguém ousasse pensar ou falar de outro modo de suas
obras. Pois não nos é lícito discutir se devemos ou não aprovar
aquilo que Deus já aprovou; mas, antes, nos cabe aceitar sem con-
trovérsia. A repetição significa ainda quão leviana é a imprudência
humana; de outro modo, teria sido suficiente dizer, uma vez por to-
das, que Deus aprovou suas obras. Mas ele inculca a mesma coisa
seis vezes para restringir, como um forte freio, nossa incansável au-
dácia. Moisés, porém, expressa muito mais do que disse antes; pois
ele acrescenta (meod), isto é, tudo. Em cada um dos dias, deu-se
simples aprovação. Agora, porém, depois que a criação do mundo
se completou em todas as suas partes, e recebeu, se posso me ex-
pressar assim, o último toque finalizador, ele declara que tudo era
perfeitamente bom, para que soubéssemos que, na simetria das
obras de Deus, há a mais elevada perfeição, à qual nada se pode
acrescentar.
1 Steuchus Augustinus foi o autor de uma obra intitulada “De Perenni Philosophia”, e é bem
provável ser o escritor referido por Calvino.
2 Sabélio foi um pastor e teólogo do século III d.C. que negava a doutrina da Trindade, afir-
mando que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são uma e a mesma Pessoa.
3 Ao empregar a palavra Sabedoria com inicial maiúscula, é provável que Calvino tivesse
em mente o Filho de Deus, que é intitulado como sendo a Sabedoria em várias passagens
da Escritura.
4 Sobre essa suposta “nova qualidade em Deus” admitida por Serveto, Cf. Institutas da Re-
ligião Cristã, Livro II, cap. xiv.
5 Isto é, sem luz as belezas da natureza não podiam ser percebidas, nem a distinção entre
diferentes objetos discernidos.
6 Aqui, e em muitos outros casos, Calvino emprega o termo “filósofo”, e seus cognatos,
para designar homens que se dedicam ao ensino e à pesquisa no âmbito das ciências na-
turais.
7 Esse raciocínio deve ser entendido a partir das teorias filosóficas da época.
8 O leitor deverá levar em consideração que Calvino fala dos astros e das suas relações a
partir das limitadas teorias da filosofia natural existentes em sua época.
9 Sinédoque é a figura de linguagem que põe uma parte pelo todo, ou o todo por uma par-
te.
C A P ÍT U L O 2

1. Assim, pois, foram acabados os céus e a terra. Moisés reitera


sumariamente que em seis dias se completou a estrutura do céu e
da terra. A divisão geral do mundo é feita nessas duas partes, como
já se declarou no início do primeiro capítulo. Agora, porém, ele
acrescenta a expressão “todo o exército deles”, querendo dizer que
o mundo foi provido com todos os seus ornamentos. Além disso,
esse epílogo refuta com suficiente clareza o erro dos que imaginam
que o mundo foi formado num instante; e declaram que, afinal, só
houve um término da obra do sexto dia. Em vez de exércitos, pode-
ríamos, não impropriamente, traduzir o termo por abundância; pois
Moisés declara que este mundo foi, em cada sentido, completado,
como se toda a casa fosse bem suprida e completada com sua mo-
bília. O céu, sem o sol, a lua, e as estrelas, seria um palácio vazio e
deserto; se a terra fosse destituída de animais, de árvores e plantas,
esse ermo estéril teria a aparência de uma casa pobre e abandona-
da. Deus, pois, não cessou a obra da criação do mundo até que ela
fosse completada em cada parte, de modo que nada faltasse à sua
harmoniosa abundância.

2. Descansou nesse dia. Pode-se perguntar, não impropriamente,


que tipo de repouso foi esse. Pois isto é indubitável: posto que Deus
sustenta o mundo por seu poder, governa-o por sua providência, nu-
tre e ainda faz todas as criaturas reproduzirem, ele está sempre em
atividade. Portanto, aquele dito de Cristo se mostra procedente: que
o Pai e ele mesmo haviam trabalhado desde o princípio até então
[Jo 5.17], porque, se Deus afastasse um pouquinho só a sua mão
da criação, todas as coisas pereceriam imediatamente e se dissol-
veriam em nada, como afirmamos no Salmo 104.29. E de fato Deus
só é corretamente reconhecido como o Criador do céu e terra quan-
do sua perpétua preservação lhe é atribuída. Conhecemos bem a
solução da dificuldade: que Deus cessou de toda a sua obra, quan-
do se absteve de criar novas espécies de coisas. Mas, para tornar o
sentido mais claro, entende-se que Deus deu o último toque, para
que nada faltasse à perfeição do mundo. E este é o significado das
palavras de Moisés: “De toda sua obra que havia feito”; pois ele re-
alça o atual estado da obra como Deus quis que fosse, como se qui-
sesse dizer: “então foi completado o que Deus propusera a si mes-
mo”.
De modo geral, essa linguagem tem a mera intenção de expres-
sar a perfeição do arcabouço do mundo e, por isso, não devemos in-
ferir que Deus de tal modo cessasse suas obras, a ponto de aban-
doná-las, visto que elas só prosperam e subsistem nele. Além disso,
deve-se observar que, nas obras dos seis dias, só estão compreen-
didas aquelas coisas que tendem ao legítimo e genuíno adorno do
mundo. É somente depois que encontraremos Deus dizendo: “Pro-
duza a terra cardos e abrolhos”, querendo significar com isso que a
aparência da terra seria diferente do que foi no princípio. Mas a ex-
plicação é simples: muitas coisas que agora são vistas no mundo
são mais corrupções dele do que parte de sua estrutura original.
Pois, desde que o homem caiu de seu elevado estado original, tor-
nou-se necessário que o mundo se degenerasse gradualmente de
sua natureza. Devemos chegar a essa conclusão com respeito à
existência de pulgas, lagartas e outros insetos nocivos. Em todos
esses, repito, há alguma deformidade do mundo que de modo al-
gum deve ser considerada como pertencente à ordem da natureza
original, visto que essa deformidade veio à existência pelo pecado
do homem, e não pela mão de Deus. Na verdade, essas coisas fo-
ram criadas por Deus, mas em sua função de vingador. Aqui, porém,
Moisés não está considerando Deus como que armado para a puni-
ção dos pecados dos homens, e sim como o Artífice, o Arquiteto, o
generoso Pai de uma família, que nada de essencial omite para a
perfeição de seu edifício. Nos nossos dias, quando olhamos o mun-
do corrompido e degenerado de sua criação original, que esta ex-
pressão de Paulo recorra à nossa mente: que a criatura é passível
de vaidade, não voluntariamente, mas por nossa culpa [Rm 8.20], e
assim lamentemos, nos deixando admoestar por nossa justa conde-
nação.
3. E abençoou Deus o dia sétimo. É como se aqui lêssemos que
Deus abençoa de acordo com o modelo dos homens, porque estes
abençoam aqueles a quem enaltecem de forma excelsa. Contudo,
mesmo nesse sentido, não seria impróprio ao caráter de Deus; por-
que sua bênção às vezes significa o favor que ele outorga ao seu
povo, como os hebreus denominam de “bendito de Deus” àquele
que, por um determinado favor especial, possui autoridade junto a
Deus (“Entra bendito do Senhor” – Gn 24.31). Assim nos é permitido
descrever o dia como abençoado por aquele que o adotou com
amor, para a que a excelência e dignidade de suas obras possam
ser celebradas.
Contudo, não tenho dúvida de que Moisés, ao acrescentar a pa-
lavra santificou, desejava imediatamente explicar o que dissera e,
assim, excluir toda e qualquer ambiguidade, porque a segunda pala-
vra explica a primeira. Pois (kadesh), para os hebreus, é separar
do uso comum. Deus, pois, santifica o sétimo dia quando o faz dis-
tinto, para que, por uma lei especial, ele pudesse ser distinguido dos
demais. Isso implica também que Deus sempre teve respeito pelo
bem-estar dos homens.
Eu já disse anteriormente que seis dias foram empregados na
formação do mundo; não que Deus, para quem um breve instante
equivale a mil anos, tivesse necessidade dessa sucessão de tempo,
mas para que nos envolvêssemos na consideração de suas obras.
Ele teve o mesmo objetivo em vista na designação de seu próprio
repouso, pois escolhe um dia e o separa dos demais para esse uso
especial. Portanto, aquela bênção nada mais é que uma solene con-
sagração, pela qual Deus reivindica para si as meditações e ocupa-
ções dos homens no sétimo dia. De fato, essa é a atividade de toda
a vida, na qual nos exercitamos diariamente a considerar a infinita
bondade, justiça, poder e sabedoria de Deus, nesse magnificente te-
atro do céu e da terra. Mas, para que os homens provem não ser
menos perseverantemente atentos do que deveriam, cada sétimo
dia foi especialmente escolhido para o propósito de suprir o que es-
tava faltando na meditação diária. Portanto, primeiro Deus repou-
sou; e, depois, abençoou esse repouso, para que em todos os tem-
pos ele fosse tido como santo entre os homens; ou ele dedicou cada
sétimo dia para descansar, para que seu próprio exemplo viesse a
ser uma norma perene. Deve-se ter sempre na lembrança o objetivo
dessa instituição; pois Deus não ordenou aos homens que simples-
mente guardassem como santo o sétimo dia, como se ele se delei-
tasse em sua indolência, mas, antes, para que, sendo liberados de
toda e qualquer ocupação, pudessem mais prontamente aplicar sua
mente ao Criador do mundo. Finalmente, é um santo repouso por-
que retira os homens das suas ocupações ordinárias, para que se
dediquem inteiramente a Deus.
Ora, visto que os homens são tão avessos a celebrar a justiça,
sabedoria e poder de Deus, e a ponderar sobre seus benefícios,
que, mesmo quando são muito fielmente admoestados, permane-
cem apáticos, o próprio exemplo de Deus oferece não pouco estí-
mulo, e cada preceito em si vem a ser, com isso, benévolo. Pois, ou
Deus não pode nos atrair mais brandamente, ou incitar-nos mais efi-
cazmente à obediência, do que quando nos convida e nos exorta à
imitação dele mesmo. Além disso, devemos saber que esse deve
ser o empreendimento comum, não de uma só época ou apenas de
um povo, mas de toda a raça humana. Mais tarde, na lei, outorgou-
se um novo preceito com respeito ao sábado, o qual seria peculiar
aos judeus, e apenas por certo tempo, porque ele constituía uma ce-
rimônia legal a prefigurar um repouso espiritual, cuja veracidade se
manifestou em Cristo. Portanto, frequentemente o Senhor testifica
que deu a seu antigo povo, no sábado, um símbolo de santificação.
Por isso, quando ouvimos que o sábado foi ab-rogado pelo advento
de Cristo, devemos distinguir entre o que pertence ao governo per-
pétuo da vida humana e o que pertence propriamente às antigas fi-
guras, cujo uso foi abolido quando a verdade se cumpriu. O repouso
espiritual é a mortificação da carne; de modo que os filhos de Deus
não mais vivessem para si mesmos, ou cedessem à sua própria in-
clinação. Conquanto o Shabbath fosse uma figura desse repouso,
afirmo que isso se deu apenas por certo tempo; mas, visto que aos
homens se ordenou desde o princípio que se dedicassem ao culto
divino, é indubitável que ele continuaria em vigor até o fim do mun-
do.
Toda a obra que, como Criador, fizera. Aqui os judeus, em
seu método usual, tagarelam tolamente dizendo que Deus, tendo se
apressado em sua obra na última tarde, deixou certos animais im-
perfeitos, de cuja espécie são os faunos e sátiros, como se ele fizes-
se parte de uma classe ordinária de artífices que necessitam de
tempo. Desvarios tão monstruosos provam que seus autores eram
imbuídos de uma mente ímproba, como um terrível exemplo da ira
divina.
Quanto ao significado dado por Moisés, alguns o tomam nestes
termos: que Deus criou suas obras a fim de completá-las, porquanto
desde o tempo em que lhes trouxe à existência, não deixou de pre-
servá-las com a sua mão. Mas essa exposição é imprópria. Também
não me sinto disposto a subscrever a opinião dos que aplicam ao
homem a palavra fazer, a quem Deus colocou sobre suas obras,
para aplicá-las ao seu uso, e em certo sentido aperfeiçoá-las por
sua capacidade. Penso, antes, que aqui se nota a perfeição das
obras de Deus, como se Moisés quisesse dizer: “de tal modo Deus
criou suas obras, que nada faltou à sua perfeição; ou a criação atin-
giu tal ponto que a obra, em todos os aspectos, é perfeita”.

4. Esta é a gênese. O objetivo de Moisés era imprimir profunda-


mente em nossa mente a origem do céu e terra, a qual ele designa
pela palavra gênese [geração]. Pois sempre haveria homens ingra-
tos e malignos que, ou inventando que o mundo era eterno, ou su-
primindo a memória da criação, tentariam obscurecer a glória de
Deus. Assim o diabo, por seus engodos, afasta de Deus os que são
mais engenhosos e habilidosos do que os demais, a fim de que
cada um se torne para si mesmo um deus. Portanto, não é uma rei-
teração supérflua que inculca o necessário fato de que o mundo
existiu só a partir do tempo em que foi criado, visto que tal conheci-
mento nos direciona para seu Arquiteto e Autor. Sob os nomes de
céu e terra, inclui-se a totalidade, mediante a figura da sinédoque.
Alguns dentre os hebreus pensam que o nome essencial de Deus é
finalmente aqui expresso por Moisés, porque sua majestade esplen-
de mais evidentemente no mundo completado.

5. Não havia ainda nenhuma planta. Esse versículo está ligado ao


anterior e deve ser lido em continuação com ele; pois ele conecta as
plantas e as ervas com a terra, como a vestimenta com que o Se-
nhor a adornara, para que sua nudez não parecesse uma imperfei-
ção.
O substantivo (siah), que traduzimos por planta, algumas ve-
zes significa árvores, como ocorre em Gn 21.15. Portanto, há quem
o traduza aqui por arbusto, ao que não faço objeção. Entretanto, a
palavra planta não é imprópria; porque, anteriormente, parece que
Moisés se reporta ao gênero, e aqui à espécie. Mas, embora ele já
houvesse relatado que as ervas foram criadas no terceiro dia, contu-
do, não sem razão, aqui outra vez se faz menção delas, para saber-
mos que foram então produzidas, preservadas e propagadas de
uma maneira diferente daquela que percebemos em nossos dias.
Pois ervas e árvores são produzidas de semente, e enxertos são ex-
traídos de outra raiz ou crescem por meio dos rebentos que irrom-
pem [de seus sarmentos]; em tudo isso se empregam a capacidade
e a mão do homem. Mas, naquela época, o método era diferente:
Deus vestiu a terra, não da mesma maneira que hoje (pois não ha-
via semente, nem raiz, nem planta que pudesse germinar), mas
cada uma de repente veio à existência mediante a ordem de Deus e
pelo poder de sua palavra. Possuíam vigor durável, pois permaneci-
am pela força de sua própria natureza, e não pelas ações externas
que agora se percebe; não pelo auxílio da chuva, nem pela irrigação
ou cultura humana, e sim pelo vapor com que Deus irrigou a terra.
Pois ele exclui estas duas coisas: a chuva da qual a terra deriva
umidade, para que retenha sua seiva nativa; e a cultura humana,
que é a assistente da natureza. Ao dizer que Deus “ainda não fizera
chover sobre a terra”, ao mesmo tempo Moisés declara que é Deus
quem abre e fecha as cataratas do céu, e que a chuva e a seca es-
tão em sua mão.

7. Então, formou o S Deus ao homem. Ele então explica o


que havia omitido anteriormente na criação do homem: que seu cor-
po foi tomado da terra. Então disse que ele fora formado à imagem
de Deus. Essa é incomparavelmente uma nobreza mui sublime; e,
para que os homens não a usem como ocasião de orgulho, sua pri-
meira origem é imediatamente posta diante deles; de onde pudes-
sem aprender que essa vantagem era acidental, pois Moisés relata
que o homem fora, desde o princípio, pó da terra. Que os homens
pueris vão agora e se gloriem da excelência de sua natureza!
Quanto aos demais animais, fora dito antes que a terra produza
toda espécie de criatura vivente; mas, por outro lado, o corpo de
Adão foi formado de argila e destituído de movimento sensitivo; foi
assim para que ninguém exultasse em sua carne além da medida.
Seria excessivamente estúpido quem, daqui, não aprender a humil-
dade. Aquilo que mais adiante se acrescenta como oriundo de outra
fonte nos põe ainda mais em justa obrigação para com Deus. Contu-
do, ao mesmo tempo, aprouve a ele distinguir o homem dos animais
irracionais por alguma marca de excelência; pois estes provieram da
terra num instante, mas a dignidade peculiar do homem se exibe
nisto: que ele foi gradualmente formado. Pois, por que Deus não lhe
ordenou imediatamente que saísse vivo da terra, senão para que,
por um privilégio especial, ele esplendesse acima de todas as criatu-
ras que a terra produzira?
E lhe soprou nas narinas o fôlego de vida. Não importa o
que a maioria dos antigos pensava, não hesito em subscrever a opi-
nião dos que explicam essa passagem em relação à vida animal do
homem; e assim exponho, pela palavra fôlego, o que chamam o es-
pírito vital. Alguém objetaria que, se é assim, não se faz nenhuma
distinção entre o homem e as demais criaturas viventes, já que aqui
Moisés relata apenas o que é igualmente comum a todos; a isso
respondo que, muito embora aqui se faça menção apenas da facul-
dade inferior da alma (o princípio vital), a qual comunica fôlego ao
corpo e lhe dá vigor e movimento, isso não impede a alma humana
de pertencer a uma classe distinta e, por isso, ela deve ser distingui-
da da alma dos demais seres viventes. Moisés, antes de tudo, fala
do fôlego; e então acrescenta que ao homem foi dada uma alma
pela qual pudesse viver e ser dotado com sentimento e movimento.
Hoje sabemos que os poderes da mente humana são muitos e vari-
ados. Portanto, não há nada de absurdo supor que aqui Moisés alu-
de a apenas um deles; porém, omite a parte intelectual, da qual já
se fez menção no primeiro capítulo. De fato, devem-se observar na
criação do homem três gradações: que seu corpo inerte foi formado
do pó da terra; que ele foi dotado com uma alma, de onde receberia
movimento vital; e que nessa alma Deus esculpiu sua própria ima-
gem, à qual acrescentou a imortalidade.
E o homem passou a ser alma vivente. Tomo (nepesh)
para significar a própria essência da alma; mas o epíteto vivente se
encaixa somente aqui, e geralmente não abarca os poderes da
alma. Pois a intenção de Moisés nada mais era que explicar a ani-
mação da figura argilosa, por cujo meio sucedeu de o homem come-
çar a viver. Paulo forma uma antítese entre essa alma vivente e o
espírito vivificante que Cristo confere aos fiéis [1Co 15.45] para ne-
nhum outro propósito, senão ensinar-nos que o estado do homem
não foi aperfeiçoado na pessoa de Adão, mas esse é um benefício
peculiar conferido por Cristo, para que sejamos renovados a uma
vida que é celestial, pois, antes da queda de Adão, a vida do ho-
mem era apenas terrena, visto que ela não tinha uma firme e sólida
constância.1

8. E plantou o S Deus. Agora Moisés une a condição e a


norma de viver que foram dadas ao homem. E, antes de tudo, ele
narra em que parte do mundo o homem fora colocado, e que feliz e
prazerosa habitação lhe fora outorgada. Moisés afirma que Deus
plantou, acomodando-se, mediante um estilo não erudito, à capaci-
dade do mais simples. Porque, visto que a majestade de Deus,
como realmente é, não pode ser expressa em palavras, a Escritura
costuma descrevê-la utilizando-se de recursos humanos. Deus,
pois, plantou um Paraíso num lugar que especialmente adornara
com toda variedade de deleites, com profusão de frutos, e com to-
das as outras excelentes dádivas. Por essa razão, ele é chamado
jardim, em virtude da elegância de seu estado e da beleza de sua
forma.
Jerônimo, o antigo intérprete, traduziu adequadamente o termo
por Paraíso, porque os hebreus denominavam os jardins mais exce-
lentemente cultivados de (Pardaisim), e Xenofonte declara que
a palavra é persa, usada para referir os magnificentes e suntuosos
jardins dos reis. Aquela região que o Senhor designou a Adão, como
o primogênito da humanidade, foi uma região selecionada do mundo
inteiro.

É
No Éden. É óbvio que, na Vulgata, Jerônimo traduz impropria-
mente o termo por “desde o princípio” porque, mais adiante, Moisés
diz que Caim habitou na região sul desse lugar. Além do mais, deve-
se observar que, quando descreve o paraíso como situando no ori-
ente, ele fala em referência aos judeus, porquanto dirige seu discur-
so ao seu próprio povo. Disso inferirmos, em primeiro lugar, que
houve determinada região designada por Deus ao primeiro homem,
na qual ele pudesse ter seu lar. Declaro isso expressamente porque
tem havido autores que estenderiam esse jardim a todas as regiões
do mundo. Realmente confesso que, se a terra não fora amaldiçoa-
da em virtude do pecado do homem, toda ela – como fora abençoa-
da desde o princípio – teria permanecido o mais belo cenário tanto
de excelente produção de frutos quanto de deleite; em suma, que
ela teria sido não diferente do Paraíso, quando comparado com
aquele cenário de deformidade que agora contemplamos. Mas, en-
quanto Moisés aqui descreve particularmente a situação da região,
absurdamente eles aplicam ao mundo inteiro o que Moisés disse de
um determinado lugar.
De fato, não se duvida (como acabei de sugerir) que Deus es-
colhesse o mais fértil e agradável lugar, as primícias, por assim di-
zer, da terra, como sua dádiva a Adão, a quem ele dignara com a
honra da primogenitura entre os homens, como emblema de seu es-
pecial favor. Uma vez mais, inferimos que esse jardim estava situa-
do na terra, não no ar, como sonham alguns; pois, a menos que ele
fosse uma região de nosso mundo, não teria sido colocado no orien-
te, tendo como referência a Judeia.
Entretanto, devemos rejeitar inteiramente as alegorias de Oríge-
nes, e de outros como ele, as quais Satanás, com a mais profunda
sutileza, tudo fez para introduzir na Igreja, com o propósito de tornar
a doutrina da Escritura ambígua e destituída de toda certeza e soli-
dez. De fato, pode ser que alguns, impelidos por uma suposta ne-
cessidade, tenham recorrido a um sentido alegórico, pois nunca
acharam no mundo tal lugar como o descrito por Moisés; vemos, po-
rém, que a maioria, por um tolo apego a sutilezas, aderiram demasi-
adamente às alegorias. No que diz respeito à presente passagem,
especulam em vão e para nenhum propósito, afastando-se do senti-
do literal. Pois Moisés não teve nenhum outro objetivo senão ensi-
nar o homem que ele foi formado por Deus com esta condição: que
exercesse domínio sobre a terra, da qual pudesse colher fruto, e as-
sim aprender, pela experiência diária, que o mundo lhe estava sujei-
to. Que vantagem há em pairar no ar e deixar a terra, onde Deus
dera prova de sua benevolência para com a raça humana?
Mas alguém poderia dizer que é mais hábil interpretar isso em
referência à bênção celestial. Minha resposta é que, visto que a he-
rança eterna do homem está no céu, realmente é certo que nos in-
clinemos para lá; contudo, devemos firmar bem nosso pé na terra
por um período suficiente para nos levar a considerar a morada que
Deus requer que o homem use por certo tempo. Pois agora estamos
familiarizados com aquela história que nos ensina que Adão era,
pela designação divina, um habitante da terra, a fim de que, ao
transcorrer sua vida terrena, medite sobre a glória celestial; e que
ele fora profusamente enriquecido pelo Senhor com inumeráveis be-
nefícios, de cujo desfrute pudesse deduzir a benevolência paterna
de Deus.
Moisés também acrescentará mais adiante que foi ordenado a
Adão que cultivasse os campos e lhe foi permitido comer certos fru-
tos; todas essas coisas não se encontram na esfera lunar nem nas
regiões celestiais. Mas, embora já tenhamos dito que a localização
do Paraíso está entre o nascente e a Judeia, contudo se requer algo
mais definido acerca daquela região. Os que argumentam dizendo
que ela ficava na adjacência da Mesopotâmia, contam com razões
que não devem ser menosprezadas; porque é bem provável que os
filhos de Éden vivessem nas proximidades do rio Tigre. Mas, como a
descrição dela feita por Moisés seguirá imediatamente, é preferível
defender a designação dela àquele lugar. O antigo intérprete, Jerôni-
mo, caiu em equívoco ao traduzir o nome próprio, Éden, pelo adjeti-
vo “prazer”. De fato, não nego que o lugar fosse assim chamado
com base em seus deleites; mas é fácil de inferir que o nome foi im-
posto ao lugar para distingui-lo dos demais.

9. Do solo fez o S Deus brotar toda sorte de árvores agra-


dáveis. A produção aqui mencionada pertence ao terceiro dia da cri-
ação. Moisés, porém, declara expressamente o lugar que havia de
ser ricamente reabastecido com todo tipo de árvores frutíferas, para
que houvesse uma plena e ditosa abundância de todas as coisas.
Isso foi feito propositadamente pelo Senhor, para que a cobiça do
homem tivesse menos desculpa se, em vez de contentar-se com tão
notável afluência, doçura e variedade, se precipitasse (como real-
mente sucedeu) contra o mandamento de Deus. O Espírito Santo in-
tencionalmente relata pela instrumentalidade de Moisés a grandeza
da felicidade de Adão, para que se mostrasse ainda mais claramen-
te sua vil intemperança, cuja futilidade foi incapaz de impedi-lo de
lançar mão do fruto proibido.
E certamente foi uma vergonhosa ingratidão que ele não pudes-
se se firmar em um estado tão feliz e desejável; aliás, que foi uma
luxúria mais que brutal, que liberalidade tão imensa não fosse capaz
de satisfazê-lo. Nenhum canto da terra era então estéril, nem havia
qualquer parte que não fosse excessivamente rica e fértil; mas
aquela bênção de Deus, que em outros lugares era comparativa-
mente moderada, nesse lugar tinha transbordado maravilhosamen-
te. Pois não só havia uma abundante provisão de alimento, mas a
ela foi acrescentada a doçura da gratificação do paladar e beleza a
deleitar os olhos. Portanto, a partir de tal benigna benevolência, é
mais que suficientemente evidente quão inexplicável fora a cobiça
do homem.
Também a árvore da vida. É incerto se Moisés tem em vista
apenas duas árvores individuais ou duas espécies de árvores. Am-
bas as opiniões são prováveis, porém o ponto de modo algum é dig-
no de disputa, uma vez que nos é de pouca ou nenhuma importân-
cia qual das duas posições se deve assumir. Há mais importância
nos epítetos, os quais foram aplicados a cada árvore com base em
seu efeito, e isso não pela vontade do homem, e sim de Deus. Ele
deu à árvore da vida esse nome não porque ela pudesse conferir ao
homem aquela vida com que ele fora previamente dotado, mas a fim
de que ela viesse a ser um símbolo e memorial da vida que ele ha-
via recebido da parte de Deus. Pois sabemos não ser de modo al-
gum incomum Deus nos dá provas de sua graça por meio de símbo-
los externos. De fato, ele não transfere seu poder para os sinais ex-
ternos; mas, por meio deles, nos estende sua mão, porque, sem as-
sistência, não podemos ascender a ele. Portanto, sua intenção era
que o homem, assim que degustasse o fruto daquela árvore, se lem-
brasse de onde recebera sua vida, a fim de que reconhecesse que
não vive por seu próprio poder, mas exclusivamente pela bondade
de Deus; e que a vida não é (como se diz comumente) um bem in-
trínseco, senão que procede de Deus. Finalmente, naquela árvore
havia um testemunho visível da declaração de que “em Deus existi-
mos, vivemos e nos movemos”.
Mas, se Adão, até então inocente e de uma natureza impoluta,
tinha necessidade de sinais de advertência que o guiassem ao co-
nhecimento da graça divina, quão mais necessários são agora os si-
nais, nesta grande estupidez de nossa natureza, visto que já caímos
da verdadeira luz! No entanto, não estou insatisfeito com o que nos
foi transmitido por alguns dos Pais, como Agostinho e Eucherius, de
que a árvore da vida era uma figura de Cristo, uma vez que ele é a
Eterna Palavra de Deus. De fato, ela não podia de outro modo ser
um símbolo de vida, senão representando-o em figura. Pois deve-
mos manter o que nos é declarado no primeiro capítulo de João:
que a vida de todas as coisas estava embutida no Verbo, mas espe-
cialmente a vida dos homens, a qual é composta de razão e inteli-
gência. Portanto, por esse sinal, Adão foi admoestado que nada po-
dia reivindicar para si como se fosse propriamente seu, para que ele
dependesse totalmente do Filho de Deus e não buscasse vida em
qualquer outra fonte senão nele. Mas se, no tempo em que possuía
vida em segurança, ele a tinha só com base na palavra de Deus, e
de outro modo não podia mantê-la senão pelo reconhecimento de
que a recebera dele, de onde podemos recuperá-la, depois de a ha-
vermos perdido? Reconheçamos, pois, que, quando nos apartamos
de Cristo, nada mais nos resta senão a morte.
Bem sei que certos escritores restringem o significado da ex-
pressão aqui usada para a vida corpórea. Presumem que na árvore
houvesse tal poder de vivificar o corpo, que este jamais se enfraque-
ceria com a idade; eu, porém, afirmo que eles omitem qual é a prin-
cipal coisa na vida, a saber, a graça da inteligência; pois devemos
considerar sempre para qual objetivo o homem foi formado, e que
norma de vida lhe foi prescrita. Certamente, para ele viver não bas-
tava ter simplesmente um corpo novo e vivo, mas também deveria
se destacar nos dotes da alma.
Quanto à árvore do conhecimento do bem e do mal, devemos
manter que ela foi proibida ao homem não porque Deus quisesse
que ele vagueasse como uma ovelha, sem critério e sem escolha;
mas que ele não buscasse ser mais sábio do que deveria, nem con-
fiasse em seu próprio entendimento, não se submetendo ao jugo de
Deus e se constituindo em árbitro e juiz do bem e do mal. Seu peca-
do procedeu de um mal consciente; isso implica dizer que lhe fora
dado um discernimento pelo qual pudesse discriminar entre virtudes
e vícios. Se não fosse assim, nem poderia ser verdadeiro o que Moi-
sés relata, a saber, que o homem foi criado à imagem de Deus, pos-
to que a imagem de Deus em si mesma compreende o conhecimen-
to daquele que é o principal bem. Totalmente insano, pois, os liberti-
nos são homens monstruosos que supõem que somos restaurados
a um estado de inocência quando cada um se deixa arrebatar por
sua própria luxúria sem critério. Agora entendemos o que está implí-
cito por abster-se da árvore do conhecimento do bem e do mal, a
saber, que Adão, em tentando uma coisa ou outra, não confiasse
em sua própria prudência, mas que, apegando-se somente a Deus,
viesse a ser sábio unicamente por sua obediência. Portanto, aqui
conhecimento é tomado depreciativamente num sentido negativo,
para aquela miserável experiência que o homem, ao apartar-se da
única fonte da perfeita sabedoria, começou a adquirir a sua própria.
E esta é a origem do livre-arbítrio: que Adão quis ser independente
e ousou tentar o que era capaz de fazer.

10. E saía um rio do Éden. Moisés afirma que um rio corria para re-
gar o jardim, o qual mais tarde se dividiria em quatro vertentes. En-
tre todos, é unânime a posição de que duas dessas vertentes são o
Eufrates e o Tigre; pois ninguém disputa que (Hiddekel) seja o
Tigre. Mas há uma grande controvérsia a respeito das outras duas.
Muitos pensam que Pisom e Giom são os Ganges e o Nilo; entretan-
to, o erro de tais homens é sobejamente refutado pela distância das
posições desses rios. Não falta quem inclusive voe até o Danúbio,
como se realmente a habitação de um homem se estendesse da
mais remota parte da Ásia até a extremidade da Europa. Visto, po-
rém, que muitos outros rios célebres fluem através da região da qual
estamos falando, há maior probabilidade na opinião dos que creem
que já se perderam os nomes dos dois últimos rios indicados. Seja
como for, a dificuldade ainda não é solucionada. Pois Moisés divide
aquele rio que fluía pelo jardim em quatro vertentes. Tudo indica,
porém, que as fontes do Eufrates e do Tigre ficam mais distantes
uma da outra.
À luz dessa dificuldade, alguns tentam resolver dizendo que a
superfície do globo poderia ter sofrido mudança com o dilúvio e, por
isso, imaginam ter havido um cataclismo, e os cursos dos rios mu-
daram e suas nascentes se transferiram para outro lugar; mas essa
solução me parece de modo algum aceitável. Pois, embora eu reco-
nheça que a terra, desde o tempo em que fora amaldiçoada, foi re-
duzida de sua beleza original a um estado de miserável definhamen-
to e a um aspecto físico deplorável, e mais tarde, em muitos lugares,
ficou ainda mais devastada pelo dilúvio, no entanto, assevero que
esta é a mesma terra que fora criada no princípio. Acrescente-se a
isso que Moisés (em minha opinião) acomodou sua topografia à ca-
pacidade de sua época. Contudo, nada se define, a menos que en-
contremos aquele lugar onde o Tigre e o Eufrates procederam de
um único rio.
Observe-se, antes de tudo, que não se faz qualquer menção de
uma vertente ou fonte, mas simplesmente afirma-se que havia um
rio. Entendo, porém, as quatro vertentes no sentido tanto da fonte
da qual os rios se derivaram, quanto das fozes pelas quais se desa-
guaram no mar. Ora, o Eufrates, em seus primórdios, estava tão as-
sociado, por sua confluência, com o Tigre, que com razão se podia
dizer que um rio se dividiu em quatro vertentes, especialmente se
for concedido o que é manifesto a todos: que Moisés não fala acura-
damente, nem de uma maneira filosófica, e sim em linguagem popu-
lar, de modo que cada um, com um mínimo de informação, o pudes-
se entender. Assim, no primeiro capítulo, ele denomina o sol e a lua
“dois grandes luminares”, não porque a lua excedesse em magnitu-
de a outros planetas, e sim porque, à observação comum, ela pare-
cia maior. Acrescente-se ainda que ele parece eliminar toda e qual-
quer dúvida quando diz que o rio tinha quatro vertentes, porque fora
dividido a partir daquele lugar. O que isso significa senão que os ca-
nais foram divididos, de uma só corrente confluente, acima ou abai-
xo do Paraíso? Agora submeterei um plano à vista, para que os lei-
tores entendam onde creio que Moisés localizou o Paraíso.
De fato, em seu Sexto Livro, Plínio relata que o Eufrates foi de
tal modo interrompido em seu curso pelo Orcheni, que não podia de-
saguar no mar, exceto através do Tigre. E Pomponius Mela, em seu
Terceiro Livro, nega que ele fluísse por algum dado escoadouro
como outros rios, porém diz que ele não seguia seu curso. Near-
chus, contudo (a quem Alexandre fizera comandante de suas frotas,
e que, sob sua sanção, navegara por todas essas regiões), avalia a
distância da desembocadura do Eufrates até Babilônia, em três mil e
trezentos stadia.2 Mas ele põe a foz do Tigre na entrada de Susiana,
em cuja região, ao regressar daquela longa e memorável viagem,
ele encontrou o rei com sua frota, como Adrian relata em seu Oitavo
Livro das Explorações de Alexandre. Strabo confirma também esta
afirmação por seu testemunho em seu Décimo Quinto Livro. Entre-
tanto, onde quer que o Eufrates, ou aprofunda, ou mistura sua cor-
rente, é certo que ele e o Tigre, abaixo do ponto de sua confluência,
são outra vez divididos. Adrian, contudo, em seu Sétimo Livro, es-
creve que não só um canal do Eufrates corre para o Tigre, mas tam-
bém muitos rios e valos, porque as águas descem naturalmente de
uma base superior à uma inferior.
Com respeito à confluência, a opinião de alguns era que ela
fora efetuada pelo trabalho do Prefeito Cobaris, para que o Eufrates,
pelo impulso de seu curso, não prejudicasse a Babilônia. Mas ele
fala disso como de uma matéria duvidosa. É mais crível que os ho-
mens, por sua arte e capacidade, seguissem a orientação da nature-
za na formação de valos, assim que notaram onde o fluxo do Eufra-
tes seguia da parte mais alta rumo ao Tigre. Além do mais, caso se
ponha confiança em Pomponius Mela, Semiramis conduziu o Tigre e
o Eufrates à Mesopotâmia, a qual anteriormente era seca; algo de
modo algum crível. Há mais verdade na afirmação de Strabo – escri-
tor diligente e atento –, em seu Décimo Primeiro Livro, de que esses
dois rios se unem na Babilônia; e, então, que cada um é arrastado
separadamente, em seu próprio leito, até o Mar Vermelho. Ele en-
tende que a junção ocorreu acima de Babilônia, não distante da ci-
dade de Mássica, como lemos no Quinto Livro de Plínio. Daqui flui
um rio através de Babilônia, o outro se desliza pela Selêucia, duas
das mais célebres e opulentas cidades.
Se admitirmos que tal confluência, pela qual o Eufrates se mis-
tura com o Tigre, se deu de modo natural, e que existiu desde o
princípio, todo absurdo é removido. Se há sob o céu uma região
preeminente em beleza, seja na abundância de todos os tipos de
fruto, na fertilidade, nas delícias, e em outras dádivas, essa é a regi-
ão que os escritores tanto celebram. Portanto, os elogios com que
Moisés enaltece o Paraíso são de tal natureza que pertencem devi-
damente a uma região dessa descrição. E que a região do Éden es-
tava situada naquelas partes é provável à luz de Isaías 37.12 e Eze-
quiel 27.23. Além do mais, quando Moisés declara que emanava um
rio, eu o entendo como que falando do fluxo de uma torrente de
águas, como se quisesse dizer que Adão habitava na margem do
rio, ou naquela terra que era irrigada de ambos os lados, caso o lei-
tor queira considerar o Paraíso a partir das duas margens do rio. En-
tretanto, não faz grande diferença se Adão habitava abaixo do curso
confluente para Babilônia e Selêucia, ou na parte superior; basta sa-
ber que ele ocupou uma região bem irrigada. Não é difícil de enten-
der como o rio foi dividido em quatro vertentes. Pois, há dois rios
que fluem paralelamente e então se separam em diferentes dire-
ções; assim, ele se torna um só no ponto de confluência, porém há
duas vertentes em seus canais superiores, e duas para o mar; mais
adiante, começam outra vez a ser mais amplamente separadas.
Resta ainda a questão referente aos nomes Pisom e Giom. Pois
não parece razoável designar um nome duplo a cada um dos rios.
Mas não é algo novo que rios mudem seus nomes durante seu cur-
so, especialmente onde há alguma marca especial de distinção. O
Tigre mesmo (pela autoridade de Plínio) é chamado Diglito nas pro-
ximidades de sua nascente; no entanto, depois de haver formado
muitos canais, e outra vez fundir-se, assume o nome Pasitigris. Por-
tanto, não há nenhum absurdo dizer que, depois de sua confluência,
ele teve nomes diferentes. Além disso, há tal afinidade entre Pasin e
Pisom, que chega a ser provável que o nome Pasitigris seja um ves-
tígio da antiga designação. No Quinto Livro de Quintus Curtius, com
respeito às Explorações de Alexandre, onde se faz menção de Pasi-
tigris, algumas cópias rezam que ele era chamado pelos habitantes
Pasin. Nem mesmo as outras circunstâncias, pelas quais Moisés
descreve três desses rios, se chocam com essa suposição. O Pisom
circunda a terra de Havilá, onde se produz ouro. Ao Tigre se atribui
o termo circular, em razão de seu curso sinuoso abaixo da Mesopo-
tâmia. A terra de Havilá, em minha opinião, é aqui tomada para uma
região adjacente à Pérsia. Pois, subsequentemente, no capítulo 25,
Moisés relata que os ismaelitas habitaram desde Havilá até Sur, que
é situado ao Egito, onde há uma estrada que conduz à Assíria. Havi-
lá, como uma fronteira, é oposta a Sur, e Moisés situa essa fronteira
nas proximidades do Egito, em direção à Assíria. De onde se segue
que Havilá se estende para Susã e Pérsia. Pois é necessário que
ela esteja abaixo da Assíria, em direção ao Mar Pérsico; além disso,
ela se localiza numa grande distância do Egito, porque Moisés enu-
mera muitas nações que habitavam entre essas fronteiras.3 Então
parece que os nabateus,4 de quem ali se faz menção, eram vizinhos
dos persas. Cada coisa que Moisés assevera acerca do ouro e pe-
dras preciosas é perfeitamente aplicável a essa região.
Resta ainda a ser avaliado o rio Giom, o qual, como Moisés de-
clara, rega a terra de Cuxe. Todos os intérpretes traduzem essa pa-
lavra por Etiópia; porém Moisés inclui sob o mesmo nome o país
dos midianitas, e o país limítrofe da Arábia; é por isso que sua espo-
sa, em outro lugar, é chamada mulher etíope. Além disso, visto que
o curso inferior do Eufrates tende para aquela região, não vejo por
que se julgaria absurdo que ali ele recebesse o nome Giom. E assim
a simples intenção de Moisés é dizer que o jardim do qual Adão foi o
possuidor era bem irrigado, passando por aquela via o canal de um
rio, o qual mais adiante se dividiu em quatro vertentes.

15. Tomou, pois, o S Deus ao homem. Moisés então acres-


centa que a terra foi dada ao homem, sob esta condição: que se
ocupasse em seu cultivo. Consequentemente, os homens foram cri-
ados para que se ocupassem de algum trabalho e não para que se
deitassem em inatividade e ócio. Esse trabalho, de fato, era prazero-
so e abundantemente deleitoso, inteiramente isento de qualquer fa-
diga e exaustão; no entanto, visto que Deus ordenara ao homem
que se exercitasse no cultivo do solo, ele condenou todo repouso in-
dolente. Por isso, nada é mais contrário à ordem da natureza do que
a vida consistir em comer, beber e dormir, enquanto nada nos pro-
pomos fazer.
Moisés acrescenta que a custódia do jardim fora dada ao encar-
go de Adão, para mostrar que possuímos as coisas que Deus entre-
gou às nossas mãos sob a condição de que, vivendo contentes com
o uso sóbrio e moderado delas, nos preocupemos em manter aquilo
que deve permanecer. Aquele que possui um campo, que então par-
ticipe de seus frutos todos os anos, para não deixar o solo ser preju-
dicado por sua negligência; mas que labute para passá-lo à posteri-
dade como o recebera, ou ainda mais cultivado. Assim, nutrindo-se
de seus frutos, não os dissipe com o luxo, nem permita que sejam
prejudicados ou arruinados pela negligência. Além disso, que essa
economia e diligência, com respeito àquelas boas coisas que Deus
nos tem dado para nosso desfrute, nos façam progredir; que cada
um se considere o administrador de Deus em todas as coisas que
porventura vier a possuir. Então não se conduza dissolutamente,
nem corrompa, pelo abuso, aquelas coisas que Deus requer que se-
jam preservadas.

16. E o S Deus lhe deu esta ordem. Moisés então ensina


que o homem era o governante do mundo, com esta exceção: que,
contudo, viveria sujeito a Deus. É-lhe imposta uma lei como emble-
ma de sua sujeição; pois para Deus não haveria diferença se ele co-
messe indiscriminadamente de qualquer fruto que porventura dese-
jasse. Portanto, a proibição no tocante a uma árvore era um teste de
obediência. E, desse modo, Deus determinou que toda a raça hu-
mana se habituasse, desde o princípio, a reverenciar sua Divindade;
como, sem dúvida, era necessário que o homem, adornado e enri-
quecido com tantos e excelentes dotes, fosse mantido sob restrição,
para que não irrompesse em licenciosidade. Havia, aliás, outra ra-
zão especial, à qual já aludimos, a saber, que Adão não desejasse
ser sábio acima da medida; mas é preciso ter isto em mente como o
desígnio geral de Deus: que ele queria que o homem se sujeitasse à
sua autoridade. Portanto, a abstinência do fruto de uma árvore era
um tipo de lição preliminar à obediência, para que o homem soubes-
se que tinha um Diretor e Senhor de sua vida, de cuja vontade de-
vesse depender e a cujo comando devesse se submeter. E esta, re-
almente, é a única norma do bom viver e de racionalidade: que os
homens se exercitassem à obediência de Deus.
Contudo, para alguns, é como se isso não correspondesse ao
critério de Paulo, ao ensinar ele que “a lei não foi promulgada para
os justos” [1Tm 1.9]. Pois, se fosse assim, então, quando Adão era
ainda inocente e íntegro, ele não necessitaria de uma lei. Mas a res-
posta a isso é clara: Paulo ali não está escrevendo em termos con-
troversos; e sim, com base na prática comum da vida, ele declara
que aqueles que correm livremente não precisam ser compelidos
pela necessidade de lei, como se quisesse dizer, segundo o provér-
bio popular, que “as boas leis procedem dos maus costumes”. Entre-
tanto, ele não nega que Deus, desde o princípio, impôs ao homem
uma lei, com o propósito de manter o direito que lhe era devido.
Quem porventura apresentar, como objeção, outra afirmação de
Paulo, onde ele assevera que a “lei é a ministra da morte” [2Co 3.7],
eu respondo ser isso acidentalmente e com base na corrupção de
nossa natureza. Nós, porém, falamos do momento em que ao ho-
mem foi dado um preceito do qual pudesse saber que Deus exercia
domínio sobre ele. No entanto, discorro apenas superficialmente so-
bre essas questões. O que eu disse antes, visto que é de muito mai-
or importância, é que se tenha sempre na memória isto: que nossa
vida será então corretamente ordenada, se obedecermos a Deus, e
se sua vontade for o regulador de todos os nossos sentimentos.
De toda árvore. Para que Adão se submetesse ainda mais es-
pontaneamente, Deus recomenda sua própria liberalidade. “Eis
que”, diz ele, “ponho em tua mão todos os frutos que porventura a
terra produzir, todos os frutos que cada espécie de árvore porventu-
ra gerar; dessa imensa profusão e variedade, excetuo apenas uma
árvore.”. E, assim, ao pronunciar castigo, ele desfere terror, com o
propósito de confirmar a autoridade da lei. Quão grande, pois, é a
perversidade do homem, que nem essa bondosa recomendação dos
dons de Deus, nem o medo do castigo, puderam mantê-lo em seu
dever!
Mas, pergunta-se, que tipo de morte Deus tem em vista aqui? A
mim parece que a definição dessa morte tem de ser buscada em
seu oposto. Reitero que devemos nos lembrar de que tipo de vida o
homem caiu. Ele era, em cada aspecto, feliz; sua vida, portanto, di-
zia respeito tanto ao seu corpo quanto à sua alma, uma vez que em
sua alma prevalecia um correto juízo e um governo próprio dos afe-
tos, aí reinava também a vida; em seu corpo não havia defeito, por-
quanto ele era totalmente isento de morte. Sua vida terrena real-
mente teria sido temporária; contudo, teria se transportado ao céu
sem experimentar morte e sem qualquer prejuízo. A morte, pois, nos
é agora um terror; primeiro, porque há um tipo de aniquilação, no
que diz respeito ao corpo; essa é a razão porque a alma sente a
maldição de Deus. Devemos ver também qual é a maldição da mor-
te, a saber, a alienação de Deus. Consequentemente, sob o nome
morte, estão compreendidas todas aquelas misérias em que Adão
se envolveu por sua queda; pois, assim que ele se revoltou contra
Deus, a fonte da vida, caiu de seu primeiro estado, a fim de perce-
ber que a vida do homem sem Deus é miserável e perdida e, por
isso, em nada difere da morte.
Por isso a condição do homem após seu pecado não ser impro-
priamente chamada tanto privação da vida como morte. As misérias
e males, tanto da alma quanto do corpo, com que o homem se vê
cercado enquanto vive sobre a terra, constituem um tipo de ingresso
na morte, até que a própria morte o absorva totalmente; pois, por
toda parte, a Escritura denomina aqueles mortos que, vivendo opri-
midos pela tirania do pecado e de Satanás, não respiram outra coisa
senão sua própria destruição. Por isso ser supérflua a indagação:
como foi que Deus ameaçou de morte a Adão naquele dia em que
tocasse o fruto, quando deferiu a punição por muito tempo após?
Pois, então, Adão foi entregue à morte, e esta começou nele seu rei-
nado, até que sobreviesse a graça trazendo um remédio.

18. Não é bom que o homem esteja só. Então Moisés explica o
desígnio de Deus em criar a mulher, a saber, para que houvesse se-
res humanos na terra a cultivarem uma sociedade mútua entre si.
No entanto, pode se levantar uma dúvida se esse desígnio deve se
estender à descendência, pois as palavras simplesmente significam
que, posto que não era conveniente ao homem viver sozinho, então
lhe seria criada uma esposa que pudesse ser sua auxiliadora. Eu,
entretanto, entendo que o significado é o seguinte: que Deus, de
fato, já no início da sociedade humana, projeta incluir outros seres
humanos, cada um em sua própria posição. Portanto, o ponto de
partida envolve um princípio geral: que o homem foi formado para
ser um animal social. Ora, a raça humana não podia existir sem a
mulher; e, portanto, na conjunção dos seres humanos, esse sacro
laço é especialmente notável, pelo qual o esposo e a esposa são
combinados em um só corpo e uma só alma, como a própria nature-
za ensinou Platão, e outros da mais sólida classe de filósofos, a fa-
lar. Mas ainda que Deus declarasse, no que respeita a Adão, que
não lhe seria proveitoso viver sozinho, contudo não restrinjo a decla-
ração unicamente à sua pessoa, mas, antes, a considero como sen-
do uma lei comum da vocação do homem, de modo que cada um
deve recebê-la como dita a si próprio: que a solidão não é boa, ex-
cetuando somente aquele a quem se abstém, por um privilégio es-
pecial. Muitos creem que o celibato lhes traz vantagem e, por isso,
se abstêm do casamento, para que não venham a ser miseráveis.
Não foram somente os escritores pagãos que definiram que, para vi-
ver uma vida feliz, não se deve ter esposa, mas o primeiro livro de
Jerônimo, contra Joviniano, está repleto de petulantes reprimendas,
pelas quais ele tenta fazer com que o santo matrimônio seja, ou odi-
oso, ou infame. Que os fiéis aprendam a confrontar essas ímpias
sugestões de Satanás com a declaração de Deus, pela qual ele or-
dena ao homem a vida conjugal, não para sua destruição, e sim
para sua salvação.
Far-lhe-ei uma auxiliadora. Pode-se questionar por que esse
termo não foi expresso no plural, “Far-lhe-emos”, como anteriormen-
te na criação do homem. Há quem suponha que dessa maneira se
caracteriza uma distinção entre os dois sexos, e que assim se mos-
tra o quanto o homem sobressai à mulher. Quanto a mim, porém,
fico mais satisfeito com a interpretação que, muito embora não seja
totalmente contrária a essa, contudo é diferente; isto é, visto que a
raça humana foi criada na pessoa do homem, a dignidade comum
de toda nossa natureza era sem distinção, honrada com um louvor
quando foi dito: “Façamos o homem”; por isso, não era necessário
que a expressão fosse repetida na criação da mulher, que nada
mais era senão um complemento ao homem.
Certamente, não se pode negar que a mulher também, ainda
que tenha sido criada de modo diferente, foi criada à imagem de
Deus; consequentemente, o que se disse na criação do homem é
pertinente também ao sexo feminino. Ora, visto que Deus designa a
mulher como auxiliadora do homem, ele não só prescreve às espo-
sas a norma de sua vocação, para instruí-las em seu dever, mas
também declara que o matrimônio realmente provará ser aos ho-
mens o melhor auxílio da vida. Portanto, podemos concluir que a or-
dem da natureza implica que a mulher seria a auxiliadora do ho-
mem. De fato, o provérbio popular reza que ela é um mal necessá-
rio; contudo é a voz de Deus que deve ser ouvida, a qual declara
que a mulher é dada ao homem como companheira e uma auxilia-
dora a assisti-lo no bom viver. Na verdade confesso que, nesse es-
tado corrupto do gênero humano, a bênção de Deus, que é aqui
descrita, não é percebida nem próspera; mas é preciso considerar a
causa do mal, a saber, que nós invertemos a ordem da natureza que
Deus designara. Pois, se a integridade do homem permanecesse
até hoje tal como foi desde o princípio, essa instituição divina seria
claramente discernida, e reinaria no casamento a mais doce harmo-
nia, porque o esposo elevaria seu reverente olhar para Deus; a mu-
lher ser-lhe-ia, nisso, uma fiel assistente; e ambos, com um só con-
sentimento, cultivariam um santo, bem como um amigável e pacífico
relacionamento.
Ora, sucedeu por nossa culpa e pela corrupção da natureza,
que essa felicidade conjugal em grande medida pereceu, ou, ao me-
nos, se misturou e se infectou com muitas inconveniências. Disso
provêm porfias, conturbações, tristezas, dissensões e um infinito
oceano de males; e disso se segue também que os homens são fre-
quentemente perturbados por suas esposas e, por meio delas, so-
frem muito desânimo. Contudo, o casamento não veio a ser de tal
modo corrompido pela depravação dos homens, que a bênção que
Deus uma vez sancionou por sua palavra fosse totalmente abolida e
extinta. Portanto, em meio a tantas inconveniências do casamento,
as quais são frutos da natureza degenerada, permanece algum resí-
duo do bem divino, à semelhança de um fogo aparentemente extin-
to, mas que algumas fagulhas ainda cintilam.
Esse ponto principal implica em outro: que as mulheres, sendo
instruídas em seu dever de auxiliar seu esposo, deveriam se esfor-
çar por manter essa ordem divinamente designada. É igualmente
responsabilidade dos homens considerar o que devem à outra meta-
de de sua espécie, pois a obrigação de ambos os sexos é mútua, e,
sob essa condição, é a mulher designada como uma auxiliadora
para o homem, para que ele ocupe o espaço como cabeça e líder
dela. É preciso que se note mais uma coisa: que, quando a mulher é
aqui denominada auxiliadora do homem, não se faz qualquer refe-
rência ao estado no qual nos encontramos, desde a queda de Adão;
pois a mulher foi ordenada como auxiliadora do homem, ainda quan-
do ele permanecia em sua integridade. Agora, porém, visto que a
depravação do apetite também requer um remédio, temos da parte
de Deus um duplo benefício; mas o segundo é acidental.
Que lhe seja idônea. No hebraico, temos (kenegedo) que
significa “como que oposto a” ou “em oposição a”. A letra (kaf) é
usada para indicar uma semelhança. Embora alguns rabinos creiam
que aqui ela está como uma afirmativa, contudo a tomo em seu sen-
tido geral, indicando um tipo de contraparte equivalente, pois lemos
que a mulher deve ser oposta a ou em oposição a o homem, porque
ela lhe corresponde. Mas parece-me que se acrescenta a partícula
de semelhança por ser uma forma de linguagem tomada do uso co-
mum.
Os tradutores gregos traduziram fielmente o sentido de ’
(kat’ auton); e Jerônimo por “A qual lhe seja igual”, pois a intenção
de Moisés era destacar alguma igualdade. E daqui se refuta o erro
de alguns que pensam que a mulher foi formada apenas para a pro-
pagação, e que restringem a palavra “bom”, recém-mencionada, à
geração de uma descendência. Não creem que uma esposa fosse
pessoalmente necessária a Adão, porquanto até aqui ele era isento
de luxúria, como se ela lhe fosse dada simplesmente como compa-
nheira de quarto, e não, antes, para que ela fosse inseparável com-
panheira de sua vida. Portanto, a letra (kaf) é importante, pois
mostra que o casamento se estende a todas as partes e utilidades
da vida. É frívola a explicação dada por outros, como se fosse dito:
“Que ela esteja pronta à obediência”, pois a intenção de Moisés era
expressar muito mais que isso, como veremos a seguir.

19. Havendo, pois, o S Deus formado da terra todos os


animais. Essa é uma exposição mais ampla da sentença anterior,
pois ele diz que, de todos os animais, quando fossem postos em or-
dem, não se achou sequer um que correspondesse e se adequasse
a Adão; nem havia tal afinidade de natureza, que Adão pudesse es-
colher para si, dentre quaisquer espécies, uma companheira de
vida. Muito menos isso ocorre em decorrência de ignorância, pois
cada espécie passara em revista diante de Adão, e ele lhes dera no-
mes, não arbitrariamente, mas com base em certo conhecimento;
contudo, não havia justa proporção entre ele e eles. Portanto, a me-
nos que lhe tivesse sido dada uma esposa que lhe fosse semelhan-
te, ele teria permanecido destituído de uma auxiliadora adequada e
apropriada. Além disso, o que aqui se diz de Deus trazendo a Adão
os animais nada mais significa senão que os dotara com a disposi-
ção à obediência, de modo que voluntariamente se oferecessem ao
homem, a fim de que ele, inspecionando-os detidamente, pudesse
distingui-los mediante nomes apropriados, em consonância com a
natureza de cada um.
Essa brandura para com o homem teria permanecido inclusive
nos animais selvagens, se Adão, por sua separação de Deus, não
houvesse perdido a autoridade que previamente recebera. Agora,
porém, desde o tempo em que começou a rebelar-se contra Deus,
ele experimentou contra si a ferocidade dos animais irracionais; pois
alguns são domados com dificuldade, outros permanecem sempre
insubmissos, e alguns, por sua própria iniciativa, nos inspiram terror
por sua fúria. Contudo, restam alguns em cuja sujeição primitiva
continuam assim até hoje, como veremos no segundo versículo do
nono capítulo. Além disso, deve-se observar que Moisés fala sim-
plesmente daqueles animais que se achegam próximo do homem,
pois os peixes vivem como que em outro mundo. Quanto aos nomes
que Adão impôs, não tenho dúvida de que cada um deles era funda-
do na melhor razão, mas seu uso, como muitas outras coisas boas,
veio a ser obsoleto.

21. Então, o S Deus fez cair pesado sono sobre o ho-


mem. Embora para pessoas profanas esse método de formar a mu-
lher pareça ridículo, e algumas dentre elas possam dizer que Moisés
está lidando com fábulas, contudo, para nós, a maravilhosa provi-
dência de Deus brilha aqui; pois, para que a união da raça humana
fosse ainda mais sacra, ele propôs que ambos, macho e fêmea, ti-
vessem uma e a mesma origem. Portanto, ele criou a natureza hu-
mana na pessoa de Adão, e, a partir dela, formou Eva, para que a
mulher fosse apenas uma parte de toda a raça humana. Este é o
teor das palavras de Moisés que já tivemos previamente: “Criou
Deus, pois, o homem [...] homem e mulher os criou” [1.27]. Dessa
maneira, Adão foi ensinado a reconhecer a si e a sua esposa, como
num espelho; e Eva, por sua vez, a se submeter voluntariamente a
seu esposo, como sendo tirada dele. Mas, se os dois sexos proce-
dessem de fontes diferentes, teria havido ocasião de mútuo despre-
zo, de inveja, de contendas.
E contra o que os homens perversos aqui objetam? Dizem eles:
“A narrativa não parece crível, posto que se choca com o costume.”.
Como se de fato tal objeção tivesse mais peso do que uma suscita-
da contra o modo usual de propagação da raça humana, se essa
não fosse conhecida pelo uso e experiência. Mas objetam que, ou a
costela que foi tirada de Adão era supérflua, ou que seu corpo fora
mutilado pela ausência da costela. A essas duas objeções se pode-
ria responder que inventaram um grande absurdo. Contudo, se dis-
sermos que a costela da qual ele formaria outro corpo fora prepara-
da previamente pelo Criador do mundo, nessa resposta nada se en-
contra que não esteja em concordância com a divina Providência.
Entretanto, sou mais favorável a uma inferência diferente, a saber,
que algo foi tirado de Adão a fim de que ele pudesse abraçar com
maior benevolência uma parte de si mesmo. Portanto, ele perdeu
uma de suas costelas, mas, no lugar dela, lhe foi concedido um ga-
lardão muito mais rico, já que ele obteve uma fiel companheira de
vida; pois agora viu a si mesmo, que era imperfeito, completado em
sua esposa.
E vemos nisso uma verdadeira semelhança de nossa união
com o Filho de Deus; pois ele chegou a ser fraco para que tivesse
os membros de seu corpo dotado com poder. Entretanto, é preciso
notar que Adão se viu mergulhado em sono tão profundo que não
sentiu nenhuma dor; e, mais, que ele não sentiu nenhuma ruptura
violenta, nem mesmo percebeu a falta de uma costela perdida, por-
quanto Deus de tal modo preencheu com carne o vácuo, que sua
força permaneceu impoluta; só se removeu a resistência do osso.
Intencionalmente, Moisés usou ainda a palavra edificou, para nos
ensinar que na pessoa da mulher a raça humana finalmente foi com-
pletada, a qual, antes, fora semelhante a um edifício apenas come-
çado. Outros aplicam a expressão à economia doméstica, como se
Moisés dissesse que estava sendo instituída a legítima ordem famili-
ar, o que não difere amplamente da primeira exposição.

22. E lha trouxe. Moisés então relata que o matrimônio foi divina-
mente instituído, o qual é especialmente útil ser conhecido; pois, vis-
to que Adão não tomou para si uma esposa seguindo sua própria
vontade, porém a recebeu como se lhe oferecida e apropriada por
Deus, a santidade do matrimônio se manifesta ainda mais claramen-
te porque reconhecemos a Deus como seu Autor. Quanto mais Sa-
tanás se esforça em desonrar o matrimônio, mais devemos nós vin-
dicá-lo de todo opróbrio e abuso, para que ele seja recebido com a
devida reverência. Disso se seguirá que os filhos de Deus abracem
uma vida conjugal com boa e tranquila consciência, e os esposos e
esposas vivam juntos em castidade e honra. Ao tentar a difamação
do matrimônio, o artifício de Satanás era duplo: primeiro que, por
meio do ódio a ele anexado, introduzisse a pestífera lei do celibato;
e, segundo, que as pessoas casadas se entregassem a todo tipo de
licenciosidade, conforme seus desejos. Portanto, ao exibir-se a dig-
nidade do matrimônio, devemos remover a superstição, para que
ela, por pouco que seja, não impeça os fiéis de castamente fazerem
santo e puro uso da ordenança de Deus; e, mais, devemos lutar
contra a lascívia da carne, para que os homens vivam modestamen-
te com sua esposa. Mas, se nenhuma outra razão nos influenciasse,
contudo, apenas esta deveria nos ser abundantemente suficiente: a
menos que pensemos e falemos honrosamente acerca do matrimô-
nio, a censura é dirigida ao seu Autor e Patrono que, conforme a
descrição de Moisés, é o próprio Deus.

23. E disse o homem. Questiona-se de onde Adão teria obtido tal


conhecimento, visto que naquele momento estivera submerso em
profundo sono. Se dissermos que sua percepção era tão perspicaz
que o possibilitou, por meio de suposições, a formar um juízo, a so-
lução seria ineficaz. Mas não devemos nutrir dúvida de que Deus
lhe manifestou todo o curso do empreendimento, ou por revelação
secreta, ou por sua palavra; pois não foi de qualquer necessidade
da parte de Deus que ele emprestasse do homem a costela da qual
formaria a mulher; porém, designou que ele estaria mais estreita-
mente ligado por este laço, o que não poderia ter sido efetuado a
menos que ele lhes informasse do fato. De fato, Moisés não explica
por qual meio Deus lhes deu essa informação; contudo, a menos
que tornemos a obra de Deus supérflua, devemos concluir que seu
Autor revelou tanto o fato em si quanto o método e desígnio de sua
concretização. Adão caiu em um profundo sono não para ocultar
dele a origem de sua esposa, mas para isentá-lo de dor e preocupa-
ção, até que recebesse uma compensação tão excelente pela perda
de sua costela.
Esta, afinal, é osso dos meus ossos. Ao usar a expressão
(hapa’am), Adão indica que algo lhe faltava; como se quisesse dizer:
agora, por fim, tenho obtido uma companheira adequada, que é par-
te da substância de minha carne, e em quem contemplo, por assim
dizer, outro ego. E ele dá à sua esposa um nome extraído do nome
do homem, para que, por esse testemunho e essa marca, ele trans-
mitisse um perpétuo memorial da sabedoria de Deus. Uma deficiên-
cia no idioma latino compeliu o antigo intérprete, Jerônimo, a tradu-
zir (ishah) pela palavra virago. Contudo, é preciso observar que o
termo hebraico nada mais significa do que a fêmea do homem.

24. Por isso, deixa o homem. É duvidoso se Moisés, aqui, apre-


senta Deus a falar, ou dá seguimento ao discurso de Adão, ou, de
fato, acrescentou isso em virtude de seu ofício de mestre, em sua
própria pessoa. A última dessas opiniões é a que eu aprovo. Portan-
to, depois de haver relatado historicamente o que Deus fizera, Moi-
sés também demonstra o propósito da instituição divina. A suma de
tudo é que, entre os ofícios pertinentes à sociedade humana, este é
o principal e, por assim dizer, o mais santo: que um homem se man-
tenha fiel à sua esposa. E Moisés amplia isso acrescentando uma
elevada comparação, a saber, que o esposo deve preferir a esposa
ao pai. Mas lemos que se deixa o pai não porque o casamento se-
pare os filhos de seus pais, ou dispense outros laços da natureza,
pois, dessa forma, Deus estaria agindo contrário a si próprio. En-
quanto a piedade do filho para com seu pai deva ser diligente e assi-
duamente cultivada, e em si mesma deva ser tida como inviolável e
sacra, contudo, Moisés fala assim do matrimônio com o intuito de
mostrar que é menos lícito abandonar uma esposa do que os pais.
Portanto, aquele que, por causas superficiais, imprudentemente per-
mite divórcios, viola, de uma maneira muito particular, todas as leis
da natureza e as reduz a nada. Se tomarmos como uma questão de
consciência não separar um pai de seu filho, é uma perversidade
ainda maior dissolver o laço que Deus preferiu a todos os demais.
Tornando-se os dois uma só carne. Embora, na Vulgata, Je-
rônimo tenha traduzido a passagem por “numa só carne”, os intér-
pretes gregos a expressaram de uma maneira mais enérgica: “Os
dois estarão em uma só carne”, e é nesse sentido que Cristo cita o
ponto em questão em Mateus 19.5. Mas, embora aqui não se men-
cione dois,5 não há ambiguidade no sentido; pois Moisés de modo
algum disse que Deus designara muitas esposas, e sim somente
uma para um homem; e na orientação geral dada, ele pôs a esposa
no singular. Portanto, assegura-se que o vínculo conjugal só subsis-
te entre duas pessoas, e disso facilmente se mostra que nada é tão
contrário à divina instituição do que a poligamia. Ora, quando Cristo,
ao censurar os divórcios voluntários dos judeus, alega como sua ra-
zão para fazê-lo que “não foi assim desde o princípio” [Mt 19.5], cer-
tamente ordena que essa instituição fosse observada como uma
perpétua norma de conduta. Com o mesmo propósito, Malaquias
também recorda aos judeus de seu próprio tempo: “Portanto cuidai
de vós mesmos, e ninguém seja infiel para com a mulher de sua
mocidade” [Ml 2.15]. Portanto, não há dúvida de que a poligamia é
uma corrupção do legítimo matrimônio.

25. Ora, um e outro, o homem e sua mulher, estavam nus. Que a


nudez dos homens deva ser tida como indecorosa e repulsiva, en-
quanto que a dos animais não tem nada de vergonhoso, parece
concordar pouco com a dignidade da natureza humana. Não pode-
mos contemplar uma pessoa nua sem um senso de pudor; contudo,
tal reação não ocorrerá ao se contemplar um asno, um cão, ou um
boi. Além do mais, cada um se envergonha de sua própria nudez,
ainda quando outras testemunhas não estejam presentes. Onde,
pois, está aquela dignidade que nos torna distintos? A causa desse
senso de pudor, ao qual agora nos referimos, Moisés mostrará no
próximo capítulo. Por ora, ele considera suficiente dizer que em nos-
sa natureza corrompida nada havia senão o que era honroso; disso
se segue que, tudo quanto nos é ignominioso, deve ser imputado à
nossa própria culpa, posto que nossos primeiros pais nada tinham
em si mesmos que fosse inconveniente, até serem maculados pelo
pecado.

1 Ao que parece, a estabilidade aqui sugerida por Calvino refere-se à superioridade da vida
celeste em relação à vida terrestre, baseada no contraste entre alma vivente e o espírito vi-
vificante.
2 Aproximadamente 680 quilômetros.
3 Uma referência às nações povoadas pelos doze filhos de Ismael, de acordo com Gn
25.13-16.
4 Os nabateus são os descendentes de Nebaiote, o filho mais velho de Ismael. Contudo,
visto que habitavam ao ocidente do grande deserto da Arábia, não podem, necessariamen-
te, ser chamados vizinhos dos persas.
5 Não há qualquer equívoco nessa afirmação de Calvino; pois, embora a versão em portu-
guês contenha a expressão “os dois” ou “ambos”, tal expressão não aparece no texto he-
braico nem na versão em latim utilizada por ele. Contudo, a ideia de “os dois” ou “ambos”
está implícita no texto original.
C A P ÍT U L O 3

1. Mas a serpente, mais sagaz que todos os animais. Nesse ca-


pítulo, Moisés explica que, depois de haver sido enganado por Sata-
nás, o homem se rebelou contra seu Criador e foi totalmente trans-
formado e tão degenerado, que a imagem de Deus, na qual fora for-
mado, foi destruída. Então declara que o mundo inteiro, que fora cri-
ado por causa do homem, caiu juntamente com ele de seu estado
original; e que, dessa maneira, muito da sua excelência original foi
destruída. Aqui, porém, surgem muitas e árduas questões. Pois
quando Moisés diz que a serpente era mais astuta que todos os de-
mais animais, é como se notificasse que ela fora induzida a enganar
o homem, não pela instigação de Satanás, e sim por sua própria
maldade. Minha resposta é que a sagacidade inerente à serpente
não impediu a Satanás de fazer uso do animal para o propósito de
efetuar a destruição do homem. Porque, visto que ele necessitava
de um instrumento, então escolheu dentre os animais aquele que
via ser mais apropriado. Finalmente, ele criteriosamente engendrou
o método pelo qual as armadilhas que estava preparando pudesse
mais facilmente tomar a mente de Eva de surpresa.
Até aqui, Satanás não tivera comunicação com o homem; por-
tanto, vestiu-se com a pessoa1 de um animal, sob a qual lhe fosse
aberta a via de acesso. Contudo, entre os intérpretes não há con-
cordância em que sentido se diz ser a serpente (aroom, sagaz),
posto que com essa palavra os hebreus designam tanto o prudente
quanto o astuto. Há quem a tome, portanto, num sentido positivo;
enquanto que outros, num sentido negativo. Entretanto, creio que
Moisés salienta não tanto uma falha, mas atribui louvor à natureza,
porque Deus dotara esse animal com habilidade tão singular, a pon-
to de torná-lo mais sutil e perspicaz do que todos os demais ani-
mais. Satanás, porém, para seus próprios propósitos fraudulentos,
perverteu o dom que fora divinamente comunicado à serpente. Al-
guns, capciosamente, zombam, por meio de sofismas, afirmando
que mais perspicácia é encontrada hoje em muitos outros animais.
A esses, respondo que não haveria absurdo algum em dizer que o
dom que provou ser tão destrutivo à raça humana tem sido retirado
da serpente; apenas dizemos que, como veremos mais adiante, ou-
tras punições lhe foram infligidas. Contudo, nessa descrição, escrito-
res sobre a história natural não diferem materialmente de Moisés, e
a experiência fornece melhor resposta à objeção; pois não é sem
motivo que o Senhor ordene a seus próprios discípulos que fossem
“prudentes como a serpente” [Mt 10.16].
Mas, talvez, pareça pouco razoável que, aqui, somente a ser-
pente seja apresentada, e toda menção a Satanás seja suprimida.
De fato, reconheço que, com base só nesse texto, nada mais se
pode concluir além do fato de que os homens foram enganados pela
serpente. Mas os testemunhos da Escritura são suficientemente nu-
merosos e asseveram claramente que a serpente foi meramente a
boca do diabo; pois não se declara que a serpente seja a “mãe”, e
sim que o diabo é o “pai da mentira”, o fomentador do engano, e o
autor da morte. A questão, contudo, ainda não fica resolvida, porque
Moisés deixou de mencionar o nome de Satanás. De bom grado,
então, subscrevo a opinião dos que mantêm que intencionalmente o
Espírito Santo usou figuras obscuras, porque era conveniente que
uma luz mais plena e nítida fosse reservada para o reino de Cristo.
Entretanto, os profetas provam que estavam bem familiarizados com
a intenção de Moisés, quando, em diferentes lugares, atribuem ao
diabo a culpa de nossa ruína.
Já dissemos em outro lugar que Moisés, ao fazer uso de um es-
tilo simples e comum, acomoda o que enuncia à capacidade do
povo; e isso por uma boa razão, pois não só tinha que instruir uma
geração de homens sem instrução, mas, naquele momento, a Igreja
era tão imatura que era incapaz de receber qualquer instrução mais
elevada. Portanto, não há nada de absurdo em supor, como bem sa-
bemos e confessamos, que, aqueles que viveram naquele tempo e
que são considerados como crianças, fossem alimentados com leite.
Ou (caso outra comparação seja mais aceite) Moisés de modo al-
gum deve ser culpado se, considerando o ofício de pedagogo que
lhe foi imposto, insiste na instrução básica própria às crianças.
Aqueles que têm aversão a essa simplicidade, necessariamente
condenam toda a administração de Deus no governo da sua Igreja.
Contudo, nos seja suficiente que o Senhor, pela secreta iluminação
de seu Espírito e pelas expressões exteriores, supriu tudo o que fal-
tava de clareza, como nitidamente se mostrou a partir dos profetas,
os quais viam a Satanás como sendo o real inimigo da raça huma-
na, o inventor de todos os males, munido com todo tipo de fraude e
infâmia a injuriar e destruir. Portanto, ainda que os ímpios façam al-
voroço, nada há que racionalmente nos ofenda nesse modo de falar
pelo qual Moisés descreve a Satanás, o príncipe da iniquidade, sob
a pessoa de sua serva e instrumento, no tempo em que Cristo, a
Cabeça da Igreja e o Sol da Justiça, ainda não havia resplandecido
publicamente. Acrescenta-se a isso que a vileza da ingratidão hu-
mana é percebida mais claramente disto: que Adão e Eva, sabendo
que todos os animais lhes estavam sujeitos pela mão de Deus, se
deixaram apanhar por um de seus próprios servos para se rebela-
rem contra Deus e apostatarem. Toda vez que contemplavam algum
dos animais que viviam no mundo, deveriam ter se lembrado tanto
da suprema autoridade quanto da singular bondade de Deus; mas,
ao contrário, assim que viram a serpente, uma apóstata de seu Cria-
dor, não só negligenciaram puni-la, em violação de toda a ordem le-
gítima, como se lhe sujeitaram e se devotaram a ela, tornando-se
participantes da mesma apostasia. O que se pode imaginar mais de-
sonroso do que essa extrema depravação? Assim, entendo a ser-
pente não alegoricamente, como há quem tolamente imagine, mas
em seu verdadeiro sentido.
Muitas pessoas ficam surpresas por Moisés, simples e abrupta-
mente, relatar que os homens caíram, pelo impulso de Satanás, em
destruição eterna, e, no entanto, nunca, sequer por uma única pala-
vra, explicar como o próprio tentador se revoltou contra Deus. Por
isso alguns homens fanáticos têm imaginado que Satanás foi criado
mal e perverso como é aqui descrito. Mas a revolta de Satanás é
provada por outras passagens da Escritura; e é uma ímpia loucura
atribuir a Deus a criação de alguma natureza má e corrupta; pois,
quando completou o mundo, ele mesmo deu este testemunho de to-
das as suas obras: “que tudo era bom.”. Portanto, indiscutivelmente,
devemos concluir que o princípio do mal com o qual Satanás foi re-
vestido não proveio da natureza, e sim por rebeldia; porque ele se
apartou de Deus, a fonte da justiça e de toda retidão. Aqui, porém,
Moisés trata rapidamente acerca da queda de Satanás, porque seu
objetivo é narrar sucintamente a corrupção da natureza humana
para nos ensinar que Adão não foi criado para aquelas diversas mi-
sérias sob as quais sofre toda a sua posteridade, mas que ele caiu
nelas por sua própria culpa.
Ao refletir sobre o número e natureza daqueles males aos quais
sentem aversão, os homens frequentemente se sentem incapazes
de conter o furor e murmuração contra Deus, a quem imprudente-
mente censuram pela justa punição de seu pecado. Esta é a sua
principal queixa: que Deus tem sido mais compassivo com cães e
porcos do que com eles. De onde provém isso, senão que não atri-
buem, como deveriam fazer, o estado miserável e arruinado, sob o
qual perecemos, ao pecado de Adão? Mas, o que é ainda pior, lan-
çam sobre Deus a responsabilidade de ser ele a causa de todos os
vícios íntimos da mente (tais como sua horrível cegueira, sua obsti-
nação contra Deus, seus ímpios desejos e violentas propensões
para o mal), como se toda a perversidade de nossa disposição não
viesse de forma acidental.2 Portanto, o propósito de Moisés era
mostrar, em poucas palavras, quão profundamente nossa presente
condição difere da nossa primeira e original condição, a fim de que
aprendamos, com a humilde confissão de nossa culpa, a nos preca-
vermos de nossos males. Não devemos, pois, sentir-nos surpresos
que, ao se concentrar na história, Moisés propôs relatar, e não dis-
cutir cada tópico que porventura alguém gostaria de saber.
Devemos agora enfrentar aquela questão pela qual as mentes
fúteis e inconstantes são profundamente agitadas, a saber, por que
Deus permitiu que Adão fosse tentado, visto que o doloroso resulta-
do de modo algum lhe era oculto? Que agora Deus solte as rédeas
de Satanás, permitindo que ele nos tente a pecar, nós atribuímos ao
seu juízo e vingança, em consequência de o homem ter se alienado
dele; mas não houve a mesma razão para agir assim quando a na-
tureza humana era ainda pura e íntegra. Deus, pois, permitiu a Sata-
nás tentar o homem, que portava à sua própria imagem e ainda não
envolvido em qualquer crime, havendo, além do mais, nessa ocasi-
ão, permitido que Satanás usasse um animal, pois, de outro modo, o
homem nunca o teria obedecido; e o que mais era isso, senão armar
um inimigo para a destruição do homem? Essa parece ter sido a
base sobre a qual os maniqueus sustentaram a existência de dois
princípios. Portanto, imaginaram que Satanás, não se sujeitando a
Deus, armou ciladas para o homem, em oposição à vontade divina,
e foi superior não só ao homem, mas também ao próprio Deus. As-
sim, com o intuito de evitar o que temiam como sendo uma absurdi-
dade, caíram nos execráveis prodígios do erro, tais como que exis-
tem dois deuses, e não um único Criador do mundo, e que o primei-
ro deus foi vencido por seu antagonista. Contudo, todos quantos
pensam piedosa e reverentemente acerca do poder de Deus reco-
nhecem que o mal não se concretiza, exceto por sua permissão.
Pois, em primeiro lugar, deve-se conceder que Deus não era igno-
rante do evento que estava para ocorrer; e, em segundo lugar, que
ele poderia tê-lo impedido, caso visse ser conveniente fazê-lo. Mas,
ao falar de permissão, entendo que ele designara tudo quanto quis
que fosse feito.
Aqui, de fato, surge uma discordância por parte de muitos, os
quais supõem que Adão foi deixado de tal modo à mercê de seu li-
vre-arbítrio, que Deus não queria que ele caísse. Eles admitem (o
que eu lhes concedo) que nada é menos provável do que Deus ser
tido como a causa do pecado, o qual ele vingou com muitas e tão
severas penas. No entanto, quando digo que Adão não caiu sem a
ordenação e vontade de Deus, não o tomo como se o pecado sem-
pre lhe agradasse, ou como se ele simplesmente quisesse que o
preceito que promulgara fosse violado. Uma vez que a queda de
Adão foi a subversão da equidade e da ordem bem constituída, pelo
fato de ser obstinação contra o divino Legislador e a transgressão
da justiça, certamente ela era contra a vontade de Deus; contudo,
nenhuma dessas coisas torna impossível que, por uma razão, ainda
que nos seja desconhecida, Deus poderia querer a queda do ho-
mem. Ofende os ouvidos de alguns quando se afirma que Deus quis
essa queda; pergunto, porém, que outra coisa é a permissão daque-
le que tem o poder de impedir, e em cuja mão está depositada toda
a matéria, senão sua vontade? Eu preferiria que os homens supor-
tassem mais ser julgados por Deus a, com profana imprudência,
passassem a julgá-lo; mas esta é a arrogância da carne: sujeitar
Deus ao seu próprio teste. Inquestionavelmente, nada é mais impró-
prio ao caráter de Deus do que dizermos que o homem foi criado
por ele com o propósito de ser posto numa condição de suspense e
dúvida; por isso concluo que, como Criador, Deus determinou consi-
go mesmo qual seria a futura condição do homem. Disso decorre a
precipitada e imprudente inferência de que o homem não pecou por
livre escolha. Mas ele próprio percebe, se convencendo pelo teste-
munho de sua própria consciência, que fora demasiadamente livre
em pecar. Se pecou por necessidade, ou por contingência, é outra
questão, a respeito da qual se pode ver nas Institutas3 e no tratado
sobre a Predestinação.
Disse à mulher. Os ímpios assaltam essa passagem com seu
escárnio, porque Moisés atribui eloquência a um animal que apenas
silva indistintamente com sua língua bifurcada. E primeiramente in-
dagam quando foi que os animais começaram a mudez, se então ti-
nham uma linguagem distinta e comum a nós e a eles. Quanto a
isso, a resposta é que a serpente não era eloquente por natureza,
mas quando Satanás, com a permissão divina, a tomou como instru-
mento apropriado ao seu uso, também pronunciou as palavras atra-
vés de sua língua, o que Deus mesmo permitiu. Também não tenho
dúvida de que Eva percebeu ser algo extraordinário e, por isso mes-
mo, recebeu com maior avidez o que ela admirou.
Ora, se os homens é quem decidem que aquilo que é inusitado
é fabuloso, Deus não poderia operar nenhum milagre. Aqui, ao reali-
zar uma obra acima do curso ordinário da natureza, Deus nos cons-
trange a admirar seu poder. Se então, sob esse mesmo pretexto, ri-
dicularizamos o poder de Deus só porque ele não nos é familiar,
porventura não somos excessivamente ridículos? Além disso, se pa-
rece incrível que animais falem sob o comando de Deus, como o ho-
mem tem a faculdade de falar, senão porque Deus formou sua lín-
gua? O evangelho declara que vozes foram pronunciadas no ar,
sem um idioma, para ilustrar a glória de Cristo; isso é menos prová-
vel à razão carnal do que extrair um discurso da boca de animais ir-
racionais. O que, pois, pode a petulância dos ímpios achar aqui me-
recedor de sua afronta?
Em suma, qualquer um que afirme que Deus, no céu, é o Go-
vernante do mundo, não negará seu poder sobre as criaturas, de
modo que pode ensinar os animais irracionais a falarem sempre que
o queira, justamente como algumas vezes ele torna eloquentes pes-
soas mudas. Além do mais, a astúcia de Satanás se revela nisto:
que ele não ataca diretamente o homem, porém se aproxima dele,
como que através de uma mina, na pessoa de sua esposa. Esse in-
sidioso método de ataque nos é mais que suficientemente conheci-
do em nossos dias, e gostaria que aprendêssemos prudentemente a
nos guardar dele. Pois cautelosamente ataca naquele ponto em que
vê sermos menos fortificados, para que não seja percebido até que
tenha penetrado aonde ele desejava. A mulher não fugiu do diálogo
com a serpente, porque até então não existia qualquer dissensão;
ela, pois, a considerou simplesmente como um animal doméstico.
Surge a seguinte pergunta: o que teria impelido Satanás a en-
gendrar a destruição do homem? Os sofistas curiosos inventaram
que ele ardia de inveja, ao prever que o Filho de Deus se vestiria
com a carne humana; no entanto essa especulação é demasiada-
mente frívola. Pois, uma vez que o Filho de Deus se fez homem
para nos restaurar de nossa miserável ruína, nós, que já estávamos
perdidos, como seria possível que ele previsse o que nunca havia
acontecido, a menos que o homem pecasse? Se há espaço para su-
posições, é mais provável que Satanás se visse arrastado por um
tipo de fúria (como os desesperados costumam fazer), para levar o
homem consigo numa participação da ruína eterna. Cabe-nos, po-
rém, contentarmo-nos com esta única razão: sendo ele adversário
de Deus, tentava subverter a ordem estabelecida pelo próprio Deus;
e, visto que ele não pôde derrubar Deus de seu trono, então atacou
o homem, em quem resplandecia a imagem de Deus. Satanás sabia
que, com a ruína do homem, se produziria no mundo inteiro a mais
terrível confusão, como de fato se deu, e por isso fez de tudo para,
na pessoa do homem, obscurecer a glória de Deus. Rejeitando,
pois, todas as vãs ficções, retenhamos essa doutrina, a qual, res-
pectivamente, é simples e sólida.
É assim que Deus disse? Essa sentença é explicada de modo
variado, e inclusive distorcido, em parte porque é em si obscura, e
em parte em decorrência do significado ambíguo da partícula he-
braica. A expressão (aph ki) algumas vezes significa “ainda que”
ou “de fato”; e, algumas vezes, “quanto mais”. David Kimchi a toma
neste último sentido, e pensa que um longo diálogo havia ocorrido
entre a mulher e a serpente, antes que esta chegasse nesse ponto;
isto é, que, havendo caluniado a Deus sobre outras questões, a ser-
pente finalmente conclui: por isso muito mais me parece quão inve-
joso e maligno é Deus para convosco, porque vos privou da árvore
do conhecimento do bem e do mal. Mas essa exposição é não ape-
nas forçada, como prova ser falsa pela resposta de Eva. Mais corre-
ta é a exposição da paráfrase caldaica: “É verdade que Deus proi-
biu?” etc. Para alguns, reiteramos, essa parece ser uma interroga-
ção simples; para outros, irônica. Seria uma interrogação simples,
se injetasse uma dúvida da seguinte maneira: “É possível que Deus
proíba comer de qualquer árvore?”. Mas seria irônica, se usada para
o propósito de dissipar vão temor, como: “De fato, isso realmente diz
respeito apenas a Deus: se comeis ou não da árvore! Portanto, é ri-
dículo pensardes que ela vos foi proibida!”.
Subscrevo mais espontaneamente a primeira opinião, porque
há maior probabilidade de que Satanás, a fim de enganar mais dissi-
muladamente, procedesse gradualmente com cautelosas prevarica-
ções, para levar a mulher a menosprezar o preceito divino. Há aque-
les que supõem que Satanás nega expressamente que a palavra
que nossos primeiros pais ouviram fosse a palavra de Deus. Outros
pensam (com os quais tendo a concordar) que, sob o pretexto de in-
vestigar a causa, ele, indiretamente, minou a confiança dela na pala-
vra. E, Jerônimo, o antigo intérprete, traduziu corretamente a ex-
pressão por “Por que Deus disse?”, a qual, embora eu não aprove
inteiramente, contudo não tenho dúvida de que a serpente insiste
com a mulher a buscar a causa, visto que, de outro modo, ele não
teria sido capaz de afastar mente dela de Deus. Profundamente pe-
rigosa é a tentação, quando se nos sugere que Deus não deve ser
obedecido, exceto na medida em que o motivo de sua ordem se fi-
zer evidente. A verdadeira norma da obediência é que, vivendo con-
tentes com o mero mandamento, nos persuadamos de que tudo o
que ele nos impõe é justo e certo. Mas quem quer que deseje ser
sábio além da medida, a esse, Satanás, vendo que o mesmo rejeita
toda a reverência para com Deus, imediatamente o precipita em
franca rebelião. Com respeito à construção gramatical, creio que a
expressão deve ser traduzida assim: “De fato Deus disse?”, ou: “É
assim que Deus disse?”. No entanto, é preciso observar bem o artifí-
cio de Satanás, porquanto ele deseja injetar na mulher uma dúvida
que pudesse induzi-la a crer naquilo que não é a palavra de Deus,
para a qual não há claramente uma razão plausível.
De toda árvore do jardim. Há comentaristas que oferecem
uma dupla interpretação dessas palavras. A primeira delas supõe
que, em razão de sua crescente inveja, Satanás insinua que todas
as árvores foram proibidas. “Realmente Deus vos ordenou que não
ouseis tocar em qualquer árvore?”. Contudo, a outra interpretação é:
“Então não vos foi concedida a liberdade de comerdes indiscrimina-
damente de toda e qualquer árvore que quiserdes?” A primeira con-
corda mais com a disposição do diabo, que malignamente ampliaria
a proibição, e parece ser sancionada pela resposta de Eva. Pois
quando ela diz: “Comeremos de toda árvore”, excetuando apenas
uma, é como se ela repelisse a calúnia acerca de uma proibição ge-
ral. Visto, porém, que o segundo sentido da passagem, o qual pres-
supõe a dúvida acerca da simples e mera proibição de Deus, era
mais propício ao engano, é mais crível que Satanás, com sua costu-
meira perversidade, houvesse começado sua interpretação deste
ponto: “É possível que Deus não queira que comais do fruto de toda
e qualquer árvore?”. A resposta da mulher, de que apenas uma ár-
vore foi proibida, demonstra ser uma defensa do mandamento,
como se ela negasse que parecia ser rigoroso ou pesado, visto que
Deus só excetuara uma única árvore dentre tão grande abundância
e variedade de tudo que lhes fora concedido. Assim, nessas pala-
vras, haverá uma concessão: que, de fato, uma única árvore foi proi-
bida; segue-se, então, a refutação de uma calúnia, porque não é ár-
duo ou difícil abster-se de uma só árvore, quando outras inúmeras
são livres, das quais se permitia o uso.
Era impossível que Eva pudesse, mais prudente ou corajosa-
mente, repelir o ataque de Satanás, do que se opondo a ele dizendo
que ela e seu esposo tinham sido tão liberalmente tratados pelo Se-
nhor, que as vantagens que lhes foram concedidas eram sobeja-
mente suficientes; pois ela insinua que seriam muito ingratos se, em
vez de viverem contentes com tal abundância, desejassem mais do
que era lícito. Ao dizer que Deus lhes proibira comer ou tocar, há
quem presuma que a segunda palavra foi adicionada com o intuito
de acusar a Deus de tão grande severidade, porquanto lhes proibira
inclusive de tocar. Contrariamente, porém, entendo que ela, até en-
tão, permaneceu obediente e expressou sua piedosa disposição em
observar ansiosamente o preceito de Deus; apenas que, ao procla-
mar a punição, ela começa a divagar, inserindo o advérbio “talvez”,
quando Deus certamente pronunciara: “morrendo morrerás.”. Pois,
embora para os hebreus (pen) nem sempre implique dúvida, con-
tudo, visto que geralmente é tomada nesse sentido, de bom grado
abraço a opinião de que a mulher estava começando a vacilar. Cer-
tamente, se ela não tivesse a morte tão imediatamente diante de
seus olhos, viria a ser desobediente a Deus, como de fato se portou.
Evidentemente, ela prova que sua percepção do verdadeiro perigo
de morte era remota e indiferente.

4. Então, a serpente disse à mulher. Satanás agora ataca com


mais ousadia; e porque ele vê diante de si uma brecha aberta, ir-
rompe num ataque direto, pois ele nunca costuma engajar-se aber-
tamente em guerra, até que voluntariamente nos exponhamos a ele,
desnudos e desarmados. Primeiro, cautelosamente, se aproxima de
nós com afagos; mas, depois que nos rouba, então ousa se exaltar
petulantemente e com orgulhosa confiança contra Deus, justamente
como faz aqui: depois de injetar dúvida em Eva, vai mais fundo,
para converter a expressão em uma frase negativa direta. Cabe-
nos, por tais exemplos, receber instrução para nos precavermos de
suas armadilhas e, fazendo oportuna resistência, o mantermos lon-
ge de nós, para que não lhe seja permitido mais franco acesso. Por-
tanto, agora ele não indaga dubiamente, como antes, se a ordem di-
vina, à qual ele se opõe, é ou não verdadeira, mas acusa a Deus
francamente de falsidade, pois assevera que a palavra pela qual a
morte é anunciada é falsa e enganosa. Que tentação fatal! Quando
Deus nos ameaça com morte, não só dormimos tranquilamente,
mas o temos, a ele mesmo, em escárnio!

5. Porque Deus sabe. Há aqueles que pensam que Deus é aqui as-
tutamente louvado por Satanás, como se ele nunca proibira os ho-
mens do uso de fruto saudável. Mas, manifestamente, se contradi-
zem, pois ao mesmo tempo confessam que, na parte inicial da sen-
tença, ele já declarara Deus como indigno de confiança, como se
Deus tivesse mentindo. Outros supõem que ele acusa a Deus de ser
maligno e invejoso, como querendo privar o homem de sua mais
elevada perfeição; e esta opinião é mais provável do que a anterior.
Contudo (em minha opinião), Satanás tenta provar o que recente-
mente asseverara; no entanto arrazoa com base nos contrários:
Deus, diz ele, vos interditou a árvore, para que não seja compelido a
admitir-vos à participação de sua glória; portanto, o receio da puni-
ção é totalmente desnecessário. Em suma, ele nega que um fruto
que é proveitoso e saudável possa ser prejudicial. Ao dizer “Deus
sabe”, ele censura Deus como sendo movido de ciúme, e como pro-
mulgando um mandamento com respeito à árvore, com o propósito
de manter o homem numa categoria inferior.
Como Deus. Alguns traduzem a expressão dessa forma: “Se-
reis como anjos”. Ela também pode ser traduzida no singular, “Se-
reis como Deus”. Não tenho dúvida de que Satanás lhes promete di-
vindade, como se quisesse dizer: Deus vos privou da árvore do co-
nhecimento porque ele teme ter-vos como iguais. Além disso, não é
sem alguma demonstração de razão que ele faz a glória divina, ou a
igualdade com Deus, consistir no perfeito conhecimento do bem e
do mal; mas é um mero pretexto, com o propósito de enredar a mi-
serável mulher. Porque o anseio por conhecimento é naturalmente
inerente à todos, e é suposto que a felicidade está nele. Eva, porém,
errou em não regular a medida de seu conhecimento pela vontade
de Deus. E todos nós, diariamente, sofremos sob a mesma doença,
porque desejamos conhecer mais do que é de direito, e mais do que
Deus mesmo permite; enquanto o ponto principal da sabedoria é
uma bem regulada sobriedade na obediência a Deus.

6. Vendo a mulher. Esse olhar impuro de Eva, infectado com a pe-


çonha da concupiscência, foi tanto o mensageiro quanto a testemu-
nha de um coração impuro. Anteriormente, ela podia contemplar a
árvore com tamanha sinceridade, que nenhum desejo de comer do
seu fruto afetava sua mente; pois a fé que ela possuía na palavra de
Deus era a melhor guardiã de seu coração, bem como de todos os
seus sentidos. Agora, porém, depois que o coração decai da fé e da
obediência à palavra, ela corrompeu tanto a si própria quanto a to-
dos os seus sentidos, e a depravação se difundiu por todas as par-
tes de sua alma e também por todo o seu corpo. Portanto, é um si-
nal de ímpia fraqueza que a mulher agora julgue a árvore como sen-
do boa para alimento, avidamente se deleita em sua contemplação,
e se persuade de que ela é desejável para a aquisição de sabedo-
ria, enquanto que, antes, ela passara por ela cem vezes com um
olhar firme e tranquilo. Pois agora, havendo saído dos limites, sua
mente vagueia dissolutamente e sem qualquer senso de temperan-
ça, e arrasta o corpo com ela à mesma licenciosidade. A palavra
(lehaskil) admite duas explicações: que a árvore era desejável,
ou para ser admirada, ou para comunicar prudência. Prefiro o se-
gundo sentido, como correspondendo melhor com a tentação.
E deu também ao marido, e ele comeu. À luz dessas pala-
vras, alguns supõem que Adão estava presente quando sua esposa
foi tentada e persuadida pela serpente, o que de modo algum é crí-
vel. No entanto, pode ser que ele logo se junto a ela, e que, mesmo
antes que a mulher provasse o fruto da árvore, lhe relatou o diálogo
que mantivera com a serpente, e o enredou nas mesmas falácias
pelas quais ela mesma se deixara enganar. Outros aplicam a partí-
cula (immah), “com ela”, ao laço conjugal, o que pode ser aceito.
Mas, visto que Moisés simplesmente relata que ele comeu o fruto
recebido das mãos de sua esposa, a opinião que geralmente tem
sido aceita é que ele se viu antes cativado por suas seduções do
que persuadido pelas imposturas de Satanás. Para esse propósito,
evoca-se a declaração de Paulo: “Adão não foi iludido, mas a mu-
lher” [1Tm 2.14]. Paulo, porém, nesse caso, como está ensinando
que a origem do mal proveio da mulher, apenas fala comparativa-
mente. Aliás, não foi só porque se compactuou com os desejos de
sua esposa que ele transgrediu a lei que lhe fora estabelecida; mas,
sendo atraído por ela à ambição fatal, ele veio a ser participante da
mesma fraqueza com ela. E de fato Paulo, em outro lugar, declara
que o pecado veio não por meio da mulher, e sim de Adão mesmo
[Rm 5.12]. Então, a reprovação que segue logo adiante [v. 22], “Eis
que o homem se tornou como um de nós”, claramente prova que ele
também cobiçou insensatamente mais do que era lícito, e deu maior
crédito às lisonjas de Satanás do que à santa palavra de Deus.
Então, pergunta-se, qual foi o pecado de ambos? É pueril a opi-
nião de alguns dos antigos, de que foram seduzidos pela intempe-
rança do apetite. Pois, quando havia tal abundância de frutos seleci-
onados, que tamanha perfeição poderia haver em um tipo de fruto
particular? Agostinho é mais correto quando afirma que o orgulho foi
o princípio de todos os males, e que, mediante o orgulho, a raça hu-
mana foi arruinada. Entretanto, uma definição mais completa do pe-
cado pode ser extraída do tipo de tentação que Moisés descreve.
Pois, primeiramente, a mulher é afastada da palavra de Deus pelos
engodos de Satanás, através da incredulidade. Portanto, o ponto de
partida da ruína pela qual a raça humana se viu precipitada foi um
abandono do mandamento de Deus. Observe-se, porém, que os ho-
mens então se revoltaram contra Deus quando, havendo abandona-
do sua palavra, inclinaram seus ouvidos às falsidades de Satanás. A
partir disso podemos inferir que Deus será visto e adorado em sua
palavra; e, portanto, que toda reverência para com ele é abalada
quando sua palavra é desprezada. Eis uma doutrina bastante pro-
veitosa de ser conhecida, pois a palavra de Deus só obtém sua de-
vida honra entre poucos, de modo que, aqueles que se precipitam e
desdenham dessa palavra, ainda assim arrogam para si uma posi-
ção primordial entre os adoradores de Deus. Mas, como esse não
se manifesta aos homens de outro modo senão através da palavra,
assim também sua majestade não é mantida, nem seu culto perma-
nece seguro entre nós, senão quando obedecemos à sua palavra.
Portanto, a incredulidade foi a raiz da queda, do mesmo modo que
somente a fé nos une a Deus. Daqui fluiu ambição e orgulho, de
modo que ambos, primeiramente a mulher, e depois seu esposo,
quisessem exaltar-se contra Deus. Pois realmente se exaltaram
contra Deus quando, sendo-lhes conferida honra divina, não se con-
tentaram com tal excelência e quiseram ainda conhecer mais do que
lhes era lícito, com o propósito de se tornarem iguais a Deus.
Aqui se manifesta também monstruosa ingratidão: que foram
criados à semelhança de Deus, mas isso parece algo muito peque-
no, a menos que se acrescente igualdade. Ora, não se deve tolerar
que homens engenhosos e perversos labutem em vão, bem como
absurdamente, com o objetivo de atenuar o pecado de Adão e de
sua esposa. Pois a apostasia não é ofensa leve, e sim uma perversi-
dade detestável, pela qual o homem se retira da autoridade de seu
Criador, sim, inclusive rejeitando-o e negando-o. Além disso, não foi
uma simples apostasia, mas uma apostasia combinada com afron-
tas e censuras contra o próprio Deus. Satanás acusa a Deus de fal-
sidade, de inveja e de maldade, e nossos primeiros pais subscre-
vem essa calúnia tão vil e execrável. Por fim, havendo desprezado o
mandamento de Deus, não só se deleitam em sua própria luxúria,
mas se tornam escravos do diabo. Se alguém preferir uma explica-
ção mais breve, podemos dizer que a incredulidade abriu a porta à
ambição; porém, a ambição provou ser a mãe da rebelião, para que
os homens, havendo lançado de si o temor de Deus, se desvenci-
lhassem de seu jugo. Pois Paulo nos ensina que, pela desobediên-
cia de Adão, o pecado entrou no mundo. Imaginando que nada era
mais grave do que a transgressão do mandamento, não teríamos
qualquer sucesso na tentativa de atenuar a culpa de Adão. Deus,
havendo criado o homem livre em tudo e o designado como rei do
mundo, decidiu pôr sua obediência à prova, requerendo abstinência
de uma única árvore. Essa condição não agradou ao homem. Os
perversos reivindicadores poderiam alegar, como justificativa, que a
mulher foi seduzida pela beleza da árvore, e o homem, iludido pelas
lisonjas de Eva. Contudo, quanto mais branda é a autoridade de
Deus, menos desculpável se torna a perversidade deles em rejeitá-
la.
Mas temos que ir mais fundo em busca da origem e causa do
pecado. Pois nunca teriam ousado resistir a Deus, a menos que pre-
viamente fossem incrédulos de sua palavra. E nada os induziu a co-
biçar o fruto senão sua louca ambição. À medida que, crendo firme-
mente na palavra de Deus, se permitissem espontaneamente gover-
nar por ele, teriam seus afetos serena e devidamente regulados.
Pois, de fato, sua melhor restrição era o pensamento, o qual ocupa-
va inteiramente sua mente, de que Deus é justo, que nada é melhor
que obedecer aos seus mandamentos, e que ser amado por ele é a
consumação de uma vida feliz. Mas, depois de haverem dado lugar
à blasfêmia de Satanás, começaram, como pessoas fascinadas, a
perder a razão e o juízo; sim, desde que se deixaram escravizar por
Satanás, este manteve os próprios sentidos deles escravizados. En-
tretanto, e além de tudo isso, sabemos que os pecados não são
avaliados aos olhos de Deus pela aparência externa, e sim pela dis-
posição interior.
Além disso, para muitos, parece absurdo que a queda de nos-
sos primeiros pais provocou a destruição de toda a raça humana e,
por isso, lançam uma acusação gratuita contra Deus. Por outro lado,
Pelágio, para que, como falsamente temia, a corrupção da natureza
humana não fosse atribuída a Deus, aventurou-se a negar o pecado
original. Mas um erro tão grosseiro é claramente refutado, não só
por sólidos testemunhos da Escritura, mas também pela própria ex-
periência. A corrupção de nossa natureza era desconhecida para os
filósofos que, em outros aspectos, eram suficientemente, e mais que
suficientemente, perspicazes. Seguramente, esse entorpecimento
em si era uma magistral prova do pecado original. Pois todos os que
não são totalmente cegos percebem que nenhuma parte de nós é
sã; que a mente está afetada com cegueira e infectada com inume-
ráveis erros; que todas as afeições do coração estão saturadas de
obstinação e perversidade; que as vis luxúrias, ou outras enfermida-
des igualmente fatais, reinam ali, e que todos os sentidos transbor-
dam com muitos vícios.
Contudo, visto que ninguém, senão unicamente Deus, é um juiz
adequado nessa causa, devemos aceitar a sentença que ele pro-
nunciou na Escritura. Em primeiro lugar, a Escritura nos ensina cla-
ramente que nascemos viciados e perversos. O argumento astucio-
so de Pelágio de que o pecado procedeu de Adão por imitação era
frívolo. Pois Davi, que, enquanto ainda encerrado no ventre de sua
mãe, não podia ser um imitador de Adão, confessa que fora conce-
bido em pecado [Sl 51.5]. Uma prova mais plena desse assunto e
uma definição mais ampla do pecado original podem ser encontra-
das nas Institutas;4 contudo aqui, numa única palavra, tentarei mos-
trar até que ponto ele se estende. Tudo quanto em nossa natureza é
vicioso – visto não ser lícito atribuí-lo a Deus –, sensatamente rejei-
tamos como pecado. Paulo, porém [Rm 3.10], ensina que a corrup-
ção não reside só em uma parte, mas que permeia toda a alma e
cada uma de suas faculdades. Consequentemente, e de modo in-
fantil, erra quem considera que o pecado original consiste apenas
de concupiscência e do impulso desordenado dos apetites, pois ele
se assenhoreia da própria sede da razão e de todo o coração. Ao
pecado é acrescentada a condenação, ou, no dizer de Paulo, “por
um só homem entrou o pecado no mundo e, pelo pecado, a morte”
[Rm 5.12]. Por isso, em outro lugar, ele nos denuncia como sendo
“filhos da ira”, como se nos sujeitasse a uma maldição eterna [Ef
2.3].
Em suma, que somos despojados dos dons excelentes do Espí-
rito Santo, da luz da razão, da justiça e da retidão, e somos propen-
sos a todo mal; que somos ainda perdidos e condenados, e sujeita-
dos à morte, sendo essa nossa condição hereditária e, ao mesmo
tempo, uma justa punição, a qual Deus, na pessoa de Adão, infligiu
sobre a raça humana. Ora, se alguém objetar dizendo ser injusto
que o inocente suporte a punição pelo pecado de outro, respondo
que, quaisquer que forem os dons que Deus nos tenha conferido na
pessoa de Adão, ele teve muito mais direito de tirá-los, quando
Adão perversamente caiu. Não é necessário recorrer àquela antiga
ficção de certos escritores, a saber, que as almas são derivadas, por
descendência, de nossos primeiros pais. Pois a raça humana não
derivou naturalmente a corrupção de Adão através de sua descen-
dência, mas que isso se deve, antes, à designação de Deus que,
como havia adornado toda a natureza do gênero humano com os
mais excelentes dotes em um só homem, assim, no mesmo homem,
novamente a despoja. Agora, porém, desde o tempo em que fomos
corrompidos em Adão, não portamos a punição da ofensa de outro,
mas somos culpados por nossa própria falha.
Há quem suscite uma questão concernente ao tempo dessa
queda, ou melhor, ruína. A opinião que tem sido predominante e ge-
ralmente aceita é que caíram no dia em que foram criados e, portan-
to, Agostinho escreve que só permaneceram firmes por apenas seis
horas. É muitíssimo frágil a suposição de outros de que a tentação
foi prorrogada por Satanás até o sábado, a fim de profanar aquele
santo dia. E, certamente, por exemplos como esses, todas as pes-
soas piedosas são admoestadas a evitarem as especulações duvi-
dosas. No que me diz respeito, visto que nada tenho a asseverar
positivamente acerca do tempo da queda, assim penso que se pode
deduzir da narrativa de Moisés que não mantiveram por muito tem-
po a dignidade que haviam recebido; pois, tão logo declara que fo-
ram criados, Moisés passa a relatar a queda, sem mencionar qual-
quer outra coisa. Se Adão vivera apenas um espaço moderado de
tempo com sua esposa, a bênção de Deus não teria sido infrutífera
na geração de descendentes. Moisés, porém, declara que foram pri-
vados dos benefícios de Deus antes mesmo que se acostumassem
a usá-los. Portanto, prontamente subscrevo a exclamação de Agos-
tinho: “Oh, miserável livre-arbítrio, que, enquanto ainda íntegro, teve
tão pouca estabilidade!”. E, para não dizer mais com respeito à bre-
vidade do tempo, a admoestação de Bernardo é digna de lembran-
ça: “Ao lermos que uma queda tão terrível ocorreu no Paraíso, que
será de nós na pocilga?”.
Ao mesmo tempo, devemos guardar na memória por qual pre-
texto Adão e Eva se deixaram levar a essa ilusão tão fatal, bem
como toda a sua posteridade. Plausível foi a adulação de Satanás:
“Conhecereis o bem e o mal”; mas tal conhecimento foi por isso
mesmo amaldiçoado, porque foi buscado em detrimento do favor di-
vino. Portanto, a menos que queiramos, de nossa própria iniciativa,
nos prender nas mesmas armadilhas, aprendamos a depender intei-
ra e unicamente da vontade de Deus, a quem reconhecemos como
o Autor de todo bem. E, visto que a Escritura, por toda parte, nos
admoesta sobre nossa nudez e indigência, e declara que podemos
recuperar em Cristo o que perdemos em Adão, então, renunciando
toda autoconfiança, nos ofereçamos a Cristo vazios, para que ele
nos encha com suas próprias riquezas.

7. Abriram-se, então, os olhos de ambos. Era necessário que os


olhos de Eva fossem velados, até que seu esposo fosse também
enganado; mas agora ambos, sendo igualmente presos pela corren-
te de um infeliz consentimento, começam a perceber sua miséria,
embora ainda não estejam afetados com um profundo conhecimento
de sua culpa. Eles se envergonham de sua nudez; contudo, ainda
que convencidos, não se humilham diante de Deus, nem temem
seus juízos como deveriam, nem mesmo cessam de recorrer a des-
culpas. Entretanto, faz-se algum progresso; pois, enquanto recente-
mente, como gigantes, tomariam subitamente o céu, agora, confu-
sos pelo senso de sua própria ignomínia, saem em busca de escon-
derijos.
E, de fato, essa abertura dos olhos em nossos primeiros pais
para discernir sua infâmia, claramente prova que foram condenados
por seu próprio juízo. Ainda não são convocados a comparecer pe-
rante o tribunal de Deus; ainda ninguém os acusa; não é, pois, o
sentimento de vergonha, que surge espontaneamente, um sinal cer-
to de culpa? Portanto, a eloquência do mundo inteiro de nada valerá
para livrar da condenação aqueles cuja consciência se tornou o juiz
a compeli-los a confessar seu erro. Ao contrário, leva todos nós a
abrirmos nossos olhos, deixando-nos confusos diante de nossa pró-
pria desgraça, levando-nos a dar a Deus a glória que é sua por direi-
to.
Deus criou o homem flexível; e não só permitiu, mas quis que
ele fosse tentado. Pois, de tal modo e além do uso ordinário da na-
tureza, adaptou a língua da serpente ao propósito do diabo, justa-
mente como se alguém munisse a outro com espada e armadura; e
então, ainda que o triste evento fosse conhecido por ele de ante-
mão, não aplicou o remédio que tinha em seu poder fazê-lo. Em
contrapartida, quando passamos a falar do homem, se descobrirá
que ele pecou voluntariamente, e se apartou de Deus, seu Criador,
por um impulso da mente, não menos livre do que perverso. Nem
devemos chamar de uma falha leve aquela que, recusando dar o
devido crédito à palavra de Deus, exaltou-se contra ele por ímpia e
sacrílega emulação, que não quis sujeitar-se à sua autoridade e
que, finalmente, tanto orgulhosa quanto falsamente, se revoltou con-
tra ele. Portanto, qualquer que tivesse sido o pecado ou falha que
houve na queda de nossos primeiros pais, dependeriam deles mes-
mos; mas há suficiente razão para se crer que o conselho de Deus a
precedeu, ainda que tal razão nos esteja oculta. De fato, vemos al-
gum bom fruto emanando diariamente de uma ruína tão terrível, na
medida em que Deus nos instrui na humildade através de nossa mi-
séria e, em seguida, mais claramente ilustre sua própria bondade;
pois sua graça é mais profusamente derramada sobre o mundo atra-
vés de Cristo, do que a que no princípio foi comunicada a Adão.
Agora, se a razão pela qual isso ocorre está além de nosso alcance,
não surpreende que o secreto conselho de Deus nos seja como um
labirinto!
Coseram folhas de figueira. O que eu disse recentemente,
que Adão e Eva não foram conduzidos ao arrependimento, ou por
verdadeira vergonha, ou por sério temor, agora se faz mais manifes-
to. Coseram para si vestimentas de folhas. Com que finalidade?
Para que Deus ficasse à distância, como que por uma barreira in-
transponível! Sua consciência do mal, portanto, era apenas confusa
e combinada com entorpecimento, como costuma ser o caso no
sono intranquilo. Não há ninguém que não sorria em sua estultícia,
visto que, certamente, seria ridículo nos vestirmos com tal cobertura
ante os olhos de Deus. Entretanto, todos nós somos infectados com
a mesma doença; pois, de fato, trememos e nos cobrimos envergo-
nhados às primeiras compunções da consciência; mas a autoindul-
gência logo nos engana e nos induz a recorrer a fúteis subterfúgios,
como se fosse algo fácil enganar a Deus. Portanto, a menos que a
consciência seja mais fortemente coagida, não há sombra de des-
culpa tão tênue e efêmera que obtenha nossa aprovação; e mesmo
que não haja pretexto algum, mesmo assim nos deleitamos em nós
mesmos e, mediante um esquecimento de três dias de duração,
imaginamos que estamos bem encobertos. Em suma, o frio e débil
conhecimento do pecado, que é inerente à mente dos homens, é
aqui descrito por Moisés para que eles viessem a ser indesculpá-
veis. Então (como já dissemos) Adão e sua esposa eram ainda igno-
rantes de sua própria perversidade, visto que, com uma cobertura
tão leve, tentavam se ocultar da presença de Deus.

8. Quando ouviram a voz do S Deus. Tão logo soa a voz de


Deus, Adão e Eva percebem que as folhas, pelas quais imaginavam
estar bem protegidos, de nada valem. Aqui, Moisés nada relata que
não esteja na natureza humana, e pode ser claramente discernido
em nossos próprios dias. A diferença entre o bem e o mal está es-
culpida nos corações de todos, como Paulo ensina [Rm 2.15]; po-
rém todos sepultam a desgraça de seus vícios sob frágeis folhas,
até que Deus, por sua voz, fira interiormente sua consciência. Por
isso, após Deus sacudi-los de seu entorpecimento, a consciência
alarmada os compelem a ouvir sua voz. Além disso, o que Jerônimo
traduz por “na brisa pós meio-dia” é, em hebraico, “no vento do dia”;
omitindo a palavra “vento”, a Septuaginta a substitui por “à tarde”.
Assim, prevaleceu a opinião de que Adão, havendo pecado ao
meio-dia, foi intimado a juízo ao pôr-do-sol. Quanto a mim, porém,
inclino-me mais a uma hipótese diferente, a saber, que, sendo co-
bertos com suas vestimentas, passaram a noite em silêncio e quie-
tude, tendo as trevas como aliadas de sua hipocrisia; então, ao nas-
cer do sol, estando outra vez totalmente despertos, caíram em si.
Sabemos que, ao nascer do sol, o ar é naturalmente agitado;
junto, pois, com essa brisa serena, Deus entrou em cena; Moisés,
porém, teria impropriamente chamado o ar vespertino de diurno. Ou-
tros defendem que a palavra descreve a parte ou região do sul; e
certamente (ruach) algumas vezes, entre os hebreus, significa
uma ou outra região do mundo. Outros pensam que o tempo é aqui
especificado, como sendo um menos exposto a terrores, pois na cla-
ra luz há maior segurança, e assim, concebem que se cumpre o que
a Escritura declara: que aqueles cuja consciência os acusa, estão
sempre ansiosos e inquietos, mesmo sem qualquer perigo. Associ-
am a esse ponto o que se acrescentou acerca do vento, como se
Adão fosse terrificado ao som de uma folha que cai.
Mas o que eu tenho apresentado é mais verdadeiro e simples:
que o que estava oculto sob as trevas da noite foi detectado ao nas-
cer do sol. Contudo, não tenho dúvida de que algum símbolo notável
da presença de Deus estava naquela brisa suave; pois, embora
(como eu disse há pouco) o nascer do sol costuma causar alguma
brisa na atmosfera, isso não contraria a suposição de que Deus deu
algum sinal extraordinário de sua aproximação, com o intuito de
despertar a consciência de Adão e de sua esposa. Porque, quando
quer se manifestar, Deus assume aquelas marcas pelas quais possa
ser conhecido, ainda que em si mesmo seja incompreensível. Davi
chama os ventos “arautos” de Deus, em cujas asas ele cavalga, ou
melhor, voa com incrível velocidade [Sl 104.3]. Mas, sempre que
achar conveniente, ele usa os ventos, bem como outras coisas cria-
das, além da ordem natural, de acordo sua própria vontade. Portan-
to, ao mencionar aqui o vento, Moisés declara (em minha opinião)
que algum símbolo inusitado e notável da presença divina era apre-
sentado, o qual afetaria veementemente a mente de nossos primei-
ros pais.
Esse recurso, a saber, o de fugir da presença de Deus, em
nada foi melhor que o primeiro; visto que Deus, apenas com sua
voz, logo repatriou os fugitivos. Está escrito: “Para onde me ausen-
tarei de teu Espírito? Para onde fugirei de tua face? Se subo aos
céus, lá estás; se faço minha cama no mais profundo abismo, lá es-
tás também; se tomo as asas da alvorada e me detenho nos confins
dos mares, ainda lá me haverá de guiar tua mão, e tua destra me
susterá” [Sl 139.7-10]. Todos nós podemos confessar que isso é ver-
dadeiro; no entanto, não cessamos de lançar mão de fúteis subterfú-
gios; nem se deve omitir aqui que, aquele que descobrira que umas
poucas folhas eram sem valia, fugiu para todas as árvores; pois,
quando desculpas frívolas não são aceitas, estamos bastante acos-
tumados a arquitetar novas escusas que nos ocultem sob uma som-
bra mais densa. Quando Moisés diz que Adão e sua esposa se ocul-
taram “no meio da árvore do Paraíso”, entendo que o singular é ex-
presso pelo plural; como se quisesse dizer, entre as árvores.

9. E chamou o S Deus ao homem. Adão e Eva já haviam


sido atingidos pela voz de Deus, mas estavam confusos sob as ár-
vores, até que outra voz penetrasse mais efetivamente sua mente.
Moisés diz que Adão foi chamado pelo Senhor. Ele não fora chama-
do antes? Contudo, a primeira vez foi um som confuso, que não
teve força suficiente para pressionar a consciência. Por isso Deus
agora se aproxima ainda mais e os retira de entre as árvores, por
mais indispostos e resistentes que eles estivessem em sair dali. Da
mesma maneira, nos sentimos também alarmados ao som da voz
de Deus, tão logo sua lei soa em nossos ouvidos; mas, atualmente,
ainda nos valemos das sombras até que ele, nos chamando com
mais veemência, nos intime a nos apresentarmos, culpados, perante
o seu tribunal. Paulo chama isso a vida da lei [Rm 7.6], quando ela
nos mata, ao nos acusar por causa de nossos pecados. Pois, en-
quanto nos agradarmos de nós mesmos e formos inflados com a fal-
sa noção de que estamos vivos, a lei é morta para nós, porque, com
nossa dureza, enfraquecemos seu propósito; mas, quando ela nos
penetra de modo mais incisivo, nos vemos arrastados a novos terro-
res.

10. Ele respondeu: ouvi a tua voz no jardim. Embora essa pareça
ser a confissão de um homem abatido e humilhado, logo se mostra-
rá que ele ainda não estava devidamente humilhado nem arrependi-
do. Ele imputa seu temor à voz de Deus, bem como à sua nudez,
como se nunca ouvira antes a Deus falando sem se sentir alarmado,
nem fora ainda animado com dulçor por sua fala. Sua excessiva es-
tupidez se mostra nisto: que em seu pecado ele falha em reconhe-
cer a causa da vergonha que ora sente; ele, pois, mostra que ainda
não sente tanto sua punição, a ponto de confessar sua culpa. Entre-
tanto, ele prova ser verdade o que eu disse anteriormente: que o pe-
cado original não reside apenas numa parte do corpo, mas mantém
seu domínio na totalidade do homem, e de tal modo ocupa cada
parte da alma, que nenhuma permanece íntegra, porque, apesar da
sua vestimenta de folhas, ele ainda teme a presença de Deus.

11. Quem te fez saber que estavas nu? Uma repreensão indireta
para reprovar a indolência de Adão em não perceber sua culpa, em
sua punição, como se estivesse dizendo não simplesmente que
Adão estava com medo da voz de Deus, mas que a voz de seu Juiz
lhe era formidável, porque Adão era um pecador. Além disso, dizen-
do que a causa do temor não era a sua nudez, e sim a torpeza do
vício do qual se maculara; e certamente era culpado de intolerável
impiedade contra Deus por buscar, na natureza, a origem do mal.
Não que ele acusasse Deus em termos claros; mas, lamentando
sua própria miséria e dissimulando o fato do qual ele próprio foi o
autor, ele transfere malignamente para Deus a acusação que deve-
ria ter trazido contra si mesmo. O que a Vulgata traduz como “a não
ser que tenhas comido da árvore”, é mais uma interrogação do que
afirmação. Deus pergunta, numa expressão de dúvida, não como se
estivesse investigando alguma matéria disputável, e sim com o pro-
pósito de perscrutar mais acuradamente o homem estúpido que,
acometido de uma doença fatal, ainda não tem consciência de sua
enfermidade, justamente como um homem doente que se queixa
que está febril, contudo não crê ser febre.
Entretanto, recordemos bem que nenhum proveito extraímos de
quaisquer prevaricações, mas que Deus sempre nos ligará, por uma
justa acusação, ao pecado de Adão. A cláusula “comeste da árvore
que te ordenei que não comesses?” é adicionada para remover o
pretexto de ignorância. Pois Deus notifica que Adão fora admoesta-
do em tempo hábil; e que ele caíra por nenhuma outra razão senão
esta: que, consciente e voluntariamente, trouxe destruição sobre si
mesmo. Além disso, a atroz natureza do pecado está caracterizada
nessa transgressão e rebelião porque, como nada é mais aceitável
a Deus do que a obediência, assim nada é mais intolerável do que
quando os homens, havendo profanado seus mandamentos, obede-
cem a Satanás e à sua própria luxúria.

12. A mulher que me deste por esposa. A ousadia de Adão agora


se desmascara mais claramente; pois, embora devesse se humilhar,
ele irrompe na mais grosseira blasfêmia. Antes, ele estivera discutin-
do implicitamente com Deus; agora, começa a contender franca-
mente com ele, e triunfa como alguém que rompeu todas as barrei-
ras. De onde percebemos que criatura insubmissa e indomável o
homem começou a ser quando se alienou de Deus; pois, em Adão,
se nos apresenta um vívido quadro da natureza corrupta, desde o
momento de sua revolta. “Cada um”, diz Tiago, “é tentado por sua
própria concupiscência” [Tg 1.14]; e inclusive Adão, não de outro
modo, senão consciente e voluntariamente, se pôs contra Deus
como um rebelde. Contudo, e como se não tivesse consciência de
nenhum mal, apresenta em seu lugar sua esposa como sendo a
parte culpada. “Portanto, eu comi, sim”, diz ele, “porque ela me
deu.”. E não satisfeito com isso, lança, ao mesmo tempo, uma acu-
sação contra Deus, objetando que a esposa, que lhe trouxe ruína,
lhe fora dada por Deus.
Educados na mesma escola do pecado original, nós também
somos tão prontos a recorrer a subterfúgios do mesmo gênero, po-
rém para nada; pois, por mais que incitamentos e instigações exter-
nas nos estimulem, contudo está dentro de nós a incredulidade que
nos seduz contra a obediência a Deus; o orgulho está no interior, o
qual produz menosprezo.

13. Disse o S Deus à mulher. Deus deixa de discutir com o


homem; e nem era mais necessário, pois ele só agrava seu crime,
em vez de amenizá-lo; primeiramente, mediante uma defesa frívola;
depois, mediante uma ímpia depreciação de Deus; em suma, ainda
que se enfureça, não se deixa convencer. O Juiz agora se volve
para a mulher, para que a causa de ambos fosse ouvida; e por fim
pronuncia a sentença. Na Vulgata, Jerônimo assim traduz o discurso
de Deus por “Por que fizeste isto?”. Mas a frase hebraica contém
mais ênfase, pois é a linguagem de alguém que se espanta com
algo prodigioso. Portanto, ela deve ser, antes, traduzida assim:
“Como é que fizeste isto?”, como se quisesse dizer: “Como foi pos-
sível que fizeste de tua mente um conselheiro tão perverso para teu
esposo?”
A serpente me enganou. Eva deveria ter se sentido confusa
ante a grave perversidade acerca da qual ela fora admoestada. No
entanto, ela não fica em silêncio, mas, seguindo o exemplo de seu
esposo, transfere a culpa para outro. Ao lançar a culpa na serpente,
de fato ela crê, de modo tolo e ímpio, que será absolvida; pois, afi-
nal, sua resposta redunda nisto: “Eu recebi da serpente o que proi-
biste; a serpente, portanto, é o impostor.”. Mas quem compeliu Eva
a dar ouvidos às falácias da serpente e ainda pôr confiança nelas
mais prontamente do que na palavra de Deus? Finalmente, como é
que Eva admite essas falácias, senão por abandonar a palavra de
Deus e abrir aquela porta de acesso que ele havia suficientemente
fortificado? Mas o fruto do pecado original se apresenta por toda
parte; sendo cego em sua própria hipocrisia, voluntariamente quer
tornar Deus mudo e sem palavra. E de onde provêm diariamente
tantas murmurações, senão porque Deus não se cala sempre que
preferimos nos cegar?

14. Então, o S Deus disse à serpente. Ele não interroga a


serpente como fizera ao homem e à mulher, porque no animal em si
não havia nenhum senso de pecado, e porque, ao diabo, ele não
ofereceria nenhuma esperança de perdão. De fato, por sua própria
autoridade, Deus poderia ter pronunciado a sentença contra Adão e
Eva, mesmo sem tê-los ouvido; por que, pois, ele os submete a um
exame, senão porque ele já cuidava de sua salvação? Essa doutrina
deve ser aplicada em nosso benefício. Não haveria necessidade de
qualquer julgamento da causa, ou de alguma forma solene de julga-
mento, para que fôssemos condenados; por isso, visto que Deus in-
siste em arrancar de nós uma confissão, ele age mais como médico
do que como juiz. Aí está a mesma razão por que o Senhor, antes
de impor ao homem a punição, ele começa com a serpente. Por-
quanto punições corretivas (como veremos) são de um gênero dife-
rente, e são infligidas com o intuito de nos conduzir ao arrependi-
mento; na punição da serpente, porém, não existe nada desse tipo.
Contudo, é duvidoso a quem se reportam as palavras: se à ser-
pente ou ao diabo. De fato, Moisés diz que a serpente era um ani-
mal habilidoso e astuto; contudo, é indubitável que, quando Satanás
estava planejando a destruição do homem, a serpente era isenta de
culpa da fraude e perversidade dele. Portanto, muitos explicam essa
passagem em termos alegóricos, e são plausíveis as sutilezas que
alegam para tal propósito. Mas, quando todas as coisas são exami-
nadas mais cuidadosamente, os leitores dotados de são juízo perce-
berão facilmente que a linguagem é de um caráter misto; pois Deus
de tal modo se dirige à serpente, que a cláusula final é pertinente ao
diabo.
Caso a alguém pareça absurdo que a punição da fraude de ou-
tro seja requerida de um animal irracional, a resposta é simples, a
saber, uma vez que ela fora criada para o benefício do homem,
nada de impróprio havia de ela ser amaldiçoada desde o momento
em que fora empregada para a destruição do homem. E, por esse
ato de vingança, Deus provaria em quão elevada conta ele tinha a
salvação do homem, do mesmo modo como se um pai mantivesse
em execração a espada pela qual seu filho foi morto. E aqui deve-
mos considerar não só o tipo de autoridade que Deus exerce sobre
suas criaturas, mas também o fim para o qual ele as criou, como eu
disse anteriormente. Pois a equidade da sentença divina depende
daquela ordem da natureza que ele sancionara; portanto, ele não
tem nenhuma afinidade com vingança cega. Dessa maneira, os ré-
probos serão entregues ao fogo eterno com seu corpo; corpo este
que, embora não seja autônomo, é o instrumento do mal perene.
Assim, seja qual for a perversidade que alguém cometa, é atribuída
às suas mãos, e, portanto, são tidas como poluídas; enquanto eles
mesmos não se movem, exceto até onde, sob o impulso de uma
afeição depravada do coração, põem em execução o que haviam
concebido. Segundo esse método de raciocinar, a serpente disse
haver feito o que o diabo fez por seu intermédio. Mas, se Deus vin-
gou tão severamente a destruição do homem em um animal irracio-
nal, muito menos poupou a Satanás, o autor de todo o mal, como
transparecerá mais claramente na parte conclusiva do discurso.
Maldita és entre todos os animais domésticos. Essa maldi-
ção divina exerce tal força contra a serpente, a ponto de torná-la
desprezível e raramente tolerável ao céu e terra, levando uma vida
exposta a, e repleta de, terrores constantes. Além disso, ela não é
apenas odiosa a nós, como o principal inimigo da raça humana,
mas, vivendo também separada dos demais animais, porta um tipo
de guerra contra a natureza; pois vemos que antes ela fora tão gen-
til que a mulher não fugiu à sua abordagem tão familiar. Mas o que
segue contém maior dificuldade, porque aquilo que Deus denuncia
como uma punição parece ser natural, a saber, que ela se rastejaria
sobre seu ventre e comeria o pó.
Essa objeção tem induzido determinados homens de erudição e
habilidade a dizer que a serpente se acostumara a caminhar com
um corpo ereto antes que fosse usada por Satanás. Entretanto, não
há absurdo em supor que a serpente foi novamente consignada
àquela condição anterior, à qual já se havia naturalmente sujeitado.
Pois, assim, aquele que se exaltara contra a imagem de Deus teve
de ser restituída à sua própria classe, como se fosse dito: “Tu, um
animal miserável e imundo, ousaste se levantar contra o homem, a
quem eu designara ao domínio do mundo inteiro, como se tu, que
rastejas, realmente tivesses algum direito de adentrar o céu. Portan-
to, agora te destino uma vez mais ao lugar de onde tentaste emergir,
para que aprendas a te contentares com tua natureza, e não mais te
exaltes ante o opróbrio e injúria do homem.”. Entretanto, Satanás é
lembrado de suas ações insolentes em seu costumeiro modo de
proceder, de tal maneira que, ao mesmo tempo, é condenado à per-
pétua infâmia. Comer pó é o sinal de uma vil e sórdida natureza.
Este (em minha opinião) é o significado simples da passagem, o
qual o testemunho de Isaías também confirma [65.25]; pois enquan-
to ele promete, sob o reinado de Cristo, a restauração completa de
uma natureza sã e bem constituída, registra, entre outras coisas,
que o pó seria pão para a serpente. Portanto, não é necessário bus-
car alguma nova acusação em cada parte que Moisés aqui relata.

15. Porei inimizade. Interpreto isso simplesmente no sentido em


que sempre haveria hostil inimizade entre a raça humana e as ser-
pentes, o que agora é notório; pois, por um secreto sentimento da
natureza, o homem sente aversão por elas. Considera-se algo extra-
ordinário o fato de que alguns homens se deleitam nelas; e sempre
que a visão de uma serpente nos inspira terror, renova-se a memó-
ria de nossa queda. Combino com isso, em um discurso contínuo, o
que segue imediatamente: “Ela te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o
calcanhar.”. Pois Deus declara que haveria tal ódio que, de ambos
os lados, seriam impertinentes um ao outro; a serpente seria uma
ameaça para os homens, e a intenção destes seria a destruição das
serpentes.
Entretanto, vemos que o Senhor age misericordiosamente ao
castigar o homem, a quem ele não permitiu que Satanás tocasse,
exceto no calcanhar; enquanto ele faz com que a cabeça da serpen-
te fosse ferida pelo homem. Pois, nos termos cabeça e calcanhar,
há uma distinção entre o superior e o inferior. E, assim, Deus deixa
ao homem alguns resquícios de domínio, porque ele coloca a mútua
disposição de ferir um ao outro, para que, ainda assim, a sua condi-
ção não fosse igual, mas que o homem fosse superior no conflito.
Jerônimo, ao inverter o primeiro membro da sentença, “Tua cabeça
será esmagada”; e o segundo, “Tu serás apanhada pelo calcanhar”,
fez isso sem razão, pois o mesmo verbo é reiterado por Moisés;
deve-se notar a diferença só na cabeça e no calcanhar, como eu
acabei de afirmar. Contudo, o verbo hebraico, quer se derive de
(shooph), ou de (shapha), é traduzido por alguns intérpretes por
esmagar ou ferir; por outros, picar. Eu, contudo, não tenho dúvida
de que Moisés queria se referir ao nome da serpente que em hebrai-
co é chamada (shiphiphon), de (shapha) ou (shooph).
Devemos então fazer uma transição da serpente para o próprio
autor dessa maldade; e isso não só no modo de comparação, pois
há realmente uma anagogia5 literal; porque Deus não derramou de
tal modo sua ira no instrumento externo a ponto de poupar o diabo,
em quem jaz toda a culpa. Para que isso fique mais claro, vale a
pena observar, antes de tudo, que o Senhor não falou por causa da
serpente, e sim do homem; pois a que propósito se poderia respon-
der ao trovejar contra a serpente com palavras ininteligíveis? Por-
tanto, a consideração era dada aos homens, seja para que fossem
afetados com maior temor pelo pecado – visto que ele causa em
Deus o mais profundo desprazer, seja para que, a partir disso, rece-
bessem consolação em sua miséria, uma vez que perceberiam que
Deus ainda lhes era propício.
Agora, porém, é óbvio a todos quão insuficiente e insignificante
seria o argumento em prol de uma boa esperança, se aqui se fizes-
se menção apenas de uma serpente; porque então nada seria provi-
denciado, exceto a vida evanescente e transitória do corpo. Entre-
tanto, os homens permaneceriam escravos de Satanás, que orgu-
lhosamente triunfaria sobre eles e pisaria na cabeça deles. Por isso,
para que Deus revitalizasse a mente fragilizada dos homens e a res-
taurasse quando oprimida pelo desespero, fez-se necessário prome-
ter-lhes, em sua posteridade, vitória sobre Satanás, por cujas astúci-
as foram arruinados. Essa, pois, era o único remédio eficaz que po-
deria curar o perdido e restaurar a vida aos mortos. Portanto, eu
concluo que Deus, aqui, trata principalmente com Satanás, sob o
nome da serpente, e arremete contra ele o raio de seu juízo. Ele faz
isso por uma dupla razão: primeira, para que os homens aprendes-
sem a precaver-se de Satanás, como de um inimigo terrivelmente
mortal; segunda, para que contendessem contra ele com a inabalá-
vel confiança da vitória.
Ora, ainda que em sua mente nem todos divirjam de Satanás –
aliás, grande parte concorda mui familiarmente com ele –, contudo,
na realidade, Satanás é seu inimigo; nem mesmo cessa de ser pa-
voroso para aqueles a quem ele agrada com suas lisonjas; e, por-
que bem sabe que a mente dos homens lhe é contrária, ele astuta-
mente se insinua por meio de métodos indiretos, e assim os engana
sob uma forma dissimulada. Em suma, faz parte da nossa natureza
fugir de Satanás como nosso adversário. E, a fim de mostrar que ele
seria odioso não só a uma geração, Deus diz expressamente: “entre
ti e a mulher, entre o teu descendente e o seu descendente”; de
fato, tão amplamente quanto a raça humana fosse propagada. Ele
faz menção da mulher justamente por isto: porque, como ela cedeu
à sutileza do diabo, e sendo a primeira a ser enganada, arrastando
seu marido à participação de sua ruína, assim ela tinha peculiar ne-
cessidade de consolação.
Te ferirá. Essa passagem propicia tão clara prova da grande ig-
norância, cegueira e displicência que têm prevalecido entre todos os
homens eruditos do papado. O gênero feminino se introduziu sorra-
teiramente no lugar do masculino ou neutro. Não existe entre eles
nenhum que consulte os códices hebraicos ou gregos, ou quem
mesmo compare as cópias latinas umas com as outras. Portanto,
por um erro simples, essa redação tão corrompida foi aceita. Então
se inventou uma exposição profana dela, aplicando à mãe de Cristo
o que se disse concernente ao descendente dela.
De fato, não há ambiguidade nas palavras usadas aqui por Moi-
sés; porém não concordo com alguns com respeito ao seu significa-
do; pois muitos intérpretes tomam o descendente como sendo Cris-
to, indiscutivelmente, como se dissesse que alguém proviria da se-
mente da mulher e que feriria a cabeça da serpente. Alegremente,
eu daria meu voto em apoio da opinião deles, mas considero a pala-
vra semente como violentamente distorcida por eles, pois quem ad-
mitiria que um substantivo coletivo deva ser entendido acerca de um
único homem? Além do mais, como se nota a perpetuidade da inimi-
zade entre as sementes, assim promete-se vitória à raça humana
através de uma contínua sucessão de eras. Portanto, eu explico o
termo semente no sentido de posteridade da mulher em geral. Visto,
porém, que a experiência ensina que nem todos os filhos de Adão
de longe se erguem como vencedores do diabo, necessariamente
temos de formular um tópico, para que encontremos a quem perten-
ce a vitória. Assim Paulo, da semente de Abraão, nos conduz a Cris-
to; porque muitos eram filhos degenerados, e uma parte considerá-
vel era adúltera, através da infidelidade. Consequentemente, a uni-
dade do corpo flui da cabeça. Por essa razão, o sentido será (em
minha opinião) que a raça humana, que Satanás estava tentando
oprimir, por fim seria vitoriosa. Entretanto, devemos ter em mente
aquele método de vencer que a Escritura descreve. Satanás tem,
em todas as eras, mantido os filhos dos homens “cativos à sua von-
tade” e, até hoje, retém seu lamentável triunfo sobre eles, e por essa
razão ele é chamado o “príncipe do mundo” [Jo 12.31]. Visto, porém,
que um mais forte que ele já desceu do céu, o qual o subjugará, da-
qui sucede que, da mesma maneira, toda a Igreja de Deus, sob sua
Cabeça, exultará sobre ele gloriosamente. É a isso que se reporta a
declaração de Paulo: “O Deus de paz, em breve, esmagará debaixo
de vossos pés a Satanás” [Rm 16.20]. Por essas palavras, ele tem
em vista que o poder de esmagar a Satanás é comunicado aos fiéis,
e assim a bênção é a propriedade comum de toda a Igreja; ele, po-
rém, ao mesmo tempo nos admoesta que ela só tem seu começo
neste mundo; porque Deus a ninguém coroa, senão aos lutadores
bem treinados.

16. E à mulher disse. Para que a majestade do Juiz brilhasse mais


intensamente, Deus já não usa um diálogo prolongado; disso tam-
bém podemos perceber de que valem todas as nossas desculpas di-
ante dele. Ao acusar a serpente, Eva chegou a imaginar que ela
mesma havia escapado. Mas, desconsiderando suas desculpas,
Deus a condena. Que o pecador, pois, quando vem comparecer
ante o tribunal de Deus, cesse de contender, a fim de não provocar
mais severamente, contra si, a ira daquele a quem já ofendeu tão
profundamente.
Devemos agora considerar o tipo de punição imposto à mulher.
Quando Deus diz: “Multiplicarei sobremodo os sofrimentos de tua
gravidez”, ele compreende todas as tribulações que as mulheres en-
frentam durante sua gravidez. Acredita-se que a mulher teria dado à
luz sem dores, ou, ao menos, sem sofrimento tão grande, se ela
permanecesse em sua condição original; mas sua rebelião contra
Deus a sujeitou a inconveniências desse tipo.
A expressão “dores e concepção” deve ser entendida na figura
de hipálage,6 pelas dores que elas suportam em consequência de
sua concepção. A segunda punição que ele impõe é a sujeição. A
expressão “teus desejos serão para o teu marido” exerce a mesma
função como se ele dissesse que ela não seria livre e não manteria
seu próprio domínio, mas estaria sujeita à autoridade de seu marido
e dependeria de sua vontade; ou, como se ele quisesse dizer, “tu
nada desejarás senão o que desejar teu marido”. Como se declara
mais adiante, “seu desejo será contra ti” [4.7]. Assim, a mulher que
perversamente excedera seus limites próprios, se vê forçada a recu-
ar-se à sua própria posição. De fato, ela previamente estivera sujeita
a seu marido, porém era uma sujeição liberal e amorosa; agora, po-
rém, ela se vê lançada à servidão.

17. E a Adão disse. Em primeiro lugar, é preciso observar que não


se infligiu aos pais da raça humana uma punição que recaísse ape-
nas sobre aquele casal, mas uma punição tal que se estendeu a
toda sua posteridade em geral, para que saibamos que a raça hu-
mana foi amaldiçoada na pessoa deles; em segundo lugar, observa-
mos que Adão e Eva foram submetidos somente à punição temporal
para que, à luz da moderação da ira divina, nutrissem a esperança
do perdão. Deus, ao lembrar a razão pela qual punia assim o ho-
mem, tira dele a ocasião de murmurar. Pois não se deixou nenhuma
desculpa àquele que optou por obedecer mais à sua esposa do que
a Deus; sim, ele menosprezara a Deus por causa de sua esposa,
depositando tanta confiança nas falácias de Satanás – cuja mensa-
geira e serva ela foi –, que não hesitou em ser desleal e negar ao
seu Criador. Mas, embora Deus trate a Adão decisiva e objetiva-
mente, contudo refuta o pretexto pelo qual ele tentara escapar, para
mais facilmente conduzi-lo ao arrependimento.
Após haver falado resumidamente do pecado de Adão, Deus
anuncia que a terra seria maldita por causa do homem. Na Vulgata,
Jerônimo traduziu a expressão assim: “em teu trabalho”; Mas deve-
se manter a redação na qual concordam todas as cópias hebraicas,
a saber, a terra foi amaldiçoada por causa de Adão. Ora, como a
bênção da terra significa, na linguagem da Escritura, aquela fertilida-
de que Deus infunde por seu secreto poder, assim a maldição nada
mais é do que a privação oposta, quando Deus subtrai seu favor.
Muito menos deve parecer absurdo que, através do pecado do ho-
mem, a terra foi punida, ainda que esta era inocente. Pois como o
primum mobile7 envolve consigo todas as esferas, assim a ruína do
primeiro homem também arruinou todas aquelas criaturas que foram
formadas por sua causa e que lhe foram sujeitas. E vemos quão
constantemente a condição do próprio mundo varia “dependendo”
dos homens, conforme Deus está irado com eles ou lhes mostra seu
favor. Corretamente falando, podemos acrescentar que toda essa
punição é imposta a partir não da própria terra, mas apenas do ho-
mem. Pois a terra não produz fruto para si mesma, mas para que
sejamos alimentados de suas próprias entranhas. O Senhor, contu-
do, determinou que sua ira, como um dilúvio, transbordasse sobre
todas as partes da terra, para que, para onde quer que o homem
olhasse, seus olhos se deparassem com a atrocidade de seu peca-
do. Antes da queda, o estado do mundo era um espelho muito claro
e deleitoso do favor divino e da sua paternal misericórdia para com
o homem. Agora, percebemos em todos os elementos que somos
amaldiçoados. E, embora (no dizer de Davi) a terra ainda esteja
cheia do favor divino [Sl 33.5], ao mesmo tempo aparecem sinais
manifestos de sua terrível separação de nós, pela qual, se formos
indiferentes, traímos nossa cegueira e insensibilidade. Mas, para
que a tristeza e o horror não nos esmaguem, o Senhor derrama por
toda parte os sinais de sua bondade. Além disso, embora a bênção
de Deus não seja mais vista pura e transparente como ela se mani-
festava ao homem em sua inocência, se o que permanece por de-
trás for considerado em si mesmo, Davi, verdadeira e apropriada-
mente, exclama: “A terra está cheia da mercê de Deus.”.
Além disso, pela expressão “comer da terra” Moisés tem em
vista “comer dos frutos” que procedessem dela. A palavra hebraica
(itsabon), que é traduzida por sofrimento, é também tomada
para tribulação e fadiga. Nesse texto, o significado do termo contras-
ta o trabalho agradável no qual Adão anteriormente se ocupava, o
qual, em certo sentido, ele poderia dizer que se divertia; porque ele
não fora formado para o ócio, e sim para a ação. Portanto, o Senhor
o colocara em um jardim que devia ser cultivado. Mas, enquanto na-
quele trabalho havia um deleitoso prazer, agora ele é submetido ao
trabalho servil, sendo condenado a um penoso trabalho. E, no en-
tanto, a aspereza de sua punição é também amenizada pela miseri-
córdia de Deus, porque algo de deleite está misturado com os labo-
res dos homens, para que não sejam totalmente ingratos, como no-
vamente falarei no próximo verso.

18. Ela produzirá também cardos e abrolhos. Moisés trata mais


amplamente do que já havia feito referência, a saber, o comer dos
frutos da terra com trabalho e dificuldade. E ele ressalta como moti-
vo o fato de que a terra não seria a mesma que sempre fora, produ-
zindo frutos perfeitos; pois ele diz que a terra se degeneraria de sua
fertilidade e produziria sarças e plantas nocivas. Portanto, para que
saibamos que tudo quanto de aversivo se produz não são frutos na-
turais da terra, mas são corrupções que se originam do primeiro pe-
cado. Apesar disso, não nos compete reclamar da terra por não cor-
responder aos nossos desejos e trabalhos de seus cultivadores,
como se estivessem frustrando maliciosamente nosso propósito;
mas, em sua esterilidade, reconheçamos a ira de Deus e lamente-
mos os nossos próprios pecados.
Alguns sustentam falsamente que a terra está exaurida pelo
longo decurso de tempo, como se a constante produção a levasse à
exaustão. Pensa mais corretamente quem reconhece que, pela
crescente perversidade dos homens, a bênção restante de Deus
gradualmente diminui e se torna enfraquecida; e certamente há este
perigo: a menos que a humanidade se arrependa, uma grande parte
dos homens deveria rapidamente perecer pela fome e outras terrí-
veis misérias.
As palavras que seguem imediatamente, “comerás a erva do
campo”, são explicadas tão estritamente (em minha opinião) por
quem pensa que Adão foi por isso privado de todos os frutos que
antes lhe era permitido comer. A intenção de Deus nada mais era
que o homem seria de tal modo privado de seus primeiros deleites,
a ponto de se ver compelido a usar, além delas, as ervas que havi-
am sido designadas somente aos animais irracionais. Pois o modo
de vida que a princípio lhe fora designado, naquela feliz e deleitosa
abundância, era muito mais prazeroso do que veio a ser mais tarde.
Deus, pois, descreve uma parte dessa pobreza pelo uso da palavra
ervas, precisamente como se um rei enviasse alguém dentre os as-
sistentes da sua farta mesa a uma mesa plebeia ou inferior; ou
como se um pai alimentasse um filho que o houvesse ofendido com
o pão ordinário dos servos; não que ele interdite o homem de todos
os demais alimentos, mas que o restringe muito de sua costumeira
generosidade. Entretanto, isso pode ser acrescentado com o propó-
sito de consolar, como se fosse dito: “Embora a terra, que deveria
ser a mãe somente de bons frutos, se cubra de espinhos e sarças,
ainda assim produzirá o sustento pelo qual serás alimentado.”.

19. No suor do rosto. De fato, alguns traduzem a expressão por


“trabalho”; no entanto, essa tradução é forçada. Mas, por “suor”, su-
bentende-se trabalho duro e cheio de fadiga e cansaço, o qual, por
sua dificuldade, produz suor. É uma repetição da sentença anterior,
onde lemos que “em fadigas obterás o sustento.”. Sob o disfarce
dessa passagem, certas pessoas ignorantes precipitadamente con-
denam todos os homens ao trabalho manual; pois Deus, aqui, não
está ensinando na qualidade de mestre ou legislador, mas simples-
mente anunciando o castigo na qualidade de juiz. E, de fato, caso
aqui se escrevesse uma lei, seria necessário que todos se tornas-
sem lavradores, nem se daria espaço algum às artes mecânicas; te-
ríamos que sair do mundo em busca de vestimenta e outras indis-
pensáveis conveniências da vida. Então, qual é o significado da pas-
sagem? Realmente Deus pronuncia, de seu tribunal, que a vida do
homem, de agora em diante, seria miserável, porque Adão se prova-
ra indigno daquela feliz tranquilidade e jubiloso estado para o qual
fora criado.
Alguém objetaria que há muitas pessoas inativas e indolentes;
isso não impede que a maldição se difunda por toda a raça humana.
Pois eu digo que ninguém é entorpecido em tal grau de indolência
que não esteja sob a necessidade de perceber que essa maldição
pertence a todos. Alguns fogem das dificuldades, e muitos outros fa-
zem o máximo que podem para assenhorear-se de sua imunidade;
mas o Senhor sujeita a todos, sem exceção, a esse jugo de servidão
que foi imposto. Entretanto, ao mesmo tempo é preciso sustentar
que o trabalho não é imposto a cada um igualmente, mas, em al-
guns, mais, e em outros, menos.
Portanto, aqui se descreve o trabalho comum a todo o corpo;
não aquele que pertence peculiarmente a cada um de seus mem-
bros, exceto enquanto agradar ao Senhor dividir a cada um dos
membros certa medida dos males comuns. Contudo, é preciso ob-
servar que os que se submetem mansamente aos seus sofrimentos,
apresentam a Deus uma obediência aceitável, se de fato houver as-
sociado a isso o carregar a cruz, para que a consciência do pecado
lhes ensine a humildade. De fato, é somente a fé que pode oferecer
tal sacrifício a Deus; mas os fiéis, quanto mais trabalham para obter
o sustento, com maior vantagem eles são estimulados ao arrependi-
mento e se habituam à mortificação da carne; contudo, Deus fre-
quentemente envia uma porção dessa maldição a seus próprios fi-
lhos, para que não sucumbam debaixo do fardo. Quanto a isso, a
seguinte passagem é pertinente: “Do trabalho de tuas mãos come-
rás, feliz serás, e tudo te irá bem” [Sl 128.2].
Até então, realmente, como aquelas coisas que foram poluídas
em Adão são restauradas pela graça de Cristo, os piedosos sentem
mais profundamente que Deus é bom, e desfruta da doçura de seu
perdão paternal. Mas porque, mesmo nos melhores, a carne deve
ser subjugada, sucede não raramente que os próprios santos se de-
parem com duros labores e com a fome. Portanto, não há nada me-
lhor para nós do que, sendo admoestados das misérias da presente
vida, lamentarmos nossos pecados e buscarmos aquela consolação
da graça de Cristo que pode não só amenizar a amargura da triste-
za, mas misturar-lhe sua própria doçura. Além disso, Moisés não
enumera todas as desvantagens nas quais o homem, pelo pecado,
se envolveu; pois parece que todos os males da presente vida, os
quais a experiência prova serem inumeráveis, têm procedido da
mesma fonte. A fúria do ar, a temperatura baixa, trovões, chuvas
inoportunas, seca, saraiva, e tudo quanto é desordenado no mundo,
são frutos do primeiro pecado. Também não há outra causa para as
enfermidades. Isso foi celebrado nas fábulas poéticas, e sem dúvida
foi passado pela tradição dos Pais. Por isso aquela passagem de
Horácio:
Quando do templo celeste a mão furtiva
Do homem o sacro fogo arrebatou,
Uma incontável hoste – sob o comando de Deus –
Para a terra das ardentes doenças fugiu;
E a morte – até então mantida à distância –
Apressou seus passos a apoderar-se de sua presa.
Mas Moisés que, segundo seu costume, estuda uma breve aco-
modação à capacidade das pessoas comuns, se contentou em tocar
no que era mais aparente, para que, de um exemplo, aprendêsse-
mos que toda a ordem da natureza foi subvertida pelo pecado do
homem. Uma vez mais é possível que alguém objete que não se im-
pôs aos homens nenhum sofrimento que também não pertencesse
às mulheres. Respondo que se fez isso intencionalmente para ensi-
nar-nos que, do pecado de Adão, a maldição fluiu em comum a am-
bos os sexos; como Paulo testifica que “em Adão todos morreram”
[Rm 5.12].
Ainda falta uma questão a ser examinada – “Quando Deus an-
tes se mostrava propício a Adão e a sua esposa – tendo-lhes dado a
esperança de perdão –, por que ele começa de novo a impor-lhes
punição? Certamente na sentença “a semente da mulher ferirá a ca-
beça da serpente”, estão contidas a remissão de pecados e a graça
da salvação eterna. Mas é absurdo que Deus, depois de haver-se
reconciliado, realmente dê curso à sua ira. Para resolver o proble-
ma, alguns inventaram uma distinção de dupla remissão, a saber, a
remissão da culpa e a remissão do castigo, à qual mais tarde se
acrescentou a ficção das satisfações. Inventaram que Deus, ao ab-
solver os homens da culpa, ainda retém o castigo; e que, segundo o
rigor de sua justiça, ele infligirá ao menos um castigo temporal. Mas
os que imaginam que se exigem castigos como compensações têm
sido ridículos intérpretes dos juízos de Deus. Pois Deus, ao castigar
os fiéis, não considera o que eles merecem, e sim o que lhes será
proveitoso no futuro; e cumpre o ofício de médico, e não o de juiz.
Portanto, a absolvição que ele comunica a seus filhos é completa e
não parcial.
Contudo, o fato de que ele puna os que são recebidos em seu
favor, deve ser considerado como um tipo de disciplina que serve
como remédio para o futuro, porém não ser considerado propria-
mente como a punição vindicativa de pecado cometido. Se conside-
rarmos devidamente quão grande é a loucura da mente humana, e
então, quão grande sua lascívia, quão grande sua contumácia, quão
grande sua leviandade e quão rápido é seu esquecimento, não nos
admiraremos da severidade de Deus em subjugá-la. Se admoesta
verbalmente, ele não é ouvido; se acrescenta açoites, é de mui pou-
co proveito; quando sucede de ser ouvido, a carne, no entanto, per-
versamente rejeita a admoestação. Aquele obstinado endurecimento
que, com todo seu poder se opõe a Deus, é pior que a lascívia. Se
alguém é naturalmente dotado de uma disposição tão meiga que
não repudie o dever de submissão a Deus, ainda assim, havendo
escapado da mão de Deus, após um pecado permitido, ele logo
reincidirá, a menos que seja atraído de volta como que por força.
Portanto, deve-se manter este axioma geral: que todos os sofrimen-
tos a que a vida humana está sujeita e se aborrece são exercícios
necessários pelos quais Deus, em parte nos convida ao arrependi-
mento, em parte nos instrui na humildade, e em parte nos faz mais
precavidos e mais atentos em nos guardarmos contra as seduções
do pecado no futuro.
Até que tornes à terra. Moisés declara que o término de uma
vida miserável será a morte; como se quisesse dizer que, por fim,
Adão chegaria, através de vários e contínuos tipos de mal, ao último
de todos os males. Assim se cumpre o que dissemos antes: que a
morte de Adão teve início imediato a partir do momento de sua
transgressão. Pois essa vida amaldiçoada do homem nada mais po-
deria ser senão o ponto de partida da morte. “Mas onde então está a
vitória sobre a serpente, se a morte ocupa o último lugar? Pois as
palavras parecem não ter nenhuma outra significação, senão que o
homem seria finalmente tragado pela morte. Portanto, visto que a
morte nada deixa a Adão, a recente promessa falha; ao que se pode
acrescentar que a esperança de ser restaurado a um estado de sal-
vação era mui paupérrima e obscura.”.
De fato, não duvido que essas terríveis palavras afligiram gra-
vemente, pela tristeza, a mente já abatida (por outras causas). Visto,
porém, que, embora aturdidos por sua súbita calamidade, Adão e
Eva ainda não estavam profundamente afetados com o conheci-
mento do pecado; não surpreende que Deus persistisse ainda mais
em despertar a mente deles para a realidade de sua punição, para
que pudesse abatê-los, com uma sequência de golpes. Embora a
consolação oferecida fosse em si mesma obscura e frágil, Deus faz
com que ela fosse suficiente para sustentar a esperança deles, para
que o peso de sua aflição não os esmagasse inteiramente. Entretan-
to, era necessário que se sentissem sobrecarregados por causa dos
seus muitos males, até que Deus os reduzisse ao verdadeiro e sério
arrependimento. Além disso, enquanto a morte é posta aqui como o
resultado final, isso deve se referir ao homem; porque em Adão
mesmo nada se achará, senão morte; contudo, desse modo ele é
instado a buscar um remédio em Cristo.
Porque tu és pó. Posto que o que Deus declara aqui pertence
à natureza do homem, não ao seu crime ou falha, pode parecer que
a morte não lhe foi acrescentada como algo acidental. E por isso al-
guns entendem a expressão “Tu morrerás”, dita antes, num sentido
espiritual; pensando que, mesmo que Adão não pecasse, seu corpo
ainda teria se separado de sua alma. Mas, visto que a declaração
de Paulo é clara, ao afirmar que “em Adão todos morrem, como em
Cristo ressuscitarão” [1Co 15.22], essa ferida foi também infligida
pelo pecado. Também não é tão difícil a solução da seguinte ques-
tão: “Por que Deus declara que aquele que foi tomado do pó voltaria
a ele?”. Pois, visto que ele foi elevado a uma dignidade tão grande,
e que a glória da imagem divina refulgiu nele, a origem terrena de
seu corpo foi quase destruída. Agora, contudo, depois de ser despo-
jado de sua excelência divina e celestial, o que resta senão que, por
sua própria morte, ele reconheceria a si mesmo como sendo pó?
Por isso que tememos a morte: porque dissolução, que é contrária à
natureza, não pode ser naturalmente desejada. Realmente o primei-
ro homem teria se transferido para uma vida superior, caso perma-
necesse em retidão; mas não teria havido nenhuma separação de
alma e corpo, nenhuma corrupção, nenhum tipo de destruição e, em
suma, nenhuma mudança violenta.

20. E deu o homem o nome de Eva. Há duas maneiras em que


isso pode ser lido. A primeira, no mais-que-perfeito, “Adão chama-
ra”. Se seguirmos essa redação, a intenção de Moisés foi que Adão
fora grandemente enganado em prometer vida a si próprio e à sua
posteridade, a partir de uma esposa, a quem mais tarde descobriu,
pela experiência, ser o introdutor da morte. E Moisés (como já vi-
mos) costumava, sem preservar a ordem da história, acrescentar,
depois, coisas que aconteceram anteriormente. Se, contudo, lermos
a passagem no pretérito, ela pode ser entendida num sentido bom
ou mau. Alguns pensam que Adão, animado pela esperança de uma
condição mais feliz, porque Deus prometera que a cabeça da ser-
pente seria ferida pela semente da mulher, lhe deu um nome que
implicaria vida. Isso seria uma nobre fortaleza mental, e até mesmo
heroica, visto que não poderia, sem uma luta árdua e difícil, supor
ser a mãe da vida aquela que, antes que qualquer homem pudesse
haver nascido, envolveu a todos em eterna destruição. Mas, porque
eu temo que essa suposição não seja fraca, que o leitor considere
se Moisés não propôs antes rotular Adão de imponderado, que, es-
tando ele mesmo imerso na morte, deu à sua esposa um nome tão
soberbo. Entretanto, não duvido de que, quando ouviu a declaração
de Deus concernente ao prolongamento da vida, ele começou outra
vez a respirar e a se animar; e então, como um redivivo, ele deu à
sua esposa um nome derivado da vida; porém, não se segue que,
por uma fé consoante à palavra de Deus, ele triunfou, como deveria
ter feito, sobre a morte. Portanto, assim exponho a passagem: tão
logo ele escapou à presente morte, sendo encorajado por certa me-
dida de consolação, celebrou aquele benefício divino que, além de
toda e qualquer expectativa, havia recebido, no nome que deu a sua
esposa.

21. Fez o S Deus vestimenta de peles para Adão e sua


mulher e os vestiu. Aqui Moisés, seguindo um estilo comum, decla-
ra que o Senhor empreendera o trabalho de fazer vestimentas de
peles para Adão e sua esposa. Na verdade, não é adequado enten-
der assim suas palavras, como se Deus fosse um especialista em
peles, ou um servo a coser roupas. Ora, não é crível que eles fos-
sem presenteados com peles por acaso; visto, porém, que os ani-
mais foram previamente destinados ao serviço do homem, sendo
agora impelidos por uma nova necessidade, mataram alguns para
se cobrirem com suas peles, sendo divinamente dirigidos a adota-
rem esse conselho; portanto, Moisés designa Deus como Autor dis-
so.
A razão por que o Senhor os vestiu com vestimentas de peles a
mim parece ser esta: porque roupas feitas desse material teriam
uma aparência mais degradante do que as fabricadas de linho ou lã.
Deus, pois, designou que nossos primeiros pais, vestidos assim,
contemplassem sua própria infâmia – justamente como antes a per-
ceberam em sua nudez – e assim se lembrassem de seu pecado.
Contudo, não se deve negar que aqui ele nos propõe um exemplo
pelo qual ele quer que nos acostumemos a um modo simples de nos
vestirmos. E eu gostaria que as pessoas refinadas refletissem sobre
isso, as quais creem que nenhum ornamento é suficientemente atra-
ente, a menos que seja de uma excessiva magnificência. Não que
todo gênero de ornamento deva ser expressamente condenado;
mas porque, quando a elegância e esplendor imoderados são ansio-
samente buscados, não só significa que o mestre é desprezado, o
qual pretendia que a roupa fosse um sinal de opróbrio, mas em cer-
to sentido entre em conflito com a natureza.
22. Eis que o homem se tornou como um de nós. Uma reprova-
ção irônica, pela qual Deus não só quer alfinetar o coração do ho-
mem, mas traspassá-lo completamente. No entanto, ele não triunfa
cruelmente sobre o miserável e aflito; mas, segundo a necessidade
da doença, aplica um remédio mais eficaz. Pois, embora Adão esti-
vesse confuso e atônito em sua calamidade, não refletia tão profun-
damente sobre sua causa que se tornasse enojado de seu orgulho,
para aprender a abraçar a verdadeira humildade. Podemos acres-
centar que Deus, com essa ironia, censurou não mais Adão em si,
mas também a sua posteridade, com o propósito de recomendar
modéstia a todas as eras.
A partícula “Eis” significa que a sentença é pronunciada sobre a
causa então em pauta. E, realmente, era um doloroso e horrível es-
petáculo que Adão, em quem recentemente resplandecera a glória
da imagem divina, jazesse oculto sob pútridas peles a cobrir sua
própria desgraça, e que houvesse mais decência em um animal
morto do que em um homem vivo! A frase que se acrescenta imedi-
atamente, “conhecedor do bem e do mal”, descreve a causa de tão
grande miséria, a saber, que Adão, não contente com sua condição,
tentara ascender muito acima do que lhe era lícito; como se disses-
se: “Vê agora aonde tua ambição e teu perverso apetite de conheci-
mento ilícito te precipitou.”. Contudo, nem mesmo aprouve ao Se-
nhor manter diálogo com ele, mas desdenhosamente o provoca
para o expor a uma maior infâmia. Assim era necessário que seu
férreo orgulho fosse abatido, para que, por fim, descesse a si mes-
mo e se tornasse mais e mais aversivo a si mesmo.
Um de nós. Alguns entendem que o plural aqui empregado se
refere a anjos, como se Deus fizesse uma distinção entre o homem,
que é um animal terreno e desprezado, e os seres celestiais; mas
essa exposição parece forçada demais. O significado será mais sim-
ples se for concebido da seguinte forma: “Depois disto, Adão se pa-
recerá tanto comigo, que nos tornaremos companheiros um do ou-
tro.”. O argumento que os cristãos extraem dessa passagem em prol
da doutrina das três Pessoas na Deidade não é, receio, suficiente-
mente sólido. De fato, não há a mesma razão para ela como na pas-
sagem anterior: “Façamos o homem à nossa imagem”, posto que
aqui Adão esteja incluso na palavra nós; mas, na outra passagem,
se expressa certa distinção na essência de Deus.
Assim, que não estenda a mão. Há uma limitação na frase
que deveria, creio eu, ser assim suprida: “Agora resta que, no futuro,
ele seja excluído do fruto da árvore da vida”; porque, por essas pala-
vras, Adão é admoestado que a punição à qual ele está exposto não
será apenas de um momento, ou de poucos dias, mas que ele sem-
pre será um exilado da vida bem-aventurada. Está equivocado
quem pensa que isso constitui também uma ironia, como se Deus
estivesse negando que a árvore se mostrava ser desvantajosa ao
homem, ainda quando pudesse comer dela; pois Deus, ao privá-lo
do símbolo, remove também a coisa significada. Bem sabemos qual
é a eficácia dos sacramentos; e já foi dito acima que a árvore foi
dada como um penhor da vida. Portanto, para que ele entendesse
estar privado de sua vida pregressa, acrescenta-se uma solene ex-
comunhão; não que o Senhor o eliminasse de toda esperança de
salvação, mas, removendo o que havia dado, levaria o homem a
buscar auxílio em outra fonte. Ora, ali restava uma expiação em sa-
crifícios, a qual podia restaurá-lo à vida que havia perdido.
Antes, para Adão, a fonte de vida era uma comunhão direta
com Deus; mas, a partir do momento em que ele se tornou alienado
de Deus, era necessário que ele recuperasse a vida pela morte de
Cristo, por cuja vida ele então vivia. De fato, é indubitável que o ho-
mem não seria capaz, ainda que devorasse toda a árvore, de des-
frutar a vida contra a vontade de Deus; este, porém, movido de zelo
por sua própria instituição, associa a vida com o sinal externo, até
que a promessa fosse removida do sinal; pois nunca houve na árvo-
re qualquer eficácia intrínseca; Deus, porém, a fez geradora de vida,
selando sua graça ao homem no uso dela, como, na verdade, ele
nada nos representa com sinais falsos, mas sempre nos fala, como
se diz, com eficácia. Em suma, Deus resolvera arrancar das mãos
do homem aquilo que era ocasião ou base de confiança, para que
ele não formasse para si uma vã esperança da perpetuidade da vida
que ele havia perdido.

23. O S Deus, por isso, o lançou fora. Aqui Moisés, em par-


te, dá seguimento ao que dissera concernente à punição infligida ao
homem, e, em parte, celebra a bondade de Deus, pela qual o rigor
de seu juízo foi amenizado. Deus, misericordiosamente, abranda o
exílio de Adão, provendo ainda para ele um lar permanente sobre a
terra e lhe designando uma sobrevivência do cultivo – embora mui
laborioso – do solo; pois Adão disso infere que o Senhor exerceu al-
gum cuidado para com ele, que é uma prova de amor paternal.
Moisés, porém, mais uma vez fala de punição, quando relata
que o homem foi expulso e que um querubim lhe fazia oposição com
a lâmina de uma espada a revolver-se, o qual impede seu acesso
no jardim. Moisés afirma que o querubim foi posto na parte oriental;
aquele lado em que, de fato, se abriria acesso ao homem, a menos
que lhe fosse proibido. Para que se lhe produzisse horror, acrescen-
ta-se que a espada se revolvia, ou era cortante de ambos os lados.
Entretanto, Moisés usa uma palavra derivada de alvura ou vivacida-
de. Portanto, havendo Deus outorgado vida a Adão e o suprido com
alimento, contudo restringe o benefício, fazendo com que alguns si-
nais da ira divina estivessem sempre diante de seus olhos, para que
ele refletisse frequentemente sobre aquilo que, no seu estado de
queda, enfrentaria através de inumeráveis misérias, por exílio tem-
poral e pela própria morte; pois é preciso recordar bem o que já dis-
semos: que Adão não foi tão rejeitado que ficasse destituído da es-
perança de perdão. Ele foi banido daquele régio palácio do qual ha-
via sido senhor, porém em outro lugar obteve um palácio onde pu-
desse habitar; ele se viu destituído de seus primeiros deleites, po-
rém continuou sendo suprido com algum tipo de alimento; foi exco-
mungado da árvore da vida, mas nos sacrifícios se lhe ofereceu um
novo remédio.
Alguns explicam a expressão “espada que revolvia” no sentido
de uma espada que nem sempre vibra com sua ponta dirigida contra
o homem, mas que às vezes mostra o lado da lâmina, com o propó-
sito de gerar ao arrependimento. Alegoria, porém, é inoportuna,
quando a determinação divina era excluir totalmente o homem do
jardim, para que buscasse vida em outra parte. Entretanto, tão logo
a ditosa fertilidade e encanto do lugar foram destruídas, o horror da
espada veio a ser supérfluo.
Por “querubim”, sem dúvida, Moisés quer dizer anjos, e nisso se
acomoda à capacidade de seu próprio povo. Deus havia ordenado
que se pusessem na arca da aliança dois querubins, os quais devi-
am cobri-la com suas asas; por isso frequentemente se afirma que
ele se assenta entre os querubins. Que ele quis ter anjos descritos
dessa forma, indubitavelmente foi concedido como uma bondade
para com a rudeza daquele povo antigo que, naquela época, preci-
sava de instruções simples, como ensina Paulo [Gl 4.3]; e Moisés
retirou dali o nome que atribuíra aos anjos, para que acostumasse
os homens àquele tipo de revelação que havia recebido de Deus e
transmitira fielmente; pois Deus designou que, aquilo que bem sabia
que seria proveitoso ao povo, fosse revelado no santuário. E, certa-
mente, é preciso que observemos bem esse método, para que,
conscientes de nossa própria debilidade, não tentemos, sem auxílio,
elevar-se ao céu; pois, de outro modo, sucederá que, durante nosso
percurso, todos os nossos sentidos se desvanecerão. As escadas e
veículos, então, eram o santuário, a arca da aliança, o altar, a mesa
e seus implementos. Além disso, os denomino de veículos e esca-
das, porque símbolos desse gênero de modo algum foram ordena-
dos para que os fiéis encerrassem a Deus em um tabernáculo,
como em uma prisão, ou viesse a atá-lo a elementos terrenos; mas
para que, sendo assistidos por meios condizentes e adequados,
eles mesmos subissem ao céu. Assim, Davi e Ezequias, realmente
dotados com entendimento espiritual, estavam longe de entreter
aquelas grosseiras imaginações, as quais fixariam Deus em deter-
minado lugar. Contudo, sem escrúpulo invocavam a Deus que se
assenta ou habita entre os querubins, para que mantivessem, a si e
aos demais, sob a autoridade da lei.
Finalmente, os anjos são aqui chamados querubins pela mes-
ma razão que o nome corpo de Cristo é atribuído ao sacro pão da
Ceia do Senhor. Com respeito à etimologia, os próprios hebreus não
concordam entre si. A opinião mais geralmente aceita é que a pri-
meira letra (caf) é uma letra insignificante e aponta uma semelhan-
ça, e, portanto, que a palavra “querubim” tivesse a mesma função
como se dissesse, “como um menino”. Mas, em minha opinião, visto
que Ezequiel, que aplica a palavra a diferentes figuras, é contrário a
essa significação, pensa-se mais corretamente, quem declara ser
ela um nome geral. Entretanto, que ela se reporta aos anjos é mais
que suficientemente notório. Por isso Ezequiel também designa o
orgulhoso rei de Tiro com esse título, comparando-o a um anjo-líder
[Ez 28.14].

1 O termo “pessoa” é aqui empregado no sentido geral, significando “as características de”
ou “as qualidades de”, e não no sentido de “pessoalidade” ou “personalidade”.
2 A palavra acidental é aqui usada no sentido técnico e específico, a saber, para significar
algo oposto ao que é essencial.
3 Cf. Institutas da Religião Cristã, Livro III, cap. 1.
4 Institutas da Religião Cristã, Livro II, caps. 1, 2, 3.
5 O termo “anagogia” vem do grego (anagôgê) que significa “subir ao alto”, designan-
do um modo especialmente de “elevar” a mente, por meio de uma transição das coisas ter-
renas em direção às especulações abstratas. No presente contexto, é usada por Calvino
para designar que houve uma transição intencional da serpente para o ser espiritual que
dela fez uso.
6 Figura de linguagem empregada para indicar uma transposição das relações naturais de
dois elementos. A ideia seria a de fazer uma conexão linguística, por assim dizer, invertida,
trocando, na proposição, a relação natural dos elementos que a compõem. Um exemplo
clássico dessa figura de linguagem é quando se diz “o sapateiro meteu o sapato na fôrma”
em vez de dizer “o sapateiro meteu a fôrma no sapato”.
7 A expressão primum mobile era utilizada na antiga astronomia para indicar o nono céu, o
qual circundava todas as estrelas fixas, planetas e a atmosfera, e era considerado como o
primeiro motor de todos os corpos celestes. Naquele tempo, supunha-se que esses corpos
circundavam a terra por esse poderoso agente, enquanto a própria terra permanecia como
o centro do sistema. A cosmologia newtoniana refuta todas essas teorias.
C A P ÍT U L O 4

1. Coabitou o homem com Eva. Agora Moisés começa a descrever


a propagação do gênero humano, em cuja história ela é importante
para notificar que a bênção de Deus do “crescei e multiplicai” não foi
abolida pelo pecado; e, não só isso, mas que o coração de Adão foi
divinamente fortalecido, de modo que ele não teve medo de gerar
descendência. E, como no exato momento da chegada do descen-
dente Adão experimentou a real moderação paternal da ira de Deus,
assim mais tarde se viu compelido a provar dos frutos amargos de
seu próprio pecado, quando Caim matou Abel. Mas sigamos a nar-
rativa de Moisés. Embora ele não declare que Caim e Abel eram gê-
meos, parece-me provável que assim fossem; pois, logo após dizer
que Eva, por sua primeira concepção, deu à luz seu primogênito,
imediatamente acrescenta que ela também gerou outro; e assim,
enquanto se tem um duplo nascimento, ele fala apenas de uma con-
cepção. Aqueles que pensam diferentemente, que fiquem com a sua
opinião; quanto a mim, parece razoável que, quando o mundo tinha
de ser povoado com habitantes, não apenas Caim e Abel teriam de
nascer de um só parto, mas também muitos depois deles, e de am-
bos os sexos.
Adquiri um varão com o auxílio do S . A palavra que
Moisés usa significa tanto adquirir quanto possuir; e é irrelevante
para o presente contexto qual dos dois verbos deve ser adotado. É
mais importante perguntar por que ela diz que recebeu (eth Ya-
hweh). Alguns traduzem esta expressão por “com o S ”, isto é,
“pela bondade, ou pelo favor do S ”, como se Eva se referisse
à bênção da procriação, que vem do Senhor, como lemos no Salmo
127.3: “O fruto do ventre é o dom do S .”. A segunda interpre-
tação converge para o mesmo ponto: “Tenho possuído um homem
da parte do S ”, e a versão de Jerônimo dá a mesma ênfase:
“através do S .”.
Digo que essas três redações tendem a este ponto: que Eva
rende graças a Deus por haver começado a suscitar uma posterida-
de por seu intermédio, ainda que fosse merecedora de perpétua es-
terilidade, tanto quanto de completa destruição. Outros, com mais
sutileza, entendem assim as palavras: “Eu tenho obtido o homem do
S ”, como se Eva entendesse que já estava de posse daquele
vencedor da serpente, que lhe fora divinamente prometido. Por isso
celebram a fé de Eva, porquanto ela abraçou, por fé, a promessa
concernente ao esmagamento da cabeça do diabo, através da se-
mente da mulher; só que pensam que ela estava equivocada na
pessoa ou no indivíduo, visto que ela teria restringido a Caim o que
fora prometido concernente com respeito a Cristo. Contudo, para
mim, o genuíno sentido da passagem parece ser que, enquanto Eva
se alegra com o nascimento de um filho, ela o oferece a Deus como
as primícias de sua descendência. Portanto, creio que se deveria
traduzi assim: “Eu tenho obtido um homem da parte do S ”, o
que se aproxima muito mais da frase hebraica. Além disso, a uma
criancinha recém-nascida ela chama “um homem”, porque via a raça
humana renovada, a qual ela e seu esposo, respectivamente, havi-
am arruinado por sua própria culpa.

2. Depois, deu à luz Abel, seu irmão. Sabe-se bem que é a partir
disso que se deduz o nome Caim, e por qual razão ele lhe foi dado.
Pois sua mãe disse: (kaniti) eu obtive um homem; e por isso
ela lhe deu o nome de Caim. Com respeito ao nome de Abel, não se
faz a mesma explanação. Constitui um absurdo completo a opinião
de alguns, de que Abel foi assim chamado por sua mãe por despre-
zo, como se ele se mostrasse supérfluo e quase inútil, pois ela se
lembrava do objetivo para o qual sua fertilidade apontava; nem se
esquecera da bênção “crescei e multiplicai”. Nós (em minha opinião)
inferimos mais corretamente que, enquanto Eva testificava, no nome
que dera ao seu primogênito, a alegria que de repente explodiu de
seu peito, e celebrou a graça de Deus, mais tarde, ao dar à luz outro
descendente, ela recorda as misérias da raça humana.
E, certamente, embora a nova bênção divina fosse uma ocasião
para inusitada alegria, contudo, ela não considera uma posteridade
condenada a tantos e tão grandes males, dos quais ela mesma fora
a causa, sem a mais amarga dor. Portanto, ela desejava que, no
nome que ela dera ao segundo filho, subsistisse um monumento de
sua dor; então, ao mesmo tempo, mostra um espelho comum da
vaidade do homem, pelo qual ela pudesse admoestar toda sua des-
cendência.
Não concordo com os que censuram o julgamento de Eva como
sendo absurdo, porque ela considerava seu filho justo e santo, como
digno de ser rejeitado, em comparação com seu outro filho, que era
perverso e perdido. Pois Eva tinha razão em congratular-se em seu
primogênito; e não se envergonha de haver proposto, em seu se-
gundo filho, um memorial, para si e para todos os demais, de sua
própria vaidade, a fim de induzi-los a se exercitarem na diligente re-
flexão sobre seus próprios males.
Abel foi pastor de ovelhas. Moisés não relata se ambos os ir-
mãos se casaram, e cada um teve seu próprio lar. Portanto, para
nós, isso continua incerto, embora seja provável que Caim se casas-
se antes de haver assassinado ao seu irmão, posto que Moisés ime-
diatamente acrescenta que ele conheceu sua esposa e gerou filhos,
e visto que aqui não se faz menção de seu casamento.
Ambos seguiram um tipo de vida em si mesmo santo e louvá-
vel. Pois o cultivo do solo fora ordenado por Deus, e o trabalho de
alimentar ovelhas não era menos louvável do que proveitoso; em
suma, toda a vida rústica era inofensiva e simples, e acima de tudo
se acomodava à verdadeira ordem da natureza. Portanto, deve-se
manter isto em primeiro lugar: que ambos se excitavam em traba-
lhos aprovados por Deus e necessários ao uso comum da vida hu-
mana. Disso se infere que foram bem instruídos por seu pai. O rito
de sacrificar confirma isso mais plenamente porque ele prova que se
habituaram a cultuar a Deus. A vida de Caim, portanto, aparente-
mente era bem ordenada; pois ele cultivava os deveres da piedade
para com Deus e procurava manter, a si e aos seus, mediante ho-
nesto e justo trabalho, tornando-se um providente e sóbrio pai de fa-
mília.
Além disso, aqui será oportuno despertar a memória para o que
já dissemos previamente: que os primeiros homens, ainda que fos-
sem privados do sacramento do amor divino, quando foram proibi-
dos do acesso à árvore da vida, contudo foram apenas privados
dela de tal modo que ainda lhes foi deixada uma esperança de sal-
vação, da qual possuíam os sinais nos sacrifícios. Pois devemos re-
cordar que o costume de sacrificar não foi por eles inventado abrup-
tamente, mas lhes foi divinamente transmitido. Porque, posto que o
apóstolo se reporta à dignidade do aceitável sacrifício de Abel, pela
fé, segue-se, primeiramente, que ele não o ofereceu senão pelo
mandamento de Deus [Hb 11.4]. Em segundo lugar, é verdade que
desde o princípio do mundo a obediência é melhor do que quaisquer
sacrifícios [1Sm 15.22], e a obediência é a mãe de todas as virtu-
des. Consequentemente, o homem também foi divinamente instruí-
do sobre o que era agradável a Deus. Em terceiro lugar, posto que
Deus sempre foi o mesmo, não podemos dizer que ele sempre se
deleitou com mero culto carnal e externo. Contudo, ele considerava
aceitáveis aqueles sacrifícios da primeira dispensação. Portanto, a
consequência disso é que tais sacrifícios lhe eram oferecidos espiri-
tualmente, isto é, que os santos Pais não zombavam dele com ceri-
mônias vazias, mas compreendiam algo mais sublime e secreto; e
isso não poderia ter sido feito sem instrução divina. Pois só é verda-
de interior1 aquela que, nos sinais externos, distingue o genuíno e
racional culto de Deus daquele que é falso e supersticioso. E, por
certo, não poderiam sinceramente devotar sua mente ao culto de
Deus, a menos que se assegurassem de sua benevolência; porque
a reverência voluntária emana de um senso de, e confiança em, sua
bondade; mas, por outro lado, quem quer que considere Deus como
hostil a si próprio, se vê compelido a fugir dele com muito temor e
horror. Vemos, pois, que Deus, quando tira o acesso à árvore da
vida, na qual dera inicialmente o penhor de sua graça, prova e se
declara propício ao homem por outros meios.
Caso alguém objete que todas as nações possuem seus própri-
os sacrifícios, e que nesses não havia religião pura e sólida, a res-
posta é imediata, a saber, que aqui se faz menção de tais sacrifícios
como sendo legítimos e aprovados por Deus, dos quais nada, senão
uma imitação adulterada, mais tarde se viu entre os Gentios. Pois,
embora nada é aqui posto senão a palavra (minchah), a qual sig-
nifica propriamente um dom e, por isso, se estende geralmente a
todo tipo de oblação, ainda podemos inferir, por duas razões, que o
mandamento relativo ao sacrifício foi dado aos nossos primeiros
pais desde o princípio: primeiro, com o propósito de tornar o exercí-
cio da piedade comum a todos, visto que professavam ser a proprie-
dade de Deus e consideravam tudo o que possuíam como recebido
dele; e, em segundo lugar, com o propósito de admoestá-los da ne-
cessidade de alguma expiação, visando à sua reconciliação com
Deus. Quando cada um oferece alguma coisa de sua propriedade,
há um ato solene de gratidão, como se ele testificasse, por seu pre-
sente ato, que deve a Deus tudo quanto possui. Mas o sacrifício de
gado e a efusão de sangue contêm algo mais, a saber, que o ofer-
tante deve ter diante de seus olhos a morte; e, contudo, deve crer
em Deus como propício a ele. Quanto aos sacrifícios de Adão, não
se faz menção alguma.

4. Agradou-se o S de Abel e de sua oferta. Lemos que


Deus se agrada do homem a quem outorga seu favor. Entretanto,
devemos notar a ordem aqui observada por Moisés; pois ele não de-
clara simplesmente que o culto que Abel prestou foi agradável a
Deus, mas começa com a pessoa do ofertante, querendo dizer com
isso que Deus não aceitará as obras, exceto aquelas cujo praticante
já é previamente aceito e aprovado por ele. E não surpreende, pois
o homem vê as coisas que são aparentes; Deus, porém, olha para o
coração [1Sm 16.7]; portanto, ele não estima outro tipo de obras, se-
não aquelas que procedem da fonte do coração. Consequentemen-
te, ele não somente rejeita como também abomina os sacrifícios dos
perversos, por mais esplêndidos que pareçam aos olhos dos ho-
mens. Pois se o homem, que é poluído em sua alma e por seu mero
toque contamina, com suas próprias impurezas, as coisas que de
outro modo são puras e limpas, como não pode ser impuro o que
dele mesmo procede?
Quando Deus repudia a justiça fingida na qual os Judeus se
vangloriam, ele contesta, através de seu Profeta, que as mãos deles
estavam “cheias de sangue” [Is 1.15]. Pela mesma razão, Ageu con-
tende contra os hipócritas. Portanto, a aparência externa das obras,
que pode iludir também nossos olhos carnais, se desvanece na pre-
sença de Deus. Nem ainda os pagãos eram ignorantes disto, cujos
poetas, quando falam acerca do culto divino com uma mente sóbria
e bem orientada, exigem, respectivamente, um coração limpo e
mãos puras. Por isso, mesmo entre todas as nações, poder traçar-
se o solene rito de purificações antes dos sacrifícios. Ora, visto que
em outro lugar o Espírito testifica, pelos lábios de Pedro, que “os co-
rações são purificados pela fé” [At 15.9]; e, visto que a pureza dos
santos patriarcas era do mesmíssimo tipo, o apóstolo não infere em
vão que a oferta de Abel era, pela fé, mais excelente do que a de
Caim. Portanto, em primeiro lugar, devemos manter que todas as
obras que foram feitas sem fé, seja qual for o esplendor de retidão
que se manifeste nelas, não eram outra coisa senão meros pecados
(sendo contaminadas desde suas raízes), e eram ofensivas ao Se-
nhor, para quem nada pode ser agradável sem a pureza interior do
coração.
Gostaria que aqueles que imaginam que os homens, movidos
por seu próprio livre-arbítrio, são capazes de receber a graça de
Deus, reflitam sobre isso. De fato, que controvérsia haveria, se Deus
justifica os homens gratuitamente, e isso mediante a fé? Pois isto
seria recebido como um ponto indiscutível: que, no julgamento de
Deus, não fica nenhuma consideração pelas obras, até que o ho-
mem seja recebido graciosamente. Outro ponto parece igualmente
indubitável: visto que toda a raça humana é odiosa diante de Deus,
não há outro meio de reconciliação ao favor divino senão mediante
a fé. Além disso, visto que a fé é um dom gratuito de Deus e uma
iluminação especial do Espírito, então é fácil inferir que somos previ-
amente vivificados somente pela sua graça, precisamente como se
ele nos levantasse dentre os mortos. Nesse sentido, Pedro igual-
mente afirma que é Deus quem purifica os corações mediante a fé.
Pois não haveria concordância do fato com a afirmação, a menos
que Deus de tal modo criasse fé no coração dos homens, para que
realmente estimassem seu dom.
Agora se pode ver de que maneira a pureza é o efeito da fé. É
uma filosofia enfadonha e trivial alegar, como sendo a causa da pu-
reza, que os homens não se deixam induzir a buscar a Deus como
seu galardoador, exceto pela fé. Os que falam assim sepultam intei-
ramente a graça de Deus, a qual seu Espírito primordialmente reco-
menda. Outros também falam insipidamente, ensinando que somos
purificados pela fé apenas em razão do dom da regeneração, a fim
de que possamos ser aceitos por Deus. Pois omitem não só a meta-
de da verdade, mas edificam sem sólido fundamento, visto que, em
razão da maldição que sobreveio à raça humana, tornou-se neces-
sário que a reconciliação gratuita precedesse. Além disso, visto que
Deus nunca de tal modo regenera seu povo neste mundo, que pos-
sam cultuá-lo perfeitamente, nenhuma obra humana possivelmente
será aceitável sem expiação. E a esse ponto pertence a cerimônia
da purificação legal, para que os homens aprendam que, sempre
que desejarem se achegar para mais perto de Deus, é preciso bus-
car pureza em outra fonte. Portanto, Deus finalmente se deleitará
em nossa obediência, a saber, quando ele nos contemplar em Cris-
to.

5. Ao passo que de Caim e de sua oferta não se agradou. Não


se deve duvidar que Caim se conduziu como os hipócritas costu-
mam fazer, ou seja, que pretendeu apaziguar a Deus, como alguém
que quita uma dívida por meio de sacrifícios externos, sem a mínima
intenção de se dedicar a Deus. Este, porém, é o genuíno culto: ofe-
recermo-nos a Deus como sacrifícios espirituais. Quando Deus visu-
aliza tal hipocrisia, combinada com arrogante e manifesto escarneci-
mento de si próprio, não surpreende que ele o odeie e consiga tole-
rá-lo; disso se segue ainda que, com desdém, ele rejeite as obras
dos que se afastam dele. Pois sua vontade é que antes de tudo nos
devotemos a ele; então, ele busca nossas obras em testemunho de
nossa obediência a ele, mas só em segundo lugar.
Deve observar-se que todas as ficções pelas quais os homens
zombam tanto de Deus quanto de si próprios, não passam de frutos
da incredulidade. A isso se acrescenta o orgulho, porque os incrédu-
los, desprezando a graça do Mediador, se lançam destemidamente
na presença de Deus. Os Judeus, insensatamente, imaginam que
as ofertas de Caim eram inaceitáveis porque ele defraudou a Deus
das melhores espigas de trigo, e mesquinhamente lhe ofereceu so-
mente espigas estéreis e pequenas. O mal era mais profundo e
mais secreto, a saber, aquela impureza do coração de que tenho fa-
lado; precisamente como, por outro lado, o forte odor de gordura se
queimando não podia conciliar o divino favor com os sacrifícios de
Abel; mas, sendo mesclados com a boa fragrância da fé, exalavam
um aroma suave.
Irou-se, pois, sobremaneira, Caim. Nesse ponto se pergunta
de onde Caim percebeu que as ofertas de seu irmão foram preferi-
das às suas. Os Hebreus, segundo seu costume, recorrem à adivi-
nhação e imaginam que o sacrifício de Abel foi consumido por fogo
celestial; mas, posto que não devamos nos permitir tão grande licen-
ça para inventarmos milagres, para os quais não temos nenhum tes-
temunho da Escritura, então que as fábulas judaicas sejam descar-
tadas. De fato, é mais provável que Caim formasse o juízo que Moi-
sés registra com base nos eventos que seguiram. Caim percebeu
que, para seu irmão, as coisas corriam bem melhor do que para ele.
Sabemos ainda que, para os hipócritas, nada parece de maior valor,
nada satisfaz mais seu coração, do que a bênção terrena. Além dis-
so, na pessoa de Caim temos um retrato semelhante ao de um ho-
mem perverso que ainda deseja ser considerado justo, e ainda arro-
ga para si o primeiro lugar entre os santos.
Na verdade, tais pessoas, mediante obras externas, labutam in-
cansavelmente por merecer o bem das mãos de Deus; mas, retendo
um coração mergulhado no engano, nada lhe apresentam senão
uma máscara; de modo que, em seu laborioso e ansioso culto religi-
oso, nada há de sincero, nada, senão mera pretensão. Mais tarde,
quando percebem que não tiveram nenhuma vantagem, revelam o
veneno de sua mente; pois não só se queixam contra Deus, mas ir-
rompem em fúria manifesta, de tal modo que, se fossem capazes,
com prazer o arrancariam de seu trono celestial. Tal é o orgulho ine-
rente a todos os hipócritas que, pela própria aparência de obediên-
cia, manteriam Deus debaixo de obrigação para com eles; porque,
não podendo escapar de sua autoridade, tentam apaziguá-lo com
agrados, como se faz a uma criança; entretanto, enquanto dão a
maior importância às suas tagarelices fictícias, acreditam que Deus
comete grande injustiça contra eles, se não os aplaude; mas quando
ele declara que suas ofertas são frívolas e de nenhum valor à sua
vista, primeiramente começam a murmurar e, depois, se enfurecem.
A impiedade deles é a única coisa que impede a Deus de reconcili-
ar-se com eles; porém gostariam de fazer barganha com Deus em
seus próprios termos. Quando isso é negado, se inflamam com furi-
osa indignação, a qual, ainda que concebida contra Deus, se arre-
metem contra seus filhos. Assim, quando Caim se irou contra Deus,
sua fúria foi descarregada contra seu indefeso irmão. Quando Moi-
sés diz: “descaiu-lhe o semblante” (no hebraico, a palavra semblan-
te está no plural, mas designa o singular), sua intenção é que Caim
não apenas foi dominado por de uma súbita e veemente ira, mas
que, movido de uma prolongada melancolia, passou a nutrir um sen-
timento tão maligno que se viu devorado pela inveja.

6. Então, lhe disse o S . Agora, Deus se volta contra o pró-


prio Caim e o convoca para estar perante o seu tribunal, para que o
miserável homem entendesse que sua fúria de nada lhe aproveita-
ria. Caim quer que se lhe confira honra por seus sacrifícios; mas,
porque não a obteve, ele extravasa sua fúria. Contudo, ele não con-
sidera que através de seu próprio erro fracassou em ver seu desejo
concretizado; pois, se ele pelo menos se conscientizasse de seu
mal interior, teria cessado de protestar diante de Deus e de enfure-
cer-se contra seu inocente irmão.
Moisés não declara de que maneira Deus falou. Se uma visão
lhe fora apresentada, ou ouvira um oráculo celestial, ou fora admo-
estado por inspiração secreta, ele certamente se sentiu réu de um
julgamento divino. Aplicar isso à pessoa de Adão, como sendo o
profeta e intérprete de Deus em censurar seu filho, é forçado e insig-
nificante. Entendo o que é que homens bons, não menos piedosos
que eruditos, propõem quando se divertem com tais fantasias. Sua
intenção é honrar o ministério externo da palavra, e evitar ocasião
em que Satanás insinue suas ilusões sob o pretexto de revelação.
Na verdade confesso que nada é mais útil do que as mentes piedo-
sas serem mantidas, sob a ordem da pregação, em obediência à
Escritura, para que não busquem a mente de Deus em especula-
ções extravagantes. Podemos observar, porém, que a palavra de
Deus foi enunciada desde o princípio por meio de oráculos, para
que mais tarde, quando ministrada pelas mãos dos homens, rece-
besse maior reverência. Reconheço ainda que o ofício da pregação
foi imposto a Adão e, sem dúvida, ele diligentemente admoestava a
seus filhos. Contudo, quem acredita que Deus só falava através de
seus ministros, restringe de modo mui violento as palavras de Moi-
sés. Ao contrário, concluamos que, antes que o ensino celestial fos-
se confiado a registros públicos, Deus frequentemente fazia conhe-
cida sua vontade por meio de métodos extraordinários, e que aqui
era o fundamento que sustentava a reverência pela palavra, en-
quanto que a doutrina entregue pelas mãos dos homens era o pró-
prio edifício. Por certo que, mesmo que eu ficasse em silêncio, todos
os homens reconheceriam quão profundamente tal imaginação,
como a que referimos, diminui a força da repreensão divina. Portan-
to, como a voz de Deus de tal modo soou previamente nos ouvidos
de Adão, que certamente percebeu que Deus lhe falava, assim tam-
bém ela agora se dirige a Caim.

7. Se procederes bem. Nessas palavras, Deus reprova Caim por


haver se irado injustamente, posto que a culpa de todo o mal jazia
nele mesmo. Pois, de fato, tolas eram sua queixa e indignação ante
a rejeição dos sacrifícios, cujos defeitos ele não cuidara em corrigir.
Assim, todos os homens perversos, depois de se encolerizarem por
muito tempo e veementemente contra Deus, finalmente são de tal
modo convencidos pelo juízo divino, que de modo vão desejam
transferir para outros a causa do mal. Os intérpretes gregos retiram,
daqui, muito do genuíno significado apresentado por Moisés. Posto
que, naquela época, não existiam nenhuma daquelas marcas ou
pontos que os Hebreus usam no lugar das vogais, era mais fácil, em
consequência da semelhança das palavras, imprimir um sentido es-
tranho. Entretanto, como qualquer um, moderadamente versado no
idioma hebraico, facilmente se ajuizará do erro deles, não me dete-
rei aqui a refutá-lo. Ainda assim, os que são hábeis no manejo do
idioma hebraico diferem não pouco entre si, embora somente em re-
lação a uma única palavra; mas os gregos mudam toda a sentença.
Entre os que concordam a respeito do contexto e do conteúdo do
discurso, há uma diferença relativa à palavra (seait), que na ver-
dade está no modo imperativo, mas deve ser transformada em um
pronome substantivo.
Entretanto, essa não é a dificuldade real; mas, posto que o ver-
bo (nasa) às vezes significa exaltar, às vezes remover ou remitir,
às vezes oferecer e às vezes aceitar, os intérpretes variam entre si,
quando cada um adota este ou aquele significado. Alguns dentre os
doutores hebreus se reportam ao semblante de Caim, como se
Deus prometesse que o restauraria, ainda quando se achasse abati-
do pela tristeza. Outros, aplicam o termo à remissão de pecados,
como se fosse dito: “Procede bem, e obterás o perdão.”. Mas, visto
que imaginam uma satisfação que anula o perdão gratuito, distanci-
am-se amplamente da intenção de Moisés. Uma terceira exposição
se aproxima muito mais da verdade, a saber, que é preciso tomar
exaltação por honra, desta forma: “Não há necessidade de que inve-
jes a honra de teu irmão, porque, se te conduzires corretamente,
Deus também te elevará ao mesmo grau de honra, ainda que agora,
ofendido por teus pecados, ele te tenha condenado à ignomínia.”.
Mas, mesmo isso não atrai minha aprovação. Outros retocam mais
filosoficamente e dizem que Caim acharia Deus propício e seria as-
sistido por sua graça, se pela fé levasse a pureza de coração com
seus sacrifícios externos. Eu deixo a estes que desfrutem de sua
própria opinião, porém temo que almejem o que possui pouca soli-
dez. Jerônimo traduz a expressão por “Tu receberás”, por entender
que Deus promete um galardão àquele culto puro e legítimo que ele
exige.
Tendo considerado várias opiniões, apresento agora o que me
parece mais apropriado. Em primeiro lugar, a palavra (seait) sig-
nifica o mesmo que aceitação, e está em oposição à rejeição. Em
segundo lugar, visto que o discurso diz respeito à questão em apre-
ço, explico o dito como se reportando aos sacrifícios, a saber, que
Deus os aceitará quando oferecidos corretamente. Aqueles que são
hábeis no idioma hebraico sabem que aqui nada é forçado, ou dis-
tante, da genuína significação da palavra. Ora, a própria ordem das
coisas nos leva ao mesmo ponto, a saber, que Deus declara repudi-
ados e rejeitados, de fato, como sendo de nenhum valor, aqueles
sacrifícios que são oferecidos impropriamente; mas que a oblação
será aceita como agradável e de bom aroma, se for pura e legítima.
Agora percebemos quão injustamente Caim se irou por seus sacrifí-
cios não terem sido honrados, posto que Deus já estaria pronto para
recebê-los com mãos estendidas, contanto que não fossem defei-
tuosos. Contudo, ao mesmo tempo, deve-se ter na memória o que
eu disse anteriormente: que o ponto chave do bom procedimento é
que as pessoas piedosas, confiando em Cristo, o Mediador, e na
gratuita reconciliação adquirida por ele, tudo façam para cultuar a
Deus sinceramente e sem dissimulação. Portanto, duas coisas es-
tão interligadas: que os fiéis, sempre que comparecerem na presen-
ça de Deus, sejam recomendados somente pela graça de Cristo,
tendo os seus pecados perdoados; e, também, que se apresentem
com genuína pureza de coração.
Se, todavia, procederes mal. Por outro lado, Deus pronuncia
uma terrível sentença contra Caim, caso ele tenha uma mente endu-
recida na perversidade e se deleite em seu crime; o discurso é muito
enfático, porque Deus não apenas rejeita a sua injusta queixa, mas
mostra que Caim não podia ter maior adversário do que o pecado
que ele acalentava intimamente. Deus, então, subjulga o homem ím-
pio, com umas poucas e concisas palavras, de tal modo que ele não
consegue achar refúgio, como se quisesse dizer: “Tua obstinação
de nada te aproveitará; pois ainda quando nada tenhas a ver comi-
go, teu pecado não te dará descanso, mas te conduzirá, te persegui-
rá, te impelirá, e nunca te permitirá que escapes.”. Consequente-
mente, ele não apenas se enfurecia vã e inutilmente, mas era tido
como culpado por sua consciência, ainda quando ninguém o acu-
sasse; pois a expressão “o pecado jaz à porta” se relaciona com o
juízo interior da consciência, a qual constrange o homem convicto
de seu pecado e o sitia de todos os lados. Embora o ímpio imagine
que Deus dormita no céu, e possa lutar, o quanto possa, para repelir
o medo de seu juízo, contudo o pecado estará perpetuamente impe-
lindo-o, embora ele seja relutante e fugitivo, para àquele tribunal do
qual tenta escapar. Até mesmo as declarações dos pagãos testifi-
cam que não eram ignorantes dessa verdade; pois não se deve ter
dúvida de que quando dizem: “A consciência é como mil testemu-
nhas”, comparam-na com um executor mui cruel. Não há tormento
mais grave, ou severo, do que o que se percebe aqui; além disso, o
próprio Deus extrai confissões desse gênero. Eis o que diz Juvenal:
“Eis que os altos céus vingam os crimes humanos;
Ainda que os veredictos terrenos sejam comprados e vendidos,
Ele julga o pecador que mantém em seu seio,
E a consciência o tortura com tormentosas preocupações.”.
Mas a expressão de Moisés tem força peculiar. Somos informa-
dos que jaz, sim, mas à porta; pois o pecador não é imediatamente
atormentado pelo medo do juízo; mas, reunindo em torno de si todo
deleite do qual é capaz, ele, a fim de enganar a si próprio, anda li-
vremente, e inclusive folga em campinas aprazíveis, quando, contu-
do, ele vem à porta e ali se depara com o pecado, mantendo-se em
constante guarda; e então a consciência, que antes cria estar em li-
berdade, é escravizada e recebe dupla punição pelo atraso.
O seu desejo será contra ti, mas a ti cumpre dominá-lo.
Quase todos os comentaristas associam isso ao pecado, e creem
que, por essa admoestação, se restringem aquelas luxúrias depra-
vadas que solicitam e impelem a mente humana. Portanto, segundo
essa opinião, o significado da expressão é: “Se o pecado se ergue
contra ti para subjugar-te, por que te deleitas nele, e não antes labu-
tas para restringi-lo e controlá-lo? Pois a ti compete subjugá-lo e re-
primir aqueles afetos em tua carne que percebes ser opostos à von-
tade de Deus e se rebelam contra ele.”. Mas eu acredito que Moisés
tem em vista algo completamente diferente. Eu não considero que à
palavra hebraica para pecado afixa-se o traço do gênero feminino,
mas que aqui se usam dois pronomes relativos masculinos. Certa-
mente Moisés não trata particularmente do pecado que foi cometido,
em si, e sim da culpa que é contraída dele e da condenação conse-
quente. Portanto, como as palavras “seu desejo será contra ti” de-
vem ser entendidas?
Entretanto, não há necessidade de uma refutação extensa
quando eu apresentar o genuíno significado da expressão. Ao con-
trário, parece-me uma reprovação, pela qual Deus acusa o homem
ímpio de ingratidão, porque este despreza a honra da primogenitura.
Quanto maiores são os benefícios divinos com os quais alguém é
dotado, mais se revela sua impiedade, a menos que se esforce fer-
vorosamente por servir ao Autor da graça a quem ele está sob obri-
gação. Mesmo sendo mais novo, Abel era um diligente adorador de
Deus. No entanto, o primogênito adorou a Deus negligente e super-
ficialmente, ainda que alcançara, pela bondade divina, uma dignida-
de tão proeminente; e, portanto, Deus agrava seu pecado, porque
Caim nem ao menos imitara seu irmão, a quem deveria ter excedido
muitíssimo em piedade, do mesmo modo que o foi quanto à honra
da primogenitura. Além disso, esta forma de linguagem é comum
entre os hebreus, a saber, que o desejo do inferior deve ser para
aquele a quem está sujeito; assim Moisés fala da mulher [3.16]: “o
teu desejo será para o teu marido”. Contudo, hesita infantilmente
quem distorce essa passagem para provar a liberdade da vontade;
pois, se admitirmos que Caim foi admoestado quanto ao seu dever
de sujeitar o pecado, não se deve inferir disso nenhum poder ineren-
te ao homem; porque é indubitável que somente pela graça do Espí-
rito Santo podem as afeições da carne ser de tal modo mortificadas
que não prevaleçam. Na verdade, nem devemos concluir que sem-
pre que Deus ordena algo teremos forças para realizá-lo, senão
que, ao contrário, recorramos ao dito de Agostinho: “Dá o que orde-
nas, e ordena o que quiseres.”.

8. Disse Caim a Abel, seu irmão. Alguns entendem esse diálogo


como sendo uma simples conversa, como se Caim, dissimulando ar-
dilmente sua ira, falasse de uma maneira fraterna. Na Vulgata, Jerô-
nimo traduz a expressão por “Vem, saiamos.”. Em minha opinião, a
linguagem é elíptica, e algo deve estar subentendido; no entanto, o
que a expressão quer dizer é incerto. Entretanto, não me convenço
com a explicação de que Moisés concisamente repreende a perver-
sa deslealdade do hipócrita que, falando de modo familiar, apresen-
tou a aparência de concórdia fraterna, até que se propiciasse a
oportunidade de perpetrar o horrível homicídio. E, por esse exemplo,
somos ensinados que os hipócritas nunca devem ser mais temidos
do que quando se submetem para conversar sob o pretexto de ami-
zade; porque quando não lhes é permitido, o quanto lhes apraz, inju-
riar pelo uso de violência declarada, de repente assumem uma falsa
aparência de paz. Mas de modo algum se deve esperar que os que
se portam como animais selvagens para com Deus, devem sincera-
mente cultivar a confiança de amizade com os homens. No entanto,
que o leitor considere se a intenção de Moisés realmente era que
Caim, embora fosse repreendido por Deus, contendeu com seu ir-
mão, e assim esse seu dito dependeria do que havia acontecido.
Certamente me inclino mais à opinião de que ele não guardava, no
seu próprio íntimo, seus sentimentos malignos, mas que se irrom-
peu em acusação contra seu irmão e, furiosamente, o declarou
como sendo a causa de sua rejeição.
Estando eles no campo. Disso deduzimos que, embora Caim,
em casa, se queixasse de seu irmão, contudo de tal modo encobriu
sua fúria diabólica com que se deixara inflamar, que Abel não sus-
peitou que fosse tão sério, pois Caim adiou a vingança para uma
ocasião oportuna. Além disso, esse feito singular de culpa claramen-
te mostra a que ponto Satanás impelirá os homens quando entorpe-
cem sua mente na perversidade, de modo que, no fim, sua obstina-
ção vem a ser digna de extrema punição.

9. Onde está Abel, teu irmão? Aqueles que supõem que o pai fez
essa pergunta a Caim a respeito de seu filho Abel, enfraquecem
toda a força da instrução que Moisés aqui desejava ministrar, a sa-
ber, que Deus, seja por inspiração interior ou por algum método ex-
traordinário, convocou o parricida2 a comparecer perante o seu tri-
bunal, como se trovejasse do céu. Pois, o que eu disse antes deve
ser firmemente mantido: que, como Deus agora fala conosco atra-
vés das Escrituras, assim outrora se manifestava aos patriarcas
através de oráculos; e também, da mesma maneira, revelava seus
juízos aos filhos réprobos dos santos. Assim falou o anjo a Agar, no
bosque, depois que ela apostatou da Igreja,3 como veremos no oita-
vo versículo do décimo sexto capítulo.
De fato, é possível que Deus houvesse interrogado a Caim me-
diante o exame silencioso de sua consciência; e que ele, por sua
vez, houvesse respondido intimamente, rangendo os dentes e mur-
murando. Entretanto, devemos concluir que ele foi examinado, não
meramente por uma voz externa do homem, mas por uma voz divi-
na, a ponto de fazê-lo sentir que havia de tratar diretamente com
Deus. Portanto, sempre que as contrições secretas da consciência
nos convidem a refletirmos sobre nossos pecados, lembremo-nos
que Deus mesmo está falando conosco. Pois aquele senso interior
pelo qual somos convencidos de pecado é o tribunal peculiar de
Deus, onde ele exerce sua jurisdição. Portanto, que aqueles cuja
consciência os acusa se acautelem para que, segundo o exemplo
de Caim, não se mantenham na obstinação. Pois isso é realmente
recalcitrar-se contra Deus e resistir seu Espírito; quando, porém, re-
pelimos tais pensamentos, isso nada mais é do que incentivos ao
arrependimento. Mas é um erro muito comum acrescentar aos peca-
dos anteriormente cometidos tal perversidade: que aquele que, que-
rendo ou não, se vê constrangido a sentir em sua mente o pecado,
ainda se recusará a render-se a Deus. Disso fica evidente quão
grande é a depravação da mente humana, visto que, mesmo quan-
do convencidos e condenados por nossa própria consciência, não
cessamos de desdenhar, ou de nos enfurecer, contra o Juiz.
Prodigioso foi o entorpecimento de Caim que, havendo cometi-
do um crime tão bárbaro, rejeitou com toda ferocidade a reprovação
divina, de cuja mão, contudo, foi incapaz de escapar. Mas a mesma
coisa sucede diariamente a todos os perversos; cada um deles sen-
do engenhosos em apresentar desculpas bem elaboradas. Pois o
coração humano é tão enredado em tortuosos labirintos que para o
perverso é fácil acrescentar, a seus crimes obstinados, menosprezo
a Deus; não porque sua obstinação seja suficientemente sólida para
afastar o juízo de Deus (pois, embora se ocultem nos profundos re-
cônditos de que eu já falei, estão sempre inflamados secretamente,
qual brasa viva), mas porque, por uma cega obstinação, se tornam
petrificados. Disso se percebe claramente a força do juízo divino;
pois de tal modo penetra o coração endurecido dos ímpios, que es-
tes são intimamente obrigados a serem seus próprios juízes; nem
lhes é permitido suprimir o sentimento de culpa que ele tem tentado
extorquir, para não deixar sequer um vestígio ou cicatriz do seu en-
durecimento. Embora Caim, com feroz rebeldia, tente violentamente
repelir o juízo divino, ao negar que era o guardador da vida de seu
irmão, acreditava que poderia escapar por esta desculpa: que não
lhe fora exigido dar contas do assassinato de seu irmão, porque ele
não recebera ordem expressa de cuidar dele.

10. Que fizeste? Moisés mostra que Caim nada lucrara com sua
desculpa. Antes, Deus lhe inquiriu onde estava seu irmão; agora,
mais incisivamente, insiste com ele a fim de arrancar uma relutante
confissão de sua culpa; pois nenhum suplício ou tortura de qualquer
tipo exerce tanta força para constranger os malfeitores como houve
na eficácia no trovão da voz divina que deixou Caim confuso. Pois
Deus já não questiona se ele o fizera; mas, pronunciando uma única
palavra, diz ser ele o autor do feito, agravando assim a atrocidade
do crime. Aprendemos, pois, na pessoa de um homem, que infeliz
resultado de um ato aguardam aqueles que desejam se isentar por
contender contra Deus. Pois aquele que sonda os corações não tem
necessidade de um sinuoso curso de investigação; mas, com uma
palavra, destrói de tal modo aqueles a quem acusa, o que é sufici-
ente, e mais que suficiente, para sua condenação. Os advogados
apelam para o primeiro tipo de defesa que é a negação do fato;
quando o fato não pode ser negado, recorrem às circunstâncias
qualificadoras do caso. Caim não tinha nenhum desses meios de
defesa, pois Deus, respectivamente, o declara culpado do homicídio
e, ao mesmo tempo, declara a hediondez do crime. E, por esse
exemplo, somos advertidos de que é inútil apresentar pretextos e
subterfúgios quando os pecadores são convocados a comparece-
rem diante do tribunal de Deus.
A voz do sangue de teu irmão clama da terra a mim. Antes
de tudo, Deus mostra que ele é conhecedor dos feitos dos homens,
ainda que ninguém se queixe ou os acuse; segundo, que ele tem a
vida de uma pessoa como preciosa demais para permitir que se der-
rame sangue inocente impunemente; terceiro, que ele cuida dos pie-
dosos, não só ao longo de sua vida terrena, mas inclusive após a
sua morte. Entretanto, é possível que os juízes terrenos cochilem, a
menos que um acusador recorra a eles; contudo, ainda quando
quem é injuriado fique em silêncio, as próprias injúrias, em si, são
suficientes para despertar a Deus, a fim de infligir-lhes punição.
Uma consolação maravilhosamente doce para os bons homens que
são injustamente importunados é saber que seus próprios sofrimen-
tos, que eles suportam em silêncio, chegam à presença de Deus e
clamam por vingança. Abel não pôde falar quando sua garganta es-
tava sendo cortada, ou por qualquer outro meio pelo qual ele foi
morto; mas, após sua morte, a voz de seu sangue era mais veemen-
te do que qualquer eloquência de um orador.
Assim, a opressão e o silêncio não impedem a Deus de julgar a
causa que o mundo supõe estar sepultada. Eis uma consolação que
nos propicia abundante razão para a paciência: quando aprendemos
que nada perderemos de nosso direito, se enfrentarmos as injúrias
com moderação e justiça; e que, quanto mais Deus estiver pronto a
nos vingar, mais modestamente nos sujeitemos a suportar todas as
coisas, porque o plácido silêncio da alma eleva eficazes clamores a
encherem céu e terra. Essa doutrina não se aplica apenas ao esta-
do da presente vida, nos ensinando que, entre os inumeráveis peri-
gos pelos quais vivemos cercados, estaremos em segurança sob a
guarda divina, mas ela nos eleva mediante a esperança de uma vida
superior, porque devemos concluir que, aqueles de quem Deus cui-
da, estarão vivos após a morte.4 Por outro lado, a seguinte conside-
ração deve infligir terror nos perversos e violentos: que Deus declara
que assume as causas que os homens procuram esconder, não em
consequência de algum impulso externo, mas por causa de sua pró-
pria natureza; e que ele será o infalível vingador dos crimes, muito
embora os prejudicados não se queixem. De fato, os homicidas mui-
tas vezes exultam como se tivessem evitado a punição; mas, por
fim, Deus mostrará que o sangue inocente não ficará mudo, e que
ele não disse em vão que “a morte dos santos é preciosa aos seus
olhos” [Sl 16.15]. Portanto, como essa doutrina traz alívio aos fiéis,
para que não vivam demasiadamente ansiosos acerca de sua vida,
disso aprendemos que Deus vela sobre eles continuamente; assim,
ele troveja com veemência contra os ímpios que não têm escrúpulo
de perversamente prejudicar e destruir aqueles a quem Deus deter-
minou preservar.

11. És agora, pois, maldito por sobre a terra. Havendo se conven-


cido do crime, contra Caim se pronuncia agora o juízo. E, antes de
tudo, Deus constitui a terra a ministra de sua vingança, como tendo
sido poluída pelo ímpio e horrível assassino; como se quisesse di-
zer: “Acabaste de negar o homicídio que cometeste, mas a própria
terra inanimada requererá tua punição.”. Entretanto, Deus faz isso
para agravar a enormidade do crime, como se um tipo de contágio
aflorasse do crime até à terra, para o qual a execução da punição
era necessária. Está longe do verdadeiro significado da expressão a
ideia de alguns de que aqui se atribui à terra crueldade, como se
Deus a comparasse a uma besta selvagem que embebeu-se do
sangue de Abel. Ao contrário, em minha opinião, clemência é atribu-
ía à terra pela figura da personificação;5 porque, movida de aversão
pela poluição, ela abriu sua boca com o fim de cobrir o sangue que
fora derramado pela mão de um irmão. Mui detestável é a crueldade
desse homem, que não se esquiva de derramar o sangue de seu
semelhante, do qual o seio da terra vem a ser o receptáculo.
Contudo, aqui não devemos imaginar algum milagre, como se o
sangue fosse absorvido por alguma inusitada abertura da terra; mas
a linguagem é figurada, significando que houve mais humanidade na
terra do que no próprio homem. Além disso, há quem pense que,
porque Caim é agora maldito em termos mais fortes do que a maldi-
ção que Adão ouvira anteriormente, Deus havia tratado mais bran-
damente com o primeiro homem, movido pelo propósito de poupar a
raça humana; há quem aceite essa opinião. Adão ouviu as palavras:
“Maldita é a terra por tua causa.”. Agora, porém, a agulha da vingan-
ça divina vibra e se transfere para a pessoa de Caim. A opinião de
outros, de que aqui está em pauta a punição temporal, porque le-
mos: “Tu és maldito sobre a terra, e não no céu”, para que a posteri-
dade de Caim, sendo cortada da esperança de salvação, se afun-
dasse mais ousadamente em sua própria condenação, parece-me
não estar bem fundamentada. Eu prefiro interpretar essa passagem
da seguinte forma: o julgamento foi confiado à terra, para que Caim
entendesse que o juiz que o convocara não estava distante e, por
isso, não havia necessidade de que um anjo descesse do céu, visto
que a terra voluntariamente se ofereceu como vingador.

12. Quando lavrares o solo. Esse versículo é a explicação do ante-


rior, pois expressa mais claramente o que está implícito por “ser
maldito sobre a terra”, a saber, que a terra defrauda seus lavradores
do fruto de seu labor. É possível que alguém objete dizendo que
essa punição fora antes, na pessoa de Adão, igualmente infligida
sobre todos os mortais. Minha resposta é que não tenho dúvida de
que algo da bênção que até aqui permanecera foi agora ainda mais
diminuída com respeito ao homicida, para que ele sentisse a própria
terra sendo-lhe hostil. Embora Deus geralmente faça com que o sol
nasça diariamente sobre bons e maus [Mt 5.45], a sua bondade per-
manece mesmo quando ele pune os pecados, seja de toda uma na-
ção ou de determinados homens, com chuva e saraiva e nuvens,
desde que isso seja útil para dar determinada prova de juízo futuro;
e também com o propósito de admoestar o mundo, por meio de tais
exemplos, de que nada podem fazer quando Deus está irado e se
opõe contra eles. Além disso, no primeiro homicídio, Deus decidiu
mostrar um singular exemplo de maldição, cuja lembrança permane-
cesse em todas as eras.
Serás fugitivo e errante pela terra. Agora se inflige também
outra punição, a saber, que Caim nunca estaria em segurança, aon-
de quer que ele fosse. Moisés usa duas palavras, apenas um pouco
diferente uma da outra, exceto que a primeira se deriva de (noa),
que é peregrinar, e a outra se deriva de (nadad), que significa fu-
gir. A distinção que alguns fazem de que (na) refere-se àquele que
nunca estabeleceu uma habitação, e (nad) refere-se a quem não
sabe que caminho deve tomar, carece de provas conclusivas e, para
mim, é destituída de qualquer peso. Portanto, o sentido genuíno das
palavras é que, aonde quer que fosse, Caim viveria sem morada
certa e seria um fugitivo – como frequentemente sucede aos ladrões
que não têm tranquilidade nem lugar de repouso seguro, pois o
semblante de cada homem lhes inspira terror; e, por outro lado, por-
que sentem horror à solidão.
Mas, para alguns, isso de modo algum parece punição adequa-
da a um homicida, visto que essa é antes a condição destinada aos
filhos de Deus; porque, mais que todos os outros, eles se sentem
como estrangeiros no mundo. E Paulo se queixa de que tanto ele
quanto seus companheiros vivem destituídos de habitação estável
[1Co 14.11]. A isso respondo que Caim fora não só condenado a um
exílio pessoal, mas fora também sujeitado a uma punição ainda
mais severa, a saber, que não acharia sobre a terra uma região
onde não fosse dominado por uma mente inquieta e temerosa; pois,
como uma boa consciência é propriamente chamada “muro de bron-
ze”, assim nem cem muros nem tantas fortalezas podem livrar os
perversos de inquietação. Os fiéis são estrangeiros sobre a terra;
contudo, desfrutam de uma tranquila moradia temporária. Muitas ve-
zes, constrangidos pela necessidade, vagueiam de um lugar para
outro; mas, onde quer que enfrentem tempestades, portam consigo
uma mente serena, até que finalmente, por contínua mudança de lu-
gar, eles percorrem sua trajetória e atravessam o mundo, e em toda
parte são sustentados pela potente mão de Deus. Tal segurança é
negada aos perversos, a quem todas as criaturas ameaçam; e mes-
mo que todas as criaturas os favorecessem, ainda assim sua própria
mente é tão perturbada, que não lhes permite nenhum descanso.
Dessa forma, mesmo que não mudasse de lugar, Caim não poderia
ter escapado à perturbação que Deus fixara em sua mente; nem
mesmo o fato de que de ele ser o primeiro homem a construir uma
cidade o impediu de ser sempre inquieto, mesmo em seu próprio lei-
to.

13. É tamanho meu castigo. Quase todos os comentaristas con-


cordam que essa é a linguagem do desespero, porque Caim, confu-
so diante do castigo divino, perdeu toda esperança de perdão. E, de
fato, é verdade que os réprobos nunca se conscientizam de seus
males, até que lhes sobrevenha uma ruína, da qual não conseguem
escapar; sim, de fato, quando o pecador, obstinado até o fim, zomba
da paciência de Deus, este é o devido galardão de seu tardio arre-
pendimento: que ele sente um horrível tormento para o qual não há
qualquer remédio – se, realmente, esse cego e atônito medo do cas-
tigo, que é destituído de qualquer ódio ao pecado ou qualquer dese-
jo de voltar-se para Deus, pode ser chamado arrependimento. Até
Judas confessa seu pecado, mas, esmagado pelo medo, foge, o
quanto possível, da presença de Deus. E sem dúvida é verdade que
os réprobos não contam com nenhum meio; na medida em que se
lhes admite algum sossego, dormem em segurança; mas, quando a
ira de Deus os comprime, são mais atormentados que corrigidos.
Portanto, o medo os atordoa, de modo que não conseguem pensar
em nada, senão no inferno e na eterna destruição. Entretanto, não
tenho dúvida de que as palavras têm outro significado, pois tomo o
termo (aoon) em sua significação própria, e interpreto a palavra
(nasa) como suportar.
“Um castigo maior (diz ele) me está imposto, mais do que posso
suportar.”. Dessa maneira, Caim, embora não justifique seu pecado,
tendo sido privado de todo e qualquer recurso, ainda se queixa da
intolerável severidade de seu castigo. Assim também os demônios,
embora saibam que são justamente atormentados, contudo não ces-
sam de enfurecer-se contra Deus, seu Juiz, e de acusá-lo de cruel-
dade. E imediatamente segue a explicação das seguintes palavras:
“Eis que me expulsas da face da terra, e estou escondido de tua
face.”. Nessa expressão, Caim está se queixando abertamente a
Deus, dizendo que está sendo tratado mais severamente do que é
justo, nem clemência nem moderação estão sendo mostradas a ele.
Pois é precisamente como se dissesse: “Se uma habitação segura
me é negada no mundo, e não estejas disposto a cuidar de mim, o
que me resta? Não seria melhor morrer logo do que viver constante-
mente exposto a mil mortes?”. Disso inferimos que os réprobos, por
mais claramente que sejam convencidos, não cessam de esbrave-
jar; visto que, por sua impaciência e fúria, lançam mão de toda sorte
de protestos, como se fossem capazes de excitar inimizade contra
Deus em razão da severidade de seus próprios sofrimentos.
Essa passagem ainda ensina claramente qual era a natureza
daquela condição peregrina, ou exílio, que Moisés acabara de men-
cionar, a saber, que Deus não lhe deixara nenhum canto da terra em
que Caim pudesse repousar tranquilamente. Pois, sendo excluído
dos direitos comuns do gênero humano a ponto de não mais ser re-
conhecido entre os habitantes legítimos da terra, Caim declara que
é banido da face da terra e, portanto, se tornará um fugitivo, por-
quanto a terra lhe negará uma habitação; disso se segue, necessari-
amente, que ele, como um ladrão, deveria ocupar o que não possui
por direito. Viver “escondido da face de Deus” equivale a não ser
considerado por Deus ou não ser protegido por seu cuidado. Essa
confissão, a qual Deus arranca dos ímpios homicidas, também é
uma prova de que não há paz para os homens, a menos que se
submetam à providência de Deus e se deixem persuadir de que sua
vida é objeto de seu cuidado; é ainda uma prova de que os ímpios
só podem desfrutar tranquilamente de quaisquer benefícios divinos
na medida em que se considerarem como que postos no mundo sob
esta condição: que vivam sua vida sob o governo de Deus. Quão
miserável, pois, é a instabilidade dos perversos que bem sabem que
nem sequer um palmo de terra lhes é concedido por Deus!

14. Quem comigo se encontrar me matará. Visto que não mais


está coberto pela proteção divina, Caim conclui que estará exposto
à injúria e violência de todos os homens. E arrazoa com razão, pois
somente a mão de Deus nos preserva de modo maravilhoso em
meio a tantos perigos. E fala prudentemente quem diz não apenas
que nossa vida está por um fio, mas também que, nesta vida passa-
geira, desde o ventre materno, temos sido poupados de muitas mor-
tes. Agora, porém, Caim não apenas se considera privado da prote-
ção divina, mas também presume que todas as criaturas estariam
divinamente armadas para se vingar de seu ímpio homicídio. Essa é
a razão por que ele teme tanto por sua vida, caso alguém o encon-
trasse; pois, como um homem é um animal social, e todos natural-
mente desejam uma vida em sociedade, por certo que este deve ser
considerado um fato portentoso: que o encontro de Caim com qual-
quer homem seria uma grande oportunidade para um homicídio.

15. Assim, qualquer que matar a Caim. Não consigo ver, por as-
sim dizer, que tenha razão quem pense que o desejo de Caim era
perecer imediatamente por algum tipo de morte, a fim de que não
mais se visse agitado por contínuos perigos, e que o prolongamento
de sua vida lhe foi concedido como castigo. Mas muito mais absurda
é a maneira como muitos dentre os judeus mutilam essa sentença.
Primeiro, imaginam nessa sentença o uso da figura (aposiô-
pêsis), segundo a qual está subentendido algo não expresso; então
começam uma nova sentença, “Será punido sete vezes”, o que se
reporta a Caim. Contudo, nem assim concordam entre si sobre a
sentido. Alguns tagarelam a respeito de Lameque, como logo decla-
raremos. Outros explicam a passagem em referência ao dilúvio, o
qual se deu na sétima geração. Mas isso é trivial, posto que o dilúvio
não foi um castigo privado de uma só família, mas um castigo co-
mum da raça humana.
Mas essa sentença deve ser lida continuamente assim: “Quem
quer que mate a Caim, por esse fato será punido sete vezes.”. E a
partícula causal (lekon) indica que Deus cuidaria de prevenir que
alguém irrompesse facilmente sobre ele para o destruir; não porque
Deus instituísse um privilégio em favor do homicida ou ouvisse a
sua oração, mas porque ele visava à sua posteridade, em prol da
preservação da vida humana. A ordem da natureza fora horrivel-
mente violentada; o que se poderia esperar que ocorresse no futuro,
quando a perversidade e audácia do homem aumentassem, a me-
nos que a fúria de outros fosse restringida por uma mão violenta?
Pois bem sabemos que pestilento e letal veneno Satanás nos repre-
senta nos maus exemplos, caso não se aplique rapidamente um re-
médio. Portanto, o Senhor declara: se alguém imitar a Caim, não
apenas não terá desculpa em seu exemplo, mas seria atormentado
ainda mais severamente porque devem, em seu exemplo pessoal,
perceber quão detestável é sua perversidade aos olhos de Deus.
Portanto, estão redondamente enganados os que supõem que a ira
de Deus é aplacada quando os homens podem apresentar o que é
costumeiro como uma desculpa para pecarem; ao mesmo tempo em
que, a partir dela, são ainda mais inflamados.
E pôs o S um sinal em Caim. Recentemente eu disse
que nada se concedeu a Caim visando a favorecê-lo, mas visando a
opor-se, no futuro, à crueldade e à violência injusta. E, portanto,
Moisés afirma que foi posta em Caim uma marca que causasse ter-
ror em todos; porque poderiam ver, como num espelho, o tremendo
juízo de Deus contra os homens sangrentos. Como a Escritura não
descreve que tipo de sinal era esse, alguns comentaristas têm le-
vantado a hipótese de que seu corpo se tornou trêmulo. Para nós é
suficiente que houvesse algum emblema visível que reprimisse, a
quem o visse, o desejo e a audácia de lhe matar.

16. Retirou-se Caim da presença do S . Lemos que Caim


afastou-se da presença de Deus, porque, até então, considerava-se
que ele vivia na terra como em uma habitação pertencente a Deus;
agora, como um exílio o afastou ainda mais da presença de Deus,
ele peregrina longe dos limites de sua proteção. Ou, certamente (o
que não é menos provável), Moisés o representa como tendo per-
manecido diante do tribunal do juízo, até que fosse condenado; mas
agora, quando Deus cessou de falar com ele, livrando-se do senso
de sua presença, ele se apressa rumo a outros lugares e busca uma
nova habitação, onde pudesse escapar dos olhos de Deus. A terra
de Node, sem dúvida, obteve seu nome de seu habitante. Por estar
situada ao lado oriental do Paraíso, podemos inferir a verdade do
que já dissemos: que determinado lugar, distinto por sua aprazível e
rica abundância de frutos, fora dado a Adão por habitação; pois, ne-
cessariamente, esse lugar seria circunscrito, possuindo aspectos
opostos em relação às várias regiões do mundo.

17. E coabitou Caim com sua mulher. À luz do contexto, podemos


deduzir que Caim, antes de matar a seu irmão, tomara uma esposa;
de outro modo, Moisés agora teria relatado algo acerca de seu ca-
samento; portanto, seria um fato digno de registro que se pudesse
achar uma de suas irmãs que não se esquivasse com horror de en-
tregar-se nas mãos de alguém que bem sabia estar maculado com o
sangue do irmão; e, enquanto se lhe podia dar uma livre escolha,
em vez de preferir espontaneamente seguir um exilado e fugitivo,
permaneceria na família de seu pai. Além disso, ele relata como
sendo um milagre o fato de que Caim, estando abalado com o terror
já mencionado, teria pensado em ter filhos; pois é notável que,
aquele que se imaginava ter tantos inimigos como havia homens no
mundo, não se ocultasse em alguma distante solidão. É também
contrário à natureza que ele, se sentindo aturdido com o medo, e
sentindo que Deus se lhe opunha, pudesse desfrutar de algum pra-
zer. Aliás, parece-me duvidoso se ele tivera algum filho anteriormen-
te, pois não haveria maior absurdo em dizer que aqui se faz referên-
cia especialmente aos que haviam nascido após a prática do crime,
que uma semente detestável participasse plenamente da disposição
sanguinária e dos métodos selvagens de seu pai. O fato de que mui-
tas pessoas, tanto do sexo masculino quanto do sexo feminino, são
omitidas nessa narrativa é indiscutível, pois o único propósito de
Moisés era seguir uma linhagem da descendência de Caim, até que
chegasse a Lameque. A casa de Caim, portanto, era mais populosa
do que Moisés registra; mas, em razão da memorável história de La-
meque, que ele está prestes a narrar, apenas chama a atenção para
uma linhagem de descendentes e ignora, pelo silêncio, o restante.
Caim edificou uma cidade. Isso, à primeira vista, parece con-
trariar tanto o juízo divino quanto a sentença precedente. Pois Adão
e o restante de sua família, a quem Deus designara um lugar fixo,
estão vivendo sua vida em cabanas, ou até mesmo sob o céu aber-
to, e buscam precários alojamentos debaixo de árvores; mas o exílio
de Caim, a quem Deus ordenara perambular como fugitivo, não con-
tente com uma casa particular, edifica para si uma cidade. Entretan-
to, é provável que o homem, oprimido por uma consciência acusati-
va e crendo não estar seguro dentro das paredes de sua própria
casa, inventara um novo tipo de defesa; pois Adão e os demais que
viviam se dispersaram pelos campos por nenhuma outra razão, se-
não que possuem menos medo. Portanto, o fato de Caim pensar em
edificar uma cidade com o propósito de separar-se do resto dos ho-
mens é um sinal de uma mente perturbada e culposa; contudo, que
tal orgulho estava mesclado com seu embaraço e ansiedade se evi-
dencia por haver ele dado à cidade o nome de seu filho.
Assim, diferentes afetos frequentemente contendem com o co-
ração de cada um dos ímpios. O medo, fruto de sua iniquidade, o
apanha dentro dos muros de uma cidade, para que se fortifique de
uma maneira antes desconhecida; e, por outro lado, irrompe-se a
vaidade arrogante. Por certo que ele deveria, antes ter preferido que
seu nome fosse sepultado para sempre; pois, como poderia sua me-
mória ser transmitida, a não ser para permanecer em execração?
Contudo, a ambição o impele a erigir, no nome de sua cidade, um
monumento à sua descendência. O que diremos aqui, senão que
ele se endureceu contra a punição, com o propósito de ostentar-se,
com inflada obstinação, contra Deus? Além disso, embora seja lícito
defender nossa vida por meio das fortificações de cidades e fortale-
zas, contudo é preciso que se note bem a primeira origem delas,
porque sempre nos é proveitoso contemplar nossas falhas em suas
respectivas correções.
Quando homens capciosos questionam sarcasticamente de
onde Caim conseguira arquitetos e operários para a construção de
sua cidade, e de onde ele trouxe cidadãos para nela habitar, lhes
pergunto que autoridade eles têm para crer que a cidade foi constru-
ída de pedras esquadrejadas, com grande habilidade e excessiva
despesa, e que a construção dela foi obra de longa duração. Pois
nada mais se pode deduzir das palavras de Moisés, senão que
Caim cercou a si e à sua posteridade com muros formados dos mais
rudes materiais; e, no que se refere aos seus habitantes, conside-
rando o contexto dos primórdios da fecundidade do gênero humano,
sua descendência teria se desenvolvido num número tão grande a
ponto de seus filhos alcançarem a quarta geração, que poderia facil-
mente formar o corpo de uma cidade.

19. Lameque tomou para si duas esposas. Temos aqui a origem


da poligamia numa descendência perversa e degenerada; e o pri-
meiro autor dela, um homem cruel, destituído de toda e qualquer hu-
manidade. Se ele foi motivado por um desejo imoderado de aumen-
tar sua própria família, como os homens orgulhosos e ambiciosos
costumam fazer, ou se foi por mera luxúria, é de pouca importância
saber; porque, em ambas as formas, ele violentou a sacra lei do ma-
trimônio, a qual fora promulgada por Deus. Pois Deus determinara
que “os dois se tornarão uma só carne”, e essa é a perpétua ordem
da natureza. Lameque, com brutal desprezo a Deus, corrompe as
leis da natureza. O Senhor, portanto, quis que a corrupção do legíti-
mo matrimônio procedesse da casa de Caim e da pessoa de Lame-
que, a fim de que os polígamos se envergonhassem do exemplo.

20. Jubal; este foi o pai dos que habitam em tendas. Agora Moi-
sés relata que algum bem foi mesclado com os males que procede-
ram da família de Caim. Pois a invenção das artes e de outras coi-
sas que servem para o uso comum e conveniente da vida é um dom
de Deus que de modo algum deve ser menosprezado, e uma capa-
cidade digna de recomendação. É realmente maravilhoso que essa
descendência, que decaíra tão profundamente da integridade, tives-
se suplantado os demais membros da posteridade de Adão em do-
tes raros. Entretanto, compreendo Moisés falando expressamente
acerca dessas artes como tendo sido inventadas na família de
Caim, com o propósito de mostrar que ele não foi tão amaldiçoado
pelo Senhor que não existissem entre a sua posteridade alguns
dons excelentes; pois é provável que a inteligência de outros tam-
bém fosse produtiva; mas que haveria, entre os filhos de Adão, ho-
mens inteligentes e hábeis, que exercitariam sua diligência na inven-
ção e cultivo das artes. Moisés, contudo, celebra expressamente a
bênção restante de Deus sobre aquela descendência que, de outro
modo, teria sido considerada destituída e improdutiva de todo bem.
Saibamos, pois, que os filhos de Caim, ainda que privados do
Espírito de regeneração, foram dotados com dons de um tipo não
desprezível, exatamente como a experiência de todas as eras nos
ensina quão amplamente os raios da luz divina têm resplandecido
sobre as nações incrédulas para o benefício da presente vida; e ve-
mos, nos dias atuais, que os excelentes dons do Espírito são difun-
didos em toda a raça humana. Além disso, as artes e ciências libe-
rais vieram a nós a partir dos pagãos. De fato, somos compelidos a
reconhecer que temos recebido deles a astronomia e as demais par-
tes da filosofia, medicina e a ordem do governo civil. Nem se deve
pôr em dúvida que Deus os tem, assim, enriquecido generosamente
com excelentes dons para que sua impiedade tivesse menos escu-
sa. Mas, enquanto admiramos as riquezas do favor que ele lhes tem
outorgado, valorizemos muito mais supremamente aquela graça de
regeneração com que ele peculiarmente santifica para si seus elei-
tos.
Ora, embora a invenção da harpa e de instrumentos musicais
similares possa servir mais ao nosso deleite do que à nossa neces-
sidade, mesmo assim não se deve pensar que tais instrumentos se-
jam totalmente supérfluos; muito menos merecem em si mesmos
ser condenados. De fato, deve-se condenar o prazer, a menos que
ele seja combinado com o temor de Deus e com o comum benefício
da sociedade humana. Mas tal é a natureza da música, que ela
pode ser adaptada para fins religiosos e ser proveitosa aos homens,
se pelo menos fosse isenta das viciosas atrações e daquele fútil de-
leite pelo qual ela seduz os homens do seu melhor uso, e os ocupa
na vaidade. Entretanto, se não concedermos à invenção da harpa
nenhum louvor, sabe-se bem o quanto e quão amplamente ela es-
tende a utilidade da arte do carpinteiro. Finalmente, Moisés, em mi-
nha opinião, deseja ensinar que aquela descendência desenvolveu
várias e nobres habilidades, os quais tanto os tornam inescusáveis
quanto devem provar mais evidentes testemunhos da bondade divi-
na. O título “pai dos que habitam em tendas” é dado de modo justo
àquele que inventou essa utilidade, à qual mais tarde outros imita-
ram.

23. Ada e Zilá, ouvi-me. A intenção de Moisés é descrever a feroci-


dade de Lameque que, no entanto, era o quinto descendente do fra-
tricida Caim, a fim de ensinar-nos que, muito longe de se deixar ter-
rificar-se pelo exemplo de juízo divino que vira em seu ancestral, era
apenas o mais endurecido dentre eles. Tal é a obstinação dos ímpi-
os: enfurecem-se contra aqueles castigos divinos que deveriam ao
menos fazê-los mais brandos.
A obscuridade dessa passagem, que nos tem propiciado uma
variedade de interpretações, provém principalmente disto: que, en-
quanto Moisés fala abruptamente, os intérpretes não têm levado em
conta qual é a tendência de seu discurso. Os judeus, como costu-
mam fazer, têm inventado uma fábula frívola, a saber, que Lameque
era caçador e cego, e tinha um menino que lhe dirigia a mão; Caim,
estando escondido nos bosques, já mirava com seu arco, porquanto
o menino, tomando-o por um animal selvagem, volveu a mão de seu
senhor em sua direção; Lameque, então, vingou-se do menino que,
por sua imprudência, veio a ser a causa do homicídio. A ignorância
do verdadeiro acontecimento tem levado todos a supor o que bem
lhes apraz. Quanto a mim, porém, a opinião que parece verdadeira
e simples é a dos que convertem o pretérito em futuro e entendem
sua aplicação como sendo indefinida, como se Lameque se vanglo-
riasse por possuir força e suficiente violência para matar qualquer
um, mesmo que seja um inimigo mais forte.
Portanto, eu leio assim: “Matarei um homem por minha ferida, e
um jovem por minha contusão”; ou, “em minha contusão e ferida”.
Mas, como eu já disse, é preciso ter em vista a ocasião em que ele
teve este diálogo com suas esposas. Sabemos que os homens san-
guinários, por se constituírem um terror para outrem, são odiados
por todos em todas as partes. Portanto, não sem razão, as esposas
de Lameque ficando alarmadas por causa de seu esposo, cuja vio-
lência era intolerável a toda a raça humana, temiam que se formas-
se uma conspiração, e todos se unissem para esmagá-lo, como al-
guém merecedor de ódio e execração públicos. Ora, visto que a ha-
bilidade das esposas de tranquilizar pessoas às vezes costuma re-
frear homens cruéis e ferozes, Moisés, com o objetivo de mostrar a
desesperadora barbaridade de Lameque, declara que este vomita o
veneno de sua crueldade diante de suas esposas. A suma de tudo
isso é que ele se vangloria de possuir suficiente coragem e força
para derribar qualquer um que ousar atacá-lo.
A repetição que ocorre no uso das palavras “homem” e “moço”
segue a fraseologia hebraica, de modo que ninguém deve imaginar
que eles denotem pessoas diferentes; Lameque simplesmente am-
plia, na segunda parte da sentença, sua furiosa audácia, quando se
gloria de que os jovens, na flor de sua idade, não estaria em pé de
igualdade para contender com ele; como se quisesse dizer: “Que o
mais forte dê um passo à frente; pois não há sequer um a quem eu
não mato.”. Tão longe estava de tranquilizar suas esposas com a
esperança de que ele viveria uma vida mais civilizada, que se insur-
ge ameaçando matar indiscriminadamente, como uma besta furiosa
e selvagem. Disso se evidencia claramente que ele estava tão domi-
nado pela ferocidade, que não restava nele nenhum sentimento hu-
mano.
Os termos ferir e contundir podem ser lidos de várias maneiras.
Se a expressão for traduzida “por minha ferida e contusão”, então o
sentido será: “Confiantemente tomo sobre minha própria cabeça
qualquer perigo que porventura surja, e, o que acontecer, estarei
disposto a assumir o custo; pois tenho em mãos um meio de esca-
pe.”. Então, o que segue deve ser lido em conexão com isto: “Se
Caim devesse ser vingado sete vezes, realmente Lameque seria se-
tenta vezes sete.”. Se porventura alguém preferir o caso ablativo,
“de minha ferida e contusão”, ainda haverá uma dupla exposição. A
primeira é: “Ainda que eu seja ferido, mesmo assim eu mataria o ho-
mem; o que, pois, eu não faria, quando sou absoluto?”. A outra ex-
posição, que em minha opinião é a mais sólida e mais consistente,
é: “Se alguém provocar-me com injúria, ou tentar algum ato de vio-
lência, perceberá que ele estaria lidando com um homem forte e va-
lente; muito menos quem me injuriar escapará impunemente.”. Esse
exemplo mostra que os homens sempre vão de mal a pior. De fato,
a perversidade de Caim era terrível, mas a crueldade de Lameque
vai tão longe, a ponto de não poupar sangue humano. Além disso,
quando viu suas esposas acometidas de terror, em vez de tornar-se
dócil, simplesmente intensificou e confirmou ainda mais sua cruelda-
de. Assim, a brutalidade dos homens cruéis aumenta em proporção
ao ódio que eles enfrentam de outros; de modo que, em vez de se
arrependerem, se prontificam a sepultar um homicídio debaixo de
outros dez. Consequentemente, tendo uma vez se embebido de
sangue, derramam-no, e bebem-no sem qualquer restrição.

24. Sete vezes se tomará vingança de Caim. Minha intenção não


é relatar os desvarios ou sonhos de cada escritor, nem gostaria que
o leitor esperasse isso de mim; aqui e ali eu os evoco, ainda que de
modo tímido, especialmente se houver algum sinal de decepção,
para que os leitores, sendo frequentemente admoestados, possam
aprender a acautelar-se. Portanto, com respeito a essa passagem, a
qual tem sido torcida de várias maneiras, não registrarei o que um
ou outro tenha enunciado, mas me contentarei com uma exposição
verdadeira dessa passagem.
Deus queria que Caim fosse um horrível exemplo a advertir ou-
tros contra a prática do homicídio e, para esse fim, que ele fosse
marcado com um vergonhoso sinal. No entanto, para que ninguém
imitasse seu crime, ele declarou que, quem quer que o matasse,
fosse punido com uma sétupla severidade. Lameque, pervertendo
impiamente essa divina declaração, zomba de sua severidade; dis-
so, pois, ele toma maior liberdade para pecar, como se Deus outor-
gasse aos homicidas algum privilégio singular; não que ele pensas-
se seriamente assim, mas, sendo destituído de todo senso de pieda-
de, promete a si mesmo impunidade e, ao mesmo tempo, jocosa-
mente usa o nome de Deus por justificativa. Precisamente como fez
Dionísio, que se vangloriava de que os deuses favoreciam as pesso-
as sacrílegas, com o objetivo de eliminar a infâmia que ele havia
atraído sobre si mesmo. Além disso, como na Escritura o número
sete designa uma perfeição, sendo assim a expressão sete vezes é
empregada para designar uma ênfase muito maior. É esse o signifi-
cado da declaração de Cristo: “Não te digo que até sete vezes, mas
até setenta vezes sete” [Mt 18.22].

25. Tornou Adão a coabitar com sua mulher. Alguns inferem que
nossos primeiros pais foram privados inteiramente de sua descen-
dência quando um de seus filhos foi morto e o outro foi banido. Mas
é totalmente inacreditável que, quando a bênção divina, na propaga-
ção do gênero humano, estava em seu maior vigor, Adão e Eva fos-
sem infrutíferos ao longo de tantos anos. Mas, ao contrário, antes de
Abel ser morto, a contínua sucessão da descendência já tornara po-
pulosa a casa de Adão; pois, nele e em sua esposa, o efeito da de-
claração “Crescei e multiplicai-vos, e enchei a terra” deveria ser cla-
ramente notado. O que, pois, Moisés tem em vista? Na verdade,
que nossos primeiros pais, chocados de horror diante da ímpia ma-
tança, se abstiveram por algum tempo do leito conjugal. E de fato
não poderia ser diferente, pois eles, ao colherem esse fruto excessi-
vamente doloroso e amargo de sua apostasia de Deus, quase teri-
am desaparecido. A razão pela qual Moisés agora ignora os demais
descendentes é porque o seu propósito era traçar a geração dos
descendentes piedosos através da linhagem de Sete. Contudo, no
capítulo seguinte, onde ele dirá que “Adão gerou filhos e filhas”, in-
dubitavelmente inclui um grande número que havia nascido antes de
Sete, aos quais, porém, é dada pouca atenção, posto que viveram
separados daquela família que cultuava a Deus com pureza e que
realmente podia ser considerada a Igreja de Deus.
Porque, disse ela, Deus me concedeu outro descendente
em lugar de Abel. Eva tinha em vista algum descendente peculiar,
pois já dissemos que haviam nascido outros que também se difundi-
ram antes da morte de Abel; visto, porém, que a raça humana é pro-
pensa ao mal, quase toda sua família havia, de várias maneiras, se
corrompido; portanto, ela nutria a leve esperança de restar uma mul-
tidão até que Deus lhe propiciasse um novo descendente, do qual
ela pudesse esperar melhores coisas. Portanto, na pessoa de Abel,
ela se considerava despojada não de apenas um filho, mas de toda
sua descendência.

26. Daí se começou a invocar o nome do S . Há no verbo


“invocar” uma sinédoque, pois ele abarca, em termos gerais, todo o
culto divino. Aqui, porém, a religião é propriamente designada por
aquilo que forma sua parte principal. Pois Deus prefere esse serviço
de piedade e fé a todos os sacrifícios [Sl 50.14]. Sim, esse é o culto
espiritual de Deus que a fé produz. Isso é particularmente digno de
nota, porque Satanás nada inventa com maior esmero do que adul-
terar, com toda corrupção possível, a pura invocação a Deus, ou nos
afasta do Deus único e nos leva à invocação de criaturas. Inclusive
desde o princípio do mundo ele não cessou de agir dessa maneira,
para que os homens miseráveis em vão se esforçassem, prestando
um falso culto a Deus. Saibamos, porém, que toda e qualquer pom-
pa de adoração é destituída de valor, a menos que se mantenha
esse ponto principal do culto correto que se presta a Deus.
Embora a passagem seja mais simplesmente explicada no sen-
tido em que então o nome de Deus era outra vez celebrado, aprovo
o primeiro sentido por ser mais completo, por contém uma doutrina
útil, e também por concorda com a costumeira fraseologia bíblica.
Constitui uma tola ficção dizer que Deus então começou a ser cha-
mado por outros nomes, posto que aqui Moisés não censura as su-
perstições depravadas, porém enaltece a piedade de uma família
que adorava a Deus em pureza e santidade, quando a verdadeira
religião estava, entre outros povos, corrompida ou extinta. E não há
dúvida de que Adão e Eva, com uns poucos outros dentre seus fi-
lhos, vieram a ser verdadeiros adoradores de Deus; Moisés, porém,
tem em vista que tão grande era então o dilúvio de impiedade no
mundo, que a religião caminhava rapidamente rumo à destruição,
porque ela estava restrita a poucas pessoas e não se espalhava en-
tre os demais homens.
Podemos concluir prontamente que Sete era um íntegro e fiel
servo de Deus. E, após gerar um filho semelhante a si próprio, e
constituído uma família justa, a face da Igreja começou a manifes-
tar-se distintamente, e o culto divino foi estabelecido para que conti-
nuasse na posteridade. Essa restauração da religião foi efetuada
também em nosso tempo; não que ela fosse totalmente extinta, mas
certamente não havia um povo específico que invocasse a Deus;
também não havia profissão de fé sincera, nem era possível encon-
trar religião pura em lugar nenhum. Consequentemente, também
fica evidente quão grande é a tendência dos homens, seja ao orgu-
lhoso desprezo a Deus, seja à superstição, visto que ambos os ma-
les prevaleceram por toda parte, quando Moisés relata como um mi-
lagre que naquele tempo havia uma única família na qual o culto di-
vino floresceu.

1 Isto é, “verdade recebida no coração”.


2 Aqui, Calvino não utiliza a palavra “parricida” no seu sentido comum, mas a emprega
para denotar alguém que é homicida de qualquer parente próximo.
3 Como veremos, Agar “Apostatou” quando ela deixou a família de Abraão, que era o único
local onde se mantinha o verdadeiro culto divino.
4 Uma exposição mais detalhada feita por Calvino acerca da vida após a morte encontra-
se no seu livro Psicopaniquia. Essa obra foi publicada pelo Centro de Literatura Reformada
(Editora Clire), no primeiro volume de As Obras de João Calvino.
5 Ou seja, a figura de linguagem da prosopopeia.
C A P ÍT U L O 5

1. Este é o livro da genealogia de Adão. Neste capítulo, Moisés


recita sucintamente a duração de tempo entre a criação do mundo e
o dilúvio; e também toca ligeiramente em alguma porção da história
daquele período. E, embora não compreendamos o desígnio do Es-
pírito em deixar grandes e memoráveis eventos sem registro, nosso
dever é refletir sobre muitas coisas que são passadas em silêncio.
Reprovo inteiramente aquelas especulações que cada um inventa
para si partindo de suposições; nem darei aos leitores ocasião de se
deleitarem em tais coisas; contudo se pode, em algum grau, deduzir,
a partir de uma nítida e aparentemente árida narrativa, qual era o
estado daqueles tempos, como veremos em ocasião oportuna.
Segundo a frase hebraica, a expressão “o livro” significa um ca-
tálogo. “As gerações” significa uma sucessão contínua de uma des-
cendência, ou uma descendência contínua. Além disso, o propósito
desse catálogo era nos informar que na grande, ou, melhor dizendo,
na prodigiosa multidão de homens, sempre havia um número, ainda
que pequeno, que adorava a Deus; e que esse número foi maravi-
lhosamente preservado pela guarda celestial, para que o nome de
Deus não fosse inteiramente esquecido e a semente da Igreja não
morresse.
No dia em que Deus criou. Ele não restringe essas “gerações”
ao dia da criação, mas simplesmente aponta para seus primórdios;
e, ao mesmo tempo, ele distingue entre nossos primeiros pais e o
resto do gênero humano, porque Deus os trouxe à vida por um mé-
todo singular, enquanto os demais vieram de ancestrais e nasceram
de pais. Além disso, Moisés mais uma vez reitera o que afirmara an-
teriormente: que Adão fora formado conforme a imagem de Deus
porque a excelência e dignidade desse favor não seriam, de outro
modo, suficientemente celebradas. Já era uma grande coisa que se
desse ao homem um lugar primordial entre as criaturas; mas é uma
nobreza muito mais exaltada que ele portasse semelhança com seu
Criador, assim como um filho com seu pai. De fato, não era possível
que Deus agisse mais generosamente para com o homem, senão
lhe imprimindo sua própria glória, fazendo-o, por assim dizer, uma
imagem viva da sabedoria e justiça divinas. Isso também é suficien-
te para refutar as calúnias dos perversos que, voluntariamente,
transferem o opróbrio de sua perversidade para seu Criador, afir-
mando não ter sido expressamente declarado que, por natureza, o
homem foi formado um ser diferente daquele que então veio a ser
pela culpa de sua própria fraqueza vinda Deus.

2. Homem e mulher os criou. Essa sentença enaltece o sacro laço


do matrimônio e a inseparável união do esposo com sua esposa.
Pois, quando Moisés menciona apenas um, logo depois inclui am-
bos sob um só nome. E designa indiscriminadamente um nome co-
mum a ambos, a fim de que a posteridade aprendesse a fomentar
de modo mais sacro essa conexão entre um e outro, quando vissem
que seus primeiros pais foram denominados como uma só pessoa.
A trivial inferência de escritores hebreus, de que somente as pesso-
as casadas são chamadas Adão (ou homem), é refutada pela histó-
ria da criação; o Espírito Santo, aqui, também não quis dizer senão
que o esposo e a esposa eram como um só homem, conforme o
propósito do matrimônio. Além disso, Moisés registra a bênção pro-
nunciada sobre eles, para que observassem nela a maravilhosa
bondade de Deus em continuar a concedê-la; contudo saibamos
que, pela depravação e perversidade dos homens, em algum grau
ela foi interrompida.

3. E gerou um filho conforme à sua imagem. Como já dissemos,


Moisés traça a geração de Adão somente a partir da linhagem de
Sete, para propor, segundo nossa opinião, a sucessão da Igreja. Ao
dizer que Sete gerou um filho conforme sua própria imagem, a refe-
rência é, em parte, à primeira origem de nossa natureza; ao mesmo
tempo deve-se notar sua corrupção e poluição, as quais, sendo con-
traídas por Adão, por sua queda, mergulhou toda sua posteridade.
Se permanecesse íntegro, teria transmitido a todos os seus filhos o
que havia recebido; agora, porém, lemos que Sete, bem como os
demais, foram maculados, porque Adão, que decaíra de seu estado
original, a ninguém podia gerar senão seres semelhantes a ele pró-
prio. Caso alguém objete que Sete, com sua família, foram eleitos
pela graça especial de Deus, a resposta é fácil e óbvia, a saber, que
um remédio sobrenatural não impediu a geração carnal de participar
da corrupção do pecado. Portanto, segundo a carne, Sete nasceu
pecador; porém, mais tarde, foi renovado pela graça do Espírito.
Esse doloroso exemplo do santo patriarca nos dá ampla oportunida-
de de lamentar nossa própria miséria.

4. Depois que gerou a Sete, viveu Adão. Do número de anos aqui


registrado, devemos especialmente considerar o longo período que
os patriarcas viviam. Pois, ao longo de seis eras sucessivas, quando
a família de Sete cresceu e se tornou um grande povo, a voz de
Adão podia ressoar diariamente para renovar a memória da criação,
da queda e do castigo sobre o homem, para testificar da esperança
da salvação que restou após o castigo e para recitar os juízos divi-
nos pelos quais todos pudessem ser instruídos. Após sua morte,
seus filhos de fato podiam ministrar o que haviam aprendido a seus
descendentes, de geração em geração; muito mais eficaz, porém,
seria a instrução ministrada pela boca daquele que fora pessoal-
mente uma testemunha ocular de todas essas coisas. Mas, tão pro-
digiosa, e inclusive monstruosa, era a obstinação geral, que nem
mesmo a parte mais íntegra da raça humana podia ser retida na
obediência e no temor de Deus.

5. E morreu. Essa cláusula, que registra a morte de cada patriarca,


não é de modo algum supérflua. Pois nos adverte que a morte anun-
ciada contra os homens não foi em vão, e que agora vivemos ex-
postos à maldição à qual o homem foi condenado, a menos que ob-
tenhamos livramento em outra fonte. Entretanto, devemos refletir so-
bre nossa lamentável condição, a saber, que a imagem de Deus,
sendo destruída, ou, ao menos, prejudicada em nós, dificilmente re-
temos a vaga sombra de uma vida, da qual seguimos apressada-
mente para a morte. E é útil, em um quadro de tantas eras, contem-
plar, num relance, o contínuo curso e repetição da vingança divina
porque, de outra maneira, imaginamos que Deus, de algum modo, já
esqueceu; e a nada somos mais inclinados do que sonhar com a
imortalidade na terra, a menos que a morte seja frequentemente
posta diante de nossos olhos.

22. Andou Enoque com Deus. Indubitavelmente, Enoque é honra-


do com peculiar louvor entre os homens de sua própria geração,
quando lemos que ele andava com Deus. Entretanto, tanto Sete
quanto Enoque, Cainã, Maalaleel e Jerede eram então vivos, cuja
piedade foi celebrada na primeira parte deste capítulo.1 Como aque-
la época não podia ser rude, ou bárbara, a qual era possuidora de
mestres muito mais excelentes, inferimos que a probidade desse
santo homem, a quem o Espírito Santo isentou da ordem comum,
era rara e quase singular.
Contudo, aqui se realça um método de guardar-se de ser leva-
do pelos perversos costumes daqueles com quem convivemos. Pois
costume público é como uma violenta tempestade – seja porque fa-
cilmente nos deixamos arremessar de um lado para o outro pela
multidão, ou porque cada um pensa que o que comumente se rece-
be deve ser certo e lícito, do mesmo modo como os porcos que con-
traem coceira uns dos outros; nem há contágio pior e mais incômo-
do do que os maus exemplos. Daqui devemos ainda mais diligente-
mente notar a sucinta descrição de uma vida santa contida nas pala-
vras: “Enoque andava com Deus.”. Aqueles, pois, que quiserem,
que se gloriem em viver segundo o costume de outros; contudo, o
Espírito de Deus já estabeleceu uma regra do bom e justo viver,
pela qual nos afastamos dos exemplos dos homens que não mol-
dam sua vida e modos segundo a lei de Deus. Pois aquele que des-
prezando a palavra de Deus se rende à imitação do mundo, deve
ser considerado como que vivendo para o diabo. Além disso (como
acabei de sugerir), todos os demais patriarcas não são privados do
louvor da justiça; mas um notável exemplo é posto diante dos nos-
sos olhos na pessoa de um homem que permaneceu firme no tempo
da mais terrível devassidão, para que, se quisermos viver justa e or-
denadamente, aprendamos a considerar a Deus mais que aos ho-
mens. Pois a linguagem que Moisés usa é do mesmo teor como se
quisesse dizer que Enoque, para que não se deixasse arrastar pelas
corrupções dos homens, considerasse unicamente a Deus, de modo
que, com uma consciência pura, como que sob seus olhares, pudes-
se cultivar a retidão.

24. E já não era, porque Deus o tomou para si. Seria descarada-
mente contencioso não reconhecer que algo extraordinário é aqui
salientado. De fato, todos são arrebatados do mundo pela morte;
Moisés, porém, declara nitidamente que Enoque foi tirado do mundo
de um modo inusitado e foi recebido pelo Senhor de uma maneira
miraculosa. Pois, para os hebreus, (lakah) significa “levar alguém
para si” ou, simplesmente, “levar”. Mas, sem insistir na palavra, é
suficiente compreender a coisa propriamente dita, a saber, que Eno-
que, na metade do período da vida, de repente e de um modo sem
precedentes, desapareceu da vista dos homens porque o Senhor “o
tomou para si”, como lemos que foi feito também com Elias. Assim,
na trasladação de Enoque, um exemplo de imortalidade foi exposto;
não há dúvida de que Deus tanto quis fortalecer a mente de seus
santos com certa medida de fé, antes de sua morte, como minimi-
zar, por essa consolação, o medo que poderiam nutrir da morte,
uma vez que bem sabem que uma vida superior foi-lhes estabeleci-
da em outro lugar.
Entretanto, é notável que o próprio Adão se viu privado desse
pilar da fé e do conforto. Porque, posto que o terrível juízo de Deus,
“certamente morrerás”, soava constantemente em seus ouvidos, ele
mesmo necessitava grandemente de algum conforto para que, dian-
te da morte, tivesse algo mais sobre o que refletir além da maldição
e destruição. Mas só foi depois de uns 150 anos após sua morte
que se deu a trasladação de Enoque, a qual teria sido como uma re-
presentação visível de uma bendita ressurreição; por isso, se Adão
foi iluminado, pode ter se cingido com moderação para sua própria
partida. Contudo, posto que o Senhor, ao infligir punição, teria mo-
derado seu rigor, e posto que o próprio Adão ouvira de seus próprios
lábios o que era suficiente para propiciar-lhe não leve alívio, e con-
tente com esse gênero de remédio, tornou-se seu dever suportar
pacientemente tanto a cruz contínua neste mundo quanto também o
amargo e doloroso término de sua vida. Mas, enquanto outros não
foram instruídos da mesma maneira, isto é, por um oráculo manifes-
to sobre a esperança da vitória sobre a serpente, na trasladação de
Enoque havia uma instrução para todos os santos de que não man-
teriam sua esperança confinada dentro das fronteiras desta vida
mortal. Pois, ao conectá-la imediatamente com sua vida piedosa e
íntegra, Moisés mostra que essa trasladação era uma prova do
amor divino para com Enoque. Contudo, a privação da vida não é
em si mesma desejável. Segue-se, pois, que ele foi levado para
uma morada superior, e que, embora fosse um peregrino no mundo,
foi recebido em um país celestial; como o apóstolo, na Epístola aos
Hebreus [11.5], claramente ensina. Além disso, caso se pergunte
por que Enoque foi trasladado e qual é sua atual condição, minha
resposta é que sua transição constituía um privilégio peculiar, tal
como teria sido o dos demais homens, se permanecessem em seu
primeiro estado. Pois, embora lhe fosse necessário despir-se do que
era corruptível, ele foi isentado daquela violenta separação da qual
a natureza evita.
Em suma, sua trasladação foi uma tranquila e jubilosa partida
deste mundo. Contudo, ele não foi recebido na glória celestial, mas
apenas se livrou das misérias da presente vida, até que Cristo, as
primícias dos que hão de ressuscitar, venha. E, posto que Enoque
era um dentre os membros da Igreja, era necessário que espere até
que todos saiam juntos ao encontro de Cristo, para que todo o corpo
se una à sua Cabeça. Quem quer que apresente uma objeção ao
dito do apóstolo “aos homens está ordenado morrerem uma só vez”
[Hb 9.27], a solução é fácil, a saber, que a morte nem sempre é se-
paração da alma e o corpo, mas somos informados que morre,
quem se despe de sua natureza corruptível; e tal será a morte dos
que sobreviverem no último dia.

29. Pôs-lhe o nome de Noé, dizendo: Este nos consolará de


nossos trabalhos. No idioma hebraico, a etimologia do verbo
(nacham) não corresponde ao substantivo (noach), a menos que
tenhamos por supérflua a letra (mem), como às vezes, em compo-
sição, certas letras são redundantes. A palavra (noach) significa
dar descanso; (nacham), porém, confortar. O nome Noé deriva-se
do primeiro verbo. Portanto, há ou a transmutação de uma letra para
outra, ou apenas uma alusão, quando Lameque diz: “Este nos con-
solará de nossos trabalhos”. Mas, quanto ao ponto em questão, não
há dúvida de que ele promete a si próprio um alívio, ou consolo, de
seus trabalhos.
Porém, pergunta-se: de onde ele concebera tal esperança de
um filho cuja disposição nem ainda podia ser discernida? Os judeus
não julgam erroneamente quando afirmam que a expressão de La-
meque era uma profecia; mas estão demasiadamente equivocados
quando restringem à agricultura o que se aplica a todas aquelas mi-
sérias da vida humana que procedem da maldição de Deus e são
frutos do pecado. De fato, eu chego à seguinte conclusão: que os
santos pais suspiravam ansiosamente quando, vivendo cercados de
tantos males, recordavam constantemente da primeira origem de to-
dos os males e se consideravam como que sob o desprazer de
Deus. Portanto, na expressão “o trabalho de nossas mãos” há a fi-
gura chamada sinédoque; porque sob um tipo de trabalho ele com-
preende todo o miserável estado em que caiu o gênero humano.
Pois, indubitavelmente, se lembravam do que Moisés havia relatado
antes sobre a vida laboriosa, dolorosa e ansiosa, à qual Adão fora
destinado; e, posto que a perversidade do homem crescia diaria-
mente, não se podia esperar nenhum alívio da penalidade, a menos
que o Senhor trouxesse inesperado socorro. É bem provável que
eles vivessem com profunda ansiedade, olhando para a mercê de
Deus; pois sua fé era forte e a necessidade lhes impunha ardente
desejo de socorro. Mas que o nome não foi dado displicentemente a
Noé, podemos inferir do fato que Moisés nota expressamente como
sendo algo digno de ser lembrado.
Por certo que algum significado estava subentendido sob os no-
mes dos demais patriarcas; contudo, Moisés ignora a razão pela
qual foram assim chamados, e simplesmente insiste sobre o nome
de Noé. Portanto, não se deve permitir ao leitor contencioso que
pronuncie a partir disso um julgamento, ou seja, que havia em Noé
algo peculiar que não se encontrou em outros antes dele. Eu, pois,
não tenho dúvida de que Lameque esperava por algo raro e inusita-
do de seu filho; e isso também pela inspiração do Espírito. Alguns
supõem que ele se enganara, conquanto cria que Noé fosse o Cris-
to; porém não apresentam nenhuma hipótese racional em apoio
dessa opinião. É mais provável que, visto que algo grande era pro-
metido concernente ao seu filho, ele não hesitou em misturar sua
própria imaginação com o oráculo divino, como homens santos cos-
tumam às vezes exceder a medida da revelação e, assim, não abra-
çam nem uma coisa nem outra.

32. Era Noé da idade de quinhentos anos. Quanto aos pais a


quem Moisés até aqui enumerou, é difícil saber se cada um deles
era ou não o primogênito de sua família, pois apenas se desejava
descrever a sucessão contínua da Igreja. Deus, porém, para impedir
que os homens se ensoberbecessem por vã confiança na carne, fre-
quentemente escolhe para si os que são posteriores na ordem da
natureza. Portanto, não tenho certeza se Moisés registrou o catálo-
go daqueles a quem Deus preferiu a outros, ou dos que, por direito
de primogenitura, mantinham a principal posição entre seus irmãos.
Também não tenho certeza quantos filhos cada um deles tinha. Com
respeito a Noé, transparece claramente que ele não teve mais de
três filhos; e Moisés declara isso intencionalmente com mais fre-
quência, para que soubéssemos que toda sua família foi preserva-
da.
Em minha opinião, porém, erra quem pensa que aqui se procla-
ma a castidade de Noé, porque ele viveu uma vida singular por qua-
se cinco séculos. Pois não se diz que ele fosse solteiro até àquela
época; nem mesmo em que ano de sua vida começou a ser pai.
Mas, ao mencionar simplesmente o tempo em que ele foi advertido
do futuro dilúvio, Moisés também acresce que, ao mesmo tempo, ou
perto disso, ele era pai de três filhos; não que ele já os tivesse, mas
porque nasceram não muito depois disso. Que, aliás, ele sobreviveu
aos seus 500 anos antes que Sem nascesse, se fará evidente no
capítulo 11; com relação aos outros dois, nada se sabe com certeza,
exceto que Jafé era o mais moço. É surpreendente que, desde o
tempo em que ele recebera a terrível mensagem acerca da destrui-
ção da raça humana, não fora impedido, pela profundidade de sua
tristeza, de manter relação sexual com sua esposa; mas era neces-
sário que algum remanescente sobrevivesse, porque essa família
estava destinada à restauração do segundo mundo. Apesar de não
termos o registro de quando seus filhos se casaram, contudo creio
que isso se deu muito antes do dilúvio; mas, pela providência de
Deus, foram infrutíferos, o qual determinara preservar somente oito
almas.

1 Essa declaração de Calvino provavelmente refere-se aos versículos 6 a 21 deste capítu-


lo. A referida piedade desses homens decorre do fato de eles pertencerem à descendência
piedosa de Sete.
C A P ÍT U L O 6

1. Como se foram multiplicando os homens na terra. Tendo Moi-


sés enumerado, em ordem, dez patriarcas, com quem o culto divino
permaneceu puro, ele agora relata que suas respectivas famílias fo-
ram também corrompidas. Mas essa narrativa deve remontar a um
período anterior aos 500 anos de Noé. Pois, com o objetivo de fazer
uma transição para a história do dilúvio, Moisés a introduz declaran-
do que o mundo inteiro se corrompera de tal modo que, diante da
ampla e difusa apostasia, dificilmente restou algum temor de Deus.
Para que isso fosse mais evidente, deve-se ter em mente o
princípio de que o mundo, então, estava como se estivesse dividido
em duas partes, porque a família de Sete cultivava o puro e legítimo
culto divino, do qual os demais haviam apostatado. Ora, embora
todo o gênero humano fora formado para o culto divino, e, portanto,
a religião sincera deveria reinar por toda parte, contudo, visto que a
maioria se prostituíra, ou menosprezando inteiramente a Deus, ou
abraçando as superstições depravadas, era conveniente que a pe-
quena parte que Deus adotara para si por especial privilégio, perma-
necesse separada dos demais. Portanto, constituía uma vil ingrati-
dão na posteridade de Sete misturar-se com os filhos de Caim e
com outras descendências profanas, porque voluntariamente se pri-
varam da inestimável graça de Deus. Pois era uma intolerável profa-
nação perverter e confundir a ordem designada por Deus.
À primeira vista parece frívolo que os filhos de Deus fossem tão
severamente condenados por haverem escolhido para si lindas es-
posas dentre as filhas dos homens. Mas, primeiramente, devemos
saber que não é um crime sem importância violar a distinção esta-
belecida pelo Senhor; em segundo lugar, que os adoradores de
Deus vivessem separados das nações profanas era um compromis-
so que deveriam observar com toda reverência, a fim de que pudes-
se existir sobre a terra uma Igreja de Deus; em terceiro lugar, que a
doença era desesperadora, visto que os homens rejeitaram o remé-
dio que lhes fora divinamente prescrito. Em suma, Moisés descreve
isto como sendo a mais extrema desordem: quando os filhos dos pi-
edosos, a quem Deus separa para si dentre os demais como um te-
souro peculiar e oculto, se degeneraram.

2. Vendo os filhos de Deus. Aquela antiga ficção, concernente à


relação sexual de anjos com mulheres, é completamente refutada
por sua própria absurdidade; e surpreende o fato que outrora ho-
mens eruditos foram fascinados por desvarios tão grosseiros e ab-
surdos. É igualmente frívola a opinião parafraseada dos caldeus, a
saber, que se condenaram os casamentos promíscuos entre os fi-
lhos de nobres e as filhas de plebeus. Moisés, pois, não distingue os
filhos de Deus das filhas dos homens porque fossem de natureza ou
origem diferentes, e sim porque eles eram filhos de Deus por ado-
ção, aos quais ele separara para si, enquanto os demais permane-
ceram em sua condição de pecado.
Se alguém objetasse dizendo que, os que vergonhosamente se
separaram da fé e da obediência que Deus requeria, eram indignos
de ser contados no número dos filhos de Deus, a resposta é fácil, a
saber, que não é a eles que se atribui honra, e sim à graça de Deus
que até então fora evidente em suas famílias. Pois quando a Escri-
tura fala dos filhos de Deus, algumas vezes ela está se referindo à
eleição eterna, que se estende somente aos herdeiros legítimos; al-
gumas vezes à vocação externa, segundo a qual os lobos são inse-
ridos no redil; e, ainda que, na verdade, sejam estranhos, contudo
granjeiam o título de filhos até que o Senhor os repudie. Sim, mes-
mo lhes dando um título tão honroso, Moisés reprova sua ingratidão,
porque, abandonando ao seu Pai celestial, se prostituíram como
apóstatas.
Tomaram para si mulheres, as que, entre todas, mais lhes
agradavam. Moisés não condena a atitude de se considerar a bele-
za ao se escolher uma esposa, e sim que um mero desejo de luxúria
predomine, visto que o matrimônio é algo extremamente sagrado
para se permitir que os homens sejam induzidos a ele por causa da
concupiscência dos olhos. Pois essa união é inseparável, com-
preendendo todas as partes da vida; como vimos, a mulher foi cria-
da para ser auxiliadora do homem. Portanto, nosso apetite se torna
irracional quando nos sentimos tão arrebatados pelos encantos da
beleza, que aquelas coisas que são primordiais já não são levadas
em conta.
Moisés descreve mais claramente a violenta impetuosidade da
luxúria deles, ao dizer que “tomaram para si mulheres, as que, entre
todas, mais lhes agradaram”; a partir disso ele tem em vista que os
filhos de Deus não faziam suas escolhas com base nos dotes ne-
cessários que elas porventura possuíssem, mas andavam sem dis-
cernimento, avançando afoitamente de acordo com a sua luxúria.
Entretanto, com essas palavras, somos instruídos que se deve usar
de temperança na relação sexual, e que, diante de Deus, sua profa-
nação não constitui um crime menos grave. Pois o que aqui se con-
dena nos filhos dos santos não é a fornicação, e sim a excessiva e
licenciosa satisfação na escolha de esposas. E, de fato, é impossí-
vel que, com o passar do tempo, os filhos de Deus não se degene-
rem, quando se submetem ao mesmo jugo dos incrédulos. E essa
foi a última tentativa de Balaão que, quando lhe foi tirado o poder de
amaldiçoar, então ordenou que os midianitas enviassem mulheres
secretamente, para seduzirem o povo de Deus a uma ímpia aposta-
sia. Assim, como nos filhos dos patriarcas de quem Moisés agora
trata, o esquecimento daquela graça que lhes fora divinamente co-
municada era em si mesmo um grave mal, visto que instituíram ca-
samentos ilícitos segundo sua própria concupiscência; fez-se uma
adição ainda pior, quando, ao se misturarem com os perversos, pro-
fanaram o culto divino e apostataram da fé, uma corrupção que qua-
se sempre costuma seguir a anterior.

3. Meu Espírito não agirá para sempre no homem. Embora Moi-


sés mostrasse anteriormente que o mundo tinha chegado a um nível
tal de perversidade e impiedade que já não era possível ser suporta-
do, contudo, a fim de provar, de forma mais indubitável, que a vin-
gança à qual o mundo inteiro foi submetido não era menos justo que
severa, ele apresenta Deus mesmo como o narrador do discurso.
Pois há maior peso na declaração quando pronunciada pela própria
boca de Deus: de que a perversidade dos homens era deplorável
demais para que restasse qualquer aparente esperança de solução,
e que, portanto, não havia razão para que os poupasse. Além disso,
visto que esse seria um terrível exemplo da ira divina, a qual só de
pensarmos em enfrentar já trememos, era necessário declarar que
Deus não se precipitou por impulso dado pelo calor de sua ira, nem
fora mais severo do que justo, mas se viu quase obrigado pela ne-
cessidade a destruir completamente o mundo inteiro, com a exceção
de apenas uma família. Pois os homens comumente não hesitam
em acusar a Deus de pressa excessiva; mais, inclusive o conside-
ram cruel por tomar vingança dos pecados dos homens. Portanto,
para que ninguém murmurasse, Moisés, na pessoa de Deus, aqui
declara que a depravação do mundo se tornou intolerável e obstina-
damente incurável por qualquer remédio.
Essa passagem, contudo, é explicada de maneira variada. Em
primeiro lugar, alguns dentre os hebreus derivam a palavra que Moi-
sés aqui usa do radical (nadan), que significa uma bainha, e de-
duzem o seu significado do fato de Deus se sentir indisposto a dei-
xar seu Espírito por mais tempo mantido cativo em um corpo huma-
no, como que encerrado à semelhança de uma espada na bainha.
Porém, por ser essa exposição distorcida e manifestar o delírio dos
Maniqueus, como se a alma do homem fosse uma porção do Espíri-
to divino, então a rejeitamos. Mesmo entre os judeus, a opinião co-
mumente aceita é que a palavra em questão provém do radical
(doon). Visto, porém, que frequentemente ela significa julgar e, algu-
mas vezes, litigar, disso também surge diferentes interpretações.
Pois, alguns explicam essa passagem no sentido de que não aprou-
vera mais a Deus governar os homens por seu Espírito, pois o Espí-
rito de Deus exerce em nosso íntimo a função de juiz, quando de tal
modo nos ilumina com a razão para que persigamos o que é certo.
Lutero, geralmente, aplica o termo à jurisdição externa que
Deus exerce pelo ministério dos profetas, como se algum dentre os
patriarcas dissesse numa assembleia: “É preciso que cessemos de
gritar; porquanto é inconveniente que o Espírito de Deus, que fala
por nosso intermédio, continue se cansando em reprovar o mundo.”.
De fato isso é expresso de modo engenhoso; porém, posto que não
devemos buscar o sentido da Escritura em suposições incertas, in-
terpreto as palavras simplesmente no sentido em que o Senhor,
como se estivesse cansado com a obstinada perversidade do mun-
do, declara que a vingança jaz à porta, a qual até então ele adiara.
Pois enquanto o Senhor mantém o castigo, ele, em certo sentido,
luta com os homens, especialmente se, ou por meio de ameaças, ou
pelos exemplos de castigo generoso, ele os convida ao arrependi-
mento. Dessa maneira, ele já havia lutado, há alguns séculos, com o
mundo, o qual se tornara permanentemente pior. E agora, como se
estivesse cansado, ele declara que já não tinha intenção de continu-
ar a contender. Pois por muito tempo Deus lutou com eles, chaman-
do-os ao arrependimento; o dilúvio pôs fim à controvérsia.
Entretanto, não rejeito inteiramente a opinião de Lutero, de que
Deus, contemplando a deplorável maldade dos homens, não permi-
tiria que seus profetas gastassem em vão seu tempo. Mas a decla-
ração geral não deve restringir-se àquele caso particular. Quando o
Senhor diz: “não agirá para sempre”, ele pronuncia sua censura
contra uma excessiva e incurável obstinação e, ao mesmo tempo,
dá prova da divina longanimidade; é como se ele quisesse dizer:
nunca haverá fim para a contenda, a menos que algum ato sem pre-
cedente de vingança impeça a ocasião.
Os intérpretes gregos, ludibriados pela similitude de uma letra
com outra, têm lido impropriamente a expressão como “não perma-
necerá”; o que tem sido explicado como se os homens fossem então
privados de um são e correto juízo; mas isso nada tem a ver com a
presente passagem.
Pois este é carnal. Acrescenta-se a razão por que não há van-
tagem em se esperar algo mais dessa contenda entre Espírito e ho-
mem. Aqui, o Senhor parece pôr seu Espírito em oposição à nature-
za carnal dos homens. Sob esse mesmo princípio, Paulo declara
que “o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, por-
que lhe são loucura” [1Co 2.14]. O significado da passagem, pois, é
que é debalde que o Espírito de Deus continue a disputar com a car-
ne, a qual é incapaz de raciocinar. Deus dá aos homens o nome de
carne como uma marca de ignomínia, aos quais, contudo, ele for-
mou à sua própria imagem. E esse é um modo de expressão famili-
ar que a Escritura usa.
Estão grandemente enganados os que restringem essa desig-
nação à parte inferior da alma. Porque, posto que a alma humana
está contaminada em todas as suas partes, e a razão humana não é
menos cega do que são seus perversos afetos, o todo é com propri-
edade chamado carnal. Portanto, saibamos que o homem por inteiro
é naturalmente carne, até que, pela graça da regeneração, ele co-
mece a ser espiritual. Ora, quanto às palavras de Moisés, não há
dúvida de que elas contêm uma grave queixa, juntamente com uma
reprovação por parte de Deus. O homem deveria ter suplantado a
todas as demais criaturas, em razão da mente com que fora dotado;
agora, porém, alienado da razão correta, quase se assemelha ao
gado do campo. Portanto, Deus censura a natureza humana dege-
nerada e corrupta porque, por sua própria falta, atingira aquele grau
de estupidez, de modo que agora todos os homens estão mais pró-
ximos dos animais do que de um verdadeiro homem, tal como deve-
riam ser, em consequência de sua criação. Entretanto, ele afirma
que esta é uma falha acidental: que o homem se inclina somente
para a terra, e que, sendo extinta a luz da inteligência, ele segue
seus próprios desejos.
Admira-me que a ênfase contida na partícula (beshagam)
tenha sido ignorada pelos comentaristas; pois as palavras significam
“por esta razão, porque ele também é carne”. Ao usar essa lingua-
gem, Deus se queixa que a ordem natural designada por ele foi tão
grandemente perturbada, que sua própria imagem se transformou
em carne.
E os seus dias serão cento e vinte anos. Certos escritores
antigos, tais como Lactâncio, têm errado tão grosseiramente, a pon-
to de pensarem que o término da vida humana foi limitado dentro
desse espaço de tempo; contudo, como é evidente, a linguagem uti-
lizada aqui se reporta não à vida privada de alguém, mas que se
concederia ao mundo inteiro um tempo de arrependimento. Além do
mais, aqui se faz evidente também a admirável benignidade de
Deus, em que ele, ainda quando cansado da maldade dos homens,
prorroga por mais de um século a execução da vingança final.
Aqui, porém, surge uma aparente discrepância. Pois Noé partiu
desta vida quando completara 950 anos. Entretanto, lemos que ele
viveu, a partir do tempo do dilúvio, 350 anos. Portanto, no dia em
que ele entrou na arca, sua idade era de 600 anos. Então, onde
acharemos os restantes 20 anos?1 Os judeus respondem que esses
anos foram eliminados em consequência da crescente perversidade
dos homens. Mas não há necessidade para tal subterfúgio. Quando
a Escritura fala dos 500 anos de sua idade, ela não afirma que ele
realmente atingiu aquele ponto. E esse modo de falar, que leva em
conta o princípio de um período, bem como de seu término, é muito
comum. Portanto, conquanto a maior parte do quinto século de sua
vida passasse, de modo que ele tinha quase 500 anos de idade, le-
mos que ele tinha aquela idade.

4. Naquele tempo havia gigantes na terra. Entre os inúmeros tipos


de corrupções com que a terra se encheu, Moisés aqui registra es-
pecialmente um, a saber, que os gigantes praticavam grande violên-
cia e tirania. Entretanto, eu não suponho que ele falasse de todos os
homens dessa era, mas de certos indivíduos que, sendo mais fortes
que os demais e confiando em sua própria força e poder, se exalta-
vam indevidamente e sem limites. No que diz respeito ao substanti-
vo hebraico (nephilim), sua origem é conhecida como sendo de-
rivada do verbo (naphal), que significa cair; mas os gramáticos
não são unânimes sobre sua etimologia. Alguns pensam que foram
assim chamados porque excediam à estatura comum dos homens;
outros, porque o semblante dos homens mudava à vista deles, em
razão do enorme tamanho de seu corpo, ou porque todos caíam
prostrados, movidos de terror diante da sua grandeza.
Quanto a mim, parece haver muita verdade na opinião dos que
dizem que o sentido aqui pretendido é semelhante ao resultado de-
corrente de uma torrente ou de uma tempestade impetuosa; pois, do
mesmo modo que uma tormenta e torrente, caindo violentamente,
causam erosão e destroem os campos, assim tais homens, como la-
drões, trouxeram destruição e desolação ao mundo. De fato, Moisés
não diz que eram de estatura extraordinária, mas simplesmente que
eram fortes. Reconheço que, em outro lugar, a mesma palavra de-
nota uma estatura imensa, a qual era formidável aos olhos que ex-
ploraram a terra de Canaã [Js 13.34]. Moisés, porém, não distingue
esses gigantes dos demais homens, nem pelo tamanho de seu cor-
po, nem por sua desonestidade e ambição por domínio.
No contexto, é enfática a partícula (vegam), que é interposta.
Jerônimo, após quem certos intérpretes erraram, traduziu essa pas-
sagem da pior maneira possível. Pois ela é, literalmente, traduzida
por “E mesmo depois que os filhos de Deus se interessaram pelas
filhas dos homens”, como se quisesse dizer: “Além do mais” ou “E
nesse tempo”. Pois, em primeiro lugar, Moisés relata que havia gi-
gantes; acrescenta que havia também outros dentre aquela descen-
dência promíscua, que foram gerados quando os filhos de Deus se
misturaram com as filhas dos homens. Não teria sido surpreendente
se tal ultraje prevalecesse na posteridade de Caim; mas a corrupção
universal é mais claramente evidente nisto: que a santa semente
fosse contaminada pela mesma corrupção. Não é um simples agra-
vamento do mal, o fato de que um contágio tão imenso fosse difun-
dido pelas poucas famílias que deveriam ter constituído o santuário
de Deus. Os gigantes, pois, tiveram uma origem pregressa; mais
tarde, porém, aqueles que nasceram de casamentos promíscuos
imitaram seu exemplo.
Estes foram valentes, varões de renome, na antiguidade. A
palavra “era” comumente é entendida no sentido de antiguidade,
como se Moisés quisesse dizer que, quem primeiro exerceu a tirania
ou poder no mundo, associado a uma excessiva licenciosidade, bem
como a um desenfreado desejo de domínio, teve seu ponto de parti-
da nessa descendência. Entretanto, há os que explicam a expres-
são “desde a era” neste sentido: “na presença do mundo”, pois a pa-
lavra hebraica (olam) traz também essa significação. Alguns pen-
sam que isso foi expresso proverbialmente, porque a era imediata-
mente posterior ao dilúvio não produziu ninguém semelhante a eles.
A primeira exposição é a mais simples; no entanto, a suma de tudo
é que foram tiranos ferozes, que se distinguiram dos homens co-
muns. Sua primeira mácula foi o orgulho; porque, confiando em sua
própria força, arrogaram para si mais do que deviam. O orgulho pro-
duziu desprezo por Deus porque, sendo inflamados pela arrogância,
não se submetiam a nenhuma autoridade. Ao mesmo tempo, mos-
traram-se também desdenhosos e cruéis para com os homens, por-
que não é possível que eles, que não se deixaram render em obedi-
ência a Deus, agissem com moderação para com os homens.
Moisés acrescenta que foram “varões de renome”, indicando
assim que se vangloriavam de sua perversidade, e vieram a ser,
como podem ser chamados, ladrões honrosos. Nem se deve duvi-
dar que algumas vezes fossem mais excelentes do que as pessoas
comuns, que buscam para si favor e glória no mundo. Apesar disso,
sob o magnificente título de valentes, exerciam cruelmente domínio
e conquistaram para si poder e fama, injuriando e oprimindo seus ir-
mãos. Esses foram os primeiros poderosos do mundo! Para que nin-
guém se deleite exacerbadamente em uma longa e sombria linha-
gem de ancestrais, repito que essa foi a “nobreza” que se elevou às
alturas, derramando desdém e desgraça sobre os demais.
Ter o nome célebre não é em si condenável, já que é necessá-
rio que aqueles a quem o Senhor tem adornado com dons peculia-
res sejam preeminentes entre os demais; e é vantajoso que haja
distinção hierárquica no mundo. Mas, como a ambição é sempre vi-
ciosa, e mais especialmente quando associada com uma ferocidade
tirânica que leva o mais poderoso a insultar o fraco, o mal se torna
intolerável. Contudo, é muito pior quando homens malvados, por
meios de seus crimes, buscam honra; e quando, quanto mais audaz
é alguém em causar dano, mais insolentemente ele se vangloria da
fútil fumaça de títulos. Além disso, como Satanás é um engenhoso
inventor de falsidades, pelas quais ele pretende corromper a verda-
de de Deus e, dessa maneira, torná-la duvidosa, os poetas têm en-
gendrado muitas fábulas acerca dos gigantes, os quais são por eles
chamados “filhos da terra”, e, no meu entender, pela seguinte razão:
por se apressarem em buscar domínio, de modo nunca visto antes.

5. Viu o S que a maldade do homem se havia multiplica-


do. Moisés dá seguimento ao tema ao qual acabara de fazer alusão:
que Deus não foi severo demais, nem precipitado, em exercer puni-
ção sobre os perversos do mundo. E ele apresenta Deus falando se-
gundo o modo dos homens, por uma figura que atribui a Deus afetos
humanos,2 porque ele não poderia expressar de outro modo o que
era muito importante saber; ou seja, que Deus não foi levado a agir
apressadamente, ou de um modo superficial, a destruir o mundo.
Pois, pela palavra viu, Moisés indica longanimidade contínua, como
se dissesse que Deus não proclamou sua sentença para a destrui-
ção dos homens até que, após observar bem e considerar demora-
damente o caso, viu que para eles não havia solução. Além disso, o
que segue enfatiza ainda mais: que “a maldade do homem se havia
multiplicado”.
Ele poderia ter perdoado os pecados de menor gravidade se só
numa parte do mundo reinasse a impiedade, e outras regiões per-
manecessem isentas de punição. Agora, porém, quando a iniquida-
de atingiu seu ponto máximo, e de tal modo permeou toda a terra
que a integridade já não possui mais sequer um canto, segue-se
que o tempo do castigo chegou. Em toda parte, pois, reinava uma
incomum perversidade, de modo que toda a terra se cobrira com
ela. A partir disso, percebemos que ela não foi submersa pelo dilú-
vio de águas até que, primeiramente, fosse imersa pela poluição da
perversidade.
Era continuamente mau todo o desígnio de seu coração.
Moisés remonta a causa do dilúvio aos atos externos de iniquidade;
agora, ascende mais alto e declara que os homens não apenas
eram perversos por hábito e eram maus por costume, mas que a
perversidade se arraigara em seu coração com extrema profundida-
de, tirando qualquer esperança de arrependimento. Certamente ele
não poderia ter asseverado com mais veemência de que a deprava-
ção era tal que não se poderia curar com nenhum remédio modera-
do. De fato, pode suceder que os homens algumas vezes se afun-
dem no pecado, embora seja possível que reste nele algo de uma
mente sã. Moisés, porém, nos ensina que a mente daqueles de
quem ele agora fala era tão completamente imbuída com iniquidade,
que nada apresentavam senão o que devesse ser condenado. Pois
a linguagem que ele emprega é muito enfática; poderia ser suficien-
te ele dizer que seus corações eram corruptos; porém, não satisfeito
com essa palavra, assevera expressamente: “todo o desígnio de
seu coração”; e acrescenta a palavra “continuamente”, negando que
houvesse sequer uma gota de bem misturada com ele.
Continuamente. Alguns explicam essa partícula da seguinte
maneira: “desde a mais tenra infância”, como se quisesse dizer: a
depravação dos homens é imensa desde o momento de seu nasci-
mento. No entanto, a interpretação mais correta é que o mundo de
então se tornara tão empedernido em sua perversidade, e se acha-
va tão longe de qualquer reparo ou de nutrir qualquer senso de peni-
tência, que se tornava cada vez pior à medida que o tempo avança-
va; e, além do mais, que não era a insensatez de uns poucos dias,
mas a arraigada depravação que os filhos recebiam por direito here-
ditário, transmitida de seus pais aos seus descendentes.
Contudo, ainda que Moisés descreva a perversidade que na-
quele tempo prevalecia no mundo, infere-se, com propriedade e
consistentemente, a doutrina geral.3 Muito menos distorcem temera-
riamente a passagem quem a estende a toda a raça humana. As-
sim, quando Davi diz: “Declara-os culpados, ó Deus; caiam por seus
próprios planos. Rejeita-os por causa de suas muitas transgressões,
pois se rebelaram contra ti. Todos se extraviaram e juntamente se
corromperam; não há quem faça o bem, não há nem um sequer” [Sl
5.10; 14.3], de fato ele deplora a impiedade de sua própria época;
contudo, Paulo [Rm 3.12] não hesita em estendê-la a todos os ho-
mens de todas as épocas; e isso com justiça, pois essa não é uma
mera queixa acerca de uns poucos homens, mas uma descrição da
mente humana, quando entregue a si própria, destituída do Espírito
de Deus. Portanto, é muito apropriado que a obstinação dos ho-
mens, que tão imensamente havia abusado da bondade de Deus,
seja condenada nessas palavras; contudo, ao mesmo tempo, exibe-
se claramente a verdadeira natureza do homem, quando privada da
graça do Espírito.

6. Então se arrependeu o Senhor de haver feito o homem na ter-


ra. O arrependimento que aqui se atribui a Deus não lhe pertence
propriamente, mas tem referência ao nosso entendimento dele. Por-
que, posto que não podemos compreendê-lo como ele é, faz-se ne-
cessário que ele, por nossa causa, em certo sentido se acomode a
nós. Que em Deus não pode ocorrer arrependimento, é facilmente
demonstrado na seguinte consideração: que nada sucede que lhe
seja inesperado ou imprevisto. O mesmo raciocínio e observação se
aplicam ao que segue: que Deus foi afetado por tristeza. É claro que
Deus não pode sentir tristeza ou pesar; mas ele permanece sempre
o mesmo em seu estado celestial e feliz; entretanto, visto que de ou-
tro modo não se pode saber quão profundo é o ódio e aversão que
Deus sente pelo pecado, por isso o Espírito se acomoda à nossa ca-
pacidade.
Portanto, não há necessidade de nos envolvermos em questões
espinhosas e difíceis, quando se faz óbvio o objetivo pelo qual se
aplicam a Deus essas palavras “arrependimento” e “pesar”, a saber,
ensinar-nos que desde o tempo em que o homem se corrompera tão
profundamente, Deus não mais o reconhece entre suas criaturas,
como se quisesse dizer: “Esse não é obra de minhas mãos; esse
não é aquele homem que foi formado à minha imagem e a quem eu
adornei com dons tão excelentes; então já não me comprazo em re-
conhecer como minha essa criatura degenerada e contaminada.”.
Semelhante a isso é o que Moisés diz, em segundo lugar, concer-
nente ao pesar: que Deus se sentiu tão ofendido pela atroz perversi-
dade dos homens, que isso foi como se ele tivesse ferido seu cora-
ção com tristeza mortal. Portanto, aqui há uma inexpressível antíte-
se entre aquela natureza íntegra que fora criada por Deus e aquela
corrupção que se originou do pecado. Entretanto, a menos que pre-
tendamos provocar a Deus e o expor à tristeza, aprendamos a ter
aversão pelo pecado e a fugir dele. Além disso, essa bondade e ter-
nura paternais deveriam, não em um grau menor, subjugar em nós o
amor pelo pecado, posto que Deus, para penetrar mais eficazmente
nosso coração, se veste com nossos afetos. Essa figura, que repre-
senta Deus assumindo para si o que é peculiar à natureza humana,
é chamada (anthrôpopatheia).

7. Disse o Senhor: farei desaparecer da face da terra o homem


que criei, o homem e o animal. Uma vez mais, Moisés apresenta
Deus deliberando, a fim de que possamos saber mais detidamente
que o mundo não foi destruído sem decisão bem calculada da parte
de Deus. Pois o Espírito do Senhor designou que fôssemos diligen-
temente admoestados sobre esse ponto, a fim de que ele cortasse
toda ocasião àquelas ímpias queixas nas quais de outro modo esta-
ríamos tão prontos a apresentar.
Aqui, a palavra disse significa decretou; porque Deus não arti-
cula nenhuma voz sem haver determinado interiormente o que faria.
Além disso, ele não necessitava de nova decisão, como frequente-
mente fazem os homens, como se estivesse formulando um juízo a
respeito de algo recém-descoberto. Mas tudo isso é dito em consi-
deração à nossa limitação; para que jamais imaginemos o dilúvio
senão nos ocorrendo imediatamente que a vingança de Deus era
justa.
Além disso, Deus, não satisfeito em punir o homem, se direcio-
na para os animais, para o gado e aves, e todo gênero de criaturas
vivas. Nisso ele parece ter excedido os limites da moderação, pois,
conquanto a impiedade dos homens lhe seja odiosa, contudo, a que
propósito ele se iraria contra os animais inofensivos? Não causa
surpresa, porém, que aqueles animais, que foram criados por causa
do homem e viviam para seu uso, participassem de sua ruína; nem
os asnos, nem os bois, nem quaisquer outros animais haviam feito
qualquer mal; entretanto, vivendo em sujeição ao homem quando
este caiu, foram arrastados com ele à mesma destruição. A terra era
como um rico celeiro, bem suprido com todo gênero de provisão em
abundância e variedade. Ora, posto que o homem contaminara a
própria terra com seus crimes, e vilmente corrompera todas as ri-
quezas com que ela fora abastecida, o Senhor também designou
que o monumento de sua punição fosse colocado ali, exatamente
como se um juiz, que estivesse para punir um criminoso perverso e
abominável, em razão de maior infâmia, ordenasse que sua casa
fosse arrasada até o fundamento. E tudo isso tende a inspirar-nos
medo do pecado; pois podemos inferir facilmente quão grande é a
atrocidade do pecado, quando seu castigo se estende até mesmo à
criação irracional.

8. Noé, porém, achou graça diante do Senhor. Essa é uma frase


hebraica significando que Deus lhe fora propício e o favorecera.
Pois é assim que os hebreus costumavam falar: “Se eu achar graça
a teus olhos”, em vez de “Se eu te for aceitável” ou “Se tu me conce-
deres tua benevolência ou favor.”. Essa frase precisa ser bem pon-
derada, porque certos homens iletrados inferem com fútil sutileza
que, se os homens acharem graça aos olhos de Deus, significa que
eles buscam essa graça por seu próprio esforço e méritos. De fato,
reconheço que, aqui, Noé é declarado ser aceitável a Deus, porque,
vivendo íntegra e piedosamente, ele se guardou das corrupções co-
muns do mundo; mas de onde ele obteve essa integridade, senão
da ação prévia da graça de Deus? Portanto, o ponto de partida des-
se favor foi a benignidade gratuita. Mais tarde, o Senhor, havendo
uma vez o abraçado, reteve-o sob sua própria mão, para que ele
não perecesse com o resto do mundo.
9. Eis a história de Noé. A palavra hebraica (toledoth) significa,
exatamente, geração. Entretanto, algumas vezes ela tem um sentido
mais extenso, e se aplica a toda a história da vida; de fato, esse pa-
rece ser seu significado aqui. Pois, quando Moisés declarou que não
se achou ninguém a quem Deus – quando determinara destruir o
mundo inteiro – pudesse preservar, descreve sucintamente que tipo
de pessoa era ele. Em primeiro lugar, assevera que ele era justo e
íntegro entre os homens de sua época; pois aqui é um substantivo
hebraico diferente, (dor), que significa uma época ou o tempo de
uma vida.
A palavra (tamim), que Jerônimo, o antigo intérprete, costu-
mava traduzir pelo termo perfeito, contém o mesmo sentido que reto
ou sincero, e é oposto ao que é enganoso, pretenso, e vão. E Moi-
sés não conecta imprudentemente essas duas palavras; pois o mun-
do, sendo sempre influenciado pelo esplendor externo, estima a jus-
tiça não por afeto do coração, e sim por meras obras. Se, porém,
desejarmos ser aprovados por Deus e considerados justos aos seus
olhos, devemos não só regular nossas mãos, e olhos, e pés, em
obediência à sua Lei, mas a integridade de coração está acima de
todas as coisas requeridas, e mantém o lugar primordial na verda-
deira definição de retidão. Contudo, saibamos que são chamados
justos e íntegros não aqueles que são perfeitos em todos os aspec-
tos e em quem não há defeito, mas aquele que cultiva a retidão com
pureza e de todo o coração. Porque estamos certos de que Deus
não age para com seu próprio povo com o rigor da justiça, exigindo
deles uma vida segundo a perfeita regra da Lei; pois, se nenhuma
hipocrisia reinasse em seu interior, mas o puro amor pela retidão flo-
rescesse e enchesse seu coração, Deus os declararia justos, em
conformidade com sua benevolência.
A frase “em suas gerações” é enfática. Pois ele já dissera com
frequência, e logo reiterará, que nada era mais corrupto do que
aquela geração. Portanto, seria um notável exemplo de constância
que Noé, vivendo cercado por todos os lados com a torpeza da ini-
quidade, não tivesse sido contaminado. Sabemos quão grande é a
força do costume, de modo que nada é mais difícil do que viver san-
tamente entre os perversos e evitar ser arrastado por seus maus
exemplos. Raramente há um em cem que não tenha em seus lábios
aquele diabólico provérbio: “Temos de uivar quando estamos entre
lobos”; e a maioria – elaborando para si uma regra com base na prá-
tica comum – julga ser lícito tudo o que é geralmente aceito. Entre-
tanto, como a virtude singular de Noé é aqui recomendada, assim
devemos lembrar que somos instruídos no que devemos fazer, ain-
da quando o mundo inteiro esteja se precipitando em sua própria
destruição.
Se, no presente tempo, os costumes morais dos homens são
tão viciados, e toda a forma de vida tão confusa que a probidade se
tornara uma coisa rara, ainda mais vil e terrível era a confusão nos
dias de Noé, quando ele não tinha sequer um companheiro no culto
divino e na busca da santidade. Se ele pôde manter-se de pé contra
as corrupções do mundo inteiro e contra assaltos tão constantes e
veementes da iniquidade, nós não termos nenhuma desculpa, a me-
nos que, com igual firmeza da consciência, sigamos o curso certo,
superando os inumeráveis obstáculos dos vícios.
Não é improvável que Moisés use a palavra gerações no plural
para declarar mais plenamente quem era o incansável e invencível
combatente Noé que, através de muitas gerações, permanecera
inalterável. Além disso, a maneira de cultivar a retidão, a qual ele
adotara, é explicada no contexto, a saber, que ele “andava com
Deus”, cuja excelência havia também sido elogiada no santo patriar-
ca Enoque, no capítulo anterior, onde já afirmamos o que a expres-
são significa. Quando a corrupção dos costumes morais era tão
grande na terra, se Noé levasse em conta o homem, teria se precipi-
tado num profundo labirinto. Portanto, ele percebe que esse é seu
único remédio, ou seja, não considerar os homens, para que pudes-
se fixar todos os seus pensamentos em Deus e fazê-lo o único árbi-
tro de sua vida. Isso mostra quão tolamente os papistas clamam que
devemos seguir os pais, quando o Espírito nos afasta expressamen-
te da imitação dos homens, exceto até onde nos conduzem a Deus.
Moisés menciona outra vez os três filhos de Noé, com o propósito
de mostrar que, em meio à mais profunda tristeza pela qual se via
quase consumido, foi ainda capaz de gerar uma descendência, para
que Deus tivesse para si um pequeno remanescente.
11. A terra estava corrompida à vista de Deus e cheia de violên-
cia. Na primeira sentença desse versículo, Moisés descreve aquele
ímpio menosprezo por Deus que já não deixara qualquer religião no
mundo; pois, uma vez extinta a luz da equidade, todos os homens
mergulham no pecado. Na segunda sentença, ele declara que o
amor pela opressão, as fraudes, as injurias, os roubos, e todos os ti-
pos de injustiça prevaleceram. E estes são os frutos da impiedade:
que os homens, uma vez que tenham se rebelado contra Deus – es-
quecidos da equidade mútua entre si –, se deixam levar à uma insa-
na ferocidade, aos roubos e às opressões de todos os tipos. Deus
mais uma vez declara que viu isso, para nos recomendar sua longa-
nimidade. A terra é aqui expressa no lugar de seus habitantes; e se-
gue imediatamente uma explanação: “que todo ser vivente havia
corrompido seu caminho na terra.”. No entanto, a palavra carne,
aqui, não é entendida como antes, num mau sentido; mas significa
os homens, sem qualquer sinal de censura, como em outras partes
da Escritura: “A glória do Senhor se manifestará, e toda carne a
verá, pois a boca do Senhor o disse” [Is 40.5]. “Cale-se toda carne
diante do Senhor” [Zc 2.13].

13. Então disse Deus a Noé. Aqui Moisés começa a narrar como
Noé seria preservado. Primeiramente ele diz que o conselho de
Deus relativo à destruição do mundo lhe foi revelado. Em segundo
lugar, que Noé recebeu a ordem de construir a arca. Em terceiro lu-
gar, que recebeu a promessa de que estaria em segurança se, em
obediência a Deus, buscasse na arca seu refúgio. Esses pontos
principais devem ser distintamente notados; até porque o apóstolo,
quando proclama a fé de Noé, associa à confiança temor e obediên-
cia [Hb 11.7].
É indubitável que Noé foi admoestado da terrível vingança que
se aproximava; não apenas com o objetivo de que viesse a ser con-
firmado em seu santo propósito, mas também para que, se vendo
constrangido pelo temor, buscasse ainda mais ardorosamente o fa-
vor que lhe era oferecido. Sabemos que a impunidade dos perver-
sos algumas vezes vem a ser ocasião de seduzir os bons a peca-
rem; a denúncia, pois, de punição futura deve ser eficaz em restrin-
gir a mente de um santo homem; para que, mediante gradual declí-
nio, finalmente não ceda à mesma lascívia.
Mas Deus também fez referência especial a outro ponto, a sa-
ber, que, mantendo continuamente em vista a terrível destruição do
mundo, Noé fosse ainda mais encorajado ao temor e solicitude. Pois
era necessário que, ao desesperar-se totalmente sem qualquer ou-
tro socorro, buscasse sua segurança, mediante a fé, na arca. Pois,
desde quando a vida na terra lhe fora prometida, ele se dedicou dili-
gentemente à construção da arca; porém, sentindo-se alarmado
pelo juízo de Deus, avidamente abraça a promessa de vida que lhe
fora feita. Agora já não confia nas causas ou meios naturais de vida,
mas repousa exclusivamente na aliança divina, pela qual ele estava
para ser miraculosamente preservado; e, agora também, nenhum
trabalho lhe seria incômodo ou difícil, nem se deixaria abater por
longa fadiga. Pois o aguilhão da ira de Deus o traspassa mui aguda-
mente para lhe permitir dormir em deleites carnais, ou desmaiar sob
as tentações, ou demorar-se em seu caminho por vã esperança; an-
tes, ele é incentivado tanto a fugir do pecado como a buscar remé-
dio. E o apóstolo ensina que não foi a menor parte de sua fé que,
por meio do temor daquelas coisas que não se vêem, ele preparou
uma arca. Quando se trata simplesmente da fé, a mercê e a pro-
messa gratuita entram na conta; mas, quando desejamos expressar
todas as suas partes e investigar toda sua força e natureza, é ne-
cessário que o temor também se lhe associe. E, realmente, ninguém
nunca recorrerá seriamente ao favor de Deus senão aquele que,
uma vez tocado pelas ameaças divinas, se sinta aterrorizado peran-
te aquele juízo de morte eterna que elas denunciam, sinta aversão
de si próprio em razão de seus pecados, não se entregue indolente-
mente a seus vícios, nem dormite em sua poluição, mas, ansiosa-
mente, olhe para o remédio de seus males.
Este foi, de fato, um peculiar privilégio da graça: em haver Deus
advertido a Noé do dilúvio futuro. Aliás, ele frequentemente ordena
que suas ameaças sejam propostas aos eleitos e réprobos em co-
mum, para que, ao convidar ambos ao arrependimento, ele humilhe
aos primeiros e torne inescusáveis os últimos. Mas, enquanto a mai-
or parte da humanidade, com ouvidos moucos, rejeita tudo o que é
comunicado, ele direciona seu discurso especialmente a seu próprio
povo que ainda é curável, para que, pelo temor de seu juízo, os
exercite na piedade. A condição dos perversos poderia, naquele
tempo, parecer desejável, em comparação com a ansiedade do san-
to Noé. Eles se lisonjeavam sem qualquer preocupação em seus
próprios deleites, pois bem sabemos o que Cristo declara concer-
nente à luxúria daquele período [Lc 17.26]. Porém, o santo homem,
como se o mundo fosse ruir naquele exato momento, gemia ansiosa
e dolorosamente. Mas, se considerarmos o fim, Deus outorgava a
seu servo um inestimável benefício, ao denunciar-lhe um perigo do
qual ele pudesse precaver-se.
A terra está cheia da violência dos homens. Deus notifica
que os homens deveriam ser retirados para que a terra, que fora po-
luída pela presença de seres tão malvados, fosse purificada. Além
disso, ao falar apenas de iniquidade e violência, de fraudes e rou-
bos, das quais eram culpados entre si, Deus o faz não como se qui-
sesse lançar suas próprias reivindicações sobre eles, mas porque
essa era a mais flagrante e palpável demonstração da perversidade
deles.

14. Faze uma arca de tábuas de ciprestes. Aqui segue a ordem de


se construir a arca, na qual Deus de forma maravilhosa provava a fé
e obediência de seu servo. Quanto à sua estrutura, não há razão
para se questionar ansiosamente, senão até onde nossa própria ca-
pacidade permite. Primeiro, os judeus não concordam entre si com
respeito ao tipo de madeira com que foi feita. Alguns explicam a pa-
lavra gopher como se referindo ao cedro; outros, ao abeto; outros,
ao pinheiro. Diferem também no tocante aos pisos, porque muitos
creem que o esgoto estava no quarto piso, o qual pudesse receber o
resíduo e outras impurezas. Outros admitem que havia cinco com-
partimentos em três pavimentos, dos quais designam o mais alto às
aves. Alguns supõem que eram apenas três pisos no cume, mas
que estes eram separados por divisões intermediárias.
Além disso, eles não concordam acerca da janela: para alguns,
parece que não havia somente uma janela, e sim muitas. Alguns di-
zem que foram abertas para receber ar; outros, porém, argumentam
que só foram feitas por causa da luz e, por isso, foram cobertas com
cristal e revestidas com piche. Quanto a mim, parece mais provável
que houvesse somente uma janela, não aberta para propiciar luz, e
sim para que ficasse fechada, a menos que a ocasião requeresse
que fosse aberta, como veremos mais adiante. Além disso, admito
que havia três pavimentos e cômodos separados de uma maneira
que nos é desconhecida.
A questão acerca de sua grandeza é mais difícil. Pois, antiga-
mente, certos homens profanos ridicularizavam Moisés imaginando
que tão vasta multidão de animais fosse colocada em tão pequeno
espaço, uma terça parte do qual dificilmente comportaria quatro ele-
fantes. Orígenes resolve essa questão dizendo que Moisés aplicou
um cúbito geométrico que é seis vezes maior que o comum, e Agos-
tinho concorda com essa opinião em seu décimo quinto livro de “A
Cidade de Deus”, e em seu primeiro livro de “Questões sobre Gêne-
sis”. Admito que eles alegam que Moisés, que fora educado em toda
a ciência dos egípcios, não era ignorante da geometria; visto, po-
rém, que sabemos que Moisés em outro lugar falou de modo sim-
ples, adaptado à capacidade do povo, e que intencionalmente se
absteve de disputas acuradas, as quais pudessem confundir os es-
tudiosos e os eruditos mais profundos, de modo algum consigo con-
vencer-me de que, nesse lugar, contrário ao seu método ordinário,
ele empregasse sutileza geométrica. Por certo que, no primeiro ca-
pítulo, ele não tratou cientificamente dos astros, como fariam os filó-
sofos; porém, os denominou de uma maneira popular, “dois grandes
luminares”, segundo sua aparência aos olhos dos indoutos, e não
segundo a realidade física. Assim podemos, em outro lugar, perce-
ber que ele designa as coisas de cada tipo por seus nomes costu-
meiros. Mas qual era então a medida do cúbito, eu não sei; contudo,
a mim me basta que Deus (a quem sem controvérsia reconheço ser
o principal construtor da arca) bem sabia que coisas eram capazes
de ser mantidas no lugar que ele descreveu ao seu servo.
Caso o leitor exclua dessa história o extraordinário poder de
Deus, então declarará que aqui se relata meras fábulas. Para nós,
porém, que confessamos que o mundo foi preservado por um incrí-
vel milagre, não deve ser considerado um absurdo que muitas mara-
vilhas são aqui relatadas, para que o secreto e incompreensível po-
der de Deus, que excede a todos os nossos sentidos, fosse mais
claramente exibido. Porfírio, ou algum outro sofista, poderia objetar
dizendo que isso é uma fábula, porque nela não há qualquer razão
ou porque é inusitada ou contrária à ordem natural da natureza. Eu
replico que, a menos que fosse repleta de milagres, toda essa narra-
tiva de Moisés seria insípida, trivial e ridícula. Entretanto, aquele que
refletir corretamente sobre o profundo abismo da onipotência divina
nessa história, se prostrará com reverente espanto em vez de ceder
a uma profana zombaria.
De propósito, menciono rapidamente a aplicação alegórica que
Agostinho faz da figura da arca ao corpo de Cristo, seja em seu dé-
cimo quinto livro de “A Cidade de Deus”, seja em seu vigésimo livro
“Contra Fausto”, porque ali dificilmente encontro algo sólido. Oríge-
nes se diverte ainda mais ousadamente com alegorias, mas nada há
mais proveitoso do que aderir estritamente à declaração natural das
coisas. Que a arca era um figura da Igreja, é indubitável com base
no testemunho de Pedro [1Pe 3.21]; mas, acomodar suas diversas
partes à Igreja, de modo algum é adequado, como demonstrei em
seu devido lugar.

18. Contigo, porém, estabelecerei minha aliança. Posto que a


construção da arca era muito difícil, e que permanentemente inume-
ráveis obstáculos poderiam surgir para interromper a obra quando
iniciada, Deus fortalece seu servo por meio de uma promessa adici-
onal. Assim, Noé se viu encorajado a obedecer a Deus, uma vez
que ele confiava na promessa divina e estava confiante de que seu
trabalho não seria em vão. Pois abraçamos livremente os manda-
mentos de Deus, quando vem uma promessa anexa a ela, que nos
ensine que não trabalhamos em vão.
Consequentemente, percebemos quão tolamente os papistas
se deixam enganar argumentando de modo trivial que os homens,
mediante a doutrina da justificação pela fé, são afastados do desejo
de fazer o bem. Pois qual será o grau do nosso entusiasmo em fa-
zer o bem, senão a fé que nos ilumina? Portanto, saibamos que so-
mente as promessas de Deus é que nos vivificam e inspiram, com
vigor, a cada um de nossos membros para render obediência a
Deus, e que sem tais promessas não só jazeremos em entorpecida
indolência, mas viveremos quase sem vida, de modo que nem as
mãos nem os pés poderão cumprir seu dever. E a partir disso, en-
quanto estivermos sem ânimo, ou mais remissos do que deveríamos
na prática das boas obras, que as promessas de Deus nos socor-
ram a corrigir nossa morosidade. Pois assim, segundo o testemunho
de Paulo [Cl 1.5], o amor floresça nos santos em razão da esperan-
ça que está depositada para eles no céu.
É especialmente necessário que os fiéis sejam fortalecidos pela
palavra de Deus, para que não desfaleçam no meio do caminho e
cheguem até o fim, para que sejam assegurados de que não estão
perdendo tempo, mas que, confiando na promessa que lhes foi dada
e vivendo na certeza do sucesso, sigam ao Deus que os chama.
Deve-se ter em mente, pois, esta conexão: que, quando estava ins-
truindo a seu servo Moisés no que queria que ele fizesse, Deus de-
clara, com o propósito de mantê-lo em obediência a si, que não re-
quer dele nada que seja fútil.
Ora, a suma dessa aliança de que fala Moisés era que Noé esti-
vesse seguro, embora o mundo inteiro perecesse no dilúvio. Pois há
uma antítese subentendida: que ao rejeitar o mundo inteiro, o Se-
nhor estabeleceria uma aliança peculiar exclusivamente com Noé.
Portanto, o dever de Noé era, semelhante um muro de aço, opor
essa promessa de Deus contra todos os terrores da morte, exata-
mente como se fora o propósito de Deus, por essa única palavra,
distinguir entre vida e morte. Mas Noé é confirmado na aliança com
esta condição anexa: que sua família seria preservada por sua cau-
sa, bem como os animais irracionais para o reabastecimento do
novo mundo. A esse respeito, direi mais no nono capítulo.

19. De tudo o que vive [...] farás entrar na arca. “Toda carne” é o
nome que dá aos animais de toda e qualquer espécie que fossem.
Ele diz que entraram de dois em dois; não que apenas um único par
de cada espécie fosse recebido na arca (pois logo veremos que ha-
via três pares das espécies limpas, e um animal a mais, o qual Noé
mais tarde ofereceu em sacrifício), mas enquanto aqui se faz men-
ção apenas de prole, ele não declara expressamente o número, mas
simplesmente casais, macho e fêmea, para que Noé percebesse
como o mundo seria novamente povoado.
22. Assim fez Noé. Em poucas palavras, mas com grande sublimi-
dade, Moisés aqui enaltece a fé de Noé. Causa assombro o que o
apóstolo fala dele: “herdeiro da justiça que é pela fé” [Hb 11.7],
como se realmente todas as virtudes, e tudo quanto era digno de
louvor nesse santo homem, não emanassem dessa fonte. Pois de-
vemos levar em conta os ataques da tentação a que seu coração
estava continuamente exposto. Primeiro, o extraordinário tamanho
da arca poderia ter confundido todos os seus sentidos, bem como
impedi-lo de erguer um dedo para o início da obra. Que o leitor refli-
ta sobre o grande volume de árvores a ser derrubado, o grande tra-
balho de carregá-las e a dificuldade de reuni-las num só monte. Aqui
também está uma questão muito prolixa; pois do santo homem se
requereu que ele gastasse mais de 100 anos num trabalho tão incô-
modo. Nem devamos supor que ele fosse tão estúpido a ponto de
não refletir sobre essas dificuldades.
Além disso, dificilmente se deveria esperar que os homens de
seu tempo o suportassem pacientemente, porque eles, prometendo
a si mesmos um livramento exclusivo, a tudo assistiam com despre-
zo. Pois já se mencionou a inusitada ferocidade desses homens;
portanto, não pode haver dúvida de que provocavam diariamente
aqueles homens modestos e sinceros, ainda que sem motivo. Aqui,
porém, há uma ocasião plausível para insulto: que Noé, ao derrubar
árvores de todos os lados, estava devastando a terra, tornando-a
estéril e os defraudando de várias vantagens. Há um provérbio po-
pular que diz: “Os homens perversos e contenciosos disputarão sob
a sombra de um asno.”. O que, pois, poderia Noé pensar daqueles
ferozes ciclopes à sombra de tantas árvores, os quais, vivendo na
prática de todo tipo de violência, lançando mão, com avidez, de toda
ocasião para o exercício de crueldade? Mas foi isto principalmente
que tendia a inflamar a fúria deles: que Noé, ao construir para si um
asilo, virtualmente condenava a todos eles à destruição.
Certamente, a menos que fossem restringidos pela poderosa
mão de Deus, teriam apedrejado o santo homem muitas vezes; con-
tudo, é provável que sua veemência não fosse tão reprimida a ponto
de impedi-los de assaltá-lo repetidas vezes com zombarias e escár-
nios, amontoando sobre ele muitas reprovações e perseguindo-o
com graves ameaças. Penso ainda que não refreavam suas mãos
de atrapalhar a sua obra. Portanto, embora conduzisse com entusi-
asmo a obra que lhe fora confiada, a constância de Noé teria falha-
do muitas vezes, ao longo de tantos anos, a menos que ela estives-
se solidamente alicerçada.
Além do mais, uma vez que a obra, em si mesma, parecia irrea-
lizável, poderíamos ainda perguntar: de onde se obtiveram as pro-
visões para um ano? De onde veio alimento para tantos animais?
Ele recebe a ordem de estocar alimento que fosse suficiente durante
dez meses, para toda sua família, para o gado e animais selvagens,
bem como para as aves. De fato, parece absurdo que, depois de vi-
ver afastados da agricultura para engajar-se na construção da arca,
lhe fosse ordenado que recolhesse um estoque de provisão para
dois anos; mas o problema mais grave estava na provisão de ali-
mento para os animais. Portanto, ele poderia ter suspeitado de que
Deus estivesse zombando dele. Seu último trabalho era reunir ani-
mais de todas as espécies, como se, de fato, ele tivesse sob seu co-
mando todos os animais da floresta, ou fosse capaz de domá-los, de
modo que, sob sua guarda, lobos pudessem habitar com cordeiros,
tigres com lebres, leões com bois – como ovelhas em seu redil. Mas
a tentação mais grave de todas era que lhe fosse ordenado que
descesse, como a uma sepultura, em prol da preservação de sua
vida e, voluntariamente, se privasse de ar e do espírito vital; pois
bastaria o odor do esterco, como de fato era, em um lugar totalmen-
te fechado, todos respirando durante três dias, para asfixiar todas as
criaturas dentro da arca.
Ponderemos sobre esses conflitos do santo homem – tão seve-
ros, diversos e contínuos –, para que saibamos quão heroica foi sua
coragem, indo ao máximo, para fazer o que Deus lhe ordenara. Moi-
sés, de fato, diz numa única palavra que ele o fez; mas devemos
considerar até que ponto além de todo o esforço humano ele teve
de ir; e que teria sido melhor morrer cem vezes do que empreender
uma obra tão laboriosa, a menos que ele tivesse posto seu olhar em
algo mais elevado do que a presente vida. Portanto, aqui se nos
descreve um notável exemplo de obediência porque, confiando-se
Noé inteiramente a Deus, rendeu-lhe a devida honra.
Sabemos, nesta corrupção de nossa natureza, quão prontos es-
tão os homens a buscar subterfúgios, e quão engenhosos em inven-
tar pretextos como justificativa da desobediência a Deus. Portanto,
aprendamos ainda a derrubar todo gênero de impedimento e a não
dar lugar aos pensamentos perversos, os quais se opõem à palavra
de Deus, e com os quais Satanás tenta embaraçar nossa mente,
para não obedecermos aos mandamentos de Deus. Pois este de-
manda especialmente que se lhe renda esta honra: que suportemos
o que ele decidir para nós. E esta é a verdadeira prova de fé: que
nós, vivendo contentes com um só de seus mandamentos, nos cin-
jamos para a obra, de modo que não nos desviemos de nossa traje-
tória – seja qual for o obstáculo que Satanás ponha em nosso cami-
nho, mas pairemos sobre as asas da fé acima do mundo. Moisés
mostra ainda que Noé obedeceu a Deus, não só em uma particulari-
dade, mas em tudo. Isso deve ser observado com diligência, porque
principalmente disso surge terrível confusão em nossa vida: que não
somos capazes de, sem reserva, nos submetermos a Deus; mas,
quando nos desincumbimos de alguma parte de nosso dever, fre-
quentemente misturamos com sua palavra nossos próprios senti-
mentos. Mas a obediência de Noé é célebre por isto: que ela era in-
tegral, não parcial; de modo que ele nada deixou de fazer daquelas
coisas que Deus lhe ordenara.

1 A questão aqui envolvida é a seguinte. Se Noé tinha 500 anos quando começou a cons-
truir a arca, e os dias do homem sobre a terra seriam de 120 anos, Noé teria entrado na
arca com 620 anos, e não “no ano seiscentos da sua vida”. Onde, portanto, estariam os 20
anos de diferença? A resposta de Calvino é que, segundo o modo popular de falar entre os
hebreus, Moisés afirma, de modo aproximado, que Noé tinha 500 anos de idade quando
entrou no quinto século de sua vida; a partir disso, infere-se que Noé tivesse cerca de 480
anos de idade; e, caso se adicionem os tais 120 anos, então ele teria 600 anos de idade no
momento em que entrou na arca.
2 Na teologia, dá-se o nome de Antropopatia à atribuição de sentimentos e afetos humanos
a Deus.
3 A “doutrina geral” aqui referida é a doutrina bíblica da depravação total e universal do ho-
mem.
C A P ÍT U L O 7

1. Disse o S a Noé. Não tenho dúvida de que Noé foi fortale-


cido, certamente como precisava ser, por meio de oráculos repeti-
dos frequentemente. Ele já fora sustentado, durante 100 anos, dos
maiores e mais furiosos assaltos; e o invencível combatente havia
conseguido memoráveis vitórias. Porém, a mais severa luta de to-
das era despedir-se do mundo, renunciando a sociedade e “sepul-
tando-se” na arca.
A face da terra, naquele tempo, era bela; e Moisés notifica que
essa era a estação em que as ervas brotavam e as árvores começa-
vam a florescer. O inverno, que ofusca a alegria do céu e terra com
fortes e cortantes geadas, já havia passado; e o Senhor escolhera o
momento para destruir o mundo na própria estação da primavera.
Pois Moisés declara que foi no segundo mês que o dilúvio teve iní-
cio. Entretanto, estou ciente de que prevalecem opiniões divergen-
tes sobre esse tema; pois há três delas que fazem o ano começar
com o período outonal; porém, o modo mais aprovado de computar
o ano é que ele tem início no mês de março. Seja como for, para
Noé não era uma provação pequena deixar, voluntariamente, a vida
a que fora acostumado durante 600 anos, e buscar um novo modo
de vida no abismo da morte. Recebera a ordem de abandonar o
mundo, para que passasse a viver em um “sepulcro” que cavara la-
boriosamente para si mesmo ao longo de mais de 100 anos. Por
que isso ocorreu? Porque em pouco tempo a terra seria submersa
em um dilúvio de águas.
Porém, nada disso era esperado; todos se deleitavam em fes-
tas, celebravam núpcias, construíam casas suntuosas; em suma,
por toda parte prevalecia a vaidade e a luxúria, como Cristo mesmo
testifica que aquela geração foi envenenada com seus próprios pra-
zeres [Lc 17.26]. Portanto, não foi sem razão que o Senhor outra
vez encorajou e fortaleceu a mente de seu servo, pela renovação da
promessa, para que ele não desfalecesse, como se quisesse dizer:
“Até aqui tens trabalhado com afinco em meio a tantas ofensas;
agora, porém, o caso exige especialmente que recuperes o ânimo
para colheres o fruto de teu trabalho; entretanto, não esperes até
que as águas jorrem de todos os lados, emergindo das veias aber-
tas da terra, e até que as águas acima do céu venham com violên-
cia, e logo precipitem de suas cataratas abertas; mas, enquanto
tudo ainda estiver tranquilo, entra na arca e ali permanece até o séti-
mo dia, e então, de repente, o dilúvio entra em cena.
E embora agora não nos venha do céu nenhum oráculo, saiba-
mos que a meditação contínua sobre a palavra não é ineficaz; pois
como novas dificuldades surgem permanentemente diante de nós,
assim Deus, por uma ou outra promessa, estabelece de tal modo a
nossa fé que, com nossa força sendo renovada, finalmente alcance-
mos o alvo. De fato, nosso dever é ouvir atentamente Deus nos fa-
lando; e não devemos, por um sentimento depravado, rejeitar aque-
les exercícios pelos quais ele nutre, ou exercita, ou fortalece nossa
fé, segundo ele bem sabe ser ela ainda frágil, ou abatida, ou fraca; e
nem mesmo os rejeitar como supérfluos.
“Pois tens sido justo diante de mim”. Quando o Senhor assinala
como razão para preservar a Noé o fato de esse santo homem ser
justo, é como se Deus atribuísse o louvor da salvação ao mérito das
obras; pois, se Noé foi salvo em decorrência de ser justo, segue-se
que mereceremos a vida pelas boas obras. Aqui, porém, nos cabe
cautelosamente pesar o propósito de Deus, que era colocar um ho-
mem em confronto com o mundo inteiro, para que, em sua pessoa,
pudesse condenar a injustiça de todos os homens. Pois ele testifica
uma vez mais que a punição que estava para deflagrar contra o
mundo era justa, posto que foi deixado somente um homem que en-
tão cultivava a retidão, em razão de quem ele foi propício a toda sua
família.
Alguém objetaria que, à luz dessa passagem, prova-se que
Deus, para salvar os homens, leva em consideração as obras; mas
a resposta é imediata: isso não é incompatível com a aceitação gra-
tuita, posto que Deus aceita aqueles dons que ele mesmo tem con-
ferido a seus servos. Devemos observar, em primeiro lugar, que ele
ama os homens graciosamente, conquanto nada acha neles senão
o que é digno de ódio, uma vez que todos os homens já nascem fi-
lhos da ira e herdeiros da maldição eterna. Quanto a isso, em Cristo,
ele os adota para si e os justifica somente pela sua misericórdia.
Dessa maneira, depois de havê-los reconciliado consigo, também os
regenera, por meio de seu Espírito, para uma nova vida e uma nova
retidão. É a partir disso que emanam as boas obras, as quais, ne-
cessariamente, devem agradar ao próprio Deus. Assim, ele não só
ama os fiéis, mas também as obras deles.
Observemos ainda que, visto que alguma imperfeição sempre
permeia as nossas obras, não é possível que elas sejam aprovadas,
a não ser como uma questão de misericórdia. Portanto, a graça de
Cristo, e não a própria dignidade ou mérito das obras, é aquilo que
imprime real valor às nossas obras. Contudo, não negamos que elas
são levadas em conta diante de Deus, como aqui ele reconhece e
aceita a justiça de Noé, pois sua fonte estava na própria graça; e
dessa maneira (como fala Agostinho), ele coroará seus próprios
dons.
Notemos ainda a expressão: “reconheço que tens sido justo”.
Por essas palavras, Deus não só aniquila toda aquela justiça hipó-
crita que é destituída de santidade interior do coração, mas vindica
sua própria autoridade, como se quisesse declarar que somente ele
é o juiz competente para avaliar a retidão. A frase “no meio desta
geração” é acrescentada, como eu já disse, como ampliação, pois
tão insana era a depravação daquela época que era tido como um
prodígio o fato de Noé ser isento da contaminação comum.

2. De todo animal limpo. Moisés novamente reitera o que dissera


antes acerca dos animais, e não sem motivo. Pois havia não pouca
dificuldade em ajuntar das florestas, dos montes e das cavernas tão
grande multidão de animais selvagens, dentre os quais muitas espé-
cies provavelmente fossem totalmente desconhecidas; e havia, em
sua grande maioria, a mesma ferocidade que hoje percebemos. É
por isso que Deus encoraja o santo homem para que não viesse a
sentir-se alarmado em meio às dificuldades e, assim, uma vez des-
cartada toda a esperança de sucesso, viesse a fracassar.
Aqui, contudo, à primeira vista parece haver algum tipo de con-
tradição, posto que, enquanto falara anteriormente de pares de ani-
mais, agora fala de sete pares. Mas a resposta é simples: porque
Moisés, previamente, não declarou o número, mas simplesmente
disse que as fêmeas foram acrescidas como companheiras dos ma-
chos, como se quisesse dizer: não se ordenou que Noé pessoal-
mente ajuntasse os animais de forma indiscriminada, e sim os sele-
cionasse em pares para a propagação das espécies. Entretanto,
agora o discurso diz respeito ao número concreto. Além disso, a ex-
pressão “sete pares” deve ser entendida não como sendo sete pa-
res de cada espécie, e sim de três pares, aos quais se acrescentava
um animal destinado ao sacrifício. Além disso, o Senhor quis preser-
var um número três vezes maior de animais limpos que os dos ou-
tros porque haveria maior necessidade deles para o uso do homem.
Nessa descrição, devemos considerar a paternal bondade de Deus
para conosco, pela qual ele se inclina a levar em conta em todas as
coisas.

3. Para se conservar a semente sobre a face da terra. Isto é, para


que disso proceda a descendência. Mas isso se refere a Noé; pois,
especificamente falando, embora somente Deus gera vida, aqui ele
se reporta àqueles deveres que impusera a seu servo; e é com res-
peito ao seu designado ofício que Deus lhe ordena a coletar animais
para manter uma semente vida. Muito menos é isso extraordinário,
posto que, em certo sentido, se diz dos ministros do evangelho que
conferem vida espiritual.
Na sentença que vem em seguida, “sobre a face da terra”, há
uma dupla consolação: que as águas, após haverem coberto a terra
por algum tempo, cessariam outra vez, de modo a aparecer a super-
fície seca da terra; e então, que não só o próprio Noé sobreviveria,
mas, pela bênção de Deus, o número de animais aumentaria tanto
que se espalharia por todo o mundo. Assim, em meio à ruína, se lhe
promete restauração futura. Moisés é muito sincero em mostrar que
Deus se preocupou, por todos os meios, em manter Noé em obedi-
ência à sua palavra, e fazer com que o santo homem confiasse intei-
ramente.
Essa doutrina é muito valiosa, especialmente quando Deus pro-
mete, ou ameaça, algo incrível, visto que os homens não recebem
de bom grado o que lhes parece improvável. Pois nada era menos
concordante com a lógica da carne do que o mundo ser destruído
por seu Criador, porque isso equivalia a subverter toda a ordem da
natureza que ele havia estabelecido. Portanto, a menos que Noé
fosse bem admoestado desse terrível juízo de Deus, ele nunca teria
se aventurado a crer nele e, assim, não concebesse um Deus agin-
do em contradição consigo próprio.
A palavra (hayekom), que Moisés usa aqui, tem sua origem
de uma palavra que significa permanecer, mas que propriamente
significa tudo o que vive e floresce.

5. E tudo fez Noé, segundo o S lhe ordenara. Essa não é


uma mera repetição da sentença anterior, mas, com ela, Moisés
enaltece o teor invariável da obediência de Noé em guardar todos
os mandamentos de Deus, como se quisesse dizer que, em todo
particular que aprouve a Deus testar sua obediência, Noé sempre
permaneceu constante. E, certamente, não convém obedecer so-
mente um ou outro mandamento de Deus, de modo que, quando ti-
vermos realizado uma obediência imperfeita, nos sintamos na liber-
dade de nos afastar; pois devemos ter na memória a declaração de
Tiago: “Ora, se não adulteras, porém matas, vens a ser transgressor
da lei” [Tg 2.11].

6. Tinha Noé seiscentos anos de idade. Não é sem razão que


Moisés menciona outra vez a idade de Noé. Pois, entre os males
trazidos pela velhice está o de que ela torna os homens mais indo-
lentes e mal-humorados; isso evidencia ainda mais a fé de Noé, por-
que não a abandona naquele período avançado de sua vida. E,
como ela possuía uma grande excelência, sem se enfraquecer du-
rante os séculos sucessivos, assim sua prontidão merece não pe-
queno enaltecimento; porque, recebendo a ordem de entrar na arca,
imediatamente obedeceu.
Quando Moisés, logo depois, acrescenta que Noé entrou em ra-
zão das águas do dilúvio, as palavras não devem ser explanadas
como se ele se visse compelido, pelo ímpeto das águas, a fugir para
a arca; e sim que ele, se vendo movido pelo temor proveniente da
palavra, pela fé percebeu a aproximação daquele dilúvio do qual to-
dos os demais ridicularizavam. Portanto, sua fé é outra vez reco-
mendada nesse verso, porque de fato ele ergueu seus olhos acima
do céu e terra.
8. Dos animais limpos. Aqui Moisés explica – o que antes se tinha
dúvida – de que modo os animais foram reunidos na arca, e diz que
vieram por sua própria iniciativa. Se porventura isso parecer estra-
nho a alguém, então recorde do que fora dito anteriormente: que no
início todo gênero de animais se apresentara a Adão, para que lhes
desse nome. E, de fato, nosso temor diante dos animais selvagens
não tem nenhuma outra causa senão esta: pelo fato de havermos
rejeitado o jugo de Deus, perdemos aquela autoridade sobre os ani-
mais, com a qual Adão foi dotado. Ora, quando Deus trouxe a Noé
aqueles animais que ele pretendia que fossem preservados através
do labor e serviço de Noé, era um tipo de restauração do primeiro
estado das coisas. Pois Noé manteve em sua arca os animais do-
mesticados, da mesma maneira que galinhas e gansos são preser-
vados num galinheiro. E não é supérfluo que se acrescente que os
animais viessem sozinhos, como Deus havia instruído a Noé; pois
isso mostra que a bênção de Deus repousava sobre a obediência de
Noé, de modo que seu trabalho não seria em vão.
Humanamente falando, era impossível que de repente ocorres-
se tal ajuntamento de todos os animais; visto, porém, que Noé, con-
fiando unicamente na ação divina, executou o que lhe fora ordena-
do, Deus, por sua vez, deu poder a seu próprio preceito para que o
mesmo não fosse sem efeito. Especificamente falando, isso resultou
de uma promessa de Deus anexada aos seus mandamentos. E,
portanto, devemos concluir que a fé de Noé se tornou mais valiosa
que todas as armadilhas e ciladas armadas para a captura de ani-
mais; e que, pela mesmíssima porta, leões, lobos e tigres entraram
mansamente na arca com os bois e com os cordeiros. E este é o
único método pelo qual podemos vencer todas as dificuldades: que,
sendo persuadidos de que o que é impossível a nós, é fácil para
Deus, tiremos ânimo a partir da esperança. Já se afirmou previa-
mente que os animais entraram aos pares.
Já relatamos também as diferentes opiniões dos intérpretes
concernentes ao mês em que ocorreu o dilúvio. Porque, posto que
os hebreus começam o ano das coisas sacras em março, mas as
atividades terrenas em setembro; ou – o que equivale à mesma coi-
sa –, visto que os dois períodos formam um duplo começo do ano,
há quem pense que aqui está em pauta o ano sacro, e outros, o ano
político. Mas, visto que o primeiro modo de computar o período de
ano foi divinamente designado, e é também mais condizente com a
natureza, parece provável que o dilúvio começou mais ou menos no
período da primavera.

11. Nesse dia romperam-se todas as fontes do grande abismo, e


as comportas do céu se abriram. Moisés traz à nossa memória o
período da primeira criação; pois, originalmente, a terra era coberta
com águas; e, pela singular bondade de Deus, elas tiveram que re-
cuar, para que se deixasse algum espaço seco para as criaturas vi-
vas.
Os filósofos se veem obrigados a reconhecer que é contrário ao
curso da natureza que as águas baixem o nível para que alguma
porção da terra apareça acima delas. E, entre outros milagres de
Deus, a Escritura registra que ele restringe a força do mar, como se
colocasse barreiras para que o mar não cubra aquela parte da terra
que foi destinada à habitação dos homens. Moisés diz ainda, no pri-
meiro capítulo, que algumas águas ficaram suspensas acima no
céu; e Davi, de igual modo, declara que são mantidas encerradas
como que em um odre. Por fim, Deus armou para os homens um te-
atro na região habitável da terra, e fez com que, por seu secreto po-
der, as águas subterrâneas não irrompessem para submergir-nos, e
as águas celestiais não conspirassem para tal propósito.
Entretanto, Moisés declara que, quando Deus resolveu destruir
a terra pelas águas do dilúvio, aquelas barreiras foram removidas. E
aqui devemos considerar o maravilhoso conselho de Deus, pois ele
poderia ter depositado, em certos canais ou veias da terra, tanta
água quanta fosse suficiente para todos os propósitos da vida hu-
mana; mas ele, intencionalmente, nos colocou entre dois sepulcros,
para que, com base numa segurança imaginada, não menospreze-
mos aquela bondade da qual depende nossa vida. Pois o elemento
água, que os filósofos julgam ser um dos princípios da vida, nos
ameaça com morte por todos os lados, exceto na medida em que for
restringido pela mão de Deus. Ao dizer que as fontes se romperam
e as cataratas se abriram, a linguagem de Moisés é metafórica, e
significa que as águas não fluíram da maneira costumeira, nem a
chuva destilou do céu; mas que, uma vez removida a separação que
vemos ter sido estabelecida por Deus, já não houve quaisquer bar-
reiras a restringir a violenta irrupção.

12. E houve copiosa chuva sobre a terra. Embora o Senhor es-


cancarasse os diques das águas, não permitiu que elas irrompes-
sem num só momento, a ponto de imediatamente submergir a terra,
mas fez com que a chuva continuasse por 40 dias; em parte, para
que Noé, por demorada meditação, fixasse mais profundamente em
sua memória o que havia previamente aprendido, mediante instru-
ção, da palavra; em parte, para que os perversos, mesmo antes de
sua morte, sentissem que aquelas advertências das quais haviam
zombado não foram ameaças fúteis. Pois aqueles que por tanto
tempo haviam escarnecido da paciência de Deus mereciam sentir
que estavam gradualmente perecendo sob aquele justo juízo divino,
o qual, durante 100 anos, eles haviam tratado como se fosse fábula.
E o Senhor frequentemente tempera seus juízos de tal modo,
para que os homens tenham tempo de considerar com mais vanta-
gem aqueles juízos que, por sua súbita vinda, os tomariam de es-
panto. Mas a espantosa depravação de nossa natureza se mostra
nisto: que, se a ira de Deus se derramasse repentinamente, nos tor-
naríamos estúpidos e insensíveis; mas, se ela avança com passos
comedidos, nos tornamos tão acostumados a ela que a menospre-
zamos, porque não reconhecemos voluntariamente a mão de Deus
sem alguns milagres, e porque somos facilmente endurecidos por
um tipo de extrema insensibilidade, à vista das obras de Deus.

13. Nesse mesmo dia entraram na arca. Segue uma repetição su-
ficientemente particular, levando em conta o modo breve (mas de
modo algum supérfluo) com qual Moisés percorre a história do dilú-
vio. Pois o desígnio do Espírito era manter nossa mente na conside-
ração de uma vingança terrível demais para ser adequadamente
descrita pela máxima severidade da linguagem. Além disso, aqui
nada se relata senão o que é difícil de crer; por isso Moisés inculca
essas coisas com mais frequência, para que, por mais remotas que
estejam de nossa compreensão, contudo obtenham nosso crédito.
Assim a narrativa concernente aos animais se reporta a este
ponto: que, pela fé do santo Noé, eles foram arrancados de suas flo-
restas e cavernas, e foram removidos de suas peregrinações e leva-
dos para um espaço, como se fossem conduzidos pela mão de
Deus. Vemos, pois, que Moisés não insiste sobre esse ponto sem
ter algo em vista; mas ele o faz para ensinar-nos que se preservou
cada espécie de animais, não por acaso, nem pelo esforço humano,
mas porque o Senhor estendeu e ofereceu ao próprio Noé, anteci-
padamente (como se diz), todo animal que desejava manter vivo.

16. E o S fechou a porta após ele. Isso não é acrescentado


em vão, nem deveria ser tratado de modo superficial e sem ponde-
ração. Aquela porta teria sido suficientemente grande para admitir a
passagem de um elefante. E, de fato, nenhuma altura seria suficien-
temente firme e tenaz, e nenhuma junção suficientemente sólida,
para impedir a imensa força da água de penetrar através de suas
muitas brechas, especialmente numa irrupção tão violenta e num
impacto tão abrupto. Portanto, Moisés, para não dar ocasião a vãs
especulações que nossa própria curiosidade sugeriria, declara,
numa palavra, que a arca foi feita para suportar o dilúvio, não pelo
artifício humano, mas por um milagre divino. Na verdade, é indubitá-
vel que Noé fora dotado com nova habilidade e sagacidade para
que nada fosse defeituoso na estrutura da arca. Mas, para que mes-
mo essa dádiva não fosse sem sucesso, era necessário que se
acrescentasse algo maior. Portanto, para que não meçamos o modo
de preservar-se a arca pela capacidade de nosso próprio critério,
Moisés nos ensina que as águas não foram restringidas de irromper-
se sobre a arca simplesmente por meio de argamassa ou vigamen-
tos, mas, antes, pelo secreto poder de Deus e pela interposição de
sua mão.

17. Durou o dilúvio quarenta dias. Moisés insiste enfaticamente


sobre esse fato para mostrar que o mundo inteiro ficou imerso nas
águas. Além disso, deve-se considerar como sendo o desígnio es-
pecial dessa narrativa que não atribuamos à sorte o dilúvio pelo qual
o mundo pereceu, por mais costumeiro que seja para os homens
lançar algum véu sobre as obras de Deus, com o qual porventura
obscureça ou sua bondade, ou seu juízo manifestado nelas. Visto,
porém, que se declara nitidamente que tudo quanto era florescente
na terra foi destruído, disso inferimos que o dilúvio constituiu um in-
disputável e magistral juízo divino; especialmente porque Noé sozi-
nho permaneceu seguro, porquanto ele havia abraçado, pela fé, a
palavra na qual a salvação estava contida. Ele então recorre à me-
mória que já mencionamos, a saber, quão desesperadora tem sido a
impiedade, e quão enormes os crimes dos homens pelos quais
Deus se viu induzido a destruir o mundo inteiro; enquanto que, por
causa de sua grande bondade, ele teria poupado sua própria obra
prima, caso visse ele que algum remédio mais brando pudesse ser
aplicado com eficácia. Ele une estas duas coisas, frontalmente
opostas uma à outra, a saber, que toda a raça humana seria destruí-
da, mas que Noé e sua família escapariam ilesos.
Desse fato aprendemos quão proveitoso foi para Noé, sem le-
var em conta o mundo, obedecer somente a Deus, o que Moisés de-
clara, não tanto com o objetivo de louvar o homem, mas sim de nos
convidar a imitarmos seu exemplo. Além disso, para que a multidão
de pecadores não nos afastasse de Deus, devemos suportar paci-
entemente quando os ímpios nos ridicularizarem, e assim triunfarem
sobre nós, até que o Senhor mostre, no final de tudo, que nossa
obediência foi aprovada por ele.
Nesse sentido, Pedro ensina que o livramento de Noé do dilúvio
universal foi uma figura do batismo [1Pe 3.21], como se quisesse di-
zer que o método da salvação, que recebemos através do batismo,
concorda com esse livramento de Noé. Visto que, também neste
tempo, o mundo está (como esteve) cheio de incrédulos, por isso é
necessário que nos separemos da maior multidão, para que o Se-
nhor nos arrebate da destruição.
Da mesma maneira, a Igreja é adequada e justamente compa-
rada à arca. Mas é preciso que retenhamos na mente a semelhança
pela qual elas correspondem mutuamente entre si; pois a Igreja tem
sua origem unicamente na palavra de Deus; porque, do mesmo
modo que Noé, crendo na promessa de Deus, juntou a si sua espo-
sa e seus filhos, para que, sob a indubitável aparência da morte, pu-
dessem emergir da morte, assim é oportuno que renunciemos o
mundo e morramos, para que o Senhor nos vivifique por meio de
sua palavra. Pois em nenhum outro lugar existe qualquer segurança
de salvação. Os papistas, porém, agem de forma ridícula, fabrican-
do uma arca sem a palavra.
C A P ÍT U L O 8

1. Lembrou-se Deus de Noé. Então Moisés se dirige mais particular-


mente àquela outra parte do tema que mostra que Noé não foi frus-
trado em sua esperança de salvação, a qual lhe foi divinamente pro-
metida. A lembrança de que Moisés fala deve referir-se não apenas
ao aspecto externo das coisas (por assim dizer), mas também ao
sentimento íntimo do santo homem. Aliás, é indubitável que Deus,
desde o primeiro momento em que acolheu Noé em sua proteção,
nunca se esqueceu dele; pois, na verdade, foi mediante um grande
milagre o fato de que ele não tenha perecido asfixiado na arca, com
falta de ar, submerso nas águas. E Moisés um pouco antes dissera
que, por haver Deus fechado secretamente a arca, as águas não
podiam penetrá-la.
Mas, como a arca flutuou sobre as águas até o quinto mês, a
demora pela qual o Senhor fez com que seu servo fosse ansiosa e
miseravelmente atormentado, poderia parecer implicar um tipo de
esquecimento. E não se deve questionar que seu coração se viu
agitado por vários sentimentos, quando ficou por tanto tempo manti-
do em suspense; pois poderia inferir que sua vida fora prolongada
para que se tornasse ainda mais miserável do que a vida de qual-
quer outro dentre o gênero humano. Pois sabemos que temos o
costume de imaginar que Deus esteja ausente, exceto quando te-
mos alguma sensível experiência de sua presença. E, embora Noé
tenazmente guardasse firme a promessa que havia abraçado até o
fim, contudo é provável que ele se visse seriamente assaltado por
várias tentações; e Deus, sem dúvida, propositadamente assim
exercitou sua fé e paciência. Pois, por que o mundo não foi destruí-
do em três dias? E com que propósito as águas, após haver coberto
os montes mais elevados, subiram alguns metros mais alto, senão
para que Noé e sua família se habituassem, com mais proveito, à
meditação sobre os juízos divinos e, quando o perigo passasse, pu-
dessem reconhecer que haviam recebido vários livramentos de mor-
te?
Portanto, por esse exemplo, aprendamos a descansar na provi-
dência de Deus, ainda quando pareça que ele já esquecera de nós;
porque, por fim, propiciando-nos socorro, ele testificará que foi aten-
cioso para conosco. Ora, se a carne nos persuadir à desconfiança,
então não devemos ceder à sua inquietude; mas, tão logo surja o
pensamento de que Deus já não cuida de nós, ou está dormindo, ou
distante, devemos clamar imediatamente por este escudo: “O Se-
nhor, que prometeu seu auxílio aos miseráveis, no devido tempo es-
tará presente conosco, para que de fato percebamos o cuidado que
ele tem por nós.”. Não é menos relevante o que se acrescenta logo
em seguida: que Deus se lembrou também dos animais, pois, se em
razão da salvação prometida ao homem, seu favor se estende à ali-
mária irracional e às bestas selvagens, o que presumiríamos ser seu
favor para com seus próprios filhos, em favor dos quais tão genero-
samente e de modo tão sagrado prometeu sua fidelidade?
Deus fez soprar um vento sobre a terra. Aqui vemos mais clara-
mente que Moisés está falando do efeito de Deus se lembrar de
Noé, a saber, para que no próprio ato e por uma prova segura, Noé
soubesse que Deus cuidava de sua vida. Pois quando Deus, por
seu secreto poder, fez secar a terra, ele fez uso do vento, cujo méto-
do empregou também para secar o Mar Vermelho. E assim ele testi-
ficaria que, como tinha as águas sob seu comando para prontamen-
te executar sua ira, assim agora ele mantinha os ventos em sua
mão para propiciar alívio. E embora aqui uma notável história seja
registrada por Moisés, somos ensinados que os ventos não surgi-
ram por acaso, mas sim pela ordem de Deus; como lemos no Salmo
104.4: “Fazes a teus anjos ventos”; e, outra vez, que Deus cavalga
sobre suas asas. Finalmente, a variedade, os movimentos contrários
e os conflitos comuns dos elementos combinam para render obedi-
ência a Deus. Moisés acrescenta ainda outra causa secundária pela
qual as águas foram diminuídas e voltaram à sua posição inicial. A
suma de tudo é que Deus, com o propósito de restaurar a ordem
que antes fora designada, recolheu as águas aos seus limites, de
modo que as águas atmosféricas, como se estivessem congeladas,
ficassem suspensas no ar; outras pudessem ficar ocultas em seus
abismos; outras fluíssem por diversos canais; e também o mar pu-
desse permanecer dentro de seus limites.
3. Ao cabo de cento e cinquenta dias. Alguns pensam que aqui se
registra todo o tempo, desde o início do dilúvio até o escoamento
das águas, e assim incluem no relato de Moisés os 40 dias nos
quais houve chuva contínua. Quanto a mim, faço a seguinte distin-
ção: que até o quadragésimo dia as águas surgiam gradualmente
pelo aumento do volume; então que permaneceram quase na mes-
ma posição ao longo de cento e cinquenta dias; pois ambas as so-
mas formam um período um pouco maior que seis meses e meio. E
Moisés diz que, ao término do sétimo mês, a diminuição das águas
foi de tal proporção que a arca apoiou-se sobre o pico mais alto de
um monte, ou tocou alguma terra. E, por esse espaço mais extenso
de tempo, o Senhor mostraria ainda mais claramente que a terrível
desolação do mundo não lhe sobreviera acidentalmente, mas era
uma notável prova de seu juízo, enquanto que o livramento de Noé
era uma magnificente obra de sua graça e digna de eterna lembran-
ça. Se, entretanto, computarmos o sétimo mês a partir do início do
ano (como fazem alguns), e não a partir do momento em que Noé
entrou na arca, então o escoamento das águas de que fala Moisés
ocorreu mais cedo, ou seja, a arca flutuou por cinco meses. Caso
essa segunda opinião seja aceita, teremos os mesmos dez meses;
pois o sentido será que, no oitavo mês após o começo do dilúvio,
apareceram os picos dos montes.
Quanto ao nome “Ararate”, eu sigo a opinião mais aceita. E não
vejo por que alguns querem negar aquilo que os autores antigos,
quase unanimemente, acreditam ser a Armênia onde ficavam os
montes mais altos. A paráfrase caldaica ressalta também a região
particular, a qual ele chama montes de Cardu, os quais outros cha-
mam de Cardueni. Mas, se essa for a verdade, a qual Josefo nos
passou com respeito aos fragmentos da arca encontrados ali em
seu tempo, cujos restos, no dizer de Jerônimo, permaneceram até
seu próprio tempo, prefiro deixar isso em aberto.

6. Ao cabo de quarenta dias. A partir disso podemos supor com que


profunda ansiedade o coração do santo homem se viu opresso. De-
pois de perceber que a arca repousou sobre terra firme, ainda não
ousou abrir a janela até o quadragésimo dia; não porque se sentisse
atordoado e apático, mas porque um exemplo tão aterrador da vin-
gança divina o afetara com tal temor e consternação combinados,
que, vendo-se livre de todo o juízo, permaneceu em silêncio no apo-
sento de sua arca. Por fim, ele solta um corvo, do qual pudesse re-
ceber uma indicação mais certa de que a terra havia secado. O cor-
vo, porém, nada percebendo além de charcos lamacentos, ronda de
um lado para outro e busca imediatamente o abrigo da arca. Não te-
nho dúvida de que Noé, intencionalmente, selecionou o corvo, pois
tinha certeza de que seria atraído pelo odor dos cadáveres, e assim
continuar voando, se a terra, com os animais mortos sobre ela, já
fosse exposta à vista; mas o corvo, voando de um lado para o outro,
não se afastou muito.
Eu gostaria de saber por que uma negativa, não colocada por
Moisés no texto hebraico, se introduziu nas versões Grega e Latina,
uma vez que ela muda inteiramente o sentido. Foi a partir disso que
se originou a fábula de que o corvo, havendo encontrado cadáveres,
se afastou da arca e abandonou seu protetor. Mais tarde, seguiram-
se alegorias fúteis, exatamente porque a curiosidade humana sem-
pre tem prazer em perder tempo. A pomba, porém, em sua primeira
saída, imitou o corvo, pois voou de volta à arca; mais tarde trouxe
um ramo de oliveira em seu bico; e, na terceira vez, não voltou mais,
preferindo desfrutar do ar livre e da terra.
Alguns escritores exercitam sua engenhosidade sobre o ramo
de oliveira, porque entre os antigos ele era o emblema da paz, como
o laurel o era da vitória. Mas eu, em vez disso, creio que, como a oli-
veira não cresce nos montes, e não é uma árvore muito alta, o Se-
nhor dera a seu servo algum sinal a partir do qual ele pudesse inferir
que as regiões aprazíveis e produtivas de bons frutos estavam ago-
ra livres das águas do dilúvio. Porque a Vulgata diz que foi um ramo
com folhas verdes, aqueles que imaginam que o dilúvio começou no
mês de setembro tomam isso como uma confirmação de sua opini-
ão. Mas as palavras de Moisés não têm esse significado. E é bem
possível que o Senhor, querendo animar Noé, ofereceu à pomba al-
gum ramo que não estivesse murcho sob as águas.

15. Então disse Deus a Noé. Embora Noé não estivesse nem um
pouco aterrorizado ante o juízo divino, ainda assim sua paciência é
elogiada no seguinte: que ele, embora tendo a terra diante de si
como um lar, não se aventurou a sair da arca. Homens profanos po-
dem atribuir isso à timidez, ou mesmo à indolência; porém, santa é
aquela timidez que é produzida pela obediência da fé. Portanto, de-
vemos estar cientes de que Noé se viu restringido, por uma santa
modéstia, de dar-se ao desfrute da generosidade da natureza, até
que ouvisse a voz de Deus levando-o a agir assim.
Moisés resume isso em poucas palavras, mas é oportuno que
atentemos bem para o próprio fato. De fato, todos devem, esponta-
neamente, considerar quão grande deve ter sido a força do homem
que, após o incrível cansaço de um ano inteiro, quando o dilúvio
cessou e finalmente uma nova vida brilhou, mesmo assim não move
um pé de seu sepulcro, sem a ordem de Deus. Assim vemos que,
por um caminho contínuo de fé, o santo homem foi obediente a
Deus; porque, sob a sua ordem, ele entrou na arca, e ali permane-
ceu até que o Senhor lhe abrisse uma porta para que pudesse sair;
e porque ele preferiu permanecer numa imunda atmosfera a respirar
o ar livre, até que se assegurasse de que sua saída seria do agrado
de Deus. Até mesmo nas coisas simples, a Escritura nos recomenda
autocontrole, para que não façamos nada senão com uma santa
consciência. Quão imprudentes são os homens quando se endure-
cem em relação a assuntos religiosos, por agirem como bem lhe
apraz, sem levarem em consideração o conselho Deus!
E, de fato, não se deve esperar que Deus, a cada momento,
pronuncie, por meio de oráculos especiais, o que se deve fazer;
contudo nos cabe ouvir atentamente sua voz, a fim de que sejamos
persuadidos com certeza de que nada empreendemos senão o que
esteja em conformidade com sua palavra. Deve-se buscar ainda o
espírito de prudência e de conselho, o qual ele concede àqueles que
necessitam, que são humildes e obedientes aos seus mandamen-
tos. Nesse sentido, Moisés diz que Noé saiu da arca assim que,
confiando no oráculo divino, se certificou de que uma nova habita-
ção lhe era dada na terra.

17. Sejam fecundos e nela se multipliquem. Com essas palavras, o


Senhor desejava alegrar a mente de Noé e inspirá-lo à confiança de
que uma semente fora preservada na arca que se expandiria até
que repovoasse toda a terra. Em suma, promete-se a Noé a renova-
ção da terra até o fim, para que ele soubesse que o próprio mundo
estava encerrado na arca, e que a solidão e devastação, diante das
quais seu coração talvez desfalecesse, não seriam perpétuas.

20. Levantou Noé um altar ao Senhor. Visto que Noé dera muitas
provas de sua obediência, agora apresenta um exemplo de gratidão.
Essa passagem nos ensina que os sacrifícios foram instituídos des-
de o princípio para este fim: que os homens se habituassem, por
tais exercícios, a celebrar a bondade de Deus e a render-lhe ações
de graça. Para Deus, seria suficiente a simples confissão da língua,
sim, até mesmo o reconhecimento silencioso do coração; porém sa-
bemos de quantos estímulos nossa indolência necessita. Portanto,
quando outrora os santos pais professavam sua piedade diante de
Deus por meio de sacrifícios, estes de modo algum eram usados su-
perfluamente. Além disso, era justo que tivessem sempre diante de
seus olhos símbolos por meio dos quais fossem admoestados de
que não poderiam ter acesso a Deus, senão através de um media-
dor.
Agora, porém, a manifestação de Cristo já removeu essas anti-
gas sombras. Por isso mesmo, usemos aqueles auxílios que o Se-
nhor já prescreveu. Além disso, quando digo que os santos pais fi-
zeram uso de sacrifícios para celebrar os benefícios de Deus, refiro-
me a apenas um tipo de sacrifício, pois essa oferta de Noé corres-
ponde às ofertas pacíficas e às primícias. Aqui, porém, pode-se per-
guntar por qual motivo Noé ofereceu a Deus um sacrifício, visto que
não tinha um mandamento para fazê-lo. Respondo que, embora
Moisés não declare expressamente que Deus lhe ordenara a fazê-
lo, pode-se formar um juízo indubitável do que se segue, e até mes-
mo de todo o contexto: que Noé repousava sobre a palavra de
Deus, e que, ao depositar sua confiança no mandamento divino,
rendera esse culto que, indubitavelmente, sabia que seria aceitável
a Deus.
Já dissemos anteriormente que um animal de cada espécie fora
preservado separadamente; e declaramos com que objetivo isso foi
feito. Mas seria inútil separar animais para sacrifício, a menos que
Deus revelasse esse propósito ao santo Noé, que estava para ser o
sacerdote a oferecer as vítimas. Além disso, Moisés diz que os ani-
mais destinados aos sacrifícios são escolhidos dentre os animais
limpos. Mas é indubitável que Noé não inventara para si tal distin-
ção, visto que tal coisa não depende da escolha humana. Por isso,
podemos concluir que ele não fazia nada sem a autoridade divina.
Também imediatamente após isso, Moisés acrescenta que o aroma
do sacrifício foi aceitável a Deus. Portanto, deve-se observar esta
regra geral: que todos os serviços religiosos que não forem perfu-
mados com o aroma da fé são de mau cheiro diante de Deus. Por-
tanto, saibamos nós que o altar de Noé foi fundado na palavra de
Deus. E a mesma palavra era como sal para seus sacrifícios, para
que os mesmos não fossem insípidos.

21. E o Senhor aspirou o suave cheiro. Moisés denomina aquilo pelo


qual Deus foi apaziguado de “cheiro suave”, como se quisesse di-
zer: o sacrifício fora corretamente oferecido. Contudo, nada pode
ser mais absurdo do que supor que Deus fosse apaziguado pela
imunda fumaça de animais e de carne. Aqui, porém, Moisés, em
conformidade com seu costume, apresenta Deus com um caráter
humano com o propósito de acomodar-se à capacidade de um povo
ignorante. Pois nem mesmo se deve presumir que o rito do sacrifí-
cio, em si mesmo, fosse agradável a Deus como um ato meritório,
senão que devemos considerar o propósito da obra, e não nos confi-
narmos à forma externa. Pois, a que mais Noé se propôs, senão re-
conhecer que havia recebido sua própria vida, e a dos animais,
como dádiva somente da graça de Deus? Essa piedade exalou um
bom e suave cheiro diante de Deus; como lemos: “Que darei ao Se-
nhor por todos os seus benefícios para comigo? Tomarei o cálice da
salvação, e invocarei o nome do Senhor” [Sl 116.12,13].
E disse consigo mesmo. Eis o significado da passagem: Deus
decretara que de agora em diante não mais amaldiçoaria a terra. E
essa forma de expressão tem grande peso; pois, embora Deus nun-
ca retrate o que falara abertamente com seus lábios, porém somos
afetados mais profundamente quando ouvimos que ele fixara algo
em sua própria mente; porque um decreto desse tipo de modo al-
gum depende das criaturas. De modo resumido, certamente Deus
determinou que nunca mais destruiria o mundo por meio de um dilú-
vio.
No entanto, a expressão “Não tornarei a amaldiçoar” deve ser
entendida apenas em termos gerais, porque sabemos o quanto a
terra tem perdido de sua fertilidade desde que foi corrompida pelo
pecado do homem, e diariamente percebemos que ela está amaldi-
çoada de diversas maneiras. E, logo depois, o próprio Deus explica,
dizendo: “nem tornarei a ferir todo vivente”. Pois, nessas palavras,
ele não se refere a todo tipo de vingança, mas apenas àquela que
destruiria o mundo e traria ruína tanto ao gênero humano quanto
aos animais, como se quisesse dizer que ele restaurou a terra com
a seguinte condição: que de agora em diante ela não pereceria por
meio de dilúvio. Assim, quando o Senhor declara que bastaria ape-
nas um cativeiro de seu povo [Is 54.9], ele o compara às águas de
Noé, pelas quais decidiu que o mundo só seria submerso uma vez.
Porque é mau o desígnio íntimo do homem. O seguinte raciocí-
nio parece absurdo: se a perversidade do homem é tão profunda
que não cessa de provocar a ira de Deus, então isto necessaria-
mente traria destruição ao mundo. Além disso, é como se Deus se
contraditasse ao haver declarado previamente que o mundo seria
destruído por causa de sua iniquidade ser tão desesperadora. Aqui,
porém, devemos considerar mais profundamente o propósito de
Deus, pois a sua vontade era que houvesse uma sociedade humana
para habitar a terra. Se, contudo, tivessem que ser tratados segundo
seus méritos, então haveria necessidade de um dilúvio diário.
Por isso mesmo ele declara que, ao infligir punição ao segundo
mundo, ele o fará com o intuito de preservar a aparência externa da
terra, e não eliminará outra vez as criaturas com que a adornara. De
fato, nós mesmos podemos perceber que essa moderação tem sido
usada, tanto nos juízos gerais de Deus quanto nos especiais, que o
mundo ainda permanece em sua completude, e a natureza ainda re-
tém seu caminho. Além disso, visto que Deus, aqui, declara qual se-
ria o caráter dos homens até o fim do mundo, é evidente que toda a
raça humana está sob a sentença de condenação, por causa de sua
depravação e perversidade. E mais. A sentença não se refere so-
mente aos costumes corruptos, mas lemos que sua iniquidade é ina-
ta, da qual nada pode emanar senão males.
Apesar disso, pergunto de onde surgiu aquela falsa opinião so-
bre essa passagem, de que o pensamento é propenso ao mal, se-
não, como é provável, que a passagem foi corrompida por aqueles
que também disputam filosoficamente sobre a corrupção da nature-
za humana. Pareceu-lhes difícil aceitar que o homem se sujeitaria
ao pecado, como um escravo do diabo. Portanto, a fim de minimizar,
têm dito que o homem tinha uma propensão para os vícios. Mas
quando o Juiz celestial trovejou desde o céu, que seus próprios pen-
samentos eram maus, de que vale minimizar aquilo que, não obs-
tante, permanece inalterado?
Portanto, que os homens reconheçam que, pelo fato de terem
nascidos de Adão, são criaturas depravadas e, por isso, só podem
conceber pensamentos pecaminosos, até que se tornem nova cria-
ção em Cristo e sejam formados por seu Espírito para uma nova
vida. E não se deve duvidar de que o Senhor declara que a própria
mente do homem é depravada e totalmente contaminada pelo peca-
do; de modo que todos os pensamentos que dela procedem são
maus. Se tal é o defeito na própria fonte, segue-se que todos os afe-
tos humanos são maus e suas obras cobertas com a mesma corrup-
ção, visto que, necessariamente, decorrem dessa fonte corrompida.
Porquanto Deus não diz simplesmente que os homens às vezes
pensam mal, mas a linguagem é abrangente, circunscrevendo a ár-
vore com seus frutos.
Não é uma prova em contrário o fato de que muitas vezes os
homens profanos e carnais se destaquem em generosidade e em-
preendam propósitos aparentemente honrosos e produzam certas
evidências de virtude. Pois, visto que sua mente é corrompida com
descaso de Deus, com orgulho, amor próprio, ambição, hipocrisia e
fraude, ela não pode proceder de outra forma, senão que todos os
seus pensamentos se acham contaminados com os mesmos vícios.
Além disso, não podem pender para um fim correto; consequente-
mente, devem ser julgados como sendo o que realmente são: per-
vertidos e perversos. Pois tudo quanto há em tais homens, que nos
deleita sob o matiz de virtude, é como o vinho deteriorado pelo odor
do barril. Porque (como já dissemos) as próprias afeições da nature-
za, que em si mesmas são louváveis, ainda estão viciadas pelo pe-
cado original, e, por causa de sua imperfeição, têm se degenerado
de sua natureza peculiar; isso pode ser constatado no amor entre
marido e mulher, no amor dos pais para com os seus filhos, e assim
por diante. E a cláusula adicional, “desde sua mocidade”, declara
mais plenamente que os homens já nascem maus; a fim de mostrar
que, tão logo atingem a idade em que começam a formar pensa-
mentos, já revelam a corrupção radical da mente. Os filósofos, ao
transferirem para o hábito o que Deus aqui atribui à natureza, traem
sua própria ignorância. E não surpreende, pois nos agradamos e
nos lisonjeamos a tal ponto que nem sequer percebemos quão fatal
é o contágio do pecado, e que a depravação está impregnada em
todos os nossos sentidos.
Devemos, pois, nos submeter ao juízo de Deus, o qual denun-
cia o homem como estando tão escravizado pelo pecado que não
pode produzir nada bom e sincero. Entretanto, ao mesmo tempo,
devemos recordar que não se deve lançar nenhuma culpa sobre
Deus por aquilo que tem sua origem na queda do primeiro homem,
pela qual a ordem da criação foi subvertida. E, além do mais, deve-
se notar que os homens não estão isentos de culpa e condenação
mediante o pretexto dessa servidão; porque, embora todos se
apressem para o mal, contudo não são impelidos por qualquer força
extrínseca, e sim pela inclinação direta de seu próprio coração; e,
por fim, pecam não de outro modo, senão voluntariamente.

22. Enquanto durar a terra. Por essas palavras, o mundo é outra vez
completamente restaurado. Pois foi tão grande a confusão e desor-
dem que cobriram a terra, que havia necessidade de uma renova-
ção. Por causa disso, Pedro fala do mundo antigo como havendo
perecido no dilúvio [2Pe 3.6]. Além do mais, o dilúvio fora uma inter-
rupção da ordem da natureza. Pois os movimentos do sol e da lua
haviam cessado; não havia distinção de inverno e verão. Por isso
mesmo, o Senhor aqui declara ser de seu agrado que todas as coi-
sas recuperassem seu vigor e fossem restauradas às suas funções.
Os judeus erroneamente dividem o período de um ano em seis
partes, enquanto Moisés, ao colocar o verão em oposição ao inver-
no, divide o ano inteiro de uma maneira popular, isto é, em duas par-
tes. E não se deve duvidar de que por frio e calor ele designa os pe-
ríodos já referidos. Com as palavras “sementeira” e “ceifa”, ele indi-
ca aqueles benefícios que emanam da temperatura moderada da at-
mosfera para os homens. Caso se objete dizendo que essa estabili-
dade da temperatura não é percebida a cada ano, a resposta é sim-
ples: que a ordem do mundo é de fato perturbada por nossos vícios,
de modo que muitos de seus movimentos são irregulares: às vezes
o sol diminui seu calor peculiar – neve ou granizo vem no lugar do
orvalho; e o ar é agitado por várias tempestades; mas embora o
mundo não seja tão regulado a ponto de produzir uma perpétua uni-
formidade de estações, contudo percebemos que a ordem da natu-
reza prevalece até agora, que ocorrem anualmente inverno e verão,
que há uma constante sucessão de dias e noites, e que a terra pro-
duz seus frutos no verão e no outono. Além disso, pela expressão
“todos os dias da terra”, ele quer dizer “enquanto a terra durar”.
C A P ÍT U L O 9

1. Abençoou Deus a Noé. Dessa expressão inferimos com que pro-


fundo temor Noé se sentia desalentado, porque Deus, com muita
frequência e constância, passa a encorajá-lo. Pois quando Moisés,
aqui, diz que Deus abençoou a Noé e a seus filhos, sua intenção
não é simplesmente dizer que a bênção da fecundidade lhes fora
restaurada; mas que, ao mesmo tempo, o propósito de Deus con-
cernente à nova restauração do mundo lhes era revelado. Pois a
voz de Deus, pela qual ele lhes falava, fora acrescentada à bênção.
Sabemos que os animais irracionais não se reproduzem, senão pela
bênção de Deus; aqui, porém, Moisés celebra um privilégio que per-
tence exclusivamente aos homens. Portanto, para que os quatro ho-
mens e suas respectivas esposas, tomados de ansiedade, não duvi-
dassem do propósito para o qual foram libertados, o Senhor lhes
prescreve sua futura condição de vida, a saber, que reergueriam a
humanidade da morte para a vida.
Assim ele não só renova o mundo pela mesma palavra pela
qual antes o criara, mas dirige sua palavra aos homens, a fim de
que eles recuperassem o uso legítimo do matrimônio, soubessem
que o cuidado de produzir descendentes lhe é deleitoso, e tenham
confiança de que a descendência que procederá deles se difundirá
através de todas as regiões da terra, a ponto de torná-la outra vez
habitada, embora tivesse sido devastada e transformada em um de-
serto. Contudo, Deus não permitiu intercurso promíscuo, mas sanci-
onou de novo aquela lei do matrimônio que ordenara anteriormente.
E, embora a sua bênção, de alguma maneira, se estenda a relações
ilícitas, de modo que dessas relações se produza uma descendên-
cia, apesar disso, esse modo de reprodução é ilegítimo, pois só é le-
gítima aquela que procede da bênção divina expressamente decla-
rada.

2. Pavor e medo de vós. Isso diz respeito também, e principalmen-


te, à restauração do mundo, para que a soberania sobre o resto dos
animais permanecesse com os homens. E, embora após a queda do
homem os animais fossem dotados com nova ferocidade, contudo
ainda permanecia algum resquício daquele domínio sobre eles, o
qual Deus lhe havia conferido no princípio. Agora Deus promete
também que o mesmo domínio continuaria. De fato, vemos que os
animais selvagens avançam violentamente sobre os homens e dila-
ceram e rasgam muitos deles em pedaços; e, se Deus não restrin-
gisse maravilhosamente a fúria desses animais, a raça humana se-
ria totalmente destruída. Portanto, o que já dissemos a respeito da
impetuosidade do ar e da irregularidade das estações é também
aqui aplicável.
De fato, os animais selvagens prevalecem e se enfurecem con-
tra os homens de várias maneiras; e não é de admirar, porque, visto
que nos exaltamos perversamente contra Deus, por que os animais
não se levantariam contra nós? Entretanto, a providência de Deus é
um freio secreto a restringir a violência deles. Pois, como explicar o
fato que as serpentes nos poupem, senão porque Deus reprime a vi-
olência delas? E como explicar que tigres, elefantes, leões, ursos,
lobos e outros inúmeros animais selvagens não dilacerem, não ras-
guem e não devorem todo o gênero humano, senão porque são im-
pedidos por essa sujeição, como se fosse uma barreira? Portanto, o
fato de permanecermos em segurança deve ser atribuído ao cuida-
do e proteção especiais de Deus; porque, caso contrário, o que po-
deríamos esperar, visto que eles parecem ter nascido para nos des-
truir e ardem com furioso desejo de nos causar dano? Além disso, o
freio com que o Senhor restringe a crueldade dos animais selvagens
e os impede de nos atacar é um infalível temor e medo que Deus
implantou neles, para que pudessem reverenciar a presença dos ho-
mens.
Daniel, de modo especial, declara isto a respeito dos reis, a sa-
ber, que eles têm domínio porque o Senhor pôs o temor e o medo
deles, tanto nos homens quanto nos animais. Mas, como o temor
nos animais é a defesa da sociedade humana, assim, de acordo
com a medida da autoridade geral que Deus tem concedido aos ho-
mens sobre os animais, há nos homens, grande e pequenos, não
sei que marca oculta, que não permite que a crueldade dos animais
selvagens, por sua violência, prevaleça. Entretanto, aqui se nota ou-
tra vantagem que se estende mais amplamente, a saber, que os ho-
mens podem tornar os animais subservientes à sua própria conveni-
ência, e podem fazer diferentes usos deles, conforme seus desejos
e suas necessidades.
Portanto, o fato de que os bois se deixem acostumar ao uso do
jugo; que a ferocidade dos cavalos de tal modo seja subjugada que
os faz permitir que sejam montados; que se deixem arriar para car-
regar pesados fardos; que as vacas deem leite e permitam ser orde-
nhadas; que as ovelhas sejam mudas sob a mão do tosquiador; to-
dos esses fatos resultam desse domínio, o qual, embora grande-
mente diminuído, contudo não é inteiramente abolido.

3. Tudo o que se move e vive ser-vos-á será para alimento. O


Senhor vai mais além e concede animais para alimento, para que os
homens possam comer carne. E porque Moisés agora primeiramen-
te relata que esse direito foi dado aos homens, quase todos os co-
mentaristas inferem que, antes do dilúvio, ao homem não era lícito
comer carne, senão que seu único alimento era os frutos naturais da
terra. Mas o argumento não é sólido o bastante. Pois me apego ao
seguinte princípio: que Deus, aqui, não concede aos homens mais
do que havia previamente dado, mas simplesmente restaura o que
fora removido, para que outra vez tomassem posse daquelas boas
coisas das quais haviam sido privados. Porque, visto que outrora
haviam oferecido a Deus sacrifícios, e lhes fora também permitido
matar animais selvagens – dos quais também podiam tirar couros e
peles para fazerem vestimentas e tendas –, não vejo que proibição
os impediria de comer da carne.
Visto, porém, que é de pouca importância qual das opiniões
deve ser aceita, nada afirmo sobre o tema. Com razão, o que segue
deve ser considerado como sendo de maior importância: que comer
a carne dos animais nos é outorgado pela bondade de Deus; que
não nos apoderemos do que nosso apetite deseja, como fazem os
ladrões, nem ainda tiranicamente derramemos o sangue inocente do
gado; mas que apenas tomemos o que nos é oferecido pela mão do
Senhor. Temos ouvido o que Paulo diz: que temos a liberdade de
comer o que nos apetece, fazendo-o unicamente com a certeza da
consciência, mas aquele que imagina que tudo é limpo, para o tal é
limpo [Rm 14.14]. E de onde o homem tirou a ideia de que poderia
comer de todo e qualquer alimento que quisesse diante de Deus,
com uma consciência tranquila, e não com desenfreada liberdade, a
não ser com base em sua consciência de que tudo fora divinamente
entregue em sua mão mediante doação? Portanto (sendo o próprio
Paulo testemunha), a palavra de Deus santifica as criaturas, para
que com pureza e de um modo legítimo se alimentem delas [1Tm
4.5]. Por isso, devemos rejeitar totalmente aquele adágio que diz:
“que ninguém pode alimentar e revigorar seu corpo com um pedaço
de pão, sem, ao mesmo tempo, poluir sua alma”. Portanto, não de-
vemos duvidar que aprouve ao Senhor confirmar nossa fé, quando
declara expressamente, por intermédio de Moisés, que deu ao ho-
mem o livre consumo de carne, para que não comamos com consci-
ência duvidosa e vacilante. Mas, ao mesmo tempo, ele nos convida
à ação de graças. Por isso, Paulo também acrescenta a “oração” à
“palavra”, ao definir o método de santificação na passagem já men-
cionada.
E agora devemos conservar firmemente a liberdade que nos é
concedida pelo Senhor, a qual ele designou que fosse registrada em
tábuas públicas. Porque, por essa palavra, ele se dirigiu a toda a
posteridade de Noé, e torna comum esse dom a todas as eras. E
por que isso é feito, senão para que os fiéis ousadamente se certifi-
cassem de seu direito àquilo que, como sabem perfeitamente, pro-
cedeu de Deus, o Criador? Pois é uma tirania insuportável quando
Deus, o Criador de todas as coisas, nos franqueia a terra e o ar para
que por esse meio pudéssemos tirar alimento de sua própria dispen-
sa, e esses alimentos nos sejam vetadas por homem mortal que não
são capazes de criar nem mesmo um caracol ou uma mosca. Não
falo de uma proibição externa;1 mas assevero que se faz a Deus in-
júria atroz quando damos aos homens tal licença que lhes permite
pronunciar como ilícito aquilo que Deus designa como sendo legíti-
mo, e obriga à consciência àquilo que a palavra de Deus faculta,
com suas leis inventadas. O fato de que Deus proibiu ao seu antigo
povo o uso de animais impuros, visto que aquela exceção era ape-
nas temporária, Moisés aqui menciona rapidamente.
4. Carne, porém, com sua vida, isto é, com seu sangue, não co-
mereis. Há quem explique essa passagem do seguinte modo: “Não
podeis comer um membro decepado de um animal vivo”, o que tam-
bém é óbvio. Entretanto, visto que não existe uma conjunção copu-
lativa entre as duas palavras sangue e vida, não tenho dúvida de
que Moisés, ao falar da vida, acrescentou a palavra sangue para
melhor se fazer entender, como se quisesse dizer que a carne é, em
algum sentido, devorada com sua vida, quando é comida com seu
próprio sangue embutido. Portanto, a vida e o sangue não são ex-
pressos como sendo coisas diferentes, mas sendo a mesma coisa;
não porque o sangue é em si mesmo a vida, mas, pelo fato de os
elementos vitais residirem principalmente no sangue, ele é, no nos-
so entender, um emblema que representa a vida. E isso é expressa-
mente declarado a fim de que os homens sintam um horror mais in-
tenso de comer sangue. Pois se é algo selvagem e bárbaro devorar
vidas, ou ingerir carne viva, ao comer sangue, os homens revelam
sua insanidade.
Além disso, a tendência dessa proibição não é de modo algum
obscura, ou seja, a intenção de Deus é conduzir os homens à mode-
ração mediante a abstinência do sangue de animais; mas caso se
tornem desenfreados e ousem comer animais selvagens, então não
se restringirão de comer nem mesmo sangue humano. Entretanto,
devemos recordar que essa restrição era parte da antiga lei. Por
isso mesmo, o que Tertuliano relata, que em seu tempo era ilícito
entre os cristãos degustar o sangue de gado, tem o sabor de su-
perstição. Pois os apóstolos, ao recomendarem aos gentios a ob-
servância desse rito, por um curto tempo, não tinham a intenção de
introduzir em sua consciência qualquer dúvida, mas apenas evitar
que a liberdade, que era sagrada, resultasse em uma ocasião de
escândalo para os ignorantes e fracos.

5. Requererei vosso sangue, o sangue de vossa vida. Nessas


palavras, o Senhor declara mais explicitamente que ele não proíbe o
uso de sangue em consideração aos animais em si mesmos, mas
porque ele considera preciosa a vida dos homens; e porque o pro-
pósito único de sua lei é promover o exercício da comum humanida-
de entre eles. Portanto, ao traduzir a partícula (ach), porque, creio
que Jerônimo fez melhor do que os que a leem como um disjuntivo
adversativo: “do contrário, eu requererei vosso sangue”; porém, a
frase pode ser traduzida literalmente assim: “Certamente, requererei
o vosso sangue.”. Todo o contexto deve ser (em minha opinião) lido
assim: “E certamente vosso sangue, que está em vossa vida, ou
que é como vossa vida, isto é, que vos vivifica e vos revitaliza, no
que diz respeito a vosso corpo, eu requererei; da mão de todos os
animais eu o requererei; da mão do homem, da mão, digo, do ho-
mem, seu irmão, eu requererei da vida do homem.”.
É frívola a distinção pela qual os judeus apresentam quatro ti-
pos de homicídio; pois eu já expliquei o sentido simples e genuíno
da passagem, a saber, que Deus estima nossa vida de um modo tão
sublime, que não permitirá que o homicida fique impune. E, por vári-
as vezes, ele inculca isso com o intuito de tornar ainda mais detestá-
vel a crueldade dos que levantam mãos violentas sobre seus seme-
lhantes. E o fato de Deus assumir a defesa de nossa vida e declarar
que ele mesmo será o vingador de nossa morte, não é uma prova
banal do seu amor para conosco. Ao dizer que requer punição dos
animais pela violação da vida dos homens, ele nos dá isso como um
exemplo. Pois se, por amor ao homem, Deus se ira contra criaturas
irracionais que são movidas por instinto de se alimentar do ser hu-
mano, o que será do homem que, injusta e cruelmente, e contrarian-
do o senso da natureza, se lança contra seu irmão?

6. Se alguém derramar o sangue do homem. A cláusula no ho-


mem, que se adiciona aqui, tem a função de ampliação. Alguns a
explicam assim: “Diante de testemunhas.”. Outros a entendem da
seguinte maneira: “que pelo homem seu sangue seria derramado”.
No entanto, todas essas interpretações são forçadas. É preciso lem-
brar daquilo que eu disse: que essa linguagem expressa, antes, a
atrocidade do crime; porque quem matar um homem atrai sobre si o
sangue e a vida de seu irmão. De um modo geral, engana-se (em
minha opinião) quem pensa que a intenção aqui era meramente es-
tabelecer uma lei política, para punir os homicidas. De fato, eu não
nego que a punição que as leis ordenam, e que os juízes executam,
fundamenta-se nessa sentença divina; porém digo que essas pala-
vras são mais abrangentes. Está escrito: “homens sanguinários e
fraudulentos não chegarão à metade de seus dias” [Sl 55.23]. E ve-
mos que alguns morrem nas estradas, outros no fogo, e muitos em
guerras. Portanto, por mais que os magistrados sejam coniventes
com o crime, Deus envia executores de todas as partes para que
deem aos homens sanguinários sua recompensa. Deus assim ame-
aça e anuncia vingança contra o homicida, e ainda arma o magistra-
do com a espada para vingar o homicida, a fim de que o sangue dos
homens não seja derramado sem que haja punição.
Pois Deus fez o homem segundo sua imagem. Para maior
confirmação dessa doutrina, Deus declara não é tão solícito a res-
peito da vida humana de modo irresponsável ou sem qualquer pro-
pósito. De fato, os homens são indignos do cuidado divino, se o res-
peito fosse apenas com relação a si próprios; visto, porém, que por-
tam a imagem de Deus esculpida neles, Deus se julga violentado
em sua pessoa. Assim, embora nada tenham de propriamente seu
pelo que pudessem obter o favor de Deus, ele contempla nos ho-
mens seus próprios dons e é, exatamente por isso, levado a amar e
a cuidar deles.
Essa doutrina, contudo, deve ser cuidadosamente observada:
que ninguém pode ser injurioso para com seu irmão sem ferir ao
próprio Deus. Se essa doutrina estivesse profundamente enraizada
em nossa mente, seríamos muito mais relutantes em injuriar. Se al-
guém objetar alegando que essa imagem divina já foi totalmente
destruída, a resposta é simples: primeiro, que ainda existe ali algum
resquício dela, de modo que a dignidade que o homem possui não é
pequena; e, segundo, que o próprio Criador celestial, por mais cor-
rupto que seja o homem, ainda tem em vista o propósito de sua cria-
ção original; e, conforme seu exemplo, devemos considerar com
que objetivo ele criou os homens, e qual a excelência que lhes ou-
torgou acima dos demais seres viventes.

7. Mas sede fecundos, e multiplicai-vos. Mais uma vez, Deus di-


reciona a sua palavra para Noé e seus filhos, exortando-os à propa-
gação da descendência, como se quisesse dizer: “Veja que tenho a
intenção de cuidar e preservar o gênero humano, portanto tu igual-
mente estejas atento a isso.”. Ao mesmo tempo, ao ordenar-lhes a
preservação da semente, Deus os refreia do homicídio e dos injus-
tos atos de violência. No entanto, seu principal objetivo era aquele
ao qual já fiz referência: que a mente desanimada de Noé fosse en-
corajada. Pois, nessas palavras, está contido não só um mero pre-
ceito, mas também uma promessa.

8. Disse também Deus a Noé. Para que a memória do dilúvio não


lhes trouxesse novos terrores de que a terra fosse novamente inun-
dada sempre que o céu se cobrisse de nuvens, essa fonte de ansie-
dade é removida. E, certamente, se considerarmos a grande pro-
pensão da mente humana à desconfiança, não julgaremos que esse
testemunho fosse desnecessário até mesmo a Noé. De fato, ele fora
dotado com uma fé rara e incomparável, até o ponto de um milagre;
mas nenhuma força de constância poderia ser tão grande que essa
mui dolorosa e terrível vingança de Deus não abalasse. Portanto,
sempre que um grande e contínuo aguaceiro parecer ameaçar a ter-
ra com um dilúvio, uma barreira era interposta, na qual o santo ho-
mem pudesse confiar. Ora, embora seus filhos necessitassem dessa
confirmação mais do que ele, contudo o Senhor fala especialmente
a ele. E a cláusula que segue, “e a seus filhos que estavam com
ele”, deve referir-se a esse ponto. Pois, como é que Deus, ao esta-
belecer a sua aliança com os filhos de Noé, lhes ordena esperar
pelo melhor? Realmente, visto que se acham ligados com seu pai,
que é, por assim dizer, o representante da aliança, a ponto de esta-
rem ligados a Noé pela sua representação.
Além disso, não há dúvida de que era desígnio de Deus fazer
provisão para toda sua posteridade. Nem por isso ela era uma alian-
ça privada, confirmada com uma só família, mas uma aliança que é
comum a todo o povo e que prosperará em todos os tempos, até o
fim do mundo. E, realmente, visto que no tempo presente a impieda-
de transborda não menos que na época de Noé, é especialmente
necessário que as águas fossem restringidas por essa palavra de
Deus, com a eficácia de mil ferrolhos e trancas, para que não irrom-
pessem para nos destruir. Por isso mesmo, confiando nessa pro-
messa, olhemos para o último dia, quando o fogo consumidor purifi-
cará o céu e a terra.
10. E com todos os seres viventes que estão convosco. Embora
o favor que o Senhor promete se estenda também aos animais, não
é em vão que ele se dirija somente aos homens que, pela fé, são
aptos a perceber esse benefício. Usufruímos do céu e do ar em co-
mum com os animais, e respiramos o mesmo ar; porém, não é um
simples privilégio que Deus nos dirija sua palavra; desse fato pode-
mos aprender com que paternal amor ele nos busca. E aqui se re-
quer que se delineiem três passos distintivos. Primeiro, dando a de-
vida atenção à situação, Deus faz aliança com Noé e sua família
para que não tenham medo de outro dilúvio. Segundo, ele transmite
sua aliança à posteridade, não apenas para que, por intermédio de
sucessão contínua, o efeito alcance outras gerações, mas para que
os que mais tarde nascessem apreendessem também pela fé esse
testemunho, e viessem a concluir que a mesma coisa que fora pro-
metida aos filhos de Noé foi prometida também a eles. Terceiro, ele
declara que seria propício também aos animais irracionais, para que
o efeito da aliança para com eles fosse unicamente a preservação
de sua vida, sem lhes dar qualquer sentido e compreensão.
Por isso, podemos refutar a ignorância dos Anabatistas, os
quais negam que a aliança de Deus seja comum às criancinhas,
porquanto são destituídas da fé. Como se, verdadeiramente, quando
Deus promete salvação a mil gerações, os pais não eram partes in-
termediárias entre Deus e seus filhos, cujo ofício é (por assim dizer)
entregar a seus filhos, de geração em geração, a promessa recebi-
da de Deus. Mas tantos quantos afastam sua vida dessa proteção
de Deus (visto que a maioria dos homens ou despreza, ou ridiculari-
za essa aliança divina) merecem, por esse singular ato de ingrati-
dão, viver imersos em fogo eterno. Pois embora essa seja uma pro-
messa terrena, contudo Deus designa que a fé de seu povo seja
exercitada, para que estejam seguros de que, pela especial bonda-
de de Deus, uma habitação estável lhes é provida sobre a terra, até
que sejam reunidos no céu.

12. Este é o sinal de minha aliança. Um sinal é acrescentado à


promessa, no qual se exibe a maravilhosa bondade de Deus que,
com o propósito de confirmar nossa fé em sua palavra, não despre-
za fazer uso de tais auxílios. E, embora tenhamos discutido mais
plenamente sobre o uso de sinais no segundo capítulo, contudo,
com base nessas palavras de Moisés, afirmamos que é um erro se-
parar os sinais da palavra.
Por palavra quero dizer não aquilo de que os papistas se van-
gloriam e por meio do qual eles encantam pão, vinho, água e óleo
com seus sussurros mágicos; mas quero me referir àquela palavra
que pode fortalecer a fé, a qual o Senhor, aqui, claramente falou a
Noé e a seus filhos e, em seguida, acrescenta um selo como símbo-
lo de segurança. Portanto, se o sacramento for separado da palavra,
deixa de ser o que é. Ele deve ser, digo, um sinal vocal, para manter
sua força e não degenerar de sua natureza. E aquela ministração
dos sacramentos na qual a palavra de Deus é emudecida não só é
fútil e ridícula, mas arrasta consigo meras ilusões satânicas. Disso
também inferirmos que, desde o princípio, a propriedade peculiar
dos sacramentos era ser útil à confirmação da fé. Pois, certamente,
na aliança está inclusa aquela promessa à qual a fé deve responder.
A alguns parece absurdo que a fé seja sustentada por tais auxílios.
Mas aqueles que falam assim não ponderam, em primeiro lugar, so-
bre a grande ignorância e imbecilidade de sua mente; nem atribuem,
em segundo lugar, o louvor devido à operação do secreto poder do
Espírito. É obra exclusiva de Deus dar início e aperfeiçoar a fé; mas
ele o faz por aqueles instrumentos que julga ser bons; a livre esco-
lha destes está em seu próprio poder.

13. Porei nas nuvens meu arco. A partir dessas palavras, certos
teólogos eminentes têm negado que houvesse algum arco-íris antes
do dilúvio; mas isso é frívolo. Pois as palavras de Moisés não signifi-
cam que foi formado um arco, o qual não existia antes; mas signifi-
cam que uma marca foi gravada nele, a qual daria um sinal do favor
divino para com os homens.
Para que isso fique mais evidente, é bom relembrar o que já
dissemos em outro lugar: que alguns sinais são naturais; outros, ex-
traordinários. E, embora haja nas Escrituras muitos exemplos dessa
segunda classe de sinais, contudo são peculiares, e não pertencem
ao uso comum e perpétuo da Igreja. Pois como agrada ao Senhor
utilizar-se de elementos terrenos como meios de elevar a mente dos
homens, eu acredito que o arco celestial que outrora existira natural-
mente é aqui consagrado como sinal e garantia. Dessa forma, um
novo ofício lhe é designado; pois, considerando a sua própria natu-
reza, ele é, antes, um sinal de algo contrário ao que passou a signifi-
car, visto que é um prenúncio de chuva contínua.
Portanto, creio que este seja o significado dessas palavras:
“Sempre que a chuva nos assusta, olhemos para o arco. Pois, em-
bora ele pareça indicar que a chuva fará submergir a terra, contudo,
para você, ele é um penhor de permanente seca, e, desse modo,
ele lhe virá a ser motivo de mais confiança do que se você estivesse
sob um céu claro e sereno.”. Consequentemente, não devermos
contender com os filósofos a respeito do arco-íris; embora suas co-
res sejam o efeito de causas naturais, contudo, age com espírito
profano quem tenta privar a Deus do direito e autoridade que exerce
sobre suas criaturas.

15. Então me lembrarei de minha aliança. Ao apresentar Deus di-


versas vezes como o narrador, Moisés nos ensina que a palavra
ocupa o lugar principal, e que a partir dela devemos estimar os si-
nais. Entretanto, Deus fala segundo a maneira dos homens, quando
afirma que, ao ver o arco-íris, ele se lembraria de sua aliança. Mas
esse modo de falar tem referência à fé dos homens, para que refli-
tam sobre o fato de que Deus, sempre que estende seu arco sobre
as nuvens, não se esquecerá de sua aliança.

18. Os filhos de Noé. Moisés enumera os filhos de Noé não somen-


te porque está prestes a passar para a história seguinte, mas tam-
bém para ilustrar mais plenamente a força da promessa: “repovoarei
a terra”. Pois daqui podemos melhor conceber quão eficaz tem sido
a bênção de Deus, porque uma imensa multidão de pessoas proce-
deu, em tão pouco tempo, de um número tão pequeno de seres hu-
manos; e porque de uma só e tão pequena família procederam tan-
tas e tão numerosas nações.

20. Sendo Noé lavrador, passou a plantar uma vinha. Não enten-
do essas palavras no sentido de que, somente agora, Noé começou
a se dedicar ao cultivo da terra; mas, em minha opinião, acredito
que Moisés descreve que Noé, embora sendo um ancião, com uma
mente serena retornou ao cultivo da terra e aos seus antigos traba-
lhos. Entretanto, é incerto se ele já era ou não um viticultor. Geral-
mente acredita-se que o vinho estivera em uso antes desse tempo.
E essa opinião tem sido a mais aceita, pois propicia um honroso
pretexto para a justificativa do pecado de Noé. Quanto a mim, po-
rém, não parece provável que o fruto da videira, que sobressai a to-
dos os demais, tenha sido negligenciado e sem qualquer proveito.
Do mesmo modo, Moisés não diz que Noé se embriagara no primei-
ro dia em que o provara. Portanto, deixando essa questão indetermi-
nada, proponho antes o que devamos aprender da embriaguez de
Noé: que crime imundo e detestável é a embriaguez.
Embora o santo patriarca, até então, fosse um raro exemplo de
sobriedade e temperança, ao perder seu autocontrole, de uma ma-
neira vil e vergonhosa se prostra no chão, desnudo, a ponto de ser
motivo de riso para todos. Portanto, com que prudência devemos
cultivar a sobriedade, para que nada semelhante, ou ainda pior, nos
suceda! Outrora, o filósofo pagão2 afirmou que “O vinho é o sangue
da terra”; e, portanto, quando os homens, imoderadamente o derra-
mam em sua garganta, são justamente punidos por sua mãe. Recor-
demos, porém, que quando os homens, mediante vergonhoso abu-
so, profanam esse nobre e mui precioso dom de Deus, este se torna
o Vingador. E devemos estar cientes de que, pelo juízo de Deus,
Noé foi exposto publicamente como um espetáculo que serve de ad-
vertência aos outros, para que não venham a se intoxicar pela em-
briaguez.
Alguns dizem que certamente se deve desculpar o santo ho-
mem, que, havendo completado seu trabalho e tendo se embriaga-
do com o vinho, imagina que está simplesmente recebendo sua me-
recida recompensa. Deus, porém, o estigmatiza com uma eterna
marca de desgraça. O que, pois, presumimos que sucederá aos glu-
tões de ventre preguiçosos e insaciáveis, cujo único objeto de dis-
córdia é saber quem beberá a maior quantidade de vinho? E, embo-
ra esse tipo de correção fosse severo, contudo foi proveitoso ao ser-
vo de Deus, visto que ele foi reconduzido à sobriedade, para que,
não continuando na satisfação de um vício ao qual uma vez se en-
tregara, não se arruinasse; precisamente como vemos que os bêba-
dos, por fim, se tornam brutalizados por contínua intemperança.
22. Cam, pai de Canaã. Essa circunstância é acrescentada para
agravar a dor de Noé, pois, ele é ridicularizado por seu próprio filho.
Por isso, devemos manter sempre na memória que essa punição lhe
foi divinamente infligida, em parte porque sua falha não era de cará-
ter leve, em parte para que Deus, em sua pessoa, apresentasse
uma lição de temperança a todas as épocas. Em si, a embriaguez
tem como recompensa o seguinte fato: que aqueles que apagam de
si mesmos a imagem de seu Pai celestial se tornem motivo de riso
para seus próprios filhos. Pois certamente, tanto quanto possível, os
ébrios subvertem seu próprio entendimento e se privam ao máximo
da razão, a ponto de degenerar-se em animais irracionais. E recor-
demo-nos que, se o Senhor se vingou tão seriamente de uma única
transgressão do santo homem, ele certamente será um vingador
não menos severo contra os que vivem diariamente embriagados; e
disso temos exemplos suficientemente numerosos diante de nossos
olhos.
Enquanto isso, por rir-se desdenhosamente de seu pai, Cam re-
vela seu próprio caráter depravado e maligno. Bem sabemos que os
pais, depois de Deus, devem ser profundamente reverenciados; e,
se não houvesse nem livros, nem sermões, a própria natureza nos
inculca constantemente essa lição. O consenso popular concorda
que a piedade para com os pais é a mãe de todas as virtudes. Por-
tanto, Cam teria sido de uma disposição excessivamente ímpia, per-
versa e depravada; posto que ele não somente tomou gosto pelo
opróbrio do pai, mas também se dispôs a lhe expor a seus irmãos. E
isso não se constitui uma leve ocasião de ofensa; primeiro, que Noé,
o ministro da salvação aos homens e o principal restaurador do
mundo, em extrema velhice, ficou embriagado em sua casa; e, se-
gundo, que o ímpio e perverso Cam tivesse saído do santuário de
Deus. Este selecionou oito almas para ser uma santa semente, to-
talmente purificada de toda e qualquer corrupção, para a renovação
da Igreja; mas o filho de Noé mostra quão necessário é que os ho-
mens sejam refreados por Deus, por mais que sejam exaltados por
privilégios.
A impiedade de Cam nos prova quão profunda é a raiz da per-
versidade nos homens; e que ela produz continuamente seus bro-
tos, exceto onde o poder do Espírito prevalece sobre ela. Mas se, no
sagrado santuário de Deus, no meio de tão exíguo número, se pre-
servou um diabo, não nos maravilhemos se hoje, na Igreja, conten-
do uma multidão muito maior de pessoas, os maus se achem mistu-
rados com os bons. Nem há qualquer dúvida de que a mente de
Sem e Jafé foi gravemente ferida quando perceberam em seu pró-
prio irmão tão grande escárnio, e, por outro lado, seu pai vergonho-
samente prostrado ali no chão. Que loucura tão vil foi vista no prínci-
pe do novo mundo! E o santo patriarca da Igreja não podia sur-
preendê-los menos do que eles tivessem visto a própria arca que-
brada, lançada em pedaços, partida e destruída. Entretanto, sua
magnanimidade vence também o motivo desse escândalo, e o es-
conde por sua modéstia.
Somente Cam se apodera avidamente da oportunidade para ri-
dicularizar e injuriar a seu pai; exatamente como os homens perver-
sos estão acostumados a aproveitar as ofensas dos outros, as quais
podem servir de pretexto para entregarem-se ao pecado. E sua ida-
de o torna menos desculpável, porquanto não era um jovem lascivo
que, por sua irrefletida gargalhada, se deixasse trair por sua própria
insensatez, visto que sua idade já passara de 100 anos. Portanto, é
provável que ele perversamente tenha insultado dessa maneira a
seu pai querendo conquistar para si a licença para pecar impune-
mente. Hoje vemos muitos agirem assim, os quais, com muito em-
penho espionam as falhas de pessoas santas e piedosas com o ob-
jetivo de, sem qualquer pudor, se entregarem a toda e qualquer ini-
quidade; inclusive tomam as falhas de outras pessoas como ocasião
de endurecimento para assim menosprezarem a Deus.

23. Então Sem e Jafé tomaram uma capa. Aqui a piedade e a mo-
déstia dos dois irmãos são elogiadas; mas para que a dignidade de
Noé não fosse rebaixada em sua estima e sempre promovessem e
mantivessem íntegra a reverência que possuíam, Sem e Jafé desvi-
aram seus olhos de contemplar a desgraça de seu pai. E assim de-
ram prova do respeito que tinham pela honra de seu pai, presumin-
do que seus próprios olhos seriam contaminados se contemplas-
sem, voluntariamente, a nudez pela qual ele era desonrado. Ao
mesmo tempo, também levam em conta sua própria modéstia. Pois
(como foi dito no terceiro capítulo) há alguma coisa imensamente
vergonhosa na nudez do homem, que raramente alguém nu ousa
olhar para si mesmo, mesmo quando não há ninguém vendo. Eles
censuram ainda a ímpia imprudência de seu irmão por não poupar o
seu pai.
Disso, pois, podemos aprender quão aceitável a Deus é aquela
piedade da qual o exemplo aqui registrado recebe um sinal inco-
mum do Espírito. Mas, se a piedade para com um pai terreno era
uma virtude tão excelente e tão digna de louvor, quão grande deve
ser a devoção de piedade com a qual a santa majestade de Deus
deve ser adorada! Os papistas se tornam ridículos ao desejarem en-
cobrir a imundícia de seu ídolo, sim, as abominações de todo o seu
imundo clero, com a capa de Sem e Jafé. Omito declarar quão gran-
de é a diferença entre a desgraça de Noé e a odiosa vileza de tan-
tos crimes que contaminam o céu e a terra. Mas é necessário que o
Anticristo e seus bispos mitrados, com toda aquela ralé, provem ser
eles mesmos legítimos pais, caso queiram que se lhes renda algu-
ma honra.

24. Despertando Noé de seu vinho. Pode parecer a alguns que


Noé, embora tivesse motivo justo para ira, se conduziu com a míni-
ma modéstia e seriedade; e que ele deveria, ao menos, haver pran-
teado em silêncio seu pecado diante de Deus; e ainda, envergonha-
do, haver dado prova de seu arrependimento diante dos homens.
Mas agora, como se não houvera cometido nenhuma ofensa, ele
age com excessiva severidade contra seu filho. Moisés, entretanto,
não relata aqui as censuras pronunciadas por Noé sob o incitamento
da raiva e ira, mas, antes, o apresenta falando profeticamente. Por
isso não devemos duvidar de que o santo homem se sentiu real-
mente humilhado (como era de se esperar), lamentando a sua falha,
e honestamente refletiu sobre seus próprios erros; agora, porém,
havendo recebido perdão, e sua condenação sendo removida, ele
segue em frente como o arauto do juízo divino.
De fato, não se deve duvidar de que o santo homem, dotado
com uma mansa disposição, e sendo ele um dos melhores pais, te-
ria pronunciado essa sentença sobre seu filho com a mais amarga
tristeza no coração. Pois ele o via miraculosamente preservado en-
tre os poucos que se salvaram, e tendo um lugar entre a própria flor
da raça humana. Agora, portanto, quando, com sua própria boca, se
vê obrigado a separá-lo da Igreja de Deus, sem dúvida teria lamen-
tado profundamente a maldição lançada sobre seu filho. Mas, por
esse exemplo, Deus quis admoestar-nos de que devemos manter a
constância de nossa fé, se em algum momento virmos os que fra-
cassam e que vivem bem unidos a nós, e que nosso espírito não
deve angustiar-se, e mais, que devemos exercer a severidade que
Deus nos impõe, a ponto de não pouparmos nem mesmo nossas
próprias entranhas. E, considerando que Noé não pronuncia uma
sentença tão áspera, exceto por inspiração divina, cabe-nos inferir
da severidade da punição quão abominável à vista de Deus é o ím-
pio desprezo contra os pais, visto que perverte a sacra ordem da na-
tureza e viola a majestade e autoridade de Deus na pessoa daque-
les a quem ele tem confiado o comando em seu lugar.

25. Maldito seja Canaã. Pergunta-se, em primeiro lugar, por que


Noé, em vez de pronunciar a maldição sobre seu filho, inflige a se-
veridade da punição – a qual aquele filho bem merecia – sobre seu
inocente neto, visto que não parece consistente com a justiça de
Deus visitar os crimes dos pais nos seus filhos? Mas a resposta é
bem conhecida, a saber, que Deus, embora persiga seu curso de ju-
ízos sobre os filhos e os netos dos ímpios, contudo, ao irar-se contra
eles, não se ira contra o inocente, porque até mesmo eles são en-
contrados em falta. Portanto, não há obscuridade no ato de vingar-
se dos pecados dos pais nos seus filhos réprobos, visto que, neces-
sariamente, todos aqueles a quem Deus tem privado de seu Espírito
estão sujeitos à sua ira.
Mas é surpreendente que Noé amaldiçoasse seu neto e igno-
rasse a seu filho Cam, o autor do crime, sem mencioná-lo. Os ju-
deus imaginam que a razão disso deve ser remontada ao favor es-
pecial de Deus; e que, apesar de o Senhor ter outorgado a Cam tão
grande honra, a maldição foi transferida dele para seu filho. Mas
essa hipótese é fútil. Certamente, a meu ver, não há dúvida de que
a punição foi estendida até mesmo contra a sua posteridade, para
que a severidade dela viesse a ser ainda mais evidente, como se o
Senhor proclamasse publicamente que a punição de um homem
não o satisfaria, mas que lançaria maldição também sobre a posteri-
dade do ofensor, de modo que ela se estendesse ao longo das suas
sucessivas gerações. Ao mesmo tempo, o próprio Cam está tão lon-
ge de ser isentado, que Deus, ao envolver os descendentes de Cam
em seu juízo, agrava sua própria condenação.
Propõe-se ainda outra questão, a saber, por que entre os mui-
tos filhos de Cam, Deus escolhe um para ser punido? Mas, para que
aqui nossa curiosidade não se intensifique tão livremente, recorde-
mos que os juízos de Deus não são em vão chamados de “um abis-
mo profundo”, e que seria algo degradante se Deus, diante de cujo
tribunal todos um dia haverão de comparecer, se sujeitasse aos nos-
sos julgamentos, ou, antes, à nossa louca ousadia. Ele escolhe a
quem bem lhe apraz para mostrar um exemplo de sua graça e bon-
dade; a outros, ele designa a um propósito diferente, para que se-
jam provas de sua ira e severidade. E, embora a mente dos homens
esteja cega, que cada um de nós, consciente de nossa própria debi-
lidade, aprenda a atribuir louvor à justiça de Deus, e não lançar-se,
com insana audácia, no profundo abismo.
Enquanto Deus manteve toda a semente de Cam execravel-
mente debaixo da maldição, ele menciona nominalmente os cana-
neus, como aqueles a quem ele amaldiçoaria mais do que todos os
outros. E desse fato inferimos que esse juízo procedeu de Deus,
porque foi provado pelo próprio fato ocorrido. Qual seria certamente
a condição dos cananeus, Noé não poderia saber por meios huma-
nos. Por isso mesmo, nas coisas obscuras e ocultas, o Espírito diri-
giu sua língua.
Permanece ainda outra dificuldade; porque, visto que a Escritu-
ra ensina que Deus se vinga dos pecados dos homens até a terceira
e quarta geração, um limite é estabelecido à sua; mas a vingança
aqui mencionada se estende até a décima geração. Minha resposta
é que essas palavras bíblicas não têm a intenção prescrever a Deus
uma lei, da qual ele não pode afastar-se tanto, a ponto de não ter a
liberdade de punir os pecados além de quatro gerações. O que deve
ser observado aqui é a comparação estabelecida entre punição e
graça, pela qual somos ensinados que Deus, ainda que seja um jus-
to vingador dos pecados, é ainda mais disposto a aplicar a sua mi-
sericórdia. Portanto, que a sua liberdade permaneça inquestionável,
isto é, que a sua vingança se estenda até onde lhe agrade.
Seja servo dos servos. Esse hebraísmo significa que Canaã
seria o último, até mesmo entre os servos, como se fosse dito: “Sua
condição será não só servil, mas pior do que a da servidão co-
mum.”. Contudo, o trovejar dessa severa e terrível profecia parece
fraco e ilusório, uma vez que os cananeus superaram em força e em
riquezas, e vieram a ser donos de um extenso domínio. Onde, pois,
se encontra essa servidão? Em primeiro lugar, respondo que, embo-
ra Deus, ao ameaçar os homens não execute imediatamente o que
anuncia, suas ameaças nunca são frágeis e ineficazes. Em segundo
lugar, que os juízos de Deus nem sempre são exigidos diante de
nossos olhos, nem compreendidos por nossa razão carnal.
Os cananeus, havendo sacudido o jugo da servidão, o qual lhes
fora divinamente imposto, continuavam ainda a conservar para si o
império. Mas, embora triunfassem por algum tempo, contudo, aos
olhos de Deus, sua condição não é considerada livre. Precisamente
como quando os fiéis são oprimidos de maneira iníqua, e tiranica-
mente perturbados pelos perversos, a sua liberdade espiritual não é
extinta aos olhos de Deus. Devemos, pois, nos contentar com esta
prova do juízo divino: que Deus prometeu a seu servo Abraão o do-
mínio da terra de Canaã e, por fim, condenou os cananeus à des-
truição. Mas, porque o Papa tão enfaticamente insiste em dizer que
algumas vezes ele profere profecias – como fez inclusive Caifás [Jo
11.51] –, para que não pareçamos recusar-lhe tudo, não nego que o
título com que ele se adorna lhe fosse imposto pelo Espírito de
Deus: “Seja ele servo dos servos”, no mesmo sentido em que era
Canaã.

26. Bendito seja o Senhor, Deus de Sem. Noé abençoa seus ou-
tros filhos, mas de uma maneira diferente. Pois ele coloca Sem no
posto mais elevado de honra. E essa é a razão por que Noé, ao
abençoá-lo, irrompe em louvor a Deus, sem levar em conta a condi-
ção do homem. Pois os hebreus, quando estão falando de alguma
rara e transcendente excelência, elevam seus pensamentos a Deus.
Portanto, o santo homem, ao perceber que a mais exuberante graça
de Deus se destinava a seu filho Sem, irrompe em ação de graça.
Disso inferimos que ele falava não da razão carnal, mas, antes, tra-
tava dos secretos favores de Deus, cujo resultado seria adiado a um
período remoto. Finalmente, por essas palavras declara-se que a
bênção de Sem seria divina e celestial.

27. Engrandeça Deus a Jafé. Nas palavras hebraicas (Japhthe)


e (Japheth), há uma elegante alusão, pois a raiz da palavra é
(pathah), a qual, entre os hebreus, significa “seduzir com palavras
suaves” ou “atrair para uma direção ou outra”. Aqui, contudo, quase
todos os comentaristas a tomam no sentido de engrandecer. Se
essa explanação for aceita, o significado será que a posteridade de
Jafé, que por algum tempo seria dispersa e removida para longe das
tendas de Sem, por fim seria aumentada, de modo que quase se lhe
equipararia e habitariam juntos, como em um lar comum. Em vez
disso, porém, eu aprovo a outra versão: “Deus, bondosamente, trará
de volta, ou inclinará a Jafé.”. Seja qual for a interpretação que se-
guirmos, Noé prediz que haveria uma dissensão temporária entre
Sem e Jafé, embora retenha os dois em sua família e os declara
seus herdeiros legítimos; e que mais tarde viria o tempo em que ou-
tra vez se uniriam em um só corpo e teriam um lar comum.
Contudo, é absolutamente certo que aqui se pronuncia uma
profecia concernente a algo desconhecido para o homem, da qual,
dado o modo como se cumpriu, somente Deus poderia ser o seu
Autor. Dois mil anos e mais alguns séculos se passaram, antes que
os gentios e os judeus se congregassem em uma só fé. Então os fi-
lhos de Sem, dos quais a maioria se revoltou e se retirou da santa
família de Deus, se juntou e habitou sob o único tabernáculo. Tam-
bém os gentios, a descendência de Jafé, que por muito tempo foram
peregrinos e fugitivos, foram recebidos no mesmo tabernáculo. Pois
Deus, por uma nova adoção, formou um povo daqueles que viveram
separados, e confirmou uma união fraterna entre as partes separa-
das. Isso é feito pela doce e mansa voz de Deus, a qual ele procla-
mou no evangelho; e essa profecia está ainda recebendo diariamen-
te seu cumprimento, visto que Deus convida as ovelhas dispersas
para formar seu rebanho, e reunir, de todos os lados, aqueles que
se assentarão com Abraão, Isaque e Jacó, no reino do céu.
Realmente é um extraordinário fortalecimento de nossa fé saber
que a vocação dos gentios foi não apenas decretada no eterno con-
selho de Deus, mas também publicamente declarada pela boca do
patriarca, para que não pensemos que foi por acidente ou por acaso
que a herança da vida eterna foi, de modo indiscriminado, oferecida
a todos. Mas a forma da expressão “e habite ele [Jafé] nas tendas
de Sem”, nos recomenda aquela mútua sociedade que deve existir e
deve ser fomentada entre os fiéis. Pois, enquanto Deus escolhera
para si uma Igreja da descendência de Sem, mais tarde ele esco-
lheu os gentios, juntamente com os filhos de Sem, sob a seguinte
condição: que eles se uniriam àquele povo que era herdeiro da ali-
ança da vida.

28. Noé viveu. Embora Moisés declare sucintamente a idade do


santo homem, e não registre sua história e os memoráveis eventos
de sua vida, contudo aquelas coisas que são certas e que as Escri-
turas celebram em outro lugar devem voltar à nossa mente. No es-
paço de cento e cinquenta anos, a descendência de seus três filhos
se tornou tão numerosa que experimentara suficiente e abundante
prova da eficácia da bênção divina: “Crescei e multiplicai-vos.”. Noé
vê, não apenas uma cidade, abarrotada com seus netos, nem sua
semente expandida meramente em trezentas famílias, mas muitas
nações oriundas de um de seus filhos, que habitariam extensas regi-
ões.
Já que era uma visível representação do divino favor para com
ele, esse espantoso aumento sem dúvida o encheria de infindo júbi-
lo. Pois Abraão era quase de cinquenta anos de idade quando Noé,
seu ancestral, morreu. Entretanto, ele se viu obrigado a contemplar
muitas coisas que afligiriam seu santo peito com indizível tristeza.
Para omitir outras coisas, ele viu na família de Sem o santuário de
Deus – no qual os filhos de Jafé haveriam de ser recebidos – destru-
ído, ou, ao menos, dilapidado e dilacerado. Pois, embora o próprio
pai de Abraão, tendo abandonado suas origens, erigiu para si um ta-
bernáculo profano, de fato, ainda restou uma parte bem pequena
dos que adoravam a Deus com confiança e de acordo com uma fé
pura. Com que tormentosas dores essa terrível confusão o teria afe-
tado, não podemos expressar suficientemente por meio de palavras.
Mas, desse fato, podemos saber que os olhos de sua fé foram ex-
cessivamente atenciosos, que não deixaram de contemplar a graça
de Deus na preservação de sua Igreja, que naquele tempo estava
oprimida pela perversidade dos homens.

1 Por proibição externa, é provável que Calvino esteja se referindo àquilo que pode ser im-
posto pelo magistrado durante um período de escassez, ou para algum propósito mera-
mente civil.
2 Possivelmente, uma referência ao filósofo naturalista romano Plínio (23-79 d.C.).
C A P ÍT U L O 1 0

1. São estas as gerações. Se alguém quiser examinar mais acura-


damente as genealogias relatadas por Moisés neste capítulo, e no
seguinte, não condeno seu esforço. E alguns intérpretes têm aplica-
do com sucesso sua diligência e estudo sobre esse ponto. No que
depender de mim, que eles desfrutem dos frutos de seus trabalhos.
Entretanto, é suficiente referir brevemente àquelas coisas que consi-
dero ser mais proveitosas de ser notar, e em razão das quais supo-
nho que essas genealogias foram escritas por Moisés. Primeiro,
nesses simples nomes temos ainda algum fragmento da história do
mundo, e o capítulo seguinte mostrará quantos anos se passaram
entre a data do dilúvio e o tempo em que Deus fez sua aliança com
Abraão.
Esse segundo começo da raça humana é especialmente digno
de ser conhecido; e detestável é a ingratidão dos que, quando ouvi-
ram de seus pais e avós da maravilhosa restauração do mundo em
tão pouco tempo, voluntariamente se esqueceram da graça e da sal-
vação de Deus. Até mesmo a memória do dilúvio foi inteiramente
perdida pela maioria. Bem poucos se importavam por que meios ou
com que finalidade eles haviam sido preservados. Muito tempo de-
pois, visto que o perverso esquecimento dos homens os tornou in-
sensíveis ao juízo e à misericórdia de Deus, abriu-se uma porta às
mentiras de Satanás, por cujo artifício sucedeu que os poetas pa-
gãos difundiram amplamente fábulas fúteis e mesmo nocivas, pelas
quais se adulterou a verdade a respeito das obras de Deus. A bon-
dade de Deus, pois, triunfou maravilhosamente sobre a perversida-
de dos homens, ao conceder um prolongamento da vida a seres tão
ingratos, brutais e bárbaros. Ora, para os homens capciosos (que,
contudo, não pensam ser absurdo recusar-se a reconhecer um Cria-
dor do mundo), um crescimento tão súbito da raça humana parece
incrível, e, portanto, ridicularizam-no como uma fábula. De fato, ad-
mito que, se decidirmos avaliar o que Moisés relata por nossa pró-
pria razão, isso pode considerado como fábula; agem, porém, mui
perversamente quem não atenta para o propósito do Espírito Santo.
Pergunto, pois, o que mais pretendia o Espírito Santo senão
que a descendência de três homens fosse aumentada, não por mei-
os naturais, ou de uma maneira comum, e sim pelo incomum exercí-
cio do poder de Deus, para o propósito de repovoar plenamente a
terra? Os que consideram esse milagre divino como sendo uma fá-
bula em razão de sua grandeza, creriam muito menos que Noé e
seus filhos, com suas respectivas esposas, respiraram nas águas, e
que os animais viveram quase um ano inteiro sem sol e ar. Esta,
pois, é uma gigantesca loucura: sustentar como ridículo o que é dito
a respeito da restauração da raça humana, pois nela se exibe o ad-
mirável poder de Deus. Quão preferível seria, na história desses
eventos – os quais Noé viu com seus próprios olhos, e não sem
grande admiração –, contemplar a Deus, admirar seu poder, cele-
brar sua bondade e reconhecer sua mão, não menos repleta de mis-
térios em restaurar, do que em criar o mundo?
Devemos, contudo, observar que nas três relações genealógi-
cas que Moisés fornece, nem todos os chefes das famílias são rela-
cionados, mas são registrados apenas aqueles dentre os netos de
Noé que foram os príncipes de nações. Pois, quando alguém se so-
bressaía entre seus irmãos, em talento, valor, esforço, ou outros do-
tes, esse obtinha para si um nome e poder, de modo que os demais,
mantendo-se sob sua sombra, lhe concediam espontaneamente a
prioridade. Portanto, entre os filhos de Jafé, de Cam e de Sem, Moi-
sés enumera somente aqueles que foram célebres e por cujos no-
mes o povo foi chamado. Além disso, embora não saibamos ao cer-
to por que Moisés começa com Jafé e, somente depois menciona
Cam, é provável que o primeiro lugar fosse dado aos filhos de Jafé
porque, havendo peregrinado por muitas regiões, e tendo inclusive
atravessado o mar, se afastaram mais de seu país; e, visto que es-
sas nações eram menos conhecidas aos judeus, Moisés alude a
elas sucintamente. Ele designa o segundo lugar aos filhos de Cam,
cujo conhecimento, em razão de sua vizinhança, era mais familiar
aos judeus. Visto, porém, que ele havia determinado compor a histó-
ria da Igreja numa narrativa contínua, ele transfere a descendência
de Sem, da qual a Igreja floresceu, para o último lugar. Portanto, a
ordem em que são mencionados aqui não é a de dignidade, visto
que Moisés põe em primeiro lugar os que ele queria considerar rapi-
damente, de modo menos detalhado. Além disso, temos que obser-
var que os filhos deste mundo são exaltados por certo tempo, de
modo que pareça que toda a terra foi criada para o benefício deles,
sendo sua glória transitória e evanescente; enquanto que a Igreja,
numa condição vil e desprezível, como se estivesse se arrastando
pelo chão, é divinamente preservada, até que, por fim, em seu devi-
do tempo, Deus erga sua cabeça.
Já declarei que deixo a outros a minuciosa investigação dos no-
mes aqui mencionados. A razão de alguns deles serem citados é
manifestada na Escritura, tais como Cuxe, Mizraim, Madai, Canaã, e
outros como tais; com respeito a alguns outros, há hipóteses prová-
veis; em outros, a obscuridade é grande demais para permitir que se
chegue a alguma conclusão; e aquelas invenções que os intérpretes
aduzem são, em parte, distorcidas e forçadas demais; e, em parte,
enfadonho e sem qualquer pretexto justificável. Indubitavelmente,
parece ser a parte de uma curiosidade frívola buscar em cada um
desses nomes nações definidas e distintas. Quando Moisés diz que
as ilhas dos gentios foram divididas pelos filhos de Jafé, entende-
mos que as regiões para além do mar foram repartidas entre eles.
Pois a Grécia e a Itália, e outras ilhas continentais – bem como Ro-
des e Chipre –, são chamadas pelos hebreus de ilhas em razão da
interposição do mar. Disso inferimos que somos oriundos dessas
nações.

8. Cuxe gerou a Ninrode. É indubitável que Cuxe foi o príncipe dos


etíopes. Moisés relata a singular história de seu filho Ninrode, por-
que começou a ser sobremodo eminente. Além disso, eu interpreto
assim a passagem: que a condição dos homens era naquele tempo
moderada, de modo que, se alguns suplantavam a outros, não o fa-
ziam para serem dominadores, nem para assumirem para si o poder
régio; mas, se contentando com um grau de dignidade, governavam
os demais por meio de leis civis, e detinham mais autoridade do que
poder. Para Justino, baseado em Trogus Pompeius, essa fora a
mais antiga condição do mundo.
Ora, Moisés afirma que Ninrode, esquecendo-se de que era ho-
mem, tomou posse do mais elevado posto de honra. Naquele tem-
po, Noé ainda vivia, e certamente era grande e venerável aos olhos
de todos. Havia também outros homens excelentes; mas tal era a
moderação deles, que cultivavam igualdade com seus inferiores, os
quais lhes rendiam reverência espontânea, e não forçada. A ambi-
ção de Ninrode perturbou e ultrapassou os limites dessa reverência.
Além disso, visto que é suficientemente claro que, nessa sentença
de Moisés, o tirano é estigmatizado com uma eterna marca de infâ-
mia, podemos concluir o quanto agrada a Deus um moderado go-
verno entre os homens. E, realmente, quem se lembra de que é um
ser humano, de bom grado cultivará a sociedade com os demais.
Com respeito ao significado do termo (tsaid), ele significa
propriamente caçar, como afirmam os gramáticos hebreus; contudo,
às vezes ele é usado para alimento. Mas, se Moisés afirma que ele
era robusto na caça, ou em agarra violentamente a presa, metafori-
camente insinua que ele era um homem furioso, e que se asseme-
lhava mais às bestas do que aos homens.
A expressão “diante do Senhor” parece-me declarar que Ninro-
de tentava elevar-se acima da ordem dos homens, precisamente
como os homens orgulhosos se deixam transportar por uma vã au-
toconfiança, para que possam olhar para baixo, das nuvens, os de-
mais.
Daí dizer-se. Visto que o verbo está no tempo futuro, o texto
pode ser assim explicado: Ninrode era tão poderoso e imperioso,
que de algum outro poderoso tirano seria apropriado dizer que ele é
outro Ninrode. Contudo, a tradução da Vulgata é satisfatória, a sa-
ber, “que disso surgiu um provérbio concernente aos poderosos e
aos violentos, que se assemelhavam a Ninrode”. Também não duvi-
do que a intenção de Deus era que o primeiro autor da tirania fosse
odiado em todas as línguas.

10. O princípio de seu reino foi Babel. Aqui, Moisés indica a sede
do império de Ninrode. Declara ainda que quatro cidades lhe esta-
vam sujeitas; no entanto, é incerto se ele foi o fundador delas, ou se
expulsou seus legítimos habitantes. E, embora em outro lugar se
faça menção de Calné [Amós 6.2], contudo, de todas, a Babilônia
era a mais célebre. No entanto, não creio que ela tenha sido tão ex-
tensa ou de tão magnífica estrutura, como relatam os historiadores
profanos. Visto, porém, que a região estava entre as primeiras e
mais frutíferas, é possível que a vantagem da situação mais tarde
convidasse outros a expandir a cidade. Por isso mesmo Aristóteles,
em seu livro Política, tirando-a da categoria de cidade, compara-a a
uma província. Por isso, surgirem muitos a declarar que a Babilônia
tenha sido obra de Semíramis, por meio de quem, dizem outros, ela
não foi construída, mas apenas adornada e ligada por meio de pon-
tes.
A terra de Sinear é acrescentada para fazer distinção, porque
houve também outra Babilônia no Egito, que hoje é chamada Cairo.
Mas, pergunta-se: como Ninrode teria sido o tirano de Babilônia,
quando Moisés, no capítulo seguinte, acrescenta que ali se come-
çou uma torre, que obteve esse nome da confusão de línguas? Al-
guns supõem que um hysteron proteron1 é empregado, e aquilo que
Moisés relatará acerca da construção da torre era anterior na ordem
do tempo.
Além disso, supõe-se também que, como a construção da torre
foi desastrosamente interrompida, o projeto de Ninrode mudou para
o da construção de uma cidade. Antes, porém, penso que há uma
prolepsis;2 e que Moisés chamou a cidade pelo mesmo nome, o que
mais tarde foi imposto por um evento posterior. A razão dessa hipó-
tese é que, provavelmente, nesse tempo, os habitantes daquele lu-
gar, que se engajaram numa obra tão imensa, eram numerosos. É
possível também que Ninrode, preocupado com a sua própria fama
e poder, inflamasse seu insano desejo com este pretexto: que algum
monumento famoso fosse erigido e pelo qual ele fosse eternamente
lembrado. Entretanto, visto ser o costume dos hebreus abordarem
mais amplamente um assunto depois de mencioná-lo rapidamente,
não rejeito completamente a primeira opinião.

11. Daquela terra saiu ele para a Assíria. Acredita-se que esse As-
sur descendia de Sem. E a opinião comumente aceita é que ele é
aqui mencionado porque, quando foi habitar na vizinhança de Ninro-
de, foi violentamente expulso dali. Dessa maneira, Moisés desejava
destacar a bárbara ferocidade de Ninrode. E, de fato, esses são os
frutos costumeiros de uma grandeza sem limites; a partir disso sur-
giu o antigo provérbio: “Os grandes reinos são grandes ladrões.”. É,
de fato, necessário que alguns presidam sobre outros; mas onde a
ambição e o desejo de se exaltar além do que convém são extrava-
gantes, não só arrastam consigo as maiores e mais numerosas injú-
rias, mas também aproximam a dissolução da sociedade humana.
Entretanto, adoto a opinião dos que dizem que Assur, aqui cita-
do, não é o nome de um homem, e sim de um país que derivou dele
seu nome; e assim o sentido será que Ninrode, não contente com
seu amplo e opulento reino, deu asas à sua avareza, e empurrou as
fronteiras de seu império até a Assíria, onde também construiu no-
vas cidades. A passagem em Isaías 23.13 é a única que aparente-
mente se opõe a essa opinião, ao dizer: “Eis a terra dos caldeus,
povo que até há pouco não era povo e que a Assíria destinara para
os sátiros do deserto; povo que levantou suas torres e arrasou os
palácios de Tiro e os converteu em ruínas.”. Pois o profeta parece
dizer que as cidades foram construídas na Caldeia pelos assírios,
enquanto que anteriormente seus habitantes eram nômades e vive-
ram dispersos como em um deserto. Mas é possível que o profeta
esteja falando de outras mudanças desses reinos, as quais ocorre-
ram mais tarde. Porque, no tempo em que os assírios mantiveram a
soberania, visto que prosperaram em incalculável riqueza, crê-se
que a Caldeia, a qual tinham sujeitado a si, foi de tal modo adornada
e dilatada por uma longa paz, de modo que parecia haver sido fun-
dada por eles. E sabemos que, quando os caldeus, por sua vez, as-
sumiram o império, a Babilônia foi exaltada sobre as ruínas de Níni-
ve.

21. A Sem, que foi pai de todos os filhos de Héber. Moisés, refe-
rindo-se aos filhos de Sem, faz uma breve introdução, a qual não fi-
zera para os outros. Isso não foi sem motivo, porque, visto que essa
era a descendência eleita por Deus, a intensão de Moisés era distin-
gui-la das demais nações por alguma marca especial. Essa é tam-
bém a razão por que expressamente o denomina de “pai dos filhos
de Héber”, e o irmão mais velho de Jafé. Pois a bênção de Sem não
passa a todos os seus netos indiscriminadamente, mas permanece
em uma só família. E se bem que os próprios netos de Héber apos-
tataram do verdadeiro culto divino, de modo que o Senhor poderia,
com justiça, tê-los abandonado; contudo, a bênção não foi extinta,
mas simplesmente sepultada por certo tempo, até que Abraão fosse
chamado, em cuja honra essa singular dignidade é atribuída à gera-
ção e ao nome de Héber.
Pela mesma razão, faz-se menção de Jafé, para que a promes-
sa fosse confirmada: “Engrandeça Deus a Jafé, e habite ele nas ten-
das de Sem.”. Aqui, Sem não é chamado o irmão de Cam, conquan-
to este foi eliminado da ordem fraternal e privado de seu próprio di-
reito. A fraternidade permaneceu entre Sem e Jafé, porque, embora
tenham se separado, Deus havia decidido que os uniria novamente.
Quanto ao nome Héber, os que negam que ele é um nome pró-
prio, mas alegam que a palavra significa passar por cima, são mais
que suficientemente refutados por essa única passagem.

1 Nas narrativas históricas, o hysteron proteron é empregado quando algo que realmente
vem por último na ordem do tempo é, por alguma razão, posto primeiro na ordem da narra-
tiva.
2 No discurso narrativo, o recurso da prolepsis é usado quando uma expressão ou palavra
que se refere a uma expressão posterior no discurso é empregada antes. Como exemplo,
temos o caso da palavra “Betel”, que é usada para designar o lugar que naquele tempo era
chamado Luz, e que não recebera este nome até que lhe fosse dado por Jacó.
C A P ÍT U L O 11

1. Em toda a terra havia apenas uma linguagem. Enquanto que


antes apenas se fez menção da Babilônia, Moisés agora explica
mais amplamente de onde ela derivou seu nome. Pois essa é uma
história realmente memorável, na qual podemos perceber a profun-
didade da obstinação humana contra Deus e o pouco proveito que
recebem de seus juízos. E, embora à primeira vista a atrocidade do
mal não seja evidente, a punição que vem a seguir testifica quão
profundo foi o desprazer de Deus para com o que esses homens
tentaram fazer.
Os que supõem que a torre foi construída com o intuito de pro-
ver um refúgio e proteção, se, a qualquer momento, Deus determi-
nasse subverter a terra com um dilúvio novamente, não têm outra
orientação, que eu possa ver, senão o sonho de seu próprio cére-
bro. Pois as palavras de Moisés não significam nada disso; de fato,
aqui, nada se nota exceto a ambição e o orgulhoso desprezo por
Deus. “Edifiquemos para nós uma cidade [dizem eles], e uma torre
cujo tope chegue até os céus, e tornemos célebre nosso nome.”. Ve-
mos o desígnio e o alvo do empreendimento. Porque, independente-
mente do que aconteça, eles desejam ter um nome imortalizado na
terra e, assim, edificam uma torre em rebeldia contra a vontade de
Deus. E, sem dúvida, a ambição não só prejudica os homens, mas
se exalta até mesmo contra Deus.
Erigir uma cidadela não era em si mesmo grande crime; mas er-
guer para si um eterno monumento que durasse por todos os sécu-
los era uma prova de obstinado orgulho, associado ao desprezo por
Deus. A partir disso se originou a fábula dos gigantes, os quais,
como os poetas têm imaginado, empilharam montes sobre montes,
a fim de arrancar Yahweh de seu trono celestial. Essa alegoria não
está longe demais do ímpio conselho a que Moisés se refere; pois
tão logo os mortais, esquecendo o que são, se inflam acima da me-
dida, é certo que, à semelhança dos gigantes, deflagram guerra
contra Deus. Não professam isso publicamente, contudo, outra coi-
sa não sucede senão que cada um que ultrapassa seus limites pres-
critos faz direto ataque contra Deus.
Com respeito ao tempo em que esse evento ocorreu, existe ain-
da um fragmento de Berosus (se de fato Berosus deve ser conside-
rado o autor de tais trivialidades) em que, entre outras coisas, se
computam 130 anos do dilúvio até o tempo em que começaram a
construir a torre. Embora tenha pouco respaldo, essa opinião tem
sido preferida por alguns àquilo que comumente se obteve entre os
judeus, que considera um período de aproximadamente 340 anos
entre o dilúvio e a construção da torre. Também não há maior plausi-
bilidade no que outros relatam, a saber, que esses construtores em-
preenderam tal obra porque os homens viviam muito dispersos e já
se haviam formado muitas colônias; pensavam que, como sua des-
cendência aumentava diariamente, em pouco tempo migrariam para
regiões ainda mais distantes. Mas a esse argumento podemos con-
trapor o fato de que a singular bênção de Deus deveria ser notada
nessa multiplicação da raça humana. Além disso, Moisés parece
descartar toda e qualquer controvérsia. Porque, depois de haver
mencionado Arfaxade como o terceiro dos filhos de Sem, então
menciona Pelegue, seu bisneto, em cujos dias as línguas foram divi-
didas.
Mas, à luz da contagem dos anos que o relato de Moisés esta-
belece, revela-se claramente que só transcorreu um século. Entre-
tanto, deve-se notar que não se diz que as línguas foram divididas
imediatamente após o nascimento de Pelegue, e que nenhum tem-
po definido já havia sido especificado. De fato, deve ter aumentado
muito os sofrimentos de Noé, quando ouviu falar desse perverso
conselho tomado por sua posteridade. E não se deve duvidar que
ele se viu ferido com dor mais profunda, quando os viu correndo,
com devoção, para a sua própria destruição. Mas, assim, o Senhor
exercitava o santo homem, já em extrema velhice, para nos ensinar
a não ficarmos desencorajados por uma constante sucessão de
conflitos.
Caso alguém prefira a opinião comumente aceita entre os ju-
deus, a divisão da terra deve reportar-se às primeiras migrações,
quando os homens começaram a ser distribuídos em várias regiões;
mas o que já ficou registrado no capítulo anterior, com respeito à
monarquia de Ninrode, contraria essa interpretação. Contudo, uma
opinião intermediária pode ser considerada, a saber, que é possível
que a confusão das línguas tenha ocorrido na extrema velhice de
Pelegue, visto que ele viveu quase 240 anos; também não é absur-
do supor que o império fundado por Ninrode tenha durado dois ou
três séculos. Ainda que seja discutível, eu certa e espontaneamente
admito que um espaço mais longo de tempo pode ter ocorrido entre
o dilúvio e o projeto de construir a torre. Além disso, quando Moisés
diz: “em toda a terra havia apenas uma linguagem e uma só manei-
ra de falar”, ele enaltece a bondade peculiar de Deus, em desejar
que o santo vínculo da sociedade entre os homens, tão separados
uns dos outros, se mantivesse, por possuírem uma linguagem co-
mum entre si.
E realmente a diversidade de línguas deve ser considerada algo
extraordinário. Porque, visto que a linguagem é a impressão da
mente, como é que os homens, que são participantes da mesma ra-
zão e que nascem para a vida social, não se comunicam entre si por
uma só linguagem? Portanto, visto que essa falha é incompatível
com a natureza, Moisés declara que ela é acidental; e declara tam-
bém a divisão de línguas como sendo uma punição, divinamente
aplicada sobre os homens, porque conspiraram impiamente contra
Deus. A existência de uma só língua deveria ter promovido entre
eles a unidade na religião; mas essa multidão, a qual Moisés se re-
fere, depois de ter se alienado do puro culto de Deus e da sacra as-
sembleia dos fiéis, une-se para incitar guerra contra Deus. Portanto,
pela justa vingança de Deus, suas línguas foram divididas.

2. Deram com uma planície na terra de Sinar. À luz dessas pala-


vras, é possível supor que Moisés fala de Ninrode e do povo que ele
juntou ao seu redor. Entretanto, se admitirmos que Ninrode era o
principal líder na construção de uma torre tão imensa, com o propó-
sito de erigir um formidável monumento de sua tirania, ainda assim,
Moisés relata expressamente que a obra foi empreendida não pelo
conselho ou vontade de um só homem, mas que todos planejaram
juntos, de modo que a culpa não pode ser atribuída exclusivamente
sobre um, nem mesmo sobre uns poucos.
3. E disseram uns aos outros. Isto é, exortaram-se mutuamente; e
não só cada homem, solicitamente, põe sua própria mão à obra,
mas também estimulava outros a ousar a tentativa.
Façamos tijolos. Moisés declara que foram induzidos a come-
çar essa obra não em razão da facilidade com que poderia ser reali-
zada, nem em razão de algumas outras vantagens que se lhes apre-
sentaram; ao contrário, ele mostra que enfrentaram grandes e árdu-
as dificuldades; significando com isso que sua culpa veio a ser ainda
mais agravada. Pois como é possível que se perturbassem e se fati-
gassem em vão numa difícil e laboriosa tarefa, a menos que, como
loucos, se lançassem impetuosamente contra Deus? A dificuldade
às vezes nos impede de obras necessárias; esses homens, porém,
quando não tinham pedras nem argamassa, não hesitaram em ten-
tar erguer um edifício que pudesse ir além das nuvens. Portanto, por
esse exemplo, somos ensinados a que dimensão a concupiscência
dos homens os impelirá, quando cedem à sua ambição. Até mesmo
um poeta profano não se cala diante desse acontecimento:
“O homem, temerariamente ousado, saturado de orgulho,
Cobiça mais o que é mais negado”.
E logo depois:
“Nada considera árduo, e tenta
Insanamente possuir os céus”.

4. Cujo tope chegue até aos céus. Essa é uma linguagem hiperbó-
lica, na qual enaltecem soberbamente a magnitude da estrutura que
estão tentando erigir. E, sobre isso, imediatamente acrescentam:
“tornemos célebre o nosso nome”, insinuando que a obra seria tal,
que deveria ser vista pelos construtores não apenas como uma es-
pécie de milagre, mas também que deveria ser celebrada por toda
parte, até os extremos limites do mundo.
Esta é a perpétua arrogância do mundo: ignorar o céu, e buscar
imortalidade na terra, onde cada coisa é efêmera e transitória. Por-
tanto, as preocupações desses homens e o que eles perseguem
não tem outro objetivo senão o de adquirir para si um nome na terra.
Davi, no Salmo 49, corretamente ridiculariza essa cobiça desenfrea-
da; e mais ainda porque a experiência (que é a mestra da tolice) não
restaura à posteridade uma mente sã – apesar de ter sido instruída
pelo exemplo de seus ancestrais –, mas a arrogância se faz presen-
te em todas as posteriores gerações.
É conhecido o dito de Juvenal: “Só a morte reconhece quão in-
significantes são os corpos dos homens.”. Entretanto, nem mesmo a
morte corrige nosso orgulho, nem nos constrange a confessarmos
nossa miserável condição; pois, muitas vezes, há mais orgulho em
funerais do que em pompa nupcial. Por tal exemplo, contudo, somos
admoestados a ver quão conveniente é vivermos e morrermos hu-
mildemente. E, não é a parte menos importante da verdadeira pru-
dência, termos a morte diante de nossos olhos nas dificuldades da
vida, com o propósito de nos acostumarmos à moderação. Pois
aquele que deseja veementemente ser grande no mundo é, primei-
ramente, arrogante para com os homens; e, por fim, sua profana ar-
rogância se irrompe contra o próprio Deus; de modo que, segundo o
exemplo dos gigantes, ele luta contra o céu.
Para que não sejamos espalhados. Alguns intérpretes tradu-
zem a passagem desta maneira: “Antes de sermos espalhados”.
Mas a peculiaridade da linguagem aqui empregada não permite tal
explicação, pois os homens estão planejando meios para enfrentar
um perigo que acreditam ser iminente, como se quisessem dizer:
“Quando nosso número aumentar, esta região não conterá todos os
homens e, por isso, é preciso erigir um edifício pelo qual nosso
nome seja preservado em perpetuidade, embora eles mesmos este-
jam dispersos em diferentes regiões.”.
Pode-se questionar de onde derivaram a noção de sua futura
dispersão. Alguns supõem que foram advertidos por Noé, o qual,
percebendo que o mundo estava recaindo em seus antigos crimes e
corrupções, previu, ao mesmo tempo, pelo espírito profético, alguma
terrível dispersão; e a partir disso creem que os babilônios, vendo
que não podiam resistir diretamente a Deus, tentaram, por métodos
indiretos, evitar o juízo ameaçador. Outros supõem que, por uma se-
creta inspiração do Espírito, esses homens pronunciaram profecias
relativas à sua própria punição, que eles mesmos não compreende-
ram. Essas exposições, porém, são forçadas; e nem mesmo há
qualquer razão que nos obrigue a aplicar o que eles dizem aqui à
maldição que foi imposta sobre aqueles homens. Sabiam que a terra
fora formada para ser habitada e, por toda parte, ela supriria, com
abundância, a subsistência dos homens, e a rápida multiplicação da
raça humana lhes provava que não era possível que permaneces-
sem por mais tempo encerrados dentro daqueles seus estreitos limi-
tes; por isso, não importa quais outros lugares para onde fosse ne-
cessário os homens emigrar, planejaram essa torre para que perma-
necesse como uma testemunha de sua origem.

5. Então, desceu o S . A parte restante da história continua


com Moisés nos ensinando a facilidade com que o Senhor poderia
subverter as tentativas insanas desses homens e reduzir a nada to-
das as suas preparações. Não há dúvida de que tenazmente efetu-
am o que de modo presunçoso haviam maquinado. Porém, Moisés
primeiro declara que Deus, por breve tempo, parecia não os ter no-
tado, para que, de repente, interrompendo a obra deles logo no iní-
cio, pela confusão de suas línguas, pudesse dar a mais decisiva evi-
dência de seu juízo. Pois com frequência Deus de tal maneira su-
porta os perversos que não apenas lhes permite maquinar muitas
coisas abomináveis – como se ele não se preocupasse, ou fosse in-
diferente –, como inclusive permite que os ímpios e perversos desíg-
nios dos homens até tenham sucesso, para que ele possa, por fim,
reduzi-los a nada.
A descida de Deus, que Moisés registra aqui, é mencionada em
referência aos homens, e não a Deus, o qual, bem sabemos, não se
move de um lugar para o outro. Moisés, porém, declara que Deus,
gradual e lentamente, se manifesta como um Vingador. Portanto, o
Senhor desceu para que fosse visto, isto é, evidentemente mostrou
que não desconhecia a tentativa dos babilônios.

6. Eis que o povo é um. Alguns explicam essas palavras da se-


guinte maneira: que Deus se queixa de haver nos homens uma per-
versidade tão obstinada, que ele se sente impelido, por justo pesar,
a executar vingança. Não que ele se deixe influenciar por quaisquer
paixões, mas para ensinar-nos que ele não é indiferente quanto às
atividades dos homens, e que, como vela pela salvação dos fiéis,
assim está atento a observar a perversidade dos ímpios, como le-
mos no Salmo 34.16: “O rosto do Senhor está contra os que prati-
cam o mal, para lhes extirpar da erra a memória.”.
Outros pensam que há uma comparação entre o pouco e o mui-
to, como se fosse dito: “Até aqui são poucos, e usam somente uma
linguagem; o que não ousarão fazer se, em razão de seu aumento,
forem separados em várias nações?”. Mas aqui me parece haver
uma ironia implícita, como se Deus propusesse a si mesmo a difícil
tarefa de subjugar a audácia dos homens, de modo que o sentido
pode ser este: “Este povo está unido numa resoluta conspiração, se
comunicando numa só linguagem; portanto, por qual método podem
ser impedidos?”. No entanto, ele se ri ironicamente da estultícia e da
precipitada confiança desses homens, porque, enquanto eles fazem
cálculos de sua própria força, nada há que não arroguem para si.
Isto é apenas o começo. Ao dizer que eles começam, Deus
notifica que fazem um esforço diligente, acompanhado de forte fer-
vor para concluir a obra. Assim, como concessão, Deus declara que,
supondo a organização da obra, não haveria interrupção da constru-
ção.

7. Vinde, desçamos. Moisés nos tem representado o caso pela fi-


gura de estilo hipotipose,1 para que os juízos de Deus sejam ilustra-
dos mais nitidamente. Por essa razão, ele agora apresenta o próprio
Deus declarando que a obra que os homens supunham não ser in-
terrompida será destruída sem qualquer dificuldade. O significado
das palavras é mais ou menos o seguinte: “Não usarei muitos instru-
mentos; apenas assoprarei sobre eles, e eles, pela confusão das lín-
guas, serão vergonhosamente dispersos.”. E visto que eles, tendo
ajuntado um numeroso grupo, estavam planejando como poderiam
alcançar as nuvens, assim, por outro lado, Deus convoca suas tro-
pas para que, por meio dessa intervenção, pudesse aplacar sua ira.
Entretanto, pergunta-se: que tropas ele tem em vista? Os ju-
deus pensam que ele se dirige aos anjos. Visto, porém, que não se
faz nenhuma menção a anjos, e Deus coloca aqueles a quem fala
no mesmo nível que ele, essa exposição é precipitada e merecida-
mente rejeitada. Essa passagem, ao contrário, corresponde àquela
que anteriormente ocorre no relato da criação do homem, quando o
Senhor falou: “Façamos o homem à nossa imagem.”. Pois Deus,
apta e sabiamente, opõe sua própria sabedoria e poder eternos a
essa grande multidão, como se quisesse dizer que ele não tinha ne-
cessidade de auxílios externos, mas que possuía, em si mesmo, o
que seria suficiente para a destruição deles. Por isso mesmo, essa
passagem não é indevidamente apresentada como prova de que na
Deidade subsistem três pessoas em uma essência.
Além disso, esse exemplo de vingança divina se estende a to-
das as eras, pois os homens são sempre inflamados com um ousa-
do desejo de tentar o que é ilícito. E essa história mostra que Deus
jamais será contrário a seus próprios conselhos e desígnios; de
modo que aqui contemplamos, delineado diante de nossos ossos, o
que diz Salomão: “Não há sabedoria, nem inteligência, nem mesmo
conselho contra o Senhor” [Pv 21.30]. A menos que a bênção de
Deus se faça presente, da qual só podemos esperar um resultado
próspero, todas as nossas tentativas necessariamente perecerão.
Visto, pois, que Deus declara que está em perpétua guerra contra a
desmedida audácia dos homens, tudo o que empreendermos sem
sua aprovação terminará em miséria, mesmo que todas as criaturas,
acima e abaixo, nos ofereçam solicitamente sua ajuda.
Agora, embora o mundo carregue essa maldição até hoje, con-
tudo, em meio à punição e às mais terríveis provas da ira divina con-
tra o orgulho dos homens, a admirável bondade de Deus se torna
evidente, porque as nações mantêm mútua comunicação entre si,
ainda que em diferentes idiomas; mas, especialmente, porque ele
tem proclamado um só evangelho, em todos os idiomas, através do
mundo inteiro, e dotou os Apóstolos com o dom de línguas. Por isso,
aqueles que antes estavam miseravelmente divididos, uniram-se na
unidade da fé. Nesse sentido, Isaías diz que o idioma de Canaã se-
ria comum a todos, sob o reinado de Cristo [Is 19.18], porque, em-
bora sua linguagem fosse diferente em som, falariam a mesma coi-
sa enquanto clamam: Aba, Pai.

8. Destarte, o S os dispersou dali pela superfície da terra.


Os homens já haviam se espalhado; e isso não deve ser considera-
do uma punição, visto que flui da bênção e graça de Deus. Mas
aqueles a quem o Senhor tinha antes distribuído com honra em vári-
os lugares, agora ele os dispersa de modo tão vergonhoso, levando-
os de um lado para o outro, como os membros de um corpo dilace-
rado. Portanto, isso não constitui uma simples dispersão para a re-
povoação da terra, para que cada lugar tivesse agricultores e habi-
tantes, mas uma grande derrota, porque o principal vínculo de liga-
ção que havia entre eles foi desfeito.

9. Chamou-se-lhe, por isso, o nome de Babel. Eis o que ganha-


ram por sua tola ambição pela conquista de um nome! Esperavam
que um memorial perpétuo de sua origem ficasse esculpido na torre;
Deus não apenas frustra a vã expectativa deles, mas também os
marca com eterna desgraça, tornando-os abomináveis para toda a
posteridade, por causa do grande prejuízo imposto sobre a raça hu-
mana, por sua culpa. De fato recebem um nome, porém não aquele
que gostariam de ter escolhido; assim Deus, com desprezo, fulmina
o orgulho dos que usurpam para si honras a que não tinham ne-
nhum direito. Aqui se refuta também o erro dos que deduzem a ori-
gem de Babilônia a partir de Júpiter Belus.2

10. São estas as gerações de Sem. Quanto à descendência de


Sem, Moisés já disse algo no capítulo anterior; agora, porém, ele as-
socia o nome dos homens ao término da vida de cada um deles,
para que não fôssemos ignorantes acerca da idade do mundo. Pois
a menos que essa breve descrição fosse preservada, os homens de
hoje não teriam conhecido de quanto tempo se passou entre o dilú-
vio e o dia em que Deus fez sua aliança com Abraão.
Além disso, deve-se observar que Deus indica a idade do mun-
do a partir da descendência de Sem, como uma marca de honra;
precisamente como os historiadores datam os acontecimentos pelos
nomes dos reis ou cônsules. Contudo, Deus concedeu isso não tan-
to em razão da dignidade e méritos da família de Sem, mas em ra-
zão de sua própria adoção gratuita, visto que (como veremos imedi-
atamente) uma grande parte da posteridade de Sem apostatou do
verdadeiro culto divino. Por isso eles mereceram não só que Deus
os expurgasse de seu calendário, mas os tirasse inteiramente do
mundo. Mas ele também considerou de modo muito sublime aquela
sua eleição, pela qual separou essa família de todos os povos, não
permitindo que ela perecesse por causa dos pecados dos homens.
E, portanto, dentre os muitos filhos de Sem, ele escolhe unicamente
Arfaxade; e, dentre os filhos de Arfaxade, somente Selá; e deste,
somente Héber; até que chega em Abraão, cuja vocação deveria ser
considerada a renovação da Igreja.
No que diz respeito aos demais descendentes, é provável que,
antes que o século chegasse ao fim, eles abraçaram superstições
ímpias. Pois quando Deus lança acusação contra os judeus, dizen-
do que seus pais, Tera e Naor, serviram a deuses estranhos [Js
24.2], temos que lembrar ainda que a casa de Sem, na qual nasce-
ram, era o santuário peculiar de Deus, onde a religião pura deveria
ter florescido; Ora, se é assim, o que, então, supomos ter sucedido
aos outros que, desde o início, estavam alheios a esse serviço? Dis-
so realmente se manifesta não apenas a prodigiosa perversidade e
depravação da mente humana, mas também a sua inflexível dureza.
Noé e seus filhos, que haviam sido testemunhas oculares do dilúvio,
ainda viviam; a narrativa daquela história deveria ter inspirado os
homens com não menos terror do que a visível manifestação pesso-
al de Deus. Desde a infância, eles viveram envolvidos com os ele-
mentos da instrução religiosa, a qual se relaciona com a maneira
como Deus deveria ser adorado, a reverência com que sua palavra
deveria ser obedecida, e a severa vingança que aguarda os que vio-
lassem a ordem prescrita por ele. Contudo, não puderam ser impe-
didos de viver tão corrompidos por sua vaidade, que apostataram in-
teiramente. Entretanto, não há dúvida de que o santo Noé, segundo
seu extraordinário zelo e heroica integridade, contenderia de todas
as formas pela manutenção da glória de Deus, e que áspera e seve-
ramente censuraria, sim, se levantaria contra a traiçoeira apostasia
de seus descendentes; e, embora todos devessem tremer só ao
olhar de Noé, contudo não se deixaram mover pelas censuras, por
mais altissonantes fossem elas, e avançaram no caminho em que
sua própria cólera os impelia.
Desse quadro, e não das lisonjas sem sentido dos sofistas,
aprendamos quão frutífera é a corrupção de nossa natureza. Mas se
Noé e Sem, e outros mestres mui eminentes, não puderam, por
meio de oposição extremamente corajosa, impedir a prevalência da
impiedade no mundo, não nos admiremos se hoje, também, a de-
senfreada cobiça do mundo se lança a ímpios e perversos modos
de culto, contra todos os limites interpostos pela sã doutrina, admo-
estação e ameaças. Aqui, entretanto, devemos observar, nesses
santos homens, quão firme era o vigor de sua fé, quão infatigável
era sua paciência, quão perseverante seu cultivo da piedade, visto
que nunca desistiram, em face das muitas ocasiões de ofensa com
que tinham de contender. Lutero, mui apropriadamente, compara os
incríveis tormentos pelos quais eles foram necessariamente afligidos
a muitos martírios. Pois tal separação de seus descendentes da co-
munhão com Deus perturbou a mente desses santos homens não
menos do que se vissem suas próprias entranhas não apenas dila-
ceradas e rasgadas, mas também lançadas no lamaçal de Satanás
e no próprio inferno.
Mas, enquanto o mundo vivia assim saturado de homens ímpi-
os, Deus prodigiosamente mantinha uns poucos sob a obediência
de sua palavra, a fim de preservar a Igreja da destruição. E, embora
já tenhamos dito que o pai e o avô de Abraão fossem apóstatas, e
que, provavelmente, a corrupção não começou primeiramente com
eles, contudo, porque a Igreja, pela eleição divina, fora incluída na-
quela descendência, e porque Deus reservara [para si] alguns que o
adoravam em pureza e sobreviveram até o tempo de Abraão, Moi-
sés deduz uma linhagem contínua de descendentes, e assim os ar-
rola no catálogo dos santos. Disso inferimos (como já observei há
pouco) em que elevada estima Deus sustenta a Igreja, a qual, se
bem que seja tão minúscula em número, contudo é preferida ao
mundo inteiro.
Ora, ele era da idade de cem anos. Visto que Moisés colocou
Arfaxade como sendo o terceiro na ordem entre os filhos de Sem,
pode-se questionar como isso se harmoniza com seu nascimento no
segundo ano após o dilúvio. A resposta é fácil. Não é possível afir-
mar com exatidão, com base nas listas que Moisés enumera, em
que tempo cada um nascera, porque algumas vezes a prioridade é
dada a um descendente que, na ordem de nascimento, era posteri-
or. Outros respondem que nada há de absurdo em supor Moisés de-
clarando que, depois de completar dois anos, nasceu um terceiro fi-
lho. Mas a solução que tenho proposto é mais natural.

27. Tera gerou a Abrão. Aqui também Abrão é posto primeiro entre
seus irmãos; não (como suponho) porque ele fosse o primogênito,
mas porque Moisés, ao delinear o escopo de sua história, não foi
muito meticuloso na ordem dos filhos de Tera. É ainda possível que
Tera tivesse outros filhos. Mas é óbvia a razão pela qual Moisés fala
especialmente desses, ou seja, por causa de Ló e das esposas de
Abrão e Naor.
Agora direi sucintamente por que creio que Abrão não era o pri-
mogênito. Moisés afirma que Harã morreu na terra de seu nasci-
mento, antes mesmo que seu pai deixasse a Caldeia e partisse para
Harã. Abrão, porém, tinha 75 anos de idade quando partiu de Harã
para habitar na terra de Canaã [Cf. Gn 12.4], e essa idade de 75
anos lhe é dada expressamente após a morte de Tera. Ora, se pre-
sumirmos que Abrão nasceu aos 70 anos de seu pai, devemos ad-
mitir ainda que não consideramos 60 anos de idade de Tera; o que é
absurdo.3 A hipótese levantada por Lutero, de que Deus sepultou
aquele tempo no esquecimento com o objetivo de ocultar de nós o
fim do mundo, é, primeiramente, frívolo; e, depois, refutada por sóli-
dos e convincentes argumentos. Outros distorcem violentamente o
significado das palavras para aplicá-lo a uma primeira saída de
Abrão da sua terra natal, e acreditam que ele viveu em companhia
de seu pai em Harã ao longo de 60 anos; mas isso é muito imprová-
vel, pois com que finalidade eles teriam protelado sua estada por
tanto tempo no meio de sua jornada?
Mas não há necessidade de grande discussão. Moisés silencia
acerca da idade de Abraão, assim que este deixou seu próprio país;
porém, diz que aos 75 anos de idade Abrão partiu para a terra de
Canaã, quando seu pai, aos 205 anos de idade, morreu. Quem não
inferirá disso que ele nascera quando seu pai alcançara a idade de
130 anos? Aqui, porém, ele é mencionado primeiro entre os filhos
gerados por Tera, quando este tinha 70 anos de idade. Eu até admi-
to isso; porém, essa ordem de enumeração não é uma prova da or-
dem de nascimento, como já dissemos. Aliás, nem mesmo Moisés
declara em que ano de sua vida Tera gerou filhos, mas apenas que
ele já havia passado da idade acima indicada antes de gerar os três
filhos aqui mencionados. Portanto, a idade de Abraão deve ser certi-
ficada por outro cálculo, a saber, a partir do fato de que Moisés lhe
designa a idade de 75 anos quando seu pai morreu, e cuja idade era
de 205 anos.
Um argumento sólido e válido é também deduzido da idade de
Sarai. Tudo indica que ela era não mais do que dez anos mais nova
do que Abraão. Se ela era a filha de seu irmão mais novo, então ne-
cessariamente ela tinha quase a mesma idade de seu pai. Os que
objetam dizendo que ela era a nora, ou apenas a filha adotiva de
Naor, nada produz além de mero argumento sofístico.4

28. Morreu Harã. Lemos que Harã morreu diante da face de seu
pai, quer dizer, seu pai ainda estava vivo. Lemos ainda que ele mor-
reu em seu país, isto é, em Ur. Os judeus convertem o nome próprio
num apelido, e dizem que ele morreu no fogo. Porque, como são ou-
sados em inventar fábulas, simulam que Harã, com seu irmão
Abrão, foram lançados ao fogo pelos Caldeus, por se absterem da
idolatria, mas que Abrão escapou em virtude da firmeza de sua fé.
Contudo, o capítulo 24 de Josué, que citei acima, francamente de-
clara que toda essa família não foi menos contaminada com supers-
tições do que o próprio país em que viviam. Aliás, eu confesso que o
nome Ur se deriva de fogo; entretanto, é comum atribuir nomes a ci-
dades a partir de alguma situação ou de algum evento particular. É
possível que ali espalhassem o fogo sagrado, ou que o esplendor do
sol fosse mais evidente do que em outros lugares. Outros dirão que
a cidade foi assim chamada porque estava situada num vale, pois
os hebreus chamam os vales de (Uraim). Mas não há razão por
que devemos nos sentir ansiosos acerca de tal assunto; que seja
suficiente o fato de que Moisés, falando do país de Abrão, logo de-
pois declara que ele era Ur dos Caldeus.

30. Sarai era estéril. Moisés não só diz que Abrão não tinha filhos,
mas declara a razão, a saber, a esterilidade de sua esposa, para
mostrar que foi por nada menos que um extraordinário milagre que
ela, mais tarde, gerou a Isaque, como declararemos mais plenamen-
te no momento oportuno. Assim aprouve a Deus humilhar seu servo;
e não podemos ter dúvida de que Abrão sofreria severa angústia por
causa dessa privação. Ele vê os perversos gerando filhos por toda
parte, em grandes números, para cobrirem a terra; somente ele se
vê privado de filhos. E, embora até então Abrão desconhecesse a
sua própria vocação futura, aprouve a Deus apresentar, na pessoa
de Abrão, um modelo para tornar evidente de onde e de que manei-
ra sua Igreja se originaria, pois naquele tempo ela jazia oculta, como
uma raiz seca debaixo da terra.

31. Tomou Tera a Abrão, seu filho. É aqui que o próximo capítulo
deve ter início, porque Moisés começa a tratar de um dos principais
temas de seu livro, a saber, a vocação de Abrão. Pois ele não só re-
lata que Tera mudou-se de seu país, mas também explica o propósi-
to e o objetivo de sua partida: que ele deixou seu solo natal e deu
início a sua jornada para ir à terra de Canaã. Disso é facilmente ex-
traída a inferência de que ele não foi tanto o líder ou autor da jorna-
da, mas apenas o companheiro de seu filho.
E não causa dificuldade a essa inferência o fato de Moisés dar
a Tera a prioridade, como se Abrão houvesse partido sob seus cui-
dados e diretriz, em vez de pelo comando de Deus, pois essa é uma
honra conferida ao título pai. Nem duvido que Abrão, ao ver seu pai
obedecendo voluntariamente à vocação divina, veio a ser, por sua
vez, ainda mais obediente a ele. Portanto, atribui-se à autoridade do
pai que ele levasse consigo o seu filho. Porque, o fato de que Abrão
fora chamado por Deus antes mesmo de mover um pé de seu solo
natal, parece ser muito claro para se negar. Não lemos que seu pai
foi chamado. Por isso, podemos supor que o oráculo de Deus foi
dado a conhecer a Tera por meio de seu filho. Pois a ordem divina
dada a Abrão com respeito a sua partida não o proíbe de informar a
seu pai que sua única razão para deixá-lo era que preferiu o manda-
mento de Deus a todas as obrigações humanas. Aliás, de forma in-
controversa, inferimos das palavras de Moisés duas coisas: (1) que
Abrão foi divinamente chamado, antes que Tera deixasse sua pró-
pria pátria; e (2) que Tera não teve outro propósito senão o de ir
para a terra de Canaã, isto é, de unir-se a seu filho como um com-
panheiro voluntário. Portanto, concluo que ele deixara sua pátria um
pouco antes de sua morte. Pois é absurdo pressupor que, quando
ele partiu de sua pátria para ir diretamente à terra de Canaã, teria
permanecido 60 anos como um forasteiro numa terra estranha. É
mais provável que, sendo um velho, fatigado pela idade, ele fosse
vencido pela doença e pelo cansaço. E, no entanto, é possível que
Deus os deixasse por pouco tempo na expectativa, porque Moisés
diz que ele habitou em Harã; mas, considerando o que vem depois,
parece que a parada não foi longa; visto que, aos 75 anos de idade,
Abrão partiu de Harã, e saiu de lá em avançada velhice e já ciente
de que sua esposa era estéril.
Além disso, a cidade que pelos hebreus é chamada Harã, todos
os escritores declaram, unanimemente, ser a Harã situada na Meso-
potâmia; embora alguns, mais poética do que verazmente, aleguem
que a cidade esteja localizada na Assíria, o lugar celebrado pela
destruição de Crasso e a subversão do exército romano.

1 A hipotipose é uma figura retórica de estilo que consiste em uma descrição realista de
algo; ocorre quando, nas narrativas, apresentam-se os fatos de que se fala como se o que
se diz estivesse realmente diante dos nossos olhos.
2 Ora apresentado como o deus Bel Marduk, ora apresentado como um antigo rei, muitos
atribuem a Belus a origem da Babilônia. No contexto pagão da Babilônia, ele foi adorado
como o deus da guerra.
3 A questão aqui envolvida é a seguinte. Se Tera tinha 70 anos de idade quando Abrão
nasceu, e Abrão tinha 75 anos de idade quando seu pai Tera, morreu, Tera teria morrido
aos 145 anos de idade, e não aos 205 anos, como indicam as Escrituras. Assim, se “perde”
60 anos do período de vida de Tera.
4 Um argumento desse tipo ocorre quando se usa a habilidade de falar eloquentemente
com o objetivo de defender ou usar argumentos enganosos, ou logicamente inconsistentes,
para o favorecimento pessoal.
C A P ÍT U L O 1 2

1. Ora, disse o S a Abrão. Para que uma absurda divisão


desses capítulos não perturbe os leitores, vamos unir essa sentença
aos dois últimos versículos do capítulo anterior. Moisés dissera ante-
riormente que Terá e Abrão haviam partido de seu país para habitar
na terra de Canaã. Ele então explica que eles não foram impelidos
por leviandade, como os homens imprudentes e inconstantes costu-
mam fazer; nem desceram a outras regiões movidos pelo desgosto
para com sua própria pátria, como as pessoas mal-humoradas fre-
quentemente fazem; nem eram fugitivos em razão de algum crime;
nem se deixaram levar por alguma fútil esperança, ou por quaisquer
seduções, como tantos se deixam arrastar de um lado para o outro
por seus próprios desejos; mas que Abrão fora divinamente ordena-
do a partir da terra, e não movera sequer um pé senão quando guia-
do pela palavra de Deus.
Os que explicam a passagem como significando que Deus falou
a Abrão após a morte de seu pai são facilmente refutados pelas pró-
prias palavras de Moisés; pois, se Abrão já vivia sem pátria e já pe-
regrinava de um lugar para o outro como estrangeiro, a ordem de
Deus: “Sai de tua terra, de tua parentela e da casa de teu pai” teria
sido supérflua. Acrescenta-se também a autoridade de Estêvão, o
qual certamente merece ser considerado um intérprete idôneo des-
sa passagem. Ora, ele testifica claramente que Deus apareceu a
Abraão quando ainda vivia na Mesopotâmia, antes mesmo de habi-
tar em Harã; então recita esse texto que estamos explicando; e por
fim conclui que, por essa razão, Abraão migrou da Caldeia [At 7.2-
4]. Também não se deve ignorar o que Deus mais adiante reitera:
“Eu sou o Senhor que te tirei de Ur dos caldeus” [15.7], pois daqui
inferimos que a mão divina não se lhe estendera pela primeira vez
depois que já habitava em Harã, mas enquanto ainda permanecia
em seu lar na Caldeia.
Realmente, essa ordem divina, com respeito à qual insensata-
mente se fomentam dúvidas, deve ser considerada por nós suficien-
te para reprovar o erro contrário. Pois Deus não poderia ter falado
assim, exceto a um homem que vivia, até então, seguro em seu lar,
tendo seus negócios delineados, e vivendo em quietude e tranquili-
dade entre seus parentes, sem qualquer mudança em seu estilo de
vida; do contrário, a resposta teria sido imediatamente dada: “Eu
deixei minha pátria, estou muito longe de minha parentela.”. Em
suma, Moisés registra esse oráculo para que soubéssemos que
essa longa jornada fora empreendida por Abrão, e seu pai Terá, em
obediência à ordem de Deus.
Consequentemente, também fica claro que Terá não era tão ilu-
dido pelas superstições a ponto de ser destituído do temor de Deus.
Era difícil para um homem idoso, de saúde já debilitada e fraca,
afastar-se da sua própria pátria. Portanto, algo da verdadeira religi-
ão, apesar de precário, ainda restava em sua mente. Por isso, quan-
do soube que o lugar de onde seu filho recebeu a ordem de partir
era maldito, seu desejo foi não perecer ali e, assim, se juntou como
um companheiro, àquele a quem o Senhor estava para libertar. Que
testemunha, eu pergunto, ele provará ser, no último dia, para conde-
nar nossa indolência! Fácil e plausível era a justificativa que ele po-
deria alegar, a saber, que permaneceria tranquilamente em seu lar,
pois não havia recebido nenhuma ordem. Ele, porém, embora cego
em meio às trevas da incredulidade, abriu seus olhos ao raio de luz
que cruza sua vereda, enquanto que, muitas vezes, permanecemos
indiferentes quando a vocação divina brilha diretamente sobre nós.
Além disso, essa vocação de Abrão é um magistral exemplo do
gracioso favor de Deus. Porventura havia Abrão vivido com Deus
mediante algum mérito das obras? Porventura Abrão foi a Deus ou
buscou, por iniciativa própria, seu favor? Mais ainda. Devemos ter
sempre em mente (o que eu já expliquei sobre a passagem em Jo-
sué) que ele vivia imerso na imundícia da idolatria, e então Deus so-
beranamente estende sua mão para trazer de volta o errante.
Aprouve a Deus abrir a sua santa boca para mostrar a alguém, en-
ganado pelos engodos de Satanás, o caminho da salvação. E é ma-
ravilhoso que um homem, miserável e perdido, tenha a preferência,
entre tantos santos adoradores de Deus; que a aliança da vida seja
posta em sua posse; que a Igreja seja revivida nele, e ele mesmo
ser constituído o pai de todos os fiéis. Mas isso é feito intencional-
mente, para que a manifestação da graça de Deus se tornasse ain-
da mais evidente em sua pessoa. Portanto, Abrão é um exemplo da
nossa vocação, pois nele percebemos que, somente pelo favor de
Deus, aquelas coisas que não são, são oriundas do nada, passando
a ser alguma coisa.
Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai. Essa
sequência de palavras pode parecer supérflua. E também podemos
dizer que Moisés, que em outros lugares foi tão conciso, aqui ex-
pressa uma clara e fácil questão em três diferentes formas de lin-
guagem. Mas o caso é bem diferente. Pois, visto que o exílio em si é
tão doloroso, e a doçura do solo natal mantém quase todos os ho-
mens ligados a ale, Deus persiste insistentemente em sua ordem de
deixar a pátria, com o propósito de penetrar totalmente a mente de
Abrão. Caso dissesse numa única palavra – “Sai de tua terra” –, de
fato isso não teria afligido sua mente; Abrão, porém, é ainda mais
profundamente afetado quando ouve que teria que renunciar seus
familiares e a casa de seu pai.
No entanto, não devemos supor que Deus tenha um cruel pra-
zer no infortúnio de seus servos; mas, assim, ele prova todos os
seus afetos, para que não deixe nada escondido em seu coração.
Vemos muitas pessoas que por algum tempo são zelosas, e que
mais tarde se tornam esmorecidas; de onde provém isso, senão por-
que edificaram sem fundamento? Portanto, Deus determinou des-
pertar plenamente todos os sentidos de Abrão, para que nada em-
preendesse impensada e precipitadamente; para que, arrependen-
do-se logo depois, não fosse levado por algum vento e voltasse
atrás. Por isso mesmo, se quisermos seguir a Deus com constância,
cabe-nos prudentemente meditar sobre todas as inconveniências,
todas as dificuldades, todos os riscos que nos aguardam, para que
um zelo eventual não produza flores evanescentes, mas que, de
uma profunda e bem arraigada raiz de piedade, venhamos a produ-
zir fruto ao longo de toda nossa vida.
Para a terra que te mostrarei. Esse é outro teste para provar a
fé de Abrão. Pois, por que foi que Deus não indicou imediatamente
a terra, senão com o propósito de manter seu servo em suspense,
para que provasse melhor a veracidade de sua confiança à palavra
de Deus? Como se este quisesse dizer: “Eu te ordeno que partas
com os olhos fechados e te proíbo de questionar para onde eu estou
te levando, até que, havendo renunciado tua pátria, te entregues to-
talmente a mim.”. E esta é a genuína prova de nossa obediência:
quando não somos sábios aos nossos próprios olhos, mas nos en-
tregamos totalmente ao Senhor. Portanto, sempre que ele exigir al-
guma coisa de nós, que não nos mostremos tão preocupados quan-
to ao sucesso, nem permitamos que o temor e a ansiedade retar-
dem nosso caminho; pois é melhor, com olhos fechados, seguir a
Deus como nosso guia, do que, confiando em nossa própria prudên-
cia, vaguearmos por aquelas veredas tortuosas que inventamos
para nós.
Alguém objetaria que essa afirmação está em discrepância com
a sentença anterior, na qual Moisés declarou que Terá e Abrão parti-
ram de sua própria pátria com o objetivo de vir para a terra de Ca-
naã. A solução é fácil, se admitirmos uma prolepsis na expressão de
Moisés, tal como veremos mais adiante, no uso do nome Betel; e tal
como muitas vezes ocorre nas Escrituras. Eles não sabiam para
onde estavam indo; mas, porque haviam resolvido ir aonde Deus os
chamasse, Moisés, por conhecer os fatos, menciona a terra que,
embora até então desconhecida a Abrão e Terá, mais tarde foi reve-
lada somente a Abrão. Portanto, é verdade que partiram com o obje-
tivo de ir à terra de Canaã, porque, havendo recebido a promessa
acerca de uma terra que lhes seria mostrada, se submeteram volun-
tariamente ao governo de Deus, até que ele realmente outorgasse o
que havia prometido.
Contudo, é possível que Deus, havendo provado a devoção de
Abrão, logo a seguir removeu todas as dúvidas de sua mente. Pois
não sabemos o momento exato em que Deus lhe revelaria que sua
vontade era ocultar apenas por algum tempo. É suficiente que Abrão
tenha se declarado realmente obediente a Deus, quando, tendo lan-
çado todo seu cuidado na providência de Deus, e tendo lançado, por
assim dizer, aos seus cuidados tudo quanto o pudesse impedir, não
hesitou em abandonar sua própria pátria, sem saber onde, por fim,
fincaria seu pé; pois, por esse método, a sabedoria da carne foi su-
plantada pela ordem divina e, ao mesmo tempo, todos os seus afe-
tos foram subjugados.
Entretanto, pode-se questionar por que Deus enviou seu servo
à terra de Canaã, em vez de ao oriente, onde ele pudesse viver com
algum outro dos santos pais. Alguns (para que a mudança não pare-
ça ter sido feita para pior) dirão que ele foi guiado para lá com o pro-
pósito de habitar com Sem, seu ancestral, o qual imaginam ter sido
Melquisedeque. Mas, se esse fosse o conselho de Deus, é estranho
que Abrão volvesse seus passos numa direção diferente; mais ain-
da, não lemos que ele encontrou Melquisedeque, até que regressas-
se da batalha na planície de Sodoma. No momento oportuno, vere-
mos quão frívola é esta ideia de que Melquisedeque era Sem. Com
respeito ao tema em questão, inferimos, do resultado que por fim
seguiu-se, que o desígnio de Deus era muito diferente do que esses
homens supõem.
Por causa da sua deplorável perversidade, as nações de Canaã
foram destinadas à destruição. Deus exigiu de seu servo que pere-
grinasse entre elas por algum tempo, para que, pela fé, percebesse
ser ele o herdeiro daquela terra, cuja posse efetiva fora reservada à
sua posteridade, muito tempo depois de sua própria morte. Por isso,
por esta única razão ele recebeu a ordem de cruzar aquele país:
que este seria desabitado, para que fosse dado por possessão à
sua semente. E era de grande importância que Abrão, Isaque e
Jacó fossem estrangeiros naquela terra, e que, pela fé, exercessem
o domínio sobre ela, a qual lhes fora divinamente prometida, para
que sua posteridade, com maior coragem, se preparasse para tomar
posse dela.

2. De ti farei uma grande nação. Até então, Moisés relatara o que


Abrão foi mandado fazer; agora, ele acrescenta a promessa ao
mandamento, e isso não por uma razão indiferente. Pois como so-
mos morosos em obedecer, o Senhor ordenaria em vão, a menos
que sejamos animados por uma grande confiança em sua graça e
bênção. Embora, na história de Noé, eu já tenha feito referência a
isso, não será inútil inculcá-lo de novo, pois a própria passagem re-
quer que se diga algo; e a reiteração de uma doutrina de tão grande
importância não deve parecer supérflua. Pois é indubitável que a fé
não pode prevalecer, a menos que esteja fundada sobre as promes-
sas de Deus. Mas é unicamente a fé que produz obediência. Portan-
to, para que nossa mente se disponha a seguir a Deus, não é sufici-
ente que ele ordene o que lhe apraz, a menos que também prometa
sua bênção.
Devemos enfatizar a promessa de que Abrão, cuja esposa era
ainda estéril, viria a ser uma grande nação. Essa promessa poderia
ter sido muito mais evidente, se Deus, pelo atual estado das coisas,
propiciasse algum motivo para esperança relativa ao seu cumpri-
mento; agora, porém, visto que a esterilidade de sua esposa o ame-
açava com perpétua privação de descendentes, a simples promessa
em si foi sem muita expressividade, se Abrão não dependesse intei-
ramente da palavra de Deus; por isso mesmo, embora percebesse a
esterilidade de sua esposa, ele vislumbra, pela esperança, aquela
grande nação que é prometida pela palavra de Deus. E Isaías enal-
tece grandemente esse ato de favor: que Deus, por sua bênção, en-
grandeceu a seu servo Abrão, a quem encontrou sozinho e solitário,
e o fez uma nação tão imensa [Is 51.2]. Nesse versículo, como em
muitos outros, o substantivo (goi), “minha nação” [Is 51.4], embora
detestável aos judeus,1 é tomado como uma expressão de honra. E
ele aqui é usado, enfaticamente, para mostrar que Abrão não ape-
nas teria uma grande posteridade de sua própria semente, mas tam-
bém teria um povo peculiar, separado dos demais, que seria chama-
do por seu próprio nome.
E te abençoarei. Isso é acrescido para explicar a frase anterior.
Porque, para que Abrão não se desesperasse, Deus oferece sua
própria bênção, que foi capaz de operar mais milagrosamente do
que, como em outros casos, por meios naturais. Contudo, a bênção
aqui pronunciada se estende além da descendência, e implica que
Abrão teria um resultado próspero e jubiloso em todas as suas ocu-
pações, como revela o contexto precedente – “e te engrandecerei o
nome. Sê tu uma bênção!”. Pois tal é a felicidade que lhe é prometi-
da, que encherá de admiração todos os homens, em todos os luga-
res, de modo que introduzirão o nome de Abrão como um exemplo,
em suas pronunciações de bênção.
Outros usam o termo no sentido de aumento – “Tu serás uma
bênção”, isto é, “Todos te abençoarão.”. Mas o primeiro sentido é o
mais apropriado. Há ainda quem o exponham ativamente, como se
fosse dito: “Minha graça não residirá em ti, de modo que somente tu
a desfrutes, mas ela fluirá abundantemente a todas as nações. Por-
tanto, eu agora de tal modo a deposito em ti, para que ela encha o
mundo inteiro.”. Deus, porém, ainda não comunicou isso aqui, como
mostrarei agora.

3. Abençoarei os que te abençoarem. Aqui se manifesta a extraor-


dinária bondade de Deus, em que, de um modo familiar, ele faz ali-
ança com Abrão, como os homens costumam fazer a seus compa-
nheiros e iguais. Pois esta é a forma costumeira de alianças entre
reis e outros: que prometem mutuamente ter os mesmos inimigos e
os mesmos amigos. Certamente este é um inestimável penhor de
especial amor: que Deus de tal modo tenha se condescendido por
amor a nós. Pois, embora aqui ele se dirija a um único homem, em
outros lugares ele declara a mesma afeição para com seu povo fiel.
Portanto, podemos inferir esta doutrina geral: que Deus de tal modo
nos abraça com seu favor, que abençoará nossos amigos e tomará
vingança de nossos inimigos.
Além disso, por essa passagem, somos advertidos que, por
mais desejos sejam os filhos de Deus pela paz, jamais lhes faltarão
inimigos. Certamente, de todas as pessoas que já se conduziram
tão pacificamente entre os homens a ponto de merecer a estima de
todos, Abrão pode ser contado entre os principais; contudo, mesmo
ele não viveu sem inimigos, porque ele tinha o diabo por seu adver-
sário, o qual mantém os perversos em suas mãos, aos quais ele in-
cessantemente instiga a incomodar os piedosos. Não há, pois, ne-
nhuma razão pela qual a ingratidão do mundo nos desanime, mes-
mo quando muitos nos odeiam sem causa, e, quando provocados
por nenhuma injúria, estudam para nos prejudicar. Mas que nos con-
tentemos com esta singular consolação: que Deus está do nosso
lado na guerra.
Além disso, Deus exorta a seu povo ao cultivo da fidelidade e
humanidade para com todas as pessoas boas, e, além disso, a abs-
ter-se de toda e qualquer injúria. Pois este não é um incentivo pe-
queno para prestarmos assistência aos fiéis: que, se cumprirmos
qualquer dever para com eles, Deus o retribuirá; nem deve alarmar-
nos menos o fato de que ele anuncia guerra contra nós, caso fira-
mos qualquer um que lhe pertença.
Em ti serão benditas todas as famílias da terra. Se alguém
preferir entender essa passagem em um sentido restrito, como se,
por um modo proverbial de falar, aquele que abençoar aos seus fi-
lhos, ou a seus amigos, seja chamado pelo nome de Abrão, que ele
desfrute de sua opinião; para ele, a expressão hebraica dá a enten-
der que Abrão será referido como um exemplo singular de felicida-
de. Eu, porém, estendo o significado mais amplo, porque pressupo-
nho que aqui se promete a mesma coisa, a qual Deus mais adiante
reitera mais claramente [22.18]. E a autoridade de Paulo me conduz
a este ponto, o qual afirma que a promessa feita à semente de Abra-
ão, isto é, a Cristo, foi dada quatrocentos e trinta anos antes da lei
[Gl 3.17]. Mas a contagem dos anos requer que entendamos que a
bênção lhe foi prometida em Cristo, quando entrou na terra de Ca-
naã. Portanto, Deus (em minha opinião) anuncia que todas as na-
ções seriam benditas em seu servo Abrão, porque Cristo estava in-
cluso em seus lombos.
Dessa maneira, ele não apenas notifica que Abrão seria um
exemplo, mas uma causa de bênção; de modo que haveria uma an-
títese implícita entre Adão e Cristo. Pois, enquanto desde o tempo
da separação do primeiro homem, Adão, de Deus, todos nós nasce-
mos malditos, aqui se nos oferece um novo remédio. Também não
há nada contrário a isso na afirmação de que de modo algum deve-
mos buscar em Abrão mesmo uma bênção, posto que a expressão
é usada em referência a Cristo. Aqui os judeus petulantemente obje-
tam e acumulam muitos testemunhos da Escritura, a partir dos quais
eles defendem que abençoar ou amaldiçoar em alguém nada mais é
que desejar o bem ou o mal a outrem, tendo ele como padrão. Mas
essa argumentação sofística pode ser descartada sem dificuldade.
Reconheço que o que dizem às vezes é, mas nem sempre, verda-
deiro. Pois quando se diz que a tribo de Levi abençoará no nome de
Deus (Dt 10.8; Is 65.16, e em passagens afins) é suficientemente
evidente que Deus é declarado como sendo a fonte de todo bem,
para que Israel não buscasse qualquer porção de bem em outro lu-
gar. Visto, pois, que a linguagem é ambígua, que admitam a neces-
sidade de escolher esse ou aquele sentido, aquele que melhor ex-
presse o tema e a ocasião. Ora, Paulo assume como um axioma2
que é aceito entre todos os piedosos, e o qual deve ser aceito como
certo: que toda a raça humana está vergonhosamente sob maldição
e, portanto, que as pessoas santas só são abençoadas pela graça
do Mediador. A partir disso, ele conclui que a aliança da salvação
que Deus fez com Abrão não é estável nem firme, senão em Cristo.
Portanto, eu assim interpreto a presente passagem: que Deus pro-
mete a seu servo Abrão aquela bênção que mais tarde fluiria para
todo o povo. Visto, porém, que esse tema será explicado mais pro-
fundamente em outro lugar, agora apenas o menciono rapidamente.

4. Partiu, pois, Abrão. Os que pressupõem que Deus falou com


Abrão em Harã lançam mão dessas palavras em apoio de seu erro.
Mas tal sofisma é facilmente refutado, porque, depois que Moisés
mencionou a causa de sua partida, a saber, que Abrão se viu cons-
trangido pela ordem de Deus para deixar seu solo natal, ele agora
retoma a narrativa da história.
Não sabemos por que Abrão teria permanecido em Harã por
certo tempo, exceto que Deus tinha sua mão sobre ele para impedir
que ele obtivesse uma visão imediata da terra, a qual, contudo, ain-
da que desconhecida, ele a preferia à sua pátria. Agora lemos que
ele partiu de Harã, a fim de completar a jornada que iniciara, o que
também o versículo seguinte confirma, onde lemos que ele tomou
consigo a Sarai, sua esposa, e a Ló, seu sobrinho. Como haviam
partido da Caldeia sob a conduta e os cuidados de seu pai, Terá, as-
sim, agora, quando Abrão se torna o chefe da família, ele segue em
frente e completa o que seu pai iniciara. Contudo, é possível que o
Senhor outra vez o exortara a completar o que a morte de seu pai
havia interrompido, e que ele confirmava o primeiro chamado medi-
ante um segundo oráculo.
Entretanto, é indubitável que aqui se enaltece a obediência da
fé, e não como simplesmente um ato, mas como um constante e
perpétuo estilo de vida. Pois estou certo de que Moisés pretendia di-
zer que Abrão permaneceu em Harã, não porque se arrependera,
como se fosse inclinado a abandonar o justo caminho de sua voca-
ção, mas por ter a ordem divina sempre presente em sua mente. E,
portanto, eu prefiro antes de tudo me referir à cláusula “como o Se-
nhor lhe falara” de modo que Moisés teria dito: “ele permaneceu fir-
me em seu propósito, e seu desejo de obedecer a Deus não foi in-
terrompido pela morte de seu pai.”. Além disso, temos aqui, numa
palavra, uma regra que nos é prescrita para a regulamentação de
toda nossa vida, a saber, a nada tentarmos senão pela autoridade
divina. Porque, por mais que os homens disputem acerca das virtu-
des e dos deveres, nenhuma obra é digna de louvor, ou merece ser
reputada entre as virtudes, exceto a que é agradável a Deus. E ele
mesmo testifica que leva mais em conta a obediência do que sacrifí-
cio [1Sm 15.22]. Por isso mesmo, nossa vida será retamente consti-
tuída quando dependermos da palavra de Deus e nada empreender-
mos, a não ser sob sua ordem. E deve-se observar que a questão,
aqui, não é concernente a alguma obra particular, mas diz respeito
ao princípio geral de se viver piamente e com integridade. Pois o
tema aqui discutido é a vocação de Abrão, que é o padrão comum
da vida de todos os fiéis.
De fato, nem todos nós recebemos a ordem, indiscriminada-
mente, de abandonar nossa pátria; esse ponto, admito, é especial
no caso de Abrão. Mas, em geral, a vontade de Deus é que todos vi-
vam em sujeição à sua palavra, e busquem, em sua insolência, a lei
para regulamentação de sua vida, para que não sejam levados por
sua própria vontade ou pelas máximas dos homens. Portanto, pelo
exemplo de Abrão, toda renúncia pessoal é ordenada, para que vi-
vamos e morramos unicamente para Deus.

5. E as pessoas que lhes acresceram em Harã. Almas [pessoas]


significam os servos do sexo feminino e masculino. E essa é a pri-
meira menção da escravatura na Escritura; disso infere-se que, não
muito depois do dilúvio, a perversidade do homem fez com que a li-
berdade, que por natureza era comum a todos, perecesse no tocan-
te a uma grande parte da raça humana.
De onde a escravatura teve sua origem, não é fácil de determi-
nar, a menos que, segundo a opinião que comumente tem prevaleci-
do, ela tenha surgido das guerras; porque os vencedores obrigavam
aqueles a quem tomavam na batalha a servi-los; é disso que se de-
riva a designação criado. Mas, se os que foram os primeiros escra-
vos fossem subjugados pelas leis de guerra, ou fossem reduzidos a
esse estado pela destituição, de fato é certo que a ordem da nature-
za foi violentamente infligida; porque os homens foram criados para
o propósito de cultivar sociedade mútua entre si. E, embora seja
vantajoso que alguns dominem sobre outros, contudo, entre os ir-
mãos, alguma igualdade deveria ter sido mantida. Entretanto, embo-
ra a escravatura seja contrária àquele governo justo que é muito de-
sejável, e o seu começo não se deu pacificamente, não se segue
que o seu uso, que mais tarde foi recebido pelo costume e justifica-
do pela necessidade, seja ilícito.
É possível, pois, que Abrão possuísse, respectivamente, servos
comprados com dinheiro, e escravos nascidos em sua casa. Pois
aquele dito popular “O que não prevaleceu desde o princípio não
pode ser tido por válido por muito tempo” admite (como é bem notó-
rio) algumas exceções; e teremos um exemplo pertinente no capítu-
lo 48.

6. Atravessou Abrão a terra. Aqui Moisés mostra que Abrão, em


seu ingresso na terra, não achou imediatamente uma habitação em
que pudesse descansar. Pois a expressão “atravessou”, e a posição
do lugar (Siquém) pelo qual ele passou, mostram que a extensão de
sua jornada fora grande.
Siquém não fica muito longe do Monte Gerizim, em direção do
deserto da região sul. Por isso mesmo, é simplesmente como se
Moisés dissesse que a fé de Abrão fora outra vez testada, quando
Deus permitiu que ele, na qualidade de peregrino, atravessasse
toda a terra antes de lhe dar alguma morada fixa. Quão difícil pare-
ceria que Deus lhe prometa ser seu Protetor e não lhe designasse
sequer um pequeno canto onde pudesse fincar seu pé! Mas Abrão
se vê obrigado a vagar por uma rota tortuosa, a fim de que pudesse
exercitar melhor a renúncia.
Alguns traduzem a palavra (Elon) por floresta de carvalhos;
outros, porém, traduzem-na por vale. Há ainda os que a tomam
como sendo o nome próprio de um lugar; eu, porém, explico a pala-
vra Elon no sentido de uma planície, ou um carvalho, não no sentido
de ser uma única árvore, mas aqui o singular expressa um plural.3
Nesse tempo os cananeus habitavam essa terra. Essa cláu-
sula concernente aos cananeus não é acrescentada sem razão; por-
que não constituía uma tentação leve ser lançado no meio daquela
pérfida e perversa nação, que era destituída de toda humanidade. O
que o santo homem poderia então pensar, senão que fora entregue
nas mãos desses homens tão depravados, pelos quais ele logo po-
deria ser assassinado, e que também teria de viver uma vida pertur-
bada e miserável em meio a contínuas injúrias e tribulações? Mas
lhe era proveitoso acostumar-se, por tal disciplina, a nutrir uma me-
lhor esperança. Pois, se fosse bondosa e cortesmente recebido na
terra de Canaã, por nada melhor teria esperado senão viver sua
vida ali como hóspede. Agora, porém, Deus eleva os pensamentos
de Abrão para que viesse a concluir que, em algum momento futuro,
sendo os habitantes destruídos, ele seria o senhor e herdeiro da-
quela terra.
Além disso, ele é admoestado, pela contínua falta de repouso, a
elevar os olhos para o céu. Pois, visto que a herança da terra fora
prometida especialmente a ele, e só pertenceria a seus descenden-
tes por causa dele, segue-se que a terra, na qual era tratado tão mal
e desumanamente, não fora posta diante dele como seu alvo último,
mas que o próprio céu lhe fora proposto como seu lugar de descan-
so final.

7. Apareceu o S a Abrão. Moisés então relata que Abrão


não foi deixado totalmente desamparado, mas que Deus lhe esten-
deu sua mão em seu socorro. Entretanto, devemos destacar com
que tipo de assistência Deus o socorreu em suas tentações. Ele lhe
oferece somente a sua palavra, e isso de maneira tal que, de fato,
Abrão poderia se considerar exposto ao ridículo. Pois Deus declara
que daria a terra à sua semente; mas onde está a semente, ou onde
a esperança de semente, visto que ele é destituído de filhos e já ido-
so, e sua esposa é estéril?
Portanto, essa foi uma insípida consolação para a carne. Mas a
fé tem um paladar diferente, cuja propriedade é manter todos os
sentidos dos piedosos unidos de tal maneira pela reverência à pala-
vra, que uma única promessa de Deus é mais do que suficiente. En-
tretanto, embora Deus realmente alivie e reduza os males que seus
servos suportam, ele só faz assim à medida que lhes for convenien-
te, sem satisfazer o desejo da carne. Aprendamos disso que este
único remédio deve ser-nos suficiente em nossos sofrimentos: que
Deus nos fala assim em sua palavra para levar nossa mente a per-
ceber que ele nos é propício, e que não devemos ceder aos persis-
tentes desejos de nossa carne. O próprio Deus não falhará; mas,
pela manifestação de seu favor, nos levantará quando estivermos
prostrados.
Ali edificou Abrão um altar ao S . Esse altar era um si-
nal de gratidão. Tão logo Deus lhe apareceu, ele erigiu um altar;
com que objetivo? Para que invocasse o nome do Senhor. Vemos,
pois, que ele estava determinado a render graças e que um altar foi
edificado por ele em memória da bondade recebida. Alguém questi-
onaria se ele podia ou não cultuar a Deus sem um altar. Respondo
que o culto interior do coração não é suficiente, a menos que se
acrescente a confissão externa diante dos homens. A religião tem
realmente sua sede própria no coração; mas, dessa raiz, brota de-
pois a confissão pública, como seu fruto. Pois somos criados para
este fim: que ofereçamos a Deus alma e corpo.
Os cananeus tinham sua religião; tinham também altares para
os sacrifícios; Abrão, porém, para não envolver-se nas superstições
deles, edifica um altar em sua casa, sobre o qual pudesse oferecer
sacrifícios, como se houvera resolvido colocar um trono real para
Deus dentro de sua casa. Visto, porém, que o culto a Deus é espiri-
tual, e que todas as cerimônias que não têm em si mesmas nenhum
fim justo e lícito são não apenas vãs e sem valor, mas também cor-
rompem o verdadeiro culto a Deus por sua fictícia e falaz aparência,
devemos observar criteriosamente o que Moisés diz: que o altar foi
erigido com o propósito de invocar a Deus. O altar, pois, é a forma
externa de culto divino; mas a invocação é sua substância e verda-
de. Essa marca distingue facilmente os verdadeiros adoradores dos
hipócritas, os quais são demasiadamente liberais em pompas exter-
nas, mas desejam que sua religião se reduza a meras cerimônias. E
assim toda sua religião é vazia, sem dirigir-se a qualquer objetivo
preciso. De fato, sua intenção última (como confusamente falam) é
adorar a Deus, mas a piedade se aproxima mais de Deus e, portan-
to, ele não divaga com figuras externas, mas tem respeito para com
a verdade e a substância da religião. Em suma, as cerimônias não
são de outra forma aceitáveis a Deus, senão como referência ao
culto espiritual de Deus.
Invocar o nome de Deus, ou invocar em seu nome, admite uma
dupla exposição, a saber, ou (1) orar a Deus, ou (2) celebrar seu
nome com louvores. Visto, porém, que oração e as ações de graças
são coisas associadas, de bom grado incluo a ambas. Já dissemos,
no capítulo 4, que todo o culto de Deus não foi impropriamente des-
crito pela figura de sinédoque, porque Deus não estima o dever da
piedade como algo mais elevado, e não considera nenhum sacrifício
como sendo mais aceitável do que a invocação de seu nome, como
se acha expresso no Salmo 50.23 e no Salmo 51.19. Portanto, sem-
pre que ocorre a palavra altar, que os sacrifícios se introduzam em
nossa mente; porque, desde o princípio, Deus quis que a raça hu-
mana fosse informada de que não pode haver acesso a ele sem sa-
crifício. Por isso Abrão, a partir da doutrina geral da religião, abriu
para si um santuário celestial por meio de sacrifícios, para que pu-
desse cultuar a Deus corretamente. Mas sabemos que Deus nunca
foi apaziguado pelo sangue de animais. Por isso, segue-se que a fé
de Abrão foi direcionada para o sangue de Cristo.
Entretanto, pode parecer absurdo que Abrão tenha edificado
para si um altar, a seu bel-prazer, ainda que não fosse sacerdote,
nem tivesse algum mandamento expresso da parte de Deus. Minha
resposta é que Moisés, no contexto, resolve essa questão, pois não
lemos que Abrão fizesse um altar simplesmente para Deus, e sim
para o Deus que lhe aparecera. Portanto, o altar tinha seu funda-
mento naquela revelação e não deve ser separado daquilo do qual
ele formava apenas uma parte e um apêndice. A superstição fabrica
para si um deus como bem lhe agrada, e depois inventa para ele vá-
rios tipos de culto. Precisamente como os papistas de nossos dias
mui soberbamente se vangloriam de que cultuam a Deus, quando
na verdade estão apenas dissimulando através dessa tola ostenta-
ção. Mas a piedade de Abrão é enaltecida porque, havendo erigido
um altar, adorou ao Deus que se lhe havia manifestado. E embora
Moisés declare que ali Abrão invocou a Deus, contudo, ao mesmo
tempo, declara que tal serviço foi agradável a Deus, pois esta lin-
guagem implica a aprovação do Espírito Santo que, desse modo,
pronuncia que ele havia invocado a Deus corretamente. Aliás, ou-
tros, confiantemente, se vangloriam de haver adorado a Deus; este,
porém, ao louvar somente a Abrão, rejeita todos os ritos dos pa-
gãos, como sendo uma vil profanação de seu nome.

8. Passando dali para o monte. Quando ouvimos que Abrão mu-


dou-se do lugar onde havia edificado um altar a Deus, não devemos
duvidar de que ele assim o fez por alguma necessidade. Ali ele des-
cobriu que os habitantes não eram amigáveis e, por isso, transfere
seu tabernáculo para outro lugar. Mas, se Abrão suportava com pa-
ciência suas contínuas peregrinações, nossa impertinência é total-
mente indesculpável, quando murmuramos contra Deus, caso ele
não nos conceda uma habitação tranquila. Certamente, quando
Cristo abriu o céu para nós e de lá nos convida diariamente a habi-
tar com ele, não devemos considerar um equívoco se ele preferir
que sejamos forasteiros no mundo. Eis a suma da passagem: que
Abrão viveu sem uma “morada certa”; o que autoriza Paulo a desig-
nar assim os cristãos [1Co 4.11]. Além disso, há uma clara prolepsis
na palavra Betel; pois Moisés dá esse nome ao lugar com o objetivo
de adaptar seu discurso aos homens de sua própria época.
Ali edificou um altar ao S . Moisés elogia a incansável
devoção de Abrão à piedade; porque, por essas palavras, ele decla-
ra que, onde quer que Abrão chegava, ele prestava um culto público
a Deus; tanto para que não adotasse nenhum rito comum aos per-
versos, como para que mantivesse sua família na piedade sincera.
E é bem provável que, em razão disso, ele fosse objeto de não pou-
ca inimizade, porque nada há que mais enraivece os perversos do
que uma religião diferente da sua, na qual eles creem que são não
só desprezados, mas totalmente condenados como cegos.
E sabemos que os cananeus eram cruéis e orgulhosos, e mui-
tíssimo dispostos a vingar os insultos. Talvez fosse essa a razão das
frequentes mudanças de Abrão: que seus vizinhos consideravam os
altares que ele erigia como sendo uma reprovação para eles. Sem
dúvida, deve-se atribuir ao maravilhoso favor de Deus, o fato de
Abrão em várias ocasiões não ter sido apedrejado. Contudo, visto
que o santo homem bem sabe que era devidamente obrigado a dar
testemunho de que ele tem um Deus pessoal, a quem ele não deve
negar por dissimulação, ele não hesita em preferir a glória de Deus
à sua própria vida.
9. Depois, seguiu Abrão dali. Essa foi a terceira mudança do santo
homem em um curto período de tempo, depois que tudo indicava
haver ele encontrado algum tipo de moradia. É indubitável que ele
não corria de um lado para o outro voluntariamente, para sua pró-
pria gratificação (como costumam fazer as pessoas levianas), mas
havia certas necessidades que o obrigavam, a fim de ensiná-lo, por
um hábito contínuo, que ele era não só um forasteiro, mas também
um miserável andarilho na terra da qual ele era o proprietário. Con-
tudo, nenhum fruto comum resultava de tantas mudanças, porque
se esforçou, o quanto dependesse de si, a dedicar a Deus cada par-
te da terra à qual ele tivesse acesso, e a perfumava com o odor de
sua fé.

10. Havia fome naquela terra. Aqui se registra uma tentação muito
mais severa, pela qual a fé de Abrão é testada de modo imediato.
Pois ele não só vagueou várias vezes no país, mas agora é levado
para o exílio, tendo que deixar aquela terra que Deus lhe dera, bem
como à sua posteridade.
Deve-se observar que a Caldeia era excessivamente fértil; ten-
do sido, por essa causa, acostumado com a fartura, ele veio a Harã,
onde, supõe-se, viveu bastante comodamente, já que é evidente
que ele tinha aumentado os seus servos e suas riquezas. Agora, po-
rém, sendo expulso daquela terra pela fome, onde, confiando na pa-
lavra de Deus, recebera a promessa de uma vida ditosa, suprida
com toda abundância de boas coisas, quais teriam sido seus pensa-
mentos, se ele não tivesse sido fortalecido contra as artimanhas de
Satanás? Sua fé teria sido subvertida centenas de vezes. E sabe-
mos que, sempre que nossa expectativa é frustrada e as coisas não
acontecem segundo nossos desejos, nossa carne logo acusa: “Deus
te enganou.”. Moisés, porém, mostra, em poucas palavras, com que
firmeza Abrão resistiu esse veemente assalto. É verdade que ele
não proclama tal constância com ostentosos elogios verbais; mas,
por uma pequena frase, demonstra suficientemente que ela era
grande a ponto de um milagre, quando diz que Abrão “desceu ao
Egito, para aí ficar”.
Moisés declara que Abrão, apesar de tudo, mantinha em sua
mente a posse da terra que lhe fora prometida, muito embora, sendo
expulso dela pela fome, fugiu para outro lugar a fim de obter alimen-
to. E que nos deixemos instruir por este exemplo: que os servos de
Deus devem lutar contra muitos obstáculos, para que complete a
jornada de sua vocação. Pois devemos sempre lembrar de que
Abrão não deve ser considerado um membro individual do corpo
dos fiéis, mas sim como sendo o pai de todos eles, de modo que to-
dos devem estar dispostos a seguir o seu exemplo. Portanto, posto
que a condição da presente vida é instável e sujeita a inumeráveis
mudanças, recordemos que, para onde quer que sejamos levados
pela fome, pela fúria da guerra, e por outras tantas vicissitudes que
ocasionalmente ocorrem além de nossa expectativa, devemos se-
guir sempre em frente em nossa caminhada; e que, ainda quando
nosso corpo seja levado de um lado para o outro, nossa fé deve per-
manecer inabalável.
Além disso, não é de surpreender que, quando os próprios ca-
naneus viviam em dificuldade, Abrão fosse forçado a tomar uma de-
cisão. Pois ele não possuía sequer um pedaço de terra, e tinha que
lidar com pessoas cruéis e muito perversas, que prefeririam que ele
perecesse cem vezes pela fome do que lhe ajudar em suas dificul-
dades. Tais circunstâncias ampliam o louvor da fé e fortaleza de
Abrão; primeiro, porque, quando destituído de alimento para o cor-
po, ele se alimenta unicamente da promessa de Deus; e, segundo,
porque ele não seria desarraigado de modo violento e definitivo do
lugar onde recebera a ordem de habitar, mas apenas por um pouco
de tempo. Nesse aspecto, ele é bem diferente de tantos que, quan-
do em ocasiões insignificantes, se apressam a abandonar sua pró-
pria vocação.

11. Disse a Sarai, sua mulher. Moisés então relata a decisão que
Abrão tomou para a preservação de sua esposa, quando se aproxi-
mava do Egito. E, visto que esse lugar é como uma rocha, sobre a
qual muitos tropeçam, é correto considerar, de modo sóbrio e reve-
rente, até que ponto Abrão pode ser desculpado ou não. Primeiro,
parece haver algo de falsidade, misturado com as dissimulações
que ele convence a sua esposa praticar. E, embora mais tarde ele
apresente uma justificativa, dizendo que não mentira nem forjara
algo que não fosse verdadeiro, com certeza ele era nisto grande-
mente culpável: que não era em virtude de seu cuidado que sua es-
posa não se prostituiu. Pois quando dissimula o fato de que ela era
sua esposa, ele põe em risco a castidade dela em prol de sua legíti-
ma defesa.
A partir disso, certos sofistas perversos aproveitam a oportuni-
dade para objetar dizendo que o santo patriarca era um cafetão de
sua própria esposa, e que, com o astuto propósito de proteger a si
mesmo, não poupou a modéstia dela, nem a honra de si mesmo.
Mas é fácil refutar essa maligna injúria porque, de fato, pode-se infe-
rir que Abrão tinha em vista um propósito muito mais elevado, posto
que, em outras coisas, ele era dotado de tão grande generosidade.
Além disso, por que ele buscou antes ir para o Egito, e não para
Harã, ou para sua própria pátria, se, em sua jornada, Abrão não ti-
vesse Deus diante de seus olhos, e a divina promessa firmemente
enraizada em sua mente? Visto, pois, que ele nunca permitiu que
sua atenção se desviasse da palavra de Deus, podemos ainda de-
duzir desse fato a razão pela qual ele tanto temia por sua própria
vida, a ponto de tentar preservá-la de um perigo, incorrendo em ou-
tro ainda maior. Indubitavelmente, ele teria preferido morrer cente-
nas de vezes a denegrir o caráter de sua esposa e ser privado da
companhia da única mulher que ele amava. Mas, enquanto refletia
que a esperança de salvação se achava centrada em si mesmo, e
ele era a fonte da Igreja de Deus, e que, a menos que ele vivesse, a
bênção prometida a ele e à sua descendência seria vã, ele não con-
siderou sua própria vida a partir de si mesmo; mas, posto que ele
não desejava que o efeito da divina vocação perecesse através de
sua morte, se viu tão afetado com a preocupação de preservar sua
própria vida, que passou a ignorar tudo mais. Portanto, ele não me-
rece ser louvado, pois, tendo em vista um objetivo legítimo para vi-
ver, estava pronto a comprar a vida a qualquer preço. Mas, ao en-
gendrar esse método indireto, pelo qual sujeitou sua esposa ao peri-
go do adultério, tudo indica que de modo algum ele é desculpável.
Se fosse zeloso por sua própria esposa, o que certamente ele era,
deveria ter confiado a Deus seu cuidado. Admito que, de fato, a pro-
vidência de Deus não desobriga os fiéis de cuidar de si mesmos;
mas que o façam de tal modo que não avançam para além de seus
limites prescritos.
Consequentemente, o propósito de Abrão era correto, porém
ele errou no método; pois, como frequentemente acontece, mesmo
quando dependemos de Deus, nos desviamos de sua palavra por
nossa imprudência em confiarmos em meios ilícitos. E isso costuma
acontecer especialmente em momentos de dificuldade porque, en-
quanto não se vê nenhum escape, somos facilmente desviados para
caminhos tortuosos. Portanto, apesar de serem juízes imprudentes
quem condena inteiramente esse ato de Abrão, contudo não se
deve negar a sua falha especial, a saber, que ele, tremendo diante
da proximidade da morte, não confiou tal perigo a Deus, em vez de
expor pecaminosamente a modéstia de sua esposa. Assim, por
esse exemplo, somos admoestados a, em questões complexas e
duvidosas, buscar no Senhor o espírito de conselho e de prudência;
e devemos, ainda, cultivar a sobriedade, para que não façamos
nada precipitadamente, sem a autoridade de sua palavra.
Ora, bem sei que és mulher de formosa aparência. Pergun-
ta-se de onde veio essa beleza de Sarai, já que ela era uma mulher
idosa. Porque, mesmo que admitamos que ela anteriormente tivesse
uma excelente formosura, certamente os anos lhe diminuíram a gra-
ciosidade, pois sabemos o quanto as rugas nos idosos desfiguram
os melhores e mais belos rostos. Em primeiro lugar, respondo que
não há dúvida de que antes havia mais vivacidade na raça humana
do que há agora; sabemos ainda que o vigor mantém a aparência
pessoal. Além disso, sua esterilidade contribuiu para a preservação
de sua beleza e para manter íntegros todos os seus hábitos corpo-
rais, pois não há nada que mais debilita o sexo feminino do que par-
tos sucessivos.
Contudo, não duvido que a perfeição de sua forma tenha sido
um dom especial de Deus; mas, por que ele não queria que a bele-
za da santa mulher fosse rapidamente desgastada pela idade, não
sabemos; senão para que a sua formosura fosse causa de grande e
profundo desejo para seu marido. A experiência comum nos ensina
ainda que, aqueles que não se contentam com um grau regular e
moderado de beleza, descobrem, para seu grande prejuízo, o quan-
to custa a aquisição de uma beleza imoderada.
12. Os egípcios, quando te virem. Pode parecer que Abrão fosse
injusto com os egípcios, suspeitando mal deles, de quem não havia
ainda recebido nenhuma injúria. E, visto que a caridade realmente
não suspeita mal, pode parecer que ele os trata injustamente, não
apenas em acusá-los de lascívia, mas também em suspeitar que
fossem homicidas. Minha resposta é que o santo homem, não sem
razão, temia aquela nação porque sobre ela ouvira muitas notícias
desfavoráveis. E, em outros lugares, ele já havia experimentado tan-
to da perversidade dos homens, que podia, com razão, sentir receio
dos desprezíveis profanadores de Deus.
Entretanto, Abrão não diz absolutamente nada sobre os egípci-
os; porém, desejando persuadir sua esposa para aceitar a sua opini-
ão, lhe adverte sobre o que poderia suceder. E Deus, embora nos
ordene que nos abstenhamos da malícia e dos juízos sinistros, con-
tudo permite que nos ponhamos em guarda contra pessoas desco-
nhecidas; e isso pode ocorrer sem que lancemos qualquer injúria
contra os irmãos. No entanto, não nego que essa ansiedade de
Abrão excedeu todos os limites, e que uma aflição injustificada o le-
vou a envolver-se em outros erros, como já declaramos.

15. Viram-na os príncipes de Faraó e gabaram-na junto dele.


Embora Abrão houvesse pecado por temer em demasia e tão de-
pressa, contudo o evento ensina que ele não havia temido sem mo-
tivo; pois sua esposa foi tirada dele e levada ao rei. Inicialmente,
Moisés fala dos egípcios em geral; depois, ele menciona os prínci-
pes. Com isso, ele declara que o rumor da beleza de Sarai já se di-
fundira por toda parte, mas que foi mais ansiosamente recebido pe-
los príncipes, os quais são mais ousados, porque Moisés nos diz
que eles informaram ao rei. Disso inferimos quão antiga é aquela
corrupção que ora prevalece incomensuravelmente nas cortes dos
reis. Pois, posto que ali todas as coisas são cheias de agrados e ba-
julações, assim os nobres aplicam principalmente sua mente a intro-
duzir, sempre que possível, o que porventura seja gratificante à rea-
leza. Portanto, vemos que, quem quer que entre eles queira subir
mais alto em favor, entrega-se não só a servis bajulações, mas tam-
bém a servirem de cafetões em prol das luxúrias de seus senhores.
E a mulher foi levada para a casa de Faraó. Visto que ela foi
levada e, por algum tempo, passou a morar no palácio, muitos
supõem que ela foi maculada pelo rei. Pois não é crível que, ao tê-la
em seu poder, um homem lascivo houvesse poupado a modéstia
dela. De fato, Abrão já merecera isso sobejamente, pois não havia
confiado na graça de Deus, nem confiara a castidade de sua esposa
à sua fidelidade e cuidado; mas a praga, que veio logo em seguida,
prova suficientemente que o Senhor estava atento a ela; e desse
fato podemos concluir que ela permaneceu impoluta. E embora,
quanto a isso, Moisés não diga nada de modo expresso sobre o as-
sunto, a partir de uma comparação com uma história similar subse-
quente, podemos supor que a proteção divina não foi negligente
para com Abrão, também naquele momento. Ao correr um risco se-
melhante [Gn 20.1], Deus não permitiu que ela fosse violada pelo rei
de Gerar; então, pressupomos que ela agora estaria exposta à lascí-
via de Faraó? Porventura estaria Deus cuidado mais de Sarai sub-
metendo-a a uma segunda desgraça – uma vez que teria sido de-
sonrada – ou preservando-a, porque até então vivera íntegra e cas-
tamente?
Além do mais, se Deus uma vez se mostrou tão propício a
Abrão, a ponto de resgatar sua esposa – a quem o próprio Abrão
expôs pela segunda vez à infâmia, como seria possível que ele hou-
vesse falhado em evitar o perigo anterior? É possível também que
naquela época ainda existisse certa medida de integridade, de modo
que as luxúrias dos reis não fossem tão desenfreadas como mais
tarde vieram a ser. Além disso, quando Moisés acrescenta que
Abrão foi tratado de modo favorável por causa de Sarai, desse fato
concluímos que ela foi tratada por Faraó de maneira honrosa, e não
como se fosse uma meretriz. Quando, pois, Moisés afirma que ela
foi introduzida no palácio de Faraó, entendo que isso não se deu
para qualquer outro propósito, senão para que o rei, por um rito so-
lene, a pudesse tomar por esposa.

17. Porém o S puniu Faraó. Se Moisés simplesmente rela-


tasse que Deus havia punido o rei por haver cometido adultério, não
seria tão obviamente claro que ele cuidara da preservação da casti-
dade de Sarai; mas quando afirma claramente que a casa do rei foi
punida com uma praga por causa de Sarai, esposa de Abrão, julgo
que toda dúvida é eliminada porque Deus, em favor de seu servo,
interpôs sua poderosa mão em tempo hábil, para que Sarai não fos-
se violentada. E aqui temos um exemplo muito notável da solicitude
com que Deus protege a seus servos, defendendo sua causa contra
os mais poderosos monarcas, como mostra essa história e outras si-
milares, as quais são referidas no Salmo 105, versículos 12 a 15:
“Então, eram eles em pequeno número, pouquíssimos e forasteiros
nela; andavam de nação em nação, dum reino para outro reino. A
ninguém permitiu que os oprimisse; antes, por amor deles, repreen-
deu a reis, dizendo: Não toqueis em meus ungidos, nem maltrateis
meus profetas.”. Dessa passagem também se pode derivar uma
confirmação da opinião dada acima. Pois, se Deus reprovou a Faraó
para que nenhum dano fizesse a Abrão, segue-se que ele preservou
impoluta a honra de Sarai. Instruídos por tais exemplos, aprenda-
mos também que, por mais que o mundo nos mantenha em despre-
zo, em virtude da pequenez de nosso número e de nossa fragilida-
de, contudo somos tão preciosos aos olhos de Deus que ele, por
nossa causa, se declara inimigo até mesmo de reis, e inclusive do
mundo inteiro. Saibamos, pois, que somos cobertos por sua prote-
ção, para que a luxúria e a violência dos que são mais poderosos
não nos oprimam.
Questiona-se, porém, se Faraó foi justamente punido, visto que
ele não intentava, por astúcia nem pela força, tomar posse da espo-
sa de outro homem. Minha resposta é que as ações dos homens
nem sempre devem ser consideradas conforme o nosso juízo, mas
devem ser, antes, pesadas nas balanças de Deus; pois frequente-
mente acontece que o Senhor achará em nós o que possa justa-
mente punir, enquanto que, a nossos olhos, parecemos estar isen-
tos de erro e nos absolvemos de toda culpa. Que os reis aprendam,
antes, à luz dessa história, a refrear seu próprio poder e a usar mo-
deradamente sua autoridade; e, por fim, a impor voluntariamente so-
bre si mesmos uma lei de moderação. Porque, embora Faraó não
seja acusado abertamente de algum erro, contudo, posto que ele
não conta com nenhum conselheiro fiel entre os homens que ouse
reprimir sua licenciosidade, o Senhor o castiga desde o céu. Quanto
a sua família, de fato era inocente; mas o Senhor sempre tem moti-
vos justos, ainda que nos sejam ocultos, pelos quais ele deseja ferir
com sua vara aos que parecem não merecer tal repreensão. O fato
de que ele poupou a seu servo Abrão, isso deve ser atribuído à sua
benevolência paterna.

18. Chamou, pois, Faraó a Abrão. Justamente, Faraó protesta jun-


to a Abrão, que era o principal culpado. Aqui não se registra nenhu-
ma resposta da parte de Abrão; e talvez ele concordasse com a jus-
ta e verdadeira repreensão. Entretanto, é possível que aqui Moisés
tenha omitido o pedido de desculpa, pois o propósito foi dar um
exemplo da divina providência em preservar a Abrão e em vindicar
sua relação conjugal. Mas, embora Abrão bem sabia que estava so-
frendo o devido castigo de sua insensatez ou de sua cautela irracio-
nal, contudo ele incorreu novamente no mesmo erro, como veremos
no momento oportuno.

20. E Faraó deu ordens aos seus homens. Ao dar ordem para que
Abrão tivesse um salvo-conduto do reino, pode parecer que Faraó o
fez com o objetivo de protegê-lo contra o perigo, porque Abrão havia
estimulado o ódio da nação contra si mesmo, como sendo aquele
que havia trazido consigo o açoite de Deus; Mas, como essa hipóte-
se é pouco provável, apresento uma interpretação mais simples:
que a permissão da partida foi concedida a Abrão juntamente com a
companhia de uma guarda para que não fosse exposto à violência.
Pois sabemos quão orgulhosos e cruéis eram os egípcios, e quão
desagradável era Abrão para ser invejado porque, havendo ali se
tornado rico tão rapidamente, é como se ele levasse consigo um
despojo.

1 Muito provavelmente, o motivo pelo qual os judeus detestam essa palavra é porque nela
estão incluídos homens de todas as nacionalidades, e não apenas judeus segundo a car-
ne.
2 Parece que Calvino não faz um uso técnico do termo. De qualquer modo, um axioma é
uma premissa considerada necessariamente evidente e verdadeira, e, apesar de ela mes-
ma ser indemonstrável, é assumida como o fundamento de uma demonstração.
3 Isto é, o termo carvalho é empregado para designar um bosque ou floresta de carvalhos.
C A P ÍT U L O 1 3

1. Saiu, pois, Abrão do Egito. No início do capítulo, Moisés celebra


a bondade de Deus em proteger Abrão; em decorrência disso, ele
não só regressou em segurança, mas levou consigo grande riqueza.
Deve-se notar também a seguinte circunstância: quando ele foi dei-
xando o Egito, rico em gados e tesouros, lhe foi permitido seguir sua
viagem em paz; pois causa surpresa que os egípcios permitissem
que o que Abrão adquiriu entre eles fosse transferido para outro lu-
gar. Em seguida Moisés mostra que as riquezas não foram um obs-
táculo que impediu Abrão de continuar buscando o seu propósito úl-
timo e de seguir rumo a ele com paz ininterrupta. Sabemos o quanto
a posse de moderada riqueza impede muitos de erguer sua cabeça
para o céu, enquanto que os que realmente possuem abundância,
não só se mostram apáticos na indolência, mas também estão com-
pletamente presos às coisas terrenas.
Portanto, Moisés coloca a virtude de Abrão em contraste com o
vício comum de outros, quando relata que ele não se deixou impedir
por nenhum obstáculo, quando buscou outra vez a terra de Canaã.
Pois Abrão poderia (como muitos outros) se gloriar com algum pre-
texto legítimo, por exemplo, visto que Deus, de quem Abrão recebeu
bênçãos extraordinárias, lhe fora favorável e bondoso no Egito, era
justo ele permanecer ali. Abrão, porém, não se esquecera do que
lhe fora divinamente prometido e, portanto, como um homem livre,
se apressa rumo ao lugar para onde é chamado. Por isso mesmo,
os ricos não têm nenhuma desculpa, caso se tornem tão arraigados
na terra, que já não atendam ao chamado de Deus.
Entretanto, aqui se deve guardar de dois extremos. Muitos
põem na pobreza a perfeição angelical, como se fosse impossível
praticar a piedade e servir a Deus, a menos que as riquezas sejam
lançadas fora. De fato, poucos imitam Crates, o tebano, que lançou
seus tesouros ao mar, por acreditar que não poderia ser salvo, se
eles não fossem desfeitos. Contudo, muitos fanáticos expulsam as
pessoas ricas da esperança da salvação, como se a pobreza fosse
a única porta do céu; mas isso muitas vezes envolve os homens
mais em obstáculos do que as riquezas. Agostinho, porém, sabia-
mente nos ensina que o rico e o pobre são reunidos na mesma he-
rança da vida, porque o pobre Lázaro foi recebido no seio do rico
Abraão. Por outro lado, devemos precaver-nos do mal oposto, para
que as riquezas não sejam uma pedra de tropeço em nosso cami-
nho, ou nos sobrecarreguem tanto, que percamos a mínima pronti-
dão de avançar rumo ao reino do céu.

3. Fez as suas jornadas. Nessas palavras, Moisés nos ensina que


Abrão não descansou até que retornasse a Betel. Pois, embora ele
fincasse sua tenda em muitos lugares, em parte alguma ele fixou de
tal modo seu pé que fizesse ali sua morada permanente. Moisés
não fala do sul (Neguebe) em referência ao Egito; ele apenas quer
dizer que Abrão desceu à parte sul da Judeia e que, portanto, ele,
mediante uma longa e cansativa viagem, chegou no lugar onde ha-
via determinado permanecer. Em seguida, Moisés acrescenta que
ele foi ao lugar do altar que outrora fizera, e no qual ele passou no-
vamente a invocar o nome do Senhor. Disso podemos aprender que
o santo homem vivia sempre adorando a Deus e dando evidência de
sua piedade. A explicação dada por alguns, de que os habitantes do
lugar foram conduzidos ao culto puro de Deus, nem é provável, nem
se pode deduzir das palavras de Moisés. E já dissemos qual é a for-
ça da expressão “invocar o nome” ou “invocar o nome do Senhor”, a
saber, professar o verdadeiro e puro culto de Deus.
Pois Abrão invocou a Deus, não apenas doze vezes, mas ao
longo de toda a sua jornada. E sempre que, mediante um rito sole-
ne, celebrava a Deus publicamente, manifestava que ele não tinha
nada em comum com as superstições dos pagãos; por isso lemos
que invocou a Deus. Portanto, embora ele sempre adorasse a Deus
e se exercitasse em orações diárias, contudo, porque não testemu-
nhava diariamente sua piedade por meio de profissão externa diante
dos homens, essa virtude é aqui especialmente celebrada por Moi-
sés. Portanto, era apropriado que a invocação fosse conjunta com o
altar, porque, pelos sacrifícios oferecidos, Abrão claramente testifi-
cava qual Deus adorava, para que os cananeus soubessem que ele
não partilhava das suas idolatrias.
5. Ló, que ia com Abrão. A seguir vem o inconveniente que Abrão
sofreu por causa de suas riquezas, a saber, que teve de separar-se
de seu sobrinho, a quem amava com ternura, como se fosse seu
próprio filho. Certamente, caso lhe fosse dada a opção, preferiria es-
colher lançar fora suas riquezas a separar-se daquele a quem consi-
derava como se fosse um filho único. Contudo, não encontrou outro
meio de evitar as contendas.
Devemos atribuir esse mal à sua própria morosidade excessiva
ou à audácia de seu sobrinho? Entretanto, creio que devemos, an-
tes, considerar o desígnio de Deus. Havia o risco de Abrão se sentir
muito satisfeito com seu próprio sucesso, posto que a prosperidade
cega a muitos. Portanto, Deus mistura a doçura da riqueza com
amargura, e não permite que a mente de seu servo seja demasiada-
mente encantada com ela. E sempre que uma falaz estima das ri-
quezas nos incite a desejá-las desordenadamente, em razão de não
percebermos as grandes desvantagens que elas trazem consigo,
que a recordação dessa história seja útil para restringir esse imode-
rado apego a elas. Além do mais, sempre que os ricos se depara-
rem com alguma dificuldade proveniente de suas riquezas, apren-
dam a purificar sua mente com esse remédio, para que não venham
a ficar excessivamente apegados às boas coisas da presente vida.
E, realmente, a menos que o Senhor ocasionalmente coloque um
freio nos homens, em que abismos eles não cairiam, quando ficas-
sem ensoberbecidos pela prosperidade? Por outro lado, se somos
atingidos pela pobreza, saibamos que, também por esse meio, Deus
corrige os males ocultos de nossa carne. Finalmente, os que são ri-
cos recordem que vivem cercados por espinhos e devem se cuidar
para que não sejam feridos; e aqueles, por cujos negócios se veem
comprometidos e embaraçados, saibam que Deus está cuidando
deles, para que não se deixem envolver em armadilhas malignas e
nocivas.
Essa separação foi dolorosa para a mente de Abrão; porém, foi
oportuna para a correção de muitos males latentes, para que a ri-
queza não apagasse o ardor de seu zelo. Mas, se Abrão carecia de
tal antídoto, não nos maravilhemos se Deus, ao nos afligir, esteja a
reprimir nossos excessos. Pois ele nem sempre espera até que os
fiéis tenham fracassado, mas olha para frente e já os vê no futuro.
Assim, verdadeiramente, ele não corrige a avareza ou o orgulho de
seu servo Abrão, mas, por um remédio antecipado, ele não deixa
Satanás contaminar sua mente com nenhuma de suas seduções.

7. Houve contenda. O que eu sugeri concernente às riquezas, tam-


bém é verdade com respeito a um grande número de servos. Vemos
com que ambição muitos desejam uma grande multidão de servos,
abrangendo quase um povo inteiro. Visto, porém, que a família de
Abrão lhe era tão querida, vivamos bem contentes com poucos ser-
vos, ou mesmo sendo totalmente destituídos deles, se parecer bem
ao Senhor que assim seja. Era quase impossível evitar grande con-
fusão numa casa onde havia um considerável número de homens. E
a experiência confirma a veracidade do provérbio: que geralmente
uma multidão é turbulenta. Ora, se repouso e tranquilidade forem
um bem inestimável, saibamos que mais proveito conseguimos para
o nosso real bem-estar quando temos um pequeno lar e passamos
nosso tempo privativamente, sem tumulto, com nossas famílias.
Somos ainda advertidos, pelo exemplo diante de nós, a nos
precavermos para que Satanás, indiretamente, não nos envolva em
contenda. Pois, quando Satanás não pode causar inimizades entre
nós, ele nos envolve nas contendas insignificantes dos homens. Ló
e Abrão viviam concordemente entre si, mas surgiu entre seus pas-
tores uma contenda, levando-os a um conflito, de modo que foram
obrigados a separar-se um do outro. Não há dúvida de que Abrão
instruíra fielmente aos seus próprios servos a cultivar a paz; contu-
do, até o momento ele não obteve êxito em seu desejo e esforço,
que o impedisse de testemunhar o fogo mais destrutivo da discórdia
aceso em sua casa.
Portanto, não surpreende se vemos tumultos surgindo frequen-
temente nas igrejas, onde há um número ainda maior de pessoas.
Abrão tinha cerca de 300 servos; é provável que a família de Ló ti-
vesse o mesmo número; o que, pois, se pode esperar que ocorra
entre 500 ou 600 homens – especialmente homens adultos –, quan-
do contendem entre si? Entretanto, como não devemos nos deixar
perturbar por tais escândalos, devemos, de toda maneira, cuidar
para que as contendas não se tornem violentas. Porque, a menos
que sejam apaziguadas imediatamente, logo se transformarão em
perniciosas dissensões.
Os cananeus e os ferezeus. Moisés acrescenta isso com o in-
tuito de agravar o mal. Pois ele declara que o calor da contenda veio
a ser tão grave, que não podia ser extinguido, nem amenizado, mes-
mo pelo medo da destruição iminente. Viam-se cercados por tantos
inimigos quanto eram seus vizinhos. Portanto, nada estava faltando
para sua destruição, senão uma ocasião oportuna, e esta, eles mes-
mos estavam propiciando por suas disputas. A questão é a seguin-
te: a fúria cega torna os homens orgulhosos quando prevalece a
veemência da discórdia, e eles displicentemente menosprezam a
morte, mesmo quando esta é posta diante de seus olhos. Ora, em-
bora não estamos continuamente cercados por cananeus, ainda es-
tamos no meio de inimigos, enquanto permanecermos no mundo.
Por isso mesmo, se somos influenciados por algum desejo de nossa
própria salvação e a de nossos irmãos, tomemos cuidado com as
disputas que nos entregarão a Satanás para sermos destruídos.

8. Disse Abrão a Ló. Moisés, antes de tudo, declara que Abrão,


mesmo antes de perceber as contendas que surgiram, cumpriu o
dever de um bom chefe de família, tentando restaurar a paz entre
seus criados; e que depois, por sua moderação, esforçou-se para
remediar o mal, removendo-o. E, embora somente os servos esti-
vessem contendendo, ele não diz em vão: “Não haja contenda entre
mim e ti”, porque dificilmente era possível que um contágio da intriga
não se transferisse dos criados a seus senhores, ainda que em ou-
tros aspectos fossem perfeitamente concordes. Ele também previu
que sua amizade não podia permanecer íntegra por muito tempo, a
menos que ele tentasse, a tempo, curar o mal insidioso.
Além disso, ele chama a atenção para o vínculo de consangui-
nidade entre eles; não porque somente isso fosse suficiente para
promover a paz mútua, mas para que mais facilmente inclinasse e
abrandasse a mente de seu sobrinho. Pois, quando o temor de
Deus é menos eficaz em nós do que deveria ser, é útil procurar ou-
tros meios que possam nos manter em nosso dever. Mas agora, vis-
to que todos nós somos adotados como filhos de Deus, com a con-
dição anexa que sejamos mutuamente irmãos uns dos outros, esse
sacro vínculo é menos valorizado por nós do que deveria ser, se não
provar ser suficiente para aplacar nossas contendas.

9. Acaso, não está diante de ti toda a terra? Aqui está aquela mo-
deração de que já falei, a saber, que Abrão, com o intuito de apazi-
guar a intriga, voluntariamente sacrifica seu próprio direito. Porque,
como a ambição e o desejo de vitória são mãe e pai de todas as
contendas, assim, quando cada um, humilde e moderadamente, se
aparta, em algum grau, de sua justa reivindicação, encontra-se o
melhor remédio para a remoção de toda causa de amargura. De fato
Abrão poderia, com um honroso pretexto, ter defendido mais perti-
nazmente o direito que conquistara, porém faz de tudo para restau-
rar a paz; e, portanto, deixa a opção a seu sobrinho.

10. Levantou Ló os olhos. Como a equidade de Abrão era digna


de não pouco louvor, assim a desconsideração de Ló, aqui descrita
por Moisés, é merecedora de censura. Ele deveria, antes, ter con-
tendido com seu tio pela campina da modéstia, como a própria or-
dem da natureza sugeria; mas, precisamente como se fosse, em
muitos aspectos, o superior, ele usurpa para si mesmo a melhor por-
ção, e faz a escolha daquela região que aparentava ser a mais fértil
e agradável. E, de fato, segue-se necessariamente que, quem quer
que esteja ansioso demais para obter vantagem pessoal, não trata
dignamente os outros.
Não pode haver dúvida de que esta injustiça feriria a mente de
Abrão; porém, ele a suporta em silêncio para que de modo algum
desse ocasião à nova ofensa. E assim devemos agir inteiramente
sempre que percebermos que aqueles com quem nos relacionamos
não são suficientemente cônscios de seu dever; de outro modo, os
conflitos não terão fim.
Quando a vizinha planície de Sodoma é comparada ao “jardim
do S ”, muitos intérpretes a explicam como significando sim-
plesmente que ela era excelente e fértil, no mais elevado grau; por-
que, tudo o que era excelente, os hebreus denominavam de divino.
Entretanto, creio que aqui está se referindo ao lugar onde Adão resi-
diu no princípio. Pois Moisés não propõe uma semelhança geral,
mas diz que a região “era toda bem-regada”, tal como ele relatou
com respeito ao primeiro domicílio do homem, a saber, que um rio,
dividido em quatro braços, o regava; e ainda acrescenta a mesma
coisa com respeito a uma parte do Egito. Portanto, fica claro que,
somente num particular, esse lugar é comparado a outros dois.

13. Ora, os homens de Sodoma. Ló pensava que era feliz só por-


que havia escolhido uma habitação tão rica; mas, por fim, ele perce-
bera que a escolha apressada, com imprudência semelhante à sua
avareza, lhe foi concedida para a sua infelicidade, pois ele teria que
conviver com vizinhos orgulhosos e perversos, cuja conduta era
muito mais difícil de suportar do que se fosse enfrentar a esterilida-
de da terra. Portanto, visto que ele foi levado apenas pelo encanto
da expectativa, ele agora paga o preço de sua tola avareza. Apren-
damos, pois, por esse exemplo, que não devemos confiar em nos-
sos olhos, mas que devemos, antes, estar vigilantes para que não
sejamos iludidos por eles; e, sem perceber, sejamos cercados com
muitos males, assim como Ló que, quando pensou que estava habi-
tando no paraíso, quase mergulhou nas profundezas do inferno.
Mas parece surpreendente que, quando deseja condenar os ho-
mens de Sodoma por sua extrema perversidade, Moisés destaque
que eram perversos diante do Senhor, e não diante dos homens.
Pois quando nos achegarmos ao tribunal de Deus, toda boca se fe-
chará e o mundo inteiro se sujeitará à condenação. Portanto, é pos-
sível que Moisés falasse para amenizar. Mas não é o caso. Pois ele
quer dizer que viviam não apenas sob o domínio daqueles vícios co-
muns, que em toda parte prevalecem entre os homens, mas que fo-
ram abandonados aos mais terríveis crimes, cujo clamor subiu até o
céu (como veremos mais adiante) e exigiam a vingança de Deus.
Contudo, o fato de Deus os ter suportado por algum tempo, e não só
isso, mas também ter permitido que habitassem numa região tão
fértil – ainda que eles fossem totalmente indignos da luz e da vida –,
não proporciona, como daqui inferimos, nenhuma base para que os
perversos se regozijem, quando Deus ainda os tolera por algum
tempo, ou quando, ao tratá-los bondosamente, e mesmo generosa-
mente, Deus, por sua bondade, se empenha contra a ingratidão de-
les.
Entretanto, muito embora exultem em sua luxúria, e inclusive
lancem ultraje contra Deus, que os filhos de Deus sejam admoesta-
dos a não invejar a fortuna deles, mas que aguardem um pouco
mais até que Deus, despertando-os de sua embriaguez, os intime a
comparecer parente o seu terrível tribunal. Portanto, Ezequiel, falan-
do dos homens de Sodoma, declara que esta foi a causa de sua
destruição: que, sendo saturados de pão e vinho, e empanturrados
com iguarias, exerceram uma orgulhosa crueldade contra os pobres
[Ez 16.49].

14. Disse o S a Abrão. Moisés agora relata que, depois que


Abrão se separou de seu sobrinho, o consolo divino foi ministrado
para acalmar a sua mente. Não há dúvida de que a ferida infligida
por aquela separação era muito severa, posto que Abrão se viu obri-
gado a despedir-se de alguém que não lhe era menos querido que
sua própria vida. Portanto, ao dizer que o Senhor falou, exige-se
que se note a circunstância de tempo, como se Moisés quisesse di-
zer que o remédio da palavra de Deus foi então trazido para aliviar a
dor de Abrão. E assim ele nos ensina que o melhor remédio para o
alívio e a cura da tristeza se encontra na palavra de Deus.
Ergue os olhos e olha. Visto que o Senhor promete a terra à
semente de Abrão, percebemos o admirável desígnio de Deus na
partida de Ló. Ele havia designado a terra somente a Abrão; se Ló
permanecera com ele, os filhos de ambos teriam se misturado. A
causa de sua dissensão de fato era culpável; mas o Senhor, segun-
do sua infinita sabedoria, converte-a em um bom resultado: que a
posteridade de Ló não possuiria nenhuma parte da herança. Eis a
razão por que ele diz: “toda essa terra que vês, eu ta darei, a ti e à
tua descendência, para sempre. Portanto, não há razão para que tu,
a quem se dará um galardão tão excelente no futuro, vivas tão ex-
cessivamente triste e atribulado em razão desta solidão e privação.”.
Pois, embora a mesma coisa já fora prometida a Abrão, contudo
Deus agora adapta sua promessa ao alívio da presente dor. E assim
é preciso que se recorde que aqui não só se reitera uma promessa,
a qual pudesse nutrir e confirmar a fé de Abrão, mas que foi dado
um oráculo especial, através do qual Abrão pudesse aprender que
os interesses de sua própria semente deviam ser fomentados pela
sua separação de Ló.
Aqui, a especulação de Lutero (como em outros lugares) não
tem solidez, a saber, que Deus falou através de algum profeta. Ao
prometer a terra “para sempre”, Deus não se refere a uma perpetui-
dade, mas sim àquele período que chegou ao fim com o advento de
Cristo. Concernente ao significado da palavra (olam), os judeus
disputam ignorantemente; mas, enquanto na Escritura ela é tomada
em vários sentidos, aqui significa (como acabei de sugerir) todo o
período da lei, exatamente como a aliança que o Senhor fizera com
seu antigo povo é, em muitos lugares, denominada de eterna; por-
que era o ofício de Cristo, por sua vinda, renovar o mundo. Mas a
mudança que Cristo introduziu não constituía a abolição das antigas
promessas, mas, ao contrário, sua confirmação. Portanto, posto que
Deus não tem agora um povo peculiar na terra de Canaã, e sim um
povo difuso por todas as regiões da terra, isso não contradiz a afir-
mação de que a eterna posse da terra fosse justamente prometida à
semente de Abrão, até a renovação futura.

16. Farei a tua descendência como o pó da terra. Omitindo aque-


las sutilezas por meio das quais outros argumentam sem nenhum
fundamento, simplesmente explico essas palavras no sentido em
que a semente de Abrão é comparada ao pó em razão de sua imen-
sa multidão; e realmente o sentido do termo deve ser buscado so-
mente nas próprias palavras de Moisés. Entretanto, era necessário
que aqui se acrescentasse que Deus levantaria para si uma semen-
te da qual, até então, Abrão era desprovido. E vemos que Deus
sempre o mantém sob o domínio de sua própria palavra, para tê-lo
sempre dependente de seus próprios lábios. Abrão recebe a ordem
de olhar para o pó; mas, quando direciona seu olhar para sua pró-
pria família, que semelhança existe entre sua solidão e as incontá-
veis partículas de pó? Portanto, o Senhor requer que atribuamos
essa autoridade à sua própria palavra, para que somente ela nos
seja suficiente.
Pode também dar ocasião a zombarias o fato de Deus ordenar
a Abrão que viaje até que tivesse examinado toda a terra. Por qual
motivo Deus faria isso, senão para que Abrão pudesse perceber
mais claramente que ele era forasteiro, e que, sentindo-se cansado
por contínua e infrutífera inquietação, perdesse a esperança de al-
guma possessão estável e permanente? Pois como ele se persuadi-
ria de ser o senhor daquela terra na qual raramente se lhe permitia
beber água, embora tenha ele cavado poços com grande trabalho?
Mas esses são os exercícios da fé para que se possa perceber, na
palavra, aquelas coisas que são muito profundas e que estão ocul-
tas da percepção carnal. Pois a fé é a contemplação de coisas que
se não veem [Hb 11.1], e tem a palavra como um espelho, no qual
pode descobrir a graça oculta de Deus. E, em nossos dias, a condi-
ção dos piedosos não é diferente; porque, visto que são odiados por
todos, são expostos ao menosprezo e opróbrio, perambulam sem
um lar, algumas vezes são levados de um lado para outro, e sofrem
de nudez e pobreza. Contudo, seu dever permanece firme na heran-
ça que lhes foi prometida. Portanto, andemos no mundo como pes-
soas privadas de todo repouso, que não têm outro recurso além do
espelho da Palavra de Deus.

18. E Abrão, mudando as suas tendas. Aqui Moisés relata que o


santo homem, animado pela renovação da promessa de Deus, atra-
vessou a terra com grande coragem, como se fosse possível domi-
ná-la apenas com um olhar. Assim vemos quão grandemente o orá-
culo lhe fora proveitoso: não que tivesse ouvido algo novo da boca
de Deus, mas porque ele obtivera um remédio tão oportuno e ade-
quado para a sua presente tristeza, que ele se ergueu, com energia
recobrada, em direção ao céu.
Por fim, Moisés registra que o santo homem, havendo realizado
seu itinerário, regressou aos carvalhais, ou vale de Manre, para ha-
bitar ali. Mas, novamente, ele enaltece sua piedade em levantar um
altar e em invocar a Deus. Com frequência tenho explicado o que
isso significa; pois ele mesmo portava um altar em seu coração. Vis-
to, porém, que a terra estava cheia de altares profanos, sobre os
quais os cananeus e outras nações poluíram o culto divino, Abrão
professava publicamente que ele cultuava o verdadeiro Deus; e
isso, não aleatoriamente, mas segundo o modelo revelado a ele
pela palavra. Disso inferimos que o altar do qual se faz menção não
foi construído precipitadamente por sua mão, mas que foi consagra-
do pela própria palavra de Deus.
C A P ÍT U L O 1 4

1. Sucedeu naquele tempo que Anrafel. Por três razões, história


relatada neste capítulo é primordialmente digna de lembrança. A pri-
meira razão é porque Ló, com uma reprovação moderada, exortou
os homens de Sodoma ao arrependimento; contudo, todos eles se
tornaram completamente contumazes e desesperadamente perver-
sos em sua impiedade. Ló, porém, foi açoitado com esses flagelos
porque, tendo sido seduzido e enganado pela riqueza do solo, mis-
turara-se com homens ímpios e perversos. A segunda razão é por-
que Deus, movido de compaixão para com ele, levantou Abrão
como seu vingador e libertador, para resgatá-lo, quando cativo, da
mão do inimigo; nesse ato, a incrível bondade e benevolência de
Deus para com seu próprio povo se tornam evidentes, posto que,
por amor de um homem, ele preserva, por certo tempo, muitos que
eram totalmente indignos. A terceira razão é porque Abrão fora divi-
namente honrado com uma magistral vitória, e foi abençoado pela
boca de Melquisedeque, em cuja pessoa, como fica claro por outras
passagens da Escritura, o reino e o sacerdócio de Cristo estavam
prefigurados. Em síntese, o resumo da história é um terrível quadro
tanto da avareza quanto do orgulho do homem.
A raça humana tinha ainda seus três progenitores, Sem, Cam e
Jafé, vivendo entre eles, pela própria presença dos quais eram ad-
moestados de que todos eles provieram de uma só família e de uma
só arca. Além disso, a memória de sua comum origem era um sacro
penhor da relação fraternal que deveria uni-los para ajudar uns aos
outros, por ofícios mútuos e bons. Contudo, a ambição prevaleceu
de tal modo que assaltavam uns aos outros de todos os lados, com
espada e armadura, e cada um tentava subjugar os demais. Por
isso mesmo, enquanto vemos, em nossos próprios dias, príncipes
furiosamente enraivecidos e agitando a terra com todo o seu poder,
lembramo-nos de que o mal é coisa antiga, visto que o desejo pelo
domínio tem sido, em todas as eras, tão prevalecente entre os ho-
mens.
Notemos, entretanto, que nenhuma falha é pior do que aquela
altivez mental que muitos julgam ser uma disposição mui heroica. A
ambição de Quedorlaomer era a tocha de toda a guerra, pois ele, in-
flamado com o desejo de triunfar, arrastou outros três reis numa
confederação hostil. E o orgulho obrigou os homens de Sodoma, e
seus aliados, a lançarem mão das armas com o propósito de se li-
vrar do jugo.
Contudo, o fato de Moisés registrar os nomes de tantos reis, en-
quanto Sem ainda vivia (ainda que ridicularizado por homens distin-
tos, porém profanos), não parecerá absurdo, se simplesmente refle-
tirmos que essa grande propagação da raça humana foi um notável
milagre divino. Pois quando Senhor disse ao próprio Noé e a seus fi-
lhos “crescei e multiplicai-vos”, sua intenção era levá-los à esperan-
ça de uma restauração muito mais excelente do que teria sucedido
no curso ordinário da natureza. De fato, essa bênção é perpétua e
florescerá até os confins do mundo, mas era necessário que sua ex-
traordinária eficácia logo se mostrasse, para que esses mais antigos
pais soubessem que um novo mundo havia sido divinamente encer-
rado dentro da arca.
Pelos Poetas, Deucalião e Pirra,1 a sua esposa, repovoaram a
terra após o dilúvio, arremessando pedras para trás de si. Mas, ne-
cessariamente, a consequência é que a miserável mente dos ho-
mens é iludida com tais frivolidades, quando se apartam da pura
verdade de Deus; e Satanás tem feito uso desse artifício, com o pro-
pósito de desacreditar a veracidade dos milagres de Deus. Porque,
visto que a lembrança do dilúvio e da extraordinária propagação de
um novo mundo não poderia ser eliminada tão depressa, ele espa-
lhou nuvens e fumaça, introduzindo conceitos pueris para que, aqui-
lo que outrora tinha sido sustentado como verdade indubitável, fosse
agora considerado uma mera fábula.
No entanto, deve-se observar que Moisés chama a todos eles
de reis, os quais mantinham a prioridade em qualquer cidade, ou em
qualquer considerável assembleia de homens. Questiona-se se
aqueles reis que seguiram a Quedorlaomer habitavam longe uns
dos outros, pois Tidal é chamado “o rei das nações”. Alguns imagi-
nam que ele reinou sobre diferentes nações, como se ele fosse um
rei de reis. Na Vulgata, Jerônimo diz que Arioque é rei de Ponte, o
que é ainda mais absurdo. Ao contrário, eu penso que a verdadeira
razão do nome era que ele possuía um bando composto de deserto-
res e vadios, os quais, havendo deixado seu próprio país, recorre-
ram a ele. Portanto, visto que eram não só uma corporação – nati-
vos de seu próprio país –, mas congregados de uma multidão pro-
míscua, foi com propriedade que ele se chamava “rei das nações”.
Ao dizer que a batalha ocorreu no vale de Sidim, ou na planície
aberta, a qual, quando Moisés escreveu, era o Mar do Sal, não se
deve duvidar de que está implícito o Mar Morto, ou o lago Asfaltite.
Pois ele bem sabia a quem deveria instruir e, por isso, sempre aco-
moda suas palavras à rude capacidade do povo; e esse é seu costu-
me comum em referência aos nomes de lugares, como já sugeri an-
teriormente.
No entanto, antes de se deflagrar a batalha, Moisés declara que
os habitantes da região foram parcialmente atacados. É provável
que todos tenham sido dispersos porque não tinham líder, nem con-
dições favoráveis para que pudessem lutar, até que cinco reis avan-
çaram ao encontro deles com um exército organizado. Agora, embo-
ra Quedorlaomer, por sua tirania e não por uma autoridade legitima,
tivesse subjugado tantos povos e os tornando seus súditos e, por
causa disso, sua ambição deva ser condenada, seus súditos são
justamente punidos por haverem se rebelado precipitadamente.
Pois, embora a liberdade de modo algum deva ser desprezada, a
sujeição que uma vez nos é imposta não pode, sem rebelião implíci-
ta contra Deus, ser transgredida, pois “todo poder é ordenado por
Deus” [Rm 13.1]; entretanto, em seu surgimento, é possível que a
sujeição seja uma consequência do desejo de domínio.
Portanto, alguns dos rebeldes são assassinados como se fos-
sem gado; e, outros, ainda que tivesse vestido armadura e estives-
sem preparados para a batalha, são obrigados a fugir. Assim, infeliz-
mente, para todos os envolvidos, termina a obstinada recusa de pa-
gar tributo. E é preciso que tais narrativas sejam observadas, para
que aprendamos com elas que todos os que se esforçam para pro-
duzir anarquia lutam contra Deus.

10. Os reis de Sodoma e de Gomorra fugiram. Alguns expositores


afirmam que eles caíram nos poços. Mas isso não é provável, posto
que de modo algum eles eram ignorantes quanto à geografia daque-
le lugar. Isso teria ocorrido, antes, com os inimigos estrangeiros. Ou-
tros dizem que eles desceram aos poços na tentativa de preservar
sua vida. Entretanto, entendo que eles trocaram um tipo de morte
por outro, como é comum no momento de desespero, como se Moi-
sés dissesse que as espadas do inimigo lhes eram tão ameaçado-
ras que, sem hesitação, se atiraram de cabeça nos poços. Pois,
imediatamente depois, Moisés diz que os que escaparam fugiram
para os montes. A partir disso inferimos que os que se lançaram nos
poços pereceram. É suficiente saber que eles caíram, não tanto por
desconhecimento do lugar, em razão de ignorância, mas por se sen-
tirem desnorteados pelo medo.

12. Apossaram-se também de Ló. É incerto se, enquanto outros


saíram à batalha, Ló tenha permanecido em casa e ali foi capturado
pelo inimigo, ou se foi obrigado a pegar em armas com o restante do
povo. Contudo, como Moisés não o menciona até falar do saque à
cidade, a hipótese provável é que, no término da batalha, ele foi tira-
do de sua casa, desarmado. Vemos aqui, em primeiro lugar, que os
sofrimentos são comuns aos bons e aos maus; em segundo lugar,
que, quanto mais junto vivemos dos perversos e dos ímpios, mais
depressa nos sobrevém seu flagelo, quando Deus derrama sua vin-
gança sobre eles.

13. Porém veio um, que escapara. Essa é a segunda parte do ca-
pítulo, onde Moisés mostra que, quando Deus considerou seu servo
Ló, ele lhe deu Abrão como seu libertador, para resgatá-lo das mãos
do inimigo. Aqui, porém, surgem várias questões, a saber, se era lí-
cito a Abrão, uma pessoa reservada, armar sua família contra reis e
empreender uma guerra pública. Entretanto, não tenho dúvida de
que, como ele saiu à guerra revestido com o poder do Espírito, as-
sim também ele foi guardado por uma ordem celestial, para que não
transgredisse os limites de sua vocação. E isso não deve ser consi-
derado como sendo algo novo, mas como sendo uma vocação es-
pecial, pois ele já tinha sido feito rei daquela terra. E embora a pos-
se dela fosse adiada para um tempo futuro, Deus daria alguma notá-
vel prova do poder que lhe havia outorgado, e que até então era
desconhecido dos homens. Isso foi um prelúdio semelhante ao que
depois se seguiria com Moisés, que matou o egípcio, antes de apre-
sentar-se publicamente como o vingador e libertador de sua nação.
Por isso, uma questão deve ser notada: os que desejam se defen-
der pela força armada, sempre que alguma força for usada contra
eles, podem, com base nesses fatos, tomar tais atitudes como re-
gras para si.
Mais adiante veremos esse mesmo Abrão suportando paciente-
mente, e com mente submissa, injúrias que continham, ao menos,
igual tendência de provocar seu espírito. Além disso, que Abrão
nada tentou precipitadamente, mas, antes, que seu propósito foi
aprovado por Deus, como se tornará claro no enaltecimento de Mel-
quisedeque. Podemos, portanto, concluir que essa guerra foi por ele
empreendida sob a especial diretriz do Espírito. Se alguém discor-
dar disso, dizendo que ele foi além do que lhe era lícito, pois despo-
jou os vitoriosos de suas vítimas e cativos, e os restaurou totalmente
aos homens de Sodoma, os quais de modo algum estavam sob sua
proteção, minha resposta é que, uma vez que Deus era seu Guia e
Líder nesse empreendimento – como inferimos de sua aprovação –,
não nos cabe disputar acerca de seu juízo secreto. Quando seus vi-
zinhos foram arruinados e destruídos, Deus já havia destinado os
habitantes de Sodoma a um juízo ainda mais severo, porque eles
mesmos eram os piores de todos. Ele, pois, levantou seu servo
Abrão, depois de havê-los admoestado por meio de um castigo sufi-
cientemente severo, para libertá-los, a fim de que se tornassem ain-
da mais indesculpáveis.
Portanto, essa singular sugestão do Espírito Santo não deve
ser tomada como um precedente, mas apenas como a descrição de
toda a guerra que Abrão havia efetuado. Com respeito ao mensagei-
ro que relatara a Abrão a mortandade em Sodoma, não aceito o que
alguns supõem, a saber, que ele era um homem piedoso. Ao contrá-
rio, podemos supor que, como um fugitivo de casa, que se viu priva-
do de todos os seus bens, ele se dirigiu a Abrão para tirar proveito
de sua bondade. Que Abrão é chamado hebreu, não o explico como
oriundo de haver ele atravessado o rio, conforme a opinião de al-
guns, e sim por descender de Héber. Pois é um nome de descen-
dente. E aqui o Espírito Santo uma vez mais anuncia honrosamente
aquela descendência como sendo abençoada por Deus.
Os quais eram aliados de Abrão. Tudo indica que, com o pas-
sar do tempo, Abrão teve liberdade para fazer aliança e amizade
com os príncipes da terra, pois as suas virtudes heroicas fizeram
com que eles o considerassem como alguém que, de modo algum,
poderia ser desprezado. E mais: como ele tinha uma família tão
imensa, podia ser também catalogado entre os reis, se ele não fos-
se um forasteiro e peregrino. Deus, porém, propôs prover a paz por
meio de uma aliança relativa às coisas temporais, para que ele ja-
mais se misturasse àquelas nações. Além disso, que toda essa tran-
sação foi divinamente ordenada, podemos prontamente supor com
base no fato de que seus aliados não hesitaram, apesar do grande
risco, em atacar quatro reis que (dadas as circunstâncias) eram sufi-
cientemente fortes, e estavam inflamados com a confiança da vitó-
ria. Seguramente, era muito difícil que tratassem tão favoravelmente
a um forasteiro, caso não fosse por uma ação secreta de Deus.

14. Ouvindo Abrão que seu sobrinho estava preso. De modo


breve, Moisés explica a causa da guerra que fora empreendida, a
saber, para que Abrão pudesse resgatar seu parente do cativeiro.
Entretanto, vale lembrar o que eu já disse: que ele não recorreu pre-
cipitadamente às armas, mas as tomou como que da mão de Deus,
que o constituíra senhor daquela terra.
Com referência às palavras propriamente ditas, não sei por que
Jerônimo as traduziu “Abrão contou seus servos treinados”, pois a
palavra (rik) significa desembainhar ou puxar, tirar. Agora, Moisés
chama esses servos de (chanichim), não como tendo sido edu-
cados e treinados para o serviço militar, como muitos pressupõem,
mas, antes (em minha opinião), como tendo sido criados sob sua
própria autoridade, e imbuídos, desde a infância, com sua disciplina;
de modo que lutavam ainda mais corajosamente, sendo estimulados
pela fé dele, e avançando sob seus cuidados; e já estavam prontos
a enfrentar todo tipo de perigo por amor a ele. Mas, nessa grande
tropa familiar, devemos notar não só a diligência do santo patriarca,
mas também a bênção especial de Deus, por meio da qual ela foi
aumentada além do comum e do modo usual.
15. E, repartidos contra eles. Alguns explicam essas palavras no
sentido de que Abrão sozinho, com sua tropa familiar, avançou con-
tra o inimigo. Outros, que ele e seus três confederados dividiram
seus grupos a fim de imprimir maior terror no inimigo. Um terceiro
grupo supõe que a frase constitui um hebraísmo, significando uma
invasão do território inimigo. Ao contrário, adoto a terceira explica-
ção, a saber, que ele invadiu o território inimigo por lados diferentes,
e repentinamente lhes inspirou terror. Pois a circunstância de tempo
favorece esse ponto de vista, porque ele os atacou à noite. E, embo-
ra na história profana ocorram exemplos de semelhante bravura,
contudo, deve-se atribuir à fé de Abrão o fato de ele, com uma pe-
quena tropa, ter atacado um numeroso exército exaltado pela vitória.
Mas, que ele saísse vencedor sem grandes dificuldades e com intre-
pidez perseguisse os que lhe excediam muito em número, devemos
atribuir ao favor divino.

17. Saiu-lhe ao encontro o rei de Sodoma. Embora o rei de Sodo-


ma soubesse que Abrão pegou em armas somente por causa de
seu sobrinho, ele saiu a seu encontro com a devida honra, para de-
monstrar a sua gratidão. Pois é um dever natural reconhecer os be-
nefícios conferidos a nós, mesmo quando não rendidos intencional-
mente, mas apenas movido pelas circunstâncias e ocasiões inespe-
radas ou (como dizemos) por acidente. Além disso, todo o evento
rende maior glória a Deus porque a vitória de Abrão foi celebrada
dessa maneira. Moisés destaca ainda o lugar onde o rei de Sodoma
encontrou-se com Abrão, a saber, “no vale de Savé”, o qual penso
ser assim chamado mais por causa de algum rei em particular, do
que por causa daqueles reis que se encontravam ali a seu bel-pra-
zer.

18. Melquisedeque, rei de Salém, trouxe pão e vinho. Esse é o


último dos três principais pontos da história: que Melquisedeque, à
época o principal pai da Igreja, tendo entretido Abrão numa festa, o
abençoou, por causa de seu sacerdócio, e dele recebeu dízimos.
Sem dúvida, com a vinda desse rei para encontrá-lo, aprouve tam-
bém a Deus tornar a vitória de Abrão famosa e memorável à posteri-
dade. Mas, ao mesmo tempo, um mais exaltado e excelente mistério
foi esboçado: visto que o santo patriarca, a quem Deus elevara à
mais alta posição de honra, se submeteu a Melquisedeque, não se
pode duvidar de que Deus o havia constituído como o única cabeça
de toda a Igreja; pois, indiscutivelmente, o solene ato de abençoar,
que Melquisedeque assumiu para si, era um símbolo de dignidade
preeminente.
Se alguém replica que ele fez isso na qualidade de sacerdote,
pergunto se porventura Abrão não era também sacerdote. Portanto,
Deus, aqui, em Melquisedeque, nos recomenda algo peculiar, ao
preferi-lo antes que ao pai de todos os fiéis. Mas será mais satisfató-
rio examinar a passagem palavra a palavra, na sequência, para que
daqui deduzamos melhor a essência do todo. O fato de ele ter rece-
bido Abrão e seus companheiros como hóspedes, pertencia à sua
realeza; mas a bênção pertencia especialmente ao seu ofício sacer-
dotal. Portanto, as palavras de Moisés devem ser assim relaciona-
das: Melquisedeque, rei de Salém, apresentou pão e vinho; e, visto
que era sacerdote de Deus, ele abençoou Abrão; assim, a cada per-
sonagem é distintamente atribuído o que é propriamente seu. Ele re-
frigerou um exército exausto e faminto com generosidade real; mas,
porque era sacerdote, ele abençoou, pelo rito de oração solene, o
primogênito de Deus e o pai da Igreja. Embora eu não negue que
esse era um costume muito antigo, pois os que eram reis também
cumpriam o ofício do sacerdócio, entretanto, tudo indica que isso foi,
mesmo naquela época, extraordinário para Melquisedeque. E real-
mente ele é honrado – e não com um enaltecimento comum – quan-
do o Espírito confirma seu sacerdócio.
Sabemos como, naquele tempo, a religião estava por toda parte
corrompida, visto que até mesmo Abrão, que era descendente da
santa semente de Sem e de Héber, vivera mergulhado no profundo
turbilhão da superstição, juntamente com seu pai e avô. Portanto,
muitos imaginam que Melquisedeque era Sem, mas eu não concor-
do com essa opinião, por muitas razões. Pois o Senhor não teria de-
signado um homem que é digno de eterna memória por um nome
tão novo e obscuro, e que permaneceria desconhecido. Segundo,
não é provável que Sem houvesse migrado do oriente para a Ju-
deia; mas nada semelhante a isso pode ser deduzido das palavras
de Moisés. Terceiro, se Sem houvesse habitado na terra de Canaã,
Abrão não teria perambulado por caminhos tão tortuosos, como Moi-
sés previamente relatou, antes de ir e saudar a seu ancestral. Mas a
declaração do apóstolo é de maior peso, a saber, que independente-
mente de quem Melquisedeque era, ele nos é apresentando sem
qualquer origem, como se tivesse caído das nuvens, e que seu
nome é sepultado sem qualquer menção de sua morte [Hb 7.3]. Mas
a admirável graça de Deus brilha mais claramente numa pessoa
desconhecida porque, em meio às corrupções do mundo, somente
ele, naquela terra, cultivava e guardava, de modo íntegro e sincero,
a verdadeira religião.
Omito os absurdos que Jerônimo reúne em sua Epístola a Eva-
grius para que, sem qualquer vantagem, não cause incômodo, e
mesmo ofensa, ao leitor. Prontamente, creio que Salém deva ser to-
mada por Jerusalém, e essa é a interpretação geralmente aceita.
Entretanto, se alguém preferir abraçar uma opinião contrária, visto
que a cidade estava situada numa planície, não lhe faço oposição.
Sobre esse ponto, Jerônimo pensa diferentemente; contudo, o que
em outro lugar ele relata, que em seus próprios dias eram ainda
existentes alguns vestígios do palácio de Melquisedeque nas anti-
gas ruínas, parece-me improvável.
Resta, então, ver como Melquisedeque portava a imagem de
Cristo, e se tornou, por assim dizer, seu representante. Estas são as
palavras de Davi: “O Senhor jurou, e não se arrependerá: tu és sa-
cerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque” [Sl
110.4]. Primeiro, ele o colocara em um trono real; agora, lhe confere
a honra do sacerdócio. Mas, sob a lei, esses dois ofícios eram tão
distintos, que era ilícito aos reis usurparem o ofício do sacerdócio.
Portanto, se concedermos como verídico o que declara Platão, e o
que ocasionalmente ocorre nos poetas: que outrora foi aceito, pelo
costume popular das nações, que a mesma pessoa fosse, respecti-
vamente, rei e sacerdote, esse de modo algum foi o caso com Davi
e sua posteridade, a quem a lei proibia peremptoriamente introme-
ter-se no ofício sacerdotal. Portanto, era certo que, o que fora divi-
namente designado sob a antiga lei, deveria ser revogado na pes-
soa desse sacerdote. E o apóstolo não argumenta sem razão que
aqui se apontava um sacerdócio muito mais excelente que o antigo
e prefigurativo, sacerdócio que fora confirmado por um juramento.
Além disso, nunca encontramos aquele rei e sacerdote que seria
preeminente sobre todos, até que chegamos a Cristo.
Visto que, além de Cristo, não teve ninguém que se equiparas-
se a Melquisedeque em dignidade, nem que o suplantasse, pode-
mos inferir que a imagem de Cristo foi apresentada aos pais em sua
pessoa. De fato, Davi não propõe uma semelhança projetada por si
mesmo, mas declara a razão pela qual o reino de Cristo foi divina-
mente ordenado, e inclusive confirmado com um juramento; e não
se deve duvidar que a mesma verdade foi prévia e tradicionalmente
transmitida pelos pais. A suma de tudo é que Cristo seria, assim, o
rei junto a Deus, e que seria também ungido sacerdote, e isso para
todo o sempre; o que nos é muito útil saber, a fim de que aprenda-
mos que o poder real de Cristo é unido com o ofício de sacerdote.
A mesma Pessoa, pois, que foi constituída o único e eterno Sa-
cerdote com o fim de nos reconciliar com Deus, e que, tendo feito a
expiação, pode interceder por nós, é também um Rei de infinito po-
der para assegurar nossa salvação e nos proteger por sua cuidado-
sa guarda. Consequentemente, confiando em sua intercessão, po-
demos permanecer ousadamente na presença de Deus, que, como
nos é assegurado, nos será propício; e que, confiando em seu in-
vencível braço, certamente triunfaremos sobre todos os inimigos.
Mas aqueles que separam um ofício do outro rasga Cristo e subver-
te sua própria fé, se privando da metade de sua base.
É preciso observar ainda que, à semelhança de Melquisedeque,
Cristo é chamado Rei eterno. Porque, posto que a Escritura, não as-
sinalando um término para sua vida, e o apresentando como se fos-
se viver para sempre, certamente nos representa ou simboliza, em
sua pessoa, uma figura, não de um reino temporal, e sim eterno.
Mas enquanto Cristo, por sua morte, realizou o ofício de Sacerdote,
segue-se que Deus foi, por esse único sacrifício, de tal modo apazi-
guado que agora se deve buscar reconciliação somente em Cristo.
Portanto, lhe faz grave injúria e subtrai dele, por abominável sacrilé-
gio, a honra que lhe foi divinamente conferida por juramento, quem,
ou institui outros sacrifícios para a expiação de pecados, ou cria ou-
tros sacerdotes.
Gostaria que isso tivesse sido prudentemente ponderado pelos
antigos escritores da Igreja, pois, assim, não teriam tão insipidamen-
te, e inclusive tão ignorantemente, transferido para o pão e o vinho a
semelhança entre Cristo e Melquisedeque, a qual consiste em coi-
sas muito diferentes. Eles supõem que Melquisedeque é a imagem
de Cristo porque ele ofereceu pão e vinho; e acrescenta que Cristo
ofereceu seu corpo, o qual é pão vivificante, e seu sangue, o qual é
bebida espiritual. Mas o apóstolo, que em sua Epístola aos Hebreus
muito acuradamente expõe, e especialmente conclui, cada ponto de
similaridade entre Cristo e Melquisedeque, não diz sequer uma pala-
vra acerca do pão e do vinho. Se as sutilezas de Tertuliano, e de ou-
tros como ele, fossem verídicas, teria sido uma culpável negligência
do apóstolo não atribuir sequer uma única sílaba ao ponto principal,
enquanto discute as partes separadas, as quais eram de importân-
cia comparativamente trivial. E, visto que o apóstolo discute de
modo tão extenso e com tal minúcia acerca do sacerdócio, que gra-
ve exemplo de esquecimento seria não tocar naquele memorável
sacrifício no qual estava compreendida toda a força do sacerdócio!
O apóstolo prova a honra de Melquisedeque a partir da bênção con-
cedida e dos dízimos recebidos; sendo assim, quão mais apropriado
teria sido esse argumento, se ele dissesse que Melquisedeque ofe-
receu, não cordeiros ou bezerros, e sim a vida do mundo (isto é, o
corpo e sangue de Cristo) numa figura! Por esses argumentos, as
ficções dos antigos são amplamente refutadas. Contudo, das própri-
as palavras de Moisés pode-se extrair uma refutação suficientemen-
te lúcida. Pois ali não se lê que algo foi oferecido a Deus, mas se
declara, em um só discurso contínuo, que “ele ofereceu pão e vi-
nho”; e, visto ser “sacerdote do Deus Altíssimo”, o abençoou. Quem
não percebe que o mesmo pronome relativo é comum a ambos os
verbos e, portanto, que Abrão foi tanto renovado com o vinho quanto
honrado com a bênção?
Completa e verdadeiramente ridículos são os papistas que dis-
torcem a oferta de pão e vinho para o sacrifício de sua missa. Pois,
para que Melquisedeque concordasse com eles, seria necessário
que admitissem que na missa se oferecem pão e vinho. Onde, pois,
está a transubstanciação que nada deixa exceto a mera forma exter-
na dos elementos? Então, com que audácia declaram que o corpo
de Cristo é imolado em seus sacrifícios? Sob que pretexto, posto
que o Filho de Deus é chamado o único sucessor de Melquisede-
que, lhe dão inumeráveis sucessores? Vemos, pois, quão tolamente
eles não apenas distorcem essa passagem, mas também a expli-
cam sem o embasamento da razão.

19. Abençoou ele a Abrão. A menos que estas duas partes da sen-
tença: “era sacerdote de Deus” e “abençoou” concordem, Moisés,
aqui, nada diria de incomum. Pois os homens abençoam mutuamen-
te uns aos outros, isto é, desejam o bem uns aos outros. Aqui, po-
rém, se descreve o sacerdote de Deus, o qual, segundo o direito de
seu ofício, santifica um inferior e sujeito a si. Pois Melquisedeque
nunca teria abençoado a Abrão, a menos que soubesse que, nesse
aspecto, ele lhe era superior. Dessa maneira, os sacerdotes levíticos
têm a ordem de abençoar o povo; e Deus promete que a bênção se-
ria eficaz e ratificada [Nm 6.23]. Assim Cristo, quando estava para
ascender ao céu, erguendo as suas mãos, abençoou os apóstolos,
na qualidade de ministro da graça de Deus [Lc 24.51], e então foi
exibida a veracidade dessa figura. Pois ele testifica que o ofício de
abençoar a Igreja, o qual fora prefigurado em Melquisedeque, lhe
fora designado por seu Pai.
Bendito seja Abrão pelo Deus Altíssimo. O propósito de Mel-
quisedeque é confirmar e ratificar a graça da vocação divina ao san-
to Abrão; pois ele realça a honra com que Deus peculiarmente o
honrara, separando-o de todos os demais, e adotando-o como seu
próprio filho. E chama Deus, por quem Abrão fora escolhido, de
aquele “que possui os céus e a terra”, para distingui-lo dos ídolos
fictícios dos gentios. Depois, de fato, outros títulos são dados a
Deus para que, por alguma marca peculiar, ele se tornasse mais cla-
ramente conhecido aos homens, os quais, por causa da vaidade de
sua mente, quando simplesmente ouvem de Deus como o Criador
do céu e terra, nunca cessam de divagar, até que se achem perdi-
dos em suas próprias especulações.
Visto, porém, que Deus já era conhecido de Abrão, e sua fé es-
tava fundada em muitos milagres, Melquisedeque julga suficiente
declarar, pelo título o Criador, que, aquele a quem Abrão cultuava é
o verdadeiro e único Deus. E, embora o próprio Melquisedeque
mantivesse o sincero culto ao verdadeiro Deus, contudo chama
Abrão “bendito de Deus”, com relação à aliança eterna, como se
quisesse dizer que, por um tipo de direito hereditário, a graça de
Deus residia em uma família e nação, porque somente Abrão fora
escolhido dentre o mundo inteiro. Em seguida, acrescenta-se uma
congratulação especial pela vitória obtida; não como se costuma fa-
zer entre os homens profanos, que ensoberbecem uns aos outros
com inflados elogios; mas Melquisedeque rende graças a Deus e
considera a vitória que o santo homem conquistou como sendo um
selo de sua graciosa vocação.

20. E de tudo lhe deu Abrão o dízimo. Alguns entendem que os


dízimos foram dados a Abrão; mas o apóstolo fala em outros ter-
mos, declarando que Levi pagara dízimos na pessoa de Abrão [Hb
7.9], quando Abrão ofereceu dízimos a um Sacerdote mais excelen-
te. E, de fato, o que os expositores acima mencionados têm em vis-
ta seria muito absurdo; porque, se Melquisedeque era o sacerdote
de Deus, cabia-lhe receber dízimos, e não dá-los. Nem se deve du-
vidar que Abrão ofereceu a dádiva a Deus, na pessoa de Melquise-
deque, para que, por tais primícias, pudesse dedicar a Deus tudo
quanto possuía. Abrão, pois, dá voluntariamente dízimos a Melqui-
sedeque, com o intuito de honrar seu sacerdócio. Além disso, visto
parecer que isso não foi feito de maneira errônea nem precipitada-
mente, o apóstolo infere com propriedade que, nessa figura, o sa-
cerdócio levítico é subordinado ao sacerdócio de Cristo. Por outras
razões, Deus mais tarde ordenou que se dessem dízimos a Levi,
sob a lei; mas, na época de Abrão, eles eram apenas uma santa
oferenda, dada como penhor e prova de gratidão.
Contudo, é incerto se Abrão ofereceu dízimo dos despojos ou
dos bens que possuía em casa. Mas, visto ser improvável que fosse
generoso com os bens alheios, e houvera dado uma décima parte
do despojo, da qual ele resolveu não tocar nem mesmo um fio, an-
tes suponho que esses dízimos foram tirados de sua própria proprie-
dade. Entretanto, não admito que eram pagos anualmente, como al-
guns imaginam, senão que, ao contrário, em minha opinião, ele de-
dicou esse presente a Melquisedeque uma vez por todas, com o
propósito de reconhecê-lo como o sumo sacerdote de Deus; nem
poderia, naquele tempo (como diríamos), entregá-lo; mas havia uma
solene estipulação, da qual o efeito se seguiria pouco depois.
21. Então, disse o rei de Sodoma. Tendo Moisés, a propósito, in-
terrompido o curso de sua narrativa a respeito do rei de Sodoma,
pela menção do rei de Salém, agora a retorna novamente e diz que
o rei de Sodoma veio ao encontro de Abrão; não apenas com o in-
tuito de congratulá-lo, mas também de dar-lhe a devida recompen-
sa. Ele, pois, lhe transfere todo o despojo, exceto os homens, como
se quisesse dizer: “É sumamente importante que eu recupere os ho-
mens; mas que tudo mais te seja dado como recompensa por esse
benefício.”. Teria realmente sido digno de louvor mostrar-se grato ao
homem, se o rei não fosse ingrato para com Deus, por cuja severi-
dade e clemência permaneceu igualmente sem benefício. Era ainda
possível que esse homem, quando pobre e privado de todos os
seus bens, e com uma simples demonstração de modéstia, pudesse
tentar ganhar o favor de Abrão dizendo que não queria nada para si
mesmo, exceto os cativos e a cidade vazia. Certamente mais adian-
te veremos que os homens de Sodoma não se importaram com o
benefício recebido, quando orgulhosa e desdenhosamente afligiram
o justo Ló.

22. Mas Abrão lhe respondeu: Levanto a mão ao S . Essa


antiga cerimônia era muito apropriada para dar expressão à força e
natureza de um juramento. Porque, ao erguermos a mão para o céu,
mostramos que recorremos a Deus como testemunha, e também
como um vingador, se deixarmos de cumprir nosso juramento. De
fato antigamente erguiam suas mãos ao fazerem votos; de onde o
grego deriva a palavra (cheiksotonein),2 que significa decre-
tar; mas no rito de juramento, a razão para fazer isso era diferente.
Pois os homens com isso declaravam que se consideravam na pre-
sença de Deus, e o invocavam para que fosse o Guardião da verda-
de e o Vingador do perjúrio.
Contudo, pode parecer estranho que Abrão tenha se posiciona-
do tão rapidamente para jurar, pois ele sabia que um grau de reve-
rência é devido ao nome de Deus, o qual deveria nos obrigar a usá-
lo, porém com moderação e apenas por necessidade. Respondo
que houve duas razões para seu juramento. Primeira, visto que os
homens inconstantes costumam medir os outros por seu próprio pa-
drão, raramente depositam sua confiança em meras afirmações. O
rei de Sodoma, portanto, pensou que Abrão seriamente não deixaria
para lá o que era seu por direito, a menos que o nome de Deus fos-
se interposto. E, segunda, era de grande importância tornar mani-
festo a todos que Abrão não havia efetuado uma guerra mercenária.
As histórias de todos os tempos declaram suficientemente que,
mesmo os que têm tido causas justas para a guerra, contudo, se
motivam para ela pela sede de lucro privado. E, como os homens
são perspicazes em inventar pretextos, nunca se sentem perdidos
para achar razões plausíveis para a guerra, mesmo quando a cobiça
seja seu único e real estimulante. Portanto, a menos que Abrão re-
cusasse resolutamente os despojos de guerra, o rumor teria se es-
palhado imediatamente, que, sob o pretexto de resgatar seu sobri-
nho, sua intenção era lançar mão do despojo. Contra isso era ne-
cessário que ele se guardasse prudentemente, não tanto por sua
própria causa, mas por causa da glória de Deus, a qual de outro
modo teria sido depreciada. Além disso, Abrão desejava armar-se
com o nome de Deus, como com um escudo, contra todas as fasci-
nações da avareza. Pois o rei de Sodoma não teria desistido de ten-
tar sua mente por vários métodos, se a ocasião para usar insinua-
ções sutis não fosse imediatamente eliminada.

23. E juto que nada tomarei de tudo o que te pertence, nem um


fio, nem uma correia de sandália. Os hebreus têm uma forma elíp-
tica de fazer juramento, na qual subentende a imprecação de puni-
ção. Em alguns lugares, a expressão completa dela ocorre nas Es-
crituras: “Deus me faça o que bem lhe aprouver” [1Sm 14.44]. Entre-
tanto, uma vez que é algo terrível cair nas mãos do Deus vivo, para
que obrigação dos juramentos seja ainda mais amarrada, essa for-
ma abrupta de linguagem admoesta os homens a refletirem sobre o
que estão fazendo, pois é precisamente como se pusessem restri-
ções sobre si mesmos, e se detivessem subitamente no meio de
seu discurso. Aliás, isto é certíssimo: que os homens nunca juram
precipitadamente, mas provocam a vingança de Deus contra si e fa-
zem dele seu adversário.
Para que não digas. Embora essas palavras pareçam denotar
uma mente soberba e demasiadamente apegada à fama, contudo,
visto que Abrão é nesse ponto elogiado pelo Espírito, concluímos
que essa foi uma magnanimidade realmente santa. Acrescenta-se,
porém, uma exceção, a saber, que ele não permitirá que sua gene-
rosidade seja prejudicial aos seus aliados, nem os sujeitará a suas
leis. Por isso também não é pouco virtuoso agir corretamente, mas
de tal maneira que não obrigue outros ao nosso exemplo, como se
fosse uma norma. Cada um, pois, considere o que exige sua própria
vocação e o que é pertinente ao seu próprio dever, para que os ho-
mens não julguem antecipadamente uns aos outros, segundo sua
própria vontade. Pois é uma morosidade tão arrogante desejar que,
o que nós mesmos reputamos como certo e de conformidade com
nosso dever, seja prescrito como lei aos outros.

1 Uma referência ao mito grego de Deucalião e Pirra. Segundo esse mito, Deucalião e Pir-
ra foram os únicos sobreviventes de um dilúvio. Com o intuito de repovoar a terra, eles diri-
giram-se aos deuses para saber como poderiam criar uma nova raça. Ao consultarem o
oráculo, eles receberam a seguinte resposta: “Saiam do templo com a cabeça coberta e as
vestes desatadas, e atirai para trás os ossos de vossa mãe”. Deucalião chegou à conclu-
são de que a Terra era a mãe comum de todos e as pedras seriam os seus ossos. Assim,
ambos cobriram a cabeça, folgaram as vestes, apanharam as pedras e atiraram-nas para
trás. As pedras amoleceram e começaram a tomar forma humana. As pedras atiradas pe-
las mãos do homem tornaram-se homens; e aquelas atiradas pelas mãos da mulher torna-
ram-se mulheres.
2 Literalmente: estender a mão.
C A P ÍT U L O 1 5

1. Veio a palavra do S . Quando os negócios de Abrão pros-


peraram e avançavam segundo seu desejo, poderia ser que essa vi-
são parecesse supérflua; especialmente porque o Senhor já ordena-
ra a seu servo, como a alguém estremecido e afligido com temor,
que tivesse bom ânimo. Portanto, certos escritores supõem que
Abrão, tendo regressado do livramento de seu sobrinho, estivesse
sujeito a algum aborrecimento do qual Moisés não faz nenhuma
menção; exatamente como o Senhor costuma humilhar a seu povo,
para que não exultem em sua prosperidade; e eles ainda presumem
que, quando Abrão estava desanimado, ele foi outra vez animado
com um novo oráculo. Visto, porém, que não há nas palavras de
Moisés nenhuma justificativa para tal hipótese, creio que a causa
era outra. Primeiro, embora ele fosse aplaudido de todos os lados,
não pode haver dúvida de que várias suspeitas invadiram sua pró-
pria mente. Porque, embora Quedorlaomer e seus aliados fossem
vencidos na batalha, Abrão os havia provocado de tal maneira que
poderiam, com novas tropas e com força renovada, atacar a terra de
Canaã. Nem mesmo os habitantes da terra estavam livres do temor
desse perigo. Segundo, como sinal de sucesso geralmente arrasta
consigo sua companheira inveja, Abrão ficou exposto a muitos olha-
res invejosos, depois de haver ousado lutar contra um exército que
havia vencido quatro reis.
Poderia surgir ainda uma suspeita desfavorável: que talvez pu-
desse direcionar a força que ele usou contra os reis estrangeiros,
contra seus vizinhos e sobre aqueles que de forma hospitaleira o re-
ceberam. Portanto, como a vitória lhe era uma honra, assim não se
pode duvidar que ela lhe tornasse nobre e um objeto de suspeita
para muitos, ao mesmo tempo em que também inflamava o ódio de
outros, visto que cada um imaginaria para si algum perigo, devido
ao seu grande sucesso.
Portanto, não é estranho que ele tenha ficado perturbado, e an-
siosamente revolvesse muitas coisas, até que Deus o animasse de
novo pela confiante expectativa de sua ajuda. Poderia haver tam-
bém outra questão a ser respondida pelo oráculo, a saber, que Deus
trataria e corrigiria um erro em seu servo. Pois era possível que
Abrão estivesse tão entusiasmado com sua vitória, que se esque-
cesse de sua própria vocação e buscasse para si a conquista de do-
mínio, como alguém que, cansado de uma vida de peregrinação e
de dificuldades intermináveis, desejasse uma melhor sorte e uma
vida sossegada. E sabemos quão passíveis são os homens de enre-
dar-se pela comodidade da vida próspera e alegre. Portanto, Deus
antecipa o perigo; e antes que essa vaidade se apoderasse da men-
te do santo homem, Deus traz à sua memória a graça espiritual que
lhe fora concedida a fim de que ele se submetesse inteiramente a
ela e desprezasse todas as outras coisas.
Entretanto, uma vez que a expressão “Não temas” soa como se
Deus acalmasse a aflição e ansiedade de seu servo com alguma
consolação, é provável que ele necessitasse de tal confirmação por-
que percebia que muitos se enfureceram malignamente contra sua
vitória, e que sua velhice estaria exposta a severos aborrecimentos.
Contudo, é possível que Deus não o impedisse de temer porque
Abrão já estaria com medo; mas que ele poderia aprender corajosa-
mente a desprezar, e a considerar como nada, todo o favor do mun-
do e toda a riqueza terrena, como se dissesse: “Se somente eu te
sou propício, não há razão para temeres; esteja contente somente
comigo no mundo, prossiga, como começaste, em tua peregrinação;
e, ao invés de se apegar à terra, dependa do céu.”. De qualquer for-
ma, Deus relembra ao seu servo, mostrando que bênçãos muitos
maiores estavam entesouradas para ele em Deus, a fim de que
Abrão não descansasse satisfeito com sua vitória. Moisés diz que
Deus falou a Abrão “em visão”, ressaltando que alguns símbolos vi-
síveis da glória de Deus foram acrescentados à palavra, para que
maior autoridade pudesse ser dada ao oráculo. E esse era um de
dois métodos ordinários pelos quais o Senhor costumava, antiga-
mente, manifestar-se aos seus profetas, como se acha expresso no
livro de Números [12.6].
Não temas, Abrão. Embora a promessa venha por último no
texto, ela tem precedência na ordem porque dela depende a confir-
mação pela qual Deus liberta o coração de Abrão do medo. Deus
exorta Abrão a viver com mente tranquila; mas, que fundamento há
para tal segurança, a menos que, pela fé, entendamos que Deus
cuida de nós, e aprendamos a descansar em sua providência? As-
sim, a promessa de que Deus seria o escudo de Abrão e seu galar-
dão sobremodo grande ocupa o primeiro lugar, à qual se acrescenta
esta exortação: confiando em tal guardião de sua segurança e em
tal autor de sua felicidade, ele não deveria temer. Portanto, para tor-
nar mais claro o sentido das palavras, é preciso inserir a partícula
causal: “Não temas Abrão, porque eu sou teu escudo.”. Além disso,
pelo uso da palavra “escudo”, Deus quer dizer que Abrão estaria
sempre seguro sob sua proteção.
Ao chamar-se a si mesmo de seu “galardão”, Deus ensina que
Abrão viveria satisfeito somente com ele. E como essa foi, com res-
peito a Abrão, uma instrução geral, dada com o propósito de mos-
trar-lhe que a vitória não era o bem principal e último que Deus lhe
designara a perseguir, assim saibamos que a mesma bênção é pro-
metida a todos nós, na pessoa desse único homem. Porque, por
essa voz, Deus fala diariamente aos seus fiéis que, tendo uma vez
pretendido nos defender, ele cuidará de nos preservar em seguran-
ça sob sua mão e de nos proteger por seu poder.
Ora, visto que Deus atribui a si o ofício e propriedade de um es-
cudo com o propósito de se tornar o protetor de nossa salvação, de-
vemos considerar essa promessa como um muro de bronze, de
modo que não devemos temer excessivamente diante de quaisquer
perigos. E, visto que os homens, cercados por vários e inumeráveis
desejos carnais, costumam ser instáveis, e, assim, se mostram tão
apegados ao amor da presente vida, segue-se a outra parte da sen-
tença, na qual Deus declara que somente ele é suficiente para a
perfeição de uma vida feliz para os fiéis. Pois a palavra “galardão”
também significa herança ou felicidade. Se, em nossa mente, fosse
gravado que somente em Deus temos a mais elevada e completa
perfeição de todas as boas coisas, facilmente fixaríamos limites aos
desejos perversos pelos quais somos miseravelmente atormenta-
dos. Portanto, este é o significado da passagem: que seremos real-
mente felizes quando Deus nos for propício, pois ele não só derra-
ma sobre nós a abundância de sua bondade, mas também ele se
oferece a nós para que o desfrutemos.
Ora, o que mais existe que os homens possam desejar, quando
realmente desfrutam de Deus? Davi conhecia a força dessa promes-
sa, quando se gloriou por haver obtido a porção excelente, porque o
Senhor era sua herança [Sl 16.5]. Visto, porém, que nada é mais di-
fícil do que conter os apetites depravados da carne, e visto que a in-
gratidão dos homens é tão vil e ímpia que, para eles, nem Deus é
suficiente para satisfazê-los, o Senhor se denomina não simples-
mente de “um galardão”, mas “um galardão sobremodo grande”,
com o qual devemos estar completamente contentes. Isso realmen-
te fornece uma base sólida e um grande suporte para a confiança.
Pois todos quantos são plenamente persuadidos de que sua vida é
protegida pela mão de Deus, e que jamais podem ser miseráveis
enquanto Deus lhes for gracioso, e que, consequentemente, recor-
rem a esse refúgio em todas as suas preocupações e tribulações,
acharão o melhor remédio para todos os males. Não que os fiéis
possam viver inteiramente livres de temor e preocupação, visto que
são sacudidos pelas tempestades de contendas e de misérias, mas
porque a tormenta é abafada em seu próprio peito; e, considerando
que a proteção de Deus é maior que todos os perigos, assim a fé
triunfa sobre o temor.

2. Respondeu Abrão: S Deus. O texto hebraico contém a


expressão (Adonai Yahweh). A partir dela podemos inferir que
alguma marca especial da glória divina estava estampada na visão
dada a Abrão; e, assim, não tendo dúvida de quem era o seu autor,
ele irrompeu confiantemente nessa expressão. Porque, visto que
Satanás é um prodigioso perito em engodo e ilude os homens com
tantas artimanhas em nome de Deus, era necessário que alguma
distinção segura e notável se mostrasse nos verdadeiros e celestiais
oráculos, a ponto de não permitiria que a fé e a mente dos santos
pais vacilassem. Portanto, na visão aqui mencionada, manifesta-se
a majestade do Deus de Abrão, a qual seria suficiente para a confir-
mação de sua fé. Não que Deus aparecesse como realmente é, mas
apenas até onde ele possa ser compreendido pela mente humana.
Abrão, porém, ao negligenciar uma promessa tão gloriosa, ao
se queixar que não tem filho e ao murmurar contra Deus por, até en-
tão, não lhe haver dado descendente, parece se comportar com
pouca modéstia. O que era mais desejável do que ter a proteção de
Deus e ser feliz por desfrutar dele? A objeção, pois, que Abrão le-
vantou, quando depreciou o incomparável benefício oferecido a ele
e se recusou a estar contente e descansar até que recebesse a des-
cendência, parece ser irreverente. Entretanto, a liberdade com a
qual ele agiu pode ser perdoada; primeiro, porque o Senhor nos per-
mite que depositemos nele aquelas preocupações pelas quais so-
mos atormentados, e aquelas tribulações com as quais somos opri-
midos. Segundo, é preciso considerar o propósito da queixa; pois
Abrão não declara simplesmente que está sem descendente, mas,
visto que o efeito de todas as promessas dependia de sua descen-
dência, ele pede, não impropriamente, que uma garantia necessária
lhe fosse dada. Pois, como não era possível esperar a bênção e a
salvação do mundo a não ser através de sua descendência, se esse
ponto principal falhasse, não causaria surpresa se as demais coisas
parecessem desaparecer diante de seus olhos, ou, ao menos, não
apaziguar sua mente nem satisfazer seus anseios. E essa é a mes-
ma razão pela qual Deus não só considera com favor a queixa de
seu servo, mas imediatamente dá uma resposta propícia à sua ora-
ção. De fato Moisés atribui a Abrão aquele afeto que é naturalmente
inerente a todos nós; mas isso não é prova de que Abrão não olhas-
se adiante, quando desejava tão ardentemente ser o progenitor de
um herdeiro. E, certamente, essas promessas não haviam desapa-
recido de sua memória: “À tua semente eu darei esta terra”, e: “Em
tua descendência serão abençoadas todas as nações”; a primeira
dessas promessas está de tal modo ligada a todo o resto que, se
fosse desfeita, toda a confiança nelas pereceria; enquanto que a se-
gunda promessa contém em si toda a garantia da salvação pela gra-
ça. Portanto, Abrão inclui nela, corretamente, tudo o que Deus pro-
meteu.
Continuo sem filhos. A linguagem é metafórica. Sabemos que
nossa vida é como uma corrida. Posto que já era avançado em ida-
de, Abrão diz que já havia vivido tanto tempo, e que restava bem
pouco de sua trajetória. “Ora”, diz ele, “eu já estou bem perto do
alvo, e minha trajetória de vida já está no fim, e morrerei sem fi-
lhos.”. Ele acrescenta, com o intuito de agravar a indignidade, “que
um estrangeiro seria seu herdeiro”. Porque não tenho dúvida de que
Damasco é o nome de seu país, e não o nome próprio de sua mãe,
como alguns falsamente supõem, como se dissesse: “Nem sequer
um dentre meus parentes será meu herdeiro, e sim um sírio de Da-
masco.”. Pois é provável que Abrão o tivesse comprado na Mesopo-
tâmia. Ele também o chama de filho de (mesek), mas esse signifi-
cado não é unânime entre os gramáticos. Alguns acreditam que o
termo deriva de (shakak), que significa “correr para cá e para lá”,
e o traduzem por administrador ou superintendente, porque aquele
que sustém o cuidado de uma grande casa “corre de um lado para o
outro” para cumprir seus afazeres. Outros acreditam que o termo
deriva de (shook) e o traduzem por copeiro; mas isso me parece
impróprio.
Contudo, adoto uma tradução diferente, a saber, que ele era
chamado “o filho da casa deserta” porque (mashak) algumas ve-
zes significa deixar. Contudo, não acredito que ele seja assim cha-
mado porque Abrão estivesse para deixar-lhe todos os seus bens,
mas porque o próprio Abrão não tinha esperança de deixá-los para
ninguém mais. Portanto, no meu entender, é justamente como se
Abrão o chamasse de filho de uma casa desprovida de filhos, por-
que isso era uma prova de uma casa deserta e estéril, cuja herança
estava sendo dada a um estrangeiro que ocuparia o lugar vazio e
deserto. Em seguida, ele o chama desdenhosamente de “meu ser-
vo”, ou “escravo nascido em casa”, “o filho de minha casa”, diz ele,
“será meu herdeiro”. Ele fala assim com desdém, como se quisesse
dizer: “Minha condição é tão miserável, que não terei nem mesmo
um homem livre por sucessor.”. Entretanto, surge esta questão:
como ele poderia ser, respectivamente, um damasceno e um escra-
vo de Abrão nascido em casa? Há duas soluções para essa dificul-
dade: ou ele era chamado o filho da casa, não porque fosse nasci-
do, mas simplesmente porque fora educado nela; ou ele era proce-
dente de Damasco, porque seu pai era da Síria.

4. Não será esse o teu herdeiro. Podemos inferir que Deus apro-
vara o desejo de Abrão. De onde também segue outro ponto: que
Abrão não fora impelido por qualquer afeto carnal a oferecer essa
oração, e sim por um piedoso e santo desejo de desfrutar da bênção
que lhe fora prometida. Pois Deus não só lhe promete um descen-
dente, mas um grande povo, cujo número seria semelhante ao das
estrelas do céu. Quem expõe a passagem alegoricamente, sugerin-
do que lhe foi prometida uma semente celestial, a qual poderia ser
comparada às estrelas, pode ficar com sua própria opinião; nós, po-
rém, mantemos o que é mais razoável, a saber, que a fé de Abrão
seria aumentada pela visão das estrelas. Porque o Senhor, a fim de
afetar mais profundamente seu próprio povo e mais eficazmente pe-
netrar sua mente, depois de haver atingido seus ouvidos por sua pa-
lavra, também detém seus olhos pelos símbolos externos, para que
olhos e ouvidos possam consentir juntos.
Portanto, a visão das estrelas não era supérflua; mas a inten-
ção de Deus era impactar a mente de Abrão com o seguinte pensa-
mento: “Aquele que somente por sua palavra produziu de repente
uma hoste tão numerosa pela qual pudesse adornar o céu anterior-
mente vasto e desolado, não seria capaz de encher minha desolada
casa com uma descendência?”. Entretanto, não é necessário supor
que a visão ocorreu à noite – porque as estrelas, que durante o dia
escapam à nossa vista, então apareceriam – pois, visto que tudo
ocorreu por meio de uma visão, Abrão tinha uma maravilhosa cena
posta diante de si, que manifestamente lhe revelaria coisas ocultas.
Portanto, embora ele provavelmente não tenha movido sequer um
pé, era ainda possível que na visão ele fosse levado para fora de
sua tenda.
Agora surge a questão concernente a quem se refere a descen-
dência da promessa. E é indubitável que nem a posteridade de Is-
mael nem a de Esaú devem ser levadas em conta neste relato, por-
que a descendência legítima deve decorrer da promessa, a qual
Deus determinou que permaneceria em Isaque e Jacó; contudo, sur-
ge a mesma dúvida concernente à descendência de Jacó, porque
muitos dos seus descendentes que geraram uma descendência se-
gundo a carne foram eliminados, como filhos degenerados e estra-
nhos, da fé de seus pais. Eu respondo que o termo “descendência”
se estende, indiscriminadamente, a todo o povo que Deus adotara
para si. Visto, porém, que muitos foram separados por sua increduli-
dade, devemos buscar conhecimento em Cristo, o único que distin-
gue os filhos verdadeiros e genuínos daqueles que são ilegítimos.
Ao seguir esse método, descobrimos a descendência de Abrão re-
duzida a um pequeno número, para que mais tarde ela fosse multi-
plicada. Pois em Cristo os gentios também são congregados e, pela
fé, são enxertados no corpo de Abrão, a ponto de terem um lugar
entre seus filhos legítimos. Discorreremos mais sobre esse ponto no
capítulo 17.

6. Ele creu no S . Nenhum de nós seria capaz de conceber a


rica e misteriosa doutrina que essa passagem contém, a menos que
Paulo tivesse erguido a tocha da doutrina diante de nós [Rm 4.3].
Mas é estranho, e é até como um prodígio, que, quando o Espírito
de Deus acendeu tão grande luz, a maioria dos intérpretes vagueia
de olhos fechados, como se estivessem tateando nas trevas da noi-
te. Omito os judeus, cuja cegueira é bastante notória. Mas (como eu
tenho dito) é monstruoso que aqueles que têm Paulo como seu ilu-
minado expositor, tão estupidamente têm deturpado esse texto.
Contudo, fica evidente que, em todos os tempos, Satanás não tem
labutado ardorosamente em outra coisa senão para extinguir, ou re-
baixar, a graciosa justificação pela fé, a qual é aqui asseverada ex-
pressamente.
As palavras de Moisés são: “Ele creu no Senhor, e isso lhe foi
imputado para justiça.”. Em primeiro lugar, a fé de Abrão é louvada
porque, por ela, ele abraçou a promessa de Deus; em segundo lu-
gar, ela também é louvada porque por meio dela Abrão obteve justi-
ça aos olhos de Deus; e isso por imputação, pois a palavra
(chashab), empregada aqui por Moisés, deve ser entendida à luz do
significado do juízo de Deus, justamente como no Salmo 106.31,
onde lemos que o zelo de Fineias lhe foi imputado para justiça. O
significado da expressão, contudo, se evidenciará mais plenamente
mediante comparação com seus opostos. Em Levítico 7.18, lemos
que, quando se fazia expiação, a iniquidade “não seria imputada” a
uma pessoa. Outra vez, em 17.4, “O sangue será imputado àquele
homem.”. Assim, em 2 Samuel 19.19, Simei diz: “Que o rei não me
impute iniquidade.”. Muito semelhante é a expressão em 2 Reis
12.15: “Também não pediam contas aos homens em cujas mãos en-
tregavam aquele dinheiro”, isto é, não exigiam prestação de contas
do dinheiro, mas confiavam e permitiam que tais homens o adminis-
trassem.
Vamos agora voltar para Moisés. Justamente como entende-
mos que aqueles a quem se imputa iniquidade são culpados diante
de Deus, assim aqueles a quem ele imputa justiça são aprovados
por ele como pessoas justas; portanto, Abrão, pela imputação de
justiça, foi recebido no número e condição de pessoas justas. Pois,
para nos mostrar distintamente a força e natureza, ou a qualidade
dessa justiça, Paulo nos conduz ao tribunal celestial de Deus. Por-
tanto, insensatamente inventam pretextos os que aplicam esse ter-
mo para designar o seu caráter como um homem honesto, como se
quisesse dizer que Abrão permaneceu, em si mesmo, como um ho-
mem justo e íntegro. Não menos perversamente, corrompem ainda
o texto aqueles que dizem que Abrão, aqui, está atribuindo a Deus a
glória da justiça, posto que ele se aventura a confiar na integridade
das promessas de Deus, reconhecendo ser ele fiel e veraz; pois em-
bora Moisés não mencione expressamente o nome de Deus, o cos-
tumeiro método de falar nas Escrituras remove toda e qualquer am-
biguidade. Em último lugar, é insensato e vergonhoso afirmar que
essa fé lhe foi imputada porque ele era justo, atribuindo a essa fé al-
gum outro significado, em vez de dizer que a fé de Abrão foi aceita
no lugar da sua justiça para com Deus.
Entretanto, parece absurdo dizer que Abrão seria justificado
simplesmente por crer que sua descendência seria tão numerosa
como as estrelas no céu, pois, sendo assim, essa fé nada poderia
ser senão uma fé muito particular, a qual de modo algum seria sufi-
ciente para a justificação completa do homem. Além disso, o que
uma promessa terrena e temporal poderia valer para a salvação
eterna? Respondo, primeiramente, que o crer do qual fala Moisés
não deve ser restringido a uma única cláusula da promessa aqui re-
ferida, mas abrange o todo; segundo, que Abrão não formou sua es-
timativa da descendência prometida baseado somente nesse orácu-
lo, mas também em outros, nos quais se acrescenta uma bênção
especial. Disso inferimos que ele não esperava alguma descendên-
cia comum ou indefinida, mas aquela na qual o mundo seria aben-
çoado.
Alguém poderia persistentemente insistir que o que se diz em
comum de todos os filhos de Abrão é forçadamente distorcido quan-
do aplicado a Cristo. Em primeiro lugar, não se pode negar que
Deus, agora, mais uma vez repete a promessa anteriormente feita a
seu servo, com o propósito de responder à sua queixa. Mas já dis-
semos – e os fatos claramente o comprovam – que Abrão se viu im-
pelido assim a desejar grandemente a descendência por uma aten-
ção especial à bênção prometida. Consequentemente, essa pro-
messa não foi por ele considerada independentemente das outras.
Mas, deixando tudo isso de lado, devemos, repito, considerar o que
aqui é tratado, a fim de julgar corretamente a fé de Abrão.
Deus não promete a seu servo somente uma coisa ou outra,
como algumas vezes ele concede benefícios especiais aos incrédu-
los, os quais não desfrutam de seu paternal amor; porém, declara
que lhe seria propício e lhe confirmaria na confiança da certeza, por
depender de sua proteção e de sua graça. Pois aquele que tem
Deus por sua herança não exulta com uma alegria passageira, mas,
semelhante a alguém que já foi para o céu, desfruta da plena felici-
dade da vida eterna. De fato, devemos considerar como verdade
que todas as promessas de Deus, feitas aos fiéis, procedem da sua
livre misericórdia e constituem evidências daquele amor paternal e
da adoção gratuita, sobre a qual sua salvação se acha fundamenta-
da. Portanto, não dizemos que Abrão foi justificado porque se ape-
gou a uma única palavra acerca da descendência que seria gerada,
mas porque abraçou a Deus como seu Pai. E, de fato, a fé não nos
justifica por nenhuma outra razão senão porque, por meio dela, so-
mos reconciliados com Deus; e que ela faz isso não por seu próprio
mérito, mas porque recebemos a graça que nos é oferecida nas pro-
messas; e não temos nenhuma dúvida da vida eterna, sendo plena-
mente convencidos de que somos amados por Deus como filhos.
Portanto, Paulo argumenta, por meio de contraste, dizendo que
aquele a quem a fé é imputada para justiça não foi justificado pelas
obras [Rm 4.4]. Pois, quem quer que procure obter justiça pelas
obras, pensam que seus méritos são contabilizados diante de Deus.
Mas, compreendemos a justiça pela fé, quando Deus livremente nos
reconcilia consigo mesmo. Consequentemente, o mérito das obras
cessa quando a justiça é buscada pela fé; pois é necessário que
essa justiça seja dada livremente por Deus e oferecida em sua pala-
vra, a fim de que ela seja possuída pela fé.
Para tornar isso mais claro, quando Moisés diz que a fé foi im-
putada a Abrão para justiça, ele não quer dizer que a fé é aquela pri-
meira causa da justiça que é chamada eficiente, mas apenas a cau-
sa formal, como se ele dissesse que Abrão foi justificado, porque, ao
confiar na benevolência paternal de Deus, entregou-se inteiramente
à sua bondade, e não confiou em si mesmo, nem em seus próprios
méritos. Pois é preciso observar especialmente que a fé empresta
uma justiça de outra fonte, da qual, nós mesmos, estamos destituí-
dos; do contrário, seria em vão Paulo colocar a fé em oposição às
obras, ao falar do modo de se obter a justiça. Além disso, a relação
mútua entre a livre promessa e a fé não deixa dúvida sobre o tema.
Devemos agora notar a circunstância de tempo. Abrão foi justifi-
cado pela fé, muitos anos depois de haver sido chamado por Deus;
depois de haver deixado seu país para um exílio voluntário, tornan-
do-se um notável exemplo de paciência e de continência; depois de
ter se dedicado inteiramente à santidade; e depois de ter se ocupa-
do no serviço espiritual e público de Deus, almejando uma vida qua-
se angelical. Portanto, segue-se que até o final da nossa vida somos
conduzidos para o reino eterno de Deus mediante a justiça da fé.
Nesse ponto, muitos estão grandemente enganados. Pois, de fato,
admitem que a justiça, que é livremente outorgada aos pecadores e
oferecida aos indignos, é recebida somente pela fé; porém, restrin-
gem isso a um momento de tempo, de modo que, aquele que inicial-
mente obteve a justificação pela fé, mais tarde pode ser justificado
pelas boas obras. Nesse processo, a fé nada mais é do que o princí-
pio da justiça, enquanto a própria justiça consiste na realização con-
tínua de obras. Mas aqueles que assim argumentam se mostram to-
talmente insanos. Pois, se a retidão angelical de Abrão, fielmente
cultivada ao longo de muitos anos e de modo contínuo, não o impe-
diu de buscar amparo na fé para obter a justiça, onde em toda a ter-
ra é possível encontrar uma perfeição que possa permanecer na
presença de Deus? Portanto, considerando o tempo em que isso foi
dito a Abrão, certamente deduziremos que a justiça das obras não
deve substituir a justiça da fé, como se uma aperfeiçoe o que a ou-
tra apenas começou; mas que os homens santos são justificados
somente pela fé, ao longo de toda sua vida neste mundo.
Se alguém objetar dizendo que Abrão creu em Deus previa-
mente, quando o seguiu em seu chamado, e se entregou à sua dire-
triz e guarda, a resposta é simples, a saber, que aqui não nos é dito
quando Abrão começou a ser justificado ou em que momento come-
çou a crer em Deus; mas aqui é declarado ou relatado de que modo
ele foi justificado ao longo de toda sua vida. Pois, se Moisés houves-
se falado assim imediatamente sobre a primeira vocação de Abrão,
a argumentação sofística de que eu tenho falado teria sido mais ab-
surda, ou seja, que a justiça da fé era apenas inicial (por assim di-
zer), e não perpétua. Agora, porém, visto que após tão grande pro-
gresso ainda lemos que ele foi justificado pela fé, podemos facil-
mente inferir que os santos são justificados gratuitamente até a mor-
te. De fato, confesso que, depois que os fiéis são vivificados pelo
Espírito de Deus, o modo como a justificação opera difere, em al-
guns aspectos, do anterior. Pois Deus reconcilia consigo somente os
que nascem da carne e estão destituídos de todo bem; e, visto que
neles ele nada encontra senão uma terrível massa de males, ele os
considera justos por imputação. Mas, àqueles a quem concedeu o
Espírito de santidade e justiça, ele os abraça com seus dons. Contu-
do, a fim de que suas boas obras agradem a Deus, é necessário
que essas mesmas obras sejam justificadas por imputação gratuita;
porém, algum mal é sempre inerente a elas. Entretanto, por enquan-
to, este é um ponto indiscutível: que os homens são justificados di-
ante de Deus por crerem, e não por trabalharem, enquanto obtêm a
graça pela fé, porque são incapazes de merecer um galardão medi-
ante as obras [Rm 4.1-8].
Paulo também, ao argumentar que não foi pelas obras que
Abrão mereceu a justiça que recebera antes de sua circuncisão, não
contesta a doutrina exposta acima. O seu argumento é o seguinte: a
circuncisão de Abrão foi posterior à sua justificação na ordem de
tempo e, por isso, não podia ser sua causa, porque, necessariamen-
te, a causa precede seu efeito. Eu também afirmo que Paulo, por
essa razão, sustenta que as obras não são meritórias, exceto sob a
aliança da lei, onde a circuncisão é posta como o penhor e símbolo.
Visto, porém, que Paulo, aqui, não está definindo o vigor e natureza
da circuncisão – considerada como uma pura e genuína instituição
de Deus –, mas, antes, está discorrendo sobre o sentido atribuído a
ela por aqueles com quem ele discute, por isso não faz referência à
aliança que Deus fizera anteriormente com Abrão, porque sua men-
ção era desnecessária para o presente propósito.
Estes dois argumentos são, portanto, de valor: primeiro, que a
justiça de Abrão não pode ser atribuída à aliança da lei, porque tal
justiça precedeu a sua circuncisão; e, segundo, que a justiça, até
mesmo dos mais perfeitos, sempre tem o seu fundamento na fé, vis-
to que Abrão, com toda a excelência de suas virtudes, após seu diá-
rio e até mesmo notável serviço a Deus, foi, no entanto, justificado
pela fé. Por fim, também devemos observar que o que aqui se diz
de um só homem é aplicável a todos os filhos de Deus. Porque, vis-
to que não foi sem razão que ele foi chamado pai dos fiéis; e, mais,
posto que há apenas um meio de se obter a salvação, Paulo, corre-
tamente, ensina que aqui se descreve uma justiça real e pessoal.

7. Eu sou o S que te tirei. Visto que é grande a nossa ne-


cessidade de ter Deus como o guia de toda nossa vida, a fim de sa-
bermos que não entramos precipitadamente em algum caminho du-
vidoso, por isso o Senhor confirma Abrão no curso de sua vocação
e relembra o benefício original de seu livramento, como se dissesse:
“Eu, depois que te estendi minha mão, para te tirar do labirinto da
morte, tenho prolongado meu favor para contigo até aqui. Portanto,
por sua vez, me respondes avançando constantemente, e mantendo
inabalável tua fé, do princípio ao fim.”. Isso, de fato, é dito não so-
mente em relação a Abrão, a fim de que ele, reunindo as promessas
de Deus, feitas a ele desde o começo de sua vida de fé, as juntasse
num todo, mas é dito para que todos os piedosos aprendam a consi-
derar o início de sua vocação como algo que emana perpetuamente
de Abrão, o pai de todos eles, e assim possam, com segurança, se
alegrarem juntamente com Paulo, ou seja, saberem em quem têm
crido [2Tm 1.12], e que Deus, que na pessoa de Abrão separou para
si uma igreja, será um fiel guardador da salvação por ele mesmo de-
positada. De fato, para esse mesmo fim, o Senhor mesmo declara
ter sido o libertador de Abrão, porque ele conecta a promessa que
agora está para dar com a redenção anterior, como se dissesse:
“Não começo agora te prometendo primeiramente esta terra, pois foi
por esta razão que eu te tirei de teu próprio país: para te constituir o
senhor e herdeiro dessa terra. Agora, pois, da mesma forma faço
aliança contigo, para que não julgues haver sido enganado ou ali-
mentado com palavras vãs; e eu te ordeno que tenhas na memória
a primeira aliança, para que a nova promessa, que depois de muitos
anos eu agora confirmo, possa ser mais firmemente mantida”.

8. S Deus, como saberei. Em primeiro lugar pode parecer


absurdo o fato que Abrão, que antes confiou plenamente na palavra
de Deus, sem alimentar qualquer dúvida concernente às promessas
a ele feitas, estivesse agora cogitando se o que ouve da boca de
Deus é verdadeiro ou não; em segundo lugar, que ele atribui a Deus
tão pouca honra, não apenas por murmurar contra ele, quando fala,
mas por exigir que se lhe dê alguma garantia adicional. Além do
mais, de onde provém o conhecimento que pertence à fé, senão da
palavra? Portanto, Abrão em vão deseja ter certeza da futura posse
da terra, enquanto hesita em depender da palavra de Deus. Minha
resposta é que, algumas vezes, o Senhor permite que seus filhos
expressem livremente alguma objeção que lhes vier à mente. Pois
ele não age tão rigidamente com eles, a ponto de não permitir que
seja questionado. Sim, quanto mais Abrão estivesse convencido de
que Deus era verdadeiro, e quanto mais ele confiasse em sua pala-
vra, tanto mais intimamente ele depositaria suas preocupações em
Deus.
A isso se pode acrescentar que a demora não constituiu um pe-
queno obstáculo à fé de Abrão. Porque, depois que Deus o mantive-
ra em suspense ao longo de uma boa parte de sua vida, agora,
quando já era avançado em idade, e nada via diante de seus olhos,
senão morte e túmulo, Deus novamente declara que ele será o se-
nhor da terra. Entretanto, ele não rejeita, por causa de sua dificulda-
de, o que poderia parecer inacreditável, mas coloca diante de Deus
a ansiedade que o deixava interiormente oprimido. E, portanto, sua
inquietude diante de Deus é mais uma prova de fé do que um sinal
de incredulidade.
Os perversos, cuja mente está enredada em vários pensamen-
tos conflitantes, de modo algum percebem as promessas; os piedo-
sos, porém, que reconhecem os obstáculos de sua carne, esforçam-
se para removê-los, para que não obstruam o caminho da palavra
de Deus, e buscam um remédio para aqueles males dos quais são
conscientes. Contudo, deve-se observar que havia nos santos de
outrora alguns impulsos especiais, o que agora não seria lícito usar
como um precedente. Pois, ainda que Ezequias e Gideão precisas-
sem de certos milagres, isso não é motivo para que tenhamos a
mesma atitude hoje. Que nos seja suficiente buscar tal confirmação
somente quando o próprio Senhor, segundo seu beneplácito, julgar
apropriado.

9. Toma-me uma novilha, uma cabra e um cordeiro, cada qual


de três anos. Há quem, em vez de uma novilha de três anos, tradu-
za a passagem por “três novilhas”, e em cada espécie de animais
enumerados, registra o número três. No entanto, é mais aceita a
opinião dos que aplicam a palavra três à idade da novilha. Além dis-
so, embora Deus não negue a seu servo o que ele pedira, de modo
algum concedeu o que satisfaria o desejo da carne. Porque, que
certeza se poderia acrescentar à promessa, pela morte de uma no-
vilha, ou de um cabrito, ou de um carneiro? Pois o verdadeiro propó-
sito do sacrifício, o qual veremos aqui, até então estava oculto a
Abrão. Portanto, ao obedecer ao mandamento de Deus, do qual, no
entanto, aparentemente não procedia qualquer vantagem, ele prova
a obediência de sua fé; nem seu desejo almejava algum outro fim
além deste, a saber, que, o obstáculo sendo removido, ele pudesse,
como era justo, confiar reverentemente na palavra do Senhor. Por-
tanto, aprendamos humildemente a abraçar aqueles auxílios que
Deus oferece para a confirmação de nossa fé, ainda que não con-
cordem com nosso critério, mas pareçam ser uma brincadeira, até
que, por fim, fique claro pelos resultados que Deus de modo ne-
nhum estava zombando de nós.

10. Partiu-os pelo meio. Para que nenhuma parte desse sacrifício
seja destituída de mistério, certos intérpretes não se cansam de pro-
duzir sutilezas; mas, como já declarei, é nosso dever cultivar a sobri-
edade. Confesso que não sei por que lhe foi ordenado tomar três ti-
pos de animais além das aves, a não ser que fosse para que, por
essa própria variedade, se declarasse que toda a posteridade de
Abrão, não importa que posição ocupasse, seria oferecida em sacri-
fício, de modo que todo o povo, e cada indivíduo, constituísse um só
sacrifício. Há ainda algumas coisas sobre as quais, se ninguém curi-
osamente buscar a razão, não me envergonharei de reconhecer mi-
nha ignorância, porque prefiro não me perder discutindo hipóteses
pouco prováveis. Além disso, esta, em minha opinião, é a suma do
todo: que Deus, ao ordenar que animais fossem mortos, mostra qual
será a futura condição da Igreja. Abrão certamente desejava se as-
segurar da prometida herança da terra. Agora ele é instruído a to-
mar a morte como ponto de partida, isto é, que ele e seus filhos de-
vem morrer para que desfrutem do domínio sobre a terra.
Ao ordenar que os animais mortos fossem divididos em duas
partes, é provável que Deus seguisse o modelo do antigo rito de
constituir alianças, quer fosse para entrar em aliança, quer fosse
para convocar um exército, uma prática muito comum entre os po-
vos. Ora, os aliados ou soldados passavam por entre as partes se-
paradas, para que, sendo colocados dentro do sacrifício, eles pu-
dessem ser mais solenemente unidos em um só corpo. Que esse
modelo foi praticado pelos judeus, Jeremias dá testemunho [34.18],
relatando as palavras de Deus: “Farei aos homens que transgredi-
ram minha aliança e não cumpriram as palavras da aliança que fize-
ram perante mim como eles fizeram com o bezerro que dividiram em
duas partes, passando eles pelo meio das duas porções.”. Contudo,
o real motivo para a realização desse ato parece ter sido o seguinte:
que o Senhor de fato admoestaria a posteridade de Abrão, não ape-
nas que ela se assemelharia a uma simples carcaça, mas sim a
uma carcaça dilacerada e dissecada. Pois a servidão com que fo-
ram oprimidos por algum tempo foi mais tolerável do que a simples
morte; contudo, visto que o sacrifício é oferecido a Deus, a própria
morte é imediatamente transformada em nova vida.
A razão pela qual Abrão, colocando as partes do sacrifício uma
ao lado da outra, posiciona as partes de modo correspondente é
porque elas seriam novamente reunidas. Mas quão difícil é a restau-
ração da Igreja e quantas dificuldades estão envolvidas nesse pro-
cesso, fica evidente pelo horror que tomou conta de Abrão. Vemos,
pois, que duas coisas foram ilustradas, a saber, a dura servidão,
com a qual os filhos de Abrão iriam sofrer quase à dilaceração e
destruição; e, depois, sua redenção, que seria o magistral penhor da
adoção divina. Semelhantemente, a condição geral da Igreja nos é
representada, a saber, o modo peculiar de Deus agir para criá-la do
nada e erguê-la da morte.

11. Aves de rapina desciam. Embora o sacrifício fosse dedicado a


Deus, não estava livre do ataque e da violência das aves. Assim,
embora recebam a proteção de Deus, isso não significa que os fiéis
estejam cobertos pela sua mão de tal maneira que não possam ser
assaltados por todos os lados, posto que Satanás e o mundo não
cessam de causar-lhes tribulação. Portanto, a fim de que o sacrifício
que uma vez oferecemos a Deus não seja violado, mas permaneça
puro e sem defeito, é preciso resistir aos ataques, com todas as in-
conveniências e tumultos.

12. Caiu profundo sono sobre Abrão. A visão agora se mistura


com um sonho. Assim o Senhor, aqui, junta aqueles dois tipos de
comunicação que eu já citei de Números 12.6, onde lemos: “Ouvi,
agora, minhas palavras; se entre vós há profeta, eu, o Senhor, em
visão a ele, me faço conhecer ou falo com ele em sonhos.”. Já se
fez menção de uma visão; agora Moisés relata que se acrescentou
um sonho. Uma terrível escuridão sucedeu, para que Abrão soubes-
se que aquele não era um sonho comum, mas que tudo estava sen-
do divinamente conduzido; isso, contudo, está relacionado com o
oráculo então apresentado, quando Deus logo em seguida explica
em suas próprias palavras: “Sabe, com certeza, que tua posteridade
será peregrina em terra alheia, e será reduzida à escravidão, e será
afligida por quatrocentos anos.”.
Em outro lugar dissemos que Deus não costuma ofuscar os
olhos de seu povo com espectros fúteis e vazios, mas que, nas
visões, as partes principais sempre pertencem à palavra. Portanto,
aqui não se apresenta aos olhos de Abrão uma visão muda, mas ele
é ensinado, por um oráculo adicional, qual é o significado do sinal
externo e visível. Contudo, deve-se observar que antes de um filho
ser dado a Abrão, foi dito a ele que sua descendência viveria, por
um longo tempo, em cativeiro e servidão. Pois é assim que o Senhor
trata seu próprio povo: ele sempre faz um prelúdio de morte, para
que, ao vivificar os mortos, ele manifeste mais abundantemente seu
poder. Era necessário, em parte, por causa de Abrão, que isso fosse
declarado; mas o Senhor estava considerando principalmente sua
posteridade, para que não desfalecessem em seus sofrimentos, dos
quais, contudo, o Senhor prometera um desfecho alegre e feliz; es-
pecialmente porque sua longa duração produziria grande exaustão.
E três coisas são bem definidamente postas diante deles: primeira,
que os filhos de Abrão peregrinariam 400 anos, antes de alcança-
rem a herança prometida; segunda, que seriam escravos; terceira,
que seriam tratados de forma desumana e tirânica. Portanto, a fé de
Abrão era admirável e singular, posto que confiava em um oráculo
tão doloroso e tinha certeza de que Deus seria seu Libertador, de-
pois que suas misérias atingissem o ápice.
Entretanto, questiona-se como é possível harmonizar o número
de anos aqui registrado com a história subsequente. Alguns come-
çam a contar o tempo quando Abrão partiu de Harã. Mas tudo indica
ser mais provável que só se indica o tempo intermédio,1 como se
ele dissesse: “Cabe à tua posteridade aguardar com paciência; por-
que não decretei conceder o que ora prometo, até que se comple-
tem 400 anos; sim, sua servidão continuará até aquele exato mo-
mento.”. Segundo esse modo de contar, Moisés diz que os filhos de
Israel habitaram no Egito 430 anos [Êx 12.40]; e assim, a partir de
Êxodo 6, podemos facilmente deduzir que não mais de 230 anos,
aproximadamente, se passaram desde o momento em que Jacó
desceu para lá até seu livramento. Onde, pois, encontraremos os
200 anos restantes, senão pela referência ao oráculo?
Paulo é quem remove toda dúvida sobre essa questão [Gl
3.17], pois ele contabiliza o tempo desde a gratuita aliança de vida
até a promulgação da lei. Em suma, Deus não indica quanto tempo
duraria a servidão do seu povo, mas quanto tempo ele queria sus-
pender ou adiar sua promessa. Quanto à sua omissão de 30 anos,
não é coisa nova nem rara mencionar somente os séculos, onde os
anos não são acuradamente indicados. Aqui, porém, vemos que,
por uma questão de brevidade, a totalidade daquele período é dividi-
da em quatro séculos. Portanto, não há absurdidade em omitir o
breve espaço de tempo; e deve-se considerar principalmente que o
Senhor, com o objetivo de exercitar a paciência de seu povo, sus-
pende sua promessa durante mais de quatro séculos.
14. Mas também eu julgarei a gente a que têm de sujeitar-se.
Um consolo é agora acrescentado, e ele inicialmente consiste em
Deus testificar que seria o vingador de seu povo. Consequentemen-
te, ele tomará sobre si o cuidado da salvação daqueles a quem
abraçara, e não permitirá que eles sejam subjugados impunemente
pelos ímpios e perversos. E embora aqui anuncie expressamente
que ele tomaria vingança contra os egípcios, todos os inimigos da
Igreja se acham expostos ao mesmo juízo, do mesmo modo que
Moisés, em seu cântico, estende a todas as eras e nações a amea-
ça de que o Senhor aplicará punição às perseguições injustas. “A
mim me pertence a vingança, a retribuição, a seu tempo” [Dt 32.35].
Portanto, sempre que acontecer de sermos tratados de forma
desumana pelos tiranos (o que é muito comum acontecer com a
Igreja), que esta seja nossa consolação: que depois que nossa fé for
suficientemente provada pela cruz que carregamos, o próprio Deus,
em cujo beneplácito somos assim humilhados, será o Juiz que retri-
buirá aos nossos inimigos a devida recompensa da crueldade que
agora praticam. Embora eles agora exultem com profunda alegria,
no final se constatará que nossas misérias de fato são ditosas, mas
os triunfos deles são miseráveis; porque Deus, que cuida de nós, é
o adversário deles. Recordemos, porém, que devemos dar lugar à
ira de Deus, como exorta Paulo, a fim de que não nos precipitemos
em busca de vingança. Igualmente, deve-se dar lugar à esperança,
para que ela possa nos sustentar quando somos oprimidos e geme-
mos sob o fardo dos males. Julgar a nação significa o mesmo que
convocá-la para juízo, a fim de que Deus, que por muito tempo esti-
vera em silêncio, possa se manifestar abertamente como o Juiz.

15. E tu irás para teus pais em paz. Até aqui o Senhor se refere ao
próprio Abrão e também à sua posteridade, para que a consolação
fosse comum a todos; agora, porém, ele se direciona somente a
Abrão, porque ele precisava de confirmação específica. E o remédio
proposto para alívio de sua tristeza era que ele morreria em paz, de-
pois de haver alcançado uma idade avançada. Em minha opinião, é
frívola a explicação dada por alguns de que ele morreria de modo
natural, livre de violência, ou uma morte serena, em que suas forças
vitais cessariam espontânea e naturalmente, e sua própria vida de-
cairia por sua própria velhice, sem experimentar qualquer tipo de
dor. Pois Moisés deseja expressar que Abrão teria uma longa e tran-
quila velhice, com uma correspondente morte alegre e serena. O
sentido, pois, é que, embora ao longo de toda sua vida Abrão tinha
de ser privado da posse da terra, ele desfrutaria da mais pura tran-
quilidade e alegria, de modo que, ao ter um final de vida feliz, parti-
ria alegremente para seus pais.
E, certamente, a morte faz a grande distinção entre os réprobos
e os filhos de Deus, embora a condição na presente vida seja co-
mum a ambos, exceto que os filhos de Deus têm, de longe, as pio-
res condições. Portanto, de modo justo, paz e morte devem ser con-
sideradas como um benefício singular, porque constituem uma pro-
va daquela distinção que acabo de referir-me. Mesmo não tendo
muita luz, os escritores profanos têm percebido isso. Platão, em seu
livro A República (livro 1), cita um cântico de Píndaro, no qual ele diz
que aqueles que vivem justa e piedosamente são assistidos por
uma doce esperança a acalentar seu coração e a nutrir sua velhice;
esperança que principalmente governa a mente oscilante dos ho-
mens. Porque os homens, conscientes de culpa, devem, de modo
necessário, ser miseravelmente acometidos por diversos tormentos;
o poeta, quando afirma que a esperança é a recompensa de uma
boa consciência, a chama de “a ama da velhice”. Pois, semelhante-
mente aos jovens, enquanto distante da morte, se deleitam descui-
dadamente, os idosos são admoestados, por sua própria fraqueza, a
refletir seriamente sobre o fato de que devem partir. Agora, a menos
que a esperança de uma vida melhor os inspire, nada lhes resta se-
não miseráveis temores.
Finalmente, como os réprobos se deleitam durante toda sua
vida e se entregam estupidamente em seus vícios, é necessário que
sua morte seja cheia de tribulação; enquanto que os fiéis entregam
sua alma nas mãos de Deus, sem temor e tristeza. Por isso Balaão
também se vê obrigado a bradar: “Que eu morra a morte dos justos”
[Nm 23.10]. Além disso, posto que os homens não têm em seu pró-
prio poder o fim desejável da vida, o Senhor, ao prometer a seu ser-
vo Abrão uma morte tranquila e serena, nos ensina que ela é um
dom seu. E vemos que até mesmos os reis, e outros que se julgam
felizes neste mundo, ainda tremem diante da morte, porque são visi-
tados com remorsos secretos por seus pecados, e nada esperam na
morte senão destruição. Abrão, porém, voluntária e alegremente,
avançou para a sua morte, visto que em Isaque tinha uma firme ga-
rantia da bênção divina, e tinha certeza de que uma vida melhor es-
tava reservada para ele no céu.

16. Porque não se encheu ainda a medida da iniquidade dos


amorreus. A razão aqui apresentada é tida como absurda, como se
necessariamente os filhos de Abrão não pudessem ser salvos de
outro modo, senão pela destruição de outros. Minha resposta é que
devemos, com modéstia e humildade, render-nos ao secreto conse-
lho de Deus. Uma vez que ele dera aquela terra aos amorreus para
que fosse habitada por eles perpetuamente, Deus declara que não
transferirá, sem justa causa, a posse da terra para outros; como se
quisesse dizer: “Concedo à tua descendência a posse dessa terra
sem causar prejuízo a ninguém. No momento, a terra se acha ocu-
pada por seus legítimos possuidores, aos quais eu a entreguei. Por-
tanto, até que tenham merecido, por seus pecados, ser legitimamen-
te expulsos, o domínio dela não passará à tua posteridade.”. Dessa
forma Deus lhe ensina que a terra seria desocupada a fim de que
fosse exposta a novos habitantes. E essa passagem é notável, pois
mostra que as moradas dos homens são de tal modo distribuídas no
mundo, que o Senhor preservará as pessoas em paz, cada uma em
suas diversas condições, até que sejam expulsas por sua própria
perversidade. Pois, ao poluir o lugar de sua habitação, em certo
sentido arrancaram as fronteiras fixadas pela mão de Deus, as quais
de outro modo permaneceriam imóveis.
Além disso, aqui o Senhor recomenda sua própria longanimida-
de. Mesmo que os amorreus já tivessem se tornado indignos de
ocupar a terra, o Senhor os suportou, não por pouco tempo, mas
lhes outorgou quatro séculos para arrependimento. E desse fato pa-
rece que, não sem razão, Deus declara muito frequentemente quão
tardio é ele em irar-se. Mas, quanto mais graciosamente ele espera
pelos homens, se, em vez de se arrependerem, permanecerem obs-
tinados, mais severamente ele se vinga de tão grande ingratidão.
Portanto, Paulo diz que, aqueles que se entregam ao pecado, en-
quanto a bondade e misericórdia de Deus os chamam ao arrependi-
mento, acumulam para si um tesouro de ira [Rm 2.4]; e assim eles
não colhem vantagem alguma dessa bondade de Deus, uma vez
que a severidade da punição é duplicada, precisamente como suce-
deu aos amorreus, aos quais, por fim, o Senhor ordenou que fossem
inteiramente eliminados, de tal modo que nem mesmo as crianci-
nhas foram poupadas. Portanto, quando ouvimos que Deus aguarda
silenciosamente do céu até que as iniquidades atinjam a medida,
saibamos que esse não é o tempo para adormecimento, mas, antes,
que cada um de nós se levante para se preparar para o juízo celesti-
al.
Outrora foi dito por um pagão que a ira de Deus age a passos
lentos para se vingar, mas que ela faz compensação por sua lenti-
dão, aumentando a severidade de sua punição. Por isso, não há ra-
zão para que os réprobos se vangloriem quando Deus parece deixá-
los passar despercebidos, visto que ele não está dormindo no céu, e
nem deixa de ser o Juiz do mundo; nem se esquecerá da execução
de seu ofício no devido tempo. Entretanto, inferimos, das palavras
de Moisés, que, embora seja concedido aos réprobos tempo para
arrependimento, eles já estão destinados à destruição. Alguns tradu-
zem a palavra (ayon) por “punição”, como se fosse dito que a pu-
nição ainda não estava madura para eles. Mas a primeira exposição
é mais apropriada, a saber, que não puseram nenhum limite à sua
perversidade, até que trouxessem sobre si à destruição final.

17. E eis um fogareiro fumegante. Outra vez, uma nova visão foi
acrescentada para confirmar sua fé no oráculo. A princípio, Abrão fi-
cou aterrorizado com as densas trevas; agora, no meio de um foga-
reiro fumegante, ele vê uma tocha acesa. Muitos supõem que um
sacrifício foi consumido por esse fogo; eu, em vez disso, o interpreto
como um símbolo de livramento futuro, o qual se harmoniza com o
próprio fato. Pois há duas coisas que, aparentemente, são contrári-
as: a obscuridade da fumaça e o brilho de uma tocha. Por isso
Abrão bem sabia que a luz, por fim, surgiria das trevas. Deve-se
buscar sempre uma analogia entre os sinais e as coisas significa-
das, para que haja uma correspondência entre eles. Então, visto
que o símbolo, por si só, é apenas um “cadáver” sem vida, deve-se
fazer sempre uma referência à palavra que está ligada à ele. Aqui,
porém, por meio da palavra, a liberdade foi prometida à descendên-
cia de Abrão, em meio à sua servidão. Ora, a condição da Igreja não
poderia ser pintada com mais vida do que quando Deus faz uma to-
cha fumegante proceder da fumaça, a fim de que as trevas das afli-
ções não nos sufoquem totalmente, mas que sejamos acalentados
pela boa esperança de vida mesmo na morte, porque o Senhor, por
fim, brilhará sobre nós, se simplesmente nos oferecermos em sacri-
fício a ele.

18. Naquele mesmo dia, fez o S aliança com Abrão. De


bom grado admito aquilo que mencionei acima: que a aliança foi
confirmada por um rito solene, quando os animais foram divididos
em duas partes. Pois parece haver uma repetição na qual ele ensina
qual era a intenção do sacrifício que mencionara. Aqui, pode-se ob-
servar ainda o que eu disse anteriormente: que a palavra deve estar
sempre associada aos símbolos, para que nossos olhos não sejam
alimentados com cerimônias vazias e fúteis. Deus ordenara que ani-
mais fossem oferecidos a ele, mas ele mostrou o seu objetivo e uso,
por uma aliança anexa a eles. Se, pois, o Senhor nos fortalece por
meio dos sacramentos, inferimos que estes são evidências de sua
graça, e emblemas daquelas bênçãos espirituais que emanam de-
les.
Então, Moisés enumera as nações, cuja terra Deus estava para
dar aos filhos de Abrão, a fim de que pudesse confirmar o que dis-
sera previamente sobre uma numerosa descendência. Pois esta não
seria um pequeno grupo de homens, mas uma imensa multidão,
para a qual Deus assinala uma habitação de extensão tão vasta.
Deus havia falado apenas dos amorreus, entre os quais Abrão mo-
rava; agora, porém, com o intuito de ampliar sua graça, ele mencio-
na nominalmente todas as demais nações.

1 Muito provavelmente, Calvino tem em vista o tempo que se interpôs entre a entrega do
oráculo e o êxodo do Egito.
C A P ÍT U L O 1 6

1. Ora, Sarai, mulher de Abrão. Aqui, Moisés registra uma nova


história, a saber, que Sarai, movida de impaciência pela demora, re-
correu a um meio alternativo, contrário à Palavra de Deus, para dar
descendência ao seu marido. Ela sabia que era estéril e que já pas-
sava da idade de gerar filhos. Portanto, inferiu a necessidade de
uma nova solução, para que Abrão pudesse obter a bênção prometi-
da.
Moisés relata expressamente que o propósito de casar com
uma segunda esposa não se originou do próprio Abrão, e sim de
Sarai, para ensinar-nos que o santo homem não era movido pela
lascívia a essas núpcias, mas que, quando nem mesmo pensava
em tal coisa, era induzido a se envolver nelas por exortação de sua
esposa. Entretanto, questiona-se se Sarai se substituiu por sua ser-
va pelo mero desejo de obter descendência. Para alguns, parece
que sim; para mim, não acho razoável crer que a piedosa senhora
não tivesse conhecimento dessas promessas, que tantas vezes fo-
ram repetidas para o seu esposo. Sim, deve ser plenamente aceito,
entre todas as pessoas piedosas, que a mãe do povo de Deus era
participante da mesma graça com seu esposo. Portanto, Sarai não
deseja que sua descendência (como é usual) proviesse de um mero
impulso natural, mas ela cede seus direitos conjugais à outra mu-
lher, movida pelo desejo de obter aquela bênção, que, como bem
sabia, fora divinamente prometida. Não que ela se divorciasse de
seu esposo, mas lhe designa outra esposa, de quem ele pudesse
receber filhos. E, certamente, se ela desejasse ter descendência da
maneira ordinária, poderia, antes, ter pensado em fazê-lo pela ado-
ção de um filho, e não cedendo lugar a uma segunda esposa. Pois
conhecemos bem a impetuosidade do ciúme feminino.
Portanto, enquanto contempla a promessa, Sarai se esquece
de seu próprio direito e em nada pensa, senão em dar filhos a
Abrão. Um exemplo memorável, do qual nos advém não pequeno
proveito! Pois, por mais louvável que fosse o desejo de Sarai quanto
ao fim, ou o escopo a que ele tendia, contudo, ao persegui-lo, ela se
torna culpada de um pecado não insignificante, quando, movida pela
impaciência, se afasta da palavra de Deus, com o propósito de des-
frutar do efeito dessa mesma palavra. Enquanto pondera sobre sua
própria esterilidade e velhice, ela começa a se desesperar pela des-
cendência, a menos que Abrão tivesse filhos de alguma forma; só
nisto já existe falha. Entretanto, por mais desesperadora que fosse a
situação, ela não deveria ter tentado algo em desacordo com a von-
tade de Deus e a legítima ordem da natureza. Aprouve a Deus que
a raça humana se propagasse através do santo matrimônio. Sarai
perverte a lei do matrimônio, maculando o leito conjugal, o qual fora
designado apenas para duas pessoas. Nem é uma justificativa váli-
da dizer que ela desejava que Abrão possuísse uma concubina, e
não uma esposa, uma vez que se deveria ter considerado, como
algo definido, que a mulher se una ao homem para que os dois “se
tornem uma só carne”. E, embora a poligamia já fosse prevalecente
entre muitos, contudo, nunca foi deixado à vontade do homem revo-
gar aquela lei divina pela qual duas pessoas se unam mutuamente.
Nem Abrão ficou isento de culpa ao seguir o tolo e absurdo conse-
lho de sua esposa. Portanto, como a precipitação de Sarai era cul-
pável, assim a facilidade com que Abrão cedeu ao desejo dela era
digna de repreensão. A fé de ambos era imperfeita; na verdade, não
com respeito à substância da promessa, mas com respeito à forma
com a qual procederam, visto que se precipitaram em adquirir a des-
cendência que deveriam esperar do Senhor, sem observar a legíti-
ma ordenação de Deus.
A partir disso somos também ensinados que não é em vão que
Deus ordena a seu povo que se aquiete e aguarde com paciência,
sempre que ele adie ou suspenda a realização dos desejos deles.
Pois quem se apressa antes do tempo não apenas antepõe-se à
providência de Deus, mas, descontente com a sua palavra, se preci-
pita além de seus próprios limites. Mas parece que Sarai tinha em
vista algo mais, pois ela não somente queria que Abrão viesse a ser
pai, como também desejava obter para si os direitos e honras mater-
nais. Quanto a isso, minha resposta é: visto que ela sabia que todas
as nações seriam abençoadas na descendência de Abrão, não sur-
preende que ela não quisesse ser privada de participar da honra
dele, para que ela não fosse cortada, como um membro pútrido, do
corpo que havia recebido a bênção, e ainda se tornasse estranha à
salvação prometida.
Não lhe dava filhos. Isso parece ser acrescentado como des-
culpa. E, realmente, Moisés declara que ela não buscou o auxílio do
ventre de sua serva, mas, antes, que a necessidade a obrigou a agir
assim. Suas próprias palavras mostram ainda que ela, paciente e
modestamente, esperava ver o que Deus faria, até que a esperança
fosse inteiramente eliminada, quando percebe que fora impedida
pelo Senhor de gerar filhos [v. 2]. Que falta, pois, acharemos nela?
Seguramente, que ela não lançara, como deveria ter feito, seu cui-
dado perante Deus, sem vincular seu poder à ordem da natureza,
ou limitá-lo à suas próprias concepções. E então, ao deixar de inferir
do passado o que poderia acontecer no futuro, ela não se conside-
rou como estando na mão de Deus, o qual poderia outra vez abrir a
madre que ele mesmo fechara.

2. E assim me edificarei com filhos por meio dela. Essa é uma


frase hebraica que significa “tornar-se mãe”. Contudo, alguns expli-
cam a palavra significando simplesmente “ter um filho”. E, certamen-
te, (ben), que entre os hebreus significa filho, corresponde ao ver-
bo (’benuh) aqui empregado. Mas, uma vez que os filhos são
metaforicamente chamados de “continuadores da raça”, e assim edi-
ficando a família, então a significação primária da palavra deve ser
mantida. Sarai, porém, reivindica para si, por direito de domínio, o fi-
lho que Agar daria à luz, porque as escravas não dão à luz para si,
já que não têm poder sobre seu próprio corpo.
Ao falar primeiro ao seu esposo, ela não apenas admite uma
concubina, que era como se fosse uma meretriz, mas introduz e
impõe uma. E disso decorre que, quando as pessoas são, aos seus
próprios olhos, mais sábias do que deveriam ser, facilmente caem
na armadilha de tentarem meios ilícitos. O desejo de Sarai procede
do zelo da fé; mas, porque esse zelo não está tão sujeito a Deus a
ponto de esperar o seu tempo, ela imediatamente recorreu à poliga-
mia, a qual nada mais é do que a corrupção do matrimônio legítimo.
Além disso, visto que Sarai, uma santa mulher, assoprou em seu
marido a mesma chama da impaciência com a qual ela se queimara,
podemos a partir disso aprender quão diligentemente devemos estar
vigilantes, para que Satanás não nos surpreenda com alguma frau-
de secreta. Pois ele não só induz os homens perversos e ímpios a
se oporem abertamente à nossa fé, mas algumas vezes, privada e
reservadamente, ele nos ataca por intermédio de homens bons e
simples, para, de um modo inesperado, nos vencer. Portanto, deve-
mos estar, de todos os lados, atentos contra suas astutas ciladas,
para que de modo algum ele nos arruíne.
E Abrão anuiu ao conselho de Sarai. Verdadeiramente, a fé
de Abrão oscila, quando ele se desvia da palavra de Deus e se dei-
xa levar pela persuasão de sua esposa a buscar uma solução que
era divinamente proibida. Entretanto, ele mantém o fundamento,
porque não duvida que, por fim, perceberá que Deus é verdadeiro. E
por esse exemplo somos instruídos de que não há razão para de-
sespero se, em algum momento, Satanás abalar nossa fé, contanto
que a verdade de Deus não seja subvertida em nosso coração. Con-
tudo, quando vemos Abrão que, ao longo de tantos anos, como um
combatente invencível, bravamente enfrentou e superou tantos obs-
táculos, agora se rende, num momento singular, à tentação, quem
entre nós não temerá por si mesmo em semelhante perigo? Portan-
to, devemos orar diariamente para que Deus não nos deixe cair em
tentação.

3. Deu-a por mulher a Abrão, seu marido. Moisés declara qual foi
o real propósito de Sarai, pois ela não intentara fazer de sua casa
um bordel, nem ser a prevaricadora da castidade de sua serva, nem
alcoviteira de seu marido. Contudo, Agar é impropriamente denomi-
nada esposa, porquanto ela foi introduzida no leito de outra pessoa,
contra a lei de Deus. Portanto, saibamos que essa conexão estava
tão longe de ser lícita, a ponto de ser algo entre fornicação e matri-
mônio. A mesma coisa sucede com todas aquelas invenções que
são acrescentadas à palavra de Deus. Porque, seja qual for o justo
pretexto com que se acobertem, há uma corrupção inerente, a qual
degenera a pureza da palavra e a tudo vicia.

4. Foi sua senhora por ela desprezada. Aqui Moisés relata que a
punição da excessiva precipitação veio imediatamente. De fato, a
culpa principal repousava sobre Sarai; no entanto, visto que Abrão
se mostrou tão ingênuo, Deus castiga a ambos, conforme bem me-
reciam. Sarai é, dolorosa e amargamente, provada pelo arrogante
menosprezo de sua serva; Abrão é perturbado por queixas injustas.
Assim, vemos que ambos pagam o preço de sua respectiva levian-
dade, e que o artifício planejado por Sarai, e tão avidamente abraça-
do por Abrão, não tem sucesso. Contudo, em Agar um exemplo de
ingratidão é colocado diante de nós, porquanto ela, tendo sido trata-
da com singular bondade e honra, começa a desprezar sua senho-
ra. Entretanto, posto que essa é uma doença mental excessivamen-
te comum, que os fiéis se acostumem a suportá-la, se em algum
momento lhes for feita uma represália tão injusta, em resposta a
seus atos de bondade. Mas, especialmente, que a fraqueza de Sarai
nos mova a agir assim, já que ela foi incapaz de suportar o menos-
prezo de sua serva.

5. Seja sobre ti a afronta que se me faz a mim. Uma parte da pu-


nição foi que Sarai também se viu tão humilhada, que por certo tem-
po ficou fora de si; e, sendo veementemente provocada, se condu-
ziu com tanta fraqueza. Certamente, com toda a sua força, ela havia
convencido seu esposo a agir precipitadamente; e, agora, o insulta
de modo tão petulante, embora ele fosse inocente. Pois ela nada
alega pelo que Abrão devesse ser culpado. Sarai o repreende pelo
fato de ela mesma ter dado a sua serva a ele por concubina, e se
queixa de ser desprezada por essa serva, sem primeiro certificar-se
se ele pretendia ajudar a serva, aprovando ou não essa má ação.
Assim, cego é o assalto da ira; esta se lança impetuosamente de um
lado para o outro e condena, sem inquirir, aqueles que estão total-
mente isentos de culpa. Se existiu uma mulher com um espírito
manso e gentil, Sarai a excedeu nessa virtude. Portanto, enquanto
vemos que sua paciência se viu violentamente abalada por uma úni-
ca ofensa, que cada um de nós esteja ainda mais decidido a gover-
nar as próprias paixões.
Julgue o S entre mim e ti. Sarai faz uso impróprio do
nome de Deus e quase esquece aquela devida reverência que é tão
fortemente exigida daqueles que são santos. Ela apela para o juízo
de Deus. Que outra coisa é isso, senão evocar destruição sobre sua
própria cabeça? Pois, caso Deus tivesse se colocado como juiz, ne-
cessariamente teria executado juízo sobre um deles, ou sobre o ou-
tro. Abrão, porém, não fizera nenhuma injúria. Resta, pois, que Sarai
teria sentido a vingança de Deus, e a raiva do seu coração teria im-
prudentemente atraído juízo sobre si mesma, ou sobre seu esposo.
Se Moisés tivesse falando de qualquer mulher pagã, isso teria
passado despercebido como uma coisa comum. Mas agora o Se-
nhor nos mostra, na pessoa da mãe dos fiéis, primeiramente, quão
veemente é a chama da ira, e a que ponto ela incita os homens; e,
depois, quão profundamente estão cegos os que, em seus próprios
afazeres, são tolerantes consigo mesmo. Disso aprendemos que de-
vemos suspeitar de nós mesmos, sempre que tratamos de nossas
próprias preocupações. Ainda outra coisa é aqui primordialmente
digna de observação, a saber, que, por mais bem ordenadas sejam
as famílias, algumas vezes elas não estão livres de contendas. E
mais. Que esse mal alcança até mesmo a Igreja de Deus, pois sa-
bemos que a família de Abrão, que estava perturbada pelas intrigas,
era a representação viva da Igreja.
Quanto aos conflitos domésticos, sabemos que a parte principal
da vida social, a qual Deus santificou entre os homens, é dedicada à
vida conjugal; e, no entanto, várias inconveniências intervêm e,
como manchas, contaminam esse bom estado. Compete aos fiéis
prepararem-se para eliminar essas ocasiões de tribulação. Para
esse propósito, é de grande importância refletir sobre a origem do
mal, pois todas e quaisquer tribulações que porventura os homens
encontrem no matrimônio, devem ser atribuídas ao pecado.

6. A tua serva está nas tuas mãos. A grandeza da humanidade e


modéstia de Abrão é vista em sua resposta. Ele não discute com
sua esposa; e, embora ele tivesse a melhor razão, ainda assim ele
não a defende obstinadamente, mas voluntariamente despede a es-
posa que lhe foi dada. Em suma, para restaurar a paz, ele subjuga
os seus sentimentos, quer como esposo, quer como pai. Porque, ao
deixar Agar à vontade de sua furiosa senhora, ele não a trata como
sua esposa; e também, de certa maneira, ele despreza aquele ente,
objeto de sua esperança, que fora concebido na madre dela. E não
se deve duvidar de que ele estava calmo e sereno em suportar a im-
petuosidade de sua esposa, porque, ao longo de toda sua vida, ele
testificara que ela era obediente. Ainda assim, era uma atitude exce-
lente conter seu temperamento sob uma indignidade tão profunda.
Contudo, aqui se pode perguntar como era possível que seu
cuidado pela bendita descendência desaparecesse de sua mente, a
despeito da importância de Agar e seu filho; e Abrão espera que a
descendência pela qual a salvação do mundo foi prometida proce-
desse dela. Por que, pois, ele não despede a Sarai e direciona o
seu amor e desejo ainda mais para Agar? Verdadeiramente, inferi-
mos que todas as invenções humanas passam e se desvanecem
como fumaça, tão logo surja uma grave tentação. Tendo tomado
uma esposa contra o mandamento divino, Abrão crê que a questão
está tendo sucesso – quando a vê grávida – e se deleita em tola
confiança. Mas, quando a contenda surge de repente, ele não sabe
o que fazer e rejeita toda esperança, ou, ao menos, a esquece. O
mesmo ocorre, necessariamente, conosco, sempre que tentamos
algo que contraria a palavra de Deus. Nossa mente desfalecerá na
primeira investida da tentação, uma vez que nossa única base de
estabilidade é ter a autoridade de Deus para o que fazemos. Ao
mesmo tempo, Deus remove a ferrugem da fé do seu servo porque,
ao misturar sua própria imaginação e a de sua esposa com a pala-
vra de Deus, ele, em certo sentido, sufocou sua fé. Por isso, para
restaurar seu brilho, era preciso eliminar aquilo que era supérfluo.
Opondo-se dessa maneira aos nossos desígnios pecaminosos,
Deus nos restaura de nossa estupidez à uma mente sã. Uma sim-
ples promessa tinha sido dada: “Eu abençoarei a tua descendên-
cia.”. A intenção de Sarai se manifesta, a saber, que ela não podia
ter descendente, senão um espúrio dado por meio de Agar, e essa
lama da imaginação humana, com a qual a promessa foi maculada,
tinha de ser removida, para que Abrão pudesse derivar seu conheci-
mento de nenhuma outra fonte, a não ser da pura palavra de Deus.
Sarai humilhou-a, e ela fugiu de sua presença. A palavra
(anah), usada por Moisés, significa afligir e humilhar. Por isso, eu a
explico como sendo usada com o intuito de reduzir Agar à submis-
são. Mas, para uma mulher irada, era difícil manter-se dentro dos li-
mites ao reprimir a insolência de sua serva. Portanto, é possível que
Sarai se mostrasse imoderadamente enfurecida contra Agar; não
tanto no cumprimento do seu próprio dever, mas em usar um meio
de vingar-se das ofensas cometidas.
Uma vez que Moisés não apresenta nenhuma acusação mais
pesada, limito-me ao que é indubitável: que Sarai fez uso de sua
própria autoridade para reprimir a insolência de sua serva. E, sem
dúvida, à luz do evento podemos concluir que Agar foi obrigada a fu-
gir, não tanto pela crueldade de sua senhora, mas por sua própria
teimosia. Sua própria consciência a acusou; e é improvável que Sa-
rai tenha ficado tão irritada, exceto por muitas e, de fato, atrozes
ofensas. Portanto, a mulher, sendo de temperamento servil e de fe-
rocidade indomável, preferiu antes fugir a buscar outra vez o favor,
através do humilde reconhecimento de seu erro.

7. Tendo-a achado o Anjo do S . Aqui somos ensinados com


que misericórdia o Senhor age em favor de seu próprio povo, embo-
ra este tenha merecido severo castigo. Assim como anteriormente
atenuara a punição de Abrão e Sarai, agora ele lança um paternal
olhar para Agar, de modo que seu favor é estendido a toda a família.
De fato, ele não os poupa totalmente, para que não fomentassem
seus vícios; porém, os corrige com brandura.
É realmente provável que Agar, ao dirigir-se para o deserto de
Sur, pensasse sobre o regresso ao seu país natal. Contudo, tudo in-
dica que aqui se faz menção do deserto e da solidão para mostrar
que ela, se vendo miseravelmente afligida, peregrinou afastada da
presença dos homens, até que o anjo a encontrasse. Embora Moi-
sés não descreva a forma da visão, não duvido de que o anjo se re-
vestira de um corpo humano, no qual, porém, sinais da glória de
Deus fossem manifestados.

8. Disse-lhe: Agar, serva de Sarai. Ao usar a expressão “serva de


Sarai”, o anjo declara que Agar ainda continuava sendo serva, em-
bora houvesse escapado das mãos de sua senhora; porque a liber-
dade não deve ser obtida de modo ilegal, nem pela fuga, e sim pela
emancipação. Além disso, por essa expressão, Deus mostra que ele
aprova o governo civil, e que a violação deste é indesculpável.
A condição da servidão era então dura, e deve-se dar graças ao
Senhor por essa barbárie ter sido abolida. Contudo, Deus declarou
desde o céu seu beneplácito: que os servos suportem o jugo da ser-
vidão; como também, pela boca de Paulo, ele não dá aos servos
sua liberdade, nem priva a seus senhores de seu uso, mas apenas
ordena que sejam tratados bondosa e generosamente [Ef 4.4]. Infe-
re-se ainda, a partir da circunstância da época, não só que o gover-
no civil deve ser mantido, como questão de necessidade, mas que
as autoridades legítimas devam ser obedecidas, por motivo de cons-
ciência. Pois, embora a fugitiva, Agar, não mais pudesse ser obriga-
da à obediência pela força, aos olhos de Deus, sua condição não foi
mudada. Pelo mesmo argumento se prova que, se os senhores, em
algum tempo, tratam seus servos com a máxima dureza, ou se os
governantes tratam seus súditos com injusta severidade, seu rigor
deve ser suportado, e não há justa causa para abandonar o jugo,
embora os seus senhores exerçam seu poder com demasiada ar-
rogância.
Em suma, sempre que vier à nossa mente defraudar a alguém
de seu direito, ou buscar isenção de nossa própria vocação, que a
voz do anjo soe em nossos ouvidos, como se Deus nos atraísse de
volta, estendendo sobre nós sua própria mão. Os que têm governa-
do com orgulho e tirania, um dia terão que prestar contas a Deus;
enquanto isso, sua arrogância deve ser suportada por seus súditos,
até que Deus, cuja prerrogativa é erguer o desprezado e aliviar o
oprimido, lhes socorra. Se podem ser comparados, o poder dos ma-
gistrados é muito mais tolerável do que era o antigo domínio da es-
cravidão. A autoridade paterna é, em sua própria natureza, amável e
digna de respeito. Se a fuga de Agar foi proibida pela ordem de
Deus, muito menos ele tolerará a licenciosidade de um povo que se
rebela contra seu príncipe, ou a rebeldia dos filhos que desobede-
cem a seus pais.
Donde vens e para onde vais? O anjo não pergunta sobre
uma questão duvidosa. Mas, sabendo que nenhuma saída é deixa-
da para Agar, ele reprova decisivamente a fuga dela. É como se ele
dissesse: “Havendo abandonado a tua posição, de nada te aprovei-
tará tua peregrinação, visto que não podes escapar da mão de
Deus, que te colocou lá.”. É possível ainda que ele censurasse sua
partida daquela casa, que era então o santuário de Deus na terra.
Pois ela sabia que Deus era ali cultuado de uma maneira peculiar.
E, embora Agar indiretamente acuse sua senhora de crueldade, di-
zendo que ela fugira de sua presença, contudo o anjo, para eliminar
todas as justificativas, lhe ordena que volte e se humilhe. Por essas
palavras, o anjo declara, primeiramente, que o vínculo de sujeição
não é dissolvido nem por excessiva severidade, nem pelo impotente
domínio dos governantes. Ele então impõe sobre a própria Agar a
responsabilidade do mal, porquanto ela obstinadamente se pusera
em oposição à sua senhora, e, esquecida de sua própria condição,
se exaltara de modo mais insolente e ousado do que convém a uma
escrava.
Em suma, uma vez que ela é justamente punida por seus erros,
ele lhe ordena a que buscasse o remédio para corrigi-los. E, real-
mente, visto que nada é melhor que, pela obediência e paciência,
apaziguar a severidade dos que exercem autoridade sobre nós, de-
vemos sobretudo labutar para que, por nossa humilhação, possam
se tornar flexíveis, quando os ofendermos por nosso orgulho.

10. Multiplicarei sobremodo a tua descendência. Com o propósi-


to de suavizar a ofensa e de aliviar o que era severo na ordem de
voltar para a sua senhora, por meio de uma consolação, o anjo pro-
mete uma bênção no filho que ela daria à luz. De fato, Deus poderia,
por sua própria autoridade, ter exigido estritamente o que a situação
exigia, mas, para que Agar fizesse mais alegremente o que ela bem
sabia ser seu dever, ele a induz, como por meio de agrados, à obe-
diência. A mesma finalidade possui aquelas promessas pelas quais
ele nos convida à submissão voluntária. Pois ele não nos atrairia por
meio de métodos servis, de modo que obedecêssemos a seus man-
damentos por constrangimento; e por isso ele mescla convites bran-
dos e paternais com os seus mandamentos, tratando-nos generosa-
mente, como a filhos.
Nada há de absurdo em o anjo aqui prometer fazer o que é pe-
culiar somente a Deus, pois é bastante comum Deus investir seus
ministros, a quem envia, com seu próprio caráter, para que a palavra
deles tenha autoridade. Entretanto, não desaprovo a opinião de mui-
tos dos antigos, de que Cristo, o Mediador, estava sempre presente
em todos os oráculos, e que essa é a causa porque a majestade de
Deus é atribuída aos anjos. Eu já tratei desse tema e terei oportuni-
dade de falar mais sobre ele em outro momento.

11. Concebeste e darás à luz um filho. O anjo explica o que disse-


ra sucintamente a respeito da descendência de Agar, a saber, que
ela não poderia ser enumerada em virtude de sua multidão; e ela
começa com Ismael, que seria a cabeça e origem da descendência.
Embora vejamos mais adiante que ele era um réprobo, um nome
honroso lhe é concedido para ressaltar o benefício temporal do qual
Ismael se tornou participante, por ser um filho de Abrão.
Eu explico essa passagem assim: a intenção de Deus era que
um monumento de sua paternal bondade, com a qual ele abraça
toda a casa de Abrão, durasse para a posteridade. Pois, embora a
aliança de vida eterna não pertencesse a Ismael, contudo, para que
ele não ficasse inteiramente destituído de favor, Deus o constituiu o
pai de um grande e famoso povo. E assim vemos que, com respeito
a esta vida terrena, a bondade de Deus se estende à descendência
de Abrão segundo a carne. Mas, se Deus tencionava que o nome de
Ismael [que significa Deus ouvirá] fosse um memorial perpétuo de
seus benefícios temporais, ele de modo algum suportará nossa in-
gratidão, caso não celebremos suas celestiais e eternas misericórdi-
as até a morte.
OS te acudiu na tua aflição. Não lemos que Agar, em
suas dificuldades, tenha recorrido à oração; e somos, antes, deixa-
dos a supor, à luz das palavras de Moisés, que, quando ela se viu
aturdida por seus sofrimentos, o anjo veio por iniciativa própria. Por-
tanto, deve-se observar que há dois modos pelos quais Deus olha
para os homens, com o propósito de ajudá-los: ou quando eles,
como suplicantes, imploram seu auxílio; ou quando Deus, mesmo
sem súplica, os socorre em suas aflições.
De fato, é dito especialmente que Deus ouve aqueles que, por
meio de orações, o invocam como seu Libertador. Contudo, algumas
vezes, quando os homens permanecem mudos e, por causa de seu
entorpecimento, não lhe dirigem seus desejos, é dito que ele ouve
as misérias humanas. Que esse último modo de ouvir se cumpriu
com Agar é provável, porque Deus graciosamente a encontrou pe-
rambulando pelo deserto. Além disso, porque Deus frequentemente
priva os incrédulos de seu socorro, até que sejam consumidos pela
dificuldade, ou, então, sejam repentinamente destruídos, que ne-
nhum de nós se entregue à própria preguiça, mas, sendo admoesta-
dos pela consciência de nossos males, busquemo-lo sem demora.
Entretanto, não é de pouca importância para a confirmação de nos-
sa fé, que nossas orações nunca serão desprezadas pelo Senhor,
visto que, até mesmo ao preguiçoso e estúpido, ele ajuda antecipa-
damente. E, se ele socorre aqueles que não o buscam, muito mais
propício será para com os piedosos desejos de seu próprio povo.

12. Ele será, entre os homens, como um jumento selvagem. O


anjo declara que tipo de pessoa será Ismael. O significado simples é
(em minha opinião) que ele seria um homem belicoso e tão formidá-
vel para seus inimigos, que ninguém o prejudicaria impunemente.
Alguns explicam a palavra (pereh) no sentido de silvicultor, e al-
guém dado à caça de animais selvagens. Mas tudo indica que não
se deve buscar a explicação em outro lugar, senão no contexto; pois
segue imediatamente que “a sua mão será contra todos, e a mão de
todos, contra ele.”. Contudo, pode-se perguntar se isto deve ser
considerado entre os benefícios conferidos por Deus: que Ismael
deve preservar sua posição na vida por força de armas, visto que
nada é, em si mesmo, mais desejável do que a paz. A dificuldade
pode ser assim resolvida: embora todos os seus vizinhos lhe fizes-
sem guerra, e, de todos os lados, conspirassem para destruí-lo, con-
tudo, ainda que sozinho, Ismael seria dotado com suficiente poder
para repelir a todos os seus ataques.
No entanto, eu penso que o anjo de modo algum promete a Is-
mael favor completo, mas somente um favor limitado. Entre nossas
principais bênçãos, devemos desejar desfrutar de paz com todos os
homens. Agora, posto que isso é negado a Ismael, aquela bênção
que, na sentença vem depois, é concedida a ele, a saber, que ele
não seria vencido por seus inimigos, mas seria bravo e poderoso
para resistir a força deles. Entretanto, ele não fala na pessoa de Is-
mael, e sim de toda sua descendência, pois o que segue não se en-
quadra estritamente a um único homem. Esta exposição deve ser
aprovada, a saber, que aqui não se promete nenhuma bênção sim-
ples ou mista, mas somente uma condição tolerável ou moderada,
de modo que Ismael e sua descendência poderiam perceber que
algo lhes fora divinamente concedido, por amor de seu pai Abrão.
Portanto, não é, de modo algum, considerado entre os benefícios
dados por Deus, que ele terá todos à sua volta como inimigos e a
eles resistirá pelo uso da violência. Mas isso é acrescentado como
um remédio e um alívio do mal: que ele, que teria muitos inimigos,
teria capacidade de resisti-los.
Habitará fronteiro a todos os seus irmãos. Como isso é pro-
priamente aplicável somente a uma nação, desse fato percebemos
mais facilmente que está enganado quem restringe a passagem à
pessoa de Ismael. Além disso, outros entendem que a descendên-
cia de Ismael haveria de ter uma habitação fixa na presença de seus
irmãos, os quais não estarão dispostos a aceitá-lo, como se fosse
dito que ocupariam a terra em que habitam pela força, embora seus
irmãos possam tentar impedi-los. Outros aduzem uma opinião con-
trária, a saber, que os ismaelitas, ainda que vivessem entre um
grande número de inimigos, contudo não seriam destituídos de ami-
gos e irmãos. No entanto, eu não concordo com nenhuma dessas
opiniões, pois o anjo antes declara que esse povo seria separado
dos demais, como se quisesse dizer: “Eles não formarão uma parte
ou membro de qualquer outra nação; mas serão um corpo completo,
tendo nome distinto e especial.”.

13. Então, ela invocou o nome do S . Não tenho dúvidas de


que Moisés pressupõe que Agar, após ser admoestada pelo anjo,
teve sua mente transformada; e, sendo assim humilhada, recorreu à
oração; a menos que, talvez, aqui o significado seja de uma confis-
são, em vez de uma mudança de mente. Contudo, eu, ao contrário,
inclino-me à opinião de que Agar, que antes era de um temperamen-
to selvagem e intratável, finalmente, começa a reconhecer a provi-
dência de Deus. Além disso, quanto àquilo que alguns supõem, a
saber, que Deus é chamado “o Deus da visão” porque ele aparece e
se manifesta aos homens, é uma interpretação forçada. Ao contrá-
rio, entendamos que Agar, que antes parecia ter sido arrastada ao
deserto pelo acaso, agora percebe e reconhece que as atividades
humanas estão sob o governo divino. E quem quer que seja persua-
dido de que é visto por Deus, necessariamente deve andar como
que diante de seus olhos.
Não olhei eu neste lugar para aquele que me vê? Alguns tra-
duzem essa frase assim: “Não tenho visto após a visão?”. Mas ela é
realmente como eu a traduzi. Além disso, a obscuridade da senten-
ça nos tem proporcionado várias interpretações. Alguns dentre os
hebreus dizem que Agar ficou atônita ante a visão do anjo, porque
ela imaginava que Deus não era visto em nenhum lugar, a não ser
na casa de Abrão. Mas isso não tem fundamento; e, dessa maneira,
o orgulho dos judeus os compele a zombarem, visto que aplicam
todo seu estudo para se gabarem da glória de sua raça. Outros tra-
duzem a passagem assim: “Eu tenho visto depois de minha visão?”,
dando a entender que Agar viu demoradamente, isto é, que durante
a visão ela estava cega. De acordo com esses intérpretes, a visão
de Agar era dupla: a primeira, errônea, posto que ela nada percebia
de celestial no anjo; mas a outra, verdadeira, depois que ela se viu
afetada com a percepção da natureza divina da visão. Para alguns é
como se estivesse implícita uma resposta negativa, como se ela dis-
sesse: Eu não o vi partindo; e então, quando de repente desapare-
ce, ela recorda que ele teria sido um anjo de Deus.
Na segunda parte da sentença, os intérpretes também não são
unânimes. Jerônimo, na Vulgata, o interpreta assim: “As costas da-
quele que me vê”, que muitos se referem a uma visão obscura, de
modo que a frase é considerada metafórica. Pois, como não perce-
bemos nitidamente os homens por trás, assim dizem que veem a
Deus pelas costas, aqueles a quem ele não se manifesta franca e
claramente; e essa opinião é geralmente aceita. Outros pensam que
Moisés usou uma figura diferente, pois tomam a visão das costas de
Deus para significar o seu sentimento de ira, do mesmo modo com
nos é dito que seu rosto brilha sobre nós quando ele se mostra pro-
pício e favorável. Portanto, de acordo com eles, o sentido da frase é
este: “Eu pensava que havia escapado, de modo que não mais seria
ameaçado pela vara ou castigo de Deus; mas aqui percebo que ele
ainda está irado comigo.”.
Até aqui tenho relatado sucintamente a opinião de outros. E,
embora eu não tenha a intenção de refutar cada uma delas, contudo
declaro convictamente que nenhum desses intérpretes compreen-
deu o significado de Moisés. De bom grado aceito o que alguns ale-
gam, a saber, que Agar se maravilhou da bondade de Deus, por ele
a ter considerado até mesmo no deserto; mas isso, ainda que seja
alguma coisa, não é o todo. Em primeiro lugar, Agar repreende a si
mesma porque, como antes fora tão cega, mesmo agora abre seus
olhos, devagar e indolentemente, para perceber a Deus. Pois ela
agrava a culpa de sua sonolência pela circunstância tanto de lugar
como de tempo. Ela descobriu frequentemente, por muitas provas,
que era considerada pelo Senhor; contudo, tornando-se cega, ela
havia menosprezado sua providência, como se, com os olhos fecha-
dos, passasse por ele, quando se apresentou diante dela. Ela agora
se incrimina por não haver acordado mais rapidamente quando o
anjo apareceu. A circunstância de lugar é também de grande peso,
porque Deus, que sempre testemunhou que estava presente com
ela na casa de Abrão, agora a perseguia como fugitiva, até mesmo
no deserto. Isto implicava, de fato, uma vil ingratidão da parte dela:
ser cega na presença de Deus; de modo que, mesmo quando bem
sabia que ele estava olhando para ela, ela, por sua vez, não ergueu
seus olhos para contemplá-lo. Mas era uma cegueira ainda mais
vergonhosa o fato de que Agar, sendo considerada pelo Senhor,
embora fosse uma errante e exilada, pagando a justa pena de sua
perversidade, ainda não o reconhecia como estando presente. Ago-
ra vemos o ponto para o qual a autocensura dela tende: “Até então
não busquei a Deus, nem lhe tive respeito, a não ser por constrangi-
mento, mesmo quando, outrora, aprouve a ele olhar para mim; e
mesmo agora, aqui no deserto, onde me acho afligida com males, e
onde eu deveria despertar-me imediatamente, tenho estado pertur-
bada, como de costume, e jamais teria erguido meus olhos para o
céu, se antes eu não tivesse sido vista pelo Senhor.”.

14. Por isso, aquele poço se chama Beer-Laai-Roi. Eu subscrevo


a opinião dos que tomam a palavra (yekra) indefinidamente, o
que é bastante usual no idioma hebreu. Para que o sentido seja
mais claro, ela deve ser convertida para a voz passiva, ou seja, “o
poço foi chamado”. No entanto, penso que essa designação comum
se originou com Agar, que, não contente com uma confissão sim-
ples, desejava que a misericórdia de Deus fosse atestada no futuro,
e, por isso, transmitiu seu testemunho de geração em geração. A
partir disso inferimos quão útil é que, os que não se humilham es-
pontaneamente, sejam subjugados por açoites. Agar, que sempre
fora irascível e rebelde, e que, por fim, abandonara inteiramente o
jugo, agora, quando a dureza de seu coração é quebrantada pelas
aflições, radicalmente parece ser outra pessoa. Entretanto, ela não
foi trazida de volta somente por açoites, mas uma visão celestial
também foi acrescentada, a qual a subjugou completamente. E a
mesma coisa nos é necessária, a saber, que Deus, enquanto nos
castiga com sua mão, também por seu Espírito nos arrasta a um es-
tado de submissa mansidão.
Alguns dentre os hebreus afirmam que o nome do poço lhe foi
dado para ser um testemunho de um duplo favor, porque Ismael re-
viveu da morte, e Deus atentou para Agar, sua mãe. Mas eles tola-
mente separam coisas inseparáveis, pois Agar desejava testificar
que ela fora favoravelmente considerada por aquele que era o Deus
Vivo, ou o Autor da vida.

15. E Abrão, a seu filho que lhe dera Agar, chamou-lhe Ismael. A
Agar foi ordenado dar a seu filho aquele nome. Moisés, porém, se-
gue a ordem da natureza, porque os pais, pela imposição do nome,
declaram o poder que têm sobre seus filhos. Podemos facilmente
deduzir que, quando voltou para casa, Agar relatou os eventos que
ocorreram. Portanto, Abrão se mostra obediente e agradecido a
Deus, porque tanto dá nome a seu filho, em conformidade com o
mandamento do anjo, como também celebra a bondade de Deus em
haver atentado para as misérias de Agar.
C A P ÍT U L O 1 7

1. Quando atingiu Abrão a idade de noventa e nove anos. Moi-


sés ignora 13 anos da vida de Abrão; não porque nada digno de
lembrança tivesse ocorrido, mas porque o Espírito de Deus, segun-
do sua própria vontade, seleciona aquelas coisas que são mais ne-
cessárias ao nosso conhecimento. Intencionalmente, Moisés ressal-
ta o período de tempo que decorreu desde o nascimento de Ismael
até o período quando Isaque foi prometido, com o propósito de nos
ensinar que Abraão continuaria satisfeito com aquele filho que deve-
ria, por fim, ser rejeitado, e que ele era como alguém que se deixa
enganar por um simulacro.
Entretanto, vemos por que caminho tortuoso o Senhor o condu-
ziu. Era ainda possível que ele trouxesse essa demora sobre si
mesmo por sua própria culpa, ao haver contraído precipitadamente
segundas núpcias; contudo, como Moisés não declara tal coisa, eu
não afirmo isso com certeza. Que seja suficiente aceitar o que é in-
dubitável, a saber, que Abrão, se contentando somente com seu fi-
lho, não mais desejou outra descendência. Antes, a falta de descen-
dência o conduzia a constantes orações e suspiros, pois a promes-
sa de Deus era tão presente em sua mente, que ele procurava ar-
dentemente o seu cumprimento. E agora, supondo falsamente que
já satisfizera seu desejo, pela presença de seu filho segundo a car-
ne, ele se distancia da expectativa de uma descendência espiritual.
Uma vez mais, a maravilhosa bondade de Deus se mostra no fato
de que o próprio Abrão é despertado, além de sua própria expectati-
va e desejo, para uma nova esperança, e de repente ele ouve que o
que nunca ocorrera à sua mente pedir é concedido a ele. Se ele vi-
vesse diariamente oferecendo insistentes orações por essa bênção,
não teríamos visto tão claramente que ela lhe foi conferida pelo gra-
cioso dom de Deus, como quando lhe é dada sem que ele pensasse
nela ou a desejasse. Antes, porém, de falarmos de Isaque, compen-
sará nosso trabalho notar a ordem e conexão das palavras.
Primeiramente, Moisés diz que o Senhor lhe apareceu, para
que saibamos que o oráculo não foi pronunciado por revelação se-
creta, mas que ao mesmo tempo uma visão foi acrescentada. Além
disso, não foi apenas uma visão, mas uma visão acompanhada da
palavra, da qual a fé de Abrão pudesse tirar proveito. A palavra
acrescentada à visão contém, de modo resumido, esta declaração:
que Deus entra em aliança com Abrão, explica a natureza da alian-
ça em si, e, finalmente, põe selo sobre ela, com os termos que a
acompanham.
Eu sou o Deus Todo-poderoso. O substantivo El, que é deri-
vado do termo “poder”, é aqui atribuído a Deus. A mesma observa-
ção se aplica à palavra (Shaddai), que a acompanha, como se
Deus declarasse que ele tem suficiente poder para proteger a
Abrão, porque nossa fé só pode ficar firme enquanto formos susten-
tados pela certeza de que somente a proteção de Deus nos é sufici-
ente, e sinceramente podemos desprezar tudo quanto no mundo se
opõe à nossa salvação. Deus, pois, não se vangloria daquele poder
que está oculto em seu íntimo, mas daquilo que ele manifesta para
seus filhos; e ele age assim para que Abrão pudesse encontrar ele-
mentos para confiança. Assim, nessas palavras, está inclusa uma
promessa.
Anda na minha presença. Em outro lugar, já explicamos a for-
ça dessa expressão. Ao fazer aliança, Deus estipula a obediência
por parte de seu servo. Contudo, não é vão que ele declara anteci-
padamente que é “o Deus Todo-poderoso”, isto é, tem poder para
socorrer o seu próprio povo; porque era necessário que Abrão rejei-
tasse todos os outros meios de ajuda, para que se devotasse inteira
e somente a Deus. Pois ninguém jamais recorrerá a Deus, senão
aquele que mantém as coisas criadas em seu devido lugar e busca
somente Deus. De fato, onde o poder de Deus já foi reconhecido,
devemos nos portar com admiração, e nossa mente deve de tal
modo encher-se de reverência por ele, que nada nos impeça de cul-
tuá-lo. Além disso, porque os olhos de Deus olham para a fé e a ver-
dade no coração, Abrão é ordenado a buscar integridade. Pois os
hebreus denominam de homem de perfeições, a quem não possui
uma mente enganosa e inconstante, mas que sinceramente cultiva a
retidão. Em suma, a integridade aqui mencionada é oposta à hipo-
crisia. E, seguramente, quando lidamos com Deus, não há espaço
para dissimulação.
À luz dessas palavras, aprendemos com que objetivo Deus con-
grega para si uma igreja, isto é, sejam santos, aqueles a quem ele
chama. De fato, o fundamento da vocação divina é uma promessa
gratuita; mas segue-se imediatamente que, aqueles a quem Deus
escolheu para si como um povo peculiar, devem devotar-se à justiça
de Deus. Pois, nessa condição, ele adota para si filhos, para que
possa, por sua vez, obter o lugar e a honra de Pai. E, como ele mes-
mo não pode mentir, da mesma forma exige de seus próprios filhos
fidelidade recíproca. Por isso mesmo, devemos saber que Deus se
manifesta aos fiéis para que vivam diante de seus olhos, e para que
ele mesmo seja o Árbitro tanto das obras quanto dos pensamentos
deles. Disso também inferimos que não existe outra forma de viver
piedosa e justamente, senão viver na dependência de Deus.

2. Farei uma aliança entre mim e ti. Deus então passa a explicar,
mais plena e abundantemente, o que antes dissera sucintamente.
Já dissemos que a aliança de Deus com Abrão tinha duas partes. A
primeira era uma declaração de amor gratuito, à qual foi acrescenta-
da a promessa de uma vida feliz. Mas a outra era uma exortação ao
esforço sincero de se cultivar a retidão, visto que Deus havia dado,
numa única palavra apenas, pequena demonstração de sua graça;
por isso, imediatamente, se dirigiu ao propósito de sua vocação, a
saber, que Abrão fosse íntegro. Ele agora inclui uma declaração
mais ampla de sua graça, para que Abrão se esforçasse mais es-
pontaneamente a moldar sua mente e sua vida, tanto à reverência
para com Deus quanto ao cultivo da retidão, como se Deus disses-
se: “Vê quão bondosamente eu ajo para contigo, pois não exijo de ti
integridade simplesmente por conta de minha autoridade, o que eu
posso fazer com justiça, mas, enquanto nada te devo, condescendo-
me graciosamente a fazer uma aliança mútua.”.
Entretanto, Deus não diz isso como algo novo; porém, traz à
memória a aliança que fizera anteriormente, e agora a confirma ple-
namente e estabelece sua certeza. Pois Deus não costuma pronun-
ciar novos oráculos que porventura destruam a credibilidade, ou
obscureçam a luz, ou enfraqueçam a eficácia daqueles oráculos an-
teriormente dados; porém dá sequência, de modo contínuo, àquelas
promessas que uma vez ele deu. Portanto, por essas palavras, ele
nada mais deseja senão que a aliança, da qual Abrão já ouvira, se-
ria estabelecida e confirmada; porém, expressamente introduz aque-
le ponto primordial, concernente à multiplicação da descendência, o
que mais adiante reitera com frequência.

3. Prostrou-se Abrão, rosto em terra. Sabemos que esse era o


antigo rito de adoração. Além disso, Abrão testifica, primeiramente,
que reconhece Deus, em cuja presença toda carne deve manter si-
lêncio e humilhar-se; e, em segundo lugar, que reverentemente re-
cebe e cordialmente abraça tudo quanto Deus está para dizer. Con-
tudo, se isso foi proposto como uma confissão de fé, então temos
que observar que a fé que depende da graça de Deus não pode es-
tar separada de uma consciência pura. Ao oferece sua graça a
Abrão, Deus requer dele uma sincera disposição de viver justa e
santamente. Ao prostrar-se, Abrão declara receber obedientemente
a ambas.1 Portanto, recordemos que, em um e o mesmo vínculo de
fé, a adoção gratuita, na qual nossa salvação está depositada, deve
combinar-se com a novidade de vida. E, embora Abrão não pronun-
cie sequer uma palavra, com seu silêncio ele declara de modo pleno
que obedece à palavra de Deus mais do que tivesse falado com voz
alta e sonora.

4. Quanto a mim, será contigo minha aliança. Os que traduzem a


passagem por “Eis que faço contigo uma aliança” ou “Eis a mim e
minha aliança contigo”, não me parecem representar fielmente o sig-
nificado de Moisés. Pois, primeiramente, Deus declara que ele é
aquele que fala, para que a autoridade absoluta se mostre em suas
palavras. Porque, visto que nossa fé não pode repousar em nenhum
outro fundamento além da veracidade eterna de Deus, torna-se ne-
cessário, acima de tudo, que sejamos informados que o que nos é
proposto procedeu de sua santa boca. Portanto, o pronome mim
deve ser lido separadamente, como um prefácio ao restante do dis-
curso,2 para que Abrão tivesse uma mente tranquila e se engajasse,
sem hesitação, na aliança proposta. Disso se deduz uma doutrina
útil: que a fé tem necessariamente Deus como referência, porque,
apesar de anjos e homens falarem conosco, jamais sua autoridade
será suficientemente grande para fortalecer nossa mente. Outra coi-
sa não aconteceria, senão que de vez em quando vacilaríamos, até
que a voz soe do céu dizendo: “Eu sou”.
Disso também fica claro que tipo de religião é a do papado, na
qual, em vez da palavra de Deus, as ficções dos homens são o úni-
co motivo de orgulho. E com razão fica exposto à contínua hesita-
ção quem, dependendo da palavra dos homens, agem injustamente
para com Deus, atribuindo-lhes mais do que é de direito. Nós, po-
rém, não tenhamos outro fundamento de nossa fé, além desta pala-
vra “Eu”, não como pronunciada indiferentemente por qualquer
boca, mas somente pela boca de Deus. Entretanto, se miríades de
homens se puserem em oposição e orgulhosamente exclamarem
“Nós, nós”, que essa única palavra de Deus seja suficiente para dis-
sipar o barulho vazio das multidões.
Serás pai de numerosas nações. Questiona-se o que é essa
multidão de nações. Obviamente, tudo indica que diferentes nações
tiveram sua origem no santo patriarca, pois Ismael veio a ser um
grande povo. Os idumeus3, originários de outra filiação, se expandi-
ram amplamente; grandes famílias também nasceram de outros fi-
lhos que ele teve de Quetura. Moisés, porém, olhava para muito lon-
ge, porque, de fato, os gentios seriam, pela fé, inseridos no tronco
de Abrão, embora não descendessem dele segundo a carne, de
cujo fato Paulo nos é um fiel intérprete e testemunha. Pois Paulo
não reuniu os árabes, idumeus, entre outros, com o propósito de fa-
zer de Abrão o pai de muitas nações, mas estende de tal modo o tí-
tulo pai, que o faz aplicável ao mundo inteiro, para que os gentios,
de todas as partes, em alguns aspectos estrangeiros e separados
uns dos outros, pudessem reunir-se na única família de Abrão.
De fato admito que, por certo tempo, as 12 tribos eram como se
fossem muitas nações; mas isso só com o objetivo de formar um
prelúdio daquela imensa multidão, a qual, por fim, seria reunida
como a única família de Abrão. E que Moisés fala daqueles filhos
que, sendo regenerados pela fé, adquirem o nome e passam a per-
tencer ao tronco de Abrão, é suficientemente provado por essa úni-
ca consideração. Pois a descendência carnal de Abrão não podia
ser dividida em diferentes nações, sem fazer com que os que se se-
pararam da unidade fossem imediatamente considerados estrangei-
ros.
Assim a Igreja rejeitou os ismaelitas, os idumeus, entre outros,
e os considerou estrangeiros. Abrão, portanto, não foi chamado o
pai de muitas nações porque sua descendência devesse ser dividida
em muitas nações, mas, ao contrário, porque, um dia, muitas na-
ções seriam reunidas a ele. Do mesmo modo, a mudança de seu
nome é acrescentada como uma marca. Pois ele começa a ser cha-
mado Abraão, para que o próprio nome lhe ensinasse que ele não
seria o pai de apenas uma única família, mas que a sua descendên-
cia se tornaria uma imensa multidão, além dos descendentes natu-
rais. Por essa razão, o Senhor frequentemente renova essa promes-
sa, porque a própria repetição mostra que não se prometia nenhuma
bênção comum.

7. Entre mim e ti e a tua descendência. Não há dúvida de que o


Senhor distingue a descendência de Abraão do resto do mundo. De-
vemos ver agora que povo ele tinha em vista. Ora, está enganado
quem pensa que aqui se salientam somente seus eleitos; e que to-
dos os fiéis estão aqui indiscriminadamente compreendidos, não im-
portando a sua origem segundo a carne. Pois, ao contrário, a Escri-
tura declara que a descendência natural de Abraão foi peculiarmen-
te aceita por Deus. E a evidente doutrina de Paulo concernente aos
descendentes naturais de Abraão é que eles são ramos santos que
procederam de uma raiz santa [Rm 11.16]. E, para que ninguém res-
trinja essa afirmação às sombras da lei, ou a deturpe por meio de
alegoria, em outro lugar ele declara expressamente que Cristo foi
constituído ministro da circuncisão [Rm 15.8]. Portanto, nada é mais
certo do que Deus ter feito sua aliança com aqueles filhos de Abra-
ão que nasceriam naturalmente dele. Se alguém objetar dizendo
que essa opinião de modo algum concorda com a anterior, onde dis-
semos que é contado como filho de Abraão aquele que, pela fé,
sendo enxertado em seu corpo, forma uma só família, a diferença é
facilmente conciliada estabelecendo determinados graus distintos de
adoção, os quais podem ser indicados em várias passagens da Es-
critura.
No princípio, antes dessa aliança, a condição de todo o mundo
era uma e a mesma. Mas, tão logo foi dito “para ser o teu Deus e da
tua descendência”, a Igreja foi separada das demais nações, do
mesmo modo como, na criação do mundo, a luz emergiu das trevas.
Então o povo de Israel foi recebido, como o rebanho de Deus, em
seu próprio redil; as demais nações vaguearam, como animais sel-
vagens, pelos montes, florestas e desertos. Posto que essa dignida-
de, na qual os filhos de Abraão se distinguem das demais nações,
dependia somente da palavra de Deus, a adoção gratuita de Deus
lhes pertence a todos eles em comum. Pois, se Paulo priva os genti-
os de Deus e da vida eterna com base no fato de que vivem aliena-
dos da aliança [Ef 4.18], segue-se que todos os israelitas eram da
família da Igreja, filhos de Deus e herdeiros da vida eterna. E, embo-
ra fosse pela graça de Deus, e não por natureza, que eles se distin-
guem dos gentios, e que a herança do reino de Deus lhes viesse
mediante promessa, e não por descendência carnal, contudo, algu-
mas vezes lemos que diferem por natureza do resto do mundo. Na
Epístola aos Gálatas, capítulo 2, versículo 15, e em outros lugares,
Paulo os denomina de santos “por natureza”, porque Deus quis que
sua graça alcançasse, por sucessão, a toda a descendência. É nes-
se sentido que, os que eram incrédulos entre os judeus, ainda são
por Cristo chamados de “filhos do reino” [Mt 8.12]. Também não con-
tradiz isso o que Paulo diz, a saber, que nem todos os que descen-
dem de Abraão devem ser estimados como filhos legítimos, porque
não são filhos da promessa, mas, somente da carne [Rm 9.8]. Pois
ali, a promessa não é estabelecida geralmente por aquela palavra
externa, pela qual Deus conferiu seu favor tanto aos réprobos quan-
to aos eleitos, mas deve restringir-se àquela vocação eficaz que ele
sela interiormente por seu Espírito. E que esse é o caso, prova-se
sem dificuldade; pois a promessa pela qual o Senhor os adotara
como filhos era comum a todos; e, naquela promessa, não se pode
negar que a salvação eterna era oferecida a todos. Qual, pois, pode
ser o significado de Paulo, quando nega que certas pessoas tenham
algum direito de serem reputadas entre os filhos, exceto que ele já
não está tratando sobre a graça externamente oferecida, e sim so-
bre aquela da qual somente os eleitos participam eficazmente?
Aqui, pois, se nos apresenta uma dupla classe de filhos na Igre-
ja; porque, posto que todo o corpo do povo é congregado no reba-
nho de Deus por uma e a mesma voz, todos, sem exceção, são,
nesse aspecto, considerados filhos, e o nome da Igreja é aplicável a
todos eles em comum; mas, no santuário mais íntimo de Deus, ne-
nhum outro é considerado filho de Deus, senão aquele em quem a
promessa é confirmada pela fé. E, embora essa diferença flua da
fonte da eleição gratuita, de onde também emana a própria fé, con-
tudo, visto que o conselho de Deus em si mesmo nos seja oculto,
distinguimos os filhos genuínos dos espúrios pelas respectivas mar-
cas de fé e de incredulidade.
Esse método e dispensação continuaram até a promulgação do
evangelho; mas, então, a parede da separação foi derrubada [Ef
2.14], e Deus fez os gentios iguais aos descendentes naturais de
Abraão. Essa foi a renovação do mundo, pela qual aqueles que an-
tes eram estranhos começaram a ser chamados filhos. Entretanto,
sempre que se faça uma comparação entre judeus e gentios, a he-
rança de vida é destinada aos primeiros como lhes pertencendo le-
galmente, mas aos últimos, diz-se ser acidental. Contudo, cumpriu-
se o oráculo no qual Deus promete que Abraão seria o pai de muitas
nações. Pois, enquanto anteriormente os filhos naturais de Abraão
foram sucedidos por seus descendentes em contínua sucessão, e a
bênção, que começou com eles, foi herdada pelos seus filhos, a vin-
da de Cristo, ao inverter a ordem original, introduziu em sua família
aqueles que viviam separados de sua descendência; por fim, os ju-
deus foram expulsos (exceto que uma descendência eleita perma-
neceu oculta entre eles), para que o remanescente seja salvo. Era
necessário que essas coisas concernentes à descendência de Abra-
ão fossem uma vez declaradas, para que se nos abrisse uma fácil
introdução ao que segue.
No decurso das suas gerações. Essa sucessão de gerações
claramente prova que a posteridade de Abraão era considerada a
Igreja, de tal maneira que os filhos que nascessem dele, deveriam
ser herdeiros da mesma graça. Desse modo, a aliança é chamada
perpétua, que duraria até a renovação do mundo, o que se concreti-
zou na encarnação de Cristo. De fato, admito que a aliança era sem
fim, e com propriedade pode ser chamada eterna, no que diz respei-
to a toda a Igreja. Contudo, permanece sempre como um ponto in-
discutível, que a sucessão regular de eras em parte foi interrompida,
e, em parte, mudada, pela vinda de Cristo, porque a parede da se-
paração, sendo derrubada, e os filhos por natureza sendo por fim
deserdados, Abraão começou a ter uma descendência de todas as
regiões do mundo.
Para ser o teu Deus. Nessa expressão, somos ensinados niti-
damente que essa era uma aliança espiritual, não confirmada em re-
ferência à presente vida apenas, mas uma aliança da qual Abraão
pudesse conceber a esperança de salvação eterna, de modo que,
sendo elevado ao céu, ele pudesse se apossar da sólida e perfeita
bênção. Pois aqueles a quem Deus adota para si, dentre um povo –
visto que ele os faz participantes de sua justiça e de todas as coisas
boas –, ele também constitui herdeiros da vida celestial. Marque-
mos, pois, isto como a principal parte da aliança: que aquele que é o
Deus dos vivos, não dos mortos, promete ser o Deus dos filhos de
Abraão. Mais adiante, ampliando a concessão, ele promete dar-lhes
a terra. De fato, confesso que na própria terra de Canaã algo maior
e mais excelente estava prefigurado; contudo, isso não é discrepan-
te com a afirmação de que a promessa ora feita era uma adesão à
anterior: “Eu serei o teu Deus.”. Agora, ainda que Deus afirme outra
vez, como antes, que ele daria a terra ao próprio Abraão, sabemos
que Abraão nunca tomou posse dela. Mas o santo homem se con-
tentou apenas com seu direito a ela, embora sua posse não lhe fos-
se concedida; e, portanto, ele serenamente passa de sua peregrina-
ção terrena para o céu. Deus reitera uma vez mais que ele seria o
Deus da descendência de Abraão, para que não se radicassem na
terra, mas se considerassem como que treinados para coisas mais
elevadas.

9. Guardarás a minha aliança. Como antigamente as alianças


eram não apenas confiadas aos registros públicos, mas também
costumavam ser gravadas em bronze ou esculpidas em pedras,
para que a memória delas ficasse mais plenamente registrada e fos-
se mais sublimemente celebrada, assim, no presente caso, Deus
inscreve sua aliança na carne de Abraão. A circuncisão, portanto,
era como um memorial solene daquela adoção pela qual a família
de Abraão fora eleita para ser o povo peculiar de Deus. Os piedosos
já possuíam outras cerimônias, as quais lhes confirmavam a certeza
da graça de Deus. Agora, porém, o Senhor confirma essa aliança
com um novo tipo de símbolo. Mas a razão por que ele permitiu que
durante tantos séculos a raça humana vivesse sem esse testemu-
nho de sua graça, nos é ocultada; exceto que a vemos instituída no
tempo em que ele escolheu para si determinada nação, algo, por-
tanto, que depende de seu conselho secreto.
Embora, talvez, fosse mais apropriado para o propósito de ins-
trução dar um sumário daquelas coisas que devem ser ditas sobre a
circuncisão, contudo, seguirei a ordem do texto, a qual, creio eu, é
mais apropriada ao ofício de um intérprete. Em primeiro lugar, visto
que a circuncisão é por Moisés chamada “a aliança de Deus”, inferi-
mos que a promessa da graça estava inclusa nela. Pois, se ela fos-
se apenas uma marca ou emblema da profissão externa entre os
homens, o título aliança de modo algum seria apropriado, pois uma
aliança somente pode ser confirmada tendo a fé como resposta a
ela. E a todos os sacramentos é comum estarem ligados à palavra
de Deus, pela qual ele testifica que é propício a nós e nos chama à
esperança da salvação; sim, um sacramento nada mais é do que
uma palavra visível, ou escultura e imagem daquela graça de Deus
que a palavra ilustra mais plenamente.
Se, pois, há uma relação mútua entre a palavra e a fé, segue-se
que o objetivo e o uso dos sacramentos são ajudar, promover e con-
firmar a fé. Mas os que negam que os sacramentos são suportes à
fé, ou que auxiliam a palavra no fortalecimento dessa fé, devem ne-
cessariamente extinguir o título aliança porque, ou Deus ali se ofere-
ce como Prometedor, com desdém e falsamente, ou a fé ali encon-
tra aquilo em que possa apoiar-se e no qual possa confirmar sua
própria certeza. E, embora devamos manter a distinção entre a pala-
vra e o sinal, saibamos, contudo, que tão logo o próprio sinal se põe
diante de nossos olhos, a palavra deve soar em nossos ouvidos.
Portanto, enquanto aqui é ordenado a Abraão guardar a aliança,
Deus não lhe impõe um mero uso da cerimônia, mas designa princi-
palmente que Abraão considere o propósito dela. E, certamente, vis-
to que a promessa é a própria alma do sinal, sempre que ela é se-
parada do sinal nada mais resta, senão algo vazio e sem vida. Eis a
razão por que dizemos que os sacramentos são abolidos pelos pa-
pistas: porque a voz de Deus, uma vez extinta, nada resta dos sa-
cramentos, exceto o resíduo de figuras mudas. Verdadeiramente frí-
volo é o fato de que seus exorcismos mágicos se põem no lugar da
palavra. Pois nem tudo pode ser chamado de aliança, mas o que
dela é percebido pelos sentidos deve ser claramente revelado, de
modo que edifique nossa fé. Esses atores que, apenas por gestos
ou por um sussurro confuso, brincam como crianças, nada têm além
disso.
Agora consideramos como a aliança é corretamente guardada,
a saber, quando a palavra precede, e abraçamos o sinal como um
testemunho e penhor da graça; pois, como Deus assume o compro-
misso de manter a promessa que nos é dada, assim se nos exige o
consentimento da fé e da obediência. O que segue mais adiante so-
bre esse tema é digno de nota.

10. Entre mim e vós. Com isso, somos ensinados que um sacra-
mento não diz respeito somente à confissão externa, mas é um
compromisso entre Deus e a consciência do homem. Portanto,
quem quer que não se dirija a Deus através do sacramento, profana
seu uso. Mas, pela figura de metonímia, o nome aliança é transferi-
do para a circuncisão, que está tão vinculada à palavra que não po-
deria separar-se dela.
Todo macho entre vós será circuncidado. Embora Deus pro-
metesse tantos aos machos quanto às fêmeas o que mais tarde
sancionou pela circuncisão, contudo consagrou para si, em um só
sexo, todo o povo. Pois, uma vez que, por esse símbolo, a promes-
sa que foi dada indiscriminadamente aos machos e às fêmeas é
confirmada – e é indubitável que tanto as fêmeas quanto os machos
tinham necessidade de confirmação – é evidente, portanto, que o
símbolo fora ordenado por causa dos dois sexos. Também não faz
nenhum sentido, em oposição a esse raciocínio, dizer (com base no
fato de que nenhum proveito é recebido por aqueles que negligenci-
am o uso do sacramento) que, se o uso dos sacramentos traz bene-
fício, cada indivíduo é ordenado a comungar deles. Pois a aliança
de Deus foi gravada no corpo dos machos com esta condição ane-
xa: que as fêmeas também, por estarem a eles vinculadas, fossem
participantes do mesmo sinal.

11. Circuncidareis a carne do vosso prepúcio. À primeira vista,


esse mandamento pareceria muito estranho e enigmático. O tema
em discussão é a santa aliança, na qual se prometem a justiça, a
salvação e a felicidade, e pela qual a semente de Abraão é distingui-
da das demais nações, para que ela fosse santa e abençoada. E
quem diria ser razoável que o sinal de tão grande mistério consista
na circuncisão? Mas, como era necessário que Abraão se tornasse
um estulto a fim de se mostrar obediente a Deus, assim, quem quer
que seja sábio receberá, sóbria e reverentemente, o que Deus pare-
ce nos ordenar nesciamente.
No entanto, devemos perguntar se existe aqui alguma analogia
aparente entre o sinal visível e a coisa significada. Pois os sinais
que Deus designara para assistir à nossa fragilidade devem ser aco-
modados à nossa capacidade, ou serão inúteis. Além disso, é pro-
vável que o Senhor ordenasse a circuncisão por duas razões: pri-
meira, para mostrar que tudo quanto nasce do homem é contamina-
do; segunda, que a salvação procederia da bendita descendência
de Abraão. Portanto, em primeiro lugar, tudo quanto os homens têm
peculiar a si próprios, por geração, Deus condenou na instituição da
circuncisão, para que, quando a corrupção da natureza se manifes-
tasse, ele pudesse persuadi-los a mortificar a carne. Consequente-
mente, a circuncisão era um sinal de arrependimento. No entanto,
ao mesmo tempo, a bênção que fora prometida à descendência de
Abraão era assim marcada e confirmada.
Se, pois, parece absurdo a alguém que o emblema de um favor
tão excelente e singular foi dado naquela parte do corpo, que o mes-
mo se envergonhe de sua própria salvação, a qual emanou dos lom-
bos de Abraão; mas aprouve a Deus assim confundir a sabedoria do
mundo, para que ele humilhasse mais completamente o orgulho da
carne. E disso aprendemos também, em segundo lugar, como a re-
conciliação entre Deus e os homens, a qual foi exibida em Cristo, foi
testificada por esse sinal. Por essa razão, a circuncisão é intitulada
por Paulo “o selo da justiça da fé” [Rm 4.11]. Que seja suficiente ter
assim tocado sucintamente na analogia entre a coisa significada e o
sinal.

12. O que tem oito dias será circuncidado. Deus, então, prescre-
ve o oitavo dia para a circuncisão; isso mostra uma parte daquela
disciplina sob a qual ele queria manter seu antigo povo, pois, em
nossos dias, maior liberdade se permite na ministração do batismo.
Alguns, porém, sustentam que não devemos contender ardoro-
samente sobre o número de dias, porque o Senhor poupou as crian-
ças em razão de seu estado tenro, visto que não ser risco infligir
uma ferida sobre aqueles que eram recém-nascidos. Pois, embora
tivesse provido para que a circuncisão não produzisse nenhum dano
ou vergonha, não haveria nenhum absurdo dizer que Deus levou em
conta a tenra idade, a fim de provar aos judeus seu paterno amor
para com seus filhos. Alguns acham que isso parece ser indiferente
e, por isso, buscam um mistério espiritual no número de dias. Eles
pensam que a presente vida é alegoricamente significada pelos sete
dias, e que Deus ordenou que as criancinhas fossem circuncidadas
no oitavo dia para mostrar que, embora devamos dar atenção à
mortificação da carne durante todo o curso de nossa vida, ela não
será completada até o fim. Agostinho também pensava que ela tinha
referência à ressurreição de Cristo, por meio da qual a circuncisão
externa foi abolida e a verdade da figura foi exibida. É provável, e
em consonância com a razão, que o número sete designasse o cur-
so da presente vida. Portanto, o oitavo dia pareceria ser fixado pelo
Senhor para prefigurar o início de uma nova vida. Visto, porém, que
tal razão nunca é dada na Escritura, nada ouso afirmar sobre isso.
Por isso, que seja suficiente manter o que é certo e sólido, a saber,
que Deus, nesse símbolo, de tal modo representou a destruição do
velho homem para mostrar que ele restaura os homens à vida.
Tanto o escravo nascido em casa como o comprado a qual-
quer estrangeiro. Quando Deus ordena a Abraão que circuncidas-
se a todos os que estavam sob seu poder, nisto se faz notório o
amor especial para com o santo Abraão: que Deus, em sua graça,
abraça toda a família de Abraão. Sabemos que outrora os escravos
raramente eram contados entre o número dos homens. Deus, po-
rém, com relação ao seu servo Abraão, os adota como seus própri-
os filhos; a essa mercê não se pode acrescentar nada mais. O orgu-
lho da carne também é humilhado porque Deus, sem fazer acepção
de pessoas, congrega tanto homens livres quanto escravos. Mas, na
pessoa de Abraão, ele prescreveu uma lei a todos os seus servos, a
saber, que eles devem se esforçar para trazer todos os que lhes es-
tão sujeitos para a mesma comunidade da fé, pois cada família dos
piedosos deve ser uma igreja. Portanto, se quisermos provar nossa
piedade, temos que lutar para que cada um de nós tenha sua casa
ordenada na obediência a Deus. E a Abraão não apenas se ordena
que dedique e ofereça a Deus os nascidos em sua casa, mas tam-
bém tantos quantos porventura ele venha a adquirir posteriormente.

13. E será aliança perpétua. O significado dessa expressão pode


ser duplo: ou que Deus promete que sua graça, da qual a circunci-
são era um sinal e penhor, é eterna; ou que sua intenção é que o
próprio sinal fosse perpetuamente observado. De fato, não temos
dúvida de que essa perpetuidade deva se referir ao sinal visível.
Mas, em minha opinião, estão enganados os que disso inferem que
o uso desse sinal deveria ainda hoje estar em vigor entre os judeus.
Pois se afastam deste axioma que devemos considerar como fixo:
posto que Cristo é o fim da lei, a perpetuidade que é atribuída às ce-
rimônias da lei teve seu fim assim que Cristo se manifestou.
O templo era a perpétua habitação de Deus, segundo aquela
declaração: “Este é para sempre o lugar de meu repouso; aqui habi-
tarei, pois o preferi” [Sl 132.14]. O sábado indicava não uma santifi-
cação temporal, mas uma santificação perpétua do povo. Entretan-
to, não se deve negar que Cristo trouxe um fim a ambos. Da mesma
maneira, devemos também pensar da circuncisão. Se os judeus ob-
jetarem que, dessa maneira, a lei foi violada por Cristo, a resposta é
fácil: que o uso externo da lei foi assim revogado para o estabeleci-
mento de sua verdade. Pois, por fim, pela vinda de Cristo, a circun-
cisão foi substancialmente confirmada, de modo que ela durasse
para sempre, e que a aliança que Deus fizera anteriormente fosse
confirmada. Além disso, para que a mudança do sinal visível não
deixe ninguém perplexo, que se mantenha em mente aquela reno-
vação do mundo, da qual eu já falei; renovação essa que – apesar
das mudanças ocorridas – tem perpetuado aquelas coisas que de
outro modo teriam desaparecido. Portanto, embora o uso da circun-
cisão tenha cessado, não cessou de ser uma aliança eterna ou per-
pétua, se Cristo for considerado o único Mediador, o qual, ainda que
o sinal seja mudado, tem confirmado a verdade. Que, pela vinda de
Cristo, a circuncisão externa cessou, está claro nas palavras de
Paulo, que não só ensina que somos espiritualmente circuncidados
pela morte de Cristo, e não através do sinal carnal, mas que expres-
samente substitui a circuncisão pelo batismo [Cl 2.11]; e realmente o
batismo não podia suceder a circuncisão sem eliminá-la. Por isso,
no capítulo seguinte, ele nega que haja alguma diferença entre a cir-
cuncisão e a incircuncisão porque, naquela ocasião, isso era indife-
rente e sem importância.
A partir disso refutamos o erro dos que pensam que a circunci-
são está ainda em vigor entre os judeus, como se fosse um símbolo
peculiar da nação, que nunca deverá ser revogado. De fato, reco-
nheço que ela lhes foi permitida, por certo tempo, até que a liberda-
de obtida por Cristo fosse mais bem conhecida; mas, ainda que fos-
se permitido, de modo algum manteve seu vigor original. Pois seria
absurdo ser incorporado na Igreja por dois sinais distintos, dos quais
um deve testificar e afirmar que Cristo já veio, e o outro deve prefi-
gurá-lo por estar ausente.

14. O incircunciso. A fim de que a circuncisão recebesse uma


atenção ainda maior, Deus anuncia severo castigo sobre aquele que
a negligenciasse. E, como isso mostra o grande cuidado de Deus
pela salvação dos homens, assim, por outro lado, ele repreende sua
negligência. Pois, visto que benignamente Deus oferece um penhor
de seu amor e da vida eterna, com que propósito ele acrescenta
ameaças, senão para despertar a indolência daqueles cujo dever é
correr com diligência? Portanto, essa denúncia de punição pratica-
mente acusa os homens de ingratidão, porque eles rejeitam ou des-
prezam a graça de Deus. Contudo, a passagem ensina que tal des-
prezo não passará impunemente. E, posto que Deus ameaça punir
apenas os desprezadores, inferimos que a incircuncisão dos meni-
nos não causaria dano, caso morressem antes do oitavo dia, pois
somente a promessa de Deus era eficaz para a salvação deles.
Deus não confirmou de tal modo essa salvação por meio de sinais
externos que restringisse a sua própria operação eficaz aos sinais.
Moisés, de fato, descarta toda controvérsia sobre esse tema acres-
centando, como uma razão, que eles invalidariam a aliança de
Deus, pois sabemos que a aliança não era violada quando o poder
guardá-la era removido.
Consideremos, pois, que a salvação da descendência abraâmi-
ca estava inclusa nesta expressão: “Eu serei o Deus de tua descen-
dência.”. E, embora a circuncisão fosse acrescentada como uma
confirmação, ela não privou a palavra de seu vigor e eficácia. Visto,
porém, que não está no poder do homem separar o que Deus jun-
tou, ninguém poderia desprezar ou negligenciar o sinal sem, respec-
tivamente, rejeitar a própria palavra e privar-se do benefício ali ofe-
recido. E, portanto, o Senhor punia com tal severidade a mera negli-
gência. Mas, se algumas criancinhas fossem privadas, pela morte,
dos sinais da salvação, ele as poupava porque nada de depreciativo
haviam feito à aliança de Deus.
O mesmo raciocínio está hoje em vigor com respeito ao batis-
mo. Todo aquele que, havendo negligenciado o batismo, finge estar
plenamente satisfeito com a promessa, pisoteia, tanto quanto po-
dem, o sangue de Cristo, ou, ao menos, não permite que ele flua
para a lavagem de seus próprios filhos. Portanto, justa punição se-
gue o menosprezo do sinal, na privação da graça, porque, por uma
ímpia separação do sinal e da palavra, ou melhor, por uma dilacera-
ção deles, a aliança de Deus é violada. Entregar à destruição aque-
las criancinhas a quem uma morte súbita não permitiu que fossem
apresentadas ao batismo, antes que qualquer negligência dos pais
pudesse intervir, é crueldade originada na superstição. Mas que a
promessa pertence a tais crianças não resta a menor sombra de dú-
vida. Pois, o que pode ser mais absurdo do que o sinal, que é acres-
centado para confirmação da promessa, realmente perder seu vi-
gor? Portanto, a opinião comum, pela qual se supõe que o batismo
é necessário à salvação, deve ser tão moderada que não vincule a
graça de Deus, ou o poder do Espírito, ao sinal externo, nem lance
contra Deus uma acusação de falsidade.
Quebrou a minha aliança. Pois a aliança de Deus é confirma-
da quando, pela fé, abraçamos o que ele promete. Alguém pode ob-
jetar dizendo que os infantes são inocentes desse erro porque, até
então, eram destituídos de razão. A isso eu respondo que não deve-
mos forçar demais essa declaração, como se Deus mantivesse as
criancinhas como culpadas por um erro cometido por elas mesmas,
mas devemos observar a antítese de que, como Deus adota o infan-
te na pessoa de seu pai, assim, quando o pai repudia tal benefício,
diz-se que a criancinha é cortada da Igreja. Pois o significado da ex-
pressão é este: ele será eliminado do povo ao qual Deus escolhera
para si. A explanação de alguns, que aqueles que permaneceram
incircuncisos não seriam judeus e não teriam lugar no censo do
povo, é insustentável. Devemos ir mais adiante e dizer que Deus, de
fato, não reconhecerá como pertencente a seu povo aquele que não
possuir a marca e o sinal da adoção.

15. A Sarai, tua mulher. Deus então promete a Abraão uma des-
cendência legítima por meio de Sarai. Ela fora (como eu já disse)
demasiadamente precipitada quando substituiu a si própria por sua
serva, sem qualquer ordem de Deus. Abraão também fora tão flexí-
vel em seguir sua esposa que, tola e apressadamente, quis anteci-
par o desígnio de Deus. Contudo, esse erro em conjunto não impe-
diu a Deus de fazê-los saber que estava prestes a dar-lhes aquela
descendência, de cuja expectativa eles tinham, de certa maneira, se
excluído. Isso faz com que a bondade graciosa de Deus brilhe mais
claramente, porque, embora os homens tentem impedir o curso dela
por seus próprios obstáculos, contudo ela os alcança.
Além disso, Deus muda o nome de Sarai para que ele pudesse
estender a preeminência dela por toda parte, o que, em seu nome
anterior, havia sido mais restrito. Pois a letra (yod), entre os he-
breus, tem a função do pronome possessivo. Sendo essa letra ago-
ra removida, Deus designa que Sara seja louvada por toda parte, e
sem exceção, como uma soberana e princesa. E isso é expresso no
contexto em que Deus promete que lhe daria um filho, de quem, por
fim, nasceriam nações e reis. E, embora à primeira vista essa bên-
ção pareça muito ampla, pelas palavras aqui empregadas ela seria
muito mais rica do que parece ser, como veremos mais adiante.

17. Então, se prostrou Abraão, rosto em terra. Esse foi um sinal,


não só de sua reverência, mas também de sua fé. Pois Abraão não
apenas adora a Deus, mas ao render-lhe graças, testifica que ele re-
cebe e abraça o que fora prometido concernente a um filho. Disso
também inferimos que ele riu, não porque desprezasse, ou conside-
rasse uma fábula, ou rejeitasse a promessa de Deus; mas, como
geralmente ocorre em coisas que são menos esperadas, ele irrompe
em gargalhada; em parte exultando com alegria, e em parte extasia-
do pela admiração. Não concordo com a opinião dos que supõem
que esse riso fluiu somente da alegria; mas, antes, penso que Abra-
ão ficou muito espantado, como sua próxima pergunta confirma: “A
um homem de cem anos há de nascer um filho?”. Pois, embora ele
não rejeitasse como frívolo o que lhe fora dito pelo anjo, contudo,
mostra que foi impactado como se houvesse recebido algumas notí-
cias incríveis. O surpreendente acontecimento o assusta de tal
modo que, por um breve momento, ele se sente confuso; no entan-
to, ele se humilha diante de Deus e, mesmo com mente confusa,
prostrando-se por terra, ele, pela fé, adora o poder de Deus.
Que essa não era a linguagem de alguém que duvida, Paulo,
em sua Epístola aos Romanos, é uma testemunha [4.19], pois nega
que Abraão considerasse seu corpo já morto, ou o ventre estéril de
Sara, ou que vacilasse pela descrença, mas declara que ele cria na
esperança contra a esperança. E aquilo que Moisés relata, “que
Abraão disse em seu coração”, eu não explico como se ele conce-
besse isso claramente em sua mente, mas como muitas coisas que
se aproximam rapidamente de nós contrariando nosso propósito,
este pensamento perplexo de repente assalta sua mente: “Que coi-
sa estranha é essa, que um filho nasça de alguém com 100 anos de
idade!”. Entretanto, para alguns, isso parece ser um tipo de disputa
entre a razão carnal e a fé; pois, embora Abraão, prostrando-se re-
verentemente diante de Deus, submeta sua própria mente à palavra
divina, ainda se sente perturbado pelo surpreendente acontecimen-
to. Respondo que essa admiração, que não atrapalhou o curso do
poder de Deus, não era contrária à fé. E mais. A força da fé brilhou
ainda mais radiantemente, ao superar um obstáculo tão árduo. E,
portanto, ele não é repreendido por rir, como sucedeu com Sara no
próximo capítulo.
18. Disse Abraão a Deus. Agora Abraão não fica maravilhado silen-
ciosamente em seu íntimo, mas derrama seu desejo e oração. Sua
linguagem, contudo, é a de uma mente ainda perturbada e vacilante:
“Tomara que viva Ismael diante de ti.”. Pois, como se não ousasse
esperar por tudo o que Deus promete, ele fixa sua mente no filho já
nascido; não porque rejeitasse a promessa de uma nova descen-
dência, mas porque se contentava com o favor já recebido, contanto
que a generosidade de Deus não se estendesse ainda mais. Ele,
pois, não rejeita o que o Senhor oferece, mas, enquanto se prepara
para abraçá-lo, a expressão “Tomara que Ismael” flui dele através
da fraqueza de sua carne. Alguns acreditam que Abraão falou assim
porque temia pelo seu primogênito. Mas não há razão para supor
que ele fosse acometido por esse temor, como se Deus, dando-lhe
outro filho, tirasse o primeiro, ou como se o segundo favor absorves-
se aquele que precedia. A resposta de Deus, que segue logo de-
pois, refuta essa interpretação.
O que eu já disse é mais correto, a saber, que Abraão orou para
que a graça de Deus, na qual ele confiava, lhe fosse ratificada e
confirmada. Além disso, sem reflexão, ele irrompe nesse desejo,
quando, em grande alegria, dificilmente poderia crer no que ouvira
da boca de Deus. “Viva Ismael diante de ti” equivale a que ele fosse
preservado em segurança sob sua proteção, ou ser abençoado por
ele. Abraão, pois, deseja do Senhor que preserve a vida que ele
dera a Ismael.

19. De fato, Sara, tua mulher, te dará um filho. Alguns acreditam


que o advérbio (abal) significa “verdadeiramente”. Outros, contu-
do, mais corretamente supõem que ele é usado para dar mais força
à expressão. Pois Deus desperta a mente dormente de seu servo,
como se quisesse dizer: “O olhar fixo em um único favor4 te impede
de elevar-te mais alto; e com isso restringes teus pensamentos em
limites tão estreitos. Agora, pois, expande tua mente para receberes
também o que prometo concernente a Sara. Pois a porta da espe-
rança deve estar suficientemente aberta para admitires a palavra em
sua plena magnitude.”.
Estabelecerei com ele a minha aliança. Deus limita a aliança
espiritual a uma só família, para que disso Abraão aprendesse a es-
perar pela bênção anteriormente prometida; pois, visto que ele ali-
mentou uma falsa esperança, não fundamentada na palavra de
Deus, era necessário que essa falsa esperança primeiramente fosse
desalojada de seu coração, para que ele pudesse agora confiar
mais plenamente nos oráculos celestiais, e assim fixasse a âncora
de sua fé, que antes hesitara numa imaginação falaz, na firme ver-
dade da palavra de Deus.
Deus qualifica a aliança de eterna, no sentido que já explicamos
anteriormente. Ele, pois, declara que ela não se restringirá a uma
única pessoa, mas será comum a todo o povo, para que a aliança,
por sucessão contínua, passe a toda posteridade. Contudo, pode
parecer absurdo que Deus ordene que Ismael, a quem priva de sua
graça, fosse circuncidado. A minha resposta é: embora o Senhor
constitua Isaque o primogênito e a cabeça, de quem ele deseja que
flua a aliança da salvação, ele não exclui totalmente a Ismael, mas,
antes, ao adotar toda a família de Abraão, associa Ismael a seu ir-
mão Isaque como um membro inferior, até que Ismael fosse cortado
da casa de seu pai e da companhia de seu irmão. Portanto, sua cir-
cuncisão não foi inútil, até que ele apostatasse da aliança; pois, em-
bora ela não fosse destinada a ele, contudo ele pôde participar dela,
com seu irmão Isaque. Em suma, por essas palavras, o Senhor
nada mais deseja senão que Isaque seria o legítimo herdeiro da
bênção prometida.

20. Quanto a Ismael. Aqui, Deus distingue mais claramente entre


os dois filhos de Abraão. Pois, ao prometer a Ismael riqueza, digni-
dade, e as outras coisas pertinentes à presente vida, ele prova que
esse era um filho segundo carne. Com Isaque, porém, ele faz uma
aliança especial, a qual transcende o mundo e esta vida passageira;
não com o intuito de eliminar a Ismael da esperança da vida eterna,
mas para ensinar-lhe que a salvação deve ser buscada da descen-
dência de Isaque, onde ela realmente habita. Entretanto, inferimos
dessa passagem que os santos pais de modo algum foram retidos
na terra pelas promessas de Deus, mas, antes, foram levados para
o céu. Pois Deus, generosa e profusamente, promete a Ismael tudo
quanto é desejável com respeito a esta vida terrena; e, no entanto,
ele reputa como nada todos os dons que lhe confere, em compara-
ção com a aliança que seria estabelecida em Isaque. Portanto, se-
gue-se que nem riqueza, nem poder, nem qualquer outro dom tem-
poral é prometido aos filhos do Espírito, senão uma bênção eterna,
que neste mundo só é possuída pela esperança. Assim sendo, por
mais que agora nos abundemos em prazer e em todas as coisas
boas, nossa felicidade é ainda transitória, a menos que, pela fé, pe-
netremos no reino celestial de Deus, onde uma bênção maior e mais
elevada está depositada para nós.
Contudo, questiona-se se Abraão tinha em vista somente esta
vida terrena quando orou por seu filho. Pois é isso que o Senhor pa-
rece notificar quando declara que concedera o que Abraão pedira, e,
contudo, só menciona as coisas que temos registrado. O desígnio
de Deus, porém, não era satisfazer todo o desejo de Abraão sobre
esse ponto, e apenas deixa claro que teria alguma consideração a
Ismael, por quem Abraão rogara, a ponto de mostrar que a oração
do pai não seria em vão. Pois queria testificar que abraçava a Abra-
ão com tal amor, que, por sua causa, levaria em conta toda sua des-
cendência, e a dignificou com benefícios singulares.

22. Deus se retirou dele. Essa expressão contém uma proveitosa


doutrina, a saber, que Abraão certamente sabia que essa visão pro-
cedia de Deus, pois a ascensão aqui mencionada é muito significati-
va. E é necessário que os piedosos sejam plenamente assegurados
de que o que ouvem procede de Deus, para que não sejam arrasta-
dos de um lado para o outro, mas dependam somente do céu. E,
considerando que Deus agora, quando nos fala, não ascende aber-
tamente ao céu diante de nossos olhos, não deve diminuir nada da
certeza de nossa fé, porque uma plena manifestação dele foi feita
em Cristo, com a qual é justo que devemos ficar satisfeitos. Além
disso, embora Deus não ascende diariamente ao alto de uma forma
visível, contudo, sua majestade não é menos resplandecente, dado
que ele nos eleva ao alto, transformando-nos à sua própria imagem.
E ainda, ele dá suficiente autoridade à sua palavra, quando a sela
em nosso coração por seu Espírito.

23. Tomou, pois, Abraão a seu filho Ismael. Moisés agora enalte-
ce a obediência de Abraão porque, como lhe foi ordenado, ele cir-
cuncidou a toda sua família. Pois ele, necessariamente, deve ter se
dedicado inteiramente a Deus, visto que não hesitou infligir a si uma
ferida acompanhada com profunda dor, e não sem risco da vida. A
isso se pode acrescentar a circunstância do tempo, a saber, que ele
não adiou a obra, mas obedece imediatamente ao mandato divino.
Entretanto, não há dúvida de que ele lutava contra vários pen-
samentos perplexos. Para não mencionar tantos outros, este teria
penetrado sua mente: “No tocante a mim, que tenho sido por tanto
tempo perturbado com muitas adversidades e levado a diferentes
exílios, no entanto nunca me separei da palavra de Deus, se por
esse sinal ele me consagraria a si como servo, por que ele adiou
para a minha extrema velhice? O que significa isso, senão que eu
não possa ser salvo a menos que, com um pé já quase no túmulo,
eu me veja mutilado?”. Mas esta era uma notável prova de obediên-
cia: que, havendo vencido todas as dificuldades, rapidamente e sem
demora, seguiu para onde Deus o chamou. E, ao agir assim, ele deu
um exemplo de fé não menos excelente porque, a menos que tives-
se abraçado as promessas de Deus, de modo algum teria se torna-
do tão pronto a obedecer. Disso, pois, se originou sua notável es-
pontaneidade, posto que ele pusera a palavra de Deus em oposição
às várias tentações que pudessem perturbar sua mente e o arrastar
a direções contrárias.
Aqui, duas coisas são ainda dignas de observação. A primeira
delas é que Abraão não foi impedido, pela dificuldade da obra, de
consagrar a Deus o dever que lhe devia. Sabemos que ele tinha
uma grande multidão em sua casa, quase equiparada a uma nação.
Dificilmente se podia crer que tantos homens permitissem ser feri-
dos [com a circuncisão], o que poderia se tornar um motivo de riso.
Portanto, com razão, era de se temer que ele provocasse um gran-
de tumulto em sua tranquila família; sim, que, por um impulso natu-
ral, a maioria de seus servos se levantasse contra ele. Contudo,
confiando na palavra de Deus, ele tenta com todas as suas forças o
que parecia impossível.
Em segundo lugar, vemos como a sua família foi fielmente ins-
truída, porque não apenas seus escravos nascidos em casa, mas os
estrangeiros e os homens comprados com dinheiro, mansamente
recebem a cirurgia, que era tão incômoda e ocasião de vergonha
para a percepção carnal. Parece, pois, que Abraão diligentemente
cuidou de prepará-los para a devida obediência. E, visto que os
manteve sob a santa disciplina, ele recebeu o galardão de sua pró-
pria diligência, achando-os tão tratáveis numa situação tão difícil.
Assim, em nossos dias, Deus parece ordenar algo impossível quan-
do requer que seu evangelho seja proclamado em cada lugar no
mundo inteiro, com o propósito de restaurá-lo da morte para a vida.
Pois vemos quão grande é a obstinação de quase todos os homens,
e que numerosos e poderosos métodos de resistência Satanás em-
prega, de modo que, em suma, todas as vias de acesso a esses
princípios se acham obstruídas. Contudo, cabe aos indivíduos cum-
prir seu dever e não ceder diante dos impedimentos; e, finalmente,
nossos esforços e nossos labores de modo algum deixarão de ter
sucesso, mesmo que este ainda não seja visto.

1 “Ambas”, isto é, tanto a promessa de graça como a ordem de render obediência.


2 A ideia que Calvino deseja ressaltar é que a expressão “Quanto a mim” tem o mesmo
peso da expressão inicial do prefácio aos dez mandamentos: “Eu sou o S , teu
Deus”.
3 Povos que procederam de Edom.
4 Uma clara referência ao nascimento de Ismael, que anteriormente foi descrito como “um
favor divino”.
C A P ÍT U L O 1 8

1. Apareceu o S a Abraão. É incerto se Moisés diz que


Deus posteriormente apareceu outra vez a Abraão, ou se, voltando
à história anterior, ele aqui introduz outras circunstâncias que não
haviam sido mencionadas antes. Contudo, prefiro a primeira dessas
interpretações, a saber, que Deus fortaleceu a mente de seu servo
com uma nova visão, justamente como a fé dos santos exige uma
frequente renovação. É ainda possível que a promessa fosse reite-
rada por causa de Sara. O que diremos se, dessa maneira, Deus
decidiu honrar a grandeza de sua graça? Pois a promessa referente
à Isaque, de quem, por fim, a redenção e a salvação resplandeceri-
am para o mundo, não pode ser exaltada em termos adequados à
sua dignidade.
Quaisquer que sejam esses pontos de vista, percebemos que
havia suficiente razão para que Isaque fosse novamente prometido.
A respeito da palavra Manre, já discorremos sobre ela no capítulo
13. Provavelmente, havia no lugar um bosque de carvalhos, e Abra-
ão habitava ali em razão da conveniência da situação.

2. E eis três homens de pé em frente dele. Antes de Moisés dar


seguimento ao seu tema principal, ele nos descreve a hospitalidade
do santo homem e denomina os anjos de homens porque, estando
vestidos com corpos humanos, pareciam nada mais ser do que ho-
mens. E isso foi feito intencionalmente, para que Abraão, receben-
do-os como homens, desse prova de sua caridade. Pois os anjos
não precisam daqueles nossos serviços que constituem verdadeiras
evidências da caridade. Além disso, a hospitalidade ocupa o lugar
principal entre esses serviços, porque não é uma virtude comum as-
sistir os estranhos, dos quais não há esperança de recompensa.
Pois, em geral, quando os homens prestam favores a outrem, costu-
mam esperar retribuição; mas aquele que é bondoso para com visi-
tantes e pessoas desconhecidos, prova ser desinteressadamente
generoso. Portanto, a benevolência de Abraão merece não pouco
louvo, porque livremente convida homens que lhe eram desconheci-
dos, através dos quais ele não havia recebido nenhuma vantagem e
de quem não esperava recompensas.
Qual, pois, era o objetivo de Abraão? De fato, aliviar a necessi-
dade de seus visitantes. Ele os vê cansados de sua jornada, não
tem dúvida de que se acham exaustos, e leva em conta que a hora
do dia se tornava perigosa aos viajantes; por isso deseja confortar e
aliviar tais pessoas. E, certamente, o bom senso dita que os estra-
nhos devam ser especialmente ajudados, a menos que o cego ego-
ísmo nos impulsione aos serviços mercenários. Pois ninguém é
mais merecedor de compaixão e auxílio do que aqueles a quem ve-
mos privados de amigos e do amparo familiar. E, portanto, o direito
de hospitalidade sempre foi tido como sagrado entre todos os po-
vos, e nenhuma desonra nunca foi mais detestável do que ser cha-
mado de “não hospitaleiro”. Porquanto é uma brutal crueldade des-
prezar orgulhosamente os que, sendo destituídos de recursos bási-
cos, recorrem à nossa ajuda.
No entanto, pergunta-se se Abraão costumava receber assim,
indiscriminadamente, todos os tipos de visitantes. Minha resposta é
que, segundo sua habitual prudência, ele fazia distinção entre seus
visitantes. E, de fato, o convite que Moisés aqui relata contém algo
inusitado. Indubitavelmente, os anjos portavam, em seu semblante e
postura, marcas de extraordinária dignidade, de modo que Abraão
concluiria que eles eram dignos não apenas de comida e bebida,
mas também de honra. Pensam de modo demasiadamente filosófi-
co, os que pensam que Abraão se mostrou tão atencioso a esse ofí-
cio porque fora instruído por seus pais que os anjos costumavam
aparecer no mundo em forma humana. Inclusive a autoridade do
apóstolo contraria isso, pois ele nega que, à primeira vista, Abraão e
Ló os reconheceram como anjos, visto que pensavam que estavam
cuidando de homens [Hb 13.2]. Portanto, deve ser mantido o se-
guinte: quando ele viu homens de aspecto respeitável e trazendo
marcas de singular excelência, prosseguindo sua jornada, ele os
saudou com honra, e os convidou a repousarem. Mas naquele tem-
po havia mais honestidade do que a encontrada hoje em uma socie-
dade humana onde prevalece a deslealdade, de modo que o direito
de hospitalidade poderia ser exercido com menos risco. Portanto, o
grande número de hospedarias é uma evidência de nossa deprava-
ção, e prova que elas surgem de nossa própria culpa, e que o princi-
pal dever de humanidade se tornou obsoleto entre nós.
Prostrou-se em terra. Esse sinal de reverência era uma prática
comum entre as nações orientais. O mistério que alguns dos antigos
escritores tentam extrair desse ato, a saber, que Abraão adorou um
dos três, a quem ele viu e, por isso, percebia pela fé que havia três
pessoas em um só Deus, é tão frívolo e desprezível até ao ridículo e
à calúnia, que me sinto mais que contente em omitir. Pois já disse-
mos que os anjos foram assim recebidos pelo santo homem como
por alguém que pretendia cumprir um dever para com os homens.
Mas o fato de que Deus honrou sua benignidade e lhe concedeu
como uma recompensa que os anjos estariam presentes com ele
como hóspedes foi que Abraão não teve consciência até que se fi-
zeram conhecidos no final da refeição. Portanto, o que ele lhes pres-
tou foi uma honra meramente humana e cívica. Quanto ao fato de
haver saudado um, em particular, provavelmente ele o fez porque
esse sobressaia aos outros dois. Pois sabemos que os anjos muitas
vezes apareceram com Cristo, sua Cabeça. Aqui, pois, entre os três
anjos, Moisés ressalta um como sendo o Chefe da embaixada.

3. Rogo-te que não passes do teu servo. Ao rogar assim, de


modo tão manso, e mesmo suplicante, não há dúvida de que Abra-
ão o faz movido pela razão que eu já expus. Pois, se ele houvera
matado novilhos para todos os tipos de viajantes, sua casa logo se-
ria esvaziada por seus gastos excessivos. Ele, pois, honrou a virtu-
de e os excelentes dotes desses visitantes, para que não desonras-
se a Deus. Assim, ele não foi tão generoso a ponto de convidar in-
discriminadamente andarilhos ou outros homens reunidos em ban-
dos, nem foi a ambição que o induziu a tratar assim generosamente
essas três pessoas, mas, antes, seu amor e afeto pelos dons divi-
nos e por aquelas virtudes que se manifestavam nelas.
Ao oferecer-lhes simplesmente um bocado de pão, Abraão rea-
liza pouco de um ato de bondade que estava prestes a praticar, não
só para evitar a vanglória, mas para que eles pudessem mais facil-
mente ceder ao seu conselho e às suas súplicas, quando fossem
persuadidos de que estavam sendo demasiadamente onerosos e in-
cômodos a Abraão. Pois as pessoas modestas não têm prazer em
causar despesas nem dificuldades a outros. Naquela época e na-
quela região do mundo, a lavagem dos pés era muito comum; talvez
porque as pessoas viajassem com os pés descalços, sob o sol es-
caldante; e lavar os pés ressequidos pelo calor era um grande remé-
dio para o alívio do cansaço.

5. Visto que chegastes até vosso servo. Com essa expressão,


Abraão não quis dizer que os anjos vieram intencionalmente, ou
com o expresso propósito de buscar entretenimento como seus hós-
pedes, mas declara que a vinda deles ocorria oportunamente, como
se quisesse dizer: “Não foi por acaso que viestes a esse lugar, mas
fostes guiados até aqui pelo desígnio e direção de Deus.”. Abraão,
pois, atribui à providência de Deus que houvessem vindo, tão con-
venientemente, a um lugar onde pudessem se refrescar por algum
tempo, até que o calor do sol diminuísse. Além disso, visto que
Abraão falou com sinceridade, que nós, seguindo seu exemplo, con-
cluamos que sempre que nossos irmãos, que porventura necessi-
tem de nosso auxílio, nos encontrem, eles nos são enviados por
Deus.

6. Apressou-se, pois, Abraão para a tenda de Sara. Aqui se regis-


tra o cuidado de Abraão em agradar seus hóspedes; e Moisés, ao
mesmo tempo, mostra o quanto a sua casa era bem ordenada. Em
suma, ele nos apresenta, em poucas palavras, um belo quadro do
governo doméstico. Abraão se apressa, em parte para ordenar o
que queria que fosse feito, e, em parte, para cumprir seu próprio de-
ver, na qualidade de cabeça do lar. Sara se mantém dentro da ten-
da; não para se entregar à preguiça, mas para também realizar a
sua própria parte nessas tarefas. Os servos estão todos prontos a
obedecer. Eis aqui uma doce harmonia de uma família bem conduzi-
da, o que não poderia ter surgido assim tão de repente, a menos
que cada um, pela prática constante, estivesse acostumado à reta
disciplina.
Entretanto, da afirmação de Moisés surge uma questão, ou
seja, que os anjos comeram. Alguns explicam isso dizendo que eles
só aparentavam que estavam comendo, como se fossem pessoas;
mas essa fantasia penetra sua mente por intermédio de outro erro:
imaginam que os anjos eram meros espectros, não dotados com
corpo real. Mas, em minha opinião, a questão é muito diferente. Em
primeiro lugar, essa não foi uma visão profética, na qual as imagens
de coisas invisíveis são colocadas diante de seus olhos, mas os an-
jos realmente entraram na casa de Abraão. Portanto, não duvido de
que Deus – que criou, do nada, o mundo inteiro, e que diariamente
prova ser um maravilhoso Artífice na formação de criaturas –, lhes
deu corpos, temporariamente, nos quais pudessem cumprir o ofício
a eles imposto. E, como realmente caminhavam, falavam e cumpri-
am outras funções, então concluo que realmente comeram. Não
porque estivessem famintos, mas para se ocultarem, até o momento
oportuno para se fazerem conhecidos. Contudo, como Deus rapida-
mente aniquilou tais corpos, os quais foram criados para um uso
temporário, então não há absurdo em dizer que a comida em si tam-
bém foi destruída, juntamente com seus corpos. Mas se, por um
lado, é proveitoso tocar sucintamente em tais questões e a religião
de modo algum nos proíbe de agir assim, por outro lado, não há
nada melhor do que nos contentarmos com uma sóbria solução para
elas.

9. Sara, tua mulher, onde está? Até então, Deus permitiu que
Abraão cumprisse um dever óbvio. Mas, tendo-lhe dado a oportuni-
dade de exercitar a caridade, Deus então começa a manifestar-se
em seus anjos. A razão pela qual Moisés apresenta, a um só tempo,
três oradores, enquanto que, em outro momento, ele atribui o discur-
so somente a um, significa que os três, juntos, representam a pes-
soa de um só Deus. Devemos ainda lembrar o que eu recentemente
sugeri: que a apenas um se dá o principal lugar porque Cristo, que é
a imagem viva do Pai, às vezes aparecia aos pais sob a forma de
um anjo, enquanto que, ao mesmo tempo, ele ainda tinha por seus
assistentes anjos de quem era o Cabeça. E quanto à questão de ele
perguntar sobre Sara, podemos inferir que, novamente, se promete
a Abraão um filho, porque ela não esteve presente no oráculo anteri-
or.
10. Certamente voltarei a ti. Na Vulgata, Jerônimo traduz essa ex-
pressão por: “Eu voltarei, a vida me acompanhando”, como se Deus,
falando de uma maneira humana, dissesse: “Eu voltarei, se eu vi-
ver.”. Mas seria absurdo que Deus, que aqui proclama seu poder de
modo tão magnificente, emprestasse do homem uma forma de lin-
guagem que o pressuporia como sendo mortal. Sendo assim, que
majestade, pergunto, possuiria esse notável oráculo, que trata da
eterna salvação do mundo? Portanto, essa interpretação de modo
algum pode ser aprovada, pois mina inteiramente a força e autorida-
de da promessa. A expressão é traduzida literalmente por: “de acor-
do com o tempo de vida.”. O que alguns aplicam a Sara, como se o
anjo dissesse que Sara sobreviveria até aquele período. Mas é mais
adequadamente aplicada ao filho, pois Deus promete que viria, no
justo e devido tempo de dar à luz, para que Sara se tornasse a mãe
de um menino vivo.

11. Abraão e Sara eram já velhos, avançados em idade. Moisés


insere esse verso para nos informar que o que o anjo estava dizen-
do parecia a Sara (com razão) improvável. Pois é contrário à nature-
za que pessoas avançadas em idade recebam a promessa de ter fi-
lhos. Entretanto, é possível que nesse ponto se nutra uma dúvida
com respeito a Abraão. Porquanto os homens algumas vezes são
dotados com suficiente vigor para gerar filhos, mesmo em idade ex-
trema, e, naquele período especialmente, tal ocorrência não era in-
comum. Aqui, porém, Moisés fala comparativamente; porque, posto
que Abraão, durante o vigor de sua vida, permanecera com sua es-
posa sem filhos, dificilmente lhe era possível, agora que seu corpo
estava cansado, ter filhos. De fato, ele gerara a Ismael em sua velhi-
ce, o que já era contrário à expectativa. Mas agora, doze anos de-
pois, era algo difícil de acreditar que ele pudesse se tornar pai, por
meio de sua esposa também era idosa. Moisés, contudo, insiste
principalmente sobre o caso de Sara, porque era nela que estava o
maior impedimento. “E a Sara”, diz ele, “já lhe havia cessado o cos-
tume das mulheres.”. Com essa expressão, ele fala sobriamente so-
bre o fluxo mensal das mulheres e, portanto, considera que a possi-
bilidade de conceber cessa.
12. Riu-se, pois, Sara no seu íntimo. Antes foi Abraão que riu,
como pode ser visto no capítulo anterior. Mas o riso de ambos de
modo algum era similar. Pois Sara não é motivada pela admiração e
alegria ao receber a promessa de Deus, mas, tolamente, põe sua
própria idade e a de seu marido em oposição à palavra de Deus, e
se recusa a confiar em Deus, quando ele fala. Contudo, claramente
ela não acusa Deus de falsidade ou vaidade; mas porque, conside-
rando o que foi proposto, apenas pesa o que se poderia realizar por
meios naturais, sem elevar seus pensamentos à consideração do
poder de Deus, e, assim, precipitadamente, lança descrédito no
Deus que lhe fala. Desse modo, tão logo medimos as promessas e
as obras de Deus por nossa própria razão e pelas leis da natureza,
agimos de modo reprovável para com ele, mesmo quando não te-
mos essa pretensão. Pois não lhe rendemos a devida honra, a me-
nos que consideremos todo obstáculo que se apresente no céu e na
terra sob sua palavra. Mas, embora a incredulidade de Sara não
possa ser justificada, ela não rejeita diretamente o favor de Deus,
mas, é somente por deixar-se reprimir pela vergonha e modéstia,
que ela não consegue crê totalmente no que ouve. Inclusive suas
próprias palavras declaram a mais profunda modéstia: “Depois de
velha, e velho também meu senhor, terei ainda prazer?”. Portanto,
observemos que nada estava mais distante da mente de Sara do
que ter Deus por mentiroso. Mas seu pecado consistia somente nis-
to: que, havendo fixado seus pensamentos demasiadamente na or-
dem comum da natureza, ela não deu glória a Deus, esperando dele
um milagre que ela era incapaz de conceber em sua mente.
Devemos notar a admoestação que o apóstolo extrai dessa
passagem, porque Sara, aqui, chama Abraão “meu senhor” [1Pe
3.6]. Pois, considerando o exemplo de Sara, ele exorta as mulheres
a serem obedientes e bem comportadas para com seu próprio mari-
do. De fato, muitas mulheres, sem qualquer dificuldade, dão a seu
próprio marido esse título, mesmo quando eles, movidos por imperi-
oso orgulho, não têm escrúpulo de mantê-las sob seu domínio. O
apóstolo, porém, confirma que Sara testifica o que sinceramente
sente com respeito a seu marido; indubitavelmente, por suas atitu-
des, ela deu provas da modéstia que verbalmente professava.
13. Disse o S a Abraão. Posto que a majestade de Deus
fora então manifestada nos anjos, Moisés menciona expressamente
seu Nome. Já explicamos em que sentido o nome de Deus é trans-
ferido para o anjo. Portanto, não é necessário repeti-lo, exceto,
como é sempre importante observar, que a palavra do Senhor lhe é
tão preciosa, que ele quer que o consideremos presente sempre
que fala através de seus ministros. Além disso, sempre que se ma-
nifestava aos pais, o Mediador entre estes e Deus era o próprio
Cristo, o qual não só personifica Deus ao proclamar sua palavra,
mas também é verdadeira e essencialmente Deus. E porque o riso
de Sara não fora detectado pelo olho humano, Moisés declara ex-
pressamente que ela foi repreendida por Deus. E a isso pertencem
as seguintes circunstâncias: que o anjo tinha suas costas voltadas
para a tenda, e que Sara riu-se em seu íntimo, e não diante de ou-
tras pessoas. A censura também mostra que o riso de Sara estava
associado à incredulidade, pois não há pouco peso nesta sentença:
“Acaso para o Senhor há coisa demasiadamente difícil?”. Mas o
anjo repreende a Sara porque ela pôs o poder de Deus dentro dos
limites de sua própria compreensão. Portanto, há implícita uma antí-
tese entre o imensurável poder de Deus e a limitada imaginação de
Sara, através de sua razão carnal.
Alguns traduzem a palavra (pala), oculto, como se o anjo qui-
sesse dizer que nada estava oculto aos olhos de Deus; mas o senti-
do é diferente, a saber, que o poder de Deus não deve ser limitado
pela razão humana. Não é de surpreender que em casos difíceis fra-
cassemos ou que sucumbamos diante das dificuldades; o caminho
de Deus, porém, é bem diferente, pois, lá do alto, por sua sublime
exaltação, ele olha com menosprezo para aquelas coisas que nos
assustam. Agora percebemos qual foi o pecado de Sara, a saber,
que ela injuriou a Deus por não reconhecer a grandeza de seu po-
der. E, na verdade, também tentamos usurpar a Deus de seu poder
sempre que desconfiamos de sua palavra.
À primeira vista, Paulo parece render um inexpressivo louvor à
fé de Abraão, ao dizer que ele não considerou seu corpo já envelhe-
cido, mas deu glória a Deus, porquanto estava convencido de que
ele poderia cumprir o que havia prometido [Rm 4.19]. Mas, se inves-
tigarmos exaustivamente a fonte da desconfiança, descobriremos
que a razão por que duvidamos das promessas de Deus é porque
de modo pecaminoso diminuímos o seu poder. Pois tão logo ocorra
alguma dificuldade extraordinária, então, o que quer que Deus tenha
prometido, parece-nos fabuloso; sim, no momento em que ele fala, o
perverso pensamento se apresenta: como ele cumprirá o que pro-
mete? Estando dominados e preocupados por pensamentos tão li-
mitados, excluímos seu poder, cujo reconhecimento é a melhor coi-
sa. Em suma, aquele que não espera de Deus mais do que é capaz
de compreender no limite de sua própria razão, lhe faz grave injusti-
ça.
Entretanto, a palavra do Senhor deve estar inseparavelmente li-
gada ao seu poder, pois nada é mais absurdo do que questionar so-
bre o que Deus pode fazer, à parte de sua vontade declarada. Des-
sa maneira, os papistas se precipitam num profundo labirinto quan-
do discutem acerca do poder absoluto de Deus. Portanto, a menos
que estejamos dispostos a entregar-nos aos mais desvairados ab-
surdos, é necessário que a palavra nos preceda como uma lâmpa-
da, de modo que seu poder e sua vontade estejam unidos por um
vínculo inseparável. O apóstolo nos prescreve essa regra quando
diz: “estando plenamente convicto de que ele era poderoso par cum-
prir o que prometera” [Rm 4.21]. O anjo repete a promessa de que
viria “neste mesmo tempo”, isto é, no virar do ano, quando chegasse
o tempo devido de dar à luz.

15. Então, Sara, receosa, o negou. Outro pecado de Sara foi que
ela se esforçou para encobrir e ocultar seu riso por meio de uma fal-
sidade. Contudo, esse pretexto não procedeu da perversidade obsti-
nada, de acordo com o método que os hipócritas costumam usar em
seus subterfúgios, de modo que permaneçam como se nada tivesse
acontecido. Os sentimentos de Sara eram diferentes, pois, enquanto
se arrepende de sua própria tolice, ela se sente tão aterrorizada que
nega que fizera o que agora percebe ser desagradável a Deus. Dis-
so inferimos quão profunda é a corrupção de nossa natureza, que
inclusive faz com que o temor de Deus – a mais elevada de todas as
virtudes – se degenere em um erro. Além disso, devemos observar
de onde esse temor, do qual Moisés faz menção, de repente pene-
trou a mente de Sara, a saber, da consideração de que Deus havia
descoberto seu pecado secreto. Vemos, pois, como a majestade de
Deus nos desperta de nossa insensibilidade, quando tal majestade é
seriamente reconhecida por nós. Somos mais especialmente cons-
trangidos a nos sentir assim quando Deus sobe ao seu tribunal e
manifesta os nossos pecados.
Não é assim, é certo que riste. O anjo não discute com muitas
palavras, mas refuta diretamente a falsa negação do fato por parte
de Sara. Disso podemos aprender que, quando o Senhor nos repro-
va, não podemos levar vantagem por meio de evasivas, porque ele
resolverá imediatamente nosso caso com uma única palavra. Por-
tanto, devemos ter cuidado para não imitarmos a insolência dos que
zombam de Deus com falsos pretextos e, por fim, apressam-se
para, de modo grosseiro, desprezá-lo. Por mais que possa parecer
que ele nos deixou passar despercebido por algum tempo, contudo
nos fulminará com aquela terrível voz: “Não é como finges.”. Em
suma, não basta que o juízo de Deus seja reverenciado, a menos
que também confessemos nossos pecados sinceramente, sem sub-
terfúgios e evasivas. Pois uma dupla condenação aguarda aqueles
que, desejando escapar do juízo de Deus, recorrem ao refúgio da
dissimulação. Devemos, pois, apresentar uma sincera confissão,
para que, como pessoas publicamente condenadas, obtenhamos o
perdão.
Visto, porém, que Deus se contentou apenas em ministrar uma
amigável repreensão, e que ele não puniu mais severamente a du-
pla ofensa de Sara, podemos perceber com que terna benevolência
algumas vezes ele trata seu próprio povo. Zacarias foi tratado mais
severamente, o qual foi ferido com mudez por nove meses [Lc 1.9].
Mas não nos cabe prescrever a Deus uma lei perpétua de modo
que, como ele geralmente conduz seu próprio povo ao arrependi-
mento mediante castigos, não possa às vezes achar por bem humi-
lhá-los suficientemente, sem infligir qualquer castigo. Em Sara, de
fato, ele dá um singular exemplo de sua compaixão porque gracio-
samente a perdoa plenamente e ainda decide que ela permaneça a
mãe da Igreja. Contudo, devemos observar quão preferível é que
sejamos conduzidos à sua presença como culpados, e que, seme-
lhante a pessoas condenadas, devemos manter silêncio, em vez de
nos deleitarmos no pecado, como uma grande parte do mundo cos-
tuma fazer.

16. Tendo-se levantado dali aqueles homens. Mais uma vez, Moi-
sés chama homens àqueles a quem abertamente declarou serem
anjos. Mas ele lhes dá o nome com base na forma que haviam as-
sumido. No entanto, não estamos supondo que eles estavam envol-
tos com corpos humanos, da mesma maneira que Cristo se vestiu
de nossa natureza, juntamente com nossa carne. Deus, porém, os
vestiu com corpos temporários, nos quais pudessem ser visíveis a
Abraão e pudessem falar com ele de modo familiar. Lemos que
Abraão os conduziu pelo caminho; não com o intuito de ser cortês,
como quando os recebera a princípio, mas para render aos anjos a
honra devida. Pois frívola é a opinião de alguns que imaginam que
eles eram profetas, que haviam sido expulsos por causa da palavra.
Abraão bem sabia que eram anjos, como veremos mais claramente.
Mas ele acompanha pelo caminho aqueles a quem não ousava de-
ter.

17. Ocultarei a Abraão o que estou para fazer? Vemos aqui que
Deus toma conselho como se tivesse dúvida, mas ele age assim por
causa dos homens, pois já havia determinado o que faria. Mas sua
intenção, ao agir assim, era tornar Abraão mais atento à considera-
ção das causas da destruição de Sodoma. Deus alega duas razões
pelas quais desejava manifestar seu desígnio a Abraão, antes de re-
alizá-lo. A primeira é que Deus já lhe havia concedido um privilégio
singularmente honroso; a segunda é que tal atitude seria útil e frutí-
fera na instrução da sua descendência. Portanto, na expressão
“Ocultarei de Abraão o que estou para fazer?”, o escopo e uso da
revelação são brevemente observados.

18. Visto que Abraão certamente virá a ser uma grande e pode-
rosa nação. Em hebraico é “e sendo, ele será” etc. Mas a copulati-
va deve ser transformada no advérbio causal. Pois esta é a razão à
qual eu já aludi por que Deus preferiu informar a seu servo da terrí-
vel vingança que ele estava para infligir sobre os homens de Sodo-
ma, a saber, que ele o adornara, acima dos demais, com dons pecu-
liares. Pois, dessa maneira, Deus dá sequência a seus atos de bon-
dade para com os fiéis, sim, e até os aumenta e gradualmente con-
cede novos favores àqueles anteriormente concedidos. E ele diaria-
mente nos trata da mesma maneira. Pois, qual é a razão pela qual
ele nos oferece inumeráveis e constantes benefícios, senão que, ha-
vendo uma vez nos abraçado com amor paternal, ele não pode ne-
gar-se a si mesmo? E, portanto, de certa maneira, ele honra a si
mesmo e aos seus dons em nós. Pois o que Deus aqui celebra, se-
não os seus próprios dons gratuitos? Portanto, ele remonta a si
mesmo a causa de sua beneficência, e não aos méritos de Abraão;
pois a bênção de Abraão não fluía de nenhuma outra fonte, senão
da Fonte Divina. E aprendemos da passagem o que a experiência
também ensina: que é privilégio peculiar da Igreja saber o que signi-
fica os juízos divinos e qual é o seu objetivo.
Quando Deus inflige punição aos perversos, ele prova aberta-
mente que de fato é o Juiz do mundo; mas, porque todas as coisas
parecem suceder por acaso, o Senhor ilumina aos seus próprios fi-
lhos com sua palavra, para que não se tornem cegos juntamente
com os incrédulos. Assim, outrora, quando ele estendia sua mão so-
bre todas as regiões do mundo, ele ainda confinava sua santa pala-
vra no território da Judéia, isto é, quando ele feria todas as nações
com matança e com adversidade, ele ainda instruía a seu único
povo eleito por sua palavra, através dos profetas, que ele era o Au-
tor dessas punições. Sim, ele predizia de antemão que elas se con-
cretizariam, como se acha escrito em Amós 3.7: “Certamente, o Se-
nhor Deus não fará coisa alguma, sem primeiro revelar seu segredo
a seus servos, os profetas”. Portanto, lembremo-nos de que a partir
do momento em que Deus começa a ser bondoso conosco, ele nun-
ca se cansa, até que, ao acrescentar um favor a outro, complete
nossa salvação. Então, depois que ele nos adotou e resplandeceu
em nossa mente por sua palavra, ele mantém a tocha da mesma
palavra ardendo diante de nossos olhos, para que, pela fé, conside-
remos aqueles juízos e punições da iniquidade que os ímpios displi-
centemente negligenciam. Assim, ele faz com que os fiéis se empe-
nhem em refletir sobre as histórias de todos os tempos para que
sempre formem, com base na Escritura, seu juízo sobre as várias
destruições que, privativa e publicamente, caíram sobre os ímpios.
Mas, questiona-se: era necessário que a destruição de Sodoma
fosse explicada a Abraão antes que acontecesse? Eis minha res-
posta: visto que somos tão lentos em considerar as obras de Deus,
essa revelação de modo algum era supérflua. Embora o Senhor pro-
clame claramente que a adversidade é a vara de sua ira, raramente
alguém atenta para essa verdade porque, através das imaginações
depravadas de nossa carne, atribuímos o sofrimento a alguma outra
causa. Mas a admoestação, que precede o evento, não nos permite
ficar entorpecidos, nem nos permite imaginar que o acaso ou algu-
ma outra coisa que possamos imaginar esteja no lugar da palavra
de Deus. Assim, necessariamente acontecia, nos tempos antigos,
que, mesmo como o coração endurecido, as pessoas eram mais im-
pactadas por essas predições do que se fossem admoestadas pelos
profetas, depois de terem recebido a punição. Portanto, com base
nisso, podemos estabelecer uma regra geral, para que os juízos de
Deus, que percebemos diariamente, não nos sejam sem proveito.
O Senhor declara a seu servo Abraão que Sodoma estava para
perecer, enquanto ainda estava de pé e no pleno desfrute de seus
deleites. Portanto, não resta dúvida de que ela não pereceu por aca-
so, mas foi submetida à punição divina. A partir disso também,
quando a causa da punição é assim declarada de antemão, será ne-
cessariamente mais eficaz para impactar e estimular a mente dos
homens. Mais adiante chegaremos à mesma conclusão, concernen-
te a outras coisas; pois, embora Deus não nos declare o que está
para fazer, ainda assim a sua intenção é que sejamos testemunhas
oculares de suas obras, e prudentemente avaliemos suas causas e
não nos deixemos ofuscar por uma confusa contemplação delas,
como fazem os incrédulos “que, vendo, não veem”, e que pervertem
seu verdadeiro desígnio.

19. Porque eu o escolhi para que ordene a seus filhos. A segun-


da razão pela qual Deus decide fazer Abraão participante de seu
conselho é porque ele prevê que isso não seria feito em vão e sem
proveito. E o significado simples da passagem é que Abraão é admi-
tido ao conselho de Deus porque fielmente cumpriria o ofício de um
bom cabeça do lar, instruindo sua própria família. Disso inferimos
que Abraão foi informado da destruição de Sodoma, não só por si,
mas em benefício de sua posteridade. Isso deve ser cuidadosamen-
te observado, pois essa sentença possui o mesmo efeito, a saber,
que Deus, na pessoa de Abraão, se dirigisse a toda sua descendên-
cia. E, realmente, Deus não nos faz conhecida sua vontade para
que o conhecimento dela possa perecer conosco, mas para que se-
jamos suas testemunhas para a posteridade, e para que essa poste-
ridade passe adiante o conhecimento que recebeu de nós, de mão
em mão (como dizemos), a seus descendentes.
Portanto, é o dever dos pais se aplicarem diligentemente à obra
de comunicar a seus filhos o que têm aprendido do Senhor. Dessa
maneira, a verdade de Deus deve ser propagada por nós, de modo
que ninguém retenha seu conhecimento para seu próprio uso priva-
do, mas que cada um edifique os demais, de acordo com sua pró-
pria vocação e a medida de sua fé. Contudo, não há dúvida de que
a enorme ignorância que reina no mundo é a justa punição da ocio-
sidade dos homens. Pois, enquanto a maioria fecha seus olhos à luz
oferecida pela doutrina celestial, ainda há os que a abafam, não ten-
do o cuidando de transmiti-la a seus filhos. O Senhor, pois, retira de
modo justo o precioso tesouro de sua palavra para punir o mundo
por sua indolência.
Deve-se notar ainda a expressão “depois dele”, pela qual so-
mos ensinados que devemos não só cuidar bem de nossas famílias,
governá-la devidamente, enquanto vivermos, mas que devemos agir
com diligência para que a verdade de Deus, que é eterna, viva e flo-
resça após nossa morte; e que assim, quando morrermos, um santo
testemunho de vida subsista e permaneça. Além disso, podemos in-
ferir que aquelas narrativas que servem para inspirar terror são úteis
ao nosso conhecimento. Pois nossa segurança carnal exige fortes
estimulantes, pelos quais sejamos instigados ao temor de Deus. E
para que ninguém suponha que esse tipo de doutrina se dirija ape-
nas aos estranhos, o Senhor o designa especialmente aos filhos de
Abraão, isto é, para os membros da Igreja. Pois estão enfeitiçados e
são perversos aqueles intérpretes que argumentam que a fé é sub-
vertida, se as consciências ficarem alarmadas. Pois, enquanto que
nada é mais contrário à fé do que o desprezo e o entorpecimento,
essa doutrina está mais de acordo com a pregação da graça, a qual
de tal modo submete os homens ao temor de Deus, de modo que
eles, estando aflitos e famintos, possam se apressar em ir a Cristo.
Que guardem o caminho do S . Nessas palavras, Moi-
sés declara que o juízo de Deus é proposto não só para que os que,
por negligência, se satisfazem em seus vícios aprendam a temer, e
para que, sendo assim constrangidos, suspirem pela graça de Cris-
to, mas também a fim de que os próprios fiéis, que já são dotados
com o temor de Deus, avancem cada vez mais na busca da pieda-
de. Pois ele quer que a destruição de Sodoma seja registrada, tanto
para que os perversos sejam atraídos a Deus, pelo medo da mesma
vingança, como para que os que já começaram a adorar a Deus se-
jam mais bem preparados para a verdadeira obediência. Assim, a
Lei serve não só para nos levar ao arrependimento, mas também
para nosso contínuo progresso.
Quando Moisés acrescenta a expressão “e pratiquem a justiça
e o juízo”, sucintamente ele mostra a natureza do caminho do Se-
nhor, que já havia mencionado. Essa, contudo, não é uma definição
completa, mas, a partir dos deveres da Segunda Tábua, ele mostra
resumidamente, pela figura de sinédoque, o que Deus principalmen-
te exige de nós. E, na Escritura, não é rara a busca de uma descri-
ção da vida piedosa e santa na Segunda Tábua da lei; não porque a
caridade seja de mais valor do que a adoração a Deus, mas porque
quem vive, justa e inocentemente, em relação a seus semelhantes
dão evidência de sua piedade para com Deus.
Nos títulos justiça e juízo, Moisés compreende aquela equidade
pela qual a cada um é dado o que é propriamente seu. Se quiser-
mos fazer uma distinção, justiça é o título dado à retidão e à huma-
nidade que cultivamos com nossos irmãos, quando nos esforçamos
para fazer o bem a todos, e quando nos abstemos de todo dano,
fraude e violência. Juízo, porém, é o ato de estender a mão ao mise-
rável e ao oprimido, para reivindicar causas justas e para evitar que
o fraco seja injustamente prejudicado. Esses são os exercícios le-
gais nos quais o Senhor ordena que seu povo esteja engajado.
Para que o S faça vir sobre Abraão o que tem falado
a seu respeito. Moisés declara que Abraão tomaria posse da graça
que lhe era prometida, se instruísse a seus filhos no temor do Se-
nhor e governasse bem sua casa. Mas, sob a pessoa de um ho-
mem, uma norma comum é dada a todos os piedosos. Pois todos os
que se mostram negligentes nessa parte de seu dever renegam ou
suprimem, tanto quanto é possível, a graça de Deus. Portanto, para
que a posse perpétua dos dons de Deus esteja conosco e permane-
ça com a nossa posteridade, devemos ter cuidado para que eles
não desapareçam pela nossa negligência. Contudo, seria falso al-
guém inferir daqui que os fiéis possam causar ou merecer, por sua
própria diligência, que Deus cumpra todas as coisas que prometeu.
Pois este é um método comum de falar, utilizado na Escritura: deno-
tar pela palavra que mais a consequência do que a causa. Pois, em-
bora a graça de Deus sozinha comece e complete nossa salvação,
contudo, visto que, por obedecermos ao chamado de Deus cumpri-
mos nossa vocação, nos é dito, também dessa maneira, que obte-
mos a salvação prometida por Deus.

20. O clamor de Sodoma e Gomorra. Aqui, o Senhor começa mais


claramente a explicar a Abraão seu propósito com relação à destrui-
ção das cinco cidades, embora ele só mencione Sodoma e Gomor-
ra, as quais eram muito mais famosas do que as demais. Mas, antes
de fazer menção da punição, ele apresenta as iniquidades delas, a
fim de ensinar a Abraão que mereciam ser justamente destruídas;
caso contrário, a história não teria qualquer instrução. Mas quando
percebemos que a ira de Deus é provocada pelo pecado do homem,
somos constrangidos pelo medo de pecar. Ao dizer que “o clamor se
tem multiplicado”, o Senhor indica a gravidade dos crimes das cida-
des, porque, embora os perversos prometam a si mesmos impuni-
dade, por ocultarem seus males, e embora esses males sejam silen-
ciosa e discretamente mantidos pelos homens, ainda assim seus
pecados, necessariamente, soará em alta voz aos ouvidos de Deus.
Portanto, essa frase significa que todos os nossos atos, mesmo
aqueles que pensamos estarem sepultados, estão presentes diante
do tribunal de Deus, e que eles, em si mesmos, exigem vingança,
ainda que não haja ninguém que os denuncie.

21. Descerei e verei. Uma vez que esse acontecimento foi um ma-
gistral exemplo da ira de Deus, que desejou que fosse celebrado em
todos os séculos, e ao qual ele frequentemente menciona na Escri-
tura, Moisés diligentemente registra aquelas coisas que devam ser
especialmente consideradas nos juízos divinos; do mesmo modo,
aqui nesse texto, ele enaltece a moderação de Deus, que não fulmi-
na imediatamente os ímpios e não derrama sobre eles sua vingan-
ça, mas que, quando as coisas se tornam totalmente desesperado-
ras, finalmente executa a punição que por muito tempo havia sido
suspensa sobre eles. E o Senhor não testifica em vão que inflige pu-
nição de maneira adequada e justamente moderada porque, toda
vez que nos castiga, somos inclinados a pensar que ele age para
conosco mais severamente do que é justo. Ainda quando, com es-
pantosa paciência, ele nos aguarda até que tenhamos chegado qua-
se no limite da impiedade e nossa perversidade tenha se tornado
obstinada demais para ser poupada por mais tempo, queixamo-nos
da pressa excessiva de seu rigor. Portanto, Deus apresenta, de
modo claro, sua equidade em suportar-nos para que saibamos que
ele jamais inflige punição, exceto sobre aqueles que já estão acostu-
mados ao crime.
Agora, se, por outro lado, olharmos para Sodoma, iremos nos
deparar com um horrível exemplo de entorpecimento. Pois os ho-
mens de Sodoma vivem como se nada tivessem a ver com Deus;
não tendo senso do bem e do mal, como porcos, eles se afundam
em todo tipo de imundícia; e, como se nunca tivessem que prestar
contas de sua conduta, gloriam-se de seus vícios. Visto que essa
doença prevalece tão amplamente em todos os séculos e é atual-
mente muito comum, é importante destacar esta circunstância: en-
quanto que os homens de Sodoma, tendo rejeitado todo o temor de
Deus, estavam se satisfazendo e, por mais que pecassem, prometi-
am a si mesmos impunidade, Deus estava decidindo destruí-los e foi
movido, pelos tumultuosos clamores de suas iniquidades, a descer à
terra, enquanto eles viviam sepultados em profundo sono. Portanto,
se Deus, em algum tempo, adiar seus juízos, não pensemos, assim,
que vivemos em melhor condição, mas, antes que o clamor de nos-
sa perversidade tenha cansado seus ouvidos, nós, estimulados por
suas ameaças, apressemos imediatamente para apaziguá-lo. Entre-
tanto, porque tal paciência em Deus não pode ser compreendida por
nós, Moisés o apresenta falando em conformidade com o modo hu-
mano.
Se, de fato, o que têm praticado corresponde a esse cla-
mor. O substantivo hebraico (cala), que Moisés usa aqui, signifi-
ca a perfeição ou o fim de uma coisa, e também sua destruição. Por
isso, na Vulgata, Jerônimo o traduz por “Se o tiverem completado
em ato.”. De fato, não tenho dúvida de que Moisés declara que
Deus desceu a fim de saber se seus pecados tinham ou não atingi-
do o ponto mais alto, do mesmo modo como ele disse antes, que as
iniquidades dos amorreus ainda não estavam completas. O resumo,
pois, de tudo isso é que o Senhor iria ver se eles já estavam total-
mente desesperados, como se tivessem precipitado na profundeza
do mal, ou se estavam ainda no meio do caminho, do qual era pos-
sível que retornassem a uma mente sadia, uma vez que ele não es-
tava totalmente disposto a destruir aquelas cidades, se, por algum
método, sua perversidade fosse curável. Outros traduzem a passa-
gem assim: “Se tiverem feito isto, sua destruição final está à mão; se
não, verei até que ponto devam ser punidos.”. Mas o primeiro senti-
do está mais de acordo com o contexto.

22. Porém Abraão permaneceu ainda na presença do S .


Moisés, antes de tudo, declara que os homens seguiram viagem,
transmitindo a impressão de que, tendo terminado seu discurso,
despediram-se de Abraão para regressarem para casa. Ele, pois,
acrescenta que Abraão permaneceu diante do Senhor, como as
pessoas costumam fazer, as quais, mesmo quando despedidas, não
partem imediatamente, porquanto resta ainda algo a dizer ou a fa-
zer. Moisés, quando faz menção da viagem, com propriedade atribui
aos anjos a designação homens; porém, ele não diz que Abraão
permaneceu diante dos homens, e sim diante da face de Deus; por-
que, embora, com seus olhos, visse a aparência de homens, pela fé,
olhava para Deus. E suas palavras mostram suficientemente que ele
não falou como teria feito a um homem mortal. Disso inferimos que
agimos absurdamente, se permitirmos que símbolos externos, pelos
quais Deus se representa, retardem ou nos impeçam de ir direta-
mente a ele. Na verdade, por natureza somos propensos a esse
erro; mas tanto mais devemos nos esforçar para que, pela fé, incli-
nemo-nos para Deus mesmo, para que os sinais externos não nos
mantenham presos a este mundo.
Além disso, Abraão se aproxima de Deus com o intuito de mos-
trar reverência. Pois ele não se opõe a Deus num espírito contencio-
so, como se tivesse o direito de interceder, mas apenas roga supli-
cantemente, e cada palavra demonstra a grande humildade e mo-
déstia do santo homem. De fato, confesso que às vezes os homens
santos se deixam arrebatar por um sentimento carnal, não tendo au-
tocontrole, e que, ao menos indiretamente, murmuram contra Deus.
Aqui, porém, Abraão se dirige a Deus com nenhuma outra atitude
além da reverência, nem algo sai dele que seja digno de censura.
Contudo, devemos notar o estado mental pelo qual Abraão foi moti-
vado a orar em favor dos habitantes de Sodoma. Alguns supõem
que ele se mostrava mais ansioso acerca só da segurança de seu
sobrinho do que por Sodoma e as demais cidades, mas que, sendo
contido pela modéstia, não roga que se lhe dê expressamente um
só homem, enquanto negligencia inteiramente um grande povo.
Mas, de modo algum é provável que ele fizesse uso de tal dissimu-
lação.
Certamente, não tenho dúvida de que ele estava tão tocado por
uma compaixão comum pelas cinco cidades, que se chegara a Deus
como intercessor delas. E se atentamente pesarmos todas as coi-
sas, ele teve grande razão para agir assim. Recentemente, ele os
resgatara da mão de seus inimigos e, agora, de repente ouve que
serão destruídos. Ele poderia imaginar que se engajara precipitada-
mente numa guerra; que sua vitória estava sob a maldição divina,
como se lançasse mão das armas contra a vontade de Deus em fa-
vor de homens indignos e perversos; e era possível que fosse não
pouco atormentado por tais pensamentos. Além disso, era difícil de
crer que todos eles fossem tão ingratos, que não restasse entre eles
nenhuma lembrança de seu recente livramento. Mas não lhe era líci-
to, por uma única palavra, disputar com Deus, após haver ouvido o
que ele determinara fazer. Pois Deus é o único que melhor sabe o
que os homens merecem e com que severidade devem ser tratados.
Por que, pois, Abraão não aceitou? Por que ele imagina em seu
íntimo que houvesse em Sodoma algumas pessoas justas, às quais
Deus ignorou e a quem se apressa a esmagar com os demais numa
destruição comum? Respondo que o sentimento de humanidade
pelo qual Abraão se deixa mover era agradável a Deus. Primeiro,
porque, como era conveniente, ele deixa com Deus a competência
de julgar o fato. Segundo, porque ele roga com sobriedade e sub-
missão pela única maneira de obter consolação. Não é de admirar
que Abraão esteja aterrorizado com a destruição de tão grande mul-
tidão. Ele vê os homens criados à imagem de Deus; ele se conven-
ce de que, naquela imensa multidão, havia ao menos uns poucos
que eram íntegros, ou não totalmente injustos, e entregues à perver-
sidade. Ele, pois, alega diante de Deus o que pensa ser viável à ob-
tenção do perdão deles.
Entretanto, pode-se pensar que ele agiu precipitadamente, pe-
dindo impunidade para os maus por causa dos bons, porque deseja-
va que Deus poupasse o lugar, se encontrasse ali 50 pessoas boas.
A isso respondo que as orações de Abraão não se estenderam tanto
a ponto de pedir a Deus que não castigassem aquelas cidades, mas
somente que ele não as destruísse totalmente, como se quisesse di-
zer: “Ó Senhor, seja qual for a punição que inflijas contra os culpa-
dos, porventura não deixarás alguma habitação para os justos? Por
que essa região pereceria totalmente, enquanto restar uma pessoa
pela qual seja habitada?”. Abraão, pois, não deseja que os perver-
sos, estando junto com os justos, escapem da mão de Deus, mas
apenas que Deus, ao infligir punição pública sobre toda a nação,
isente os bons que restarem da destruição.

23. Destruirás o justo com o ímpio? Quando Deus castiga a totali-


dade de um povo, é certo que ele frequentemente envolve os bons e
os réprobos na mesma punição. Assim Daniel, Ezequiel, Esdras, e
outros semelhantes a eles, que adoravam a Deus em pureza em
seu próprio país, foram repentinamente levados para o exílio, como
que por uma violenta tempestade, a despeito de ser dito: “E a terra
se contaminou; e eu visitei nela sua iniquidade, e ela vomitou seus
moradores” [Lv 18.25]. Mas quando Deus parece assim irado com
todos em comum, cabe-nos fixar nossos olhos no fim, que evidente-
mente discriminará um do outro. Porque, se o lavrador sabe como
separar os grãos de trigo em seu celeiro, os quais com a palha são
pisados sob os pés dos bois ou são malhados com o mangual,1 mui-
to mais Deus sabe como separar seu povo fiel – quando os tiver
castigado por algum tempo –, dentre os perversos (que são como
lixo sem valor), para que não pereça juntamente com eles; sim, pelo
próprio evento, Deus, por fim, provará que não permitiria que pere-
çam aqueles a quem ele estava curando por meio de suas punições.
Porque, tão longe está ele de apressadamente destruir seu povo
quando os sujeita a punições temporais, que está, antes, adminis-
trando um remédio que promoverá sua salvação. No entanto, não
tenho dúvida de que Deus anunciara a destruição final de Sodoma;
e, nesse sentido, Abraão agora se opõe dizendo que de modo al-
gum era consistente que a mesma ruína recaísse igualmente sobre
os justos e os ímpios.
Contudo, não haverá absurdo algum dizer que Abraão, nutrindo
boa esperança do arrependimento dos perversos, roga a Deus que
os poupasse; porque às vezes sucede que Deus, por causa de pou-
cos, trata brandamente todo o povo. Pois sabemos que as punições
públicas são abrandadas porque o Senhor olha para os seus com
olhos benignos e paternos. No mesmo sentido deve ser entendida a
resposta de Deus: “Se eu achar em Sodoma cinquenta justos dentro
da cidade, pouparei a cidade toda por amor deles.”. Entretanto, aqui
Deus não se submete a uma regra perpétua, de modo que não lhe
seja lícito, de acordo com seu juízo, envolver os perversos e os jus-
tos na mesma punição. E, para mostrar que ele tem livre poder para
julgar, nem sempre age da mesma maneira nesses casos. Aquele
que teria poupado Sodoma por causa de dez pessoas justas recu-
sou conceder a Jerusalém os mesmos termos de perdão [Mt 11.24].
Saibamos, pois, que Deus, aqui, não se põe sob qualquer necessi-
dade, mas que fala assim para tornar mais bem conhecido que ele,
sob justo fundamento, não procede à destruição de uma cidade da
qual nenhuma parte permaneceu pura.

25. Não fará justiça o Juiz de toda a terra? Aqui Abraão não ensi-
na a Deus seu dever, como se alguém dissesse a um juiz: “Veja
bem o que exige teu ofício, o que é digno desse status, o que se
adequa ao teu caráter”, mas ele raciocina a partir da natureza de
Deus, que é impossível que ele deseje algo injusto. Eu admito que,
ao usar a mesma maneira de falar, os ímpios costumam murmurar
contra Deus, mas a atitude de Abraão é bem diferente. Pois, embora
ele questione como Deus pensaria em destruir Sodoma, mesmo
sendo convencido de haver certo número de pessoas boas, Abraão
mantém este princípio: que era impossível que Deus, que é o Juiz
do mundo, e por natureza ama a equidade, sim, cuja vontade é a lei
da justiça e retidão, poderia no mínimo grau se apartar da equidade.
Abraão deseja, contudo, ser aliviado dessa dificuldade com que se
acha perplexo. Assim, sempre que diferentes tentações lutarem no
âmago de nossa mente, e alguma aparência de contradição se
apresente nas obras de Deus, que só deixemos firme a nossa per-
suasão de sua justiça, e nos seja permitido depositar em suas mãos
as dificuldades que nos atormentam, para que ele desate os nós
que não podemos desatar.
Tudo indica que Paulo tomou dessa passagem a resposta com
a qual ele reprime a blasfêmia dos que acusam a Deus de injustiça.
“Mas, se nossa injustiça traz a lume a justiça de Deus, que diremos?
Porventura será Deus injusto por aplicar sua ira? (Falo como ho-
mem.) Certo que não. Do contrário, como julgará Deus o mundo?”
[Rm 3.5, 6]. Esse método de apelo nem sempre é válido entre os juí-
zes terrenos, que algumas vezes são enganados pelo erro, ou per-
vertidos pelo favor, ou inflamados pelo ódio, ou corrompidos por ba-
julações, ou levados por outros meios a atos de injustiça. Visto, po-
rém, que Deus, a quem naturalmente pertence o julgar o mundo,
não está sujeito a nenhum desses males, segue-se que ele não
pode se afastar da equidade, da mesma forma que não pode negar
a si mesmo.

27. Eu que sou pó e cinza. Abraão fala assim com o intuito de ob-
ter perdão. Pois o que é o homem mortal, quando comparado com
Deus? Ele, pois, confessa ser ousado demais, ao interrogar a Deus
dessa maneira tão familiar. Contudo, ele deseja que esse favor lhe
fosse concedido pela misericórdia divina. Deve-se notar que, quanto
mais perto Abraão chega de Deus, mais plenamente consciente ele
se torna da condição miserável e desgraçada dos homens. Pois
basta o esplendor da glória de Deus para cobrir de vergonha e hu-
milhar totalmente os homens, quando despidos de sua tola e embri-
agada autoconfiança. Portanto, quem quer que para si mesmo pare-
ça ser algo, que volte seus olhos para Deus e imediatamente se re-
conhecerá como nada.
Abraão, de fato, não se esqueceu de que possuía uma alma
viva, mas seleciona o que era mais desprezível, para esvaziar-se de
toda dignidade. Contudo, pode parecer que Abraão apenas ironiza
sofisticamente com Deus, quando, diminuindo gradualmente o nú-
mero mencionado pela primeira vez, prossegue para sua sexta inter-
rogação. Minha resposta é que isso deve ser antes considerado
como a linguagem de uma mente perturbada. A princípio ele labuta
ansiosamente em prol dos homens de Sodoma, por isso nada omite
que pudesse servir para abrandar seu pedido. E, como o Senhor re-
petidamente lhe responde com tanta brandura, sabemos que Abra-
ão não foi considerado importuno nem aborrecível. Mas, se ele foi
bondosamente ouvido enquanto pleiteou pelos habitantes de Sodo-
ma até sua sexta petição, muito mais o Senhor atentará para as ora-
ções que qualquer um fizer pela Igreja e a família da fé.
Além disso, a humanidade de Abraão se manifesta também nis-
to: que embora saiba que Sodoma se acha embriagada das mais vis
corrupções, ele não pensa que todos estão infectados com o contá-
gio da perversidade; mas, antes, se inclina à justa suposição de
que, em tão grande multidão, era possível encontrar algumas pesso-
as justas. Pois este é um horrível prodígio: que a imundícia da ini-
quidade permeie de tal modo todo o corpo que não permita que al-
gum membro permaneça puro. Contudo, por esse exemplo, somos
ensinados como Satanás tiranicamente procede quando uma vez se
estabelece o domínio do pecado. E, certamente, visto que a propen-
são dos homens a pecar e a facilidade para pecar são tão grandes,
não surpreende que um seria corrompido por outro, até que o contá-
gio atingisse cada indivíduo. Pois nada é mais perigoso do que viver
onde prevalece a licença pública para o crime; sim, não há pestilên-
cia tão destrutiva como aquela corrupção da moral, que não é resis-
tida por leis, nem por julgamentos, nem por quaisquer outros remé-
dios. E embora Moisés, no capítulo seguinte, explique o crime tão
imundo que reinava em Sodoma, contudo, devemos nos lembrar do
que ensina Ezequiel [16.48, 49]: que os homens de Sodoma não ca-
íram imediatamente em perversidade tão execrável, mas que, no
princípio, prevaleceu a fartura de pão, e que, mais tarde, se segui-
ram o orgulho e a crueldade. Finalmente, quando foram entregues a
uma mente reprovada, também se lançaram por completo em bru-
tais concupiscências. Portanto, se tememos esse extremo de paixão
desordenada, então que cultivemos a temperança e a sobriedade, e
que sempre temamos que o excesso de alimento nos impulsione à
luxúria, para que nossa mente não seja contaminada com orgulho
por causa de nossa riqueza e que as iguarias não nos tentem a dar
rédeas soltas às nossas concupiscências.

1 Nome dado ao instrumento utilizado para malhar trigo.


C A P ÍT U L O 1 9

1. Vieram os dois anjos a Sodoma. Aqui surge a pergunta por que


um dos três anjos de repente desapareceu e somente dois chega-
ram a Sodoma. Os Judeus (com sua costumeira audácia em inven-
tar fábulas) supõem que um veio destruir Sodoma; o outro, preser-
var Ló. Mas pelas palavras de Moisés, tal ideia parece simplória por-
que veremos que ambos fizeram parte da libertação de Ló. O que
eu já argumentei é mais simples, a saber, que foi concedido a Abra-
ão, como um favor peculiar, que Deus não apenas lhe enviaria dois
mensageiros da hoste angelical, mas que, de uma maneira familiar,
ele se lhe manifestaria em seu próprio Filho. Pois (como já vimos)
um dos mensageiros ocupava o lugar principal, como sendo superi-
or aos outros dois em dignidade. Ora, embora Cristo sempre fosse o
Mediador, visto que ele se manifestou de maneira menos evidente a
Ló do que a Abraão, só os outros dois anjos foram a Sodoma.
Uma vez que Moisés relata que Ló se assentava junto ao por-
tão da cidade à tardinha, muitos argumentam que ele fez isso de
acordo com o costume cotidiano, com o propósito de receber hóspe-
des em sua casa. Contudo, como Moisés mantém silêncio com res-
peito à causa, seria imprudente afirmar isso como certo. De fato, ad-
mito que ele não se assentou ali como as pessoas ociosas costu-
mam fazer, mas a hipótese de que ele veio para encontrar seus pas-
tores, para estar presente quando suas ovelhas fossem introduzidas
no aprisco, não é menos plausível. Que ele era hospitaleiro, o cortês
convite que é mencionado por Moisés o demonstra claramente; con-
tudo, é incerto por que então ele permanecia junto ao portão da ci-
dade, a não ser que ele não quisesse perder alguma oportunidade
de praticar um ato de bondade quando aparecessem estrangeiros, a
quem pudesse prestar seus serviços. O que resta sobre esse ponto
pode ser encontrado no capítulo anterior.

2. Não; passaremos a noite na praça. Os anjos não concordaram


imediatamente, a fim de que pudessem investigar mais calmamente
a disposição do santo homem. Pois ele estava prestes a levá-los
para a sua própria casa, não apenas para dar-lhes uma ceia, mas
com o propósito de defendê-los da força e injúria dos homens de
Sodoma. Por isso os anjos agem como se fosse seguro dormir na
estrada e, assim, ocultam seu conhecimento da dissoluta perversi-
dade de todo o povo. Pois se os portões das cidades eram fechados
com o objetivo de impedir as invasões de animais selvagens e de
inimigos, quão errado e absurdo é o fato de que aqueles que estão
dentro devam ser expostos a perigos ainda mais graves? Portanto,
os anjos falam assim para tornar a perversidade do povo ainda mai-
or. E o fato de Ló insistir com os anjos a que o seguissem, com o
propósito de protegê-los da violência generalizada do povo, mostra
mais claramente quão cuidadoso ele era com seus hóspedes, para
que estes não sofressem nenhuma desonra ou injúria.

3. Deu-lhes um banquete. Por essas palavras, e outras que vêm a


seguir, Moisés mostra que os anjos foram mais generosamente aco-
lhidos do que o habitual, pois Ló não agia assim, indiscriminada-
mente, com todos. Mas quando percebeu, pela dignidade de seu as-
pecto e vestes, que eles não eram homens comuns, assou pães e
preparou uma grande festa. Mais uma vez, Moisés diz que os anjos
comeram; não que tivessem alguma necessidade disso, mas porque
o tempo da manifestação de sua natureza celestial ainda não havia
chegado.

4. Mas, antes que se deitassem. Aqui, pelo exemplo de um único


pecado, Moisés põe diante de nossos olhos um quadro vívido de
Sodoma. Por isso se torna evidente quão diabólico era o consenti-
mento de seus habitantes em toda perversidade, visto que todos
eles tão prontamente conspiraram para perpetrar o crime mais abo-
minável. A grandeza da iniquidade e devassidão deles é evidente a
partir do fato de que, coletivamente, eles se aproximam como inimi-
gos para cercar a casa de Ló. Quão cega e impetuosa é a lascívia
deles, posto que, sem pudor algum, correm juntos como animais ir-
racionais! Quão grande é a ferocidade e crueldade deles, posto que
de modo reprovável ameaçam o santo homem e ultrapassam todos
os limites!
Disso também inferimos que não foram contaminados com ape-
nas um vício, mas se entregaram ao pecado com toda audácia, de
modo que não lhes restou nenhum sentimento de vergonha. E Eze-
quiel (como já relatamos acima) descreve precisamente de que ma-
les eles extraíram essa extrema depravação [Ez 16.49]. O que Pau-
lo diz também se refere ao mesmo ponto: que Deus puniu a impie-
dade dos homens, quando se lançaram em um estado de cegueira
tão grande, que se entregaram à concupiscências abomináveis e
desonraram o seu próprio corpo [Rm 1.24]. Mas quando o sentimen-
to de vergonha é vencido e se dão rédeas soltas à concupiscência,
necessariamente sucede uma vil e ultrajante barbárie, e muitos tipos
de pecado são combinados, de modo que o resultado é caos e mui-
ta confusão. Mas, se essa severa vingança de Deus de tal modo re-
caiu sobre os homens de Sodoma, que foram cegados pela fúria e
se prostituíram com todos os tipos de pecados, por certo que dificil-
mente seremos mais moderadamente tratados com mais brandura,
cuja iniquidade é menos desculpável, porque a verdade de Deus já
nos foi mais claramente revelada.
Tanto os moços como os velhos. Moisés silencia muitas coi-
sas insondáveis que poderiam vir à mente dos leitores. Por exem-
plo, ele não menciona por quem a multidão fora instigada. Contudo,
é provável que houvesse alguém que inflamasse a chama e, disso,
percebemos quão livremente eles se dispunham a cometer iniquida-
de, visto que, como se estivessem atendendo a um comando, imedi-
atamente se reúnem. Também mostra o quanto estavam destituídos
de toda a vergonha, pois nem a seriedade restringia o velho, nem
qualquer modéstia, própria à idade deles, restringia os jovens. Final-
mente, Moisés declara que todo respeito à honra se foi, e que a or-
dem da natureza foi pervertida, quando diz que jovens e velhos vi-
nham de todas as partes da cidade.

5. Onde estão os homens? Embora a intenção deles fosse despu-


doradamente abusar dos estrangeiros de acordo com o seu ultrajan-
te apetite, ainda assim, em outras palavras, eles fingem que o objeti-
vo é outro. Pois, como se Ló fosse culpado por admitir homens des-
conhecidos na cidade – e ele mesmo era um estrangeiro –, eles or-
denam que os homens fossem trazidos fora diante deles.
Alguns explicam a palavra conhecer1 em um sentido carnal; e
assim os intérpretes gregos a têm traduzido. Eu, porém, acredito
que a palavra aqui tem um significado distinto, como se os homens
de Sodoma dissessem: “Queremos saber quem trouxeste à nossa
cidade como hóspedes.”. A Escritura realmente está acostumada a
descrever um ato de pudor pela palavra conhecer; e por isso pode-
mos inferir que os homens de Sodoma teriam falado, em linguagem
mais vulgar, de tal ato; mas, com o intuito de ocultar seu perverso
desígnio, eles aqui protestam imperiosamente contra o santo ho-
mem por ousar receber pessoas desconhecidas em sua casa.
Aqui, porém, surge uma questão. Pois, se os homens de Sodo-
ma tinham o hábito de incomodar dessa maneira todo e qualquer
estrangeiro, como devemos supor que eles agiram com os demais?
Pois Ló não estava agora, pela primeira vez, sendo hospitaleiro; e
eles sempre foram viciados em concupiscência. Ló estava prepara-
do para expor suas próprias filhas à desonra, a fim de salvar seus
hóspedes; quantas vezes, então, teriam sido necessárias prostituí-
las antes, se a fúria dos homens de caráter tão perverso não podia
de outra maneira ser diminuída? Agora, se realmente Ló soubesse
que tal perigo era iminente, ele deveria, antes, ter exortado a seus
hóspedes a se retirarem a tempo. Em minha opinião, contudo, em-
bora Ló conhecesse os costumes da cidade, ele não tinha nenhuma
suspeita do que realmente acontecia, a saber, que os homens ata-
cariam a sua casa; isso, de fato, parece ter sido algo completamente
novo.
Entretanto, foi apropriado que, quando os anjos foram enviados
para investigar o verdadeiro estado do povo, todos se entregaram a
esse pecado detestável. Assim, os perversos, depois de haverem se
deleitado intensamente em sua iniquidade, por fim, avançando furio-
samente, aceleraram sua destruição em um momento. Deus, pois,
decidiu, ao levar os homens de Sodoma à juízo, expor, por assim di-
zer, o ato extremo de sua vida perversa; e os impeliu, pelo espírito
de profunda paixão, a um pecado, cuja atrocidade não permitiu que
a destruição do lugar fosse adiada por mais tempo. Pois como a
hospitalidade do santo homem, Ló, foi honrada com uma distinta re-
compensa, porque ele, não tendo consciência de que recebia anjos,
em vez de homens, e os tinha em sua casa como hóspedes, assim
Deus vingou, com punição mais severa, a vergonhosa luxúria dos
outros; os quais, enquanto se esforçam para abusar dos anjos, eram
não só prejudiciais aos homens, mas, ao máximo de seu poder, com
uma fúria profana, desonraram a glória celestial de Deus.

6. Saiu-lhes, então, Ló à porta, fechou-a após si. A fidelidade


com a qual Ló observava o solene direito de hospitalidade é mani-
festado pelo fato de que saiu e se expôs ao perigo. De fato, era uma
rara virtude que ele preferisse a segurança e honra dos hóspedes, a
quem se comprometeu proteger, à sua própria vida; contudo esse
grau de magnanimidade é requerido dos filhos de Deus, que onde o
dever e a felicidade são devidos, eles não devem ser poupados. E,
embora ele já tivesse gravemente prejudicado pelo cerco de sua
casa, ainda assim se esforça, com palavras gentis, a acalmar a
mente feroz, enquanto suplicantemente roga-lhes que abandonem
sua perversidade, e se dirige a eles usando o título irmãos.
Agora fica claro quão selvagem era a crueldade deles, e quão
violenta era a fúria de sua lascívia, quando não se deixaram como-
ver por nenhum grau de extraordinária brandura. Mas a descrição
de um furor tão brutal ao mesmo tempo nos ensina que não lhes foi
infligida nenhuma punição, até que chegassem ao seu estágio máxi-
mo de perversidade. E lembremo-nos que os réprobos, quando fo-
ram cegados pelo justo julgamento de Deus, se precipitam, como
com mentes devotadas, a todo tipo de crime, e não deixam nada por
fazer, até que se tornem totalmente odiosos e detestáveis a Deus e
aos homens.

8. Tenho duas filhas. Como a constância de Ló em pôr em risco


sua própria vida pela defesa de seus hóspedes merece não elogio
comum, então agora Moisés relata que um defeito se misturou com
essa grande virtude, o qual a aspergiu alguma imperfeição. Porque,
sendo destituído de conselho, ele propõe (como é comum em situa-
ções complexas) uma solução ilícita. Ele não hesita prostituir suas
próprias filhas, a fim de restringir a indomável fúria do povo. Mas ele
deveria antes ter suportado mil mortes do que recorrer a tal solução.
Contudo, tais são geralmente as obras de homens santos, visto que
nada que procede deles é tão excelente que não seja imperfeito em
algum aspecto.
De fato, Ló se vê instigado por extrema necessidade; e não se
admira que ele ofereça suas filhas para que fossem abusadas,
quando percebe que está lidando com animais selvagens; contudo,
imprudentemente busca remediar um mal lançando mão de outro.
Eu posso facilmente desculpar alguém por atenuar seu erro; contu-
do, Ló não está isento de culpa, porquanto quis evitar o mal com o
mal. Mas somos, por esse exemplo, advertidos de que, quando o
Senhor nos houver munido com o espírito de fortaleza invencível,
devemos orar para que ele nos governe pelo espírito de prudência,
e que ele jamais permita que sejamos privados de um são juízo e de
uma razão bem regulada. Pois, só assim procederemos corretamen-
te no cumprimento do nosso dever: quando, nas questões comple-
xas, percebermos, com uma mente sóbria, o que é necessário, o
que é lícito e o que é conveniente fazer; então estaremos devida-
mente preparados a enfrentar qualquer perigo. Porque, permitir que
nossa mente se deixe arrebatar de um lado para outro, lançando
mão precipitadamente de perversos conselhos, não é menos perigo-
so do que serem elas agitadas pelo medo. Mas, quando nos encon-
trarmos sem qualquer saída, aprendamos a orar para que o Senhor
nos providencie um escape.
Outros desculpariam Ló por um pretexto diferente, a saber, que
ele sabia que suas filhas não seriam desejadas. Mas não tenho dú-
vida de que, estando disposto a valer-se do primeiro subterfúgio que
lhe ocorresse, desviou-se do caminho certo. Isto, porém, é indiscutí-
vel: embora os homens de Sodoma ainda não tivessem, em termos
expressos, declarado o vil desejo com o qual estavam inflamados,
ainda assim Ló, à luz de seus crimes diários, já havia formado seu
juízo a respeito deles. Se alguém suscitar a objeção de que tal su-
posição é absurda, respondo que, posto que, pelo costume, já havi-
am imaginado que o crime era lícito, a multidão foi facilmente incita-
da por uns poucos instigadores, como é comum acontecer onde não
se mantém nenhuma distinção entre certo e errado. Quando Ló diz:
“porquanto se acham sob a proteção de meu teto”, o significado da
expressão é que eles lhe haviam sido confiados pelo Senhor, e que
ele seria culpado de traição, a menos que se empenhasse a prote-
gê-los.

9. Eles, porém, disseram: Retira-te daí. Que Ló, com todas as


suas súplicas (que nada de mais plausível poderia ser alegado para
abrandar o furor deles) foi severamente ignorado, demonstra a indo-
mável arrogância desse povo. E, em primeiro lugar, ameaçaram
que, se ele persistisse em sua intercessão, o tratariam pior do que
àqueles a quem ele ora defende. Então o censuram com o fato de
que ele, um estrangeiro, assuma a cadeira de juiz. Cada palavra
prova o orgulho com o qual eles se vangloriam. Colocam um homem
em oposição a uma multidão, como se quisesse dizer: “Com que di-
reito tu, sozinho, tens te constituído autoridade sobre toda a cida-
de?”. Em seguida se vangloriam de que, enquanto são nativos, ele
não passa de um estrangeiro. Tal é, em nossa época, a vanglória
dos papistas contra os piedosos ministros da palavra de Deus: ale-
gam contra nós o nosso pequeno número de membros, consideran-
do como sendo uma desonra, em contraste com a grande multidão
deles. Então se orgulham de sua antiga tradição, e afirma que é in-
tolerável que eles sejam reprovados por novos homens. Mas por
mais contumazmente os perversos se esforcem, em vez de se sub-
meterem à razão, saibamos que são exaltados apenas para sua
própria ruína.

10. Os homens, porém, estendendo as mãos. Moisés, uma vez


mais, dá o nome de homens aos que não o eram, mas que se pare-
ciam como tais; pois embora comecem a exercer sua força celestial,
ainda não declaram que são anjos divinamente enviados do céu.
Aqui, porém, Moisés ensina que o Senhor, embora por algum tempo
possa parecer indiferente, enquanto os fiéis se acham envolvidos
em conflitos, jamais se aparta dos seus, mas lhes estende suas
mãos (por assim dizer) no momento crítico. Assim, ao preservar Ló,
ele adia seu auxílio até o limite. Portanto, que nós, com mente sere-
na, esperemos em sua providência; e que intrepidamente sigamos o
que é pertinente à nossa vocação e ao que ele ordena; pois embora
ele possa nos deixar expostos ao perigo, mostrará que jamais nos
esqueceu. Pois vemos que, como Ló fechou a porta de sua casa
para a proteção de seus hóspedes, assim ele é recompensado
quando os anjos não só o recebem de volta, com a porta aberta,
mas, ao contrapor as barreiras do poder divino, impedem que os ho-
mens ímpios se aproximem. Porque (como já disse antes) eles não
lhe propiciaram apenas ajuda humana, mas vieram trazer-lhe assis-
tência, armados com o poder divino.
Considerando que Moisés diz que os homens foram feridos de
cegueira, não o devemos entender como se fossem privados da vi-
são ótica, mas que sua vista se tornara de tal modo opaca, que
nada podiam distinguir. Esse milagre foi mais espantoso do que se
seus olhos fossem arrancados ou inteiramente cegados; porque,
com seus olhos abertos, sentiam como se fossem homens cegos,
vendo, mas sem enxergarem. Ao mesmo tempo, Moisés deseja des-
crever a dura obstinação deles: não acham a porta de Ló e, então,
se cansaram à sua procura; mas, dessa maneira, eles guerreiam fu-
riosamente contra Deus. Isso, contudo, aconteceu não só uma vez,
e nem apenas com os homens de Sodoma, mas se cumpre diaria-
mente nos réprobos, a quem Satanás fascina com tamanha loucura,
que quando feridos pela poderosa mão de Deus, eles continuam em
sua estúpida obstinação a avançar contra ele. E nem precisamos ir
muito longe em busca de um exemplo de tal conduta; vemos com
que tremenda punição Deus visita as errantes concupiscências e,
contudo, o mundo não cessa de apressar-se, com desesperada au-
dácia, para a destruição certa que é posta diante de seus olhos.

12. Tens aqui alguém mais dos teus? Por fim, os anjos declaram
a que propósito vieram e o que estavam prestes a fazer. Pois tão
imensa era a indignidade do último ato desse povo, que Ló então
percebe que era impossível Deus suportá-los por mais tempo. Em
primeiro lugar, eles declaram que vieram para destruir a cidade,
“porque seu clamor se tem aumentado”. Por essas palavras, querem
dizer que Deus fora provocado, não por um só ato de perversidade,
mas que, depois de poupá-los por tanto tempo, agora, por fim, era
quase obrigado, pela imensa quantidade de crimes deles, a descer
para infligir-lhes castigo. Pois é indiscutível que, quanto mais os ho-
mens acumulam pecados, maior a sua perversidade, e mais perto
esta chegará a Deus clamando por vingança.
Portanto, se, por um lado, os anjos testificam que Deus até en-
tão foi longânimo e muito paciente, por outro lado, eles declaram
que resultado aguardam todos aqueles que, havendo acumulado
grande quantidade de culpa, se exaltam diariamente com crescente
audácia, como se (tal como gigantes) estivessem prestes a atacar o
céu. Entretanto, explicam a causa dessa destruição não só para que
Ló renda louvor à justiça e equidade divinas, mas para que ele, sen-
do coagido pelo temor, pudesse apressar mais rapidamente a sua
partida. Porque, tal é a indolência de nossa carne, que lenta e indife-
rentemente nos colocamos para escapar do juízo de Deus, a menos
que sejamos profundamente instigados pelo pavor do juízo. Foi as-
sim com Noé que, alarmado pelo terror do dilúvio, se esforçou para
construir a arca. Entretanto, os anjos inspiram a mente do santo ho-
mem com esperança; para que ele não tremesse ou se deixasse do-
minar pelo temor, e ficasse tão desanimado pelo seu livramento, a
ponto de ser muito lento para escapar. Pois não só prometem que
ele estaria em segurança, mas também concedem, sem que fosse
solicitado, segurança à vida de sua família. E, de fato, ele não deve-
ria ter duvidado sobre sua própria vida, quando viu outros sendo-lhe
graciosamente solícitos, por meio de incontáveis favores.
Contudo, questiona-se: “Por que quis Deus oferecer sua bonda-
de a homens ingratos, pelos quais bem sabia que seria rejeitado?”.
A mesma pergunta pode ser feita com respeito à pregação do evan-
gelho; pois Deus sabia que poucos viriam a ser participantes daque-
la salvação que, no entanto, ordena que fosse oferecida indiscrimi-
nadamente a todos. Dessa maneira, os incrédulos se tornam ainda
mais indesculpáveis, quando rejeitam a mensagem de salvação. En-
tretanto, a principal razão por que a Ló se ordena que pusesse dian-
te de sua própria família a esperança de livramento é para que ele
abraçasse, com maior confiança, o favor oferecido por Deus e,
apressada e rapidamente, se preparasse para partir, não duvidando
de sua própria preservação.
A partir desse relato, infere-se com probabilidade que ele então
não tinha filhos naquela cidade porque, em consequência da exorta-
ção dos anjos, ele imediatamente teria tentado tirá-los dali. Já vimos
previamente que ele possuía um amplo e numeroso grupo de ser-
vos; porém, eles não são mencionados, visto que aqui se registra
somente os homens livres. No entanto, é provável que alguns ser-
vos tenham saído com ele, para levar provisões e alguns objetos.
Porque, de onde suas filhas obtiveram no monte desértico o vinho
que deram a seu pai, a menos que algumas coisas, que Moisés não
menciona, fossem levadas em jumentos, ou camelos, ou carroças?
Contudo era possível que, em uma quantidade tão numerosa de
servos, muitos preferissem perecer com os homens de Sodoma a
serem associados e estarem na companhia de seu senhor, em bus-
ca de segurança. Mas é melhor não especular sobre aquelas coisas
que o Espírito de Deus não quis revelar.

13. O S nos enviou a destruí-lo. Esse verso nos ensina que


os anjos são ministros da ira e também da graça de Deus. Também
não se constitui objeção a essa afirmação o fato de que, em outro
lugar, a segunda tarefa seja peculiarmente atribuído aos santos an-
jos, como quando o apóstolo diz que foram designados para a sal-
vação daqueles a quem Deus adotou como filhos [Hb 1.14]. E, em
vários lugares, a Escritura testifica que a guarda dos piedosos lhes
está confiada [Sl 91.11]; enquanto que, por outro lado, declara-se
que Deus executa seus juízos pela instrumentalidade dos anjos ré-
probos [Sl 78.49]. Pois é indiscutível que Deus faz com que seus an-
jos eleitos presidam sobre aqueles juízos que ele executa por meio
dos anjos réprobos. E seria absurdo atribuir aos demônios a honra
de presidir sobre os juízos de Deus, posto que eles não lhe rendem
obediência voluntária, mas, antes, enquanto se enfurecem contu-
mazmente contra ele, ainda assim são relutantemente compelidos a
se tornarem seus executores. Portanto, devemos estar cientes de
que não é estranho ao ofício dos anjos eleitos descerem armados
com o propósito de executar a vingança divina e de infligir punição.
Como os anjos do Senhor destruíram, numa só noite, o exército de
Senaqueribe que sitiava Jerusalém [2Rs 19.35], assim também o
anjo do Senhor apareceu a Davi com sua espada desembainhada,
enquanto a furiosa pestilência se espalhava entre o povo [2Sm
24.16]. Mas, como eu já disse, os anjos repetem o que disseram
previamente a Abraão a respeito do clamor de Sodoma, com o intui-
to de mais urgentemente impelir a Ló a sentir aversão pelo lugar, a
fugir, e o induzisse, pelo temor da ira de Deus, a buscar segurança.
14. Então, saiu Ló. A fé do santo homem, Ló, se manifestou primei-
ramente nisto: que ele se mostrou completamente temeroso e humi-
lhado ante a ameaça de Deus; segundo, que, em meio à destruição,
se agarrou à salvação que lhe fora prometida. Ao convidar seus
genros a se unirem a si, ele manifesta aquela diligência que convém
aos filhos de Deus, que devem labutar, por todos os meios, para
resgatar da destruição sua própria família. Mas, quando Moisés diz
“Acharam, porém, que ele gracejava com eles”, o significado é que o
piedoso e velho homem foi desprezado e ridicularizado, e que o que
ele dizia foi tomado como fábula; porque seus genros presumiram
que ele fora tomado de delírio, e de maneira vã arquitetava perigos
imaginários. Ló, portanto, não parecia zombar intencionalmente de-
les, ou ter ido procurá-los com o intuito de brincar; mas eles consi-
deravam sua linguagem semelhante a das fábulas, porque, onde
não existe religião e não há o temor de Deus, tudo o que for dito
concernente à punição dos perversos se desvanece como uma coi-
sa vã e ilusória.
Disso percebemos quão fatal é uma falsa segurança que de tal
modo inebria, sim, fascina a mente dos ímpios, que já nem pensam
que Deus está sentado no céu como Juiz; e assim estupidamente
cochilam no pecado, até que, enquanto dizem: “Paz e segurança”,
sejam esmagados com súbita ruína. E, especialmente, quanto mais
perto está a vingança de Deus, mais sua obstinação aumenta e se
tornam sem esperança. Nada há mais cheio de temor, e até mesmo
de terror, do que aquilo que os homens perversos sentem quando a
mão de Deus os cerca de perto. Mas, até mesmo quando, constran-
gidos pela força, percebem que sua destruição é iminente, eles re-
jeitam todas as ameaças com orgulhoso desprezo, ou desdenhosa-
mente as ignoram. Mas tal indolência deveria nos despertar para o
temor de Deus, para que possamos ser sempre cuidadosos; porém,
mais especialmente quando alguns sinais da ira divina se apresen-
tam diante de nós.

15. Ao amanhecer, os anjos apertaram com Ló. Tendo elogiado a


fé e piedade de Ló, Moisés mostra que algo carnal ainda lhe marca-
va; porque os anjos o apressavam, enquanto ele demorava. A causa
de sua morosidade poderia ser que imaginasse que estava indo
para o exílio; assim uma infinidade de cuidados e temores perturba
sua mente ansiosa. Pois ele passa a ter dúvida sobre o que lhe su-
cederia, como fugitivo, quando, tendo deixado sua casa e pertences,
sem nada e carente, deveria recomeçar tudo em algum lugar deser-
to. Entretanto, ele não acredita que deveria agir como pessoas náu-
fragas que, para chegarem seguras no porto, lançam ao mar suas
cargas e tudo quanto possuem. De fato, ele não duvida que Deus
esteja falando a verdade, nem se recusa a mudar-se para outro lu-
gar, como lhe fora ordenado fazer; mas, como se estivesse afundan-
do em sua própria enfermidade e embaraçado com muitas redes,
ele, que deveria ter corrido o mais depressa possível e sem demora,
se move com passos lentos e hesitantes.
No entanto, na pessoa de Ló, o Espírito de Deus nos apresenta,
como num espelho, nossa própria indolência, para que, lançando
fora toda preguiça, aprendamos a nos preparar para pronta obediên-
cia, assim que a voz celestial soar em nossos ouvidos; se isso não
ocorrer, além da indolência que, por natureza, habita em nós, Sata-
nás interporá muitas delongas. A fim de estimular Ló de modo mais
efetivo os anjos infundem temor para que ele não fosse destruído na
iniquidade ou na punição da cidade. Pois a palavra (ayon) signifi-
ca ambas as coisas. Não que o Senhor precipitadamente equipare o
inocente aos perversos, mas porque o homem que não buscar sua
própria segurança, e que, mesmo sendo advertido a se precaver, se
expõe, por sua indolência, à ruína, de fato merece perecer.

16. Como, porém, se demorasse, pegaram-no os homens pela


mão. Inicialmente, os anjos, instaram Ló com palavras; agora, to-
mando-o pela mão, e de fato com aparente violência, o obrigam a
partir. Sua demora é realmente surpreendente, visto que, embora
certamente estivesse persuadido de que os anjos não ameaçavam
em vão, ainda assim não conseguia mover-se, por nenhuma persua-
são verbal, até que fosse arrastado da cidade pelas mãos dos anjos.
Cristo diz: “Vigiai e orai, para que não entreis em tentação; o
espírito, na verdade, está pronto, mas a carne é fraca” [Mt 26.41].
Com essas palavras, uma falha pior é apontada; porque a carne,
com sua indiferença, de tal modo reprime a vivacidade do espírito,
que, com lenta hesitação, dificilmente pode seguir avante. E, de
fato, como a nossa própria experiência nos dá testemunho desse
mal, os fiéis devem se empenhar, com máxima prontidão, por estar
preparados para seguir a Deus, e também para ter o cuidado de não
agir como se estivessem surdos e assim desprezar as suas amea-
ças. E, realmente, eles nunca insistirão, diligente e esforçadamente,
a ponto de não retardarem mais do que o suficiente para cumprirem
o seu dever. Pois o que Moisés diz é digno de atenção: que o Se-
nhor teve misericórdia de seu servo, quando, tendo segurado a mão
de Ló através dos anjos, o tirou às pressas da cidade. Pois às vezes
é necessário sermos arrancados à força daquele cenário que não
conseguimos voluntariamente abandonar. Se riquezas, ou honras,
ou quaisquer outras coisas desse tipo se tornarem obstáculo a al-
guém, tornando-o descomprometido e desengajado no serviço de
Deus, quando sucede uma diminuição de sua fortuna, ou for rebai-
xado a um posto menor, que o mesmo saiba que o Senhor lhe segu-
rou a mão, porque palavras e exortações não foram suficientes para
lhe convencer.
Portanto, devemos considerar que aqueles males, cuja instru-
ção não é eficaz o bastante para corrigi-los, devem ser curados com
remédios mais fortes. Moisés parece ainda ressaltar algo maior, a
saber, que a misericórdia de Deus lutava contra a indolência de Ló;
porque, se fosse entregue a si mesmo, teria, pela demora, trazido
sobre a sua própria cabeça a destruição que se aproximava. Contu-
do, o Senhor não só o perdoa, mas, estando decidido a salvá-lo, o
segura pela mão e o arrasta para fora, mesmo com resistência.

17. Livra-te, salva tua vida. Isso foi acrescentado por Moisés para
nos ensinar que o Senhor não apenas nos estende sua mão por um
momento, a fim de dar início à nossa salvação, mas que, sem deixar
sua obra imperfeita, ele a levará até o fim. Certamente não foi um
ato comum da graça, o fato de que a ruína de Sodoma foi predita ao
próprio Ló, para que ela não lhe sobreviesse de surpresa; e, que
uma firme esperança de salvação foi dada pelos anjos; e, finalmen-
te, que ele foi conduzido pela mão para fora do perigo. Contudo, o
Senhor, não satisfeito com haver-lhe concedido tantos favores, lhe
informa do que mais tarde estava para fazer, e assim prova ser ele o
guia de sua vida, até que Ló chegasse ao abrigo seguro.
Ló estava proibido de olhar para trás para que ele soubesse
que estava deixando para trás uma morada pestilenta. Isso foi feito,
primeiramente, para que ele não cedesse a nenhum desejo e, pos-
teriormente, pudesse refletir sobre a singular bondade de Deus, pela
qual havia escapado do inferno. Moisés já havia dito quão fértil e
rica era aquela planície; Ló agora é ordenado a sair dali, para que
percebesse que foi libertado, como que do meio de um naufrágio. E
embora, enquanto habitava em Sodoma, seu coração se visse conti-
nuamente atormentado, e dificilmente era possível que evitasse con-
trair alguma mácula de um esgoto de perversidade tão profundo, es-
tando agora, pois, prestes a ser purificado pelo Senhor, ele é priva-
do daqueles deleites nos quais tivera muito prazer deleite. Aprenda-
mos, pois, que Deus faz melhor provisão para nossa salvação quan-
do elimina aquelas superfluidades que servem ao deleite da carne; e
quando, com o propósito de corrigir a excessiva autoindulgência, ele
nos bane de uma doce e agradável planície, para uma montanha
deserta.

18. Respondeu-lhes Ló. Agora outra falha de Ló é censurada, por-


que ele simplesmente não obedece a Deus, nem se permite ser pre-
servado de acordo com a vontade divina, mas cria um novo método
próprio. Deus lhe designa um monte como seu futuro lugar de refú-
gio, ele, porém, escolhe para si uma cidade. Estão, pois, equivoca-
dos todos os que exaltam sua fé, a ponto de considerarem ser esse
um perfeito exemplo de oração adequada; pois o objetivo de Moisés
é antes ensinar que a fé de Ló não era inteiramente pura e isenta de
todos os defeitos. Porque isto deve ser mantido como um axioma:
que nossas orações são falhas à medida que elas não estão funda-
das na palavra. Ló, porém, não apenas se afasta da palavra, mas ri-
diculamente se coloca em oposição à palavra; certamente que essa
importunidade não se afina com a fé.
Mais adiante, uma súbita mudança de mente veio a ser a puni-
ção de sua tola cupidez. Pois assim necessariamente vacila todo
aquele que não se submete a Deus. Tão logo concretizam um dese-
jo, imediatamente se produz uma nova inquietação, a qual os impele
a mudar de opinião. Em suma, pois, é preciso dizer que, ao desejar
uma cidade como sua residência, Ló não está de modo algum isento
de culpa, pois ele tanto se coloca em oposição à ordem divina, a
qual era seu dever obedecer, como deseja permanecer entre aque-
les prazeres dos quais lhe era proveitoso se afastar. Ele, portanto,
age precisamente como uma pessoa enferma que se recusa a fazer
uma operação, ou se nega a tomar uma maior dosagem do remédio
que seu médico prescrevera.
Entretanto, não estou supondo que a oração de Ló era total-
mente destituída de fé; prefiro pensar que, embora ele tenha recusa-
do o caminho reto, não apenas não se afastou dela, mas estava
completa e conscientemente decidido a manter essa decisão. Pois
ele sempre dependeu da palavra de Deus; mas nesse particular, a
saber, ao suplicar que lhe fosse dado um lugar, que já lhe tinha sido
negado, ele não dependeu dela. Assim, alguma mistura impura e
confusa é às vezes encontrada com os piedosos desejos dos ho-
mens santos. Entretanto, não ignoro que algumas vezes se veem
constrangidos, por um notável impulso do Espírito, a aparentemente
afastar-se da palavra, porém, sem realmente transgredirem seus li-
mites. Mas a imoderada afeição carnal de Ló trai a si próprio, visto
que ele é envolvido por aqueles mesmos deleites que deveria ter
evitado. Além disso, sua inconstância é uma prova de sua impru-
dência, porque ele logo se ressente do que fez.

19. Eis que o teu servo achou mercê diante de ti. Embora Ló vis-
se duas pessoas, ele dirige seu discurso só a uma. Disso inferimos
que ele não confiava nos anjos, porque estava convencido de que
eles não tinham autoridade própria, e que sua salvação não foi colo-
cada nas mãos deles. Portanto, Ló não considera a presença dos
anjos de outro modo, senão como um espelho no qual a face de
Deus pode ser contemplada. Além disso, ele celebra a bondade de
Deus não tanto para testificar sua gratidão, mas para adquirir maior
confiança para pedir mais. Porque, visto que a bondade de Deus
não se esgota nem se cansa em doar, quanto mais pronto o acha-
mos em dar, mais confiantes ficamos em esperar pelo que é bom. E
isto é realmente uma característica da fé: encorajar o futuro, com
base na experiência do favor dado no passado. E Ló não falha nes-
se ponto; porém, age precipitadamente, indo além da palavra para
agradar ao seu ego. Por isso que digo que sua oração, embora fluís-
se da fonte da fé, ainda continha algo turvo do lamaçal da afeição
carnal. Então, confiemos no favor de Deus e não hesitemos em es-
perar dele todas as coisas, especialmente aquelas que ele mesmo
prometeu, e as que ele nos permite escolher.
Não posso escapar no monte. De fato, Ló não se ira de modo
malicioso e deliberado contra Deus, como costumam fazer os per-
versos; contudo, porque não descansa na palavra de Deus, ele res-
vala e quase cai. Pois, por que ele teme a destruição no monte,
onde estaria protegido pela mão de Deus, e, no entanto, espera
achar naquela região uma morada segura, que ficava perto de So-
doma e estava sujeita a juízo similar, em razão de seus impuros e
perversos habitantes? Mas é próprio da natureza humana preferir
buscar sua segurança no próprio inferno, a buscá-la no céu, sempre
que seguem sua própria razão. Vemos, pois, quão gravemente Ló
falha, vendo e desconfiando de uma montanha que não estava in-
fectada com nenhum contágio de iniquidade, e preferindo uma cida-
de que, transbordando de pecados, não poderia senão ser odiada
por Deus. Ele diz que ela é bem pequena, para que seu pedido pu-
desse ser atendido mais facilmente. Como se ele dissesse que ape-
nas queria um canto onde pudesse ter um refúgio seguro. Isso teria
sido certo, se ele não rejeitasse o abrigo que lhe foi divinamente
concedido, e imprudentemente tivesse inventado para si outro.

21. Quanto a isso, estou de acordo. Alguns ignorantemente argu-


mentam, com base nessa expressão, que a oração de Ló foi agra-
dável a Deus, porque este concordou com o seu pedido e lhe deu o
que buscava. Pois, não é novidade que o Senhor algumas vezes
concede, por benevolência, o que, no entanto, ele não aprova. E ele
agora concede a Ló, mas de um modo tal que logo depois corrige
sua insensatez. No entanto, visto que Deus amável e bondosamente
suporta os maus desejos de seu próprio povo, o que ele não fará
por nós se nossas orações forem guiadas conforme a direção pura
de seu Espírito, e forem baseadas na sua palavra? Mas depois que
o anjo lhe concede seu desejo com respeito ao lugar, novamente re-
prova a indolência de Ló, exortando-o a que se apressasse.
22. Nada posso fazer. Visto que não só fora enviado como um vin-
gador para destruir Sodoma, mas também recebera ordem para pre-
servar Ló, o anjo, pois, declara que não realizará o primeiro ato, a
menos que o segundo também seja realizado; porque não está no
poder do servo separar aquelas coisas que Deus uniu. Contudo, não
estou insatisfeito com a explicação de alguns que supõem que o
anjo se expressa assim porque fala com a autoridade de Deus. Pois,
embora a linguagem seja aparentemente áspera, ainda assim não
há absurdo algum em dizer que Deus não podia destruir o réprobo
sem salvar seu eleito. Nem devemos, portanto, considerar que seu
poder é ilimitado, quando ele é a sua própria necessidade, ou que
sua liberdade e autoridade sejam diminuídas, quando espontânea e
livremente assume uma obrigação. E lembremo-nos especialmente
que seu poder está ligado por um sagrado vínculo à sua graça, do
mesmo modo que a fé está ligada à suas promessas. Por isso,
pode-se, verdadeira e apropriadamente, dizer que Deus não pode
fazer nada além do que deseja e promete. Essa é uma doutrina ge-
nuína e proveitosa. Contudo, haverá menos espaço para dúvidas,
se atribuirmos a passagem aos anjos; os quais tinham um manda-
mento positivo, do qual não lhes era lícito nada alterar.

24. Então, fez o Senhor chover. Aqui, Moisés relata sucintamente,


e em linguagem simples, a destruição de Sodoma e das demais ci-
dades. A atrocidade do caso bem que poderia exigir uma narrativa
muito mais extensa, expressa em termos dramáticos; Moisés, po-
rém, de acordo com seu estilo, simplesmente registra o juízo de
Deus, o qual nenhuma palavra seria suficientemente forte para des-
crever, e depois deixa o tema à reflexão de seus leitores. Portanto, é
nosso dever considerar essa terrível vingança que, pelo fato de ela
ter ocorrido por meio de uma poderosa concussão do céu e da terra,
sua simples menção deve – com razão – nos fazer tremer e, por
isso, ela é frequentemente mencionada nas Escrituras. E a vontade
de Deus não era que aquelas cidades fossem simplesmente traga-
das por um terremoto; mas para tornar o exemplo de seu juízo ainda
mais evidente, ele lançou sobre elas, do céu, fogo e enxofre. Sobre
isso, Moisés diz que “fez o S chover enxofre e fogo, da parte
do S .”. A repetição é enfática, porque o Senhor não fez cho-
ver de modo ordinário e natural; mas, como se estivesse com a mão
estendida, ele fulmina abertamente, de uma maneira que não era
seu costume fazer, com o propósito de deixar suficientemente claro
que essa chuva de fogo e enxofre não foi produzida por causas na-
turais. De fato, é verdade que o ar nunca é agitado por acaso; e que
Deus deve ser reconhecido como o Autor mesmo da menor gota de
chuva; e é impossível desculpar a profana sutileza de Aristóteles
que, quando disputa tão perspicazmente sobre as causas secundá-
rias, em seu livro Sobre os Meteoros, sepulta o próprio Deus em
profundo silêncio. Aqui, contudo, Moisés nos recomenda expressa-
mente a extraordinária obra de Deus, com o objetivo de nos informar
que Sodoma não foi destruída sem um manifesto milagre.
Os antigos se esforçaram para extrair uma prova da Deidade de
Cristo a partir desse testemunho, mas ela de modo algum é conclu-
siva. E, em minha opinião, se irritam sem qualquer motivo quem
censura severamente os judeus, só porque estes não aceitam esse
tipo de evidência. De fato, confesso que Deus sempre age pela mão
de seu Filho, e não tenho dúvida de que o Filho presidia sobre um
exemplo de vingança tão memorável; digo, porém, que raciocina in-
conclusivamente quem, disso, infere uma pluralidade de Pessoas,
enquanto que o objetivo de Moisés era elevar as mentes dos leitores
a uma contemplação mais vívida da mão de Deus.
Quanto à questão que frequentemente se coloca acerca dessa
passagem sobre “o que fizeram as criancinhas para que mereces-
sem ser tragadas na mesma destruição com seus pais”, a solução
do problema é fácil, a saber, que a raça humana está na mão de
Deus, de modo que ele pode condenar à destruição a quem quer, e
pode conceder sua mercê a quem quiser. Novamente, tudo o que
não podemos compreender pela limitada medida de nosso entendi-
mento, deve ser submetido ao seu juízo secreto. Finalmente, toda
aquela semente era maldita e abominável, de modo que Deus não
podia com justiça poupá-la, mesmo o menor dentre eles.

26. E a mulher de Ló olhou para trás. Moisés aqui registra o mara-


vilhoso juízo de Deus, pelo qual a esposa de Ló foi transformada
numa estátua de sal. Mas sob o pretexto desta narrativa, homens
capciosos e perversos ridicularizam a Moisés; porque, visto que,
para eles, essa metamorfose sofrida pela mulher do Ló não era mais
verdadeira do que aquelas que Ovídio inventou, então se orgulham
de que ela não é merecedora de crédito. Eu, porém, suponho que
foi pelo artifício de Satanás que Ovídio, por fábulas frívolas, indireta-
mente lançou descrédito sobre essa magistral prova da vingança di-
vina. Mas o que quer que agrade aos pagãos inventar, não nos inte-
ressa. Importa apenas considerar se a narrativa de Moisés contém
algo de absurdo ou inacreditável. Primeiramente, eu pergunto: visto
que Deus criou os homens do nada, por que ele não pode, se julgar
adequado, reduzi-los novamente a nada? Caso isso seja admitido,
como deve ser, por que, caso o queira, ele não pode transformá-los
em pedras? Sim, aqueles excelentes filósofos que exibem sua pró-
pria agudeza em denegrir o poder de Deus, diariamente contem-
plam grandiosos milagres no curso da natureza. Pois como o cristal
adquire sua dureza? E – para não se referir a exemplos raros –
como o animal vivo é gerado de semente “sem vida”? Como as aves
são produzidas de ovos? Por que, então, um milagre lhes pareceria
ridículo, nesse único exemplo, quando se veem obrigados a reco-
nhecer inumeráveis exemplos de um tipo similar? E como podem
eles, que consideram ser inconsistente que o corpo de uma mulher
se converta numa massa de sal, crer que a ressurreição restaurará
à vida um cadáver reduzido à putrefação?
Entretanto, quando se diz que a esposa de Ló foi convertida
numa estátua de sal, não imaginemos que sua alma tenha se trans-
formado em sal; pois não se deve duvidar que ela exista para parti-
cipar conosco da mesma ressurreição, embora tenha sido submeti-
da a um tipo incomum de morte, para que viesse a ser um exemplo
a todos. Entretanto, não presumo que Moisés tivesse em mente que
a estátua tivesse o sabor do sal; mas que tivesse algo notável a ad-
moestar os que por ali passasse. Portanto, era necessário que algu-
mas marcas ficassem impressas nela, pelas quais todos soubessem
que ali houve um prodígio memorável. Outros interpretam a estátua
de sal como sendo algo incorruptível, que durasse para sempre;
mas a exposição anterior é melhor.
Pode-se agora perguntar: por que o Senhor puniu tão severa-
mente a imprudência da desditosa mulher, visto que ela não olhou
para trás movida pelo desejo de regressar a Sodoma? Quem sabe,
estando ainda duvidosa, ela quisesse ter evidência mais indubitável
diante dos olhos; ou, poderia ser que, apiedando-se do povo que
perecia, volveu seus olhos naquela direção. Certamente Moisés não
diz que ela relutou intencionalmente contra a vontade de Deus, mas,
posto que o livramento dela e de seu esposo fosse um incomparável
exemplo da compaixão divina, era justo que sua ingratidão fosse as-
sim punida. Ora, se pesarmos todas as circunstâncias, é evidente
que sua falha não foi leve. Primeiro, o desejo de olhar para trás pro-
cedeu da incredulidade; e não se pode fazer maior injúria a Deus do
que quando não se crer na sua palavra. Segundo, inferimos das pa-
lavras de Cristo que ela foi movida por algum desejo mau [Lc 17.32]
e que não deixou alegremente Sodoma para, de pressa, ir ao lugar
para onde Deus a chamou, pois sabemos que ele nos ordena a lem-
brar-nos da esposa de Ló, para que, de fato, as seduções do mundo
não nos afastem da meditação sobre a vida celestial.
Portanto, é provável que ela, sentindo-se descontente com o fa-
vor que Deus lhe havia concedido, se apegasse a desejos ímpios,
dos quais sua demora também era um sinal; pois Moisés registra
que ela seguia seu marido, quando diz que ela olhou para trás, es-
tando atrás dele; porque ela não olhou para trás para vê-lo, mas
porque, pela lentidão de seus passos, ela avançava menos, por isso
ficou atrás dele. E embora não seja lícito afirmar qualquer coisa a
respeito de sua salvação eterna, é provável que Deus, tendo infligi-
do punição temporal, lhe tenha poupado a alma; posto que ele às
vezes castiga seu povo na carne, para que sua alma seja salva da
destruição eterna. Contudo, visto que saber disso não é relevante e
que podemos sem prejuízo permanecer sem sabê-lo, atentemos an-
tes para o exemplo que Deus aponta para o benefício comum de to-
dos os tempos. Se a severidade da punição nos aterroriza, lembre-
mo-nos que hoje peca não menos gravemente quem, sendo liberto,
não de Sodoma, mas do inferno, fixa seus olhos em algum outro ob-
jeto além do prêmio proposto de sua sublime vocação.

27. Tendo-se levantado Abraão de madrugada. Agora Moisés se


volta para Abraão e mostra que ele de modo algum negligenciou o
que tinha ouvido dos lábios do anjo; pois ele relata que Abraão veio
para o lugar de onde poderia ver o juízo de Deus. Não devemos
suspeitar que (como acabamos de dizer acerca da esposa de Ló)
ele confiava mais em seus próprios olhos do que na palavra de
Deus; e que ele veio examinar porque nutrisse alguma dúvida. Mas,
antes, preferimos inferir, à luz do texto, que ele, estando já convenci-
do de que o anjo não falara em vão, buscou confirmação pela pró-
pria contemplação do evento; tal confirmação seria útil tanto para si
quanto para a sua posteridade. E não se deve ter dúvida de que, du-
rante toda a noite, ele sofreu severa angústia acerca da segurança
de seu sobrinho Ló.
Se ele se tranquilizou sobre esse ponto, não sabemos; contudo
me inclino mais para a hipótese de que ele permaneceu ansioso so-
bre ele. E é possível que, hesitando entre a esperança e o medo,
ele fosse ao encontro de Ló para poder ver se ele tinha ou não es-
capado. E, embora ele nada contemple além de fumaça, a qual ge-
ralmente permanece após um grande fogo, este sinal lhe é dado da
parte do Senhor, para ser testemunho à posteridade, de uma puni-
ção tão memorável. De fato, Deus designou que na própria aparên-
cia do lugar um monumento de sua ira existisse para sempre; mas
porque, pela prontidão do mundo em lançar dúvida sobre o juízo de
Deus, era possível facilmente crer que o lugar sempre foi assim des-
de o princípio, ou que a mudança ocorreu acidentalmente, ao Se-
nhor aprouve mostrar seu ato de vingança diante dos olhos de Abra-
ão, para que ele pudesse cumprir o ofício de arauto para a posteri-
dade.

29. Lembrou-se Deus de Abraão. Embora Moisés não afirme que


o livramento de seu sobrinho Ló foi dado a conhecer a Abraão, visto
que ele diz que Ló fora salvo da destruição por amor a Abraão, é
provável que este não fosse privado daquela consolação que ele
mais precisava, e que ele estava cônscio do benefício, pelo qual ele
voltou para dar graças. Se a alguém parece absurdo que o santo
homem Ló fosse considerado por causa de outro, como se o Senhor
não levasse em conta sua própria piedade, minha resposta é que
estas duas coisas se harmonizam bem entre si: (1) que o Senhor,
uma vez que ele sempre ajuda o seu próprio povo, cuidava de Ló, a
quem escolhera e a quem ele governava através de seu Espírito; e,
no entanto, ao mesmo tempo, (2) mostraria, na preservação de sua
vida, o quanto amava a Abraão, a quem não só concedeu proteção
pessoal, mas também o livramento de outros. Contudo, é oportuno
observar que, o que o Senhor faz gratuitamente – induzido por ne-
nhuma outra causa além de sua própria bondade – é atribuído à pie-
dade ou às orações dos homens, por esta razão: para que sejamos
incitados a prestar culto a Deus e orar somente a ele.
Já vimos, um pouco antes, quão misericordioso Deus provou
ser, ao preservar Ló; e, realmente, ele não teria perecido, mesmo se
não fosse sobrinho de Abraão. Entretanto, Moisés diz que Ló não foi
consumido pela mesma destruição juntamente com Sodoma, por
causa de um favor outorgado a Abraão. Mas, se o Senhor estendeu
o favor que outorgara a seu servo, também ao sobrinho, que agora
era um estrangeiro para sua família, quanto mais confiantemente
deve cada um dos fiéis esperar que a mesma graça de modo algum
esteja ausente de sua própria casa! E se o Senhor, quando nos fa-
vorece, abraça outros que estão ligados a nós, por nossa causa,
quanto mais consideração terá para conosco!
Ao dizer que Ló habitou naquelas cidades, usa-se a figura de si-
nédoque, que expressa o todo por uma parte; mas ela é expressa-
mente empregada para tornar o milagre ainda mais célebre; porque
ele só ocorreu pela singular providência de Deus, a saber, enquanto
cinco cidades eram destruídas, apenas uma pessoa escaparia.

30. Ló subiu de Zoar. Essa narrativa prova aquilo que eu disse an-
teriormente, a saber, que aquelas coisas que os homens inventam
para si mesmos, mediante conselhos imprudentes, extraídos da ra-
zão carnal, nunca prosperam; especialmente quando os homens,
iludidos por vã esperança, ou impelidos por desejos depravados, se
apartam da palavra de Deus. Pois, embora a princípio a imprudência
geralmente aparente ter sucesso, e que aqueles que são levados
por suas concupiscências exultam no jubiloso resultado dos negóci-
os, contudo o Senhor, por fim, amaldiçoa tudo quanto não é em-
preendido com sua aprovação; nisso se cumpre a declaração de
Isaías: “Ai dos filhos rebeldes, diz o Senhor, que executam planos
que não procedem de mim, e fazem aliança sem minha aprovação,
para acrescentarem pecado sobre pecado!” [Is 30.1].
Ló, quando ordenado a ir para o monte, preferiu habitar em
Zoar. Depois de se lhe conceder essa habitação, segundo seu pró-
prio desejo, logo se arrepende e se entristece, porquanto treme ao
pensar que a destruição está a cada momento mais perto de um lu-
gar tão próximo de Sodoma, onde, provavelmente, reinavam a mes-
ma impiedade e perversidade. Mas que os leitores lembrem-se do
que eu já disse: que só foi pela maravilhosa bondade de Deus que
ele não recebeu punição imediata ou muito severa. Pois o Senhor,
mesmo o perdoando naquele momento, fez com que Ló finalmente
se tornasse juiz de seu próprio pecado. Pois ele não foi expulso de
Zoar pela força, nem pela mão humana; mas uma cega ansiedade
mental o arrastou e o lançou numa caverna, por haver seguido o de-
sejo de sua carne, em vez do mandamento de Deus. E assim, ao
castigar os fiéis, Deus ameniza sua punição, com o objetivo de con-
vertê-la em seu melhor remédio. Pois se ele fosse tratar estritamen-
te com a insensatez deles, cairiam em total confusão. Deus, pois,
lhes dá espaço para arrependimento, para que voluntariamente re-
conheçam seu erro.

31. Então, a primogênita disse. Aqui Moisés narra um milagre que,


com razão, deixa os leitores atônitos. Pois, como seria possível que
uma relação sexual tão promíscua passasse pela mente das filhas
de Ló, enquanto a terrível punição de Deus contra os sodomitas ain-
da era viva diante de seus olhos, e enquanto bem sabiam que as
escandalosas e pecaminosas concupiscências eram as causas prin-
cipais disso? Realmente, elas eram movidas nem tanto pelo desejo
sexual como eram pelo desejo incontrolável de procriação da sua fa-
mília; contudo, esse desejo era demasiadamente absurdo, porque
obriga a natureza a ignorar toda castidade e senso de pudor e,
como os animais irracionais, a destruir toda diferença entre escân-
dalo e honradez. Para entender melhor a totalidade do problema,
tratarei as partes separadamente e em ordem.
Em primeiro lugar, com respeito ao plano da primogênita de Ló,
a quem a mais jovem obedeceu, admito que nenhuma delas é moti-
vada pelo desejo carnal, senão que ambas apenas têm em mente a
propagação da família. Pois, que tipo de paixão teria sido essa, que
deseja manter relação sexual com um pai já idoso?
A mais velha se chega dissimuladamente, mas só por uma noi-
te, e, na noite seguinte, coloca a sua irmã em seu lugar; então, uma
vez engravidadas, já não pensam em deitar novamente com seu
pai; desse fato concluímos, em segundo lugar, que elas não tiveram
outro objetivo senão o de se tornarem mães. Eu, porém, não con-
cordo com os que supõem que elas foram enganadas por um gran-
de erro, ao pensarem que o mundo inteiro havia perecido juntamen-
te com Sodoma. Porque, elas tinham acabado de habitar em Zoar, e
havia também regiões aprazíveis diante de seus olhos, as quais cer-
tamente estavam habitadas, e também aprenderam com seu pai
que uma punição especial foi infligida aos sodomitas e outros vizi-
nhos. Elas também tinham conhecimento da família da qual viera
seu pai e que tipo de tio ele seguira desde sua pátria natal. Portanto,
qual deve ser nossa conclusão? Nossa conclusão deve ser esta:
porque estavam certas de que as famílias são sustentadas pelos fi-
lhos, e era não apenas difícil para elas, mas também uma contínua
causa de tristeza, o fato de estarem sem filhos.
Além disso, o vazio que traria a morte de seu pai poderia ser
para elas insuportável, pois viam que então viveriam sozinhas e sem
qualquer amparo. Por isso, o despudorado desejo delas e a absurda
urgência de procurar essa relação sexual impura, uma vez que temi-
am uma vida solitária, que era passível de muitas preocupações.
Também não tenho dúvida de que Moisés não narra o que elas usa-
ram como pretexto, e sim o que disseram proveniente do sincero
sentimento de seus corações. Portanto, elas queriam gerar descen-
dente, conforme o costume de todas as nações. Elas tomaram o
exemplo de todo o mundo, porque considerariam injusto que seu es-
tado fosse então pior que o dos demais.
Em toda parte, dizem alguns, é louvável que jovens tenham fi-
lhos e, assim, edifiquem famílias; por que, pois, devemos condená-
las a não terem filhos? Entretanto, elas sabiam muito bem que esta-
vam cometendo um grande pecado. Pois, qual a razão de embriaga-
rem a seu pai? Não seria porque presumiram que ele não estaria
disposto a aceitar tal coisa? Enquanto ele sente aversão pela impu-
reza sexual, as filhas, necessariamente, deveriam ter a mesma no-
ção em sua consciência. Portanto, de modo algum elas devem ser
justificadas por propiciarem uma escandalosa relação sexual, pela
qual todas as nações, considerando a ordem da natureza, abomi-
nam.
Embora as pessoas, que praticam pequenos delitos sejam for-
çadas a admitir seus crimes, como elas se defenderão de crimes
graves, como se nenhum temor do juízo de Deus as incomodasse?
Portanto, suprimindo a consciência, as filhas de Ló se entregam a
esse pecado. A razão para enganar a seu pai não era outra senão
que elas tinham ciência da desgraça, a qual, necessariamente, elas
mesmas tinham que condenar, porque bem sabiam que isso era
contra a ordem da natureza. Disso fica evidente que rumo as pesso-
as tomam quando seguem sua própria vontade; pois nada pode ser
tão absurdo ou bestial do que não evitarmos nossa ruína quando
não impomos limites à nossa carne. Portanto, que este seja o princí-
pio de todos os nossos desejos: examinar o que o Senhor permite,
para que não penetre nossa mente buscar algo senão o que, segun-
do a sua Palavra, nos é permitido.
E não há homem na terra. Elas não tinham em mente que to-
das as nações foram destruídas, como muitos expositores supõem;
mas porque, movidas pelo medo, se refugiam na caverna e vivem
uma vida solitária, se queixam de não terem qualquer esperança de
casamento. Sim, estando isoladas do resto das nações, passaram a
viver como se fossem enviadas a algum mundo separado. Alguém
poderia objetar que elas poderiam pedir que seu pai lhes desse ma-
ridos; a isso respondo que não era absolutamente impossível que
elas, mesmo vencidas pelo medo, não pudessem buscar outra solu-
ção que lhes estivesse ao alcance. Pois criam que naquele monte
solitário estavam encerradas na cova de uma rocha e já não tinham
a menor conexão com a raça humana. Poderia ser (como eu recor-
dei anteriormente) que habitassem com elas alguns escravos. Isso é
até mesmo provável, pois de outro modo seria difícil ter vinho na ca-
verna, quando este não foi trazido com elas juntamente com outros
alimentos. Contudo, dizem que não há maridos para elas, já que nu-
trem aversão por um casamento com escravos.
Além do mais, tenho em vista que o nome terra, na primeira
sentença, indica uma região ou área, como se quisessem dizer: já
não há nesta região nenhum homem que possa unir-se conosco em
casamento, segundo o costume de todo o mundo. Pois existe aqui
um tácito contraste entre toda a terra e certa parte dela. Este, po-
rém, é seu primeiro pecado: que elas, movidas de zelo para propa-
gar a raça humana, violam a santa lei da natureza. Em segundo lu-
gar, é errôneo e ímpio que elas não busquem refúgio no Criador do
mundo para curá-las daquela desolação, em razão da qual elas tan-
to se preocupavam. Em terceiro lugar, revelam sua negligência
quando seu coração almeja somente a vida terrena e não se preo-
cupam com a vida celestial.
Muito embora eu não ouse fornecer com segurança o tempo
que decorreu entre a desolação de Sodoma e a impura relação se-
xual de Ló com suas filhas, contudo é bem provável que elas, assim
que entraram na caverna, sentindo aversão pela solidão, arquiteta-
ram esse escândalo e execrável plano. Não pode ter transcorrido
muito tempo para que Ló vivesse na caverna, ou tivesse falta de co-
mida e bebida. E como um súbito temor se apoderou de seu pai,
como uma tempestade, da mesma maneira, as filhas não consegui-
ram conter-se, nem por alguns dias. Sem invocar a Deus, ou recor-
rer a seu pai em busca de conselho, elas se deixam arrebatar por
um instinto bestial. Aqui vemos quão depressa o livramento e a pu-
nição dos sodomitas abandonaram sua memória, ainda que ambos
sempre tivessem que ser mantidos em seu coração. Ah! Se esse ví-
cio não fosse tão grande entre nós! No entanto, exibimos tão clara-
mente, em ambos, nossa ingratidão.

33. Sem que ele notasse. Embora Ló não tenha pecado conscien-
temente, contudo, visto que sua embriaguez foi a causa de seu pe-
cado, sua culpa é diminuída, mas não anulada. Sem dúvida, o Se-
nhor castigou seu descontentamento desta maneira. Eis algo raro e
estranho: que seus sentidos fossem de tal modo dominados pela in-
fluência do vinho que ele, como um homem morto, extravasasse sua
luxúria. Portanto, suponho que ele não se embriagou totalmente
com o vinho, mas que seu excesso é castigado por Deus através do
espírito de ignorância. E, se Deus não poupou o santo patriarca,
como, pois, podemos nós pensar em ficar impunes, enquanto come-
temos o mesmo excesso? Compreendamos, pois, por esse exem-
plo, que a lei da modéstia nos é prescrita, para nos alimentarmos
modesta e moderadamente.
Entretanto, existem algumas pessoas profanas que consideram
Ló como o protetor de perversidade deles. Ao contrário, por que não
atinamos para o horrível escândalo em que ele caiu por haver usado
vinho com tanto excesso? Como eu já disse, não devemos conside-
rar simplesmente o que a embriaguez arrasta consigo e com que
outros vícios ela se acha conectada, mas temos que levar em conta
a punição de Deus. Portanto, ele quis difundir abertamente esse trá-
gico crime, para que a embriaguez seja abominada. Diariamente, o
Senhor testifica, por meio de castigos pesados, o quanto esse vício
lhe desagrada. Ao vermos que o sobrinho de Abraão, o anfitrião de
anjos, um homem venerado com extraordinária fama de santidade,
se deixa macular por relação sexual impura, porque se embriagou, o
que, pois, sucederá aos beberrões e às meretrizes que se embria-
gam diariamente? Mas já falamos extensamente sobre isso no nono
capítulo [Gn 9.1], o que qualquer um pode reler.
Com respeito à frase, quando Moisés diz que Ló não percebeu
que suas filhas se deitaram e se levantaram – há quem o explique
que ele não viu a diferença entre uma estranha e sua própria filha.
Mas, embora ele não estivesse totalmente entorpecido, é possível
que de manhã ele se despertasse de sua intoxicação consciente de
que mantivera relação sexual com sua filha. Alguns dizem, para di-
minuir sua culpa, que ele não estava muito embriagado, mas que
estava deprimido pela tristeza. Quanto a mim, porém, sustento que,
visto ser dotado com os dons mais esplêndidos, ele também mere-
ceu uma punição mais severa; e que, portanto, sua razão foi com-
prometida para que, como um animal irracional, se envolvesse na
luxúria sensual.

35. Entrando a mais jovem, se deitou com ele. Esse ponto nos
ensina quão perigoso é cair nas armadilhas de Satanás. Pois, quem
nelas cair, se envolve num abismo cada vez mais profundo. É verda-
de que Ló foi sempre um homem modesto, mas, independente das
circunstâncias que permitiram que sua filha mais velha se deitasse
com ele – ou porque ele se achava triste, ou porque estava embria-
gado – Ló foi novamente enganado no dia seguinte. Por isso, deve-
mos resistir diligentemente ao primeiro impulso, pois é quase impos-
sível que aqueles que uma vez são entorpecidos por sua doçura, se
percam totalmente nos vícios. Portanto, os homens devem estar
sempre vigilantes contra os estímulos para o mal, como sendo ma-
les mortais; e os homens deveriam temer cada lisonjeira tentação
como algo venenoso. E esta circunstância merece atenção: que Ló,
entre os sodomitas, pelo acúmulo de crimes que quase macularam
céu e terra, era casto e puro como um anjo. De que maneira ele
conseguiu manter-se puro mesmo estando em Sodoma, senão pelo
conhecimento do mal que o cercava, o qual o manteve em diligente
vigilância? E agora, estando a salvo no monte, Satanás o sitia com
novas armadilhas. Por esse exemplo, o Espírito nos admoesta à vi-
gilância, de modo que, quando menos pensamos, um inimigo invisí-
vel nos arma ciladas. De igual modo, Moisés disse anteriormente
que Adão foi enganado no Paraíso. Quando cuidamos de nós mes-
mos, isso nos deixará vigilantes contra todas as astúcias de nosso
inimigo. Pois, não há ninguém que não carregue consigo milhares
de tentações para seu próprio engano.

37. A primogênita deu à luz. Foi uma terrível cegueira o fato de


que as filhas de Ló, lançando fora todo senso de pudor, erguessem
um memorial de sua virtude e, por um sinal eterno, têm exibido sua
desonra diante de sua posteridade. Deram nome a seus filhos, ou
melhor, a duas nações nelas representadas, a partir dos quais todos
pudessem saber que essa era uma família oriunda de adultério e re-
lação sexual incestuosa. A mais velha se vangloria de ter obtido seu
filho de seu pai e a outra, de que seu filho nasceu de um relaciona-
mento com alguém próximo. E assim ambas, sem qualquer pudor,
espalharam seu crime, enquanto que, movidas pela vergonha de
seu crime, deveriam antes ter se ocultado em esconderijos eternos.
Não satisfeitas com a infâmia de seu tempo, propagaram seu crime
a outros tempos. Portanto, não há dúvida de que elas, fascinadas
por Satanás, esqueceram toda a diferença entre o que é escandalo-
so e o que é honesto. Paulo diz [Rm 2.5] que os perversos, após um
longo prazer no pecado, por fim são privados de todo sentimento de
pesar. Indubitavelmente, essa estupidez tomou conta dessas jovens,
porque não se envergonharam de espalhar sua desonra por toda
parte. Além do mais, esse exemplo da punição de Deus nos é reve-
lado a fim de não permitirmos qualquer pecado e, assim, não nos
entregarmos à licenciosidade, mas que, pelo temor de Deus, nos es-
timulemos ao arrependimento.

1 A versão utilizada por Calvino traduz o termo por “conhecer”, como fazem também as
versões Almeida Corrigida Fiel e Almeida Revista e Corrigida. A versão Almeida Revista e
Atualizada traduz o termo por “abusar”.
C A P ÍT U L O 2 0

1. Partindo Abraão dali. O que Moisés relatou acerca da destruição


de Sodoma foi uma digressão. Agora ele retoma a continuação de
sua história e segue mostrando o que aconteceu a Abraão, como
ele se conduzia, e como o Senhor o protegia, até que lhe nascesse
a descendência prometida, a futura fonte da Igreja. Ele diz ainda
que Abraão desceu ao país do sul; não que viajasse para além dos
limites da herança que lhe fora dada, mas que deixou sua habitação
anterior e se dirigiu para o sul. Além disso, a região que ele destaca
principalmente caiu, mais tarde, em sorte à tribo de Judá.
Entretanto, sabe-se qual era sua intenção em se mudar, ou qual
a necessidade que o impeliu a mudar de lugar; devemos, contudo,
estar certos de que ele não transferiu sua habitação para outro lugar
por qualquer causa insuficiente, sobretudo porque um filho, pelo
qual nem mesmo ousara desejar, lhe fora prometido recentemente
através de Sara. Alguns supõem que ele fugiu do doloroso espetá-
culo que se lhe apresentava continuamente diante dos olhos; pois
ele via a planície, que recentemente parecia tão agradável à vista e
repleta com grande variedade de frutos, transformada em um caos e
sem forma. E, certamente, era possível que toda a vizinhança fosse
afetada pelo odor de enxofre e contaminada com outras corrupções,
a fim de que os homens percebessem mais claramente esse memo-
rável juízo de Deus.
Portanto, nada há de discrepante nos fatos, na suposição de
que Abraão, vendo que o lugar estava sob a maldição do Senhor,
sentindo-se entediado dele, partiu para outro lugar. É ainda possível
que (como lhe sucedera em outro lugar) ele fosse expulso pela malí-
cia e injúrias daqueles entre os quais habitava. Pois, quanto mais
abundantemente o Senhor manifestava sua graça para com ele,
mais necessário era que sua paciência fosse exercitada, para que
pudesse refletir sobre sua condição de peregrino sobre a terra. Moi-
sés declara ainda expressamente que ele habitou como estrangeiro
na terra de Gerar. Assim vemos que essa santa família era arrasta-
da de um lugar para outro como refugo, enquanto aos perversos era
concedido um lugar fixo. Mas é proveitoso aos santos viverem assim
sem lugar fixo na terra para que, pondo sua mente numa cômoda e
tranquila habitação, não percam a herança do céu.

2. Disse Abraão de Sara, sua mulher. Nessa história, o Espírito


Santo nos apresenta um notável exemplo, tanto da fragilidade do
homem quando da graça de Deus. Diz um provérbio popular que
mesmo os tolos se tornam sábios quando sofrem o mal. Abraão, po-
rém, esquecido do grande perigo que lhe sobreveio no Egito, uma
vez mais feriu seu pé contra a mesma pedra, embora o Senhor in-
tencionalmente o castigasse, para que a advertência lhe fosse pro-
veitosa, ao longo de toda a sua vida. Por isso percebemos, no
exemplo do santo patriarca, quão facilmente o esquecimento, seja
dos castigos, seja dos favores de Deus, despercebidamente nos
atinge. Pois é impossível justificar sua grosseira negligência e não
se lembrar de que uma vez tentara a Deus; e que ele fora o único
culpado, se sua esposa se tornara propriedade de outro homem.
Mas, se nos examinarmos atentamente, raramente se achará al-
guém que não reconheça que frequentemente comete o mesmo
erro.
Pode-se acrescentar que Abraão não estava isento de ser cul-
pado de ingratidão, porque, se houvera refletido que sua esposa lhe
fora maravilhosamente preservada pelo Senhor, nunca teria outra
vez, consciente e espontaneamente, se lançado em semelhante pe-
rigo. Pois ele ignora, tanto quanto pode, o favor anterior que lhe fora
divinamente oferecido. Entretanto, devemos notar a natureza do pe-
cado, no qual já tocamos anteriormente. Pois Abraão, com o objeti-
vo de prover sua própria segurança, não prostituía sua esposa
(como faziam os ímpios). Mas, em vez disso, se sentira ansioso em
preservar sua vida, até que recebesse a descendência divinamente
prometida e, assim, vendo sua esposa com filho, na esperança de
desfrutar de tão grande bênção, ele não imaginava que sua esposa
corresse algum perigo. Portanto, se avaliarmos bem os fatos, ele
pecou movido por incredulidade, ao atribuir menos do que deveria à
providência de Deus. Dessa forma, também somos admoestados
sobre quão danoso é confiar em nossos próprios conselhos. Pois a
disposição de Abraão é correta, enquanto sua atenção estava na
promessa de Deus; mas, posto que ele não esperou pacientemente
pelo socorro divino, mas fez uso de meios ilícitos, ele é, nessa ques-
tão, digno de censura.
Abimeleque mandou buscá-la. Não há dúvida de que o Se-
nhor quis punir a seu servo pelo conselho que tão imprudentemente
havia tomado. E recebem tais frutos de desconfiança, todos os que
não confiam (como deveriam) na providência de Deus. Alguns ho-
mens perversos questionaram essa passagem, porquanto nada lhes
parece mais improvável do que uma mulher de idade avançada ser
desejada pelo rei, e arrancada de seu marido. Mas respondemos,
antes de tudo, que não se sabe qual era sua aparência, exceto que
Moisés já havia declarado que sua pessoa era de beleza singular. E
é possível que ela não estivesse fisicamente muito desgastada com
a idade. Pois frequentemente vemos algumas mulheres, em seus 40
anos, mais enrugadas do que outras em seus 70 anos. Aqui, porém,
deve-se levar em conta outra coisa: que, pelo extraordinário favor de
Deus, sua aparência fosse preeminente entre suas demais qualida-
des. É possível também que o rei Abimeleque fosse menos atraído
pela elegância de sua forma física do que pelas raras virtudes vista
por ele em Sara, como uma matrona.1 Finalmente, devemos recor-
dar que tudo isso era dirigido pela mão de Deus, para que Abraão
recebesse a devida recompensa de sua tolice. E, como sabemos
que os que são excessivamente habilidosos em discernir as causas
naturais das coisas, são os mais cegos para perceber os juízos divi-
nos, que este único fato nos seja suficiente: que Abimeleque, sendo
ministro a executar o castigo divino, agia sob um impulso secreto.

3. Deus, porém, veio a Abimeleque em sonhos de noite. Aqui,


Moisés mostra que o Senhor agiu com tal brandura, que, mesmo ao
punir a seu servo, como um pai, o perdoou; exatamente como ele
nos trata, de modo que, enquanto nos castiga com sua vara, seu fa-
vor e sua bondade excedem muito sua severidade. Disso inferimos
ainda que o Senhor dispensa maior cuidado aos santos do que a
percepção carnal pode entender, visto que ele vela sobre eles en-
quanto dormem. Também é preciso notar cuidadosamente o seguin-
te: por mais que sejamos desprezados pelo mundo, contudo somos
preciosos para Deus, visto que, por nossa causa, ele reprova até
mesmo reis, como está escrito no Salmo 105.14. Mas como esse
tema já foi discutido mais detalhadamente no capítulo 12, que os lei-
tores busquem ali o que agora omito intencionalmente.
Quando diz que Deus veio, isto deve aplicar-se à percepção do
rei, a quem indubitavelmente a majestade de Deus se manifestou,
de modo que ele percebeu claramente ser divinamente reprovado, e
não que foi enganada por mera ilusão.
Vais ser punido de morte. Embora Deus reprovasse o rei Abi-
meleque por causa de Abraão, a quem ele cobriu com sua especial
proteção, sua intenção é mostrar, de modo geral, seu profundo des-
prazer contra o adultério. E, na verdade, aqui não faz menção ex-
pressa de Abraão, mas, antes, se faz um anúncio geral, visando à
manutenção da fidelidade conjugal. “Tu morrerás, porque lançaste
mão da mulher que estava unida a um marido.”. Portanto, aprenda-
mos, nessas palavras, que um preceito foi dado à humanidade, o
qual proíbe um homem de tocar na esposa de seu semelhante. E,
de fato, visto que nada na vida de um homem é mais sagrado do
que o matrimônio, não é de admirar que o Senhor exigisse que se
cultivasse fidelidade recíproca entre marido e mulher, e declarasse
que seria o Vingador do matrimônio, sempre que este fosse violado.
Agora ele se dirige, de fato, somente a um homem; mas a advertên-
cia deveria ressoar nos ouvidos de todos: que os adúlteros – embo-
ra exultem impunemente por algum tempo – sentirão que Deus, que
preside sobre o matrimônio, tomará deles vingança [Hb 13.3].

4. Ora, Abimeleque ainda não a havia possuído. Embora Abraão


tivesse se privado de sua esposa, o Senhor se interpôs em tempo
de preservá-la ilesa. Quando Moisés relata previamente que ela fora
levada por Faraó, ele não diz se sua castidade fora ou não atingida;
mas, visto que o Senhor então se declarou também ser o Vingador
dela, a quem livrou da desonra, não devemos tem dúvida de que
sua integridade foi preservada nas duas ocasiões. Pois, por que ele
agora proibiu o rei de Gerar de tocá-la, se anteriormente permitira
que ela fosse corrompida no Egito? Vemos, porém, que, quando o
Senhor de tal modo retarda seu auxílio, não estendendo sua mão
aos fiéis, até que estejam em extremo perigo, ele mostra ainda mais
claramente quão admirável é sua Providência.
Senhor, matarás até uma nação inocente? A explicação dada
por alguns, de que Abimeleque, aqui, se compara com os homens
de Sodoma, talvez seja refinada demais. O seguinte significado pa-
rece-me mais simples, a saber: “Ó Senhor, embora tu punes severa-
mente o adultério, tua ira se derramará sobre homens inocentes que
têm incorrido em erro mais do que em pecado consciente e volunta-
riamente?” Além disso, Abimeleque parece esclarecer-se de tal
modo, como se fosse inteiramente isento de culpa, e mais, o Senhor
tanto admite como aprova sua desculpa.
Contudo, devemos frisar de que maneira, e em qual extensão,
ele se vangloria de que seu coração e mãos estão sem culpa. Pois
ele não reivindica para si a pureza que é totalmente livre de man-
cha, mas simplesmente nega que fosse levado pela concupiscência,
quer tirânica, quer intencionalmente, a abusar da esposa de outro
homem. Sabemos quão grande é a diferença entre um crime e uma
falha; assim Abimeleque não se isenta completamente de culpa,
mas apenas mostra que estava consciente de não haver cometido
nenhuma perversidade que exija essa severa punição.
A “sinceridade de coração”, de que ele fala, nada mais é do que
aquela ignorância que é oposta à consciência de culpa; e “na minha
inocência” outra coisa não é senão aquele domínio próprio pelo qual
os homens se abstêm da força e atos de injustiça. Além disso, a in-
terrogação que Abimeleque usou procedia de um comum senso de
religião. Pois a própria natureza proclama que Deus preserva a justa
distinção ao infligir punições.

6. Bem sei que com sinceridade de coração fizeste isso. Dessa


resposta de Deus inferimos (como observei a pouco) que Abimele-
que não testificava falsamente de sua própria integridade. Contudo,
enquanto Deus admite que sua justificativa é verdadeira, mesmo as-
sim o castiga. Devemos aprender desse fato que mesmo aqueles
que são puros, segundo o critério humano, não são inteiramente
isentos de culpa. Pois nenhum erro pode ser considerado tão justifi-
cável ao ponto de ser isento de algum mal. Isso não é motivo para
alguém absolver-se por seu próprio julgamento, e sim que aprenda-
mos a conduzir toda nossa conduta pelo padrão de Deus. Pois não
é em vão que Salomão diz que “os caminhos dos homens perecem
retos aos seus próprios olhos, mas que o Senhor pesa os corações”
[Pv 21.2]. Mas, se até aqueles que em si mesmos não têm consci-
ência de nenhum mal não escapam à censura, qual será nossa con-
dição, se somos mantidos interiormente cativo por nossa própria
consciência?
Daí o ter impedido. Essa declaração implica que Deus consi-
derou, não só Abraão, mas também o rei. Pois, visto que o rei não
teve a intenção de macular a esposa de outro homem, Deus teve
compaixão dele. E frequentemente acontece que o Espírito restrin-
ge, através de seu freio, os que se acham dominados pelo erro, pre-
cisamente como, por outro lado, ele guia os imprudentes, por causa
do orgulho e espírito de entorpecimento, aqueles que, com afeições
e concupiscências depravadas, transgridem conscientemente. E,
como Deus trouxe ao rei pagão, que não fora culpado de perversi-
dade deliberada, um remédio eficaz, para que sua culpa não fosse
intensificada, assim ele diariamente prova ser o fiel guardião de seu
próprio povo, a preveni-los de precipitar-se, de faltas menores a cri-
mes terríveis.

7. Agora, pois, restitui a mulher a seu marido. Deus não fala ago-
ra de Abraão como se este fosse um homem comum, mas como al-
guém que lhe é mui peculiarmente querido, por quem empreende a
defesa de seu leito conjugal por um tipo de privilégio. Ele denomina
Abraão de profeta e um exemplo de honra, como se estivesse acu-
sando Abimeleque de haver injuriado um homem de grande e singu-
lar excelência, para que ele não se espantasse ante a grandeza da
punição que lhe era infligida. E, embora a palavra profeta seja espe-
cificamente o nome de um ofício, creio que aqui ela tem um signifi-
cado mais abrangente, e que é expressa por um homem escolhido,
e um que, é para Deus, mui familiar. Pois visto que, naquele tempo,
não existia nenhuma Escritura, Deus não apenas se fazia conhecido
por meio de sonhos e visões, mas também escolhia para si homens
especiais e excelentes, para que espalhassem a semente da pieda-
de, pela qual o mundo se tornasse ainda mais indesculpável.
Visto, porém, que Abraão é um profeta, ele é constituído, por
assim dizer, um mediador entre Deus e Abimeleque. Cristo, sempre
foi o único Mediador; mas isso não era motivo para que os homens
não orassem por outros; especialmente aqueles que se destacavam
em santidade e eram aceitos por Deus, como o apóstolo ensina:
“Muito pode, por sua eficácia, a súplica do justo” [Tg 5.16]. E não
devemos, hoje, negligenciar tal intercessão, contanto que ela não
obscureça a graça de Cristo, nem nos desvie dele. Mas é um absur-
do que os papistas, sob esse pretexto, recorram à ajuda dos mortos.
Pois como o Senhor, aqui, não envia o rei de Gerar a Noé, ou a al-
gum dos pais falecidos, e sim à presença do Abraão vivo, assim o
único preceito que temos sobre esse tema é que, pela oração mú-
tua, uns pelos outros, cultivemos entre nós a caridade.
Se, porém, não lha restituíres. Dessa passagem descobrimos
a intenção daquelas ameaças e denúncias com que Deus aterroriza
os homens, a saber, que ele impele pela força ao arrependimento
aqueles que são demasiadamente obstinados. No início desse dis-
curso, foi declarado em termos absolutos: “Vais ser punido de mor-
te”; agora é acrescentada uma condição: “A menos que tu a restitu-
as.”. Entretanto, o significado de ambas as expressões é o mesmo,
ainda que a princípio Deus fale mais asperamente, para que inspire
o ofensor com maior terror. Agora, porém, quando ele se sujeita,
Deus expressa sua intenção mais claramente, e lhe deixa a espe-
rança de perdão e salvação. Assim, o nó, com o qual muitos se en-
laçam, se desata quando percebem que Deus nem sempre, ou ins-
tantaneamente, executa as punições que havia anunciado; porque
eles consideram um sinal, ou que Deus mudou de propósito, ou que
ele pretende algo diferente, por sua palavra, daquilo que havia de-
cretado secretamente.
Pela instrumentalidade de Jonas, ele ameaçou os ninivitas com
destruição, e mais tarde os poupou [Jn 3.4]. Os indoutos não perce-
bem como podem escapar de um dos dois absurdos, a saber, ou
que Deus retraiu sua sentença, ou que ele fingiu estar para fazer o
que realmente não pretendia. Mas, se retivermos firme o princípio
de que a exortação ao arrependimento está inclusa em todas as
ameaças, a dificuldade estará resolvida. Pois embora Deus, no pri-
meiro caso, fala a homens como perdidos e, portanto, os constrange
com o presente temor da morte, contudo se deve levar em conta o
objetivo. Pois, se ele os convida ao arrependimento, segue-se que
se deixa a esperança de perdão, contanto que se arrependam.

8. Levantou-se Abimeleque de madrugada. Moisés ensina quão


eficaz foi o oráculo. Pois Abimeleque, despertado pela voz de Deus,
levantou-se de madrugada, não só para imediatamente obedecer à
ordem que lhe foi imposta, mas para que também exortasse seu
próprio povo a fazer o mesmo. Um exemplo de uma obediência tão
pronta nos é dado a conhecer num rei pagão, para que não mais
apresentemos desculpa para nosso entorpecimento, quando as ad-
moestações divinas nos são de tão pouco proveito. Deus apareceu
para o rei em um sonho; visto, porém, que diariamente ele grita aos
nossos ouvidos, através de Moisés, dos profetas e dos apóstolos, e,
finalmente, por seu Filho unigênito, seria absurdo presumir que tan-
tos testemunhos valeriam menos que a visão de um único sonho.

9. Então, chamou Abimeleque a Abraão. Alguns presumem que o


rei de Gerar não apresentou queixa contra Abraão; mas, antes, de-
clarou seu arrependimento pessoal. Entretanto, se pesarmos suas
palavras de maneira justa, descobriremos confissão misturada com
protesto. Embora ele se queixe que Abraão tivesse agido injusta-
mente, contudo não transfere a culpa para ele, a ponto de isentar-se
de toda falha. E ele, com justiça, poderia imputar a Abraão parte da
culpa, como faz, contanto que também reconheça seu próprio peca-
do. Portanto, saibamos que esse rei não agiu como habitualmente
agem os hipócritas. Pois estes, sempre que encontram um pretexto
para culpar outros, confiantemente se absorvem; eles até conside-
ram uma purificação legítima de si mesmos, se puderem arrastar
outros para a participação de seus crimes.
Abimeleque, porém, enquanto se queixa de ter siso enganado,
e que caíra por imprudência, ainda assim, não tem hesita em conde-
nar-se como culpado de um grande pecado: “Em que pequei eu”, diz
ele, “contra ti, para trazeres tamanho pecado sobre mim e sobre
meu reino?”. Ninguém, pois, pode se isentar de culpa, sob o pretex-
to de que fora por outros induzido a pecar. Entretanto, deve-se notar
que o adultério é aqui chamado um grande pecado, porque ele cega
não um homem só, mas todo um povo, como em um crime comum.
O rei de Gerar de fato não podia haver falado assim, caso não co-
nhecesse o sagrado direito do matrimônio. Mas, nos dias atuais, os
cristãos – ao menos os que se vangloriam do nome – não se enver-
gonham de jocosamente abrandar tão grande pecado, do qual até
um pagão reprova com o mais profundo horror.
Entretanto, saibamos que Abimeleque foi um genuíno arauto
daquele juízo divino, o qual homens miseráveis em vão tentam apa-
gar por meio de suas dissimulações. E que aquela expressão de
Paulo esteja sempre em nossa memória: “Ninguém vos engane com
palavras vãs; porque, por essas coisas vem a ira de Deus sobre os
filhos da desobediência” [1Co 6.9,10; Ef 5.6]. Não é sem razão que
Deus faz desse pecado um pecado comum para toda a nação; pois,
quando se cometem crimes impunemente, toda uma região, em cer-
to sentido, é contaminada. E é especialmente evidente que a ira de
Deus é provocada contra todo o povo, na pessoa do rei. Por isso,
com mais profunda diligência e cuidado devemos rogar a Deus que
governe, por seu Espírito, aqueles a quem ele tem posto sobre nós
com autoridade; e para, assim, preservar o país, no qual nos foi con-
cedido um lugar para habitar, isento e livre de toda iniquidade.

10. Que estavas pensando para fazeres tal coisa? Com essa per-
gunta, o rei faz provisão para o futuro. Ele acredita que Abraão não
praticou essa dissimulação irrefletidamente; e, visto que Deus era
gravemente ofendido, ele teme cair outra vez no mesmo perigo. Por-
tanto, ele testifica, por uma inquirição tão incisiva, que deseja reme-
diar o mal. Ora, é um sinal extraordinário de uma justa e mansa dis-
posição, o fato de Abimeleque permitir que Abraão apresente uma li-
vre defesa. Sabemos quão nítida e veementemente protesta quem
acha que foi ofendido; tanto maior louvor, pois, se deve à modera-
ção desse rei, para com um forasteiro desconhecido. Por isso,
aprendamos, por esse exemplo, o seguinte: sempre que nos quei-
xarmos contra nossos irmãos por eles nos ter feito algum mal, per-
mitamos que se defendam livremente.

11. Respondeu Abraão. Há dois pontos contidos nessa resposta.


Pois, primeiro, ele confessa que se deixara induzir pelo medo a
ocultar seu estado conjugal. Então nega que tivesse mentido com o
propósito de se desculpar. Ora, ainda quando Abraão declare com
verdade que não havia ocultado seu estado conjugal com alguma in-
tenção fraudulenta, nem com o propósito de prejudicar alguém,
mesmo assim ele era digno de censura, porquanto, movido de te-
mor, submetera, no que lhe diz respeito, sua esposa à prostituição.
Portanto, não se pode dizer muita coisa em sua defesa, visto que
ele deveria ter sido mais corajoso e resoluto em cumprir seu dever
de marido, vindicando a honra de sua esposa, mesmo diante de
qualquer ameaça de perigo. Além disso, era um sinal de desconfian-
ça, recorrer a uma sutileza ilícita.
Com respeito à sua suspeita, embora por toda parte percebera
que prevalecia uma monstruosa licenciosidade, contudo, era injusto
formar um juízo tão desfavorável de um povo a quem nem sequer
conhecia; porque supõe que todos eles seriam homicidas. Mas,
como eu já tratei, com algum detalhe, desses temas, no décimo ca-
pítulo, agora seria suficiente apenas fazer-lhes alusão. Entretanto,
chegamos à conclusão de que Abraão não contesta a justiça de sua
causa diante de Deus, mas simplesmente mostra sua diligência em
apaziguar a Abimeleque. Contudo, deve-se notar sua particular for-
ma de expressão; pois, onde quer que o temor de Deus não reine,
os homens facilmente se entregam a todo tipo de perversidade, de
modo que nem poupam sangue humano, nem se refreiam da violên-
cia, roubo e traição. E, sem dúvida, é somente o temor de Deus que
nos une nos laços de nossa comum humanidade, os quais nos man-
têm dentro dos limites da moderação e reprime a crueldade; de ou-
tro modo, devoraríamos uns aos outros como bestas selvagens.
De fato, algumas vezes acontecerá que os que são destituídos
do temor de Deus cultivem a aparência de equidade. Pois Deus,
com o objetivo de preservar a raça humana da destruição, mantém
sob controle, com sua rédea secreta, as concupiscências dos ímpi-
os. Contudo, é preciso levar sempre em conta que a porta está
aberta a todos os tipos de perversidade, quando a piedade e o te-
mor de Deus se desvanecem.
Em nossos dias, manifesta-se uma tão clara prova disso no hor-
rível dilúvio de crimes que quase cobre toda a terra. Pois, de que
outra causa se origina tal variedade de engodos e fraudes, tal desle-
aldade e crueldade, e todo o senso de justiça é extinto, senão pelo
menosprezo a Deus? Ora, sempre que tivermos uma difícil disputa
com as corrupções de nossa própria época, reflitamos sobre os tem-
pos de Abraão, que, embora estivessem embriagados de impiedade
e crimes, não desviaram o santo homem do caminho reto.

12. Ela, de fato, é também minha irmã. Alguns supõem que Sara
fosse a própria irmã de Abraão, contudo, não da mesma mãe, mas
nascida de uma segunda esposa. Entretanto, como o título irmã tem
uma ampla gama de significação entre os hebreus, de bom grado
adoto uma hipótese distinta, a saber, que ela era sua irmã em se-
gundo grau; assim será verdadeiro que tinham um pai comum, isto
é, um avô, de quem haviam descendido como irmãos. Além disso,
Abraão ameniza sua ofensa e traça uma distinção entre sua omis-
são e uma mentira; e, certamente, ele professa com verdade que
era irmão de Sara. Aliás, parece que ele nada inventara em palavras
que diferisse dos próprios fatos; contudo, quando todas as coisas
fossem minuciosamente consideradas, sua defesa provaria ser frí-
vola, ou, ao menos, demasiadamente frágil. Porque, visto que ele in-
tencionalmente usava o título irmã como um pretexto, para que os
homens não alimentassem alguma suspeita sobre seu casamento,
ele, sofisticamente, lhes propiciou ocasião de cair em erro. Por isso,
embora não mentisse verbalmente, com respeito à matéria de fato,
sua dissimulação implicava em uma mentira. Contudo, ele não teve
outra intenção senão declarar que ele não tratara Abimeleque de
modo fraudulento; mas que, numa questão de grande ansiedade,
ele lançara mão de um método indireto de escapar da morte, pelo
pretexto de sua prévia relação com sua esposa.

13. Quando Deus me fez andar errante. Porque o verbo é aqui ex-
presso no plural, exponho livremente a passagem como uma refe-
rência aos anjos que guiavam a Abraão através de suas várias an-
danças. Alguns, com demasiada sutileza, inferem da expressão uma
Trindade de Pessoas, como se fosse escrito: “Os deuses me fizeram
peregrinar”. De fato, admito que o substantivo (Elohim) frequen-
temente é empregado na Escritura para se referir a Deus, mas o
verbo com que está conectado é sempre singular. E, toda vez que
se acrescenta um verbo plural, o substantivo significa “anjos” ou
“príncipes”. Alguns pensam que Abraão, porque estava falando com
alguém que não era corretamente instruído, falou assim em confor-
midade com o costume comum dos pagãos; mas, em minha opinião,
isso é um erro. Pois, a que propósito ele, ao erigir altares, fez mani-
festo que se devotara ao serviço do único verdadeiro Deus, se lhe
fosse lícito mais tarde negar, verbalmente, o próprio Deus a quem
cultuava? Já fizemos uma exposição desse tema anteriormente,
conforme o contexto exigia.
Abraão, contudo, não acusa os anjos, como se ele tivesse sido
desviado do caminho pelas orientações falaciosas deles; mas desta-
ca qual era sua própria condição anterior, ou seja, que, tendo deixa-
do sua própria pátria, não apenas migrou para uma terra distante,
mas se viu constantemente obrigado a mudar de domicílio. Por isso,
não é de admirar que a necessidade o conduziu a novos propósitos.
Alguém inquiriria, por que ele faz dos anjos os guias de sua peregri-
nação? A resposta é imediata: embora Abraão soubesse que pe-
rambulava unicamente pela vontade e providência de Deus, ele se
refere aos anjos que, como em outro lugar reconhece, lhe foram da-
dos para serem os guias durante a sua jornada.
A suma do discurso tende para o seguinte objetivo: ensinar a
Abimeleque que Abraão era igualmente livre de astúcia maliciosa e
de falsidade; e, então, porque estava vivendo uma vida de peregri-
nações e inquietudes, Sara, por concordar, sempre dissera a mes-
ma coisa que fizera em Gerar. Essa miserável ansiedade do santo
homem poderia levar Abimeleque à compaixão, a ponto de aplacar
sua ira.

14. Então, Abimeleque tomou ovelhas e bois. No Egito, Abraão


havia recebido bens e dádivas; mas com esta diferença: que, en-
quanto Faraó lhe ordenara partir para outro lugar, Abimeleque lhe
oferece um lar no reino. Portanto, parece que ambos os reis se dei-
xaram abalar por diferentes graus de temor. Pois, quando percebe-
ram que foram reprovados pelo Senhor, porque haviam perturbado a
Abraão, não acharam um meio de apaziguar a Deus senão o de
compensar, por atos de bondade, o dano que causaram ao santo
homem. A diferença acima referida se derivou disto: que Faraó, sen-
do mais severamente censurado, ficou tão aterrorizado que dificil-
mente poderia suportar um simples olhar para Abraão; enquanto
que Abimeleque, mesmo assustado, logo se recompôs, por uma pa-
lavra de consolação que foi acrescentada, quando o Senhor lhe dis-
se: “Ele é profeta, e orará por ti.”. Pois não há outro remédio para a
remoção do temor, além da declaração do Senhor de que ele será
propício.
De fato, é de pouca vantagem para o pecador apresentar a
Deus só o que o temor exige. Mas é um genuíno sinal de arrependi-
mento quando, com uma mente bem tranquila e uma consciência
serena, ele se rende a Deus, de modo obediente e dócil. E, visto
que Abimeleque concedeu a Abraão uma habitação em seu domí-
nio, uma bênção extraordinária seguiu esse ato de benevolência,
porque Isaque nasceu ali, como veremos no próximo capítulo.

16. Será isto compensação por tudo quanto se deu contigo.2


Visto que nessas palavras há certa obscuridade, a passagem é in-
terpretada de várias formas. O início do versículo não apresenta
qualquer dificuldade. Pois, quando Abimeleque deu 1.000 peças de
prata, a fim de que sua generosidade não fosse suspeita, ele decla-
rou que as deu a Abraão; e uma vez que Abraão fora honrosamente
recebido, sua esposa não devia ser considerada uma meretriz. Mas,
a frase seguinte é mais obscura: “Ele será um véu para ti.”. Muitos
intérpretes atribuem isso ao presente recebido por Abraão; mas, em
minha opinião, isso é um equívoco. Os hebreus, não possuindo gê-
nero neutro, usam o feminino em seu lugar. Porém Moisés, aqui,
aponta antes para o marido; e isso se ajusta melhor ao sentido. Pois
Sara é instruída que o marido a quem ela está unida era como um
véu, com o qual ela deveria ser coberta, para que não fosse exposta
aos outros. Paulo diz que o véu que a mulher usa em sua cabeça é
o símbolo de sujeição [1Co 11.10]. Isso também é pertinente às pes-
soas solteiras, como se referindo ao propósito para o qual o sexo é
ordenado; contudo, aplica-se mais apropriadamente às mulheres ca-
sadas; porque são veladas pela própria ordenança do matrimônio.
Portanto, eu entendo essas palavras assim: “Tu, se não tivesses
marido, serias exposta a muitos perigos; agora, porém, visto que
Deus designou para ti um guardião de tua modéstia, cabe a ti te
ocultares sob esse véu. Por que, pois, por iniciativa própria, lançari-
as fora essa cobertura?”. Essa era uma censura justa, porque Sara,
supondo estar sob o poder de seu esposo, se privara da proteção
divina.
Estás justificada. Alguns intérpretes também distorcem essa
frase. Seu sentido natural parece-me ser este: o Senhor permitiu
que Sara fosse advertida por um rei pagão, para que ele a influenci-
asse mais profundamente com um sentimento de vergonha. Pois
Moisés dá especial atenção à pessoa do orador, porque parecia
uma desgraça que a mãe dos fiéis fosse assim repreendida por tal
mestre. Outros supõem que Moisés fala do benefício que ela rece-
bera, visto que ela, instruída por tal lição, dali em diante aprenderia
a agir de maneira diferente. Moisés, porém, parece antes destacar
aquele tipo de correção de que eu já falei, a saber, que Sara foi hu-
milhada por ser entregue à instrução de um homem pagão.

17. Orando Abraão. O maravilhoso favor de Deus para com Abraão


foi evidente em dois aspectos: primeiro, que, com mão estendida,
Deus vingou a injúria que foi feita a Abraão; e, segundo, que, atra-
vés da oração de Abraão, ele foi apaziguado em relação à casa de
Abimeleque. Era necessário declarar que a casa de Abimeleque ha-
via sido curada em resposta às orações de Abraão, para que, por tal
benefício, os habitantes pudessem estar mais intimamente ligados a
ele.
Contudo, uma questão pode ser levantada acerca do tipo de
punição descrito na expressão: “o Senhor havia tornado estéreis to-
das as mulheres da casa de Abimeleque.”. Pois, se Abraão havia
ido para a terra de Gerar, depois de Sara haver concebido, e se tudo
o que Moisés relatou aqui se cumpriu antes do nascimento de Isa-
que, como era possível que, em tão curto prazo, essa esterilidade
se manifestasse? Se dissermos que o juízo divino então se fez claro
de uma maneira que nos é desconhecida, a resposta não seria ab-
surda. Entretanto, eu não tenho certeza se a sequência da narrativa
da história foi invertida. A hipótese mais provável poderia ser esta:
Abraão já estava habitando em Gerar quando Isaque lhe foi prometi-
do, mas que a parte, que antes fora omitida, é agora inserida por
Moisés. Mesmo que alguém objetasse dizendo que Abraão habitou
em Manre até a destruição de Sodoma, não haveria absurdo algum
na crença de que, o que Moisés aqui relatou, ocorreu anteriormente.
Contudo, visto que a correta noção de tempo pouco contribui para a
confirmação de nossa fé, não confirmo nenhuma das opiniões.

1 Termo usado na antiguidade romana para descrever senhoras casadas, respeitáveis pela
idade e pelo seu prudente proceder.
2 Na tradução que o próprio Calvino faz desse versículo, ele traduz a segunda sentença do
verso por: “ele é para ti uma cobertura dos olhos”, que equivale à frase: “será isto compen-
sação por tudo quanto se deu contigo”, na versão Almeida Revista e Atualizada. Portanto,
algumas partes de seu comentário ao verso 16 tratam diretamente da frase, tal como Calvi-
no a traduziu. As versões Almeida Corrigida Fiel e Almeida Revista e Corrigida traduzem a
frase semelhantemente a Calvino: “E a Sara disse: Vês que tenho dado ao teu irmão mil
moedas de prata; eis que ele te seja por véu dos olhos para com todos os que contigo es-
tão, e até para com todos os outros; e estás advertida”. Assim, que o leitor esteja ciente de
que o comentário do verso 16 tem essa particularidade.
C A P ÍT U L O 2 1

1. Visitou o S a Sara. Nesse capítulo, relata-se não só o


nascimento de Isaque, mas, uma vez que a partir desse evento
Deus pôs diante de nós um vívido quadro de sua Igreja, Moisés tam-
bém faz um relato particular desse fato. E, antes de tudo, ele diz que
Deus visitou a Sara, como havia prometido. Porque toda descen-
dência flui da bondade de Deus, como lemos no Salmo, “o fruto do
ventre, seu galardão” [Sl 127.3], por isso se diz, corretamente, que o
Senhor visita aqueles a quem concede filhos. Pois, embora o embri-
ão animal pareça ser produzido naturalmente, cada um conforme a
sua espécie, contudo não há fecundidade nos animais a menos que
o Senhor manifeste seu próprio poder, para cumprir o que dissera:
“Crescei e multiplicai-vos.” Na propagação da raça humana, porém,
sua bênção especial se faz ainda mais clara; e, por isso, o nasci-
mento de cada criança é corretamente considerado o resultado da
visitação divina. Porém, aqui, Moisés vai mais além, visto que Isa-
que não nasceu a partir do curso habitual e natural.
Portanto, Moisés enaltece aquele secreto e imprevisível poder
de Deus que é superior à lei da natureza; e não impropriamente, vis-
to ser de grande importância sabermos que a gratuita bondade de
Deus reinava tanto na origem quanto no desenvolvimento da Igreja,
e que os filhos de Deus não nasciam de outro modo, senão exclusi-
vamente por causa seu favor. E esta é a razão por que ele não per-
mitiu que Abraão fosse pai, até que seu corpo estivesse quase des-
falecido. Deve-se notar ainda que Moisés declara que a visitação
que ele menciona se fundamentava na promessa: “visitou o S
a Sara, como lhe dissera”. Nessas palavras, ele acrescenta o efeito
à sua causa, a fim de que a graça especial de Deus, da qual um
exemplo é dado no nascimento de Isaque, fosse ainda mais percep-
tível.
Se Moisés meramente dissesse que o Senhor teve respeito
para com Sara, quando esta deu à luz um filho, se poderia buscar
alguma outra causa. Entretanto, não há qualquer dúvida de que a
promessa, pela qual Isaque foi concedido a seu pai Abraão, era gra-
tuita, visto que a criança era o fruto daquela adoção que não pode
ser atribuída senão exclusivamente à graça de Deus. Portanto,
quem quer que deseje ponderar correta e prudentemente sobre a
obra de Deus, no nascimento de Isaque, deve necessariamente co-
meçar com a promessa. Há ainda grande ênfase na repetição: “e o
S cumpriu em Sara o que lhe havia prometido”. Pois, assim,
Moisés “prende” seus leitores, como se estendesse sua mão sobre
eles, para que fizessem uma pausa e considerassem tão grande mi-
lagre. Enquanto isso, Moisés enaltece a fidelidade de Deus, como
se quisesse dizer: ele nunca nutre os homens com promessas vãs,
mas é tão verdadeiro para conceder o que prometera quanto é ge-
neroso e disposto para fazer a promessa.

2. Sara concebeu e deu à luz um filho a Abraão. Isso é dito se-


gundo a maneira comum de falar; porque a mulher não é a cabeça
de uma família, nem dá à luz propriamente apenas para si, e sim
também para seu marido. O que se segue, contudo, é mais digno de
nota: “na sua velhice, no tempo determinado”, exatamente como
Deus havia predito. Pois a velhice de Abraão enaltece sobremaneira
a glória do milagre. E agora Moisés, pela terceira vez, nos remete à
palavra de Deus, para que a constância de sua verdade esteja sem-
pre presente em nossa mente. E ainda que o tempo fosse predito,
tanto para Abraão como para a sua esposa, contudo esta honra é
expressamente atribuída ao santo homem, porque a promessa foi
especialmente dada a ele. Entretanto, ambos são distintamente
mencionados no contexto.

3. Pôs Abraão o nome de Isaque. Moisés não quer dizer que Abra-
ão fosse o inventor do nome, mas que ele aceitou o nome que antes
havia sido dado pelo anjo. Esse ato de obediência, contudo, foi dig-
no de recomendação, visto que ele não apenas confirmou a palavra
de Deus, mas também executou seu ofício como ministro de Deus.
Porque, como arauto, ele proclamou a todos o que o anjo lhe havia
confiado.
4. Abraão circuncidou a seu filho Isaque. Abraão seguiu em fren-
te em sua invariável condição de obediência. Pois, embora lhe fosse
doloroso ferir o tenro corpo da criancinha, contudo, abrindo mão de
toda afeição humana, obedece à palavra de Deus. E Moisés registra
que ele fez como o Senhor lhe ordenara, porque não há nada mais
importante do que tomar a pura palavra de Deus por nossa norma, e
não sermos sábios acima do que é lícito. Esse espírito submisso é
especialmente requerido em referência aos sacramentos, para que
os homens não inventem para si coisa alguma, nem destinem aque-
las coisas que são ordenadas pelo Senhor a algum uso que lhes
aprouver. De fato, vemos quão desordenadamente os caprichos dos
homens aqui prevalecem, visto que eles têm ousado inventar inúme-
ros sacramentos. E para não ficar apenas com um exemplo, en-
quanto Deus entregou à Igreja Cristã somente dois sacramentos, os
papistas se vangloriam de que possuem sete. Como se, na verdade,
estivesse em seu poder fazer promessas de salvação, as quais pu-
dessem sancionar com sinais imaginados por eles mesmos. Mas se-
ria supérfluo relatar com quantas ficções os sacramentos têm sido
poluídos por eles. Isto certamente é manifesto: que não há nada so-
bre o que eles sejam menos cuidadosos do que observar o que o
Senhor tem ordenado.

5. Tinha Abraão cem anos. Uma vez mais, Moisés registra a idade
de Abraão, para melhor exercitar a mente de seus leitores a uma
consideração do milagre. E, embora somente Abraão seja mencio-
nado, devemos nos lembrar de que ele é, aqui, posto diante de nós,
não como um homem concupiscente, mas como marido de Sara, o
qual obteve, através dela, uma descendência legítima, em extrema
velhice, quando a força física de ambos já estava quase extinta.
Pois o poder de Deus era principalmente evidente nisto: que embora
não tivessem obtido filhos durante um casamento de mais de 60
anos, de repente obtêm descendência. Sara, na verdade, a fim de
corrigir a dúvida a que ela se submetera, agora, com exultação, pro-
clama a bondade de Deus, com convenientes louvores. Em primeiro
lugar, ela diz que Deus lhe dera ocasião de alegria; não de uma ale-
gria comum, mas de uma alegria que faria com que todos os ho-
mens se congratulassem com ela. Em segundo lugar, com o propó-
sito de enfatizar, ela assume o caráter de um inquiridor atônito:
“Quem teria dito a Abraão que Sara amamentaria um filho?”. Há
quem explique a frase “vai rir-se juntamente comigo”, como se Sara
dissesse, envergonhada, que ela seria um provérbio para o povo co-
mum. Mas o sentido inicialmente destacado é mais próprio, a saber,
“Todo aquele que ouvir isso, vai rir-se juntamente comigo”, isto é,
com o intuito de congratular-se comigo.

7. Quem teria dito a Abraão que Sara amamentaria um filho? Eu


acredito que o tempo futuro tenha sido aqui colocado para indicar o
modo subjuntivo. E o significado é que tal coisa jamais teria passado
pela mente de alguém. De onde ela conclui que somente Deus po-
deria ser o Autor desse acontecimento; e ela então se autocondena
pela ingratidão, de ter demorado tanto em dar crédito ao anjo que
lhe informara a respeito de tudo isso. Uma vez que ela fala de filhos
no plural,1 os judeus, segundo seu costume, inventaram a fábula de
que, enquanto se difundia um rumor de que Sara não tinha dado à
luz, um grande número de criancinhas foi trazido pelos vizinhos a
fim de que Sara, amamentando-as, provasse ser de fato mãe. Como
se, na verdade, isso não fosse facilmente conhecido, quando eles
viram Isaque mamando em seu peito. Mas os judeus são duplamen-
te tolos e arrogantes, deixando de perceber que essa forma de ex-
pressão tem exatamente a mesma importância, como se Sara cha-
masse a si mesma de “aquela que amamenta”.
Entretanto, deve-se observar que Sara associa o ofício de ama-
mentadora (aquela que amamenta) ao de mãe, pois não é em vão
que o Senhor prepara o alimento para as crianças nos seios de sua
mãe, ainda antes de nascerem. Mas àquelas a quem ele confere a
honra devida às mães, ele, dessa maneira, constitui amas; e aque-
las que julgam ser difícil nutrir sua própria descendência, quebram,
o quanto podem, o sagrado vínculo da natureza. Se uma doença, ou
alguma outra coisa desse gênero, constitui um obstáculo, elas têm
uma justificativa legítima; mas para as mães que voluntariamente, e
para seu próprio prazer, evitam a tarefa de amamentar, e assim se-
rem elas mesmas apenas parcialmente mães, é uma vergonhosa
corrupção.
8. Isaque cresceu e foi desmamado. Agora Moisés começa a rela-
tar a maneira como Ismael foi rejeitado da família de Abraão, a fim
de que somente Isaque pudesse ocupar o lugar de filho legítimo e
herdeiro. Na verdade, à primeira vista, parece algo frívolo o fato que
Sara, irando-se por quase nada, fosse a causadora de conflitos na
família. Paulo, porém, ensina que aqui se nos propõe um sublime
mistério, concernente ao permanente estado da Igreja [Gl 4.21]. E,
de fato, se considerarmos atentamente as pessoas mencionadas,
não ponderaremos como uma questão trivial que o pai de todos os
fiéis receba a ordem de expulsar seu filho primogênito; que Ismael,
embora participante da mesma circuncisão, venha a ser de tal modo
transformado num estranho, que não mais seja contado entre a des-
cendência abençoada; que, aparentemente, o corpo da Igreja seja
tão dilacerado, que somente metade dela permanece; que Sara, ao
expulsar de casa o filho de sua serva, reivindica toda a herança ex-
clusivamente para Isaque. Portanto, caso se aplique a devida aten-
ção à leitura dessa história, o próprio mistério de que Paulo trata se
apresenta espontaneamente.
Deu Abraão um grande banquete. Pergunta-se por que ele
não o fez antes no dia do nascimento ou da circuncisão de Isaque?
A sutileza do raciocínio de Agostinho, de que se celebrou o dia em
que Isaque foi desmamado para que aprendamos desse seu exem-
plo a não mais sermos crianças no entendimento, é demasiadamen-
te forçado. Outros dizem que Abraão escolheu um dia comum para
não imitar a prática dos gentios, mas isso também não tem a menor
consistência. Aliás, é bem provável que ele celebrasse também o
aniversário de seu filho com honra e alegria. Mas é preciso dar aten-
ção especial a essa festa por outra razão, a saber, para que o escár-
nio de Ismael fosse revelado. Pois eu não concordo com a suposi-
ção dos que pensam que aqui se inicia uma nova história, e que
Sara lidava diariamente com esse aborrecimento, até que, por fim,
ela purificou a casa pela expulsão do ímpio zombador. De fato é pro-
vável que, também nos demais dias, Ismael agisse com uma petu-
lância similar; contudo, não tenho dúvida de que Moisés declara ex-
pressamente que seu desdém foi manifestado a Sara naquela sole-
ne assembleia, e que, desde aquele momento, ele foi publicamente
exposto.
Ora, Moisés não fala depreciativamente dos prazeres daquela
festa, antes reconhece a sua legitimidade. Pois seu objetivo não é
proibir os homens santos de convidar seus amigos a um momento
de comunhão e lazer, de modo que eles, juntos, dando graças a
Deus, possam se deleitar com maior alegria do que a habitual. De
fato é preciso observar sempre a temperança e a sobriedade; e
deve-se tomar cuidado para que a própria provisão seja moderada,
assim como os convidados também devem ser moderados. Eu ape-
nas diria que Deus não nos trata de modo tão rigoroso, a ponto de
não permitir, que algumas vezes, nos entretenhamos liberalmente
com nossos amigos, quando celebramos um casamento ou um nas-
cimento de um filho. Abraão, portanto, fez uma grande festa, isto é,
uma festa extraordinária, porque ele não costumava prover sua
mesa de forma tão abundante; contudo, essa era uma abundância
que de modo algum se degenerou em falta de moderação. Além dis-
so, enquanto ele era assim generoso no entretenimento com seus
amigos, segundo suas possibilidades, também possuía o que era
suficiente para ajudar estrangeiros, como já vimos anteriormente.

9. Vendo Sara que o filho de Agar. Assim como para os latinos, na


língua hebraica o verbo “rir-se”, do qual se deriva o particípio
(metsachaik), tem uma dupla significação, e os hebreus o empre-
gam tanto num sentido positivo como num sentido negativo. Fica
claro pela indignação de Sara que não se trata de um riso infantil e
inofensivo. Portanto, teria sido uma expressão maligna, pela qual o
atrevido jovem manifestou seu desprezo por seu recém-nascido ir-
mão.
E é preciso observar que o epíteto que aqui se aplica a Ismael,
e o nome Isaque, são ambos derivados da mesma raiz. Isaque foi,
para seu pai e os demais, motivo de santo e lícito riso; por isso tam-
bém o nome lhe foi divinamente atribuído. Ismael converte em ridí-
culo a bênção de Deus, da qual fluía tal alegria. Portanto, como um
ímpio zombador, ele se pôs em oposição a seu irmão Isaque. Am-
bos (por assim dizer) são “filhos de riso”; porém, em um sentido bem
diferente. Isaque trouxera riso consigo, desde o ventre de sua mãe,
visto que ele trazia – gravado em si – o evidente sinal da graça de
Deus. Ele, portanto, alegra a casa de seu pai, e essa alegria se ma-
nifesta em ação de graças. Por outro lado, Ismael, com um riso cani-
no e profano, tenta destruir aquele santo júbilo da fé. E não há dúvi-
da de que sua manifesta impiedade contra Deus se revelou nesse
comportamento ridículo. Ele atingira uma idade na qual não podia,
de modo algum, ignorar o favor prometido, em razão do qual seu pai
Abraão se sentiu tomado com tão intenso júbilo; e, ainda – orgulho-
so e confiante em si mesmo –, ele insulta, na pessoa de seu irmão,
tanto Deus como sua palavra, e da mesma forma a fé de Abraão.
Portanto, não foi sem motivo que Sara tenha se irado contra Is-
mael com tamanha veemência, que ordenou que ele fosse expulso
para o exílio. Pois nada é mais grave a uma mente santa, do que
ver a graça de Deus exposta ao ridículo. E esta é a razão por que
Paulo chama seu riso de perseguição, dizendo: “outrora, o que nas-
cera segundo a carne perseguia ao que nasceu segundo o Espírito”
[Gl 4.29]. Foi com espada ou violência? Pior, foi com o escárnio da
língua virulenta, a qual não insulta o corpo, porém fere a própria
alma. Moisés, de fato, poderia ter agravado seu crime com muitas
palavras; mas creio que ele, de propósito, falou assim resumida-
mente para tornar ainda mais detestável a petulância com que Isma-
el ridiculariza a palavra de Deus.

10. Rejeita essa escrava e seu filho. Sara não só se exaspera


contra o transgressor, mas parece agir contra seu esposo mais im-
periosamente do que seria conveniente a uma esposa modesta. Pe-
dro mostra que, quando, numa ocasião anterior, ela chamou Abraão
“meu senhor”, ela não o fez de maneira fingida, visto que ele a apre-
senta, como um exemplo de submissão voluntária, às esposas pie-
dosas e castas [1Pe 3.6]. Agora, porém, ela não só usurpa o gover-
no da casa, reivindicando submissão do seu marido, mas dá ordem
a quem ela deve reverência, exigindo que ele fosse obediente à sua
vontade. Aqui, embora eu não negue que Sara, movida por senti-
mentos femininos, excedeu os limites da moderação, não tenho dú-
vida de que sua língua e mente eram governadas por um impulso
secreto do Espírito Santo, e que toda esse acontecimento foi dirigido
pela providência de Deus. Sem dúvida, ela foi a ministra de grande
e tremendo juízo. E Paulo refere-se a essa expressão, não como
uma simples reprovação fútil, que uma mulher enraivecida derra-
masse, mas como um oráculo celestial. Mas, embora ela sustente
um caráter mais elevado do que o de uma mulher comum, contudo
não tira de seu marido o poder, mas faz dele um executor legítimo
da expulsão.

11. Pareceu isso mui penoso aos olhos de Abraão. Embora a


Abraão já fosse assegurado, por meio de muitos oráculos, que a
descendência abençoada procederia exclusivamente de Isaque,
contudo, sob a influência do afeto paterno, ele não podia suportar
que Ismael fosse cortado, e não ver o propósito de fazer com que a
herança permanecesse firme para aquele a quem ela fora divina-
mente prometida; e assim, ao misturar duas descendências, ele ten-
tou, até onde pôde, confundir a distinção que Deus fizera.
De fato, pode parecer absurdo que o servo de Deus se deixas-
se levar assim por um cego impulso; Deus, porém, o priva de julga-
mento, não só para humilhá-lo, mas também para testificar a todas
as eras que a dispensação de sua graça depende unicamente de
sua vontade. Além disso, para que o santo homem pudesse supor-
tar, com maior tranquilidade, a partida de seu filho, lhe foi prometida
uma dupla consolação. Pois, em primeiro lugar, Deus traz à sua me-
mória a promessa feita concernente a Isaque, como se quisesse di-
zer que é suficiente, e mais que suficiente, que Isaque, em quem a
bênção espiritual foi inteiramente depositada, fique com Abraão. Em
segundo lugar, Deus promete que cuidará de Ismael, ainda que exi-
lado de seu lar paterno; e que uma posteridade se originará dele, a
qual constituirá uma grande nação.
Eu já expliquei, no capítulo 17, qual é o significado da expres-
são “em Isaque será chamada a tua descendência”. E Paulo, em
sua interpretação, usa o termo considerado ou imputado. [Rm 9.8] E
é certo que, por este método, o outro filho foi cortado da família de
Abraão; de modo que não mais teria um nome entre a sua descen-
dência. Pois Deus, havendo separado a Ismael, mostra que toda a
descendência de Abraão seria gerada de um só tronco. Ele também
promete que Ismael seria uma nação, porém separada da Igreja; de
modo que a condição dos irmãos, neste aspecto, seria diferente: um
seria constituído pai de um povo espiritual; e ao outro seria dada
uma descendência carnal. O apóstolo Paulo infere corretamente que
nem todos que constituem a descendência de Abraão são verdadei-
ros e genuínos filhos, mas somente os nascidos do Espírito. Porque,
como Isaque se tornou o filho legítimo por meio de uma graciosa
promessa, assim a mesma graça de Deus faz distinção entre seus
descendentes. Mas, uma vez que já tratamos suficientemente dos
vários filhos de Abraão no capítulo 17, faço aqui apenas uma breve
referência.

12. Atende a Sara em tudo o que ela te disser. Eu já disse que,


embora Deus tenha usado o ministério de Sara num assunto tão im-
portante, contudo era possível que ela falhasse em seu modo de
agir. O Senhor agora ordena a Abraão que dê ouvidos a sua espo-
sa, não porque ele aprove sua atitude, mas porque quer que a obra
da qual é o Autor seja realizada. E assim mostra que seus desígnios
não devem ser submetidos a qualquer norma comum, especialmen-
te quando se trata da salvação da Igreja. Pois, intencionalmente, ele
inverte a ordem comum da natureza, a fim de que possa provar ser
o Autor e o Consumador da vocação de Isaque.
Visto que eu já declarei anteriormente que essa história é consi-
derada mais profundamente pelo apóstolo Paulo, uma breve e resu-
mida referência é suficiente. Em primeiro lugar, ele diz que, o que
aqui se lê deve ser uma alegoria; não que ele pretendesse que to-
das as histórias, indiscriminadamente, sejam forçadas a um sentido
alegórico, como faz Orígenes, que, ao caçar alegorias em todas as
partes, corrompe a Escritura; e outros, imitando com demasiada avi-
dez seu exemplo, têm extraído fumaça da luz. E não só a simplicida-
de da Escritura tem sido corrompida, mas a fé tem sido quase sub-
vertida, e a porta tem sido aberta para muitas tolices.
O propósito do apóstolo Paulo era elevar a mente dos santos à
consideração, nessa história, da obra secreta de Deus, como se ele
quisesse dizer: o que Moisés relata concernente à casa de Abraão
pertence ao reino espiritual de Cristo, visto que, certamente, aquela
casa era uma vívida imagem da Igreja. Isto, contudo, constitui a se-
melhança alegórica que Paulo comenta. Enquanto a Abraão nasce-
ram dois filhos, um de uma escrava, e o outro de uma mulher livre,
ele infere que há dois tipos de pessoas que nascem na Igreja: os fi-
éis, a quem Deus concede o Espírito de adoção, para que desfrutem
da herança; e os discípulos hipócritas, que fingem ser o que não
são, e usurpam, por certo tempo, nome e lugar entre os filhos de
Deus. O apóstolo Paulo, pois, ensina que há alguns que são conce-
bidos e nascidos como escravos mas há outros que procedem de
uma mãe nascida livre. Ele, pois, prossegue dizendo que os filhos
de Agar são gerados pela doutrina servil da lei; mas aqueles que,
havendo abraçado, pela fé, a adoção gratuita, nascem através da
doutrina do evangelho, são filhos da mulher livre.
Por fim, ele apresenta outra semelhança, na qual compara Agar
com o monte Sião; Sara, porém, com a Jerusalém celestial. E, em-
bora aqui eu faça referência, em poucas palavras, àquelas coisas
que meus leitores poderão encontrar claramente expostas por mim
no quarto capítulo da Epístola aos Gálatas, nessa breve exposição,
fica perfeitamente claro o que Paulo pretendia ensinar. Sabemos
que os verdadeiros filhos de Deus nascem da semente incorruptível
da palavra; mas quando o Espírito, que dá vida à doutrina da Lei e
dos Profetas, é retirado, e a letra morta permanece sozinha, então
aquela semente é de tal modo corrompida, que dela só nascem fi-
lhos bastardos em um estado de escravidão; contudo, pelo fato de
que os que nascem da semente corrompida aparentemente nascem
da palavra de Deus, eles são, em certo sentido, seus filhos. Entre-
tanto, nenhum é herdeiro legítimo, exceto aqueles a quem a Igreja
gera para a liberdade, sendo concebidos pela semente incorruptível
do evangelho.
Mas, eu já disse que nessas duas pessoas está representada a
perpétua condição da Igreja. Pois os hipócritas não só se misturam
com os filhos de Deus na Igreja, mas os desprezam e orgulhosa-
mente se apropriam de todos os direitos e honras da Igreja. E, como
Ismael, vangloriando-se do fútil título de primogenitura, incitou seu
irmão Isaque com seus escárnios, assim esses homens, confiando
em seu próprio esplendor, atacam e ridicularizam, de modo reprová-
vel, a verdadeira fé dos humildes; porque, apropriando-se indevida-
mente de tudo, não atribuíram nada à graça de Deus. Por isso so-
mos admoestados, que ninguém possui uma bem fundada confian-
ça de salvação, a não ser aqueles que, sendo chamados graciosa-
mente, têm o favor de Deus como sendo sua única fonte de dignida-
de.
Além disso, o Espírito fornece à consciência dos santos fortes e
eficazes armas contra a ferocidade dos que, sob falso pretexto, se
vangloriam pelo fato de fazerem parte da Igreja. Vemos que não é
novidade indivíduos, que não passam de hipócritas, ocuparem o
principal lugar na Igreja de Deus. Portanto, enquanto hoje os papis-
tas exultam orgulhosamente, não há razão para nos perturbarmos
por causa da sua vanglória e ostentação vazia. Quanto ao fato de se
vangloriarem em sua “antiga herança”, significa precisamente como
se Ismael estivesse se proclamando como primogênito. Por isso é
necessário fazer uma distinção entre a verdadeira Igreja e a hipócri-
ta. O apóstolo Paulo apresenta uma marca que os hipócritas, com
seus pretextos, jamais serão capazes de apagar. Pois como gran-
des botijas são quebradas com um leve golpe, assim, por esta única
palavra, toda sua glória é extinta: “os filhos da escrava não serão
herdeiros eternos.”.
Entretanto, é preciso suportar com paciência tal insolência, até
que Deus desate a rédea de tal tirania. Pois o apóstolo, inicialmente,
se viu oprimido pelos judeus hipócritas de seu tempo, com os mes-
mos escárnios que esses homens hoje lançam sobre nós. Da mes-
ma maneira, Ismael triunfou sobre Isaque, como se houvera obtido a
vitória. Portanto, não devemos nos admirar se nossa época também
tem seus próprios ismaelitas. Mas, para que essa afronta não abale
nosso espírito, que essa consolação venha sobre nós perpetuamen-
te para que aqueles que, embora não tendo direito, arrogam para si
a preeminência na Igreja, não permaneçam nela para sempre.

14. Levantou-se, pois, Abraão de madrugada. Quão dolorosa foi


a ferida infligida sobre a mente do santo homem, causada pelo
medo da perda de seu primogênito, podemos deduzir da dupla con-
solação com que Deus ameniza sua tristeza. Ele envia seu filho ao
banimento, justamente como se estivesse dilacerando suas próprias
entranhas. Mas, acostumado a obedecer a Deus, ele subjuga o
amor paterno, que ele não pode abandonar totalmente. Esse é o
verdadeiro teste da fé e da piedade, quando os fiéis são de tal modo
compelidos a negar a si próprios, que até mesmo renunciam as pró-
prias afeições de sua natureza original, as quais, em si mesmas,
nem são más nem viciosas para com a vontade de Deus. Não há
dúvida de que, durante toda a noite, ele se viu açoitado por várias
preocupações; que ele enfrentou vários conflitos no seu íntimo e su-
portou severos tormentos; apesar de tudo, ele levantou-se de ma-
nhã bem cedo, para apressar sua separação de seu filho; pois ele
sabia que essa era a vontade de Deus.
Tomou pão e um odre de água. Moisés declara não apenas
que Abraão confiou seu filho aos cuidados de sua mãe, mas que re-
nunciou seu próprio direito paterno sobre ele; pois era necessário
que esse seu filho fosse afastado, para que mais tarde não fosse
contado como descendência de Abraão. Mas, com que precária pro-
visão ele dá a sua esposa e seu filho! Ele põe uma jarra de água e
pão sobre os ombros dela. Por que, ao menos, ele não preparou um
jumento com uma boa quantidade de alimento? Por que ele não en-
carrega um de seus muitos servos, para acompanhá-los? Na verda-
de, ou Deus fechou seus olhos para que não fizesse aquilo que cer-
tamente faria com alegria; ou Abraão limitou sua provisão a fim de
que ela não se afastasse demais de sua casa. Pois, indubitavelmen-
te, ele preferiria tê-los perto de si, a providenciar para eles tudo o
que necessitassem.
Entretanto, Deus determinou que o banimento de Ismael fosse
assim severo e doloroso, para que, por seu exemplo, gerasse terror
nos soberbos que, entorpecidos com as dádivas desta vida, pisotea-
vam, em sua altivez, a própria graça à qual são devedores por todas
as coisas. Portanto, ele conduziu mãe e filho a situação angustiante.
Pois, depois de haverem perambulado pelo deserto, a água acaba;
a mãe se afasta de seu filho, como sinal de desespero. Essa era a
recompensa do orgulho, pelo qual eles tinham sido vaidosamente in-
flamados. Seu dever era humildemente abraçar a graça de Deus
oferecida a todo o povo, na pessoa de Isaque; mas eles impiamente
desprezaram aquele que Deus havia exaltado à mais alta honra. O
conhecimento dos dons de Deus deveria ter conduzido a mente de-
les à modéstia. E porque nada lhes seria mais desejável do que per-
manecerem na casa de Abraão, não deveriam ter se esquivado de
qualquer tipo de sujeição com o intuito de manter tão grande benefí-
cio. Por isso, Deus lhes impõe a punição que mereciam por sua in-
gratidão.
17. Deus, porém, ouviu a voz do menino. Moisés dissera anterior-
mente que Agar se pôs a chorar; como, pois, acontece que, descon-
siderando as lágrimas dela, Deus só ouve a voz do menino? Se dis-
sermos que a mãe não merecia receber uma resposta favorável às
suas orações, certamente seu filho não era, de forma alguma, mais
digno. Porque, a alegação de alguns, que ambos foram conduzidos
ao arrependimento por esse castigo, não passa de uma hipótese in-
certa. Deixo o arrependimento deles, do qual não consigo ver ne-
nhum sinal, ao juízo divino. O clamor do menino foi ouvido, em mi-
nha opinião, não porque ele orasse com fé, mas porque Deus, por
zelo à sua própria promessa, estava disposto a ter compaixão deles.
Pois Moisés não diz que seus votos e suspiros foram dirigidos ao
céu; mas que, ao lamentarem suas misérias, não recorreram ao so-
corro divino. Deus, porém, ao assisti-los, levou em conta não o que
desejavam dele, mas o que ele mesmo havia prometido a Abraão
concernente a Ismael. Nesse sentido, Moisés parece dizer que a
voz do menino foi ouvida; isto é, porque ele era filho de Abraão.
Que tens, Agar? O anjo reprova a ingratidão de Agar, porque,
quando se viu reduzida às maiores dificuldades, ela não reflete so-
bre a anterior ação da bondade de Deus para com ela, quando em
perigo similar; de modo que, como alguém que descobrisse que ele
é libertador, ela poderia uma vez mais confiar na sua fidelidade.
Apesar disso, o anjo lhe assegura que um remédio está preparado
para suas dores, se simplesmente o buscar. Portanto, na expressão,
“Que tens?”, há uma reprovação por haver ela se atormentado em
vão, por uma lamentação confusa. Ao dizer mais adiante “Não te-
mas”, ele a convida e exorta a esperar por misericórdia. Mas, pode-
se perguntar qual é o significado da expressão “onde ele está”, que
o anjo acrescenta.
Pode parecer que há uma antítese suprimida entre o lugar onde
o rapaz estava, e a casa de Abraão; de modo que Agar pudesse
concluir que, embora estivesse vagando no deserto como uma exila-
da do santuário de Deus, ainda assim ela não havia sido totalmente
abandonada por Deus, visto que ela o tinha por Guia em seu exílio.
Ou, então, a frase é enfática, implicando que, embora o rapaz fosse
lançado na solidão e contado entre os abandonados, Deus estava
bem perto dele. E assim, para aliviar o desespero da mãe aflita, o
anjo ordena que ela volte ao lugar onde ela havia deitado seu filho.
Pois (como é comum em circunstâncias desesperadoras) ela ficou
atordoada pela tristeza; e teria ficado como alguém já quase morto,
caso não tivesse sido despertada pela voz do anjo. Entretanto, per-
cebemos, nesse exemplo, quão verdadeiramente se diz que, quan-
do pai e mãe nos abandonam, o Senhor nos acolhe [Sl 27.10].

18. Ergue-te, levanta o rapaz. A fim de que ela recuperasse o âni-


mo para criar seu filho, Deus lhe confirma o que havia prometido a
Abraão. Aliás, a própria natureza prescreve de que forma as mães
devem tratar seus filhos; mas, como eu sugeri anteriormente, todos
os sentimentos naturais de Agar teriam sido destruídos, se Deus
não a renovasse, inspirando-lhe nova confiança a dirigir-se com
mais vigor no cumprimento de seu ofício materno. Com respeito à
fonte, ou “poço”, alguns pensam que ela surgiu de repente. Visto,
porém, que Moisés diz que os olhos de Agar foram abertos, e não
que a terra foi aberta ou cavada, eu prefiro a opinião de que, estan-
do previamente atônita pela tristeza, ela não discernia o que estava
nitidamente diante de seus olhos; agora, porém, depois que Deus
lhe restaurou a visão, ela começa a ver. E é digno de especial aten-
ção o fato que, quando Deus nos priva de sua orientação e suprime
de nós sua graça, de tal maneira somos privados de todos os auxíli-
os que se acham ao alcance de nossa mão, que é como se fossem
removidos para bem longe. Portanto, devemos pedir não somente
que ele nos conceda as coisas que nos são úteis, mas que também
nos conceda aquela prudência que nos capacita a usá-las; caso
contrário, será a nossa sorte o desmaiar, com os olhos fechados, di-
ante da fonte.

20. Deus estava com o rapaz. Pode-se dizer que há vários senti-
dos em que Deus está presente com os homens. Ele está presente
com seus eleitos, a quem governa pela graça especial de seu Espí-
rito; ele também está presente, algumas vezes, no que diz respeito
aos cuidados da vida, não só com seus eleitos, mas também com os
estranhos, concedendo-lhes alguma bênção grandiosa; exatamente
como Moisés, aqui, louva a graça extraordinária pela qual o Senhor
declara que sua promessa não é invalidada, uma vez que ele perse-
gue Ismael com favor, porque este era filho de Abraão. Entretanto,
disso se infere esta doutrina geral: que a Deus se deve atribuir o
fato que os homens se desenvolvam, que desfrutem da luz e do so-
pro comuns do céu, e que a terra os supra com alimento. Mas é pre-
ciso lembrar que a prosperidade de Ismael emanava desta causa:
que uma bênção terrena lhe fora prometida, por amor de seu pai
Abraão.
Ao dizer que Agar tomou esposa para Ismael, Moisés está pen-
sando na ordem civil; porque, visto que o matrimônio constitui uma
parte primordial da vida humana, é certo que, ao contraí-lo, os filhos
estejam sujeitos a seus pais e devem obedecer a seus conselhos.
Esta ordem, a qual a natureza prescreve e dita, foi, como vemos,
observada por Ismael, um homem selvagem no barbarismo do de-
serto; pois ele foi submisso a sua mãe na escolha de uma esposa.
Disso percebemos que terrível monstro foi o Papa quando ousou
subverter esse sagrado direito da natureza. A isso também se adici-
ona o imprudente orgulho em consentir um perverso menosprezo
aos pais, em honra do santo matrimônio. Além disso, a esposa egíp-
cia era um tipo de prelúdio à futura discórdia entre israelitas e isma-
elitas.

22. Por esse tempo. Moisés declara que essa aliança foi feita entre
Abraão e Abimeleque, com o propósito de mostrar que, após diver-
sas perturbações, finalmente se concedeu ao santo homem algum
descanso. Ele estava constrangido, como peregrino, e sem uma ha-
bitação fixa, a mudar sua tenda de um lugar para o outro, ao longo
de 60 anos. Mas, embora Deus quisesse que ele fosse um peregri-
no até a morte, contudo, sob o rei Abimeleque, ele lhe concedera
uma habitação tranquila. E o propósito de Moisés é mostrar como foi
que ele ocupou um lugar além do habitual.
Deve-se notar a circunstância de tempo, a saber, logo depois
que ele despedira seu filho. Pois tudo indica que sua grande tribula-
ção foi imediatamente seguida por essa consolação, não somente
para que ele tivesse algum alívio das contínuas inconveniências,
mas também para que ele fosse mais encorajado e se ocupasse
mais tranquilamente da educação de seu filhinho Isaque. Entretanto,
é certo que a aliança não lhe foi, no sentido pleno, motivo de alegria;
visto que percebia que era provado por meios indiretos, e que havia
muitas pessoas naquela região a quem ele parecia desagradável e
odioso. De fato, o rei revelou abertamente sua própria suspeita acer-
ca dele; contudo, essa era a honra mais elevada que o rei daquela
região, de acordo com sua própria vontade, dava a um estrangeiro:
entrar em aliança com ele.
Entretanto, pode-se indagar se essa aliança foi feita sob condi-
ções justas e equitativas, segundo o costume entre aliados. Não te-
nho dúvida de que Abraão prestou livremente a devida honra ao rei,
nem é provável que o rei quisesse abrir mão de algo de sua própria
dignidade, a fim de conferi-la a Abraão. O que, pois, ele fez? Real-
mente, enquanto o rei concedia a Abraão uma morada estável, o
mantinha ligado a si por um juramento.
Deus é contigo em tudo o que fazes. O rei começa em ter-
mos amigáveis e pacíficos; não acusa a Abraão, nem se queixa de
ele haver negligenciado algum dever para consigo mesmo, mas de-
clara que deseja ardorosamente sua amizade; no entanto, seu obje-
tivo é o de querer se proteger contra Abraão. Então se pode indagar
qual é a origem dessa suspeita, ou medo, se Abraão era não ape-
nas um estrangeiro, mas também um homem honesto e moderado.
Em primeiro lugar, sabemos que os pagãos frequentemente ficam
ansiosos sem causa, e se deixam alarmar mesmo em tempos de
tranquilidade. Em segundo lugar, Abraão era um homem merecedor
de reverência, pois o número de servos em sua casa mais parecia
uma pequena nação; e também não há dúvida de que suas virtudes
lhe proporcionaram grande dignidade; foi por isso que Abimeleque
suspeitou de seu poder.
Mas, enquanto Abimeleque pensava consigo mesmo sobre
essa questão, o Senhor, que melhor sabe como dirigir os aconteci-
mentos, providenciou um repouso para seu servo. Entretanto, pode-
mos aprender do exemplo de Abraão, se, em algum momento, os
dons divinos suscitam a inimizade dos homens contra nós, contudo
devemos nos conduzir com uma moderação tal, que eles nada en-
contrem desfavorável em nós.

23. Jura-me aqui por Deus que me não mentirás. Literalmente


“Se mentires”, pois entre os hebreus uma forma defectiva de lingua-
gem é comum ao se fazerem juramentos, o que deve ser explicado
assim: “Se quebrares a promessa feita a mim, invocamos a Deus
que se assente entre nós na qualidade de Juiz, e se manifeste como
o vingador em caso de perjúrio.”. No entanto, aqui alguns tomam
“mentir” como o tratamento injusto e fraudulento; outros, o fracasso
nas condições da aliança. Quanto a mim, simplesmente entendo
como se fosse dito: “Tu não me serás desleal nem com meus des-
cendentes.”. Abimeleque enumera também seus próprios atos de
bondade, para de modo mais convincente exortar a Abraão ao exer-
cício da boa fé; porque, visto que ele recebeu tratamento cordial,
Abimeleque declara que seria um ato de desprezível ingratidão se
Abraão, por sua vez, não tentasse retribuir os benefícios que rece-
bera. A palavra hebraica (chesed) significa tratar alguém gentil e
bondosamente, porquanto Abimeleque não viera implorar de Abraão
compaixão, mas, antes, asseverar sua própria autoridade real, como
ficará evidente pelo contexto.

24. Respondeu Abraão: Juro. Embora tivesse o direito a uma rei-


vindicação mais forte, Abraão não se recusa a cumprir nenhum de-
ver exigido de um bom e moderado homem. E, realmente, visto ser
conveniente aos filhos de Deus estarem voluntariamente prontos ao
cumprimento de todo dever, nada é mais absurdo do que se mostra-
rem relutantes e mal-humorados quando se requer deles o que é
justo. Ele não se recusou a jurar, pois sabia que era justo que as ali-
anças fossem confirmadas entre os homens sob a invocação do
santo nome de Deus. Em suma, vemos Abraão submeter-se volun-
tariamente às leis de sua vocação.

25. Nada obstante, Abraão repreendeu a Abimeleque. Essa quei-


xa parece injusta, pois, se ele fora prejudicado, por que então não
recorreu à solução legítima? Se ele sabia que o rei era humano,
possuía alguma semente de piedade e o havia tratado de modo cor-
dial e honroso, por que então duvida que ele será o justo defensor
de seu direito? Se de fato ele preferiu amenizar a injúria recebida a
ser desagradável ao rei, por que agora lhe imputa falha, como se
fosse culpado? Entretanto, é possível que Abraão soubesse que a
injúria fora feita por causa da excessiva tolerância do rei. Podemos
inferir com toda certeza, tanto de sua maneira quanto de sua dispo-
sição, que ele não protestava sem causa; disso se evidencia a mo-
deração do santo homem porque, quando privado do uso da água,
encontrada por sua própria diligência e trabalho, não questiona, de
que forma a grandeza da injúria o teria justificado em fazê-lo, pois
isso era justo como se os habitantes do lugar atentassem contra a
sua vida. Mas, embora suporte pacientemente tão severa injúria,
contudo, quando, passa do limite e surge a necessidade de buscar
segurança, então ele se protege de uma futura agressão. Vemos
ainda quão severamente o Senhor fortalecia Abraão, enquanto ele
parecia estar um tanto mais à vontade, e havia obtido um pouco de
alívio. Certamente, não era uma prova insignificante ser obrigado a
contender por água; e não por água que fosse de propriedade públi-
ca, mas por um poço que ele mesmo cavara.

27. Tomou Abraão ovelhas e bois. Aqui fica evidente que a aliança
feita não foi do tipo comumente feito entre iguais; pois Abraão pon-
dera sobre sua posição, e como sinal de sujeição oferece um pre-
sente dentre seus rebanhos ao rei de Gerar; porque, o que os lati-
nos chamam “pagar imposto” ou “pagar tributo”, e o que chamamos
“prestar homenagem”, os hebreus chamam “oferecimento de pre-
sentes”. E, de fato, Abraão não espera até que algo seja pela força,
e com autoridade, extorquido dele pelo rei; mas, por uma doação
voluntária de honra, se antecipa aquele que ele sabe tinha o domí-
nio sobre a região. Sabe-se claramente quão grande desejo de
exercer autoridade cerca os homens. Por isso, maior louvor se deve
à modéstia de Abraão, que não só se abstém do que pertence a ou-
tro homem, mas ainda oferece, sem imposição, o que, em sua pró-
pria mente, considera ser devido a outrem, em razão de seu ofício.
Entretanto, surge uma questão adicional: visto que Abraão sa-
bia que o domínio sobre a terra lhe fora divinamente confiado, seria
lícito professar uma sujeição pela qual reconhecia outro como se-
nhor? Mas a resposta a isso é simples, porque o tempo de tomar
posse ainda não havia chegado; pois ele era senhor só em expecta-
tiva, enquanto que, de fato, ele era um peregrino. Portanto, ele agiu
corretamente em comprar uma habitação, até que viesse o tempo
em que o que lhe fora prometido seria entregue à sua posteridade.
Assim, logo depois, como veremos, ele pagou o preço pela sepultu-
ra de sua esposa. Em suma, até que ele fosse posto, pela mão de
Deus, como autoridade legítima sobre a terra, não hesitou em tratar
com os habitantes daquele lugar, para que tivesse a permissão de
habitar entre eles, ou pelo pagamento de certo preço.

28. Pôs Abraão à parte sete cordeiras do rebanho. Moisés apre-


senta outro ponto primordial da aliança, a saber, que Abraão buscou
garantias com respeito ao poço, de que ele poderia usar livremente
de sua água. E pôs no meio sete cordeiras, para que o rei, sendo
presenteado com a dádiva honorífica, aprovasse e confirmasse a
abertura do poço. Pois os habitantes poderiam provocar uma confu-
são, devido ao fato que não era lícito a um único homem, e um es-
trangeiro, cavar um poço; agora, porém, quando a autoridade públi-
ca do rei interveio, a paz de Abraão era anunciada, para que nin-
guém o perturbasse. Muitos entendem cordeiras, aqui, significando
peças de dinheiro cunhadas na forma de cordeiras; visto, porém,
que anteriormente já se fez menção de ovelhas e bois, e Moisés
agora acrescenta imediatamente que sete cordeiras são reservadas,
é absurdo, nessa relação, falar de dinheiro.

31. Por isso, se chamou aquele lugar Berseba. Moisés uma vez
já havia chamado o lugar por esse nome, porém prolepticamente.
Agora, porém, ele declara quando e por qual razão foi dado esse
nome, a saber, porque ali ele e Abimeleque, respectivamente, havi-
am jurado; por isso eu traduzo o termo por “o poço do juramento”.
Outros o traduzem por “o poço dos sete”. Moisés, porém, evidente-
mente deriva a palavra de juramento; não importa se a pronúncia
seja ligeiramente diferente da exatidão gramatical, a qual, em no-
mes próprios, não é observada de modo rigoroso. De fato, Moisés
não restringe a etimologia à palavra poço, mas envolve toda a alian-
ça. Contudo, não nego que Moisés estivesse se referindo ao núme-
ro sete.

33. Plantou Abraão tamargueiras. Aqui fica evidente que mais


descanso foi dado a Abraão, depois que a aliança foi feita, do que
até aqui desfrutara, porque agora ele começa a plantar árvores, o
que é um sinal de uma habitação tranquila e fixa, pois antes não le-
mos que ele plantou um único arbusto. Por isso, vemos o quanto
sua condição havia prosperado, porque lhe fora permitido viver
(como eu já disse) uma vida estável.
Eu interpreto a afirmação de que ele “invocou o nome do Se-
nhor” da seguinte maneira: ele instituiu de novo o culto solene a
Deus, a fim de testificar sua gratidão. Portanto, depois de guiar con-
tinuamente seu servo pelas veredas tortuosas, Deus lhe concedeu
um pouco de tranquilidade, em sua velhice. E algumas vezes ele
trata seu povo fiel de tal maneira que, quando se veem cercados por
várias tormentas, finalmente ele lhes permite respirar livremente.
Com respeito à invocação a Deus, sabemos que Abraão, aonde
quer que fosse, nunca negligenciava esse dever religioso. Muito me-
nos foi ele intimidado pelos perigos de se professar um adorador do
verdadeiro Deus, ainda que, por causa disso, ele fosse odioso aos
seus vizinhos. Mas, como se tornou mais cômoda a sua habitação
na terra, ele se tornou mais enfático na sua adoração a Deus. E por-
que ele agora vivia com mais segurança sob a proteção do rei, tal-
vez quisesse dar testemunho público de que ele havia recebido isso
da parte de Deus.
Pela mesma razão, o título “Deus eterno” parece ser dado como
se Abraão dissesse que ele não depositara sua confiança em um rei
terreno, e não estava buscando uma nova aliança, pela qual estives-
se se apartando do Deus eterno. Em outro lugar eu já expliquei a ra-
zão por que Moisés, pela figura de sinédoque, atribui ao culto divino
o nome de invocação. Finalmente, lemos aqui que Abraão peregri-
nou na terra em que ele, contudo, tinha um domicílio fixo; disso
aprendemos que sua mente não estava tão fixa neste estado de re-
pouso, a ponto de o impedir de considerar o que anteriormente ouvi-
ra da boca de Deus: que ele, com sua descendência, seriam estran-
geiros, até o término de 400 anos.

1 O plural aqui indicado não é ressaltado na versão Almeida Revista e Atualizada, diferente
da Almeida Corrigida Fiel, que traduz assim: “Disse mais: Quem diria a Abraão que Sara
daria de mamar a filhos? Pois lhe dei um filho na sua velhice”.
C A P ÍT U L O 2 2

1. Depois dessas coisas. Este capítulo contém uma narrativa bas-


tante notável. Pois, embora Abraão, ao longo de todo o curso de sua
vida, tenha dado provas surpreendentes de fé e obediência, não se
pode imaginar nenhuma mais excelente do que a disposição para
imolar o seu filho. Pois outras provações com que o Senhor o exer-
citara tendiam, de fato, para sua mortificação; mas a presente pro-
vação lhe infligiu uma ferida muito mais grave do que a própria mor-
te.
Aqui, porém, devemos levar em conta algo maior e mais eleva-
do do que a tristeza e angústia paternais, as quais, sendo produzi-
das pela morte de um filho único, traspassou o peito do santo ho-
mem. Seria doloroso demais ser privado de seu único filho, e mais
doloroso ainda porque esse filho lhe seria arrancado por uma morte
violenta, mas, muito mais grave porque ele mesmo seria designado
como o executor para matá-lo com suas próprias mãos.
Nesse momento, omitirei outras circunstâncias que serão referi-
das em seu devido lugar. Mas, se comparadas com o conflito espiri-
tual da consciência que ele suportou, todas essas coisas parecerão
uma brincadeira ou apenas vestígios de conflitos. Pois, para ele, a
grande fonte de tristeza não era sua própria perda, nem que lhe foi
ordenado que matasse seu filho único – a esperança de memorial e
nome futuros, a glória e a base de sua família –, mas era o fato de
que, na pessoa desse filho, toda a salvação do mundo parecia pere-
cer e se extinguir. Sua luta também não era contra seus sentimentos
carnais, e sim, visto que desejava dedicar-se totalmente a Deus, sua
própria piedade e religião o envolviam com pensamentos perturba-
dores. Pois Deus, como se estivesse em uma disputa com Abraão,
requer a morte do rapaz, em quem ele mesmo anexara a esperança
de eterna salvação. De modo que essa última ordem foi, em certo
sentido, a destruição da fé. Essa antecipação da história que temos
diante de nós foi considerada útil para dar aos leitores a oportunida-
de de refletirem o quanto necessitam de diligente e constante medi-
tação.
Não se deve restringir a expressão “Depois dessas coisas” ape-
nas nessas recentes considerações; ao contrário, Moisés deseja
nela abranger os vários eventos pelos quais Abraão se viu arrastado
de um lado para outro; e, novamente, o estado de vida um pouco
mais tranquilo que, em sua velhice, ele ultimamente começara a
desfrutar. Em seus últimos 80 anos, Abraão tinha vivido uma vida
instável em contínuo exílio; vendo-se cercado por muitas afrontas e
injúrias, enfrentara com dificuldade uma existência miserável e de
profunda ansiedade, em contínua agitação; a fome o afastara da ter-
ra, para onde fora chamado pela ordem e favor de Deus, para o Egi-
to. Duas vezes sua esposa fora arrancada de seus braços; fora se-
parado de seu sobrinho; sobrinho que ele havia libertado quando
capturado em guerra, pondo em risco sua própria vida. Ele e sua es-
posa viveram sem filho, quando, no entanto, todas as suas esperan-
ças dependiam de possuírem uma descendência. Por fim, tendo ob-
tido um filho, se viu compelido a deserdá-lo e a expulsá-lo para lon-
ge de casa. Só lhes restou Isaque, seu especial, porém, único con-
solo; ele estava desfrutando de paz em casa, mas agora Deus, de
repente, bradou do céu, anunciando sobre este filho a sentença de
morte. Portanto, o significado da passagem é que, por essa prova-
ção, como se fosse o último ato, a fé de Abraão foi testada muito
mais severamente do que antes.
Pôs Deus Abraão à prova. Tiago, ao negar que alguém seja
tentado por Deus [Tg 1.13], refuta as profanas calúnias dos que,
com o intuito de isentar-se da responsabilidade de seus pecados,
tentam lançar a culpa deles em Deus. Por isso, Tiago corretamente
afirma que os pecados, que têm a sua raiz em nossa própria concu-
piscência, não devem ser lançados sobre os outros. Pois, embora
Satanás injete seu veneno e alimente a chama de nossos desejos
corruptos em nosso íntimo, não somos impelidos à prática de peca-
do por nenhuma força externa; mas nossa própria carne nos seduz
e, espontaneamente, cedemos às atrações. Contudo, essa não é a
razão pela qual não se pode dizer que Deus nos prova à sua própria
maneira, precisamente como provou Abraão – isto é, arrastou-o a
um severo teste –, a fim de fazer prova completa da fé de seu servo.
E lhe disse. Moisés destaca o tipo de tentação, a saber, que
Deus abalaria a fé que o santo homem depositara em sua palavra,
indo contra a sua própria palavra. Portanto, ele o chama pelo nome,
a fim de que não houvesse dúvida com respeito ao Autor da ordem.
Porque, a menos que Abraão se sentisse plenamente persuadido de
que era a voz de Deus que lhe ordenava matar a seu filho Isaque,
ele teria sido facilmente aliviado da ansiedade; porque, confiando na
infalível promessa de Deus, teria rejeitado a sugestão como sendo
uma falácia de Satanás; e, assim, sem qualquer dificuldade, a tenta-
ção teria sido lançada fora. Agora, porém, é removida toda a dúvida,
de modo que, sem contestar, ele reconhece que o oráculo que está
ouvindo vem de Deus.
Entretanto, Deus, em certo sentido, assume um duplo caráter,
para que, mediante a aparente divergência e contradição em que se
apresenta em sua palavra, ele pudesse perturbar e ferir o peito do
santo homem. Pois o único meio de nutrir constância de fé é apli-
cando todos os sentidos à palavra de Deus. Mas tão grande era a
discrepância da palavra naquele momento, que ela feriria e dilacera-
ria a fé de Abraão. Por isso, há grande ênfase na palavra “disse”,
porque Deus de fato estava provando a fé de Abraão, não da manei-
ra habitual, mas arrastando-o para uma disputa com a sua própria
palavra.
Sejam quais forem as tentações que nos assaltem, saibamos
que a vitória está em nossas mãos, desde que sejamos dotados de
uma fé inabalável; de outro modo, de forma alguma seríamos capa-
zes de resistir. Se, quando formos privados da espada do Espírito,
somos vencidos, qual seria nossa condição se o próprio Deus nos
atacasse com a própria espada com que ele costuma nos armar?
Isso, contudo, se deu com Abraão. A maneira com que, pela fé,
Abraão lutou com essa provação, veremos mais adiante no momen-
to apropriado.
Este lhe respondeu: Eis-me aqui! Aqui fica claro que o santo
homem de modo algum estava com medo das ciladas de Satanás.
Pois os fiéis não se apressam de tal modo a obedecer a Deus, que
permitam que uma tola credulidade os arraste a toda e qualquer di-
reção que o vento de uma visão duvidosa porventura venha a so-
prar. Mas, quando ficou claro para Abraão que realmente foi chama-
do por Deus, testificou, por sua resposta, seu pronto desejo de obe-
decer. Pois, a expressão que está diante de nós, é como se ele dis-
sesse: não importa o que Deus queira ordenar-me, estou plenamen-
te pronto a obedecer. E, realmente, ele nem espera até que Deus
lhe ordene expressamente isto ou aquilo, mas promete que será
simplesmente, e sem exceção, obediente em todas as coisas. Sem
dúvida esta é a genuína submissão: quando estamos prontos para
agir, antes mesmo que a vontade de Deus nos seja conhecida. De
fato, descobrimos que todos os homens estão prontos a vangloriar-
se de que farão o que fez Abraão; mas, quando a provação lhes
chega, se esquivam do jugo de Deus. O santo homem, porém, ime-
diatamente prova, por seu próprio ato, quão verdadeira e seriamente
professara que, sem demora, e sem disputa, se sujeitaria à mão de
Deus.

2. Toma teu filho. Abraão recebe a ordem de imolar seu filho. Se


Deus nada mais dissesse, senão que seu filho morreria, mesmo
esta mensagem teria ferido mui gravemente sua mente; porque,
seja qual for o favor que ele pudesse esperar de Deus, estava inclu-
sa nesta promessa singular: “Em Isaque será chamada tua descen-
dência.”. Disso, necessariamente, ele inferiu que sua própria salva-
ção, e a de toda a raça humana, pereceria, a menos que Isaque per-
manecesse a salvo. Pois, por essa palavra, ele fora instruído que
Deus não seria propício ao homem sem um Mediador. Porque, em-
bora a declaração de Paulo de que “todas as promessas de Deus,
em Cristo, são o Sim e o Amém” [2Co 1.20] ainda que tivesse escri-
ta, estava, no entanto, gravada no coração de Abraão. Mas, de onde
poderia ter recebido essa esperança, senão de Isaque? A conclusão
disso parece ser a de que Deus não está fazendo outra coisa, senão
brincando com Abraão. Contudo, não só a morte de seu filho lhe é
anunciada, mas ele recebe a ordem de matá-lo com as suas própri-
as mãos, como se lhe fosse exigido não apenas que o rejeitasse,
mas também o cortasse em pedaços, ou lançasse ao fogo o alvará
de sua salvação, e nada mais lhe restasse, senão morte e inferno.
Mas, pode-se perguntar: como, sob a diretriz da fé, ele poderia
deixar-se levar a sacrificar seu filho, posto que o que lhe era propos-
to estava em oposição àquela palavra de Deus, da qual a fé neces-
sariamente depende? O apóstolo responde essa pergunta dizendo
que a confiança de Abraão na palavra de Deus permaneceu inaba-
lável, porque ele sabia que Deus era poderoso para fazer com que a
bênção prometida ressurgisse, mesmo das cinzas mortas de seu fi-
lho [Hb 11.19]. Contudo, com certeza, sua mente foi severamente
esmagada e violentamente agitada, quando o mandamento e a pro-
messa de Deus estavam em conflito em seu íntimo. Mas, quando
chegou à conclusão de que o Deus, com quem ele tinha um relacio-
namento, não podia ser seu adversário, embora não lhe ocorrera
imediatamente como poderia remover a contradição, contudo, pela
esperança, concilia a ordem com a promessa; porque, sendo indubi-
tavelmente persuadido de que Deus era fiel, deixou com a Providên-
cia divina o resultado desconhecido. Entretanto, como se estivesse
com olhos fechados, ele segue por onde é guiado. A verdade de
Deus merece essa honra; não apenas porque ela transcende muitís-
simo a todos os meios humanos, ou porque sozinha, mesmo sem
meios, nos é suficiente, mas também porque supera a todos os obs-
táculos.
Aqui, pois, percebemos mais claramente a natureza da prova-
ção que Moisés tem destacado. Era difícil e penoso para Abraão es-
quecer de que era pai e marido; abandonar todos os afetos huma-
nos; e suportar, diante do mundo, o estigma de vergonhosa cruelda-
de, tornando-se o executor de seu filho. Mas a outra coisa era muito
mais severa e horrível, ou seja, que ele concebe Deus contradizen-
do a si próprio e a sua própria palavra; e então ele supõe que a es-
perança da bênção prometida lhe será cortada, quando Isaque for
arrancado de seus braços. Pois o que mais ele poderia ter a ver
com Deus, quando o único penhor da graça lhe é tirado? Mas, como
antes, quando esperava a descendência de seu próprio corpo mor-
to, pela esperança, se elevou acima do que pareceria possível espe-
rar; assim agora, quando, na morte de seu filho, percebe o vivifican-
te poder de Deus, de tal maneira que promete a si mesmo uma bên-
ção a partir das cinzas de seu filho, ele emerge do labirinto da tenta-
ção; porque, para que pudesse obedecer a Deus, era necessário
que mantivesse firmemente a promessa, a qual, se falhasse, a fé te-
ria perecido. Mas com ele a promessa sempre floresceu; porque re-
teve firmemente o amor com que Deus uma vez o abraçara, e sub-
meteu ao poder de Deus tudo o que Satanás armou para perturbar
sua mente. Mas ele não quis medir, por seu próprio entendimento, o
método de cumprir a promessa, o qual bem sabia que dependia do
incompreensível poder de Deus.
Resta a cada um de nós aplicar a si mesmo o exemplo de Abra-
ão. O Senhor, de fato, é de tal modo benevolente para com a nossa
debilidade, que não prova nossa fé com excessiva severidade e
agudeza; mas, sua intenção era propor, no pai de todos os crente,
um exemplo pelo qual pudesse intimar-nos a provação geral da fé.
Pois a fé, que é mais preciosa do que a prata e o ouro, não deve ser
ociosa, sem provação; e a experiência ensina que cada um será
provado por Deus segundo a medida de sua fé. Ao mesmo tempo,
também, podemos observar que Deus prova a seus servos não só
quando subjuga os afetos da carne, mas quando reduz a nada todos
os seus sentidos, para que os conduza a uma completa renúncia de
si mesmos.
Teu único filho, Isaque, a quem amas. Como se não bastasse
ordenar, numa palavra, o sacrifício de seu filho, Deus traspassa,
com novos golpes, a mente do santo homem. Ao chamá-lo “teu úni-
co filho”, uma vez mais Deus inflama a ferida recém-infligida, pelo
banimento do único filho; Abraão, pois, olha para o futuro, porque já
não restava nenhuma esperança de descendência. Se a morte de
um primogênito costumava ser penosa, qual seria o lamento de
Abraão? Cada palavra que segue é enfática e serve para agravar
sua tristeza. “Mata”, diz o Senhor, “aquele a quem amas.”. E aqui ele
não se refere meramente ao seu amor paterno, mas àquele que
emanava da fé. Abraão amava a seu filho, não apenas como pres-
creve a natureza – e como os pais comumente fazem, quando se
deleitam em seus filhos –, mas também contemplando o amor pater-
no de Deus nele. Finalmente, Isaque era o espelho da vida eterna e
o penhor de todas as coisas boas. Portanto, é como se Deus de tal
modo assaltasse o amor paterno de Abraão e pisasse a sua própria
benevolência. Há igual ênfase no nome Isaque, pelo qual Abraão foi
instruído que, em nenhum outro lugar, restava para ele qualquer ale-
gria. Certamente, quando aquele que fora dado, como motivo de
alegria, fosse levado embora, seria como se Deus condenasse
Abraão ao tormento eterno. Devemos ter sempre em mente que Isa-
que não era qualquer filho, mas aquele em quem a pessoa do Medi-
ador foi prometida.
Vai-te à terra de Moriá. A amargura da tristeza é consideravel-
mente aumentada por essa circunstância. Pois Deus não exige que
ele mate seu filho imediatamente, mas o compele a revolver essa
execução em sua mente durante três longos dias, para que, ao pre-
parar-se para sacrificar seu filho, torturasse ainda mais severamente
todos os seus próprios sentimentos. Além disso, Deus nem mesmo
dá nome ao lugar onde quer que o terrível sacrifício fosse oferecido:
“sobre um dos montes”, diz o Senhor, “que eu te mostrarei.”. Assim,
anteriormente, quando se lhe ordenou que deixasse seu país, ele
manteve sua mente em suspense. Mas, agora, a demora que tão
cruelmente atormentou o santo homem, como se ele fosse estendi-
do num apetrecho de tortura, seria ainda menos tolerável.
Houve, contudo, uma dupla utilidade desse suspense. Pois não
há nada a que somos mais propensos do que ser sábios além de
nossa capacidade. Portanto, para nos tornarmos humildes e obedi-
entes a Deus, nos é proveitoso que sejamos privados de nossa pró-
pria sabedoria e que nada nos seja deixado, senão em nos subme-
ter e sermos guiados segundo sua vontade. Em segundo lugar, isso
também o inclinava a ser perseverante, de modo que não obedece-
ria a Deus meramente por um súbito impulso. Porque, como ele não
retrocedeu em sua viagem, nem revolve na mente conselhos confli-
tantes, disso fica evidente que seu amor para com Deus foi confir-
mado por tal constância, que não poderia ser afetado por qualquer
mudança de circunstâncias.
Jerônimo traduz a expressão “a terra de Moriá” por “a terra da
visão”, como se o nome fosse derivado de (rahah). Mas todos
quantos são hábeis no idioma hebraico condenam essa opinião.
Também não me sinto mais satisfeito com os que a traduzem por
mirra de Deus. Certamente se reconhece, pelo consenso da maio-
ria, que o termo se deriva da palavra (yarah), que significa ensinar,
ou de (yarai), que significa temer. Há, entretanto, até hoje, certa
diferença entre os intérpretes, alguns dos quais creem que a doutri-
na de Deus é aqui especialmente inculcada. Sigamos a opinião mais
provável, isto é, que ela é chamada a terra do culto divino, ou por-
que Deus a designara para o oferecimento de sacrifício – a fim de
que Abraão não contestasse sobre se algum outro lugar não deveria
ser escolhido, ou porque o lugar para o templo já estava fixado ali.
Eu adoto esta segunda explicação: que Deus requereu que ali se
apresentasse o culto de seu servo Abraão porque, em seu conselho
secreto, ele já havia determinado em que lugar fixaria seu culto sole-
ne. E os sacrifícios recebem apropriadamente seu nome da palavra
que significa temor, porque eles dão prova de reverência a Deus.
Além disso, de modo algum se deve ter dúvida de que esse é o lu-
gar onde o templo foi mais tarde construído.

3. Levantou-se, pois, Abraão de madrugada. Essa prontidão exi-


be a grandeza da fé de Abraão. Inumeráveis pensamentos teriam
penetrado a mente do santo homem, cada um dos quais teria esma-
gado seu espírito, a menos que fosse fortificado pela fé. E não há
dúvida de que Satanás, durante as trevas da noite, amontoaria so-
bre ele uma imensa quantidade de preocupações. Progressivamen-
te as vencia, contendendo com elas, como parte da sua coragem
heroica. Mas, quando eram vencidas, então imediatamente se re-
vestia para o cumprimento da ordem divina, inclusive levantar-se de
manhã bem cedo para fazê-lo, era um esforço extraordinário. Outros
homens, prostrados diante de uma mensagem tão medonha e terrí-
vel, teriam desfalecido, e teriam ficado entorpecidos, como se esti-
vessem privados da vida; mas o primeiro clarão da madrugada difi-
cilmente seria cedo demais para a pressa de Abraão. Portanto, em
poucas palavras, Moisés enaltece sua fé de maneira sublime, quan-
do declara que ela superou, em tão curto espaço de tempo, a pró-
pria tentação que era acompanhada de muita confusão.

4. Viu o lugar de longe. De fato ele viu, com seus olhos, o lugar
que antecipadamente lhe fora mostrado em uma visão secreta. Mas,
quando lemos que ele ergueu seus olhos, sem dúvida Moisés quer
dizer que ele estivera extremamente ansioso durante os três dias.
Quando Abraão ordenou a seus servos que esperassem, foi para
que não impusessem as mãos sobre ele, como se fosse um velho a
sofrer de delírio e insanidade. E aqui a sua grande nobreza é evi-
denciada, pois ele tem seus pensamentos tão serenos e tranquilos
que não faz nada de maneira desequilibrada.
Contudo, ao dizer que voltaria com o rapaz, parece que Abraão
estava agindo com dissimulação e falsidade. Alguns acreditam que
ele fez essa declaração em termos proféticos; visto, porém, ser cer-
to que ele nunca perdera a visão o que lhe havia sido prometido a
respeito do desenvolvimento da descendência de Isaque, pode ser
que ele, confiando na providência divina, acreditava que seu filho
sobreviveria até mesmo à morte. E, visto que ele partiu, como se es-
tivesse com os olhos fechados, para o sacrifício de seu filho, nada
há de improvável na suposição de que ele falava confusamente de
um caso muito obscuro.

7. Meu pai! Aqui, Deus apresenta um novo instrumento de tortura


pelo qual poderia atormentar ainda mais o peito de Abraão, já mago-
ado com tantas feridas. E não devemos duvidar que Deus, intencio-
nalmente, conduzisse a língua de Isaque para esse terno apelo, e a
dirigisse para fazer essa pergunta, a fim de que nada faltasse à ex-
trema severidade da tristeza de Abraão. Contudo, o santo homem
suporta até mesmo esse golpe com invencível coragem; e se vê tão
longe de perturbar-se em seu percurso, que demonstra estar inteira-
mente devotado a Deus, que não dá ouvidos a nada que pudesse
abalar sua confiança ou impedir a sua obediência.
Mas é importante notar a maneira como ele desata este difícil
nó, a saber, buscando refúgio na Providência Divina: “Deus proverá
para si um cordeiro.”. Propõe-se, aqui, este exemplo para nossa imi-
tação. Sempre que o Senhor nos dá uma ordem, muitas coisas
ocorrem para enfraquecer nosso propósito: os meios fracassam, so-
mos destituídos de conselho e todos os caminhos parecem fecha-
dos. Diante de tais dificuldades, o único remédio contra o desespero
é deixar Deus assumir o comando, para que ele mesmo nos mostre
um caminho onde não existe nenhum. Entretanto, agimos injusta-
mente para com Deus quando nada esperamos dele, senão aquilo
que nossos sentidos podem perceber; mas lhe rendemos a mais
elevada honra quando, nos momentos de perplexidade, nos subme-
temos inteiramente à sua providência.

8. E seguiam ambos juntos. Aqui percebemos, respectivamente, a


constância de Abraão e a modéstia de seu filho. Porque, por esse
obstáculo, Abraão não se torna indolente, e o filho não persiste em
replicar à resposta de seu pai. Pois ele bem que poderia ter objeta-
do: para que trouxemos lenha e faca sem um cordeiro, se Deus or-
denou que se lhe ofereçam sacrifícios? Visto, porém, que ele presu-
me que a vítima fora omitida por algum motivo justo e não por es-
quecimento de seu pai, ele se conforma e fica em silêncio.

9. Chegaram ao lugar. Moisés, de propósito, ignora muitas coisas


que, entretanto, o leitor deve considerar. Quando ele faz menção da
construção do altar, logo em seguida acrescenta que Isaque foi
amarrado. Sabemos que ele já era um jovem, de modo que, ou era
mais forte que seu pai, ou, pelo menos, era suficientemente forte
para resisti-lo, caso tivesse que lutar; por isso, eu não creio que te-
nha sido empregada força contra o jovem, isto é, contra alguém que
luta para não morrer; mas, ao contrário, que ele voluntariamente se
rendeu. Contudo, era difícil esperar que ele se oferecesse para mor-
rer, a menos que já tivesse conhecimento do oráculo divino. Moisés,
porém, omitindo essa informação, apenas diz que ele foi amarrado.
Caso alguém objete, dizendo que não havia necessidade de
amarrar alguém que espontaneamente se oferece à morte, minha
resposta é que o santo homem antecipava, desta maneira, um pos-
sível perigo; para que não sucedesse que algo, no meio do ato, que
o interrompesse. A simplicidade da narrativa de Moisés é espanto-
sa; mas ela tem maior força do que a mais exagerada descrição trá-
gica. Tudo isso se resume no seguinte ponto: que Abraão, quando
teve de matar seu filho, permanecia sempre impassível; e que a for-
taleza de sua mente era tal que tornou sua mão envelhecida pronta
para a tarefa de oferecer um sacrifício, cuja visão era suficiente para
dissolver e destruir todo seu corpo.

11. Mas do céu lhe bradou o Anjo do S . A tentação interior


já fora vencida, quando Abraão, intrepidamente, ergueu sua mão
para matar seu filho; e foi pela especial graça de Deus que ele obte-
ve uma vitória tão magistral. Agora, porém, Moisés acrescenta que,
de repente, para além de toda a esperança, a dor de Abraão se con-
verteu em alegria. Os poetas, em suas fábulas, quando as coisas se
tornam desesperadoras, introduzem algum deus que, inesperada-
mente, surge em meio a situação crítica. É possível que Satanás,
por meio de ficções desse gênero, se esforçasse em obscurecer as
maravilhosas e estupendas intervenções de Deus, quando, inespe-
radamente, se manifestou com o propósito ajudar os seus servos.
Essa história certamente deveria ser conhecida e celebrada entre
todo o povo; entretanto, pela sutileza de Satanás, a verdade de
Deus não só é adulterada e transformada em mentira, mas também
distorcida e reduzida a uma fábula, a fim de torná-la, aos olhos do
mundo, ainda mais ridícula. Nosso dever, porém, é considerar, com
mente sincera, quão maravilhosamente Deus, na própria sentença
de morte, não somente chama Isaque da morte para a vida, como
também restaura o filho a Abraão, como alguém que tivesse ressus-
citado.
Moisés descreve ainda a voz do anjo, como se tivesse soado
do céu, para assegurar a Abraão que ele descera de Deus com o
propósito de desviar sua mão, sob a diretriz da mesma fé pela qual
a estendeu. Porque, numa causa de tal magnitude, não lhe era lícito
empreender ou renunciar alguma coisa, exceto sob a autoridade de
Deus. Portanto, aprendamos desse exemplo a de modo algum per-
seguir o que a nossa percepção carnal indique ser o caminho certo
a seguir, mas deixemos Deus, por sua exclusiva vontade, prescrever
a nossa maneira de agir e de deixar de agir. E, de fato, Abraão não
acusa a Deus de inconstância, porque ele considerou que havia
uma justa causa para o exercício de sua fé.

12. Agora sei que temes a Deus. A exposição de Agostinho, “Eu te


fiz saber”, é forçada. Pois como é possível que algo se torne conhe-
cido de Deus, para quem todas as coisas sempre estão presentes?
Realmente, por condescendência à forma humana, aqui Deus diz
que, o que ele provou pela experiência, agora se lhe faz conhecido.
E ele fala assim conosco, não segundo sua própria sabedoria infini-
ta, mas segundo nossa fragilidade. Moisés, entretanto, tem em vista
simplesmente que Abraão, por esse mesmo ato, testificou quão re-
verentemente ele temia a Deus. Contudo, pergunta-se se ele já não
dera, em ocasiões anteriores, muitas provas de sua piedade. Minha
resposta é que, quando Deus quis que ele chegasse até esse ponto,
foi para finalmente completar sua verdadeira provação; em outras
pessoas, uma provação muito menos dolorosa poderia ter sido sufi-
ciente. E, como Abraão demonstrou que temia a Deus, não poupan-
do a seu próprio e unigênito filho, assim um comum testemunho do
mesmo temor se requer de todos os santos, em atos e renúncia.
Portanto, visto que Deus nos impôs uma guerra contínua, devemos
cuidar para que não desejemos sair dela antes do tempo.

13. Tendo Abraão erguido os olhos, viu atrás de si um carneiro.


O que os judeus inventam com respeito a esse carneiro, como se ti-
vesse sido criado no sexto dia do mundo, se assemelha ao resto de
suas ficções. Não há motivo para duvidar que ele foi apresentado ali
por um milagre, não importando se foi previamente criado, ou se foi
trazido de algum outro lugar; pois a intenção de Deus era propiciar a
seu servo a condição de oferecer, com alegria e entusiasmo, um sa-
crifício agradável; e, ao mesmo tempo, admoestá-lo a retribuir com
ação de graças. Além disso, visto que um carneiro é posto no lugar
de Isaque, Deus nos mostra, como num espelho, qual é o objetivo
de nossa mortificação; a saber, que, pelo Espírito de Deus habitan-
do nosso íntimo, embora mortos, sejamos sacrifícios vivos. Eu sei
que aqui se evocam alegorias bastante sutis; mas não vejo sobre
que base elas se fundamentam.

14. E pôs Abraão por nome àquele lugar – O S proverá.


Pelo ato de ação de graças, ele não só reconhece, naquele momen-
to, que Deus lhe fez provisão de uma maneira bastante notável, mas
também deixa à posteridade um testemunho de sua gratidão. Na
mais extrema ansiedade, ele buscou um refúgio na providência de
Deus e, assim, testifica que não agiu em vão. E também reconhece
que nem mesmo o carneiro foi parar ali acidentalmente, e sim que
foi posto ali por Deus. Com o passar do tempo, o nome do lugar foi
mudado, e isso também foi feito intencionalmente, e não por equívo-
co.
Aqueles que traduziram o verbo ativo, “ele verá”, na voz passi-
va, desejaram ensinar, dessa maneira, que Deus não apenas olha
para aqueles que são seus, mas também faz com que a sua ajuda
se manifeste a eles; de modo que, por sua vez, ele possa ser visto
por eles. A primeira tradução tem precedência em ordem, a saber:
que Deus, por sua providência secreta, determina e ordena o que é
melhor para nós; mas, sendo assim, a segunda torna-se irrelevante,
a saber, que ele nos estende sua mão, e se torna visível por verda-
deiros sinais concretos.

15. Então, do céu bradou pela segunda vez o Anjo do S a


Abraão. O que Deus prometeu a Abraão antes do nascimento de
Isaque, ele agora, uma vez mais, confirma e ratifica, depois que Isa-
que foi restaurado à vida, e levantou-se do altar – como se houvera
saído do sepulcro – para consumar um triunfo mais completo. O
anjo fala como representante de Deus para que, como já dissemos,
a embaixada dos que levam seu nome tivesse maior autoridade, por
se vestirem com sua majestade.
Entretanto, imagina-se que estas duas coisas dificilmente seri-
am consistentes uma com a outra: que o que antes fora prometido
graciosamente aqui fosse considerado galardão. Pois sabemos que
graça e galardão são incompatíveis. Agora, pois, visto que a bênção
que é prometida à descendência contém a esperança de salvação,
pode parecer que a vida eterna é dada em retribuição às boas
obras. E os papistas se apegam ousadamente a essa, e a outras
passagens semelhantes, na tentativa de provar que as obras são
merecedoras de todas as coisas boas que Deus nos concede. Mas
eu prontamente remeto esse argumento sutil àqueles que o formu-
lam. Pois, se aquela promessa que antes era gratuita, é agora atri-
buída a um galardão, parece que, seja como for que Deus concede
as boas obras, o galardão deve ser recebido como procedente gra-
ça. Certamente, antes que Isaque nascesse, essa mesma promessa
já havia sido feita; e agora ela simplesmente é confirmada. Se Abra-
ão mereceu uma compensação tão grande por causa de sua própria
virtude, a graça de Deus, que o antecedeu, não terá nenhum efeito.
Portanto, para que a verdade de Deus, fundada em sua bondade
gratuita, possa permanecer firme, devemos necessariamente con-
cluir que, o que é dado gratuitamente, é ainda denominado de re-
compensa das obras. Não que Deus obscureça a glória de sua bon-
dade, ou de alguma maneira a diminua; mas somente para que ele
possa estimular o seu próprio povo ao amor de fazer o bem, quando
percebe que seus atos de obediência lhe são tão agradáveis a pon-
to de obterem alguma recompensa; portanto ele nada paga como dí-
vida, porém dá a seus próprios benefícios o título de galardão.
E nisto não existe inconsistência. Pois o Senhor, aqui, mostra-
se duplamente gracioso; primeiro, desejando nos estimular a um vi-
ver santo; e, segundo, transferindo para nossas as obras o que pro-
priamente pertence somente à sua benevolência. Os papistas, por-
tanto, distorcendo erroneamente esses benignos estímulos de Deus
– pelos quais ele quer nos libertar do nosso entorpecimento – para
um propósito diferente, a fim de que o homem possa se arrogar,
para seus próprios méritos, daquilo que é exclusivamente um dom
da bondade divina.

17. A tua descendência possuirá a cidade dos seus inimigos.


Moisés quer dizer que a descendência de Abraão seria vitoriosa so-
bre seus inimigos; pois nos portões estariam seus baluartes, e neles
administrariam juízo. Embora Deus frequentemente permitisse que
os inimigos dos judeus os dominassem tiranicamente, contudo de tal
modo moderava sua vingança, que essa promessa, no fim, sempre
prevalecia. Além disso, é preciso que recordemos o que previamen-
te foi citado de Paulo concernente à unidade da descendência; pois
daqui inferimos que a vitória é prometida, não aos filhos de Abraão
indiscriminadamente, e sim a Cristo e a seus membros, enquanto vi-
vem unidos sob um só Cabeça. Pois a menos que retenhamos algu-
ma marca que distinga entre os legítimos e os degenerados filhos
de Abraão, essa promessa abrangerá indiscriminadamente tanto os
ismaelitas e edomitas, como o povo de Israel; mas a unidade de um
povo depende de seu cabeça. Por isso, sempre que os profetas
queriam confirmar essa promessa divina, faziam uso do princípio de
que, aqueles que até então viveram divididos, serão unidos sob Davi
em um só corpo. O que mais se refere a esse assunto pode ser en-
contrado no capítulo 12.

19. Então, voltou Abraão aos seus servos, e, juntos, foram para
Berseba. Moisés reitera que Abraão, depois de haver enfrentado
essa severa e incrível tentação, habitou tranquilamente em Berseba.
Esta narrativa é inserida, juntamente com o que segue acerca do
acréscimo na família de Abraão, com o propósito de mostrar que o
santo homem, quando foi arrancado outra vez do abismo da morte,
veio a ser feliz de várias maneiras. Pois Deus de tal modo o quis re-
vitalizar, que ele seria como um novo homem. Moisés registra ainda
a descendência de Naor, mas por outra razão, a saber, porque Isa-
que estava para tomar sua esposa dessa descendência. Pois a
menção de mulheres na Escritura é rara; e é certo que muitas filhas
nasceram de Naor, dentre as quais apenas uma, Rebeca, é aqui
apresentada. Moisés distingue os filhos da concubina dos demais,
porque ocuparam um lugar de menos honra. Não que a concubina
fosse considerada uma prostituta, mas porque ela era uma esposa
inferior, e não a senhora da casa, a qual tinha comunhão de bens
com seu esposo. O fato, contudo, que levou Naor a tomar uma se-
gunda esposa não faz da poligamia uma prática legítima; apenas
mostra que, com base no costume dos demais homens, ele presu-
miu que lhe seria lícito o que na verdade emanava da pior corrup-
ção.
C A P ÍT U L O 2 3

1. Tendo Sara vivido cento e vinte e sete anos. É notável que


Moisés, que relata a morte de Sara numa única palavra, use tantas
para descrever seu sepultamento; mas logo veremos que o segundo
registro não é supérfluo. Por que ele se refere com tanta brevidade
à sua morte, eu não sei, exceto que ele deixa a seus leitores mais
para reflexão do que ele expressa. Os santos pais perceberam que,
igualmente aos réprobos, eles estavam sujeitos à morte. Apesar dis-
so, não se sentiram desencorajados de avançar intrepidamente
rumo ao alvo, mesmo vivendo dolorosamente uma vida cheia de so-
frimento. A consequência disso foi que eles, sentindo-se animados
pela esperança de uma vida melhor, não davam lugar à fadiga.
Moisés diz que Sara viveu 127 anos; e, visto que ele reitera a
palavra anos após cada um dos números, os judeus inventaram que
isso foi feito porque ela fora tão bela em seu centenário, como em
seu vigésimo ano, e tão modesta na flor da idade, como quando ti-
nha sete anos. Este é o costume deles: enquanto desejam provar
que são habilidosos em render honra a sua nação, inventam tagare-
lices frívolas, as quais traem uma vergonhosa ignorância; por exem-
plo, nesse ponto, quem não diria que eram inteiramente ignorantes
de seu próprio idioma, no qual este tipo de repetição é tão usual?
Também a discussão de outros sobre a palavra (him, vidas) é
destituída de solidez. A razão por que os hebreus usam a palavra vi-
das, no plural, no lugar de vida, não pode ser mais bem explicado,
no meu modo de ver, do que a razão pela qual os latinos expressam
na forma plural algumas coisas que estão no singular. Bem sei que
a vida dos homens é múltipla, porque, além da vida meramente ve-
getativa, e além do sentido que têm em comum com os animais irra-
cionais, são também dotados com mente e inteligência. Esse argu-
mento, pois, é plausível, embora não seja sólido. Há mais veracida-
de na opinião dos que pensam que aqui estão implícitos os vários
eventos da vida humana; vida esta que, visto nada ter de estável,
mas é agitada pelas constantes vicissitudes, é corretamente dividida
em muitas “vidas”. No entanto, eu estou satisfeito por simplesmente
me referir ao estilo gramatical da linguagem, cuja razão nem sempre
deve ser investigada curiosamente.

2. Morreu em Quiriate-Arba. Fica claro a partir de Josué 15.54, que


esse era o mais antigo nome da cidade, a qual mais tarde passou a
ser chamada Hebrom. Mas há uma diferença de opinião com respei-
to à etimologia. Alguns acreditam que o nome se deriva do fato de
que a cidade consistia de quatro partes; como os gregos chamavam
a cidade dividida em três ordens de Tripoli, e de Decápolis, uma
dada região composta por dez cidades. Alguns presumem que Arba
é o nome de um gigante, que acreditavam ter sido o rei ou o funda-
dor da cidade. Outros ainda preferem a noção de que o nome foi
dado ao lugar de quatro1 dos pais: Adão, Abraão, Isaque e Jacó,
que foram sepultados ali com suas respectivas esposas. De bom
grado suspendo meu juízo sobre uma matéria , e não muito neces-
sária para ser conhecida.
Vale mais, para a presente história, perguntar por que a morte
de Sara se deu em um lugar diferente daquele em que Abraão mo-
rava. Caso alguém replique dizendo que ambos haviam mudado seu
domicílio, as palavras de Moisés se opõem a isso, porquanto ele diz
que Abraão veio sepultar sua morta. Disso podemos facilmente infe-
rir que ele não estava presente em sua morte; nem é provável que
fossem separados meramente por estarem em diferentes tendas; de
modo que ele caminhou dez ou vinte passos com o propósito de
prantear, enquanto um dever mais importante fora negligenciado.
Por essa razão, alguns acreditam que naquele momento Abraão es-
tava de viagem. A mim, porém, parece mais provável que seu domi-
cílio estivesse então em Hebrom, ou, ao menos, no vale de Manre, o
qual faz fronteira com a cidade. Pois, após uma pequena pausa que
lhe fora concedida, se viu logo obrigado a voltar às suas costumei-
ras peregrinações. E, embora Moisés não diga que Abraão deu a
sua esposa, enquanto esta ainda vivia, as devidas atenções requeri-
das de um esposo, creio que ele omite essa informação, como coisa
indubitavelmente certa, e que fala particularmente da lamentação,
como uma questão conectada ao cuidado de sepultura. Que habita-
vam separadamente, mais adiante se verá; não como sendo em re-
giões distintas, mas porque cada um habitava em compartimento
separado, ainda que em tendas contíguas. E isso não era sinal de
dissensão ou rivalidade, mas, antes, deve-se atribuir ao tamanho da
família. Pois, como Abraão tinha muita dificuldade em governar tão
grande contingente de servos, assim sua esposa teria igual dificul-
dade em reter suas servas sob custódia, casta e honesta. Portanto,
o grande número de servos, que não estava isento de se misturar,
os obrigou a dividir a família.
Mas, pode-se indagar qual a finalidade correspondente à apro-
ximação do corpo com o intuito de promover lamentação sobre ele.
A morte de sua esposa não era suficientemente dolorosa e amarga
para evocar sua tristeza, sem esse estímulo adicional? Teria sido
melhor buscar alívio para sua dor do que nutri-la, e mesmo aumen-
tá-la, movido por clemência. Minha resposta é: se Abraão se dirigiu
à sua esposa morta a fim de produzir pranto excessivo e traspassar
de novo seu coração com novas feridas, seu exemplo não deve ser
aprovado. Mas se ele, por um lado, privativamente pranteou sobre a
morte de sua esposa, como o espírito humano exige, exercendo au-
tocontrole em agir assim, e, por outro lado, voluntariamente lamen-
tou sobre a maldição comum do gênero humano, não há falha em
ambos os casos.
Pois não sentir nenhuma tristeza ante a contemplação da mor-
te, é mais barbarismo e estupor do que firmeza mental. Entretanto,
como Abraão era um homem, é possível que sua tristeza fosse ex-
cessiva. E, no entanto, o que Moisés acrescenta logo depois, que
ele “levantou-se da presença de sua morta”, é dito em louvor de sua
moderação; por isso Ambrósio prudentemente infere que, por esse
exemplo, somos ensinados quão perversamente agia quem se ocu-
pava demasiadamente em prantear pelos mortos. Ora, se Abraão,
naquele tempo, estabeleceu um limite para sua tristeza e impôs res-
trição a seus sentimentos, quando a doutrina da ressurreição era
ainda obscura, não tem desculpa quem, hoje, se entrega à impaci-
ência, visto que na ressurreição de Cristo somos supridos com a
mais abundante consolação.

3. Falou aos filhos de Hete. Moisés guarda silêncio acerca do rito


usado por Abraão no sepultamento do corpo de sua esposa; mas
continua, em grande medida, a falar sobre a compra da sepultura.
Pois com que razão ele fez isso se verá mais adiante, quando nos
referirmos sucintamente ao costume funerário. É bem conhecido o
fato de quão religiosamente isso tem sido observado ao longo do
tempo, e entre todos os povos. De fato, as cerimônias têm sido dife-
rentes, e os homens têm tentado superar uns aos outros em várias
superstições; mas, sepultar os mortos tem sido comum a todos. E
essa prática não surgiu de tola curiosidade, nem do desejo de infru-
tífera consolação, nem da superstição, mas sim do senso natural
com que Deus dotou a mente dos homens; um sentimento que ele
jamais permitiu que perecesse, a fim de que os homens fossem tes-
temunhas para si mesmos de uma vida futura. É também incrível
que eles, que têm disseminado certas expressões ultrajantes em
menosprezo à sepultura, ainda pudessem falar sinceramente. Aliás,
cabe-nos, com magnanimidade, uma vez respeitados os ritos de se-
pultamento – posto que gostamos de riquezas e honras e as demais
conveniências da vida – que nos portemos com moderação diante
da privação delas; contudo, não se pode negar que a religião traga
consigo a preocupação com sepultamento.
E, certamente (como eu já disse), esse ato foi divinamente gra-
vado na mente de todo o povo, desde o princípio: que devem sepul-
tar os mortos; por isso também sempre consideraram os sepulcros
como sacros. Reconheço que nem sempre surgiu na mente dos pa-
gãos que a alma sobrevive à morte, e que ainda resta a esperança
de uma ressurreição para o corpo; nem se acostumaram a se exer-
citarem numa piedosa meditação desse gênero, sempre que deposi-
tam seus mortos no túmulo; mas essa desconsideração da parte de-
les não deixa de provar o fato de que têm diante de seus olhos tal
representação de uma vida futura, que os torna indesculpáveis.
Abraão, entretanto, visto que tinha a esperança da ressurreição
profundamente fixada em seu coração, perseverantemente acalen-
tava, como era conveniente, seu símbolo visível. A importância que
Abraão dava à ressurreição se mostra nisto: que ele se imaginava
culpado de poluição, se misturasse, após a morte, o corpo de sua
esposa com o dos estrangeiros. Pois ele comprou uma caverna com
o objetivo de possuir, para si e para sua família, um santo e puro se-
pulcro. Ele não queria ter um palmo de terra onde fixar sua tenda;
ele apenas se preocupava com a sua própria sepultura; e, especial-
mente, ele queria ter naquela terra, a qual lhe fora prometida por he-
rança, sua própria sepultura familiar com o propósito de dar à sua
posteridade testemunho de que a promessa de Deus não seria ex-
tinta, nem por sua própria morte, nem pela morte de sua família;
mas que, ao contrário, começava a florescer; e que aqueles que fo-
ram privados da luz do sol e do ar vital continuassem ainda sempre
coparticipantes da herança prometida. Pois enquanto eles mesmos
permanecessem em silêncio e mudos, o sepulcro clamava, dizendo
que a morte não constituía obstáculo ao acesso de sua posse. Um
pensamento como este não podia ter-lhe ocorrido, a menos que
Abraão, pela fé, elevasse os olhos para o céu. E quando denomina
o cadáver de sua esposa de “minha morta”, ele notifica que a morte
é um divórcio do tipo que ainda deixa alguma permanente ligação.
Além disso, nada, senão uma restauração futura, promove e preser-
va a lei do relacionamento mútuo entre os vivos e os mortos. Mas é
melhor examinar sucintamente cada detalhe, em sua ordem.

4. Sou estrangeiro e morador entre vós. Essa sentença introdutó-


ria refere-se a um dos seguintes pontos: ou para que mais facilmen-
te Abraão obtenha o que deseja por meio de uma súplica; ou para
remover toda suspeita de cobiça contra si. Abraão, pois, confessa
que, uma vez que só possui uma precária morada entre os habitan-
tes daquela terra, não podia possuir nenhum sepulcro, a não ser
pela permissão deles. E visto que, durante a sua vida, permitiram-
lhe habitar dentro de seu território, fazia parte do espírito de humani-
dade não negar-lhe um sepulcro para a sua morta. Caso esse senti-
do seja aprovado, então Abraão, respectivamente, concilia seu favor
para com ele, mediante sua humildade, e, ao declarar que os filhos
de Hete o haviam tratado bondosamente, os estimula, por esse elo-
gio, a procederem no exercício da mesma generosidade com que
haviam começado.
Contudo, o outro sentido não é incongruente, a saber, que
Abraão, a fim de reverter o ódio que poderia recair-lhe na qualidade
de comprador, declara que deseja a posse, não para a vantagem da
presente vida, nem proveniente de ambição ou avareza, mas unica-
mente com o propósito de que sua morta não ficasse sem sepulcro,
como se quisesse dizer: “Não me recuso a continuar vivendo como
um estranho entre vós, como tenho feito até agora; nem desejo suas
possessões com o objetivo de que tenha algo propriamente meu, o
qual porventura me capacite no futuro contender convosco por igual-
dade; basta-me possuir um lugar onde possamos ser sepultados”.

6. Tu és príncipe de Deus entre nós. Os hiteus oferecem graciosa-


mente a Abraão um lugar de sepultura, no lugar que desejasse, e
testificam que fazem isso como um tributo às virtudes do santo ho-
mem. Já vimos que os hebreus dão um título divino a tudo quanto
se reveste de excelência. Por isso devemos entender a expressão
“príncipe de Deus” da seguinte forma: uma pessoa de grande e sin-
gular excelência. E com esse elogio assinalam propriamente a quem
reverenciam por suas virtudes; com isso testificando que atribuem
somente a Deus todas as virtudes que nos homens são merecedo-
ras de louvor e reverência. Ora, assim manifesta-se nos hiteus algu-
ma semente de piedade, ao honrarem desse modo a Abraão a
quem reconhecem ser adornado com raros dons do Espírito de
Deus. Pois os homens profanos e bestiais pisam sob a planta de
seus pés, com bárbaro desdém, todo dom excelente de Deus, como
fazem os porcos com as pérolas. E, no entanto, sabemos com quan-
tos vícios aquelas nações se haviam maculado; quão maior, pois, e
mais desditosa é nossa ingratidão, se não rendermos honra à ima-
gem de Deus, quando esta resplandece diante dos nossos olhos! A
santidade da conduta de Abraão lhe confere tal favor diante dos hi-
teus, que estes não invejam a preeminência de Abraão entre eles;
que desculpa, pois, há para nós, se tivermos em menor estima
aquelas virtudes em que a majestade de Deus se faz tão evidente?
De fato, é diabólica a loucura de quem não só despreza os favores
de Deus, mas ainda ferozmente lhes fazem oposição.

7. Então, se levantou Abraão. Ele recusa o favor oferecido pelos


hiteus, como alguns presumem, com o seguinte propósito: para que
não estivesse em obrigação para com eles numa questão tão pe-
quena. Mas preferiu mostrar, dessa maneira, que não receberia uma
possessão gratuita daqueles habitantes, que estavam para ser ex-
pulsos pela mão de Deus, para que viesse a assumir seu lugar; pois
ele sempre manteve todos os seus pensamentos fixados em Deus,
de modo que preferia a sua clara promessa ao presente domínio so-
bre a terra.
Moisés também enaltece a modéstia do santo homem, quando
diz que “inclinou-se diante do povo da terra”. Quanto ao uso da pala-
vra que significa “adorar”, esta é simplesmente empregada para se
demonstrar a reverência que alguém declara, quer encurvando os
joelhos ou com algum outro gesto do corpo. Isso podia ser feito aos
homens, e também a Deus, mas com objetivos diferentes; os ho-
mens, reciprocamente, ou dobram os joelhos, ou curvam a cabeça,
diante dos outros, por razão de honra civil; mas, se a mesma coisa
for feita com finalidade religiosa, é profanação. Pois a religião não
admite nenhum outro culto além daquele prestado ao Deus verda-
deiro. E infantilmente dissimula quem lança mão de um pretexto em
prol de sua idolatria recorrendo à diferença das palavras dulia e la-
tria, posto que a Escritura, em termos gerais, proíbe que a adoração
seja transferida para os homens. Mas, para que ninguém se sur-
preenda com o fato de que Abraão tenha agido de modo tão supli-
cante e com tanta submissão, devemos estar cientes de que isso
era feito segundo o costume e uso comuns. Pois, bem sabemos que
os orientais eram imoderados em seu uso de cerimônias. Se compa-
rarmos conosco os gregos ou italianos, somos mais discretos no
uso delas do que eles. Aristóteles, porém, ao falar dos asiáticos e
outros bárbaros, nota esta falha: que eles se esbanjam demasiada-
mente em adorações. Por isso não devemos medir, por nossos cos-
tumes, a honra que Abraão prestou ao príncipe da terra.

8. Se é do vosso agrado. Abraão os constitui seus defensores jun-


to a Efrom, com o objetivo de persuadi-lo a vender a caverna dupla.
Alguns supõem que a caverna fora de tal modo formada, que uma
parte ficava acima e a outra, abaixo. Que cada um tenha a liberdade
de adotar a opinião que quiser; contudo, em vez disso, eu presumo
que havia uma entrada, mas que por dentro a caverna era dividida.
É mais pertinente observar que Abraão, ao oferecer um preço justo,
cultivava e mantinha equidade. Onde podemos encontrar uma pes-
soa que, numa compra ou em outro negócio, não perseguirá diligen-
temente sua própria vantagem à custa do outro? Pois enquanto o
vendedor duplica o preço do valor de uma coisa, com o objetivo de
extorquir o máximo possível do comprador, e este, por sua vez, as-
tuciosamente, tenta reduzi-lo a um preço mínimo, a barganha não
chega ao fim. E, embora a avareza tenha pretextos capciosos, ela
leva os que fazem contratos entre si a esquecerem-se das exigênci-
as de equidade e justiça. Finalmente, também é preciso notar o se-
guinte: que Abraão declara reiteradamente que estava adquirindo
um campo para servir como lugar de sepultura. E Moisés é bastante
minucioso nesse ponto, para que aprendamos, com nosso pai Abra-
ão, a elevar nossa mente à esperança da ressurreição. Abraão viu a
sua metade ir embora; mas, posto que ele estava certo de que a sua
esposa não estava exilada do reino de Deus, ele deposita no túmulo
seu corpo morto, até que ele e ela sejam reunidos outra vez.

11. Ouve-me. Embora Efrom insistisse sinceramente em doar o


campo a Abraão, o santo homem se agarra ao seu propósito e, por
fim, o obriga, por seus rogos, a vender o campo. Efrom, justificando-
se, diz que o preço era demasiadamente baixo para Abraão insistir
na compra; contudo, o estima em 400 siclos. Ora, posto que Josefo
diz que o siclo do santuário valia quatro Drácmas Ática, ser for esse
o caso, deduzimos, a partir do cálculo de Budaeus, que o preço do
campo foi cerca de 250 libras francesas, se entendermos que o siclo
comum seria metade desse montante. Abraão não era tão rigoroso,
mas teria recebido um presente maior, se não houvesse uma razão
suficiente a rejeitá-lo. Ele fora presenteado com consideráveis dádi-
vas, tanto pelo rei do Egito quanto pelo rei de Gerar, porém obser-
vou esta regra: que não receberia todas as coisas, nem em todos os
lugares, nem de todas as pessoas. Eu já expliquei que ele comprou
o campo com o objetivo de não possuir sequer um palmo de terra
pela doação de qualquer homem.

16. Tendo Abraão ouvido isso a Efrom, pesou-lhe a prata. Não


sei o que se passou na mente de Jerônimo quando diz que uma le-
tra foi subtraída do nome de Efrom, depois que se viu persuadido
pelos rogos de Abraão a receber dinheiro pelo campo, porque, pela
venda do sepulcro, sua virtude foi desprezada ou diminuída, pois, de
fato, o nome de Efrom é achado escrito da mesmíssima maneira,
depois daquele evento, exatamente como era antes. Nem se deve
imputar a Efrom como um erro que, sendo pressionado, recebeu o
preço justo por sua propriedade, quando estivera pronto a generosa-
mente doá-lo. Se houve algum pecado no caso, Abraão assumir
toda a responsabilidade. Mas quem ousará condenar uma venda
justa, na qual, de ambas as partes, a religião, a boa-fé e a equidade
são mantidas?
Argumenta-se que Abraão comprou o campo com o intuito de
ter uma sepultura. Mas Efrom deveria, por causa disso, cedê-lo gra-
tuitamente, e, sob o pretexto de uma sepultura, ser defraudado de
seu direito? Aqui, pois, nada vemos além de mera tagarelices. Os
canonistas,2 contudo – ridículos e arrogantes como são –, impru-
dentemente, lançando mão da expressão de Jerônimo, chegaram à
conclusão de que vender sepultura é um grande sacrilégio. No en-
tanto, enquanto isso, todos os “sacrificadores” papais praticam tran-
quilamente esse negócio; e, embora reconheçam que o cemitério é
um sepulcro comum, não permitem que ninguém seja sepultado, a
menos que se pague o preço.
Moeda corrente entre os mercadores. Moisés fala assim por-
que o dinheiro é um meio de comunicação mútua entre os homens.
É empregado principalmente na compra e venda de mercadorias.
Considerando o que Moisés diz, no final do capítulo, que os filhos de
Hete confirmaram a Abraão o direito da terra, o sentido é que a
compra foi publicamente atestada; pois, embora tenha sido vendida
por um indivíduo, o povo estava presente e confirmou o contrato en-
tre as duas partes.

1 A palavra (arba) significa quatro.


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