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João Calvino
Edição baseada na tradução inglesa (1847) de John King M. D. Também foi consultada a
edição inglesa de James Anderson, publicada por Baker Book House, Grand Rapids, MI,
USA, 1998.
Todos os direitos em língua portuguesa desta edição reservados por Editora CLIRE.
CONSELHO EDITORIAL:
Kenneth Wieske
Jim Witteveen
Adriano Gama
Waldemir Magalhães
Ademir Souza
PRODUÇÃO EDITORIAL
Editor: Waldemir Magalhães
Colaborador: Manoel Canuto
Tradutor: Valter Graciano Martins
Revisores: Gerson Júnior, Waldemir Magalhães
Designer: Heraldo Almeida
www.editoraclire.com.br
S U MÁ R IO
Capa
Créditos
Prefácio à edição brasileira
Epístola dedicatória do autor
Argumento
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
Nossos livros
Mídias
“A Palavra não pode ser separada do Espírito. É o espírito de
Satanás que é separado da Palavra, não o Espírito Santo de
Deus”
Prefácio à edição brasileira
João Calvino é reconhecido, por todos aqueles que efetivamente
leem e estudam seus escritos, como um dos maiores comentaristas
da Bíblia de todos os tempos. Não é difícil perceber que ele não
apenas tinha preparo intelectual como também demonstrava reve-
rência e submissão à Palavra de Deus. De fato, ele considerava a
Palavra escrita como inspirada, inerrante, autoritativa e infalível.
Além disso, ele acreditava que essa Palavra e o Espírito Santo são
unidos de modo inseparável e, por essa razão, o Espírito age por
meio dela.
Calvino foi um dos primeiros a aplicar princípios de exegese
bem fundamentada. Ele também acreditava que a verdadeira tarefa
do intérprete é encontrar o significado do texto a partir do próprio
texto – a Bíblia interpreta a própria Bíblia. Sua habilidade exegética
o conduzia sempre à concisão, simplicidade, clareza, precisão, pro-
fundidade, fidelidade e aplicação. Um dos objetivos de todo o seu
trabalho exegético era pastoral, pois em cada linha ele busca o nos-
so coração com o propósito de levá-lo cativo à adoração e à obedi-
ência a Deus.
Calvino não procurava deleitar-se em um mero academicismo,
embora não se afastasse totalmente dele. Isso fica claro pelo conhe-
cimento e habilidade que ele possuía das línguas originais da Bíblia
(hebraico e grego) e também do latim. Ele detestava especulações e
rejeitava interpretações alegóricas. Quando se deparava com os
mistérios da Palavra de Deus, exclamava: “as coisas reveladas são
para nós, as ocultas para nosso Deus”; dessa forma limitava-se de
modo absoluto ao “Assim diz o Senhor”. Mas isso não significa que
ele não recorria aos clássicos da exegese bíblica de que dispunha.
Na verdade, ele não apenas os conhecia, mas também frequente e
abundantemente os citava.
É exatamente isso o que encontraremos na Série Comentários
Bíblicos de João Calvino, começando por este primeiro volume de
Gênesis.
Publicado em latim, em 1554, Gênesis não foi o primeiro livro
comentado por Calvino. Mas ser o primeiro livro desta Série é de ab-
soluta importância porque o livro de Gênesis é a chave para a corre-
ta interpretação e entendimento de toda a Bíblia, pois, é nele que
encontramos os relatos centrais da revelação de Deus: Criação,
Queda e Redenção. Mais especificamente, é nele que encontramos
a primeira revelação de Deus e o protoevangelho pregado por ele
mesmo, quando anunciou pela primeira vez o Senhor e Salvador Je-
sus Cristo: “da semente da mulher virá um que esmagará a cabeça
da serpente”. Uma interpretação errada de Gênesis irá comprometer
o restante da interpretação da Bíblia.
Embora sua análise dos primeiros capítulos do livro de Gênesis
seja detalhado, não é prolixo, e as narrativas posteriores referentes
a Noé, Abraão, Isaque, Jacó e José não são tratadas de modo su-
perficial. De fato, Calvino expõe os princípios do relacionamento
pactual de Deus com a sua criação, e mostra, fiel e francamente,
mas com ternura e coração pastoral, a fraqueza e o pecado de toda
a humanidade, uma vez que a nossa queda e a nossa miséria são
claramente descritas em Gênesis. Porém, igualmente evidente é a
promessa de consolação por intermédio do “Descendente da Mu-
lher”, que também é claramente exposta.
Finalmente, Calvino acreditava firmemente que a compreensão
dessas verdades depende da iluminação do Espírito Santo, e que
isso somente é possível por meio da oração. Pois, para ele, “os te-
souros da sabedoria celestial” estão fora do alcance da cultura hu-
mana. Sim, pois esses mistérios estavam ocultos até serem revela-
dos pelo Espírito de Deus. Dessa maneira, Calvino humilha toda a
arrogância da sabedoria humana.
Em síntese, todo o trabalho de Calvino visava um único objeti-
vo: servir a Deus e edificar a Igreja.
— Os editores.
Epístola dedicatória do autor
J O Ã O C A LV I N O
1 Mais tarde, esse príncipe tornou-se o célebre Henrique IV, da França. Um bravo e extro-
vertido príncipe, mas habituado às frivolidades e escravizado pela licenciosidade da época.
Pela coroa real francesa, ele se viu obrigado a renunciar seus princípios protestantes; e,
por fim, caiu pela mão de um assassino, por causa de sua tolerância aos huguenotes.
2 Ele nasceu em 1553, e, portanto, em 1563, ano desta dedicatória, ele tinha dez anos de
idade.
3 Jeanne d’Albret, rainha de Navarra, filha de Henrique d’Albret e de Margarida de Valois,
irmã de Francisco, o Primeiro, rei da França. Henrique foi seu terceiro filho; porém, os dois
anteriores morreram na infância. Inicialmente, tanto ela quanto o seu esposo, Antônio de
Bourbon, era favoráveis à Reforma; mas Antônio, notável por sua inconstância, desertou-
se da causa do Protestantismo no tempo de perseguição e, por fim, tomou armas contra
seus adeptos e pereceu no combate. Jeanne permaneceu constante na fé que professava,
e continuou a estabelecê-la em seus domínios. Em 1568, ela deixou sua capital, Bearne,
para unir-se aos protestantes franceses, e apresentou seu filho Henrique ao príncipe do
Conde, com a idade de quinze anos, juntamente com suas jóias, com o propósito de man-
ter a guerra contra os perseguidores da fé reformada. Ela morreu subitamente, em 1572,
em Paris, para onde foi tratar dos preparativos do projetado casamento de seu filho com a
irmã de Carlos IX. A suspeita é que ela morreu envenenada; porém, isso nunca ficou pro-
vado.
4 Uma nítida referência à Septuaginta, a famosa tradução grega do Antigo Testamento.
5 Uma referência ao filósofo grego Aristóteles.
6 Uma referência à crença de alguns gregos que se vangloriavam por terem a convicção
de que sua origem era o próprio solo em que habitavam. Esses eram conhecidos como
(autochthonas).
7 A expressão “nariz de cera” é usada para denotar um parágrafo introdutório que retarda a
entrada no assunto específico do texto. É sinal de prolixidade. No contexto jornalístico, a
expressão refere-se a uma frase usada no início das matérias noticiosas para “enrolar” o
leitor e não acrescenta nada ao assunto anunciado no título.
Argumento
Visto que a infinita sabedoria de Deus é manifestada na admirável
estrutura do céu e da terra, é absolutamente impossível expor A His-
tória da Criação do Mundo em termos iguais à sua dignidade. Pois,
não apenas a medida de nossa capacidade é demasiadamente pe-
quena para compreender coisas de tal magnitude, como também
nossa linguagem é igualmente incapaz de dar um pleno e substanci-
al relato delas. Contudo, como merece louvor quem, com modéstia
e reverência, se aplica à consideração das obras de Deus (mesmo
que fique aquém do que poderia desejar), assim também, se nesse
tipo de empreendimento eu me esforçar para ajudar a outros segun-
do a habilidade que me foi dada, confio que meu trabalho não será
menos aprovado por homens piedosos do que aceito por Deus.
Pressuponho isso em razão não só de me desculpar, mas de admo-
estar meus leitores a que, se sinceramente desejam se beneficiar
juntamente comigo em meditar sobre as obras de Deus, devem tra-
zer consigo um espírito sóbrio, dócil, brando e humilde. De fato, ve-
mos o mundo com nossos olhos, pisamos a terra com nossos pés,
tocamos inumeráveis tipos de obras divinas com nossas mãos, aspi-
ramos suave e agradável fragrância das ervas e flores, desfrutamos
de infindáveis benefícios; mas naquelas coisas a partir das quais al-
cançamos algum conhecimento, reside tal imensidade do poder, da
bondade e da sabedoria divinos, que superam todos os nossos sen-
tidos. Portanto, que os homens fiquem satisfeitos por apenas experi-
mentarem moderadamente essas coisas, de acordo com a sua pró-
pria capacidade. E cabe-nos assim imprimir esta marca durante toda
nossa vida: que (até a extrema velhice) não nos arrependamos do
progresso que fizemos, se só temos avançado bem pouco em nossa
trajetória.
Ao começar seu Livro com a criação do mundo, a intenção de
Moisés é fazer com que Deus, por assim dizer, nos seja visível em
suas obras. Aqui, porém, se erguem homens presunçosos e inqui-
rem com escárnio: de onde foi isso revelado a Moisés? Portanto,
supõem-no falando por meio de fábulas das coisas desconhecidas,
porque ele não era um espectador dos eventos que ora registra,
nem aprendeu a veracidade delas mediante leitura. Esse é o raciocí-
nio deles; mas é fácil de expor sua desonestidade. Pois, se podem
destruir o crédito dessa história só porque ela é traçada mediante
lembranças de uma longa sequência de eras passadas, que provem
também que sejam falsas aquelas profecias nas quais a mesma his-
tória prediz ocorrências que só se concretizaram muitos séculos de-
pois. Afirmo que aquelas coisas que Moisés testifica com respeito à
vocação dos gentios são claras e óbvias, cuja concretização ocorreu
quase dois mil anos após sua morte. Porventura não era ele, que
pelo Espírito previu um evento remotamente futuro e desconhecido
da humanidade, capaz de entender se o mundo foi criado por Deus,
sobretudo visto que fora ensinado por um Mestre divino? Pois aqui
ele não propõe adivinhações de si mesmo, mas é o instrumento do
Espírito Santo para a publicação daquelas coisas que eram de im-
portância para todos os homens conhecerem.
Erram grandemente em julgar como absurdo que a ordem da
criação, que previamente era desconhecida, por fim fosse descrita e
explicada por ele. Pois ele não comunica à memória as coisas antes
inaudíveis, mas pela primeira vez decidiu escrever fatos que os pais
haviam passado de geração em geração, a seus filhos, por muitos e
muitos anos. Poderíamos conceber que o homem fosse de tal modo
colocado na terra para desconhecer sua própria origem, bem como
da origem daquelas coisas de que desfrutava? Nenhuma pessoa de
mente sã duvida que Adão fosse bem instruído acerca de todas
elas. Porventura mais tarde ele veio a ficar mudo? Porventura os
santos patriarcas eram tão ingratos que suprimissem com o silêncio
uma instrução tão necessária? Noé, advertido por um juízo divino
tão memorável, não o transmitiria à posteridade? Abraão é expres-
samente honrado com este louvor: que ele é o mestre e senhor de
sua família [Gn 18.19]. E sabemos que, muito antes do tempo de
Moisés, era comum a todo o povo ter familiaridade com a aliança
que Deus havia feito com seus pais. Ao dizer que os israelitas eram
descendentes de uma raça santa, a qual Deus escolhera para si, ele
não propõe esse fato como algo novo, mas simplesmente celebra o
que todos mantinham, o que os próprios anciãos haviam recebido
de seus ancestrais, e o que, em suma, era inteiramente indiscutível
entre eles. Portanto, não devemos duvidar que a Criação do Mundo,
como aqui descrita, fosse já conhecida através da antiga e perpétua
tradição dos Pais. Contudo, visto que nada é mais fácil do que a ver-
dade de Deus ser de tal modo corrompida pelos homens, que, num
longo período de tempo, fosse ela, por assim dizer, degenerada em
seu próprio conteúdo, aprouve ao Senhor registrar a história por es-
crito, com o propósito de preservar sua pureza. Moisés, pois, esta-
beleceu a credibilidade dessa doutrina que está contida em seus es-
critos, e que, pela displicência dos homens, poderia ter sido perdida.
Agora me dirijo para o propósito de Moisés, ou melhor, do Espí-
rito Santo que falou por sua boca. Só conhecemos a Deus, que em
si mesmo é invisível, através de suas obras. Portanto, o apóstolo
elegantemente denomina os mundos, como se alguém dissesse: “a
manifestação das coisas não aparentes” [Hb 1.3]. Eis a razão por
que o Senhor, a fim de nos atrair ao conhecimento de si mesmo,
põe a estrutura do céu e da terra ante nossos olhos, tornando-se ele
mesmo, de certa maneira, manifesto neles. Pois seu eterno poder e
divindade (no dizer de Paulo) são ali manifestados [Rm 1.20]. E
aquela declaração de Davi é muito pertinente: que os céus, ainda
que destituídos de linguagem, contudo são eloquentes arautos da
glória de Deus, e que essa belíssima ordem da natureza silenciosa-
mente proclama sua admirável sabedoria [Sl 19.1]. É preciso obser-
var isso ainda mais diligentemente, porque poucos se apropriam do
método certo de se conhecer a Deus, enquanto a maioria se apega
às criaturas, sem qualquer consideração pelo próprio Criador. Pois
os homens geralmente se sujeitam a estes dois extremos, a saber,
que alguns, esquecidos de Deus, aplicam toda a força de sua mente
à consideração da natureza; e, outros, esquecendo as obras de
Deus, desejam, com uma tola e insana curiosidade, investigar sua
Essência. Ambos trabalham em vão. Ocupar-se, assim, na investi-
gação dos segredos da natureza, a ponto de nunca direcionar os
olhos para seu Autor, é um estudo mui pervertido; e desfrutar de
toda a natureza sem qualquer conhecimento do Autor desse benefí-
cio é a maior e mais vil das ingratidões. Portanto, quem presume ser
filósofo sem religião, e quem, ao especular, de tal modo age que
afasta Deus e todo o senso de piedade para longe de si, um dia
sentirá a força da expressão de Paulo, relatada por Lucas: que Deus
nunca ficou sem testemunhas [At 14.17]. Pois não se permitirá que
escapem impunemente, porquanto se tornaram surdos e insensíveis
a testemunhos tão ilustres. E, na verdade, nunca perceber a Deus,
que por toda parte mostra sinais de sua presença, é parte de ig-
norância culpável. Mas, se os zombadores agora escapam por usa-
rem astuciosamente de sofismas, no futuro sua terrível destruição
dará testemunho de que foram ignorantes de Deus, só porque esta-
vam, espontânea e maliciosamente, cegos.
Quanto aos que orgulhosamente pairam acima do mundo para
buscar a Deus em sua essência não revelada, é impossível que se
lhes suceda outra coisa senão que, por fim, se embaracem em uma
multidão de ficções absurdas. Pois Deus – por outros meios, invisí-
vel (como já dissemos) – se veste, por assim dizer, com a imagem
do mundo, na qual ele se apresenta à nossa contemplação. Os que
não admitem contemplá-lo assim magnificamente ataviado da in-
comparável veste dos céus e da terra, mais tarde sofrerão a justa
punição de seu desprezível orgulho em seus próprios desvarios.
Portanto, tão logo o nome de Deus soe em nossos ouvidos, ou o
pensamento dele ocorra à nossa mente, vistamo-lo também com
esse belíssimo ornamento; finalmente, que o mundo seja nossa es-
cola, caso queiramos conhecer a Deus de uma maneira correta.
Aqui também se refuta a impiedade dos que usam astuciosa-
mente de sofismas contra Moisés, por ele relatar em tão breve espa-
ço de tempo aquilo que transcorreu desde a Criação do Mundo. Pois
perguntam por que ocorreu tão repentinamente à mente de Deus
criar o mundo; por que ele permanecera por tanto tempo inativo no
céu. Assim, em se divertirem com as coisas santas, exercitam sua
engenhosidade para sua própria destruição. Na História Tripartida,8
registra-se uma resposta dada por um homem piedoso, com a qual
tenho sempre me deleitado. Pois quando certo cão imundo zombou
de Deus dessa maneira, esse homem piedoso replicou que Deus de
modo algum vivera inativo naquele tempo, porquanto estivera prepa-
rando o inferno para os capciosos. Mas, por quais raciocínios pode
o leitor restringir a arrogância daqueles para quem a sobriedade é
confessamente desprezível e odiosa? E, certamente, os que agora
tão livremente exultam em acusar Deus de inatividade, descobrirá, a
seu próprio e grande custo, que ele usou o seu poder infinito para
lhes preparar o inferno.
No que se refere a nós mesmos, não deveria parecer absurdo
que, embora satisfeito em si mesmo, Deus julgou ser necessário cri-
ar o mundo, tão logo achou por bem fazê-lo. Além do mais, visto
que sua vontade é a norma de toda sabedoria, devemos ficar con-
tentes somente com isso. Pois Agostinho afirma corretamente que a
Deus se faz injustiça pela boca dos Maniqueus, porquanto estes exi-
gem uma causa superior à vontade divina; e prudentemente adverte
a seus leitores a não se entregarem às suas inquirições com respei-
to ao conceito de duração (tempo) infinita, como não se deve fazer o
mesmo com respeito ao conceito de espaço infinito. De fato, não so-
mos ignorantes de que o universo é finito, e que a terra, como um
pequeno globo, é posta no centro.9 Quem assume ser fora de pro-
pósito que o mundo não foi criado mais cedo, é bem possível que
esteja a censurar a Deus por não haver feito incontáveis mundos.
Sim, desde que julgam ser absurdo que muitas eras tenham trans-
corrido sem a existência de nenhum mundo, poderiam ainda reco-
nhecer ser uma prova da grande corrupção de sua própria natureza
que, em comparação com o infinito espaço que permanece vazio, o
céu e a terra ocupam apenas uma ínfima parte. Visto, porém, que
tanto a eternidade da existência de Deus quanto a infinitude de sua
glória provariam ser um duplo labirinto, contentemo-nos com desejar
modestamente não avançar mais em nossas investigações além do
que o Senhor, pela orientação e instrução de suas próprias obras,
nos convida.
Ora, ao descrever o mundo como um espelho no qual devemos
contemplar a Deus, não gostaria de ser entendido como a asseve-
rar, ou que nossos olhos são suficientemente clarividentes para dis-
cernir o que representa a estrutura do céu e terra, ou que o conheci-
mento daí obtido é suficiente para a salvação. E, enquanto o Senhor
nos convida a si por meio das coisas criadas, com nenhum outro
propósito senão que por esse meio nos tornemos inescusáveis [Rm
1.20], ele acrescentou (como era necessário) um novo remédio, ou,
ao menos, por um novo auxílio, ele tem amenizado à ignorância de
nossa mente. Pois, pela Escritura como nosso guia e mestre, ele
não somente faz com que aquelas coisas sejam tão claras, que de
outro modo escapariam à nossa observação, mas quase nos com-
pele a contemplá-las; como se ele assistisse à nossa dúbia visão
com lentes específicas. Moisés insiste sobre esse ponto (como já
observamos). Pois se a instrução silenciosa do céu e da terra fosse
suficiente, o ensino de Moisés teria sido supérfluo. Esse arauto,
pois, para atrair nossa atenção, entra em cena com o objetivo de
nos levar a percebermos que fazemos parte desta cena, e assim po-
dermos contemplar a glória de Deus; não, de fato, para as observar-
mos como meras testemunhas, e sim para desfrutarmos de todas as
riquezas que aqui são exibidas, como o Senhor lhes ordenara e as
sujeitara ao nosso uso. E, em termos gerais, ele não apenas declara
que Deus é o Arquiteto do mundo, mas que, através de toda a ca-
deia da história, ele mostra quão admirável é seu poder, sua sabe-
doria, sua bondade e, especialmente, sua terna solicitude para com
a raça humana. Além disso, visto que a eterna Palavra de Deus é a
vívida e expressa imagem de si mesmo, Moisés nos direciona para
esse ponto. E, assim, verifica-se a afirmação do apóstolo de que é,
por nenhum outro meio, senão pela fé, que se pode entender que os
mundos foram feitos pela palavra de Deus [Hb 11.3]. Pois a fé pro-
cede exatamente disto: que, ao sermos ensinados pelo ministério de
Moisés, já não vagueamos por tolas e pueris especulações, e sim
que contemplamos o verdadeiro e único Deus em sua verdadeira
imagem.
Contudo, pode-se objetar dizendo que isso parece discordar do
que Paulo declara: “Visto como, na sabedoria de Deus, o mundo
não o conheceu por sua própria sabedoria, aprouve a Deus salvar
aos que creem, pela loucura da pregação” [1Co 1.21]. Pois ele as-
sim afirma que Deus é por nós buscado em vão, se o buscarmos
sob a diretriz das coisas visíveis; e que nada nos resta senão recor-
rermos imediatamente a Cristo; e que nem por isso devemos come-
çar com os elementos deste mundo, e sim com o evangelho, que é
o único que põe Cristo, com sua cruz, diante dos nossos olhos, e
nos mantém nele. Minha resposta é que é fútil questionar, como fa-
zem os filósofos, sobre a estrutura do mundo, exceto os que, tendo
sido, antes de tudo, humilhado pela pregação do evangelho, apren-
deram a submeter toda sua sabedoria intelectual (como Paulo o ex-
pressa) à loucura da cruz [1Co 1.21]. Nada acharemos, repito, aci-
ma e abaixo, que nos faça subir a Deus, até que Cristo nos tenha
instruído em sua própria escola. Entretanto, não se pode fazer isso
a menos que, tendo emergido dos abismos mais profundos, seja-
mos elevados acima de todos os céus, na carruagem de sua cruz,
para que, pela fé, apreendamos aquelas coisas que os olhos jamais
viram, os ouvidos jamais ouviram, e as quais estão infinitamente
além de nosso coração e mente. Pois a terra, com sua provisão de
frutos para nossa nutrição diária, não está ali posta diante de nós;
contudo, Cristo se oferece a nós para a vida eterna. Muito menos o
céu, pelo esplendor do sol e estrelas, ilumina nossos olhos físicos;
mas o próprio Cristo, a Luz do Mundo e o Sol da Justiça, resplande-
ce em nossa alma; nem a atmosfera nos estende seu espaço vazio
para respirarmos; mas o próprio Espírito de Deus nos vivifica e nos
faz viver. Em suma, ali o reino invisível de Cristo enche todas as coi-
sas, e sua graça espiritual se difunde através de tudo. Contudo, isso
não nos impede de aplicarmos nossos sentidos à consideração do
céu e da terra, para que possamos a partir deles buscar a confirma-
ção no verdadeiro conhecimento de Deus. Pois Cristo é aquela ima-
gem na qual Deus se apresenta à nossa vista, não só seu coração,
mas também suas mãos e seus pés. Intitulo “seu coração” aquele
amor secreto com o qual ele nos abraça em Cristo; por “suas mãos
e pés”, entendo aquelas obras nas quais ele se revela diante de
nossos olhos. Assim, tão logo nos apartamos de Cristo, não há nada
que em si mesmo seja tão grosseiro ou insignificante a respeito do
qual não sejamos necessariamente enganados.
E, de fato, ainda que Moisés comece, neste Livro, com a Cria-
ção do Mundo, no entanto, ele não nos limita a esse tema. Pois es-
tas coisas devem ser relacionadas: que o mundo foi fundado por
Deus, e que o homem, após haver sido dotado com a luz da inteli-
gência e adornado com tantos privilégios, caiu por sua própria culpa
e, assim, se viu privado de todos os benefícios que havia recebido;
mais tarde, pela compaixão de Deus, foi restaurado à vida da qual
se vira privado, e isso através da benignidade de Cristo; de modo
que haveria sempre algum povo na terra, o qual, sendo adotado na
esperança da vida celestial, pudesse nessa confiança cultuar a
Deus. O objetivo de todo o escopo da história é este: que a raça hu-
mana tem sido preservada por Deus de tal maneira que manifesta
seu especial cuidado por sua Igreja. Pois este é o argumento do Li-
vro: após o mundo ser criado, o homem foi nele posto como em um
teatro, para que ele, contemplando todas as maravilhosas obras de
Deus, reverentemente adorasse seu Autor. Em segundo lugar, que
todas as coisas foram ordenadas para o uso do homem, para que
ele, estando sob a mais profunda obrigação, se devotasse e se de-
dicasse inteiramente à obediência a Deus. Em terceiro lugar, que o
homem foi dotado com entendimento e razão para que, sendo dis-
tinto dos animais irracionais, pudesse meditar sobre uma vida supe-
rior, e pudesse também inclinar-se diretamente para Deus, cuja ima-
gem ele portava esculpida em sua própria pessoa. Mais tarde, se-
guiu a queda de Adão, pela qual se afastou de Deus; consequente-
mente, ele se viu privado de toda retidão.
Assim, Moisés representa o homem como que destituído de
todo bem, cegado no entendimento, pervertido no coração, viciado
em cada parte e sob a sentença de morte eterna; mas logo acres-
centa a história de sua restauração, onde Cristo se manifesta com o
benefício da redenção. A partir desse ponto, Moisés não apenas re-
lata continuamente a singular Providência de Deus no governo e
preservação da Igreja, mas também nos recomenda o verdadeiro
culto divino; ensina em que a salvação do homem está baseada, e
nos exorta, a partir do exemplo dos Pais, à constância em suportar a
cruz. Portanto, quem quer que deseje ter um razoável entendimento
deste Livro, então ocupe sua mente com esses tópicos principais.
Mas, especialmente, observe que (após Adão, por seu próprio de-
sespero, por sua queda, arruinar a si e a sua posteridade) esta é a
base de nossa salvação, esta é a origem da Igreja: que nós, sendo
resgatados de trevas tão profundas, obtivemos uma nova vida so-
mente pela graça de Deus; que os Pais (segundo a oferta que lhes
foi feita através da palavra de Deus) são feitos, pela fé, participantes
dessa vida; que essa palavra, em si mesma, estava fundada em
Cristo; e que todos os santos que desde então passaram a viver fo-
ram sustentados pela mesma promessa de salvação, pela qual
Adão foi o primeiro a ser levantado da queda.
Portanto, a perpétua sucessão da Igreja tem fluído desta fonte:
que os santos Pais, um após o outro, tendo, pela fé, abraçado a pro-
messa original, tornaram-se participantes da família de Deus, para
que pudessem ter uma vida comum em Cristo. É preciso observar
cuidadosamente isso, para que saibamos qual é a comunidade da
verdadeira Igreja, e qual a comunhão da fé entre os filhos de Deus.
Considerando que Moisés foi ordenado o mestre dos israelitas, não
há dúvida de que ele tinha uma referência especial a eles, para que
se reconhecessem como sendo um povo eleito e escolhido por
Deus, para que buscassem a certeza dessa adoção com base na
aliança que o Senhor confirmara com seus Pais, e para que soubes-
sem que não havia outro Deus e nem outra fé verdadeira. Mas sua
vontade era igualmente testificar a todas as eras que, quem porven-
tura desejar cultuar a Deus corretamente e ser julgado membro da
Igreja, então que não siga outro caminho além daquele que é aqui
descrito. Mas, visto que este é o começo da fé, a saber, que há so-
mente um Deus verdadeiro a quem cultuamos, assim não é uma
confirmação comum dessa fé o fato de que somos companheiros
dos Patriarcas; pois, visto que possuíram a Cristo como o penhor de
sua salvação, mesmo quando ele ainda não havia se manifestado,
assim mantemos o Deus que outrora se lhes manifestou. Disso infe-
rimos a diferença que há entre o culto divino puro e legítimo, e todas
aquelas liturgias adulteradas que, desde então, têm sido fabricadas
pela fraude de Satanás e a perversa audácia dos homens. Além dis-
so, o Governo da Igreja deve ser considerado, para que o leitor che-
gue à conclusão de que Deus tem sido seu perpétuo Guarda e Go-
vernante, mas de forma a exercê-lo na batalha da cruz. Aqui, de
fato, os conflitos peculiares da Igreja se apresentam à vista, ou me-
lhor, o caminho é posto diante de nossos olhos como num espelho,
no qual nos compete, com os santos Pais, perseguir o alvo da feliz
imortalidade.
Ouçamos agora a Moisés.
2. A terra, porém, estava sem forma e vazia. Não serei muito pro-
lixo na exposição dos epítetos (tohu) e (bohu). Os hebreus os
empregavam para designar algo que é vazio e confuso, vão, ou sem
qualquer valor. Indubitavelmente, Moisés os empregou em contraste
com todos aqueles objetos criados que pertencem à forma, ao orna-
mento e à perfeição do mundo. Se, agora, removêssemos da terra
tudo o que Deus acrescentou após o tempo aqui referido, então terí-
amos esse caos rude e tosco, ou melhor, sem forma. Portanto, con-
sidero o que ele imediatamente acrescenta: que “havia trevas sobre
a face do abismo”, como parte daquele vácuo confuso, porque a luz
começou a dar ao mundo alguma aparência externa. Pela mesma
razão, ele o chama abismos e águas, posto que naquela massa de
matéria nada era sólido ou estável; nada era distinto.
E o Espírito de Deus. Há intérpretes que distorcem essa pas-
sagem de várias maneiras. A opinião de alguns, de que ela significa
o vento, é superficial demais para requerer refutação. Aqueles que a
entendem como sendo uma referência ao Eterno Espírito de Deus,
estão certos; contudo, nem todos se atêm à intenção de Moisés no
enredo de seu discurso e, por isso, surgem as várias interpretações
do particípio (merachepeth). Em primeiro lugar, afirmo qual era
(em minha opinião) a intenção de Moisés. Já ouvimos que antes que
Deus houvesse aperfeiçoado o mundo, este era uma massa desor-
denada; agora nos é ensinado que o poder do Espírito era necessá-
rio para sustentá-lo. Pois é possível que à mente ocorra esta dúvida:
como pode ser que tal amontoado permanecesse em desordem,
uma vez que agora contemplamos o mundo preservado pelo gover-
no ou ordem? Ele, pois, assevera que essa massa, por mais confu-
sa que fosse, se tornara estável ao longo do tempo pela secreta efi-
cácia do Espírito. Ora, há dois sentidos da palavra hebraica que se
ajustam bem nesse contexto: ou que o Espírito se movia ou se agi-
tava sobre as águas, com o propósito de gerar energia; ou que ele
pairava sobre elas para aquecê-las. Porque faz pouca diferença na
interpretação, o juízo do leitor é livre para optar por qualquer uma
dessas explanações. Mas, se esse caos requeria a inspiração se-
creta de Deus para prevenir sua rápida dissolução, como poderia
essa ordem, tão clara e distinta, subsistir por si só, a menos que de-
rivasse energia de outra fonte? Portanto, cumpre-se aqui aquela Es-
critura: “Envias o teu Espírito, eles são criados, e, assim renovas a
face da terra” [Sl 104.30]; assim, por outro lado, tão logo o Senhor
afaste seu Espírito, todas as coisas voltam ao pó e se desintegram
[v. 29].
4. E viu Deus que a luz era boa. Aqui, Moisés apresenta Deus su-
pervisionando sua obra, para deleitar-se nela. Ele, porém, fez isso
para o nosso bem, para nos ensinar que Deus nada fizera sem uma
determinada razão e desígnio. E não devemos entender as palavras
de Moisés como se Deus não soubesse que sua obra seria boa até
que a terminasse. Mas o significado da passagem é que a obra, tal
como ora a vemos, foi aprovada por Deus. Portanto, nada nos resta
senão consentirmos com esse critério divino. E essa admoestação é
muito proveitosa; pois, enquanto o homem deve aplicar todos os
seus sentidos em considerar e admirar as obras de Deus, vemos a
que licenciosidade ele realmente se entrega ao depreciá-las.
5. Chamou Deus à luz Dia. Isto é, Deus quis que houvesse uma al-
ternância regular de dias e noites, a qual também se seguiu imedia-
tamente quando o primeiro dia foi concluído. Pois ele removeu a luz
da vista, para que houvesse o começo de outro dia. Contudo, o que
Moisés diz admite uma dupla interpretação: ou que essa foi a tarde
e manhã pertinentes ao primeiro dia, ou que o primeiro dia consistiu
de tarde e de manhã. Seja qual for a interpretação escolhida, não
faz diferença no sentido, pois ele simplesmente subtende o dia
como sendo composto de duas partes. Além do mais, Moisés, se-
gundo o costume de sua nação, começa o dia com a tarde. Não
com o propósito de disputar se essa é ou não a melhor e legítima or-
dem. Sabemos que as trevas precederam o próprio tempo; quando
Deus subtraiu a luz, ele terminou o dia. Não tenho dúvida de que os
Pais mais antigos, para quem a vinda da noite era o fim de um dia e
o começo do outro, seguiram esse modo de raciocinar. Embora aqui
Moisés não pretendesse prescrever uma norma cuja violação fosse
crime, contudo (como acabamos de dizer) ele acomodou seu discur-
so ao que era aceito segundo o costume. Portanto, como os judeus
tolamente condenam o modo como outros povos calculam a relação
entre o dia e a noite – como se Deus tivesse sancionado somente
esse – também é igualmente tolo quem argumenta que o modo de
calcular descrito por Moisés é absurdo.
O primeiro dia. Aqui se refuta claramente o erro dos que afir-
mam que o mundo foi feito num único momento. Pois é um uso as-
tucioso de sofisma demasiadamente grosseiro argumentar que Moi-
sés distribui em seis dias a obra que aperfeiçoou de uma só vez
com o simples propósito didático de transmitir instruções. Ao contrá-
rio, concluímos que o próprio Deus usou o espaço de seis dias com
o propósito de acomodar suas obras à capacidade dos homens. De
maneira desatenta, consideramos rapidamente a infinita glória de
Deus que aqui refulge; de onde surge isso senão de nossa excessi-
va estupidez em considerar sua grandeza? Além disso, a vaidade
de nossa mente nos faz delirar. Para a correção dessa falha, Deus
aplicou o remédio mui adequado quando distribuiu a criação do
mundo em porções sucessivas, para fixar nossa atenção e nos im-
pelir, como se nos conduzisse com as suas mãos, à pausa e refle-
xão. Para a confirmação da equívoca interpretação acima referida,
cita-se inoportunamente uma passagem de Eclesiástico. “Aquele
que vive eternamente criou todas as coisas em seu conjunto” [18.1].
Pois o advérbio grego (koinê), usado pelo escritor, não significa
isso, nem se reporta ao tempo, mas a todas as coisas universalmen-
te.
11. Produza a terra relva. Até aqui a terra era vazia e estéril; então
o Senhor, por sua palavra, a faz frutífera. Pois, embora já estivesse
destinada a produzir fruto, contudo, até que nova virtude emanasse
da boca de Deus, ela permaneceria seca e vazia. Pois ela não esta-
va naturalmente apta a produzir tudo, nem possuía um princípio ger-
minante de alguma outra fonte, até que a boca do Senhor se abris-
se. Pois o que Davi declara concernente aos céus deve também es-
tender-se à terra: que ela foi “feita pela palavra do Senhor, e foi
adornada e suprida pelo hálito de sua boca” [Sl 33.6]. Além do mais,
não é por acaso que as ervas e árvores fossem criadas antes da cri-
ação do sol e da lua. Agora vemos que, de fato, a terra é vivificada
pelo sol para fazê-la produzir seus frutos; Deus não desconhecia
essa lei da natureza, a qual desde então ele mesmo ordenou; mas,
a fim de nos ensinar que todas as coisas dependem dele, o Senhor
não fez uso do sol ou da lua. Ele nos permite perceber a eficácia do
poder que infunde nas ervas e árvores, por meio da instrumentalida-
de do sol e da lua; mas, posto que costumamos considerar como
propriedades naturais aquilo que eles derivam de outro lugar, era
necessário que o vigor que agora parecem comunicar à terra se ma-
nifestasse antes que fossem criados. É verdade que reconhecemos,
nas palavras, que a Primeira Causa é autossuficiente, e que as cau-
sas intermédias e secundárias possuem apenas o que elas empres-
tam desta Primeira Causa; mas, na realidade, representamos a
Deus a nós mesmos como pobre ou imperfeito, a menos que enten-
damos que ele apenas se utiliza das causas secundárias.
Quão poucos, de fato, há que vão além do sol quando tratam
da fecundidade da terra! Por isso, o que declaramos haver Deus fei-
to deliberadamente era indispensavelmente necessário, para que
aprendamos da própria ordem da criação que Deus age através das
criaturas, não como se necessitasse de auxílio externo, mas porque
isso foi de seu agrado. Ao dizer “produza a terra relva, que deem se-
mente, e árvores frutíferas que deem fruto segundo sua espécie”,
ele tem em vista não apenas que as ervas e as árvores fossem en-
tão criadas, mas que, ao mesmo tempo, fossem revestidas com o
poder da reprodução, para que suas várias espécies fossem perpe-
tuadas. Portanto, vemos diariamente a terra nos cobrindo com tais
riquezas desde os seus arredores, visto que vemos as ervas produ-
zindo semente, e que essa semente é recebida e nutrida na terra,
até que germine; e, posto que vemos árvores brotando de outras ár-
vores, tudo isso flui da mesma Palavra. Se, portanto, perguntarmos
como sucede que a terra seja frutífera, que o gérmen é produzido da
semente, que os frutos fiquem maduros, e seus vários tipos são
anualmente reproduzidos, nenhuma outra causa se encontrará se-
não que Deus uma vez falou, isto é, ele promulgou seu eterno de-
creto; e que a terra, e todas as coisas que dela procedem, rendem
obediência ao comando de Deus, o qual elas sempre ouvem.
14. Haja luzeiros. Moisés avança para o quarto dia, quando os as-
tros são criados. Deus criara previamente a luz, mas agora institui
uma nova ordem na natureza: que o sol seria o despenseiro da luz
diurna, e a lua e os astros brilhariam durante a noite. E ele lhes de-
signa esse ofício para nos ensinar que todas as criaturas estão su-
jeitas à sua vontade e executam o que ele lhes prescreveu. Pois
Moisés nada mais relata senão que Deus ordenara a certos instru-
mentos que difundissem pela terra, mediante mudanças recíprocas,
aquela luz que fora previamente criada. A única diferença é que a
luz que outrora era dispersa, agora, porém, procede de corpos lumi-
nosos que, ao servirem a esse propósito, obedecem a ordem de
Deus.
Para fazerem separação entre o dia e a noite. Moisés quer di-
zer o dia “artificial”, que começa com o raiar do sol e termina com
seu ocaso. Pois o dia natural (o qual ele mencionou acima) inclui,
em si, a noite. Disso inferimos que o intercâmbio de dias e noites
será contínuo, porque a palavra de Deus, que determinou que os
dias fossem distintos das noites, dirige o curso do sol a esse fim.
Sejam eles para sinais. Deve-se lembrar de que Moisés não
fala com exatidão filosófica dos mistérios ocultos, mas relata aque-
las coisas que são por toda parte observáveis, até mesmo pelos in-
doutos, e que são do uso comum. Uma dupla vantagem do curso do
sol e da lua é principalmente percebida: a primeira é de ordem natu-
ral; a outra se aplica às instituições civis. Sob o termo natureza, tam-
bém compreendo a agricultura. Pois, embora semeadura e colheita
requeiram a arte e técnica humanas, contudo, é natural que o sol,
por sua aproximação mais direta, aqueça nossa terra; que ele pro-
duza a primavera; que ele seja a causa de verão e outono. Mas,
para ajudar a sua memória, os homens numeram entre si anos e
meses; que desses, eles formam lustro e olimpíadas; que guardam
dias estatuídos; isto, digo, é peculiar à política civil. Aqui se faz men-
ção de cada um desses. Entretanto, em poucas palavras, devemos
afirmar a razão por que Moisés os chama sinais; porque certas pes-
soas curiosas usam mal essa passagem, a fim de enfeitarem suas
frívolas predições.
Denomino a esses homens de caldeus e fanáticos, os quais
tudo adivinham pelos aspectos dos astros. Porque Moisés declara
que o sol e a lua foram designados para sinais, acreditam que estão
autorizados a extrair desses astros tudo o que quiserem. Mas refutar
isso é fácil, pois são chamados sinais em relação a coisas específi-
cas, e não para indicar tudo o que concorde com a nossa fantasia.
O que, de fato, Moisés assevera que deva ser significado por eles,
senão as coisas que pertencem à ordem da natureza? Pois o mes-
mo Deus que aqui ordena os sinais, é o mesmo que, conforme Isaí-
as testifica, diz que “desfaço os sinais dos profetizadores de menti-
ra” [Is 44.25]; e nos proíbe: “nem vos espanteis com os sinais do
céu” [Jr 10.2]. Visto, porém, ser manifesto que Moisés não se aparta
do costume ordinário dos homens, desisto de uma discussão mais
demorada.
A palavra (moadim), que alguns traduzem por “certo tem-
po”, é entendida entre os hebreus de modo variado, pois significa
tanto tempo quanto lugar, e também as assembleias de pessoas. Os
rabinos comumente explicam a passagem como se referindo às
suas festas. Eu, porém, a amplio para significar, em primeiro lugar,
as ocasiões propícias de tempo, aquilo que os franceses chamam
tempos (estações); e, então, todas as ocupações e assembleias fo-
renses.
Finalmente, Moisés celebra a infinita bondade de Deus em fa-
zer com que o sol e a lua não só nos iluminem, mas nos propiciem
várias outras vantagens para o uso diário da vida. Assim, desfrutan-
do simplesmente das múltiplas bênçãos de Deus, aprendamos a
não profanar dádivas tão excelentes mediante nosso ridículo abuso
delas. Entretanto, admiremos esse maravilhoso Artífice, que tão ma-
ravilhosamente dispôs todas as coisas acima e abaixo, para que
correspondam umas às outras no mais harmonioso concerto.
16. O luzeiro maior. Eu já disse que Moisés, aqui, não discorre com
sutileza, como um filósofo, sobre os segredos da natureza, como se
pode ver nessas palavras. Primeiro, ele designa um lugar, na expan-
são do céu, para os planetas e estrelas; mas os astrônomos fazem
uma distinção de esferas e, ao mesmo tempo, ensinam que as es-
trelas fixas têm seu lugar próprio no firmamento. Moisés apresenta
dois grandes luminares; mas os astrônomos provam, por razões
conclusivas, que o astro de Saturno, o qual, em razão de sua gran-
de distância, parece o menor de todos, é maior que a lua. A diferen-
ça é que Moisés escreveu num estilo simples sobre aquelas coisas
que todas as pessoas simples, sem instrução, mas dotadas com
senso comum, são capazes de entender; mas os astrônomos inves-
tigam com grande labor tudo o que a sagacidade da mente humana
pode compreender. Contudo, esse estudo não deve ser reprovado,
nem essa ciência, condenada, porque algumas pessoas frenéticas
costumam rejeitar ousadamente tudo quanto não lhes pode ser co-
nhecível. Pois a astronomia é não só agradável, mas também muito
útil ao conhecimento; não se pode negar que essa arte descortina a
admirável sabedoria de Deus.
Por isso, como os homens engenhosos devem ser honrados, os
quais têm despendido proveitoso trabalho sobre esse tema, assim
aqueles que dispõem de tempo e capacidade não devem negligenci-
ar esse tipo de exercício. Moisés realmente não quis nos afastar
dessa busca, omitindo tais coisas que são peculiares à essa arte;
mas, porque foi ordenado como mestre tanto do indouto e rude,
quanto do erudito, ele não poderia cumprir seu ofício de outro modo,
senão descendo a esse método mais rude de instrução. Tivesse ele
falado de coisas geralmente desconhecidas, o indouto poderia ale-
gar, como desculpa, que tais temas estavam além de sua capacida-
de.
Finalmente, visto que o Espírito de Deus abre, aqui, uma escola
comum a todos, não surpreende que principalmente escolhesse
aqueles temas que fossem inteligíveis a todos. Se o astrônomo
questiona acerca das dimensões reais dos astros, ele descobrirá
que a lua é menor que Saturno; mas isso é algo velado, pois, a olho
nu, parece muito diferente. Moisés, portanto, prefere adaptar seu
discurso ao uso comum. Porque, posto que o Senhor, por assim di-
zer, estenda sua mão para nos fazer desfrutar do brilho do sol e da
lua, quão grande seria nossa ingratidão se preferíssemos fechar
nossos olhos contra nossa própria experiência!
Não há, portanto, razão para os barulhentos zombarem da ina-
bilidade de Moisés em fazer a lua o luminar secundário; pois ele não
nos faz subir ao céu, apenas propõe coisas que jazem diante de
nossos olhos. Que os astrônomos possuam seu mais exaltado co-
nhecimento; mas, enquanto isso, pela lua, os que percebem o es-
plendor da noite são convencidos, pela utilidade dela, de perversa
ingratidão, a menos que reconheçam a beneficência divina.
Governar. Moisés não atribui tal domínio ao sol e à lua a ponto
de, no mínimo grau, diminuir o poder de Deus; mas porque o sol, no
meio do espaço do céu, governa o dia, e a lua, por sua vez, a noite,
ele, pois, lhes designa um tipo de governo. Recordemos, porém,
que esse governo, como tal, implica que o sol é ainda um servo, e a
lua, uma serva. Entretanto, descartamos o devaneio de Platão, que
atribui aos astros razão e inteligência. Devemos nos contentar com
a simples exposição de que Deus governa os dias e as noites pelo
ministério do sol e da lua, porque ele os tem como seus ministros a
comunicar luz apropriada a cada estação do ano.
20. Povoem-se as águas de enxames de seres viventes. No quin-
to dia, as aves e os peixes foram criados. A bênção divina é conce-
dida para que eles, de si mesmos, possam produzir sua prole. Aqui
há um tipo de reprodução diferente daquela das ervas e árvores;
porque ali o poder de frutificar está nas plantas, e o de germinar
está na semente; aqui, porém, ocorre a geração.
Entretanto, parece pouco condizente com a razão que Moisés
declare que as aves procedam das águas e, portanto, isso é utiliza-
do pelos homens capciosos como ocasião de calúnia. Mas, embora
aí não pareça haver outra razão senão que assim foi do agrado de
Deus, não nos seria conveniente aceitarmos o seu juízo? Por que
não seria lícito àquele que criou o mundo do nada produzir aves da
água? E, pergunto, qual seria o maior absurdo: as aves provir da
água ou a luz proceder das trevas? Portanto, que aqueles que tão
arrogantemente agridem seu Criador olhem para o Juiz que os re-
duz a nada. Contudo, se temos de usar o raciocínio na disputa, sai-
bamos que a água tem maior afinidade com o ar do que tem a terra.
Moisés, porém, deve antes ser ouvido como nosso mestre, o qual
nos transporta com admiração a Deus, através da consideração de
suas obras. E, de fato, embora seja o Autor da natureza, o Senhor
de modo algum seguiu a natureza como seu guia na criação do
mundo, mas, antes, preferiu fazer tais demonstrações de seu poder,
como deveríamos ser constrangidos a admirar.
21. Criou, pois, Deus. Aqui, a palavra criou impõe uma questão.
Pois antes já discutimos que, uma vez que o mundo foi criado, ele
foi produzido do nada; agora, porém, Moisés diz que coisas foram
formadas a partir de matéria já criada. Quem real e propriamente as-
severa que os peixes foram criados porque as águas de modo al-
gum eram suficientes ou adequadas para sua produção, simples-
mente recorre a um subterfúgio; pois, nesse caso, permaneceria o
fato de que o material do qual foram feitos já existia; o que, com es-
trita propriedade, a palavra “criou” não admite.
Portanto, não restrinjo a criação aqui mencionada à obra do
quinto dia, mas, antes, suponho que se reporta àquela massa infor-
me e confusa, a qual foi como que a fonte do mundo inteiro. Lemos,
pois, que Deus criou as baleias e outros peixes; não que se deva
considerar o princípio de sua criação a partir do momento em que
recebem sua forma, mas porque estão compreendidos na matéria
universal que foi criada do nada. De modo que, com respeito à es-
pécie, então só lhes foi acrescida a forma; mas criação é, contudo,
um termo realmente usado em relação tanto ao todo quanto às par-
tes. Em minha opinião, a palavra baleias pode ser traduzida, normal
e apropriadamente, por thynnus ou atum, como correspondente à
palavra hebraica thaninim.
Ao dizer que “as águas produziram”, Moisés continua comen-
tando a eficácia da palavra, à qual as águas atendem tão pronta-
mente e, que, ainda que em si mesma sem vida, de repente se torna
prolífica com uma prole viva; contudo, a linguagem empregada por
ele expressa mais, a saber, que inumeráveis peixes são diariamente
produzidos das águas porque a palavra de Deus, pela qual uma vez
lhe falou, continua em vigor.
À
À nossa imagem, conforme a nossa semelhança. Não insis-
to escrupulosamente sobre as partículas (bet) e (caf). Não sei se
há algo sólido na opinião de alguns que sustentam que isso é dito
porque a imagem de Deus apenas se insinuou no homem, até que
atingisse sua perfeição. De fato isso procede, porém não creio que
algo do gênero passou pela mente de Moisés. É verdade também
que Cristo é a única imagem do Pai; no entanto, as palavras de Moi-
sés não comportam a interpretação de que “à imagem” significa “em
Cristo”. Pode-se acrescentar também que mesmo o homem, ainda
que num aspecto diferente, é chamado a imagem de Deus. Nisso al-
guns dos Pais da igreja se enganaram, ao imaginarem que poderi-
am vencer os arianos com essa arma, a saber, que Cristo é a única
imagem de Deus. É preciso levar em conta uma dificuldade ainda
maior, a saber, por que Paulo negaria à mulher a imagem de Deus,
quando Moisés honra a ambos, indiscriminadamente, com esse títu-
lo? A solução é simples: a referência de Paulo, ali, é somente à rela-
ção doméstica. E, portanto, restringe a imagem de Deus ao governo
do lar, no qual o homem, como cabeça, é superior à mulher, e certa-
mente Moisés tem em vista nada mais que o fato de que o homem é
superior no grau de honra. Aqui, porém, a questão é acerca daquela
glória de Deus que resplandece particularmente na natureza huma-
na, onde a mente, a vontade, e todos os sentidos representam a or-
dem divina.
Tenha ele domínio. Aqui Moisés celebra aquela parte da digni-
dade com que Deus decretara honrar o homem, a saber, que este
teria autoridade sobre todas as criaturas viventes. É verdade que
Deus designou que o homem fosse o senhor do mundo, mas ex-
pressamente lhe sujeita os animais porque eles, possuindo uma in-
clinação ou instinto inerentemente próprio, parecem estar menos
sob a autoridade externa. O uso do plural notifica que essa autorida-
de não foi dada unicamente a Adão, mas a toda sua posteridade, no
mesmo grau que a ele. E disso inferimos qual era o fim a que todas
as coisas foram criadas, a saber, que nenhuma das conveniências e
necessidades da vida faltasse aos homens. Na própria ordem da cri-
ação, se faz notável a solicitude paternal de Deus pelo homem, por-
que ele, mesmo antes de formar o homem, supriu o mundo com to-
das as coisas indispensáveis, e inclusive com uma imensa profusão
de riqueza. Assim, o homem já era rico, mesmo antes de nascer.
Mas, se Deus teve tal cuidado de nós antes que viéssemos à exis-
tência, de modo algum nos deixará destituídos de alimento e de ou-
tras coisas necessárias à vida, agora que já estamos postos no
mundo. Contudo, quando frequentemente ele retém sua mão, isto é,
a mantém fechada, isso deve ser imputado aos nossos pecados.
31. Viu Deus tudo. Uma vez mais, na conclusão da criação, Moisés
declara que Deus aprovou tudo o que fizera. Ao falar de Deus como
vendo, ele age de acordo com o modo humano de falar; pois aprou-
ve ao Senhor que este seu critério fosse uma norma e exemplo para
nós: que ninguém ousasse pensar ou falar de outro modo de suas
obras. Pois não nos é lícito discutir se devemos ou não aprovar
aquilo que Deus já aprovou; mas, antes, nos cabe aceitar sem con-
trovérsia. A repetição significa ainda quão leviana é a imprudência
humana; de outro modo, teria sido suficiente dizer, uma vez por to-
das, que Deus aprovou suas obras. Mas ele inculca a mesma coisa
seis vezes para restringir, como um forte freio, nossa incansável au-
dácia. Moisés, porém, expressa muito mais do que disse antes; pois
ele acrescenta (meod), isto é, tudo. Em cada um dos dias, deu-se
simples aprovação. Agora, porém, depois que a criação do mundo
se completou em todas as suas partes, e recebeu, se posso me ex-
pressar assim, o último toque finalizador, ele declara que tudo era
perfeitamente bom, para que soubéssemos que, na simetria das
obras de Deus, há a mais elevada perfeição, à qual nada se pode
acrescentar.
1 Steuchus Augustinus foi o autor de uma obra intitulada “De Perenni Philosophia”, e é bem
provável ser o escritor referido por Calvino.
2 Sabélio foi um pastor e teólogo do século III d.C. que negava a doutrina da Trindade, afir-
mando que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são uma e a mesma Pessoa.
3 Ao empregar a palavra Sabedoria com inicial maiúscula, é provável que Calvino tivesse
em mente o Filho de Deus, que é intitulado como sendo a Sabedoria em várias passagens
da Escritura.
4 Sobre essa suposta “nova qualidade em Deus” admitida por Serveto, Cf. Institutas da Re-
ligião Cristã, Livro II, cap. xiv.
5 Isto é, sem luz as belezas da natureza não podiam ser percebidas, nem a distinção entre
diferentes objetos discernidos.
6 Aqui, e em muitos outros casos, Calvino emprega o termo “filósofo”, e seus cognatos,
para designar homens que se dedicam ao ensino e à pesquisa no âmbito das ciências na-
turais.
7 Esse raciocínio deve ser entendido a partir das teorias filosóficas da época.
8 O leitor deverá levar em consideração que Calvino fala dos astros e das suas relações a
partir das limitadas teorias da filosofia natural existentes em sua época.
9 Sinédoque é a figura de linguagem que põe uma parte pelo todo, ou o todo por uma par-
te.
C A P ÍT U L O 2
É
No Éden. É óbvio que, na Vulgata, Jerônimo traduz impropria-
mente o termo por “desde o princípio” porque, mais adiante, Moisés
diz que Caim habitou na região sul desse lugar. Além do mais, deve-
se observar que, quando descreve o paraíso como situando no ori-
ente, ele fala em referência aos judeus, porquanto dirige seu discur-
so ao seu próprio povo. Disso inferirmos, em primeiro lugar, que
houve determinada região designada por Deus ao primeiro homem,
na qual ele pudesse ter seu lar. Declaro isso expressamente porque
tem havido autores que estenderiam esse jardim a todas as regiões
do mundo. Realmente confesso que, se a terra não fora amaldiçoa-
da em virtude do pecado do homem, toda ela – como fora abençoa-
da desde o princípio – teria permanecido o mais belo cenário tanto
de excelente produção de frutos quanto de deleite; em suma, que
ela teria sido não diferente do Paraíso, quando comparado com
aquele cenário de deformidade que agora contemplamos. Mas, en-
quanto Moisés aqui descreve particularmente a situação da região,
absurdamente eles aplicam ao mundo inteiro o que Moisés disse de
um determinado lugar.
De fato, não se duvida (como acabei de sugerir) que Deus es-
colhesse o mais fértil e agradável lugar, as primícias, por assim di-
zer, da terra, como sua dádiva a Adão, a quem ele dignara com a
honra da primogenitura entre os homens, como emblema de seu es-
pecial favor. Uma vez mais, inferimos que esse jardim estava situa-
do na terra, não no ar, como sonham alguns; pois, a menos que ele
fosse uma região de nosso mundo, não teria sido colocado no orien-
te, tendo como referência a Judeia.
Entretanto, devemos rejeitar inteiramente as alegorias de Oríge-
nes, e de outros como ele, as quais Satanás, com a mais profunda
sutileza, tudo fez para introduzir na Igreja, com o propósito de tornar
a doutrina da Escritura ambígua e destituída de toda certeza e soli-
dez. De fato, pode ser que alguns, impelidos por uma suposta ne-
cessidade, tenham recorrido a um sentido alegórico, pois nunca
acharam no mundo tal lugar como o descrito por Moisés; vemos, po-
rém, que a maioria, por um tolo apego a sutilezas, aderiram demasi-
adamente às alegorias. No que diz respeito à presente passagem,
especulam em vão e para nenhum propósito, afastando-se do senti-
do literal. Pois Moisés não teve nenhum outro objetivo senão ensi-
nar o homem que ele foi formado por Deus com esta condição: que
exercesse domínio sobre a terra, da qual pudesse colher fruto, e as-
sim aprender, pela experiência diária, que o mundo lhe estava sujei-
to. Que vantagem há em pairar no ar e deixar a terra, onde Deus
dera prova de sua benevolência para com a raça humana?
Mas alguém poderia dizer que é mais hábil interpretar isso em
referência à bênção celestial. Minha resposta é que, visto que a he-
rança eterna do homem está no céu, realmente é certo que nos in-
clinemos para lá; contudo, devemos firmar bem nosso pé na terra
por um período suficiente para nos levar a considerar a morada que
Deus requer que o homem use por certo tempo. Pois agora estamos
familiarizados com aquela história que nos ensina que Adão era,
pela designação divina, um habitante da terra, a fim de que, ao
transcorrer sua vida terrena, medite sobre a glória celestial; e que
ele fora profusamente enriquecido pelo Senhor com inumeráveis be-
nefícios, de cujo desfrute pudesse deduzir a benevolência paterna
de Deus.
Moisés também acrescentará mais adiante que foi ordenado a
Adão que cultivasse os campos e lhe foi permitido comer certos fru-
tos; todas essas coisas não se encontram na esfera lunar nem nas
regiões celestiais. Mas, embora já tenhamos dito que a localização
do Paraíso está entre o nascente e a Judeia, contudo se requer algo
mais definido acerca daquela região. Os que argumentam dizendo
que ela ficava na adjacência da Mesopotâmia, contam com razões
que não devem ser menosprezadas; porque é bem provável que os
filhos de Éden vivessem nas proximidades do rio Tigre. Mas, como a
descrição dela feita por Moisés seguirá imediatamente, é preferível
defender a designação dela àquele lugar. O antigo intérprete, Jerôni-
mo, caiu em equívoco ao traduzir o nome próprio, Éden, pelo adjeti-
vo “prazer”. De fato, não nego que o lugar fosse assim chamado
com base em seus deleites; mas é fácil de inferir que o nome foi im-
posto ao lugar para distingui-lo dos demais.
10. E saía um rio do Éden. Moisés afirma que um rio corria para re-
gar o jardim, o qual mais tarde se dividiria em quatro vertentes. En-
tre todos, é unânime a posição de que duas dessas vertentes são o
Eufrates e o Tigre; pois ninguém disputa que (Hiddekel) seja o
Tigre. Mas há uma grande controvérsia a respeito das outras duas.
Muitos pensam que Pisom e Giom são os Ganges e o Nilo; entretan-
to, o erro de tais homens é sobejamente refutado pela distância das
posições desses rios. Não falta quem inclusive voe até o Danúbio,
como se realmente a habitação de um homem se estendesse da
mais remota parte da Ásia até a extremidade da Europa. Visto, po-
rém, que muitos outros rios célebres fluem através da região da qual
estamos falando, há maior probabilidade na opinião dos que creem
que já se perderam os nomes dos dois últimos rios indicados. Seja
como for, a dificuldade ainda não é solucionada. Pois Moisés divide
aquele rio que fluía pelo jardim em quatro vertentes. Tudo indica,
porém, que as fontes do Eufrates e do Tigre ficam mais distantes
uma da outra.
À luz dessa dificuldade, alguns tentam resolver dizendo que a
superfície do globo poderia ter sofrido mudança com o dilúvio e, por
isso, imaginam ter havido um cataclismo, e os cursos dos rios mu-
daram e suas nascentes se transferiram para outro lugar; mas essa
solução me parece de modo algum aceitável. Pois, embora eu reco-
nheça que a terra, desde o tempo em que fora amaldiçoada, foi re-
duzida de sua beleza original a um estado de miserável definhamen-
to e a um aspecto físico deplorável, e mais tarde, em muitos lugares,
ficou ainda mais devastada pelo dilúvio, no entanto, assevero que
esta é a mesma terra que fora criada no princípio. Acrescente-se a
isso que Moisés (em minha opinião) acomodou sua topografia à ca-
pacidade de sua época. Contudo, nada se define, a menos que en-
contremos aquele lugar onde o Tigre e o Eufrates procederam de
um único rio.
Observe-se, antes de tudo, que não se faz qualquer menção de
uma vertente ou fonte, mas simplesmente afirma-se que havia um
rio. Entendo, porém, as quatro vertentes no sentido tanto da fonte
da qual os rios se derivaram, quanto das fozes pelas quais se desa-
guaram no mar. Ora, o Eufrates, em seus primórdios, estava tão as-
sociado, por sua confluência, com o Tigre, que com razão se podia
dizer que um rio se dividiu em quatro vertentes, especialmente se
for concedido o que é manifesto a todos: que Moisés não fala acura-
damente, nem de uma maneira filosófica, e sim em linguagem popu-
lar, de modo que cada um, com um mínimo de informação, o pudes-
se entender. Assim, no primeiro capítulo, ele denomina o sol e a lua
“dois grandes luminares”, não porque a lua excedesse em magnitu-
de a outros planetas, e sim porque, à observação comum, ela pare-
cia maior. Acrescente-se ainda que ele parece eliminar toda e qual-
quer dúvida quando diz que o rio tinha quatro vertentes, porque fora
dividido a partir daquele lugar. O que isso significa senão que os ca-
nais foram divididos, de uma só corrente confluente, acima ou abai-
xo do Paraíso? Agora submeterei um plano à vista, para que os lei-
tores entendam onde creio que Moisés localizou o Paraíso.
De fato, em seu Sexto Livro, Plínio relata que o Eufrates foi de
tal modo interrompido em seu curso pelo Orcheni, que não podia de-
saguar no mar, exceto através do Tigre. E Pomponius Mela, em seu
Terceiro Livro, nega que ele fluísse por algum dado escoadouro
como outros rios, porém diz que ele não seguia seu curso. Near-
chus, contudo (a quem Alexandre fizera comandante de suas frotas,
e que, sob sua sanção, navegara por todas essas regiões), avalia a
distância da desembocadura do Eufrates até Babilônia, em três mil e
trezentos stadia.2 Mas ele põe a foz do Tigre na entrada de Susiana,
em cuja região, ao regressar daquela longa e memorável viagem,
ele encontrou o rei com sua frota, como Adrian relata em seu Oitavo
Livro das Explorações de Alexandre. Strabo confirma também esta
afirmação por seu testemunho em seu Décimo Quinto Livro. Entre-
tanto, onde quer que o Eufrates, ou aprofunda, ou mistura sua cor-
rente, é certo que ele e o Tigre, abaixo do ponto de sua confluência,
são outra vez divididos. Adrian, contudo, em seu Sétimo Livro, es-
creve que não só um canal do Eufrates corre para o Tigre, mas tam-
bém muitos rios e valos, porque as águas descem naturalmente de
uma base superior à uma inferior.
Com respeito à confluência, a opinião de alguns era que ela
fora efetuada pelo trabalho do Prefeito Cobaris, para que o Eufrates,
pelo impulso de seu curso, não prejudicasse a Babilônia. Mas ele
fala disso como de uma matéria duvidosa. É mais crível que os ho-
mens, por sua arte e capacidade, seguissem a orientação da nature-
za na formação de valos, assim que notaram onde o fluxo do Eufra-
tes seguia da parte mais alta rumo ao Tigre. Além do mais, caso se
ponha confiança em Pomponius Mela, Semiramis conduziu o Tigre e
o Eufrates à Mesopotâmia, a qual anteriormente era seca; algo de
modo algum crível. Há mais verdade na afirmação de Strabo – escri-
tor diligente e atento –, em seu Décimo Primeiro Livro, de que esses
dois rios se unem na Babilônia; e, então, que cada um é arrastado
separadamente, em seu próprio leito, até o Mar Vermelho. Ele en-
tende que a junção ocorreu acima de Babilônia, não distante da ci-
dade de Mássica, como lemos no Quinto Livro de Plínio. Daqui flui
um rio através de Babilônia, o outro se desliza pela Selêucia, duas
das mais célebres e opulentas cidades.
Se admitirmos que tal confluência, pela qual o Eufrates se mis-
tura com o Tigre, se deu de modo natural, e que existiu desde o
princípio, todo absurdo é removido. Se há sob o céu uma região
preeminente em beleza, seja na abundância de todos os tipos de
fruto, na fertilidade, nas delícias, e em outras dádivas, essa é a regi-
ão que os escritores tanto celebram. Portanto, os elogios com que
Moisés enaltece o Paraíso são de tal natureza que pertencem devi-
damente a uma região dessa descrição. E que a região do Éden es-
tava situada naquelas partes é provável à luz de Isaías 37.12 e Eze-
quiel 27.23. Além do mais, quando Moisés declara que emanava um
rio, eu o entendo como que falando do fluxo de uma torrente de
águas, como se quisesse dizer que Adão habitava na margem do
rio, ou naquela terra que era irrigada de ambos os lados, caso o lei-
tor queira considerar o Paraíso a partir das duas margens do rio. En-
tretanto, não faz grande diferença se Adão habitava abaixo do curso
confluente para Babilônia e Selêucia, ou na parte superior; basta sa-
ber que ele ocupou uma região bem irrigada. Não é difícil de enten-
der como o rio foi dividido em quatro vertentes. Pois, há dois rios
que fluem paralelamente e então se separam em diferentes dire-
ções; assim, ele se torna um só no ponto de confluência, porém há
duas vertentes em seus canais superiores, e duas para o mar; mais
adiante, começam outra vez a ser mais amplamente separadas.
Resta ainda a questão referente aos nomes Pisom e Giom. Pois
não parece razoável designar um nome duplo a cada um dos rios.
Mas não é algo novo que rios mudem seus nomes durante seu cur-
so, especialmente onde há alguma marca especial de distinção. O
Tigre mesmo (pela autoridade de Plínio) é chamado Diglito nas pro-
ximidades de sua nascente; no entanto, depois de haver formado
muitos canais, e outra vez fundir-se, assume o nome Pasitigris. Por-
tanto, não há nenhum absurdo dizer que, depois de sua confluência,
ele teve nomes diferentes. Além disso, há tal afinidade entre Pasin e
Pisom, que chega a ser provável que o nome Pasitigris seja um ves-
tígio da antiga designação. No Quinto Livro de Quintus Curtius, com
respeito às Explorações de Alexandre, onde se faz menção de Pasi-
tigris, algumas cópias rezam que ele era chamado pelos habitantes
Pasin. Nem mesmo as outras circunstâncias, pelas quais Moisés
descreve três desses rios, se chocam com essa suposição. O Pisom
circunda a terra de Havilá, onde se produz ouro. Ao Tigre se atribui
o termo circular, em razão de seu curso sinuoso abaixo da Mesopo-
tâmia. A terra de Havilá, em minha opinião, é aqui tomada para uma
região adjacente à Pérsia. Pois, subsequentemente, no capítulo 25,
Moisés relata que os ismaelitas habitaram desde Havilá até Sur, que
é situado ao Egito, onde há uma estrada que conduz à Assíria. Havi-
lá, como uma fronteira, é oposta a Sur, e Moisés situa essa fronteira
nas proximidades do Egito, em direção à Assíria. De onde se segue
que Havilá se estende para Susã e Pérsia. Pois é necessário que
ela esteja abaixo da Assíria, em direção ao Mar Pérsico; além disso,
ela se localiza numa grande distância do Egito, porque Moisés enu-
mera muitas nações que habitavam entre essas fronteiras.3 Então
parece que os nabateus,4 de quem ali se faz menção, eram vizinhos
dos persas. Cada coisa que Moisés assevera acerca do ouro e pe-
dras preciosas é perfeitamente aplicável a essa região.
Resta ainda a ser avaliado o rio Giom, o qual, como Moisés de-
clara, rega a terra de Cuxe. Todos os intérpretes traduzem essa pa-
lavra por Etiópia; porém Moisés inclui sob o mesmo nome o país
dos midianitas, e o país limítrofe da Arábia; é por isso que sua espo-
sa, em outro lugar, é chamada mulher etíope. Além disso, visto que
o curso inferior do Eufrates tende para aquela região, não vejo por
que se julgaria absurdo que ali ele recebesse o nome Giom. E assim
a simples intenção de Moisés é dizer que o jardim do qual Adão foi o
possuidor era bem irrigado, passando por aquela via o canal de um
rio, o qual mais adiante se dividiu em quatro vertentes.
18. Não é bom que o homem esteja só. Então Moisés explica o
desígnio de Deus em criar a mulher, a saber, para que houvesse se-
res humanos na terra a cultivarem uma sociedade mútua entre si.
No entanto, pode se levantar uma dúvida se esse desígnio deve se
estender à descendência, pois as palavras simplesmente significam
que, posto que não era conveniente ao homem viver sozinho, então
lhe seria criada uma esposa que pudesse ser sua auxiliadora. Eu,
entretanto, entendo que o significado é o seguinte: que Deus, de
fato, já no início da sociedade humana, projeta incluir outros seres
humanos, cada um em sua própria posição. Portanto, o ponto de
partida envolve um princípio geral: que o homem foi formado para
ser um animal social. Ora, a raça humana não podia existir sem a
mulher; e, portanto, na conjunção dos seres humanos, esse sacro
laço é especialmente notável, pelo qual o esposo e a esposa são
combinados em um só corpo e uma só alma, como a própria nature-
za ensinou Platão, e outros da mais sólida classe de filósofos, a fa-
lar. Mas ainda que Deus declarasse, no que respeita a Adão, que
não lhe seria proveitoso viver sozinho, contudo não restrinjo a decla-
ração unicamente à sua pessoa, mas, antes, a considero como sen-
do uma lei comum da vocação do homem, de modo que cada um
deve recebê-la como dita a si próprio: que a solidão não é boa, ex-
cetuando somente aquele a quem se abstém, por um privilégio es-
pecial. Muitos creem que o celibato lhes traz vantagem e, por isso,
se abstêm do casamento, para que não venham a ser miseráveis.
Não foram somente os escritores pagãos que definiram que, para vi-
ver uma vida feliz, não se deve ter esposa, mas o primeiro livro de
Jerônimo, contra Joviniano, está repleto de petulantes reprimendas,
pelas quais ele tenta fazer com que o santo matrimônio seja, ou odi-
oso, ou infame. Que os fiéis aprendam a confrontar essas ímpias
sugestões de Satanás com a declaração de Deus, pela qual ele or-
dena ao homem a vida conjugal, não para sua destruição, e sim
para sua salvação.
Far-lhe-ei uma auxiliadora. Pode-se questionar por que esse
termo não foi expresso no plural, “Far-lhe-emos”, como anteriormen-
te na criação do homem. Há quem suponha que dessa maneira se
caracteriza uma distinção entre os dois sexos, e que assim se mos-
tra o quanto o homem sobressai à mulher. Quanto a mim, porém,
fico mais satisfeito com a interpretação que, muito embora não seja
totalmente contrária a essa, contudo é diferente; isto é, visto que a
raça humana foi criada na pessoa do homem, a dignidade comum
de toda nossa natureza era sem distinção, honrada com um louvor
quando foi dito: “Façamos o homem”; por isso, não era necessário
que a expressão fosse repetida na criação da mulher, que nada
mais era senão um complemento ao homem.
Certamente, não se pode negar que a mulher também, ainda
que tenha sido criada de modo diferente, foi criada à imagem de
Deus; consequentemente, o que se disse na criação do homem é
pertinente também ao sexo feminino. Ora, visto que Deus designa a
mulher como auxiliadora do homem, ele não só prescreve às espo-
sas a norma de sua vocação, para instruí-las em seu dever, mas
também declara que o matrimônio realmente provará ser aos ho-
mens o melhor auxílio da vida. Portanto, podemos concluir que a or-
dem da natureza implica que a mulher seria a auxiliadora do ho-
mem. De fato, o provérbio popular reza que ela é um mal necessá-
rio; contudo é a voz de Deus que deve ser ouvida, a qual declara
que a mulher é dada ao homem como companheira e uma auxilia-
dora a assisti-lo no bom viver. Na verdade confesso que, nesse es-
tado corrupto do gênero humano, a bênção de Deus, que é aqui
descrita, não é percebida nem próspera; mas é preciso considerar a
causa do mal, a saber, que nós invertemos a ordem da natureza que
Deus designara. Pois, se a integridade do homem permanecesse
até hoje tal como foi desde o princípio, essa instituição divina seria
claramente discernida, e reinaria no casamento a mais doce harmo-
nia, porque o esposo elevaria seu reverente olhar para Deus; a mu-
lher ser-lhe-ia, nisso, uma fiel assistente; e ambos, com um só con-
sentimento, cultivariam um santo, bem como um amigável e pacífico
relacionamento.
Ora, sucedeu por nossa culpa e pela corrupção da natureza,
que essa felicidade conjugal em grande medida pereceu, ou, ao me-
nos, se misturou e se infectou com muitas inconveniências. Disso
provêm porfias, conturbações, tristezas, dissensões e um infinito
oceano de males; e disso se segue também que os homens são fre-
quentemente perturbados por suas esposas e, por meio delas, so-
frem muito desânimo. Contudo, o casamento não veio a ser de tal
modo corrompido pela depravação dos homens, que a bênção que
Deus uma vez sancionou por sua palavra fosse totalmente abolida e
extinta. Portanto, em meio a tantas inconveniências do casamento,
as quais são frutos da natureza degenerada, permanece algum resí-
duo do bem divino, à semelhança de um fogo aparentemente extin-
to, mas que algumas fagulhas ainda cintilam.
Esse ponto principal implica em outro: que as mulheres, sendo
instruídas em seu dever de auxiliar seu esposo, deveriam se esfor-
çar por manter essa ordem divinamente designada. É igualmente
responsabilidade dos homens considerar o que devem à outra meta-
de de sua espécie, pois a obrigação de ambos os sexos é mútua, e,
sob essa condição, é a mulher designada como uma auxiliadora
para o homem, para que ele ocupe o espaço como cabeça e líder
dela. É preciso que se note mais uma coisa: que, quando a mulher é
aqui denominada auxiliadora do homem, não se faz qualquer refe-
rência ao estado no qual nos encontramos, desde a queda de Adão;
pois a mulher foi ordenada como auxiliadora do homem, ainda quan-
do ele permanecia em sua integridade. Agora, porém, visto que a
depravação do apetite também requer um remédio, temos da parte
de Deus um duplo benefício; mas o segundo é acidental.
Que lhe seja idônea. No hebraico, temos (kenegedo) que
significa “como que oposto a” ou “em oposição a”. A letra (kaf) é
usada para indicar uma semelhança. Embora alguns rabinos creiam
que aqui ela está como uma afirmativa, contudo a tomo em seu sen-
tido geral, indicando um tipo de contraparte equivalente, pois lemos
que a mulher deve ser oposta a ou em oposição a o homem, porque
ela lhe corresponde. Mas parece-me que se acrescenta a partícula
de semelhança por ser uma forma de linguagem tomada do uso co-
mum.
Os tradutores gregos traduziram fielmente o sentido de ’
(kat’ auton); e Jerônimo por “A qual lhe seja igual”, pois a intenção
de Moisés era destacar alguma igualdade. E daqui se refuta o erro
de alguns que pensam que a mulher foi formada apenas para a pro-
pagação, e que restringem a palavra “bom”, recém-mencionada, à
geração de uma descendência. Não creem que uma esposa fosse
pessoalmente necessária a Adão, porquanto até aqui ele era isento
de luxúria, como se ela lhe fosse dada simplesmente como compa-
nheira de quarto, e não, antes, para que ela fosse inseparável com-
panheira de sua vida. Portanto, a letra (kaf) é importante, pois
mostra que o casamento se estende a todas as partes e utilidades
da vida. É frívola a explicação dada por outros, como se fosse dito:
“Que ela esteja pronta à obediência”, pois a intenção de Moisés era
expressar muito mais que isso, como veremos a seguir.
22. E lha trouxe. Moisés então relata que o matrimônio foi divina-
mente instituído, o qual é especialmente útil ser conhecido; pois, vis-
to que Adão não tomou para si uma esposa seguindo sua própria
vontade, porém a recebeu como se lhe oferecida e apropriada por
Deus, a santidade do matrimônio se manifesta ainda mais claramen-
te porque reconhecemos a Deus como seu Autor. Quanto mais Sa-
tanás se esforça em desonrar o matrimônio, mais devemos nós vin-
dicá-lo de todo opróbrio e abuso, para que ele seja recebido com a
devida reverência. Disso se seguirá que os filhos de Deus abracem
uma vida conjugal com boa e tranquila consciência, e os esposos e
esposas vivam juntos em castidade e honra. Ao tentar a difamação
do matrimônio, o artifício de Satanás era duplo: primeiro que, por
meio do ódio a ele anexado, introduzisse a pestífera lei do celibato;
e, segundo, que as pessoas casadas se entregassem a todo tipo de
licenciosidade, conforme seus desejos. Portanto, ao exibir-se a dig-
nidade do matrimônio, devemos remover a superstição, para que
ela, por pouco que seja, não impeça os fiéis de castamente fazerem
santo e puro uso da ordenança de Deus; e, mais, devemos lutar
contra a lascívia da carne, para que os homens vivam modestamen-
te com sua esposa. Mas, se nenhuma outra razão nos influenciasse,
contudo, apenas esta deveria nos ser abundantemente suficiente: a
menos que pensemos e falemos honrosamente acerca do matrimô-
nio, a censura é dirigida ao seu Autor e Patrono que, conforme a
descrição de Moisés, é o próprio Deus.
1 Ao que parece, a estabilidade aqui sugerida por Calvino refere-se à superioridade da vida
celeste em relação à vida terrestre, baseada no contraste entre alma vivente e o espírito vi-
vificante.
2 Aproximadamente 680 quilômetros.
3 Uma referência às nações povoadas pelos doze filhos de Ismael, de acordo com Gn
25.13-16.
4 Os nabateus são os descendentes de Nebaiote, o filho mais velho de Ismael. Contudo,
visto que habitavam ao ocidente do grande deserto da Arábia, não podem, necessariamen-
te, ser chamados vizinhos dos persas.
5 Não há qualquer equívoco nessa afirmação de Calvino; pois, embora a versão em portu-
guês contenha a expressão “os dois” ou “ambos”, tal expressão não aparece no texto he-
braico nem na versão em latim utilizada por ele. Contudo, a ideia de “os dois” ou “ambos”
está implícita no texto original.
C A P ÍT U L O 3
5. Porque Deus sabe. Há aqueles que pensam que Deus é aqui as-
tutamente louvado por Satanás, como se ele nunca proibira os ho-
mens do uso de fruto saudável. Mas, manifestamente, se contradi-
zem, pois ao mesmo tempo confessam que, na parte inicial da sen-
tença, ele já declarara Deus como indigno de confiança, como se
Deus tivesse mentindo. Outros supõem que ele acusa a Deus de ser
maligno e invejoso, como querendo privar o homem de sua mais
elevada perfeição; e esta opinião é mais provável do que a anterior.
Contudo (em minha opinião), Satanás tenta provar o que recente-
mente asseverara; no entanto arrazoa com base nos contrários:
Deus, diz ele, vos interditou a árvore, para que não seja compelido a
admitir-vos à participação de sua glória; portanto, o receio da puni-
ção é totalmente desnecessário. Em suma, ele nega que um fruto
que é proveitoso e saudável possa ser prejudicial. Ao dizer “Deus
sabe”, ele censura Deus como sendo movido de ciúme, e como pro-
mulgando um mandamento com respeito à árvore, com o propósito
de manter o homem numa categoria inferior.
Como Deus. Alguns traduzem a expressão dessa forma: “Se-
reis como anjos”. Ela também pode ser traduzida no singular, “Se-
reis como Deus”. Não tenho dúvida de que Satanás lhes promete di-
vindade, como se quisesse dizer: Deus vos privou da árvore do co-
nhecimento porque ele teme ter-vos como iguais. Além disso, não é
sem alguma demonstração de razão que ele faz a glória divina, ou a
igualdade com Deus, consistir no perfeito conhecimento do bem e
do mal; mas é um mero pretexto, com o propósito de enredar a mi-
serável mulher. Porque o anseio por conhecimento é naturalmente
inerente à todos, e é suposto que a felicidade está nele. Eva, porém,
errou em não regular a medida de seu conhecimento pela vontade
de Deus. E todos nós, diariamente, sofremos sob a mesma doença,
porque desejamos conhecer mais do que é de direito, e mais do que
Deus mesmo permite; enquanto o ponto principal da sabedoria é
uma bem regulada sobriedade na obediência a Deus.
10. Ele respondeu: ouvi a tua voz no jardim. Embora essa pareça
ser a confissão de um homem abatido e humilhado, logo se mostra-
rá que ele ainda não estava devidamente humilhado nem arrependi-
do. Ele imputa seu temor à voz de Deus, bem como à sua nudez,
como se nunca ouvira antes a Deus falando sem se sentir alarmado,
nem fora ainda animado com dulçor por sua fala. Sua excessiva es-
tupidez se mostra nisto: que em seu pecado ele falha em reconhe-
cer a causa da vergonha que ora sente; ele, pois, mostra que ainda
não sente tanto sua punição, a ponto de confessar sua culpa. Entre-
tanto, ele prova ser verdade o que eu disse anteriormente: que o pe-
cado original não reside apenas numa parte do corpo, mas mantém
seu domínio na totalidade do homem, e de tal modo ocupa cada
parte da alma, que nenhuma permanece íntegra, porque, apesar da
sua vestimenta de folhas, ele ainda teme a presença de Deus.
11. Quem te fez saber que estavas nu? Uma repreensão indireta
para reprovar a indolência de Adão em não perceber sua culpa, em
sua punição, como se estivesse dizendo não simplesmente que
Adão estava com medo da voz de Deus, mas que a voz de seu Juiz
lhe era formidável, porque Adão era um pecador. Além disso, dizen-
do que a causa do temor não era a sua nudez, e sim a torpeza do
vício do qual se maculara; e certamente era culpado de intolerável
impiedade contra Deus por buscar, na natureza, a origem do mal.
Não que ele acusasse Deus em termos claros; mas, lamentando
sua própria miséria e dissimulando o fato do qual ele próprio foi o
autor, ele transfere malignamente para Deus a acusação que deve-
ria ter trazido contra si mesmo. O que a Vulgata traduz como “a não
ser que tenhas comido da árvore”, é mais uma interrogação do que
afirmação. Deus pergunta, numa expressão de dúvida, não como se
estivesse investigando alguma matéria disputável, e sim com o pro-
pósito de perscrutar mais acuradamente o homem estúpido que,
acometido de uma doença fatal, ainda não tem consciência de sua
enfermidade, justamente como um homem doente que se queixa
que está febril, contudo não crê ser febre.
Entretanto, recordemos bem que nenhum proveito extraímos de
quaisquer prevaricações, mas que Deus sempre nos ligará, por uma
justa acusação, ao pecado de Adão. A cláusula “comeste da árvore
que te ordenei que não comesses?” é adicionada para remover o
pretexto de ignorância. Pois Deus notifica que Adão fora admoesta-
do em tempo hábil; e que ele caíra por nenhuma outra razão senão
esta: que, consciente e voluntariamente, trouxe destruição sobre si
mesmo. Além disso, a atroz natureza do pecado está caracterizada
nessa transgressão e rebelião porque, como nada é mais aceitável
a Deus do que a obediência, assim nada é mais intolerável do que
quando os homens, havendo profanado seus mandamentos, obede-
cem a Satanás e à sua própria luxúria.
1 O termo “pessoa” é aqui empregado no sentido geral, significando “as características de”
ou “as qualidades de”, e não no sentido de “pessoalidade” ou “personalidade”.
2 A palavra acidental é aqui usada no sentido técnico e específico, a saber, para significar
algo oposto ao que é essencial.
3 Cf. Institutas da Religião Cristã, Livro III, cap. 1.
4 Institutas da Religião Cristã, Livro II, caps. 1, 2, 3.
5 O termo “anagogia” vem do grego (anagôgê) que significa “subir ao alto”, designan-
do um modo especialmente de “elevar” a mente, por meio de uma transição das coisas ter-
renas em direção às especulações abstratas. No presente contexto, é usada por Calvino
para designar que houve uma transição intencional da serpente para o ser espiritual que
dela fez uso.
6 Figura de linguagem empregada para indicar uma transposição das relações naturais de
dois elementos. A ideia seria a de fazer uma conexão linguística, por assim dizer, invertida,
trocando, na proposição, a relação natural dos elementos que a compõem. Um exemplo
clássico dessa figura de linguagem é quando se diz “o sapateiro meteu o sapato na fôrma”
em vez de dizer “o sapateiro meteu a fôrma no sapato”.
7 A expressão primum mobile era utilizada na antiga astronomia para indicar o nono céu, o
qual circundava todas as estrelas fixas, planetas e a atmosfera, e era considerado como o
primeiro motor de todos os corpos celestes. Naquele tempo, supunha-se que esses corpos
circundavam a terra por esse poderoso agente, enquanto a própria terra permanecia como
o centro do sistema. A cosmologia newtoniana refuta todas essas teorias.
C A P ÍT U L O 4
2. Depois, deu à luz Abel, seu irmão. Sabe-se bem que é a partir
disso que se deduz o nome Caim, e por qual razão ele lhe foi dado.
Pois sua mãe disse: (kaniti) eu obtive um homem; e por isso
ela lhe deu o nome de Caim. Com respeito ao nome de Abel, não se
faz a mesma explanação. Constitui um absurdo completo a opinião
de alguns, de que Abel foi assim chamado por sua mãe por despre-
zo, como se ele se mostrasse supérfluo e quase inútil, pois ela se
lembrava do objetivo para o qual sua fertilidade apontava; nem se
esquecera da bênção “crescei e multiplicai”. Nós (em minha opinião)
inferimos mais corretamente que, enquanto Eva testificava, no nome
que dera ao seu primogênito, a alegria que de repente explodiu de
seu peito, e celebrou a graça de Deus, mais tarde, ao dar à luz outro
descendente, ela recorda as misérias da raça humana.
E, certamente, embora a nova bênção divina fosse uma ocasião
para inusitada alegria, contudo, ela não considera uma posteridade
condenada a tantos e tão grandes males, dos quais ela mesma fora
a causa, sem a mais amarga dor. Portanto, ela desejava que, no
nome que ela dera ao segundo filho, subsistisse um monumento de
sua dor; então, ao mesmo tempo, mostra um espelho comum da
vaidade do homem, pelo qual ela pudesse admoestar toda sua des-
cendência.
Não concordo com os que censuram o julgamento de Eva como
sendo absurdo, porque ela considerava seu filho justo e santo, como
digno de ser rejeitado, em comparação com seu outro filho, que era
perverso e perdido. Pois Eva tinha razão em congratular-se em seu
primogênito; e não se envergonha de haver proposto, em seu se-
gundo filho, um memorial, para si e para todos os demais, de sua
própria vaidade, a fim de induzi-los a se exercitarem na diligente re-
flexão sobre seus próprios males.
Abel foi pastor de ovelhas. Moisés não relata se ambos os ir-
mãos se casaram, e cada um teve seu próprio lar. Portanto, para
nós, isso continua incerto, embora seja provável que Caim se casas-
se antes de haver assassinado ao seu irmão, posto que Moisés ime-
diatamente acrescenta que ele conheceu sua esposa e gerou filhos,
e visto que aqui não se faz menção de seu casamento.
Ambos seguiram um tipo de vida em si mesmo santo e louvá-
vel. Pois o cultivo do solo fora ordenado por Deus, e o trabalho de
alimentar ovelhas não era menos louvável do que proveitoso; em
suma, toda a vida rústica era inofensiva e simples, e acima de tudo
se acomodava à verdadeira ordem da natureza. Portanto, deve-se
manter isto em primeiro lugar: que ambos se excitavam em traba-
lhos aprovados por Deus e necessários ao uso comum da vida hu-
mana. Disso se infere que foram bem instruídos por seu pai. O rito
de sacrificar confirma isso mais plenamente porque ele prova que se
habituaram a cultuar a Deus. A vida de Caim, portanto, aparente-
mente era bem ordenada; pois ele cultivava os deveres da piedade
para com Deus e procurava manter, a si e aos seus, mediante ho-
nesto e justo trabalho, tornando-se um providente e sóbrio pai de fa-
mília.
Além disso, aqui será oportuno despertar a memória para o que
já dissemos previamente: que os primeiros homens, ainda que fos-
sem privados do sacramento do amor divino, quando foram proibi-
dos do acesso à árvore da vida, contudo foram apenas privados
dela de tal modo que ainda lhes foi deixada uma esperança de sal-
vação, da qual possuíam os sinais nos sacrifícios. Pois devemos re-
cordar que o costume de sacrificar não foi por eles inventado abrup-
tamente, mas lhes foi divinamente transmitido. Porque, posto que o
apóstolo se reporta à dignidade do aceitável sacrifício de Abel, pela
fé, segue-se, primeiramente, que ele não o ofereceu senão pelo
mandamento de Deus [Hb 11.4]. Em segundo lugar, é verdade que
desde o princípio do mundo a obediência é melhor do que quaisquer
sacrifícios [1Sm 15.22], e a obediência é a mãe de todas as virtu-
des. Consequentemente, o homem também foi divinamente instruí-
do sobre o que era agradável a Deus. Em terceiro lugar, posto que
Deus sempre foi o mesmo, não podemos dizer que ele sempre se
deleitou com mero culto carnal e externo. Contudo, ele considerava
aceitáveis aqueles sacrifícios da primeira dispensação. Portanto, a
consequência disso é que tais sacrifícios lhe eram oferecidos espiri-
tualmente, isto é, que os santos Pais não zombavam dele com ceri-
mônias vazias, mas compreendiam algo mais sublime e secreto; e
isso não poderia ter sido feito sem instrução divina. Pois só é verda-
de interior1 aquela que, nos sinais externos, distingue o genuíno e
racional culto de Deus daquele que é falso e supersticioso. E, por
certo, não poderiam sinceramente devotar sua mente ao culto de
Deus, a menos que se assegurassem de sua benevolência; porque
a reverência voluntária emana de um senso de, e confiança em, sua
bondade; mas, por outro lado, quem quer que considere Deus como
hostil a si próprio, se vê compelido a fugir dele com muito temor e
horror. Vemos, pois, que Deus, quando tira o acesso à árvore da
vida, na qual dera inicialmente o penhor de sua graça, prova e se
declara propício ao homem por outros meios.
Caso alguém objete que todas as nações possuem seus própri-
os sacrifícios, e que nesses não havia religião pura e sólida, a res-
posta é imediata, a saber, que aqui se faz menção de tais sacrifícios
como sendo legítimos e aprovados por Deus, dos quais nada, senão
uma imitação adulterada, mais tarde se viu entre os Gentios. Pois,
embora nada é aqui posto senão a palavra (minchah), a qual sig-
nifica propriamente um dom e, por isso, se estende geralmente a
todo tipo de oblação, ainda podemos inferir, por duas razões, que o
mandamento relativo ao sacrifício foi dado aos nossos primeiros
pais desde o princípio: primeiro, com o propósito de tornar o exercí-
cio da piedade comum a todos, visto que professavam ser a proprie-
dade de Deus e consideravam tudo o que possuíam como recebido
dele; e, em segundo lugar, com o propósito de admoestá-los da ne-
cessidade de alguma expiação, visando à sua reconciliação com
Deus. Quando cada um oferece alguma coisa de sua propriedade,
há um ato solene de gratidão, como se ele testificasse, por seu pre-
sente ato, que deve a Deus tudo quanto possui. Mas o sacrifício de
gado e a efusão de sangue contêm algo mais, a saber, que o ofer-
tante deve ter diante de seus olhos a morte; e, contudo, deve crer
em Deus como propício a ele. Quanto aos sacrifícios de Adão, não
se faz menção alguma.
9. Onde está Abel, teu irmão? Aqueles que supõem que o pai fez
essa pergunta a Caim a respeito de seu filho Abel, enfraquecem
toda a força da instrução que Moisés aqui desejava ministrar, a sa-
ber, que Deus, seja por inspiração interior ou por algum método ex-
traordinário, convocou o parricida2 a comparecer perante o seu tri-
bunal, como se trovejasse do céu. Pois, o que eu disse antes deve
ser firmemente mantido: que, como Deus agora fala conosco atra-
vés das Escrituras, assim outrora se manifestava aos patriarcas
através de oráculos; e também, da mesma maneira, revelava seus
juízos aos filhos réprobos dos santos. Assim falou o anjo a Agar, no
bosque, depois que ela apostatou da Igreja,3 como veremos no oita-
vo versículo do décimo sexto capítulo.
De fato, é possível que Deus houvesse interrogado a Caim me-
diante o exame silencioso de sua consciência; e que ele, por sua
vez, houvesse respondido intimamente, rangendo os dentes e mur-
murando. Entretanto, devemos concluir que ele foi examinado, não
meramente por uma voz externa do homem, mas por uma voz divi-
na, a ponto de fazê-lo sentir que havia de tratar diretamente com
Deus. Portanto, sempre que as contrições secretas da consciência
nos convidem a refletirmos sobre nossos pecados, lembremo-nos
que Deus mesmo está falando conosco. Pois aquele senso interior
pelo qual somos convencidos de pecado é o tribunal peculiar de
Deus, onde ele exerce sua jurisdição. Portanto, que aqueles cuja
consciência os acusa se acautelem para que, segundo o exemplo
de Caim, não se mantenham na obstinação. Pois isso é realmente
recalcitrar-se contra Deus e resistir seu Espírito; quando, porém, re-
pelimos tais pensamentos, isso nada mais é do que incentivos ao
arrependimento. Mas é um erro muito comum acrescentar aos peca-
dos anteriormente cometidos tal perversidade: que aquele que, que-
rendo ou não, se vê constrangido a sentir em sua mente o pecado,
ainda se recusará a render-se a Deus. Disso fica evidente quão
grande é a depravação da mente humana, visto que, mesmo quan-
do convencidos e condenados por nossa própria consciência, não
cessamos de desdenhar, ou de nos enfurecer, contra o Juiz.
Prodigioso foi o entorpecimento de Caim que, havendo cometi-
do um crime tão bárbaro, rejeitou com toda ferocidade a reprovação
divina, de cuja mão, contudo, foi incapaz de escapar. Mas a mesma
coisa sucede diariamente a todos os perversos; cada um deles sen-
do engenhosos em apresentar desculpas bem elaboradas. Pois o
coração humano é tão enredado em tortuosos labirintos que para o
perverso é fácil acrescentar, a seus crimes obstinados, menosprezo
a Deus; não porque sua obstinação seja suficientemente sólida para
afastar o juízo de Deus (pois, embora se ocultem nos profundos re-
cônditos de que eu já falei, estão sempre inflamados secretamente,
qual brasa viva), mas porque, por uma cega obstinação, se tornam
petrificados. Disso se percebe claramente a força do juízo divino;
pois de tal modo penetra o coração endurecido dos ímpios, que es-
tes são intimamente obrigados a serem seus próprios juízes; nem
lhes é permitido suprimir o sentimento de culpa que ele tem tentado
extorquir, para não deixar sequer um vestígio ou cicatriz do seu en-
durecimento. Embora Caim, com feroz rebeldia, tente violentamente
repelir o juízo divino, ao negar que era o guardador da vida de seu
irmão, acreditava que poderia escapar por esta desculpa: que não
lhe fora exigido dar contas do assassinato de seu irmão, porque ele
não recebera ordem expressa de cuidar dele.
10. Que fizeste? Moisés mostra que Caim nada lucrara com sua
desculpa. Antes, Deus lhe inquiriu onde estava seu irmão; agora,
mais incisivamente, insiste com ele a fim de arrancar uma relutante
confissão de sua culpa; pois nenhum suplício ou tortura de qualquer
tipo exerce tanta força para constranger os malfeitores como houve
na eficácia no trovão da voz divina que deixou Caim confuso. Pois
Deus já não questiona se ele o fizera; mas, pronunciando uma única
palavra, diz ser ele o autor do feito, agravando assim a atrocidade
do crime. Aprendemos, pois, na pessoa de um homem, que infeliz
resultado de um ato aguardam aqueles que desejam se isentar por
contender contra Deus. Pois aquele que sonda os corações não tem
necessidade de um sinuoso curso de investigação; mas, com uma
palavra, destrói de tal modo aqueles a quem acusa, o que é sufici-
ente, e mais que suficiente, para sua condenação. Os advogados
apelam para o primeiro tipo de defesa que é a negação do fato;
quando o fato não pode ser negado, recorrem às circunstâncias
qualificadoras do caso. Caim não tinha nenhum desses meios de
defesa, pois Deus, respectivamente, o declara culpado do homicídio
e, ao mesmo tempo, declara a hediondez do crime. E, por esse
exemplo, somos advertidos de que é inútil apresentar pretextos e
subterfúgios quando os pecadores são convocados a comparece-
rem diante do tribunal de Deus.
A voz do sangue de teu irmão clama da terra a mim. Antes
de tudo, Deus mostra que ele é conhecedor dos feitos dos homens,
ainda que ninguém se queixe ou os acuse; segundo, que ele tem a
vida de uma pessoa como preciosa demais para permitir que se der-
rame sangue inocente impunemente; terceiro, que ele cuida dos pie-
dosos, não só ao longo de sua vida terrena, mas inclusive após a
sua morte. Entretanto, é possível que os juízes terrenos cochilem, a
menos que um acusador recorra a eles; contudo, ainda quando
quem é injuriado fique em silêncio, as próprias injúrias, em si, são
suficientes para despertar a Deus, a fim de infligir-lhes punição.
Uma consolação maravilhosamente doce para os bons homens que
são injustamente importunados é saber que seus próprios sofrimen-
tos, que eles suportam em silêncio, chegam à presença de Deus e
clamam por vingança. Abel não pôde falar quando sua garganta es-
tava sendo cortada, ou por qualquer outro meio pelo qual ele foi
morto; mas, após sua morte, a voz de seu sangue era mais veemen-
te do que qualquer eloquência de um orador.
Assim, a opressão e o silêncio não impedem a Deus de julgar a
causa que o mundo supõe estar sepultada. Eis uma consolação que
nos propicia abundante razão para a paciência: quando aprendemos
que nada perderemos de nosso direito, se enfrentarmos as injúrias
com moderação e justiça; e que, quanto mais Deus estiver pronto a
nos vingar, mais modestamente nos sujeitemos a suportar todas as
coisas, porque o plácido silêncio da alma eleva eficazes clamores a
encherem céu e terra. Essa doutrina não se aplica apenas ao esta-
do da presente vida, nos ensinando que, entre os inumeráveis peri-
gos pelos quais vivemos cercados, estaremos em segurança sob a
guarda divina, mas ela nos eleva mediante a esperança de uma vida
superior, porque devemos concluir que, aqueles de quem Deus cui-
da, estarão vivos após a morte.4 Por outro lado, a seguinte conside-
ração deve infligir terror nos perversos e violentos: que Deus declara
que assume as causas que os homens procuram esconder, não em
consequência de algum impulso externo, mas por causa de sua pró-
pria natureza; e que ele será o infalível vingador dos crimes, muito
embora os prejudicados não se queixem. De fato, os homicidas mui-
tas vezes exultam como se tivessem evitado a punição; mas, por
fim, Deus mostrará que o sangue inocente não ficará mudo, e que
ele não disse em vão que “a morte dos santos é preciosa aos seus
olhos” [Sl 16.15]. Portanto, como essa doutrina traz alívio aos fiéis,
para que não vivam demasiadamente ansiosos acerca de sua vida,
disso aprendemos que Deus vela sobre eles continuamente; assim,
ele troveja com veemência contra os ímpios que não têm escrúpulo
de perversamente prejudicar e destruir aqueles a quem Deus deter-
minou preservar.
15. Assim, qualquer que matar a Caim. Não consigo ver, por as-
sim dizer, que tenha razão quem pense que o desejo de Caim era
perecer imediatamente por algum tipo de morte, a fim de que não
mais se visse agitado por contínuos perigos, e que o prolongamento
de sua vida lhe foi concedido como castigo. Mas muito mais absurda
é a maneira como muitos dentre os judeus mutilam essa sentença.
Primeiro, imaginam nessa sentença o uso da figura (aposiô-
pêsis), segundo a qual está subentendido algo não expresso; então
começam uma nova sentença, “Será punido sete vezes”, o que se
reporta a Caim. Contudo, nem assim concordam entre si sobre a
sentido. Alguns tagarelam a respeito de Lameque, como logo decla-
raremos. Outros explicam a passagem em referência ao dilúvio, o
qual se deu na sétima geração. Mas isso é trivial, posto que o dilúvio
não foi um castigo privado de uma só família, mas um castigo co-
mum da raça humana.
Mas essa sentença deve ser lida continuamente assim: “Quem
quer que mate a Caim, por esse fato será punido sete vezes.”. E a
partícula causal (lekon) indica que Deus cuidaria de prevenir que
alguém irrompesse facilmente sobre ele para o destruir; não porque
Deus instituísse um privilégio em favor do homicida ou ouvisse a
sua oração, mas porque ele visava à sua posteridade, em prol da
preservação da vida humana. A ordem da natureza fora horrivel-
mente violentada; o que se poderia esperar que ocorresse no futuro,
quando a perversidade e audácia do homem aumentassem, a me-
nos que a fúria de outros fosse restringida por uma mão violenta?
Pois bem sabemos que pestilento e letal veneno Satanás nos repre-
senta nos maus exemplos, caso não se aplique rapidamente um re-
médio. Portanto, o Senhor declara: se alguém imitar a Caim, não
apenas não terá desculpa em seu exemplo, mas seria atormentado
ainda mais severamente porque devem, em seu exemplo pessoal,
perceber quão detestável é sua perversidade aos olhos de Deus.
Portanto, estão redondamente enganados os que supõem que a ira
de Deus é aplacada quando os homens podem apresentar o que é
costumeiro como uma desculpa para pecarem; ao mesmo tempo em
que, a partir dela, são ainda mais inflamados.
E pôs o S um sinal em Caim. Recentemente eu disse
que nada se concedeu a Caim visando a favorecê-lo, mas visando a
opor-se, no futuro, à crueldade e à violência injusta. E, portanto,
Moisés afirma que foi posta em Caim uma marca que causasse ter-
ror em todos; porque poderiam ver, como num espelho, o tremendo
juízo de Deus contra os homens sangrentos. Como a Escritura não
descreve que tipo de sinal era esse, alguns comentaristas têm le-
vantado a hipótese de que seu corpo se tornou trêmulo. Para nós é
suficiente que houvesse algum emblema visível que reprimisse, a
quem o visse, o desejo e a audácia de lhe matar.
20. Jubal; este foi o pai dos que habitam em tendas. Agora Moi-
sés relata que algum bem foi mesclado com os males que procede-
ram da família de Caim. Pois a invenção das artes e de outras coi-
sas que servem para o uso comum e conveniente da vida é um dom
de Deus que de modo algum deve ser menosprezado, e uma capa-
cidade digna de recomendação. É realmente maravilhoso que essa
descendência, que decaíra tão profundamente da integridade, tives-
se suplantado os demais membros da posteridade de Adão em do-
tes raros. Entretanto, compreendo Moisés falando expressamente
acerca dessas artes como tendo sido inventadas na família de
Caim, com o propósito de mostrar que ele não foi tão amaldiçoado
pelo Senhor que não existissem entre a sua posteridade alguns
dons excelentes; pois é provável que a inteligência de outros tam-
bém fosse produtiva; mas que haveria, entre os filhos de Adão, ho-
mens inteligentes e hábeis, que exercitariam sua diligência na inven-
ção e cultivo das artes. Moisés, contudo, celebra expressamente a
bênção restante de Deus sobre aquela descendência que, de outro
modo, teria sido considerada destituída e improdutiva de todo bem.
Saibamos, pois, que os filhos de Caim, ainda que privados do
Espírito de regeneração, foram dotados com dons de um tipo não
desprezível, exatamente como a experiência de todas as eras nos
ensina quão amplamente os raios da luz divina têm resplandecido
sobre as nações incrédulas para o benefício da presente vida; e ve-
mos, nos dias atuais, que os excelentes dons do Espírito são difun-
didos em toda a raça humana. Além disso, as artes e ciências libe-
rais vieram a nós a partir dos pagãos. De fato, somos compelidos a
reconhecer que temos recebido deles a astronomia e as demais par-
tes da filosofia, medicina e a ordem do governo civil. Nem se deve
pôr em dúvida que Deus os tem, assim, enriquecido generosamente
com excelentes dons para que sua impiedade tivesse menos escu-
sa. Mas, enquanto admiramos as riquezas do favor que ele lhes tem
outorgado, valorizemos muito mais supremamente aquela graça de
regeneração com que ele peculiarmente santifica para si seus elei-
tos.
Ora, embora a invenção da harpa e de instrumentos musicais
similares possa servir mais ao nosso deleite do que à nossa neces-
sidade, mesmo assim não se deve pensar que tais instrumentos se-
jam totalmente supérfluos; muito menos merecem em si mesmos
ser condenados. De fato, deve-se condenar o prazer, a menos que
ele seja combinado com o temor de Deus e com o comum benefício
da sociedade humana. Mas tal é a natureza da música, que ela
pode ser adaptada para fins religiosos e ser proveitosa aos homens,
se pelo menos fosse isenta das viciosas atrações e daquele fútil de-
leite pelo qual ela seduz os homens do seu melhor uso, e os ocupa
na vaidade. Entretanto, se não concedermos à invenção da harpa
nenhum louvor, sabe-se bem o quanto e quão amplamente ela es-
tende a utilidade da arte do carpinteiro. Finalmente, Moisés, em mi-
nha opinião, deseja ensinar que aquela descendência desenvolveu
várias e nobres habilidades, os quais tanto os tornam inescusáveis
quanto devem provar mais evidentes testemunhos da bondade divi-
na. O título “pai dos que habitam em tendas” é dado de modo justo
àquele que inventou essa utilidade, à qual mais tarde outros imita-
ram.
25. Tornou Adão a coabitar com sua mulher. Alguns inferem que
nossos primeiros pais foram privados inteiramente de sua descen-
dência quando um de seus filhos foi morto e o outro foi banido. Mas
é totalmente inacreditável que, quando a bênção divina, na propaga-
ção do gênero humano, estava em seu maior vigor, Adão e Eva fos-
sem infrutíferos ao longo de tantos anos. Mas, ao contrário, antes de
Abel ser morto, a contínua sucessão da descendência já tornara po-
pulosa a casa de Adão; pois, nele e em sua esposa, o efeito da de-
claração “Crescei e multiplicai-vos, e enchei a terra” deveria ser cla-
ramente notado. O que, pois, Moisés tem em vista? Na verdade,
que nossos primeiros pais, chocados de horror diante da ímpia ma-
tança, se abstiveram por algum tempo do leito conjugal. E de fato
não poderia ser diferente, pois eles, ao colherem esse fruto excessi-
vamente doloroso e amargo de sua apostasia de Deus, quase teri-
am desaparecido. A razão pela qual Moisés agora ignora os demais
descendentes é porque o seu propósito era traçar a geração dos
descendentes piedosos através da linhagem de Sete. Contudo, no
capítulo seguinte, onde ele dirá que “Adão gerou filhos e filhas”, in-
dubitavelmente inclui um grande número que havia nascido antes de
Sete, aos quais, porém, é dada pouca atenção, posto que viveram
separados daquela família que cultuava a Deus com pureza e que
realmente podia ser considerada a Igreja de Deus.
Porque, disse ela, Deus me concedeu outro descendente
em lugar de Abel. Eva tinha em vista algum descendente peculiar,
pois já dissemos que haviam nascido outros que também se difundi-
ram antes da morte de Abel; visto, porém, que a raça humana é pro-
pensa ao mal, quase toda sua família havia, de várias maneiras, se
corrompido; portanto, ela nutria a leve esperança de restar uma mul-
tidão até que Deus lhe propiciasse um novo descendente, do qual
ela pudesse esperar melhores coisas. Portanto, na pessoa de Abel,
ela se considerava despojada não de apenas um filho, mas de toda
sua descendência.
24. E já não era, porque Deus o tomou para si. Seria descarada-
mente contencioso não reconhecer que algo extraordinário é aqui
salientado. De fato, todos são arrebatados do mundo pela morte;
Moisés, porém, declara nitidamente que Enoque foi tirado do mundo
de um modo inusitado e foi recebido pelo Senhor de uma maneira
miraculosa. Pois, para os hebreus, (lakah) significa “levar alguém
para si” ou, simplesmente, “levar”. Mas, sem insistir na palavra, é
suficiente compreender a coisa propriamente dita, a saber, que Eno-
que, na metade do período da vida, de repente e de um modo sem
precedentes, desapareceu da vista dos homens porque o Senhor “o
tomou para si”, como lemos que foi feito também com Elias. Assim,
na trasladação de Enoque, um exemplo de imortalidade foi exposto;
não há dúvida de que Deus tanto quis fortalecer a mente de seus
santos com certa medida de fé, antes de sua morte, como minimi-
zar, por essa consolação, o medo que poderiam nutrir da morte,
uma vez que bem sabem que uma vida superior foi-lhes estabeleci-
da em outro lugar.
Entretanto, é notável que o próprio Adão se viu privado desse
pilar da fé e do conforto. Porque, posto que o terrível juízo de Deus,
“certamente morrerás”, soava constantemente em seus ouvidos, ele
mesmo necessitava grandemente de algum conforto para que, dian-
te da morte, tivesse algo mais sobre o que refletir além da maldição
e destruição. Mas só foi depois de uns 150 anos após sua morte
que se deu a trasladação de Enoque, a qual teria sido como uma re-
presentação visível de uma bendita ressurreição; por isso, se Adão
foi iluminado, pode ter se cingido com moderação para sua própria
partida. Contudo, posto que o Senhor, ao infligir punição, teria mo-
derado seu rigor, e posto que o próprio Adão ouvira de seus próprios
lábios o que era suficiente para propiciar-lhe não leve alívio, e con-
tente com esse gênero de remédio, tornou-se seu dever suportar
pacientemente tanto a cruz contínua neste mundo quanto também o
amargo e doloroso término de sua vida. Mas, enquanto outros não
foram instruídos da mesma maneira, isto é, por um oráculo manifes-
to sobre a esperança da vitória sobre a serpente, na trasladação de
Enoque havia uma instrução para todos os santos de que não man-
teriam sua esperança confinada dentro das fronteiras desta vida
mortal. Pois, ao conectá-la imediatamente com sua vida piedosa e
íntegra, Moisés mostra que essa trasladação era uma prova do
amor divino para com Enoque. Contudo, a privação da vida não é
em si mesma desejável. Segue-se, pois, que ele foi levado para
uma morada superior, e que, embora fosse um peregrino no mundo,
foi recebido em um país celestial; como o apóstolo, na Epístola aos
Hebreus [11.5], claramente ensina. Além disso, caso se pergunte
por que Enoque foi trasladado e qual é sua atual condição, minha
resposta é que sua transição constituía um privilégio peculiar, tal
como teria sido o dos demais homens, se permanecessem em seu
primeiro estado. Pois, embora lhe fosse necessário despir-se do que
era corruptível, ele foi isentado daquela violenta separação da qual
a natureza evita.
Em suma, sua trasladação foi uma tranquila e jubilosa partida
deste mundo. Contudo, ele não foi recebido na glória celestial, mas
apenas se livrou das misérias da presente vida, até que Cristo, as
primícias dos que hão de ressuscitar, venha. E, posto que Enoque
era um dentre os membros da Igreja, era necessário que espere até
que todos saiam juntos ao encontro de Cristo, para que todo o corpo
se una à sua Cabeça. Quem quer que apresente uma objeção ao
dito do apóstolo “aos homens está ordenado morrerem uma só vez”
[Hb 9.27], a solução é fácil, a saber, que a morte nem sempre é se-
paração da alma e o corpo, mas somos informados que morre,
quem se despe de sua natureza corruptível; e tal será a morte dos
que sobreviverem no último dia.
13. Então disse Deus a Noé. Aqui Moisés começa a narrar como
Noé seria preservado. Primeiramente ele diz que o conselho de
Deus relativo à destruição do mundo lhe foi revelado. Em segundo
lugar, que Noé recebeu a ordem de construir a arca. Em terceiro lu-
gar, que recebeu a promessa de que estaria em segurança se, em
obediência a Deus, buscasse na arca seu refúgio. Esses pontos
principais devem ser distintamente notados; até porque o apóstolo,
quando proclama a fé de Noé, associa à confiança temor e obediên-
cia [Hb 11.7].
É indubitável que Noé foi admoestado da terrível vingança que
se aproximava; não apenas com o objetivo de que viesse a ser con-
firmado em seu santo propósito, mas também para que, se vendo
constrangido pelo temor, buscasse ainda mais ardorosamente o fa-
vor que lhe era oferecido. Sabemos que a impunidade dos perver-
sos algumas vezes vem a ser ocasião de seduzir os bons a peca-
rem; a denúncia, pois, de punição futura deve ser eficaz em restrin-
gir a mente de um santo homem; para que, mediante gradual declí-
nio, finalmente não ceda à mesma lascívia.
Mas Deus também fez referência especial a outro ponto, a sa-
ber, que, mantendo continuamente em vista a terrível destruição do
mundo, Noé fosse ainda mais encorajado ao temor e solicitude. Pois
era necessário que, ao desesperar-se totalmente sem qualquer ou-
tro socorro, buscasse sua segurança, mediante a fé, na arca. Pois,
desde quando a vida na terra lhe fora prometida, ele se dedicou dili-
gentemente à construção da arca; porém, sentindo-se alarmado
pelo juízo de Deus, avidamente abraça a promessa de vida que lhe
fora feita. Agora já não confia nas causas ou meios naturais de vida,
mas repousa exclusivamente na aliança divina, pela qual ele estava
para ser miraculosamente preservado; e, agora também, nenhum
trabalho lhe seria incômodo ou difícil, nem se deixaria abater por
longa fadiga. Pois o aguilhão da ira de Deus o traspassa mui aguda-
mente para lhe permitir dormir em deleites carnais, ou desmaiar sob
as tentações, ou demorar-se em seu caminho por vã esperança; an-
tes, ele é incentivado tanto a fugir do pecado como a buscar remé-
dio. E o apóstolo ensina que não foi a menor parte de sua fé que,
por meio do temor daquelas coisas que não se vêem, ele preparou
uma arca. Quando se trata simplesmente da fé, a mercê e a pro-
messa gratuita entram na conta; mas, quando desejamos expressar
todas as suas partes e investigar toda sua força e natureza, é ne-
cessário que o temor também se lhe associe. E, realmente, ninguém
nunca recorrerá seriamente ao favor de Deus senão aquele que,
uma vez tocado pelas ameaças divinas, se sinta aterrorizado peran-
te aquele juízo de morte eterna que elas denunciam, sinta aversão
de si próprio em razão de seus pecados, não se entregue indolente-
mente a seus vícios, nem dormite em sua poluição, mas, ansiosa-
mente, olhe para o remédio de seus males.
Este foi, de fato, um peculiar privilégio da graça: em haver Deus
advertido a Noé do dilúvio futuro. Aliás, ele frequentemente ordena
que suas ameaças sejam propostas aos eleitos e réprobos em co-
mum, para que, ao convidar ambos ao arrependimento, ele humilhe
aos primeiros e torne inescusáveis os últimos. Mas, enquanto a mai-
or parte da humanidade, com ouvidos moucos, rejeita tudo o que é
comunicado, ele direciona seu discurso especialmente a seu próprio
povo que ainda é curável, para que, pelo temor de seu juízo, os
exercite na piedade. A condição dos perversos poderia, naquele
tempo, parecer desejável, em comparação com a ansiedade do san-
to Noé. Eles se lisonjeavam sem qualquer preocupação em seus
próprios deleites, pois bem sabemos o que Cristo declara concer-
nente à luxúria daquele período [Lc 17.26]. Porém, o santo homem,
como se o mundo fosse ruir naquele exato momento, gemia ansiosa
e dolorosamente. Mas, se considerarmos o fim, Deus outorgava a
seu servo um inestimável benefício, ao denunciar-lhe um perigo do
qual ele pudesse precaver-se.
A terra está cheia da violência dos homens. Deus notifica
que os homens deveriam ser retirados para que a terra, que fora po-
luída pela presença de seres tão malvados, fosse purificada. Além
disso, ao falar apenas de iniquidade e violência, de fraudes e rou-
bos, das quais eram culpados entre si, Deus o faz não como se qui-
sesse lançar suas próprias reivindicações sobre eles, mas porque
essa era a mais flagrante e palpável demonstração da perversidade
deles.
19. De tudo o que vive [...] farás entrar na arca. “Toda carne” é o
nome que dá aos animais de toda e qualquer espécie que fossem.
Ele diz que entraram de dois em dois; não que apenas um único par
de cada espécie fosse recebido na arca (pois logo veremos que ha-
via três pares das espécies limpas, e um animal a mais, o qual Noé
mais tarde ofereceu em sacrifício), mas enquanto aqui se faz men-
ção apenas de prole, ele não declara expressamente o número, mas
simplesmente casais, macho e fêmea, para que Noé percebesse
como o mundo seria novamente povoado.
22. Assim fez Noé. Em poucas palavras, mas com grande sublimi-
dade, Moisés aqui enaltece a fé de Noé. Causa assombro o que o
apóstolo fala dele: “herdeiro da justiça que é pela fé” [Hb 11.7],
como se realmente todas as virtudes, e tudo quanto era digno de
louvor nesse santo homem, não emanassem dessa fonte. Pois de-
vemos levar em conta os ataques da tentação a que seu coração
estava continuamente exposto. Primeiro, o extraordinário tamanho
da arca poderia ter confundido todos os seus sentidos, bem como
impedi-lo de erguer um dedo para o início da obra. Que o leitor refli-
ta sobre o grande volume de árvores a ser derrubado, o grande tra-
balho de carregá-las e a dificuldade de reuni-las num só monte. Aqui
também está uma questão muito prolixa; pois do santo homem se
requereu que ele gastasse mais de 100 anos num trabalho tão incô-
modo. Nem devamos supor que ele fosse tão estúpido a ponto de
não refletir sobre essas dificuldades.
Além disso, dificilmente se deveria esperar que os homens de
seu tempo o suportassem pacientemente, porque eles, prometendo
a si mesmos um livramento exclusivo, a tudo assistiam com despre-
zo. Pois já se mencionou a inusitada ferocidade desses homens;
portanto, não pode haver dúvida de que provocavam diariamente
aqueles homens modestos e sinceros, ainda que sem motivo. Aqui,
porém, há uma ocasião plausível para insulto: que Noé, ao derrubar
árvores de todos os lados, estava devastando a terra, tornando-a
estéril e os defraudando de várias vantagens. Há um provérbio po-
pular que diz: “Os homens perversos e contenciosos disputarão sob
a sombra de um asno.”. O que, pois, poderia Noé pensar daqueles
ferozes ciclopes à sombra de tantas árvores, os quais, vivendo na
prática de todo tipo de violência, lançando mão, com avidez, de toda
ocasião para o exercício de crueldade? Mas foi isto principalmente
que tendia a inflamar a fúria deles: que Noé, ao construir para si um
asilo, virtualmente condenava a todos eles à destruição.
Certamente, a menos que fossem restringidos pela poderosa
mão de Deus, teriam apedrejado o santo homem muitas vezes; con-
tudo, é provável que sua veemência não fosse tão reprimida a ponto
de impedi-los de assaltá-lo repetidas vezes com zombarias e escár-
nios, amontoando sobre ele muitas reprovações e perseguindo-o
com graves ameaças. Penso ainda que não refreavam suas mãos
de atrapalhar a sua obra. Portanto, embora conduzisse com entusi-
asmo a obra que lhe fora confiada, a constância de Noé teria falha-
do muitas vezes, ao longo de tantos anos, a menos que ela estives-
se solidamente alicerçada.
Além do mais, uma vez que a obra, em si mesma, parecia irrea-
lizável, poderíamos ainda perguntar: de onde se obtiveram as pro-
visões para um ano? De onde veio alimento para tantos animais?
Ele recebe a ordem de estocar alimento que fosse suficiente durante
dez meses, para toda sua família, para o gado e animais selvagens,
bem como para as aves. De fato, parece absurdo que, depois de vi-
ver afastados da agricultura para engajar-se na construção da arca,
lhe fosse ordenado que recolhesse um estoque de provisão para
dois anos; mas o problema mais grave estava na provisão de ali-
mento para os animais. Portanto, ele poderia ter suspeitado de que
Deus estivesse zombando dele. Seu último trabalho era reunir ani-
mais de todas as espécies, como se, de fato, ele tivesse sob seu co-
mando todos os animais da floresta, ou fosse capaz de domá-los, de
modo que, sob sua guarda, lobos pudessem habitar com cordeiros,
tigres com lebres, leões com bois – como ovelhas em seu redil. Mas
a tentação mais grave de todas era que lhe fosse ordenado que
descesse, como a uma sepultura, em prol da preservação de sua
vida e, voluntariamente, se privasse de ar e do espírito vital; pois
bastaria o odor do esterco, como de fato era, em um lugar totalmen-
te fechado, todos respirando durante três dias, para asfixiar todas as
criaturas dentro da arca.
Ponderemos sobre esses conflitos do santo homem – tão seve-
ros, diversos e contínuos –, para que saibamos quão heroica foi sua
coragem, indo ao máximo, para fazer o que Deus lhe ordenara. Moi-
sés, de fato, diz numa única palavra que ele o fez; mas devemos
considerar até que ponto além de todo o esforço humano ele teve
de ir; e que teria sido melhor morrer cem vezes do que empreender
uma obra tão laboriosa, a menos que ele tivesse posto seu olhar em
algo mais elevado do que a presente vida. Portanto, aqui se nos
descreve um notável exemplo de obediência porque, confiando-se
Noé inteiramente a Deus, rendeu-lhe a devida honra.
Sabemos, nesta corrupção de nossa natureza, quão prontos es-
tão os homens a buscar subterfúgios, e quão engenhosos em inven-
tar pretextos como justificativa da desobediência a Deus. Portanto,
aprendamos ainda a derrubar todo gênero de impedimento e a não
dar lugar aos pensamentos perversos, os quais se opõem à palavra
de Deus, e com os quais Satanás tenta embaraçar nossa mente,
para não obedecermos aos mandamentos de Deus. Pois este de-
manda especialmente que se lhe renda esta honra: que suportemos
o que ele decidir para nós. E esta é a verdadeira prova de fé: que
nós, vivendo contentes com um só de seus mandamentos, nos cin-
jamos para a obra, de modo que não nos desviemos de nossa traje-
tória – seja qual for o obstáculo que Satanás ponha em nosso cami-
nho, mas pairemos sobre as asas da fé acima do mundo. Moisés
mostra ainda que Noé obedeceu a Deus, não só em uma particulari-
dade, mas em tudo. Isso deve ser observado com diligência, porque
principalmente disso surge terrível confusão em nossa vida: que não
somos capazes de, sem reserva, nos submetermos a Deus; mas,
quando nos desincumbimos de alguma parte de nosso dever, fre-
quentemente misturamos com sua palavra nossos próprios senti-
mentos. Mas a obediência de Noé é célebre por isto: que ela era in-
tegral, não parcial; de modo que ele nada deixou de fazer daquelas
coisas que Deus lhe ordenara.
1 A questão aqui envolvida é a seguinte. Se Noé tinha 500 anos quando começou a cons-
truir a arca, e os dias do homem sobre a terra seriam de 120 anos, Noé teria entrado na
arca com 620 anos, e não “no ano seiscentos da sua vida”. Onde, portanto, estariam os 20
anos de diferença? A resposta de Calvino é que, segundo o modo popular de falar entre os
hebreus, Moisés afirma, de modo aproximado, que Noé tinha 500 anos de idade quando
entrou no quinto século de sua vida; a partir disso, infere-se que Noé tivesse cerca de 480
anos de idade; e, caso se adicionem os tais 120 anos, então ele teria 600 anos de idade no
momento em que entrou na arca.
2 Na teologia, dá-se o nome de Antropopatia à atribuição de sentimentos e afetos humanos
a Deus.
3 A “doutrina geral” aqui referida é a doutrina bíblica da depravação total e universal do ho-
mem.
C A P ÍT U L O 7
13. Nesse mesmo dia entraram na arca. Segue uma repetição su-
ficientemente particular, levando em conta o modo breve (mas de
modo algum supérfluo) com qual Moisés percorre a história do dilú-
vio. Pois o desígnio do Espírito era manter nossa mente na conside-
ração de uma vingança terrível demais para ser adequadamente
descrita pela máxima severidade da linguagem. Além disso, aqui
nada se relata senão o que é difícil de crer; por isso Moisés inculca
essas coisas com mais frequência, para que, por mais remotas que
estejam de nossa compreensão, contudo obtenham nosso crédito.
Assim a narrativa concernente aos animais se reporta a este
ponto: que, pela fé do santo Noé, eles foram arrancados de suas flo-
restas e cavernas, e foram removidos de suas peregrinações e leva-
dos para um espaço, como se fossem conduzidos pela mão de
Deus. Vemos, pois, que Moisés não insiste sobre esse ponto sem
ter algo em vista; mas ele o faz para ensinar-nos que se preservou
cada espécie de animais, não por acaso, nem pelo esforço humano,
mas porque o Senhor estendeu e ofereceu ao próprio Noé, anteci-
padamente (como se diz), todo animal que desejava manter vivo.
15. Então disse Deus a Noé. Embora Noé não estivesse nem um
pouco aterrorizado ante o juízo divino, ainda assim sua paciência é
elogiada no seguinte: que ele, embora tendo a terra diante de si
como um lar, não se aventurou a sair da arca. Homens profanos po-
dem atribuir isso à timidez, ou mesmo à indolência; porém, santa é
aquela timidez que é produzida pela obediência da fé. Portanto, de-
vemos estar cientes de que Noé se viu restringido, por uma santa
modéstia, de dar-se ao desfrute da generosidade da natureza, até
que ouvisse a voz de Deus levando-o a agir assim.
Moisés resume isso em poucas palavras, mas é oportuno que
atentemos bem para o próprio fato. De fato, todos devem, esponta-
neamente, considerar quão grande deve ter sido a força do homem
que, após o incrível cansaço de um ano inteiro, quando o dilúvio
cessou e finalmente uma nova vida brilhou, mesmo assim não move
um pé de seu sepulcro, sem a ordem de Deus. Assim vemos que,
por um caminho contínuo de fé, o santo homem foi obediente a
Deus; porque, sob a sua ordem, ele entrou na arca, e ali permane-
ceu até que o Senhor lhe abrisse uma porta para que pudesse sair;
e porque ele preferiu permanecer numa imunda atmosfera a respirar
o ar livre, até que se assegurasse de que sua saída seria do agrado
de Deus. Até mesmo nas coisas simples, a Escritura nos recomenda
autocontrole, para que não façamos nada senão com uma santa
consciência. Quão imprudentes são os homens quando se endure-
cem em relação a assuntos religiosos, por agirem como bem lhe
apraz, sem levarem em consideração o conselho Deus!
E, de fato, não se deve esperar que Deus, a cada momento,
pronuncie, por meio de oráculos especiais, o que se deve fazer;
contudo nos cabe ouvir atentamente sua voz, a fim de que sejamos
persuadidos com certeza de que nada empreendemos senão o que
esteja em conformidade com sua palavra. Deve-se buscar ainda o
espírito de prudência e de conselho, o qual ele concede àqueles que
necessitam, que são humildes e obedientes aos seus mandamen-
tos. Nesse sentido, Moisés diz que Noé saiu da arca assim que,
confiando no oráculo divino, se certificou de que uma nova habita-
ção lhe era dada na terra.
20. Levantou Noé um altar ao Senhor. Visto que Noé dera muitas
provas de sua obediência, agora apresenta um exemplo de gratidão.
Essa passagem nos ensina que os sacrifícios foram instituídos des-
de o princípio para este fim: que os homens se habituassem, por
tais exercícios, a celebrar a bondade de Deus e a render-lhe ações
de graça. Para Deus, seria suficiente a simples confissão da língua,
sim, até mesmo o reconhecimento silencioso do coração; porém sa-
bemos de quantos estímulos nossa indolência necessita. Portanto,
quando outrora os santos pais professavam sua piedade diante de
Deus por meio de sacrifícios, estes de modo algum eram usados su-
perfluamente. Além disso, era justo que tivessem sempre diante de
seus olhos símbolos por meio dos quais fossem admoestados de
que não poderiam ter acesso a Deus, senão através de um media-
dor.
Agora, porém, a manifestação de Cristo já removeu essas anti-
gas sombras. Por isso mesmo, usemos aqueles auxílios que o Se-
nhor já prescreveu. Além disso, quando digo que os santos pais fi-
zeram uso de sacrifícios para celebrar os benefícios de Deus, refiro-
me a apenas um tipo de sacrifício, pois essa oferta de Noé corres-
ponde às ofertas pacíficas e às primícias. Aqui, porém, pode-se per-
guntar por qual motivo Noé ofereceu a Deus um sacrifício, visto que
não tinha um mandamento para fazê-lo. Respondo que, embora
Moisés não declare expressamente que Deus lhe ordenara a fazê-
lo, pode-se formar um juízo indubitável do que se segue, e até mes-
mo de todo o contexto: que Noé repousava sobre a palavra de
Deus, e que, ao depositar sua confiança no mandamento divino,
rendera esse culto que, indubitavelmente, sabia que seria aceitável
a Deus.
Já dissemos anteriormente que um animal de cada espécie fora
preservado separadamente; e declaramos com que objetivo isso foi
feito. Mas seria inútil separar animais para sacrifício, a menos que
Deus revelasse esse propósito ao santo Noé, que estava para ser o
sacerdote a oferecer as vítimas. Além disso, Moisés diz que os ani-
mais destinados aos sacrifícios são escolhidos dentre os animais
limpos. Mas é indubitável que Noé não inventara para si tal distin-
ção, visto que tal coisa não depende da escolha humana. Por isso,
podemos concluir que ele não fazia nada sem a autoridade divina.
Também imediatamente após isso, Moisés acrescenta que o aroma
do sacrifício foi aceitável a Deus. Portanto, deve-se observar esta
regra geral: que todos os serviços religiosos que não forem perfu-
mados com o aroma da fé são de mau cheiro diante de Deus. Por-
tanto, saibamos nós que o altar de Noé foi fundado na palavra de
Deus. E a mesma palavra era como sal para seus sacrifícios, para
que os mesmos não fossem insípidos.
22. Enquanto durar a terra. Por essas palavras, o mundo é outra vez
completamente restaurado. Pois foi tão grande a confusão e desor-
dem que cobriram a terra, que havia necessidade de uma renova-
ção. Por causa disso, Pedro fala do mundo antigo como havendo
perecido no dilúvio [2Pe 3.6]. Além do mais, o dilúvio fora uma inter-
rupção da ordem da natureza. Pois os movimentos do sol e da lua
haviam cessado; não havia distinção de inverno e verão. Por isso
mesmo, o Senhor aqui declara ser de seu agrado que todas as coi-
sas recuperassem seu vigor e fossem restauradas às suas funções.
Os judeus erroneamente dividem o período de um ano em seis
partes, enquanto Moisés, ao colocar o verão em oposição ao inver-
no, divide o ano inteiro de uma maneira popular, isto é, em duas par-
tes. E não se deve duvidar de que por frio e calor ele designa os pe-
ríodos já referidos. Com as palavras “sementeira” e “ceifa”, ele indi-
ca aqueles benefícios que emanam da temperatura moderada da at-
mosfera para os homens. Caso se objete dizendo que essa estabili-
dade da temperatura não é percebida a cada ano, a resposta é sim-
ples: que a ordem do mundo é de fato perturbada por nossos vícios,
de modo que muitos de seus movimentos são irregulares: às vezes
o sol diminui seu calor peculiar – neve ou granizo vem no lugar do
orvalho; e o ar é agitado por várias tempestades; mas embora o
mundo não seja tão regulado a ponto de produzir uma perpétua uni-
formidade de estações, contudo percebemos que a ordem da natu-
reza prevalece até agora, que ocorrem anualmente inverno e verão,
que há uma constante sucessão de dias e noites, e que a terra pro-
duz seus frutos no verão e no outono. Além disso, pela expressão
“todos os dias da terra”, ele quer dizer “enquanto a terra durar”.
C A P ÍT U L O 9
13. Porei nas nuvens meu arco. A partir dessas palavras, certos
teólogos eminentes têm negado que houvesse algum arco-íris antes
do dilúvio; mas isso é frívolo. Pois as palavras de Moisés não signifi-
cam que foi formado um arco, o qual não existia antes; mas signifi-
cam que uma marca foi gravada nele, a qual daria um sinal do favor
divino para com os homens.
Para que isso fique mais evidente, é bom relembrar o que já
dissemos em outro lugar: que alguns sinais são naturais; outros, ex-
traordinários. E, embora haja nas Escrituras muitos exemplos dessa
segunda classe de sinais, contudo são peculiares, e não pertencem
ao uso comum e perpétuo da Igreja. Pois como agrada ao Senhor
utilizar-se de elementos terrenos como meios de elevar a mente dos
homens, eu acredito que o arco celestial que outrora existira natural-
mente é aqui consagrado como sinal e garantia. Dessa forma, um
novo ofício lhe é designado; pois, considerando a sua própria natu-
reza, ele é, antes, um sinal de algo contrário ao que passou a signifi-
car, visto que é um prenúncio de chuva contínua.
Portanto, creio que este seja o significado dessas palavras:
“Sempre que a chuva nos assusta, olhemos para o arco. Pois, em-
bora ele pareça indicar que a chuva fará submergir a terra, contudo,
para você, ele é um penhor de permanente seca, e, desse modo,
ele lhe virá a ser motivo de mais confiança do que se você estivesse
sob um céu claro e sereno.”. Consequentemente, não devermos
contender com os filósofos a respeito do arco-íris; embora suas co-
res sejam o efeito de causas naturais, contudo, age com espírito
profano quem tenta privar a Deus do direito e autoridade que exerce
sobre suas criaturas.
20. Sendo Noé lavrador, passou a plantar uma vinha. Não enten-
do essas palavras no sentido de que, somente agora, Noé começou
a se dedicar ao cultivo da terra; mas, em minha opinião, acredito
que Moisés descreve que Noé, embora sendo um ancião, com uma
mente serena retornou ao cultivo da terra e aos seus antigos traba-
lhos. Entretanto, é incerto se ele já era ou não um viticultor. Geral-
mente acredita-se que o vinho estivera em uso antes desse tempo.
E essa opinião tem sido a mais aceita, pois propicia um honroso
pretexto para a justificativa do pecado de Noé. Quanto a mim, po-
rém, não parece provável que o fruto da videira, que sobressai a to-
dos os demais, tenha sido negligenciado e sem qualquer proveito.
Do mesmo modo, Moisés não diz que Noé se embriagara no primei-
ro dia em que o provara. Portanto, deixando essa questão indetermi-
nada, proponho antes o que devamos aprender da embriaguez de
Noé: que crime imundo e detestável é a embriaguez.
Embora o santo patriarca, até então, fosse um raro exemplo de
sobriedade e temperança, ao perder seu autocontrole, de uma ma-
neira vil e vergonhosa se prostra no chão, desnudo, a ponto de ser
motivo de riso para todos. Portanto, com que prudência devemos
cultivar a sobriedade, para que nada semelhante, ou ainda pior, nos
suceda! Outrora, o filósofo pagão2 afirmou que “O vinho é o sangue
da terra”; e, portanto, quando os homens, imoderadamente o derra-
mam em sua garganta, são justamente punidos por sua mãe. Recor-
demos, porém, que quando os homens, mediante vergonhoso abu-
so, profanam esse nobre e mui precioso dom de Deus, este se torna
o Vingador. E devemos estar cientes de que, pelo juízo de Deus,
Noé foi exposto publicamente como um espetáculo que serve de ad-
vertência aos outros, para que não venham a se intoxicar pela em-
briaguez.
Alguns dizem que certamente se deve desculpar o santo ho-
mem, que, havendo completado seu trabalho e tendo se embriaga-
do com o vinho, imagina que está simplesmente recebendo sua me-
recida recompensa. Deus, porém, o estigmatiza com uma eterna
marca de desgraça. O que, pois, presumimos que sucederá aos glu-
tões de ventre preguiçosos e insaciáveis, cujo único objeto de dis-
córdia é saber quem beberá a maior quantidade de vinho? E, embo-
ra esse tipo de correção fosse severo, contudo foi proveitoso ao ser-
vo de Deus, visto que ele foi reconduzido à sobriedade, para que,
não continuando na satisfação de um vício ao qual uma vez se en-
tregara, não se arruinasse; precisamente como vemos que os bêba-
dos, por fim, se tornam brutalizados por contínua intemperança.
22. Cam, pai de Canaã. Essa circunstância é acrescentada para
agravar a dor de Noé, pois, ele é ridicularizado por seu próprio filho.
Por isso, devemos manter sempre na memória que essa punição lhe
foi divinamente infligida, em parte porque sua falha não era de cará-
ter leve, em parte para que Deus, em sua pessoa, apresentasse
uma lição de temperança a todas as épocas. Em si, a embriaguez
tem como recompensa o seguinte fato: que aqueles que apagam de
si mesmos a imagem de seu Pai celestial se tornem motivo de riso
para seus próprios filhos. Pois certamente, tanto quanto possível, os
ébrios subvertem seu próprio entendimento e se privam ao máximo
da razão, a ponto de degenerar-se em animais irracionais. E recor-
demo-nos que, se o Senhor se vingou tão seriamente de uma única
transgressão do santo homem, ele certamente será um vingador
não menos severo contra os que vivem diariamente embriagados; e
disso temos exemplos suficientemente numerosos diante de nossos
olhos.
Enquanto isso, por rir-se desdenhosamente de seu pai, Cam re-
vela seu próprio caráter depravado e maligno. Bem sabemos que os
pais, depois de Deus, devem ser profundamente reverenciados; e,
se não houvesse nem livros, nem sermões, a própria natureza nos
inculca constantemente essa lição. O consenso popular concorda
que a piedade para com os pais é a mãe de todas as virtudes. Por-
tanto, Cam teria sido de uma disposição excessivamente ímpia, per-
versa e depravada; posto que ele não somente tomou gosto pelo
opróbrio do pai, mas também se dispôs a lhe expor a seus irmãos. E
isso não se constitui uma leve ocasião de ofensa; primeiro, que Noé,
o ministro da salvação aos homens e o principal restaurador do
mundo, em extrema velhice, ficou embriagado em sua casa; e, se-
gundo, que o ímpio e perverso Cam tivesse saído do santuário de
Deus. Este selecionou oito almas para ser uma santa semente, to-
talmente purificada de toda e qualquer corrupção, para a renovação
da Igreja; mas o filho de Noé mostra quão necessário é que os ho-
mens sejam refreados por Deus, por mais que sejam exaltados por
privilégios.
A impiedade de Cam nos prova quão profunda é a raiz da per-
versidade nos homens; e que ela produz continuamente seus bro-
tos, exceto onde o poder do Espírito prevalece sobre ela. Mas se, no
sagrado santuário de Deus, no meio de tão exíguo número, se pre-
servou um diabo, não nos maravilhemos se hoje, na Igreja, conten-
do uma multidão muito maior de pessoas, os maus se achem mistu-
rados com os bons. Nem há qualquer dúvida de que a mente de
Sem e Jafé foi gravemente ferida quando perceberam em seu pró-
prio irmão tão grande escárnio, e, por outro lado, seu pai vergonho-
samente prostrado ali no chão. Que loucura tão vil foi vista no prínci-
pe do novo mundo! E o santo patriarca da Igreja não podia sur-
preendê-los menos do que eles tivessem visto a própria arca que-
brada, lançada em pedaços, partida e destruída. Entretanto, sua
magnanimidade vence também o motivo desse escândalo, e o es-
conde por sua modéstia.
Somente Cam se apodera avidamente da oportunidade para ri-
dicularizar e injuriar a seu pai; exatamente como os homens perver-
sos estão acostumados a aproveitar as ofensas dos outros, as quais
podem servir de pretexto para entregarem-se ao pecado. E sua ida-
de o torna menos desculpável, porquanto não era um jovem lascivo
que, por sua irrefletida gargalhada, se deixasse trair por sua própria
insensatez, visto que sua idade já passara de 100 anos. Portanto, é
provável que ele perversamente tenha insultado dessa maneira a
seu pai querendo conquistar para si a licença para pecar impune-
mente. Hoje vemos muitos agirem assim, os quais, com muito em-
penho espionam as falhas de pessoas santas e piedosas com o ob-
jetivo de, sem qualquer pudor, se entregarem a toda e qualquer ini-
quidade; inclusive tomam as falhas de outras pessoas como ocasião
de endurecimento para assim menosprezarem a Deus.
23. Então Sem e Jafé tomaram uma capa. Aqui a piedade e a mo-
déstia dos dois irmãos são elogiadas; mas para que a dignidade de
Noé não fosse rebaixada em sua estima e sempre promovessem e
mantivessem íntegra a reverência que possuíam, Sem e Jafé desvi-
aram seus olhos de contemplar a desgraça de seu pai. E assim de-
ram prova do respeito que tinham pela honra de seu pai, presumin-
do que seus próprios olhos seriam contaminados se contemplas-
sem, voluntariamente, a nudez pela qual ele era desonrado. Ao
mesmo tempo, também levam em conta sua própria modéstia. Pois
(como foi dito no terceiro capítulo) há alguma coisa imensamente
vergonhosa na nudez do homem, que raramente alguém nu ousa
olhar para si mesmo, mesmo quando não há ninguém vendo. Eles
censuram ainda a ímpia imprudência de seu irmão por não poupar o
seu pai.
Disso, pois, podemos aprender quão aceitável a Deus é aquela
piedade da qual o exemplo aqui registrado recebe um sinal inco-
mum do Espírito. Mas, se a piedade para com um pai terreno era
uma virtude tão excelente e tão digna de louvor, quão grande deve
ser a devoção de piedade com a qual a santa majestade de Deus
deve ser adorada! Os papistas se tornam ridículos ao desejarem en-
cobrir a imundícia de seu ídolo, sim, as abominações de todo o seu
imundo clero, com a capa de Sem e Jafé. Omito declarar quão gran-
de é a diferença entre a desgraça de Noé e a odiosa vileza de tan-
tos crimes que contaminam o céu e a terra. Mas é necessário que o
Anticristo e seus bispos mitrados, com toda aquela ralé, provem ser
eles mesmos legítimos pais, caso queiram que se lhes renda algu-
ma honra.
26. Bendito seja o Senhor, Deus de Sem. Noé abençoa seus ou-
tros filhos, mas de uma maneira diferente. Pois ele coloca Sem no
posto mais elevado de honra. E essa é a razão por que Noé, ao
abençoá-lo, irrompe em louvor a Deus, sem levar em conta a condi-
ção do homem. Pois os hebreus, quando estão falando de alguma
rara e transcendente excelência, elevam seus pensamentos a Deus.
Portanto, o santo homem, ao perceber que a mais exuberante graça
de Deus se destinava a seu filho Sem, irrompe em ação de graça.
Disso inferimos que ele falava não da razão carnal, mas, antes, tra-
tava dos secretos favores de Deus, cujo resultado seria adiado a um
período remoto. Finalmente, por essas palavras declara-se que a
bênção de Sem seria divina e celestial.
1 Por proibição externa, é provável que Calvino esteja se referindo àquilo que pode ser im-
posto pelo magistrado durante um período de escassez, ou para algum propósito mera-
mente civil.
2 Possivelmente, uma referência ao filósofo naturalista romano Plínio (23-79 d.C.).
C A P ÍT U L O 1 0
10. O princípio de seu reino foi Babel. Aqui, Moisés indica a sede
do império de Ninrode. Declara ainda que quatro cidades lhe esta-
vam sujeitas; no entanto, é incerto se ele foi o fundador delas, ou se
expulsou seus legítimos habitantes. E, embora em outro lugar se
faça menção de Calné [Amós 6.2], contudo, de todas, a Babilônia
era a mais célebre. No entanto, não creio que ela tenha sido tão ex-
tensa ou de tão magnífica estrutura, como relatam os historiadores
profanos. Visto, porém, que a região estava entre as primeiras e
mais frutíferas, é possível que a vantagem da situação mais tarde
convidasse outros a expandir a cidade. Por isso mesmo Aristóteles,
em seu livro Política, tirando-a da categoria de cidade, compara-a a
uma província. Por isso, surgirem muitos a declarar que a Babilônia
tenha sido obra de Semíramis, por meio de quem, dizem outros, ela
não foi construída, mas apenas adornada e ligada por meio de pon-
tes.
A terra de Sinear é acrescentada para fazer distinção, porque
houve também outra Babilônia no Egito, que hoje é chamada Cairo.
Mas, pergunta-se: como Ninrode teria sido o tirano de Babilônia,
quando Moisés, no capítulo seguinte, acrescenta que ali se come-
çou uma torre, que obteve esse nome da confusão de línguas? Al-
guns supõem que um hysteron proteron1 é empregado, e aquilo que
Moisés relatará acerca da construção da torre era anterior na ordem
do tempo.
Além disso, supõe-se também que, como a construção da torre
foi desastrosamente interrompida, o projeto de Ninrode mudou para
o da construção de uma cidade. Antes, porém, penso que há uma
prolepsis;2 e que Moisés chamou a cidade pelo mesmo nome, o que
mais tarde foi imposto por um evento posterior. A razão dessa hipó-
tese é que, provavelmente, nesse tempo, os habitantes daquele lu-
gar, que se engajaram numa obra tão imensa, eram numerosos. É
possível também que Ninrode, preocupado com a sua própria fama
e poder, inflamasse seu insano desejo com este pretexto: que algum
monumento famoso fosse erigido e pelo qual ele fosse eternamente
lembrado. Entretanto, visto ser o costume dos hebreus abordarem
mais amplamente um assunto depois de mencioná-lo rapidamente,
não rejeito completamente a primeira opinião.
11. Daquela terra saiu ele para a Assíria. Acredita-se que esse As-
sur descendia de Sem. E a opinião comumente aceita é que ele é
aqui mencionado porque, quando foi habitar na vizinhança de Ninro-
de, foi violentamente expulso dali. Dessa maneira, Moisés desejava
destacar a bárbara ferocidade de Ninrode. E, de fato, esses são os
frutos costumeiros de uma grandeza sem limites; a partir disso sur-
giu o antigo provérbio: “Os grandes reinos são grandes ladrões.”. É,
de fato, necessário que alguns presidam sobre outros; mas onde a
ambição e o desejo de se exaltar além do que convém são extrava-
gantes, não só arrastam consigo as maiores e mais numerosas injú-
rias, mas também aproximam a dissolução da sociedade humana.
Entretanto, adoto a opinião dos que dizem que Assur, aqui cita-
do, não é o nome de um homem, e sim de um país que derivou dele
seu nome; e assim o sentido será que Ninrode, não contente com
seu amplo e opulento reino, deu asas à sua avareza, e empurrou as
fronteiras de seu império até a Assíria, onde também construiu no-
vas cidades. A passagem em Isaías 23.13 é a única que aparente-
mente se opõe a essa opinião, ao dizer: “Eis a terra dos caldeus,
povo que até há pouco não era povo e que a Assíria destinara para
os sátiros do deserto; povo que levantou suas torres e arrasou os
palácios de Tiro e os converteu em ruínas.”. Pois o profeta parece
dizer que as cidades foram construídas na Caldeia pelos assírios,
enquanto que anteriormente seus habitantes eram nômades e vive-
ram dispersos como em um deserto. Mas é possível que o profeta
esteja falando de outras mudanças desses reinos, as quais ocorre-
ram mais tarde. Porque, no tempo em que os assírios mantiveram a
soberania, visto que prosperaram em incalculável riqueza, crê-se
que a Caldeia, a qual tinham sujeitado a si, foi de tal modo adornada
e dilatada por uma longa paz, de modo que parecia haver sido fun-
dada por eles. E sabemos que, quando os caldeus, por sua vez, as-
sumiram o império, a Babilônia foi exaltada sobre as ruínas de Níni-
ve.
21. A Sem, que foi pai de todos os filhos de Héber. Moisés, refe-
rindo-se aos filhos de Sem, faz uma breve introdução, a qual não fi-
zera para os outros. Isso não foi sem motivo, porque, visto que essa
era a descendência eleita por Deus, a intensão de Moisés era distin-
gui-la das demais nações por alguma marca especial. Essa é tam-
bém a razão por que expressamente o denomina de “pai dos filhos
de Héber”, e o irmão mais velho de Jafé. Pois a bênção de Sem não
passa a todos os seus netos indiscriminadamente, mas permanece
em uma só família. E se bem que os próprios netos de Héber apos-
tataram do verdadeiro culto divino, de modo que o Senhor poderia,
com justiça, tê-los abandonado; contudo, a bênção não foi extinta,
mas simplesmente sepultada por certo tempo, até que Abraão fosse
chamado, em cuja honra essa singular dignidade é atribuída à gera-
ção e ao nome de Héber.
Pela mesma razão, faz-se menção de Jafé, para que a promes-
sa fosse confirmada: “Engrandeça Deus a Jafé, e habite ele nas ten-
das de Sem.”. Aqui, Sem não é chamado o irmão de Cam, conquan-
to este foi eliminado da ordem fraternal e privado de seu próprio di-
reito. A fraternidade permaneceu entre Sem e Jafé, porque, embora
tenham se separado, Deus havia decidido que os uniria novamente.
Quanto ao nome Héber, os que negam que ele é um nome pró-
prio, mas alegam que a palavra significa passar por cima, são mais
que suficientemente refutados por essa única passagem.
1 Nas narrativas históricas, o hysteron proteron é empregado quando algo que realmente
vem por último na ordem do tempo é, por alguma razão, posto primeiro na ordem da narra-
tiva.
2 No discurso narrativo, o recurso da prolepsis é usado quando uma expressão ou palavra
que se refere a uma expressão posterior no discurso é empregada antes. Como exemplo,
temos o caso da palavra “Betel”, que é usada para designar o lugar que naquele tempo era
chamado Luz, e que não recebera este nome até que lhe fosse dado por Jacó.
C A P ÍT U L O 11
4. Cujo tope chegue até aos céus. Essa é uma linguagem hiperbó-
lica, na qual enaltecem soberbamente a magnitude da estrutura que
estão tentando erigir. E, sobre isso, imediatamente acrescentam:
“tornemos célebre o nosso nome”, insinuando que a obra seria tal,
que deveria ser vista pelos construtores não apenas como uma es-
pécie de milagre, mas também que deveria ser celebrada por toda
parte, até os extremos limites do mundo.
Esta é a perpétua arrogância do mundo: ignorar o céu, e buscar
imortalidade na terra, onde cada coisa é efêmera e transitória. Por-
tanto, as preocupações desses homens e o que eles perseguem
não tem outro objetivo senão o de adquirir para si um nome na terra.
Davi, no Salmo 49, corretamente ridiculariza essa cobiça desenfrea-
da; e mais ainda porque a experiência (que é a mestra da tolice) não
restaura à posteridade uma mente sã – apesar de ter sido instruída
pelo exemplo de seus ancestrais –, mas a arrogância se faz presen-
te em todas as posteriores gerações.
É conhecido o dito de Juvenal: “Só a morte reconhece quão in-
significantes são os corpos dos homens.”. Entretanto, nem mesmo a
morte corrige nosso orgulho, nem nos constrange a confessarmos
nossa miserável condição; pois, muitas vezes, há mais orgulho em
funerais do que em pompa nupcial. Por tal exemplo, contudo, somos
admoestados a ver quão conveniente é vivermos e morrermos hu-
mildemente. E, não é a parte menos importante da verdadeira pru-
dência, termos a morte diante de nossos olhos nas dificuldades da
vida, com o propósito de nos acostumarmos à moderação. Pois
aquele que deseja veementemente ser grande no mundo é, primei-
ramente, arrogante para com os homens; e, por fim, sua profana ar-
rogância se irrompe contra o próprio Deus; de modo que, segundo o
exemplo dos gigantes, ele luta contra o céu.
Para que não sejamos espalhados. Alguns intérpretes tradu-
zem a passagem desta maneira: “Antes de sermos espalhados”.
Mas a peculiaridade da linguagem aqui empregada não permite tal
explicação, pois os homens estão planejando meios para enfrentar
um perigo que acreditam ser iminente, como se quisessem dizer:
“Quando nosso número aumentar, esta região não conterá todos os
homens e, por isso, é preciso erigir um edifício pelo qual nosso
nome seja preservado em perpetuidade, embora eles mesmos este-
jam dispersos em diferentes regiões.”.
Pode-se questionar de onde derivaram a noção de sua futura
dispersão. Alguns supõem que foram advertidos por Noé, o qual,
percebendo que o mundo estava recaindo em seus antigos crimes e
corrupções, previu, ao mesmo tempo, pelo espírito profético, alguma
terrível dispersão; e a partir disso creem que os babilônios, vendo
que não podiam resistir diretamente a Deus, tentaram, por métodos
indiretos, evitar o juízo ameaçador. Outros supõem que, por uma se-
creta inspiração do Espírito, esses homens pronunciaram profecias
relativas à sua própria punição, que eles mesmos não compreende-
ram. Essas exposições, porém, são forçadas; e nem mesmo há
qualquer razão que nos obrigue a aplicar o que eles dizem aqui à
maldição que foi imposta sobre aqueles homens. Sabiam que a terra
fora formada para ser habitada e, por toda parte, ela supriria, com
abundância, a subsistência dos homens, e a rápida multiplicação da
raça humana lhes provava que não era possível que permaneces-
sem por mais tempo encerrados dentro daqueles seus estreitos limi-
tes; por isso, não importa quais outros lugares para onde fosse ne-
cessário os homens emigrar, planejaram essa torre para que perma-
necesse como uma testemunha de sua origem.
27. Tera gerou a Abrão. Aqui também Abrão é posto primeiro entre
seus irmãos; não (como suponho) porque ele fosse o primogênito,
mas porque Moisés, ao delinear o escopo de sua história, não foi
muito meticuloso na ordem dos filhos de Tera. É ainda possível que
Tera tivesse outros filhos. Mas é óbvia a razão pela qual Moisés fala
especialmente desses, ou seja, por causa de Ló e das esposas de
Abrão e Naor.
Agora direi sucintamente por que creio que Abrão não era o pri-
mogênito. Moisés afirma que Harã morreu na terra de seu nasci-
mento, antes mesmo que seu pai deixasse a Caldeia e partisse para
Harã. Abrão, porém, tinha 75 anos de idade quando partiu de Harã
para habitar na terra de Canaã [Cf. Gn 12.4], e essa idade de 75
anos lhe é dada expressamente após a morte de Tera. Ora, se pre-
sumirmos que Abrão nasceu aos 70 anos de seu pai, devemos ad-
mitir ainda que não consideramos 60 anos de idade de Tera; o que é
absurdo.3 A hipótese levantada por Lutero, de que Deus sepultou
aquele tempo no esquecimento com o objetivo de ocultar de nós o
fim do mundo, é, primeiramente, frívolo; e, depois, refutada por sóli-
dos e convincentes argumentos. Outros distorcem violentamente o
significado das palavras para aplicá-lo a uma primeira saída de
Abrão da sua terra natal, e acreditam que ele viveu em companhia
de seu pai em Harã ao longo de 60 anos; mas isso é muito imprová-
vel, pois com que finalidade eles teriam protelado sua estada por
tanto tempo no meio de sua jornada?
Mas não há necessidade de grande discussão. Moisés silencia
acerca da idade de Abraão, assim que este deixou seu próprio país;
porém, diz que aos 75 anos de idade Abrão partiu para a terra de
Canaã, quando seu pai, aos 205 anos de idade, morreu. Quem não
inferirá disso que ele nascera quando seu pai alcançara a idade de
130 anos? Aqui, porém, ele é mencionado primeiro entre os filhos
gerados por Tera, quando este tinha 70 anos de idade. Eu até admi-
to isso; porém, essa ordem de enumeração não é uma prova da or-
dem de nascimento, como já dissemos. Aliás, nem mesmo Moisés
declara em que ano de sua vida Tera gerou filhos, mas apenas que
ele já havia passado da idade acima indicada antes de gerar os três
filhos aqui mencionados. Portanto, a idade de Abraão deve ser certi-
ficada por outro cálculo, a saber, a partir do fato de que Moisés lhe
designa a idade de 75 anos quando seu pai morreu, e cuja idade era
de 205 anos.
Um argumento sólido e válido é também deduzido da idade de
Sarai. Tudo indica que ela era não mais do que dez anos mais nova
do que Abraão. Se ela era a filha de seu irmão mais novo, então ne-
cessariamente ela tinha quase a mesma idade de seu pai. Os que
objetam dizendo que ela era a nora, ou apenas a filha adotiva de
Naor, nada produz além de mero argumento sofístico.4
28. Morreu Harã. Lemos que Harã morreu diante da face de seu
pai, quer dizer, seu pai ainda estava vivo. Lemos ainda que ele mor-
reu em seu país, isto é, em Ur. Os judeus convertem o nome próprio
num apelido, e dizem que ele morreu no fogo. Porque, como são ou-
sados em inventar fábulas, simulam que Harã, com seu irmão
Abrão, foram lançados ao fogo pelos Caldeus, por se absterem da
idolatria, mas que Abrão escapou em virtude da firmeza de sua fé.
Contudo, o capítulo 24 de Josué, que citei acima, francamente de-
clara que toda essa família não foi menos contaminada com supers-
tições do que o próprio país em que viviam. Aliás, eu confesso que o
nome Ur se deriva de fogo; entretanto, é comum atribuir nomes a ci-
dades a partir de alguma situação ou de algum evento particular. É
possível que ali espalhassem o fogo sagrado, ou que o esplendor do
sol fosse mais evidente do que em outros lugares. Outros dirão que
a cidade foi assim chamada porque estava situada num vale, pois
os hebreus chamam os vales de (Uraim). Mas não há razão por
que devemos nos sentir ansiosos acerca de tal assunto; que seja
suficiente o fato de que Moisés, falando do país de Abrão, logo de-
pois declara que ele era Ur dos Caldeus.
30. Sarai era estéril. Moisés não só diz que Abrão não tinha filhos,
mas declara a razão, a saber, a esterilidade de sua esposa, para
mostrar que foi por nada menos que um extraordinário milagre que
ela, mais tarde, gerou a Isaque, como declararemos mais plenamen-
te no momento oportuno. Assim aprouve a Deus humilhar seu servo;
e não podemos ter dúvida de que Abrão sofreria severa angústia por
causa dessa privação. Ele vê os perversos gerando filhos por toda
parte, em grandes números, para cobrirem a terra; somente ele se
vê privado de filhos. E, embora até então Abrão desconhecesse a
sua própria vocação futura, aprouve a Deus apresentar, na pessoa
de Abrão, um modelo para tornar evidente de onde e de que manei-
ra sua Igreja se originaria, pois naquele tempo ela jazia oculta, como
uma raiz seca debaixo da terra.
31. Tomou Tera a Abrão, seu filho. É aqui que o próximo capítulo
deve ter início, porque Moisés começa a tratar de um dos principais
temas de seu livro, a saber, a vocação de Abrão. Pois ele não só re-
lata que Tera mudou-se de seu país, mas também explica o propósi-
to e o objetivo de sua partida: que ele deixou seu solo natal e deu
início a sua jornada para ir à terra de Canaã. Disso é facilmente ex-
traída a inferência de que ele não foi tanto o líder ou autor da jorna-
da, mas apenas o companheiro de seu filho.
E não causa dificuldade a essa inferência o fato de Moisés dar
a Tera a prioridade, como se Abrão houvesse partido sob seus cui-
dados e diretriz, em vez de pelo comando de Deus, pois essa é uma
honra conferida ao título pai. Nem duvido que Abrão, ao ver seu pai
obedecendo voluntariamente à vocação divina, veio a ser, por sua
vez, ainda mais obediente a ele. Portanto, atribui-se à autoridade do
pai que ele levasse consigo o seu filho. Porque, o fato de que Abrão
fora chamado por Deus antes mesmo de mover um pé de seu solo
natal, parece ser muito claro para se negar. Não lemos que seu pai
foi chamado. Por isso, podemos supor que o oráculo de Deus foi
dado a conhecer a Tera por meio de seu filho. Pois a ordem divina
dada a Abrão com respeito a sua partida não o proíbe de informar a
seu pai que sua única razão para deixá-lo era que preferiu o manda-
mento de Deus a todas as obrigações humanas. Aliás, de forma in-
controversa, inferimos das palavras de Moisés duas coisas: (1) que
Abrão foi divinamente chamado, antes que Tera deixasse sua pró-
pria pátria; e (2) que Tera não teve outro propósito senão o de ir
para a terra de Canaã, isto é, de unir-se a seu filho como um com-
panheiro voluntário. Portanto, concluo que ele deixara sua pátria um
pouco antes de sua morte. Pois é absurdo pressupor que, quando
ele partiu de sua pátria para ir diretamente à terra de Canaã, teria
permanecido 60 anos como um forasteiro numa terra estranha. É
mais provável que, sendo um velho, fatigado pela idade, ele fosse
vencido pela doença e pelo cansaço. E, no entanto, é possível que
Deus os deixasse por pouco tempo na expectativa, porque Moisés
diz que ele habitou em Harã; mas, considerando o que vem depois,
parece que a parada não foi longa; visto que, aos 75 anos de idade,
Abrão partiu de Harã, e saiu de lá em avançada velhice e já ciente
de que sua esposa era estéril.
Além disso, a cidade que pelos hebreus é chamada Harã, todos
os escritores declaram, unanimemente, ser a Harã situada na Meso-
potâmia; embora alguns, mais poética do que verazmente, aleguem
que a cidade esteja localizada na Assíria, o lugar celebrado pela
destruição de Crasso e a subversão do exército romano.
1 A hipotipose é uma figura retórica de estilo que consiste em uma descrição realista de
algo; ocorre quando, nas narrativas, apresentam-se os fatos de que se fala como se o que
se diz estivesse realmente diante dos nossos olhos.
2 Ora apresentado como o deus Bel Marduk, ora apresentado como um antigo rei, muitos
atribuem a Belus a origem da Babilônia. No contexto pagão da Babilônia, ele foi adorado
como o deus da guerra.
3 A questão aqui envolvida é a seguinte. Se Tera tinha 70 anos de idade quando Abrão
nasceu, e Abrão tinha 75 anos de idade quando seu pai Tera, morreu, Tera teria morrido
aos 145 anos de idade, e não aos 205 anos, como indicam as Escrituras. Assim, se “perde”
60 anos do período de vida de Tera.
4 Um argumento desse tipo ocorre quando se usa a habilidade de falar eloquentemente
com o objetivo de defender ou usar argumentos enganosos, ou logicamente inconsistentes,
para o favorecimento pessoal.
C A P ÍT U L O 1 2
10. Havia fome naquela terra. Aqui se registra uma tentação muito
mais severa, pela qual a fé de Abrão é testada de modo imediato.
Pois ele não só vagueou várias vezes no país, mas agora é levado
para o exílio, tendo que deixar aquela terra que Deus lhe dera, bem
como à sua posteridade.
Deve-se observar que a Caldeia era excessivamente fértil; ten-
do sido, por essa causa, acostumado com a fartura, ele veio a Harã,
onde, supõe-se, viveu bastante comodamente, já que é evidente
que ele tinha aumentado os seus servos e suas riquezas. Agora, po-
rém, sendo expulso daquela terra pela fome, onde, confiando na pa-
lavra de Deus, recebera a promessa de uma vida ditosa, suprida
com toda abundância de boas coisas, quais teriam sido seus pensa-
mentos, se ele não tivesse sido fortalecido contra as artimanhas de
Satanás? Sua fé teria sido subvertida centenas de vezes. E sabe-
mos que, sempre que nossa expectativa é frustrada e as coisas não
acontecem segundo nossos desejos, nossa carne logo acusa: “Deus
te enganou.”. Moisés, porém, mostra, em poucas palavras, com que
firmeza Abrão resistiu esse veemente assalto. É verdade que ele
não proclama tal constância com ostentosos elogios verbais; mas,
por uma pequena frase, demonstra suficientemente que ela era
grande a ponto de um milagre, quando diz que Abrão “desceu ao
Egito, para aí ficar”.
Moisés declara que Abrão, apesar de tudo, mantinha em sua
mente a posse da terra que lhe fora prometida, muito embora, sendo
expulso dela pela fome, fugiu para outro lugar a fim de obter alimen-
to. E que nos deixemos instruir por este exemplo: que os servos de
Deus devem lutar contra muitos obstáculos, para que complete a
jornada de sua vocação. Pois devemos sempre lembrar de que
Abrão não deve ser considerado um membro individual do corpo
dos fiéis, mas sim como sendo o pai de todos eles, de modo que to-
dos devem estar dispostos a seguir o seu exemplo. Portanto, posto
que a condição da presente vida é instável e sujeita a inumeráveis
mudanças, recordemos que, para onde quer que sejamos levados
pela fome, pela fúria da guerra, e por outras tantas vicissitudes que
ocasionalmente ocorrem além de nossa expectativa, devemos se-
guir sempre em frente em nossa caminhada; e que, ainda quando
nosso corpo seja levado de um lado para o outro, nossa fé deve per-
manecer inabalável.
Além disso, não é de surpreender que, quando os próprios ca-
naneus viviam em dificuldade, Abrão fosse forçado a tomar uma de-
cisão. Pois ele não possuía sequer um pedaço de terra, e tinha que
lidar com pessoas cruéis e muito perversas, que prefeririam que ele
perecesse cem vezes pela fome do que lhe ajudar em suas dificul-
dades. Tais circunstâncias ampliam o louvor da fé e fortaleza de
Abrão; primeiro, porque, quando destituído de alimento para o cor-
po, ele se alimenta unicamente da promessa de Deus; e, segundo,
porque ele não seria desarraigado de modo violento e definitivo do
lugar onde recebera a ordem de habitar, mas apenas por um pouco
de tempo. Nesse aspecto, ele é bem diferente de tantos que, quan-
do em ocasiões insignificantes, se apressam a abandonar sua pró-
pria vocação.
11. Disse a Sarai, sua mulher. Moisés então relata a decisão que
Abrão tomou para a preservação de sua esposa, quando se aproxi-
mava do Egito. E, visto que esse lugar é como uma rocha, sobre a
qual muitos tropeçam, é correto considerar, de modo sóbrio e reve-
rente, até que ponto Abrão pode ser desculpado ou não. Primeiro,
parece haver algo de falsidade, misturado com as dissimulações
que ele convence a sua esposa praticar. E, embora mais tarde ele
apresente uma justificativa, dizendo que não mentira nem forjara
algo que não fosse verdadeiro, com certeza ele era nisto grande-
mente culpável: que não era em virtude de seu cuidado que sua es-
posa não se prostituiu. Pois quando dissimula o fato de que ela era
sua esposa, ele põe em risco a castidade dela em prol de sua legíti-
ma defesa.
A partir disso, certos sofistas perversos aproveitam a oportuni-
dade para objetar dizendo que o santo patriarca era um cafetão de
sua própria esposa, e que, com o astuto propósito de proteger a si
mesmo, não poupou a modéstia dela, nem a honra de si mesmo.
Mas é fácil refutar essa maligna injúria porque, de fato, pode-se infe-
rir que Abrão tinha em vista um propósito muito mais elevado, posto
que, em outras coisas, ele era dotado de tão grande generosidade.
Além disso, por que ele buscou antes ir para o Egito, e não para
Harã, ou para sua própria pátria, se, em sua jornada, Abrão não ti-
vesse Deus diante de seus olhos, e a divina promessa firmemente
enraizada em sua mente? Visto, pois, que ele nunca permitiu que
sua atenção se desviasse da palavra de Deus, podemos ainda de-
duzir desse fato a razão pela qual ele tanto temia por sua própria
vida, a ponto de tentar preservá-la de um perigo, incorrendo em ou-
tro ainda maior. Indubitavelmente, ele teria preferido morrer cente-
nas de vezes a denegrir o caráter de sua esposa e ser privado da
companhia da única mulher que ele amava. Mas, enquanto refletia
que a esperança de salvação se achava centrada em si mesmo, e
ele era a fonte da Igreja de Deus, e que, a menos que ele vivesse, a
bênção prometida a ele e à sua descendência seria vã, ele não con-
siderou sua própria vida a partir de si mesmo; mas, posto que ele
não desejava que o efeito da divina vocação perecesse através de
sua morte, se viu tão afetado com a preocupação de preservar sua
própria vida, que passou a ignorar tudo mais. Portanto, ele não me-
rece ser louvado, pois, tendo em vista um objetivo legítimo para vi-
ver, estava pronto a comprar a vida a qualquer preço. Mas, ao en-
gendrar esse método indireto, pelo qual sujeitou sua esposa ao peri-
go do adultério, tudo indica que de modo algum ele é desculpável.
Se fosse zeloso por sua própria esposa, o que certamente ele era,
deveria ter confiado a Deus seu cuidado. Admito que, de fato, a pro-
vidência de Deus não desobriga os fiéis de cuidar de si mesmos;
mas que o façam de tal modo que não avançam para além de seus
limites prescritos.
Consequentemente, o propósito de Abrão era correto, porém
ele errou no método; pois, como frequentemente acontece, mesmo
quando dependemos de Deus, nos desviamos de sua palavra por
nossa imprudência em confiarmos em meios ilícitos. E isso costuma
acontecer especialmente em momentos de dificuldade porque, en-
quanto não se vê nenhum escape, somos facilmente desviados para
caminhos tortuosos. Portanto, apesar de serem juízes imprudentes
quem condena inteiramente esse ato de Abrão, contudo não se
deve negar a sua falha especial, a saber, que ele, tremendo diante
da proximidade da morte, não confiou tal perigo a Deus, em vez de
expor pecaminosamente a modéstia de sua esposa. Assim, por
esse exemplo, somos admoestados a, em questões complexas e
duvidosas, buscar no Senhor o espírito de conselho e de prudência;
e devemos, ainda, cultivar a sobriedade, para que não façamos
nada precipitadamente, sem a autoridade de sua palavra.
Ora, bem sei que és mulher de formosa aparência. Pergun-
ta-se de onde veio essa beleza de Sarai, já que ela era uma mulher
idosa. Porque, mesmo que admitamos que ela anteriormente tivesse
uma excelente formosura, certamente os anos lhe diminuíram a gra-
ciosidade, pois sabemos o quanto as rugas nos idosos desfiguram
os melhores e mais belos rostos. Em primeiro lugar, respondo que
não há dúvida de que antes havia mais vivacidade na raça humana
do que há agora; sabemos ainda que o vigor mantém a aparência
pessoal. Além disso, sua esterilidade contribuiu para a preservação
de sua beleza e para manter íntegros todos os seus hábitos corpo-
rais, pois não há nada que mais debilita o sexo feminino do que par-
tos sucessivos.
Contudo, não duvido que a perfeição de sua forma tenha sido
um dom especial de Deus; mas, por que ele não queria que a bele-
za da santa mulher fosse rapidamente desgastada pela idade, não
sabemos; senão para que a sua formosura fosse causa de grande e
profundo desejo para seu marido. A experiência comum nos ensina
ainda que, aqueles que não se contentam com um grau regular e
moderado de beleza, descobrem, para seu grande prejuízo, o quan-
to custa a aquisição de uma beleza imoderada.
12. Os egípcios, quando te virem. Pode parecer que Abrão fosse
injusto com os egípcios, suspeitando mal deles, de quem não havia
ainda recebido nenhuma injúria. E, visto que a caridade realmente
não suspeita mal, pode parecer que ele os trata injustamente, não
apenas em acusá-los de lascívia, mas também em suspeitar que
fossem homicidas. Minha resposta é que o santo homem, não sem
razão, temia aquela nação porque sobre ela ouvira muitas notícias
desfavoráveis. E, em outros lugares, ele já havia experimentado tan-
to da perversidade dos homens, que podia, com razão, sentir receio
dos desprezíveis profanadores de Deus.
Entretanto, Abrão não diz absolutamente nada sobre os egípci-
os; porém, desejando persuadir sua esposa para aceitar a sua opini-
ão, lhe adverte sobre o que poderia suceder. E Deus, embora nos
ordene que nos abstenhamos da malícia e dos juízos sinistros, con-
tudo permite que nos ponhamos em guarda contra pessoas desco-
nhecidas; e isso pode ocorrer sem que lancemos qualquer injúria
contra os irmãos. No entanto, não nego que essa ansiedade de
Abrão excedeu todos os limites, e que uma aflição injustificada o le-
vou a envolver-se em outros erros, como já declaramos.
20. E Faraó deu ordens aos seus homens. Ao dar ordem para que
Abrão tivesse um salvo-conduto do reino, pode parecer que Faraó o
fez com o objetivo de protegê-lo contra o perigo, porque Abrão havia
estimulado o ódio da nação contra si mesmo, como sendo aquele
que havia trazido consigo o açoite de Deus; Mas, como essa hipóte-
se é pouco provável, apresento uma interpretação mais simples:
que a permissão da partida foi concedida a Abrão juntamente com a
companhia de uma guarda para que não fosse exposto à violência.
Pois sabemos quão orgulhosos e cruéis eram os egípcios, e quão
desagradável era Abrão para ser invejado porque, havendo ali se
tornado rico tão rapidamente, é como se ele levasse consigo um
despojo.
1 Muito provavelmente, o motivo pelo qual os judeus detestam essa palavra é porque nela
estão incluídos homens de todas as nacionalidades, e não apenas judeus segundo a car-
ne.
2 Parece que Calvino não faz um uso técnico do termo. De qualquer modo, um axioma é
uma premissa considerada necessariamente evidente e verdadeira, e, apesar de ela mes-
ma ser indemonstrável, é assumida como o fundamento de uma demonstração.
3 Isto é, o termo carvalho é empregado para designar um bosque ou floresta de carvalhos.
C A P ÍT U L O 1 3
9. Acaso, não está diante de ti toda a terra? Aqui está aquela mo-
deração de que já falei, a saber, que Abrão, com o intuito de apazi-
guar a intriga, voluntariamente sacrifica seu próprio direito. Porque,
como a ambição e o desejo de vitória são mãe e pai de todas as
contendas, assim, quando cada um, humilde e moderadamente, se
aparta, em algum grau, de sua justa reivindicação, encontra-se o
melhor remédio para a remoção de toda causa de amargura. De fato
Abrão poderia, com um honroso pretexto, ter defendido mais perti-
nazmente o direito que conquistara, porém faz de tudo para restau-
rar a paz; e, portanto, deixa a opção a seu sobrinho.
13. Porém veio um, que escapara. Essa é a segunda parte do ca-
pítulo, onde Moisés mostra que, quando Deus considerou seu servo
Ló, ele lhe deu Abrão como seu libertador, para resgatá-lo das mãos
do inimigo. Aqui, porém, surgem várias questões, a saber, se era lí-
cito a Abrão, uma pessoa reservada, armar sua família contra reis e
empreender uma guerra pública. Entretanto, não tenho dúvida de
que, como ele saiu à guerra revestido com o poder do Espírito, as-
sim também ele foi guardado por uma ordem celestial, para que não
transgredisse os limites de sua vocação. E isso não deve ser consi-
derado como sendo algo novo, mas como sendo uma vocação es-
pecial, pois ele já tinha sido feito rei daquela terra. E embora a pos-
se dela fosse adiada para um tempo futuro, Deus daria alguma notá-
vel prova do poder que lhe havia outorgado, e que até então era
desconhecido dos homens. Isso foi um prelúdio semelhante ao que
depois se seguiria com Moisés, que matou o egípcio, antes de apre-
sentar-se publicamente como o vingador e libertador de sua nação.
Por isso, uma questão deve ser notada: os que desejam se defen-
der pela força armada, sempre que alguma força for usada contra
eles, podem, com base nesses fatos, tomar tais atitudes como re-
gras para si.
Mais adiante veremos esse mesmo Abrão suportando paciente-
mente, e com mente submissa, injúrias que continham, ao menos,
igual tendência de provocar seu espírito. Além disso, que Abrão
nada tentou precipitadamente, mas, antes, que seu propósito foi
aprovado por Deus, como se tornará claro no enaltecimento de Mel-
quisedeque. Podemos, portanto, concluir que essa guerra foi por ele
empreendida sob a especial diretriz do Espírito. Se alguém discor-
dar disso, dizendo que ele foi além do que lhe era lícito, pois despo-
jou os vitoriosos de suas vítimas e cativos, e os restaurou totalmente
aos homens de Sodoma, os quais de modo algum estavam sob sua
proteção, minha resposta é que, uma vez que Deus era seu Guia e
Líder nesse empreendimento – como inferimos de sua aprovação –,
não nos cabe disputar acerca de seu juízo secreto. Quando seus vi-
zinhos foram arruinados e destruídos, Deus já havia destinado os
habitantes de Sodoma a um juízo ainda mais severo, porque eles
mesmos eram os piores de todos. Ele, pois, levantou seu servo
Abrão, depois de havê-los admoestado por meio de um castigo sufi-
cientemente severo, para libertá-los, a fim de que se tornassem ain-
da mais indesculpáveis.
Portanto, essa singular sugestão do Espírito Santo não deve
ser tomada como um precedente, mas apenas como a descrição de
toda a guerra que Abrão havia efetuado. Com respeito ao mensagei-
ro que relatara a Abrão a mortandade em Sodoma, não aceito o que
alguns supõem, a saber, que ele era um homem piedoso. Ao contrá-
rio, podemos supor que, como um fugitivo de casa, que se viu priva-
do de todos os seus bens, ele se dirigiu a Abrão para tirar proveito
de sua bondade. Que Abrão é chamado hebreu, não o explico como
oriundo de haver ele atravessado o rio, conforme a opinião de al-
guns, e sim por descender de Héber. Pois é um nome de descen-
dente. E aqui o Espírito Santo uma vez mais anuncia honrosamente
aquela descendência como sendo abençoada por Deus.
Os quais eram aliados de Abrão. Tudo indica que, com o pas-
sar do tempo, Abrão teve liberdade para fazer aliança e amizade
com os príncipes da terra, pois as suas virtudes heroicas fizeram
com que eles o considerassem como alguém que, de modo algum,
poderia ser desprezado. E mais: como ele tinha uma família tão
imensa, podia ser também catalogado entre os reis, se ele não fos-
se um forasteiro e peregrino. Deus, porém, propôs prover a paz por
meio de uma aliança relativa às coisas temporais, para que ele ja-
mais se misturasse àquelas nações. Além disso, que toda essa tran-
sação foi divinamente ordenada, podemos prontamente supor com
base no fato de que seus aliados não hesitaram, apesar do grande
risco, em atacar quatro reis que (dadas as circunstâncias) eram sufi-
cientemente fortes, e estavam inflamados com a confiança da vitó-
ria. Seguramente, era muito difícil que tratassem tão favoravelmente
a um forasteiro, caso não fosse por uma ação secreta de Deus.
19. Abençoou ele a Abrão. A menos que estas duas partes da sen-
tença: “era sacerdote de Deus” e “abençoou” concordem, Moisés,
aqui, nada diria de incomum. Pois os homens abençoam mutuamen-
te uns aos outros, isto é, desejam o bem uns aos outros. Aqui, po-
rém, se descreve o sacerdote de Deus, o qual, segundo o direito de
seu ofício, santifica um inferior e sujeito a si. Pois Melquisedeque
nunca teria abençoado a Abrão, a menos que soubesse que, nesse
aspecto, ele lhe era superior. Dessa maneira, os sacerdotes levíticos
têm a ordem de abençoar o povo; e Deus promete que a bênção se-
ria eficaz e ratificada [Nm 6.23]. Assim Cristo, quando estava para
ascender ao céu, erguendo as suas mãos, abençoou os apóstolos,
na qualidade de ministro da graça de Deus [Lc 24.51], e então foi
exibida a veracidade dessa figura. Pois ele testifica que o ofício de
abençoar a Igreja, o qual fora prefigurado em Melquisedeque, lhe
fora designado por seu Pai.
Bendito seja Abrão pelo Deus Altíssimo. O propósito de Mel-
quisedeque é confirmar e ratificar a graça da vocação divina ao san-
to Abrão; pois ele realça a honra com que Deus peculiarmente o
honrara, separando-o de todos os demais, e adotando-o como seu
próprio filho. E chama Deus, por quem Abrão fora escolhido, de
aquele “que possui os céus e a terra”, para distingui-lo dos ídolos
fictícios dos gentios. Depois, de fato, outros títulos são dados a
Deus para que, por alguma marca peculiar, ele se tornasse mais cla-
ramente conhecido aos homens, os quais, por causa da vaidade de
sua mente, quando simplesmente ouvem de Deus como o Criador
do céu e terra, nunca cessam de divagar, até que se achem perdi-
dos em suas próprias especulações.
Visto, porém, que Deus já era conhecido de Abrão, e sua fé es-
tava fundada em muitos milagres, Melquisedeque julga suficiente
declarar, pelo título o Criador, que, aquele a quem Abrão cultuava é
o verdadeiro e único Deus. E, embora o próprio Melquisedeque
mantivesse o sincero culto ao verdadeiro Deus, contudo chama
Abrão “bendito de Deus”, com relação à aliança eterna, como se
quisesse dizer que, por um tipo de direito hereditário, a graça de
Deus residia em uma família e nação, porque somente Abrão fora
escolhido dentre o mundo inteiro. Em seguida, acrescenta-se uma
congratulação especial pela vitória obtida; não como se costuma fa-
zer entre os homens profanos, que ensoberbecem uns aos outros
com inflados elogios; mas Melquisedeque rende graças a Deus e
considera a vitória que o santo homem conquistou como sendo um
selo de sua graciosa vocação.
1 Uma referência ao mito grego de Deucalião e Pirra. Segundo esse mito, Deucalião e Pir-
ra foram os únicos sobreviventes de um dilúvio. Com o intuito de repovoar a terra, eles diri-
giram-se aos deuses para saber como poderiam criar uma nova raça. Ao consultarem o
oráculo, eles receberam a seguinte resposta: “Saiam do templo com a cabeça coberta e as
vestes desatadas, e atirai para trás os ossos de vossa mãe”. Deucalião chegou à conclu-
são de que a Terra era a mãe comum de todos e as pedras seriam os seus ossos. Assim,
ambos cobriram a cabeça, folgaram as vestes, apanharam as pedras e atiraram-nas para
trás. As pedras amoleceram e começaram a tomar forma humana. As pedras atiradas pe-
las mãos do homem tornaram-se homens; e aquelas atiradas pelas mãos da mulher torna-
ram-se mulheres.
2 Literalmente: estender a mão.
C A P ÍT U L O 1 5
4. Não será esse o teu herdeiro. Podemos inferir que Deus apro-
vara o desejo de Abrão. De onde também segue outro ponto: que
Abrão não fora impelido por qualquer afeto carnal a oferecer essa
oração, e sim por um piedoso e santo desejo de desfrutar da bênção
que lhe fora prometida. Pois Deus não só lhe promete um descen-
dente, mas um grande povo, cujo número seria semelhante ao das
estrelas do céu. Quem expõe a passagem alegoricamente, sugerin-
do que lhe foi prometida uma semente celestial, a qual poderia ser
comparada às estrelas, pode ficar com sua própria opinião; nós, po-
rém, mantemos o que é mais razoável, a saber, que a fé de Abrão
seria aumentada pela visão das estrelas. Porque o Senhor, a fim de
afetar mais profundamente seu próprio povo e mais eficazmente pe-
netrar sua mente, depois de haver atingido seus ouvidos por sua pa-
lavra, também detém seus olhos pelos símbolos externos, para que
olhos e ouvidos possam consentir juntos.
Portanto, a visão das estrelas não era supérflua; mas a inten-
ção de Deus era impactar a mente de Abrão com o seguinte pensa-
mento: “Aquele que somente por sua palavra produziu de repente
uma hoste tão numerosa pela qual pudesse adornar o céu anterior-
mente vasto e desolado, não seria capaz de encher minha desolada
casa com uma descendência?”. Entretanto, não é necessário supor
que a visão ocorreu à noite – porque as estrelas, que durante o dia
escapam à nossa vista, então apareceriam – pois, visto que tudo
ocorreu por meio de uma visão, Abrão tinha uma maravilhosa cena
posta diante de si, que manifestamente lhe revelaria coisas ocultas.
Portanto, embora ele provavelmente não tenha movido sequer um
pé, era ainda possível que na visão ele fosse levado para fora de
sua tenda.
Agora surge a questão concernente a quem se refere a descen-
dência da promessa. E é indubitável que nem a posteridade de Is-
mael nem a de Esaú devem ser levadas em conta neste relato, por-
que a descendência legítima deve decorrer da promessa, a qual
Deus determinou que permaneceria em Isaque e Jacó; contudo, sur-
ge a mesma dúvida concernente à descendência de Jacó, porque
muitos dos seus descendentes que geraram uma descendência se-
gundo a carne foram eliminados, como filhos degenerados e estra-
nhos, da fé de seus pais. Eu respondo que o termo “descendência”
se estende, indiscriminadamente, a todo o povo que Deus adotara
para si. Visto, porém, que muitos foram separados por sua increduli-
dade, devemos buscar conhecimento em Cristo, o único que distin-
gue os filhos verdadeiros e genuínos daqueles que são ilegítimos.
Ao seguir esse método, descobrimos a descendência de Abrão re-
duzida a um pequeno número, para que mais tarde ela fosse multi-
plicada. Pois em Cristo os gentios também são congregados e, pela
fé, são enxertados no corpo de Abrão, a ponto de terem um lugar
entre seus filhos legítimos. Discorreremos mais sobre esse ponto no
capítulo 17.
10. Partiu-os pelo meio. Para que nenhuma parte desse sacrifício
seja destituída de mistério, certos intérpretes não se cansam de pro-
duzir sutilezas; mas, como já declarei, é nosso dever cultivar a sobri-
edade. Confesso que não sei por que lhe foi ordenado tomar três ti-
pos de animais além das aves, a não ser que fosse para que, por
essa própria variedade, se declarasse que toda a posteridade de
Abrão, não importa que posição ocupasse, seria oferecida em sacri-
fício, de modo que todo o povo, e cada indivíduo, constituísse um só
sacrifício. Há ainda algumas coisas sobre as quais, se ninguém curi-
osamente buscar a razão, não me envergonharei de reconhecer mi-
nha ignorância, porque prefiro não me perder discutindo hipóteses
pouco prováveis. Além disso, esta, em minha opinião, é a suma do
todo: que Deus, ao ordenar que animais fossem mortos, mostra qual
será a futura condição da Igreja. Abrão certamente desejava se as-
segurar da prometida herança da terra. Agora ele é instruído a to-
mar a morte como ponto de partida, isto é, que ele e seus filhos de-
vem morrer para que desfrutem do domínio sobre a terra.
Ao ordenar que os animais mortos fossem divididos em duas
partes, é provável que Deus seguisse o modelo do antigo rito de
constituir alianças, quer fosse para entrar em aliança, quer fosse
para convocar um exército, uma prática muito comum entre os po-
vos. Ora, os aliados ou soldados passavam por entre as partes se-
paradas, para que, sendo colocados dentro do sacrifício, eles pu-
dessem ser mais solenemente unidos em um só corpo. Que esse
modelo foi praticado pelos judeus, Jeremias dá testemunho [34.18],
relatando as palavras de Deus: “Farei aos homens que transgredi-
ram minha aliança e não cumpriram as palavras da aliança que fize-
ram perante mim como eles fizeram com o bezerro que dividiram em
duas partes, passando eles pelo meio das duas porções.”. Contudo,
o real motivo para a realização desse ato parece ter sido o seguinte:
que o Senhor de fato admoestaria a posteridade de Abrão, não ape-
nas que ela se assemelharia a uma simples carcaça, mas sim a
uma carcaça dilacerada e dissecada. Pois a servidão com que fo-
ram oprimidos por algum tempo foi mais tolerável do que a simples
morte; contudo, visto que o sacrifício é oferecido a Deus, a própria
morte é imediatamente transformada em nova vida.
A razão pela qual Abrão, colocando as partes do sacrifício uma
ao lado da outra, posiciona as partes de modo correspondente é
porque elas seriam novamente reunidas. Mas quão difícil é a restau-
ração da Igreja e quantas dificuldades estão envolvidas nesse pro-
cesso, fica evidente pelo horror que tomou conta de Abrão. Vemos,
pois, que duas coisas foram ilustradas, a saber, a dura servidão,
com a qual os filhos de Abrão iriam sofrer quase à dilaceração e
destruição; e, depois, sua redenção, que seria o magistral penhor da
adoção divina. Semelhantemente, a condição geral da Igreja nos é
representada, a saber, o modo peculiar de Deus agir para criá-la do
nada e erguê-la da morte.
15. E tu irás para teus pais em paz. Até aqui o Senhor se refere ao
próprio Abrão e também à sua posteridade, para que a consolação
fosse comum a todos; agora, porém, ele se direciona somente a
Abrão, porque ele precisava de confirmação específica. E o remédio
proposto para alívio de sua tristeza era que ele morreria em paz, de-
pois de haver alcançado uma idade avançada. Em minha opinião, é
frívola a explicação dada por alguns de que ele morreria de modo
natural, livre de violência, ou uma morte serena, em que suas forças
vitais cessariam espontânea e naturalmente, e sua própria vida de-
cairia por sua própria velhice, sem experimentar qualquer tipo de
dor. Pois Moisés deseja expressar que Abrão teria uma longa e tran-
quila velhice, com uma correspondente morte alegre e serena. O
sentido, pois, é que, embora ao longo de toda sua vida Abrão tinha
de ser privado da posse da terra, ele desfrutaria da mais pura tran-
quilidade e alegria, de modo que, ao ter um final de vida feliz, parti-
ria alegremente para seus pais.
E, certamente, a morte faz a grande distinção entre os réprobos
e os filhos de Deus, embora a condição na presente vida seja co-
mum a ambos, exceto que os filhos de Deus têm, de longe, as pio-
res condições. Portanto, de modo justo, paz e morte devem ser con-
sideradas como um benefício singular, porque constituem uma pro-
va daquela distinção que acabo de referir-me. Mesmo não tendo
muita luz, os escritores profanos têm percebido isso. Platão, em seu
livro A República (livro 1), cita um cântico de Píndaro, no qual ele diz
que aqueles que vivem justa e piedosamente são assistidos por
uma doce esperança a acalentar seu coração e a nutrir sua velhice;
esperança que principalmente governa a mente oscilante dos ho-
mens. Porque os homens, conscientes de culpa, devem, de modo
necessário, ser miseravelmente acometidos por diversos tormentos;
o poeta, quando afirma que a esperança é a recompensa de uma
boa consciência, a chama de “a ama da velhice”. Pois, semelhante-
mente aos jovens, enquanto distante da morte, se deleitam descui-
dadamente, os idosos são admoestados, por sua própria fraqueza, a
refletir seriamente sobre o fato de que devem partir. Agora, a menos
que a esperança de uma vida melhor os inspire, nada lhes resta se-
não miseráveis temores.
Finalmente, como os réprobos se deleitam durante toda sua
vida e se entregam estupidamente em seus vícios, é necessário que
sua morte seja cheia de tribulação; enquanto que os fiéis entregam
sua alma nas mãos de Deus, sem temor e tristeza. Por isso Balaão
também se vê obrigado a bradar: “Que eu morra a morte dos justos”
[Nm 23.10]. Além disso, posto que os homens não têm em seu pró-
prio poder o fim desejável da vida, o Senhor, ao prometer a seu ser-
vo Abrão uma morte tranquila e serena, nos ensina que ela é um
dom seu. E vemos que até mesmos os reis, e outros que se julgam
felizes neste mundo, ainda tremem diante da morte, porque são visi-
tados com remorsos secretos por seus pecados, e nada esperam na
morte senão destruição. Abrão, porém, voluntária e alegremente,
avançou para a sua morte, visto que em Isaque tinha uma firme ga-
rantia da bênção divina, e tinha certeza de que uma vida melhor es-
tava reservada para ele no céu.
17. E eis um fogareiro fumegante. Outra vez, uma nova visão foi
acrescentada para confirmar sua fé no oráculo. A princípio, Abrão fi-
cou aterrorizado com as densas trevas; agora, no meio de um foga-
reiro fumegante, ele vê uma tocha acesa. Muitos supõem que um
sacrifício foi consumido por esse fogo; eu, em vez disso, o interpreto
como um símbolo de livramento futuro, o qual se harmoniza com o
próprio fato. Pois há duas coisas que, aparentemente, são contrári-
as: a obscuridade da fumaça e o brilho de uma tocha. Por isso
Abrão bem sabia que a luz, por fim, surgiria das trevas. Deve-se
buscar sempre uma analogia entre os sinais e as coisas significa-
das, para que haja uma correspondência entre eles. Então, visto
que o símbolo, por si só, é apenas um “cadáver” sem vida, deve-se
fazer sempre uma referência à palavra que está ligada à ele. Aqui,
porém, por meio da palavra, a liberdade foi prometida à descendên-
cia de Abrão, em meio à sua servidão. Ora, a condição da Igreja não
poderia ser pintada com mais vida do que quando Deus faz uma to-
cha fumegante proceder da fumaça, a fim de que as trevas das afli-
ções não nos sufoquem totalmente, mas que sejamos acalentados
pela boa esperança de vida mesmo na morte, porque o Senhor, por
fim, brilhará sobre nós, se simplesmente nos oferecermos em sacri-
fício a ele.
1 Muito provavelmente, Calvino tem em vista o tempo que se interpôs entre a entrega do
oráculo e o êxodo do Egito.
C A P ÍT U L O 1 6
3. Deu-a por mulher a Abrão, seu marido. Moisés declara qual foi
o real propósito de Sarai, pois ela não intentara fazer de sua casa
um bordel, nem ser a prevaricadora da castidade de sua serva, nem
alcoviteira de seu marido. Contudo, Agar é impropriamente denomi-
nada esposa, porquanto ela foi introduzida no leito de outra pessoa,
contra a lei de Deus. Portanto, saibamos que essa conexão estava
tão longe de ser lícita, a ponto de ser algo entre fornicação e matri-
mônio. A mesma coisa sucede com todas aquelas invenções que
são acrescentadas à palavra de Deus. Porque, seja qual for o justo
pretexto com que se acobertem, há uma corrupção inerente, a qual
degenera a pureza da palavra e a tudo vicia.
4. Foi sua senhora por ela desprezada. Aqui Moisés relata que a
punição da excessiva precipitação veio imediatamente. De fato, a
culpa principal repousava sobre Sarai; no entanto, visto que Abrão
se mostrou tão ingênuo, Deus castiga a ambos, conforme bem me-
reciam. Sarai é, dolorosa e amargamente, provada pelo arrogante
menosprezo de sua serva; Abrão é perturbado por queixas injustas.
Assim, vemos que ambos pagam o preço de sua respectiva levian-
dade, e que o artifício planejado por Sarai, e tão avidamente abraça-
do por Abrão, não tem sucesso. Contudo, em Agar um exemplo de
ingratidão é colocado diante de nós, porquanto ela, tendo sido trata-
da com singular bondade e honra, começa a desprezar sua senho-
ra. Entretanto, posto que essa é uma doença mental excessivamen-
te comum, que os fiéis se acostumem a suportá-la, se em algum
momento lhes for feita uma represália tão injusta, em resposta a
seus atos de bondade. Mas, especialmente, que a fraqueza de Sarai
nos mova a agir assim, já que ela foi incapaz de suportar o menos-
prezo de sua serva.
15. E Abrão, a seu filho que lhe dera Agar, chamou-lhe Ismael. A
Agar foi ordenado dar a seu filho aquele nome. Moisés, porém, se-
gue a ordem da natureza, porque os pais, pela imposição do nome,
declaram o poder que têm sobre seus filhos. Podemos facilmente
deduzir que, quando voltou para casa, Agar relatou os eventos que
ocorreram. Portanto, Abrão se mostra obediente e agradecido a
Deus, porque tanto dá nome a seu filho, em conformidade com o
mandamento do anjo, como também celebra a bondade de Deus em
haver atentado para as misérias de Agar.
C A P ÍT U L O 1 7
2. Farei uma aliança entre mim e ti. Deus então passa a explicar,
mais plena e abundantemente, o que antes dissera sucintamente.
Já dissemos que a aliança de Deus com Abrão tinha duas partes. A
primeira era uma declaração de amor gratuito, à qual foi acrescenta-
da a promessa de uma vida feliz. Mas a outra era uma exortação ao
esforço sincero de se cultivar a retidão, visto que Deus havia dado,
numa única palavra apenas, pequena demonstração de sua graça;
por isso, imediatamente, se dirigiu ao propósito de sua vocação, a
saber, que Abrão fosse íntegro. Ele agora inclui uma declaração
mais ampla de sua graça, para que Abrão se esforçasse mais es-
pontaneamente a moldar sua mente e sua vida, tanto à reverência
para com Deus quanto ao cultivo da retidão, como se Deus disses-
se: “Vê quão bondosamente eu ajo para contigo, pois não exijo de ti
integridade simplesmente por conta de minha autoridade, o que eu
posso fazer com justiça, mas, enquanto nada te devo, condescendo-
me graciosamente a fazer uma aliança mútua.”.
Entretanto, Deus não diz isso como algo novo; porém, traz à
memória a aliança que fizera anteriormente, e agora a confirma ple-
namente e estabelece sua certeza. Pois Deus não costuma pronun-
ciar novos oráculos que porventura destruam a credibilidade, ou
obscureçam a luz, ou enfraqueçam a eficácia daqueles oráculos an-
teriormente dados; porém dá sequência, de modo contínuo, àquelas
promessas que uma vez ele deu. Portanto, por essas palavras, ele
nada mais deseja senão que a aliança, da qual Abrão já ouvira, se-
ria estabelecida e confirmada; porém, expressamente introduz aque-
le ponto primordial, concernente à multiplicação da descendência, o
que mais adiante reitera com frequência.
10. Entre mim e vós. Com isso, somos ensinados que um sacra-
mento não diz respeito somente à confissão externa, mas é um
compromisso entre Deus e a consciência do homem. Portanto,
quem quer que não se dirija a Deus através do sacramento, profana
seu uso. Mas, pela figura de metonímia, o nome aliança é transferi-
do para a circuncisão, que está tão vinculada à palavra que não po-
deria separar-se dela.
Todo macho entre vós será circuncidado. Embora Deus pro-
metesse tantos aos machos quanto às fêmeas o que mais tarde
sancionou pela circuncisão, contudo consagrou para si, em um só
sexo, todo o povo. Pois, uma vez que, por esse símbolo, a promes-
sa que foi dada indiscriminadamente aos machos e às fêmeas é
confirmada – e é indubitável que tanto as fêmeas quanto os machos
tinham necessidade de confirmação – é evidente, portanto, que o
símbolo fora ordenado por causa dos dois sexos. Também não faz
nenhum sentido, em oposição a esse raciocínio, dizer (com base no
fato de que nenhum proveito é recebido por aqueles que negligenci-
am o uso do sacramento) que, se o uso dos sacramentos traz bene-
fício, cada indivíduo é ordenado a comungar deles. Pois a aliança
de Deus foi gravada no corpo dos machos com esta condição ane-
xa: que as fêmeas também, por estarem a eles vinculadas, fossem
participantes do mesmo sinal.
12. O que tem oito dias será circuncidado. Deus, então, prescre-
ve o oitavo dia para a circuncisão; isso mostra uma parte daquela
disciplina sob a qual ele queria manter seu antigo povo, pois, em
nossos dias, maior liberdade se permite na ministração do batismo.
Alguns, porém, sustentam que não devemos contender ardoro-
samente sobre o número de dias, porque o Senhor poupou as crian-
ças em razão de seu estado tenro, visto que não ser risco infligir
uma ferida sobre aqueles que eram recém-nascidos. Pois, embora
tivesse provido para que a circuncisão não produzisse nenhum dano
ou vergonha, não haveria nenhum absurdo dizer que Deus levou em
conta a tenra idade, a fim de provar aos judeus seu paterno amor
para com seus filhos. Alguns acham que isso parece ser indiferente
e, por isso, buscam um mistério espiritual no número de dias. Eles
pensam que a presente vida é alegoricamente significada pelos sete
dias, e que Deus ordenou que as criancinhas fossem circuncidadas
no oitavo dia para mostrar que, embora devamos dar atenção à
mortificação da carne durante todo o curso de nossa vida, ela não
será completada até o fim. Agostinho também pensava que ela tinha
referência à ressurreição de Cristo, por meio da qual a circuncisão
externa foi abolida e a verdade da figura foi exibida. É provável, e
em consonância com a razão, que o número sete designasse o cur-
so da presente vida. Portanto, o oitavo dia pareceria ser fixado pelo
Senhor para prefigurar o início de uma nova vida. Visto, porém, que
tal razão nunca é dada na Escritura, nada ouso afirmar sobre isso.
Por isso, que seja suficiente manter o que é certo e sólido, a saber,
que Deus, nesse símbolo, de tal modo representou a destruição do
velho homem para mostrar que ele restaura os homens à vida.
Tanto o escravo nascido em casa como o comprado a qual-
quer estrangeiro. Quando Deus ordena a Abraão que circuncidas-
se a todos os que estavam sob seu poder, nisto se faz notório o
amor especial para com o santo Abraão: que Deus, em sua graça,
abraça toda a família de Abraão. Sabemos que outrora os escravos
raramente eram contados entre o número dos homens. Deus, po-
rém, com relação ao seu servo Abraão, os adota como seus própri-
os filhos; a essa mercê não se pode acrescentar nada mais. O orgu-
lho da carne também é humilhado porque Deus, sem fazer acepção
de pessoas, congrega tanto homens livres quanto escravos. Mas, na
pessoa de Abraão, ele prescreveu uma lei a todos os seus servos, a
saber, que eles devem se esforçar para trazer todos os que lhes es-
tão sujeitos para a mesma comunidade da fé, pois cada família dos
piedosos deve ser uma igreja. Portanto, se quisermos provar nossa
piedade, temos que lutar para que cada um de nós tenha sua casa
ordenada na obediência a Deus. E a Abraão não apenas se ordena
que dedique e ofereça a Deus os nascidos em sua casa, mas tam-
bém tantos quantos porventura ele venha a adquirir posteriormente.
15. A Sarai, tua mulher. Deus então promete a Abraão uma des-
cendência legítima por meio de Sarai. Ela fora (como eu já disse)
demasiadamente precipitada quando substituiu a si própria por sua
serva, sem qualquer ordem de Deus. Abraão também fora tão flexí-
vel em seguir sua esposa que, tola e apressadamente, quis anteci-
par o desígnio de Deus. Contudo, esse erro em conjunto não impe-
diu a Deus de fazê-los saber que estava prestes a dar-lhes aquela
descendência, de cuja expectativa eles tinham, de certa maneira, se
excluído. Isso faz com que a bondade graciosa de Deus brilhe mais
claramente, porque, embora os homens tentem impedir o curso dela
por seus próprios obstáculos, contudo ela os alcança.
Além disso, Deus muda o nome de Sarai para que ele pudesse
estender a preeminência dela por toda parte, o que, em seu nome
anterior, havia sido mais restrito. Pois a letra (yod), entre os he-
breus, tem a função do pronome possessivo. Sendo essa letra ago-
ra removida, Deus designa que Sara seja louvada por toda parte, e
sem exceção, como uma soberana e princesa. E isso é expresso no
contexto em que Deus promete que lhe daria um filho, de quem, por
fim, nasceriam nações e reis. E, embora à primeira vista essa bên-
ção pareça muito ampla, pelas palavras aqui empregadas ela seria
muito mais rica do que parece ser, como veremos mais adiante.
23. Tomou, pois, Abraão a seu filho Ismael. Moisés agora enalte-
ce a obediência de Abraão porque, como lhe foi ordenado, ele cir-
cuncidou a toda sua família. Pois ele, necessariamente, deve ter se
dedicado inteiramente a Deus, visto que não hesitou infligir a si uma
ferida acompanhada com profunda dor, e não sem risco da vida. A
isso se pode acrescentar a circunstância do tempo, a saber, que ele
não adiou a obra, mas obedece imediatamente ao mandato divino.
Entretanto, não há dúvida de que ele lutava contra vários pen-
samentos perplexos. Para não mencionar tantos outros, este teria
penetrado sua mente: “No tocante a mim, que tenho sido por tanto
tempo perturbado com muitas adversidades e levado a diferentes
exílios, no entanto nunca me separei da palavra de Deus, se por
esse sinal ele me consagraria a si como servo, por que ele adiou
para a minha extrema velhice? O que significa isso, senão que eu
não possa ser salvo a menos que, com um pé já quase no túmulo,
eu me veja mutilado?”. Mas esta era uma notável prova de obediên-
cia: que, havendo vencido todas as dificuldades, rapidamente e sem
demora, seguiu para onde Deus o chamou. E, ao agir assim, ele deu
um exemplo de fé não menos excelente porque, a menos que tives-
se abraçado as promessas de Deus, de modo algum teria se torna-
do tão pronto a obedecer. Disso, pois, se originou sua notável es-
pontaneidade, posto que ele pusera a palavra de Deus em oposição
às várias tentações que pudessem perturbar sua mente e o arrastar
a direções contrárias.
Aqui, duas coisas são ainda dignas de observação. A primeira
delas é que Abraão não foi impedido, pela dificuldade da obra, de
consagrar a Deus o dever que lhe devia. Sabemos que ele tinha
uma grande multidão em sua casa, quase equiparada a uma nação.
Dificilmente se podia crer que tantos homens permitissem ser feri-
dos [com a circuncisão], o que poderia se tornar um motivo de riso.
Portanto, com razão, era de se temer que ele provocasse um gran-
de tumulto em sua tranquila família; sim, que, por um impulso natu-
ral, a maioria de seus servos se levantasse contra ele. Contudo,
confiando na palavra de Deus, ele tenta com todas as suas forças o
que parecia impossível.
Em segundo lugar, vemos como a sua família foi fielmente ins-
truída, porque não apenas seus escravos nascidos em casa, mas os
estrangeiros e os homens comprados com dinheiro, mansamente
recebem a cirurgia, que era tão incômoda e ocasião de vergonha
para a percepção carnal. Parece, pois, que Abraão diligentemente
cuidou de prepará-los para a devida obediência. E, visto que os
manteve sob a santa disciplina, ele recebeu o galardão de sua pró-
pria diligência, achando-os tão tratáveis numa situação tão difícil.
Assim, em nossos dias, Deus parece ordenar algo impossível quan-
do requer que seu evangelho seja proclamado em cada lugar no
mundo inteiro, com o propósito de restaurá-lo da morte para a vida.
Pois vemos quão grande é a obstinação de quase todos os homens,
e que numerosos e poderosos métodos de resistência Satanás em-
prega, de modo que, em suma, todas as vias de acesso a esses
princípios se acham obstruídas. Contudo, cabe aos indivíduos cum-
prir seu dever e não ceder diante dos impedimentos; e, finalmente,
nossos esforços e nossos labores de modo algum deixarão de ter
sucesso, mesmo que este ainda não seja visto.
9. Sara, tua mulher, onde está? Até então, Deus permitiu que
Abraão cumprisse um dever óbvio. Mas, tendo-lhe dado a oportuni-
dade de exercitar a caridade, Deus então começa a manifestar-se
em seus anjos. A razão pela qual Moisés apresenta, a um só tempo,
três oradores, enquanto que, em outro momento, ele atribui o discur-
so somente a um, significa que os três, juntos, representam a pes-
soa de um só Deus. Devemos ainda lembrar o que eu recentemente
sugeri: que a apenas um se dá o principal lugar porque Cristo, que é
a imagem viva do Pai, às vezes aparecia aos pais sob a forma de
um anjo, enquanto que, ao mesmo tempo, ele ainda tinha por seus
assistentes anjos de quem era o Cabeça. E quanto à questão de ele
perguntar sobre Sara, podemos inferir que, novamente, se promete
a Abraão um filho, porque ela não esteve presente no oráculo anteri-
or.
10. Certamente voltarei a ti. Na Vulgata, Jerônimo traduz essa ex-
pressão por: “Eu voltarei, a vida me acompanhando”, como se Deus,
falando de uma maneira humana, dissesse: “Eu voltarei, se eu vi-
ver.”. Mas seria absurdo que Deus, que aqui proclama seu poder de
modo tão magnificente, emprestasse do homem uma forma de lin-
guagem que o pressuporia como sendo mortal. Sendo assim, que
majestade, pergunto, possuiria esse notável oráculo, que trata da
eterna salvação do mundo? Portanto, essa interpretação de modo
algum pode ser aprovada, pois mina inteiramente a força e autorida-
de da promessa. A expressão é traduzida literalmente por: “de acor-
do com o tempo de vida.”. O que alguns aplicam a Sara, como se o
anjo dissesse que Sara sobreviveria até aquele período. Mas é mais
adequadamente aplicada ao filho, pois Deus promete que viria, no
justo e devido tempo de dar à luz, para que Sara se tornasse a mãe
de um menino vivo.
15. Então, Sara, receosa, o negou. Outro pecado de Sara foi que
ela se esforçou para encobrir e ocultar seu riso por meio de uma fal-
sidade. Contudo, esse pretexto não procedeu da perversidade obsti-
nada, de acordo com o método que os hipócritas costumam usar em
seus subterfúgios, de modo que permaneçam como se nada tivesse
acontecido. Os sentimentos de Sara eram diferentes, pois, enquanto
se arrepende de sua própria tolice, ela se sente tão aterrorizada que
nega que fizera o que agora percebe ser desagradável a Deus. Dis-
so inferimos quão profunda é a corrupção de nossa natureza, que
inclusive faz com que o temor de Deus – a mais elevada de todas as
virtudes – se degenere em um erro. Além disso, devemos observar
de onde esse temor, do qual Moisés faz menção, de repente pene-
trou a mente de Sara, a saber, da consideração de que Deus havia
descoberto seu pecado secreto. Vemos, pois, como a majestade de
Deus nos desperta de nossa insensibilidade, quando tal majestade é
seriamente reconhecida por nós. Somos mais especialmente cons-
trangidos a nos sentir assim quando Deus sobe ao seu tribunal e
manifesta os nossos pecados.
Não é assim, é certo que riste. O anjo não discute com muitas
palavras, mas refuta diretamente a falsa negação do fato por parte
de Sara. Disso podemos aprender que, quando o Senhor nos repro-
va, não podemos levar vantagem por meio de evasivas, porque ele
resolverá imediatamente nosso caso com uma única palavra. Por-
tanto, devemos ter cuidado para não imitarmos a insolência dos que
zombam de Deus com falsos pretextos e, por fim, apressam-se
para, de modo grosseiro, desprezá-lo. Por mais que possa parecer
que ele nos deixou passar despercebido por algum tempo, contudo
nos fulminará com aquela terrível voz: “Não é como finges.”. Em
suma, não basta que o juízo de Deus seja reverenciado, a menos
que também confessemos nossos pecados sinceramente, sem sub-
terfúgios e evasivas. Pois uma dupla condenação aguarda aqueles
que, desejando escapar do juízo de Deus, recorrem ao refúgio da
dissimulação. Devemos, pois, apresentar uma sincera confissão,
para que, como pessoas publicamente condenadas, obtenhamos o
perdão.
Visto, porém, que Deus se contentou apenas em ministrar uma
amigável repreensão, e que ele não puniu mais severamente a du-
pla ofensa de Sara, podemos perceber com que terna benevolência
algumas vezes ele trata seu próprio povo. Zacarias foi tratado mais
severamente, o qual foi ferido com mudez por nove meses [Lc 1.9].
Mas não nos cabe prescrever a Deus uma lei perpétua de modo
que, como ele geralmente conduz seu próprio povo ao arrependi-
mento mediante castigos, não possa às vezes achar por bem humi-
lhá-los suficientemente, sem infligir qualquer castigo. Em Sara, de
fato, ele dá um singular exemplo de sua compaixão porque gracio-
samente a perdoa plenamente e ainda decide que ela permaneça a
mãe da Igreja. Contudo, devemos observar quão preferível é que
sejamos conduzidos à sua presença como culpados, e que, seme-
lhante a pessoas condenadas, devemos manter silêncio, em vez de
nos deleitarmos no pecado, como uma grande parte do mundo cos-
tuma fazer.
16. Tendo-se levantado dali aqueles homens. Mais uma vez, Moi-
sés chama homens àqueles a quem abertamente declarou serem
anjos. Mas ele lhes dá o nome com base na forma que haviam as-
sumido. No entanto, não estamos supondo que eles estavam envol-
tos com corpos humanos, da mesma maneira que Cristo se vestiu
de nossa natureza, juntamente com nossa carne. Deus, porém, os
vestiu com corpos temporários, nos quais pudessem ser visíveis a
Abraão e pudessem falar com ele de modo familiar. Lemos que
Abraão os conduziu pelo caminho; não com o intuito de ser cortês,
como quando os recebera a princípio, mas para render aos anjos a
honra devida. Pois frívola é a opinião de alguns que imaginam que
eles eram profetas, que haviam sido expulsos por causa da palavra.
Abraão bem sabia que eram anjos, como veremos mais claramente.
Mas ele acompanha pelo caminho aqueles a quem não ousava de-
ter.
17. Ocultarei a Abraão o que estou para fazer? Vemos aqui que
Deus toma conselho como se tivesse dúvida, mas ele age assim por
causa dos homens, pois já havia determinado o que faria. Mas sua
intenção, ao agir assim, era tornar Abraão mais atento à considera-
ção das causas da destruição de Sodoma. Deus alega duas razões
pelas quais desejava manifestar seu desígnio a Abraão, antes de re-
alizá-lo. A primeira é que Deus já lhe havia concedido um privilégio
singularmente honroso; a segunda é que tal atitude seria útil e frutí-
fera na instrução da sua descendência. Portanto, na expressão
“Ocultarei de Abraão o que estou para fazer?”, o escopo e uso da
revelação são brevemente observados.
18. Visto que Abraão certamente virá a ser uma grande e pode-
rosa nação. Em hebraico é “e sendo, ele será” etc. Mas a copulati-
va deve ser transformada no advérbio causal. Pois esta é a razão à
qual eu já aludi por que Deus preferiu informar a seu servo da terrí-
vel vingança que ele estava para infligir sobre os homens de Sodo-
ma, a saber, que ele o adornara, acima dos demais, com dons pecu-
liares. Pois, dessa maneira, Deus dá sequência a seus atos de bon-
dade para com os fiéis, sim, e até os aumenta e gradualmente con-
cede novos favores àqueles anteriormente concedidos. E ele diaria-
mente nos trata da mesma maneira. Pois, qual é a razão pela qual
ele nos oferece inumeráveis e constantes benefícios, senão que, ha-
vendo uma vez nos abraçado com amor paternal, ele não pode ne-
gar-se a si mesmo? E, portanto, de certa maneira, ele honra a si
mesmo e aos seus dons em nós. Pois o que Deus aqui celebra, se-
não os seus próprios dons gratuitos? Portanto, ele remonta a si
mesmo a causa de sua beneficência, e não aos méritos de Abraão;
pois a bênção de Abraão não fluía de nenhuma outra fonte, senão
da Fonte Divina. E aprendemos da passagem o que a experiência
também ensina: que é privilégio peculiar da Igreja saber o que signi-
fica os juízos divinos e qual é o seu objetivo.
Quando Deus inflige punição aos perversos, ele prova aberta-
mente que de fato é o Juiz do mundo; mas, porque todas as coisas
parecem suceder por acaso, o Senhor ilumina aos seus próprios fi-
lhos com sua palavra, para que não se tornem cegos juntamente
com os incrédulos. Assim, outrora, quando ele estendia sua mão so-
bre todas as regiões do mundo, ele ainda confinava sua santa pala-
vra no território da Judéia, isto é, quando ele feria todas as nações
com matança e com adversidade, ele ainda instruía a seu único
povo eleito por sua palavra, através dos profetas, que ele era o Au-
tor dessas punições. Sim, ele predizia de antemão que elas se con-
cretizariam, como se acha escrito em Amós 3.7: “Certamente, o Se-
nhor Deus não fará coisa alguma, sem primeiro revelar seu segredo
a seus servos, os profetas”. Portanto, lembremo-nos de que a partir
do momento em que Deus começa a ser bondoso conosco, ele nun-
ca se cansa, até que, ao acrescentar um favor a outro, complete
nossa salvação. Então, depois que ele nos adotou e resplandeceu
em nossa mente por sua palavra, ele mantém a tocha da mesma
palavra ardendo diante de nossos olhos, para que, pela fé, conside-
remos aqueles juízos e punições da iniquidade que os ímpios displi-
centemente negligenciam. Assim, ele faz com que os fiéis se empe-
nhem em refletir sobre as histórias de todos os tempos para que
sempre formem, com base na Escritura, seu juízo sobre as várias
destruições que, privativa e publicamente, caíram sobre os ímpios.
Mas, questiona-se: era necessário que a destruição de Sodoma
fosse explicada a Abraão antes que acontecesse? Eis minha res-
posta: visto que somos tão lentos em considerar as obras de Deus,
essa revelação de modo algum era supérflua. Embora o Senhor pro-
clame claramente que a adversidade é a vara de sua ira, raramente
alguém atenta para essa verdade porque, através das imaginações
depravadas de nossa carne, atribuímos o sofrimento a alguma outra
causa. Mas a admoestação, que precede o evento, não nos permite
ficar entorpecidos, nem nos permite imaginar que o acaso ou algu-
ma outra coisa que possamos imaginar esteja no lugar da palavra
de Deus. Assim, necessariamente acontecia, nos tempos antigos,
que, mesmo como o coração endurecido, as pessoas eram mais im-
pactadas por essas predições do que se fossem admoestadas pelos
profetas, depois de terem recebido a punição. Portanto, com base
nisso, podemos estabelecer uma regra geral, para que os juízos de
Deus, que percebemos diariamente, não nos sejam sem proveito.
O Senhor declara a seu servo Abraão que Sodoma estava para
perecer, enquanto ainda estava de pé e no pleno desfrute de seus
deleites. Portanto, não resta dúvida de que ela não pereceu por aca-
so, mas foi submetida à punição divina. A partir disso também,
quando a causa da punição é assim declarada de antemão, será ne-
cessariamente mais eficaz para impactar e estimular a mente dos
homens. Mais adiante chegaremos à mesma conclusão, concernen-
te a outras coisas; pois, embora Deus não nos declare o que está
para fazer, ainda assim a sua intenção é que sejamos testemunhas
oculares de suas obras, e prudentemente avaliemos suas causas e
não nos deixemos ofuscar por uma confusa contemplação delas,
como fazem os incrédulos “que, vendo, não veem”, e que pervertem
seu verdadeiro desígnio.
21. Descerei e verei. Uma vez que esse acontecimento foi um ma-
gistral exemplo da ira de Deus, que desejou que fosse celebrado em
todos os séculos, e ao qual ele frequentemente menciona na Escri-
tura, Moisés diligentemente registra aquelas coisas que devam ser
especialmente consideradas nos juízos divinos; do mesmo modo,
aqui nesse texto, ele enaltece a moderação de Deus, que não fulmi-
na imediatamente os ímpios e não derrama sobre eles sua vingan-
ça, mas que, quando as coisas se tornam totalmente desesperado-
ras, finalmente executa a punição que por muito tempo havia sido
suspensa sobre eles. E o Senhor não testifica em vão que inflige pu-
nição de maneira adequada e justamente moderada porque, toda
vez que nos castiga, somos inclinados a pensar que ele age para
conosco mais severamente do que é justo. Ainda quando, com es-
pantosa paciência, ele nos aguarda até que tenhamos chegado qua-
se no limite da impiedade e nossa perversidade tenha se tornado
obstinada demais para ser poupada por mais tempo, queixamo-nos
da pressa excessiva de seu rigor. Portanto, Deus apresenta, de
modo claro, sua equidade em suportar-nos para que saibamos que
ele jamais inflige punição, exceto sobre aqueles que já estão acostu-
mados ao crime.
Agora, se, por outro lado, olharmos para Sodoma, iremos nos
deparar com um horrível exemplo de entorpecimento. Pois os ho-
mens de Sodoma vivem como se nada tivessem a ver com Deus;
não tendo senso do bem e do mal, como porcos, eles se afundam
em todo tipo de imundícia; e, como se nunca tivessem que prestar
contas de sua conduta, gloriam-se de seus vícios. Visto que essa
doença prevalece tão amplamente em todos os séculos e é atual-
mente muito comum, é importante destacar esta circunstância: en-
quanto que os homens de Sodoma, tendo rejeitado todo o temor de
Deus, estavam se satisfazendo e, por mais que pecassem, prometi-
am a si mesmos impunidade, Deus estava decidindo destruí-los e foi
movido, pelos tumultuosos clamores de suas iniquidades, a descer à
terra, enquanto eles viviam sepultados em profundo sono. Portanto,
se Deus, em algum tempo, adiar seus juízos, não pensemos, assim,
que vivemos em melhor condição, mas, antes que o clamor de nos-
sa perversidade tenha cansado seus ouvidos, nós, estimulados por
suas ameaças, apressemos imediatamente para apaziguá-lo. Entre-
tanto, porque tal paciência em Deus não pode ser compreendida por
nós, Moisés o apresenta falando em conformidade com o modo hu-
mano.
Se, de fato, o que têm praticado corresponde a esse cla-
mor. O substantivo hebraico (cala), que Moisés usa aqui, signifi-
ca a perfeição ou o fim de uma coisa, e também sua destruição. Por
isso, na Vulgata, Jerônimo o traduz por “Se o tiverem completado
em ato.”. De fato, não tenho dúvida de que Moisés declara que
Deus desceu a fim de saber se seus pecados tinham ou não atingi-
do o ponto mais alto, do mesmo modo como ele disse antes, que as
iniquidades dos amorreus ainda não estavam completas. O resumo,
pois, de tudo isso é que o Senhor iria ver se eles já estavam total-
mente desesperados, como se tivessem precipitado na profundeza
do mal, ou se estavam ainda no meio do caminho, do qual era pos-
sível que retornassem a uma mente sadia, uma vez que ele não es-
tava totalmente disposto a destruir aquelas cidades, se, por algum
método, sua perversidade fosse curável. Outros traduzem a passa-
gem assim: “Se tiverem feito isto, sua destruição final está à mão; se
não, verei até que ponto devam ser punidos.”. Mas o primeiro senti-
do está mais de acordo com o contexto.
25. Não fará justiça o Juiz de toda a terra? Aqui Abraão não ensi-
na a Deus seu dever, como se alguém dissesse a um juiz: “Veja
bem o que exige teu ofício, o que é digno desse status, o que se
adequa ao teu caráter”, mas ele raciocina a partir da natureza de
Deus, que é impossível que ele deseje algo injusto. Eu admito que,
ao usar a mesma maneira de falar, os ímpios costumam murmurar
contra Deus, mas a atitude de Abraão é bem diferente. Pois, embora
ele questione como Deus pensaria em destruir Sodoma, mesmo
sendo convencido de haver certo número de pessoas boas, Abraão
mantém este princípio: que era impossível que Deus, que é o Juiz
do mundo, e por natureza ama a equidade, sim, cuja vontade é a lei
da justiça e retidão, poderia no mínimo grau se apartar da equidade.
Abraão deseja, contudo, ser aliviado dessa dificuldade com que se
acha perplexo. Assim, sempre que diferentes tentações lutarem no
âmago de nossa mente, e alguma aparência de contradição se
apresente nas obras de Deus, que só deixemos firme a nossa per-
suasão de sua justiça, e nos seja permitido depositar em suas mãos
as dificuldades que nos atormentam, para que ele desate os nós
que não podemos desatar.
Tudo indica que Paulo tomou dessa passagem a resposta com
a qual ele reprime a blasfêmia dos que acusam a Deus de injustiça.
“Mas, se nossa injustiça traz a lume a justiça de Deus, que diremos?
Porventura será Deus injusto por aplicar sua ira? (Falo como ho-
mem.) Certo que não. Do contrário, como julgará Deus o mundo?”
[Rm 3.5, 6]. Esse método de apelo nem sempre é válido entre os juí-
zes terrenos, que algumas vezes são enganados pelo erro, ou per-
vertidos pelo favor, ou inflamados pelo ódio, ou corrompidos por ba-
julações, ou levados por outros meios a atos de injustiça. Visto, po-
rém, que Deus, a quem naturalmente pertence o julgar o mundo,
não está sujeito a nenhum desses males, segue-se que ele não
pode se afastar da equidade, da mesma forma que não pode negar
a si mesmo.
27. Eu que sou pó e cinza. Abraão fala assim com o intuito de ob-
ter perdão. Pois o que é o homem mortal, quando comparado com
Deus? Ele, pois, confessa ser ousado demais, ao interrogar a Deus
dessa maneira tão familiar. Contudo, ele deseja que esse favor lhe
fosse concedido pela misericórdia divina. Deve-se notar que, quanto
mais perto Abraão chega de Deus, mais plenamente consciente ele
se torna da condição miserável e desgraçada dos homens. Pois
basta o esplendor da glória de Deus para cobrir de vergonha e hu-
milhar totalmente os homens, quando despidos de sua tola e embri-
agada autoconfiança. Portanto, quem quer que para si mesmo pare-
ça ser algo, que volte seus olhos para Deus e imediatamente se re-
conhecerá como nada.
Abraão, de fato, não se esqueceu de que possuía uma alma
viva, mas seleciona o que era mais desprezível, para esvaziar-se de
toda dignidade. Contudo, pode parecer que Abraão apenas ironiza
sofisticamente com Deus, quando, diminuindo gradualmente o nú-
mero mencionado pela primeira vez, prossegue para sua sexta inter-
rogação. Minha resposta é que isso deve ser antes considerado
como a linguagem de uma mente perturbada. A princípio ele labuta
ansiosamente em prol dos homens de Sodoma, por isso nada omite
que pudesse servir para abrandar seu pedido. E, como o Senhor re-
petidamente lhe responde com tanta brandura, sabemos que Abra-
ão não foi considerado importuno nem aborrecível. Mas, se ele foi
bondosamente ouvido enquanto pleiteou pelos habitantes de Sodo-
ma até sua sexta petição, muito mais o Senhor atentará para as ora-
ções que qualquer um fizer pela Igreja e a família da fé.
Além disso, a humanidade de Abraão se manifesta também nis-
to: que embora saiba que Sodoma se acha embriagada das mais vis
corrupções, ele não pensa que todos estão infectados com o contá-
gio da perversidade; mas, antes, se inclina à justa suposição de
que, em tão grande multidão, era possível encontrar algumas pesso-
as justas. Pois este é um horrível prodígio: que a imundícia da ini-
quidade permeie de tal modo todo o corpo que não permita que al-
gum membro permaneça puro. Contudo, por esse exemplo, somos
ensinados como Satanás tiranicamente procede quando uma vez se
estabelece o domínio do pecado. E, certamente, visto que a propen-
são dos homens a pecar e a facilidade para pecar são tão grandes,
não surpreende que um seria corrompido por outro, até que o contá-
gio atingisse cada indivíduo. Pois nada é mais perigoso do que viver
onde prevalece a licença pública para o crime; sim, não há pestilên-
cia tão destrutiva como aquela corrupção da moral, que não é resis-
tida por leis, nem por julgamentos, nem por quaisquer outros remé-
dios. E embora Moisés, no capítulo seguinte, explique o crime tão
imundo que reinava em Sodoma, contudo, devemos nos lembrar do
que ensina Ezequiel [16.48, 49]: que os homens de Sodoma não ca-
íram imediatamente em perversidade tão execrável, mas que, no
princípio, prevaleceu a fartura de pão, e que, mais tarde, se segui-
ram o orgulho e a crueldade. Finalmente, quando foram entregues a
uma mente reprovada, também se lançaram por completo em bru-
tais concupiscências. Portanto, se tememos esse extremo de paixão
desordenada, então que cultivemos a temperança e a sobriedade, e
que sempre temamos que o excesso de alimento nos impulsione à
luxúria, para que nossa mente não seja contaminada com orgulho
por causa de nossa riqueza e que as iguarias não nos tentem a dar
rédeas soltas às nossas concupiscências.
12. Tens aqui alguém mais dos teus? Por fim, os anjos declaram
a que propósito vieram e o que estavam prestes a fazer. Pois tão
imensa era a indignidade do último ato desse povo, que Ló então
percebe que era impossível Deus suportá-los por mais tempo. Em
primeiro lugar, eles declaram que vieram para destruir a cidade,
“porque seu clamor se tem aumentado”. Por essas palavras, querem
dizer que Deus fora provocado, não por um só ato de perversidade,
mas que, depois de poupá-los por tanto tempo, agora, por fim, era
quase obrigado, pela imensa quantidade de crimes deles, a descer
para infligir-lhes castigo. Pois é indiscutível que, quanto mais os ho-
mens acumulam pecados, maior a sua perversidade, e mais perto
esta chegará a Deus clamando por vingança.
Portanto, se, por um lado, os anjos testificam que Deus até en-
tão foi longânimo e muito paciente, por outro lado, eles declaram
que resultado aguardam todos aqueles que, havendo acumulado
grande quantidade de culpa, se exaltam diariamente com crescente
audácia, como se (tal como gigantes) estivessem prestes a atacar o
céu. Entretanto, explicam a causa dessa destruição não só para que
Ló renda louvor à justiça e equidade divinas, mas para que ele, sen-
do coagido pelo temor, pudesse apressar mais rapidamente a sua
partida. Porque, tal é a indolência de nossa carne, que lenta e indife-
rentemente nos colocamos para escapar do juízo de Deus, a menos
que sejamos profundamente instigados pelo pavor do juízo. Foi as-
sim com Noé que, alarmado pelo terror do dilúvio, se esforçou para
construir a arca. Entretanto, os anjos inspiram a mente do santo ho-
mem com esperança; para que ele não tremesse ou se deixasse do-
minar pelo temor, e ficasse tão desanimado pelo seu livramento, a
ponto de ser muito lento para escapar. Pois não só prometem que
ele estaria em segurança, mas também concedem, sem que fosse
solicitado, segurança à vida de sua família. E, de fato, ele não deve-
ria ter duvidado sobre sua própria vida, quando viu outros sendo-lhe
graciosamente solícitos, por meio de incontáveis favores.
Contudo, questiona-se: “Por que quis Deus oferecer sua bonda-
de a homens ingratos, pelos quais bem sabia que seria rejeitado?”.
A mesma pergunta pode ser feita com respeito à pregação do evan-
gelho; pois Deus sabia que poucos viriam a ser participantes daque-
la salvação que, no entanto, ordena que fosse oferecida indiscrimi-
nadamente a todos. Dessa maneira, os incrédulos se tornam ainda
mais indesculpáveis, quando rejeitam a mensagem de salvação. En-
tretanto, a principal razão por que a Ló se ordena que pusesse dian-
te de sua própria família a esperança de livramento é para que ele
abraçasse, com maior confiança, o favor oferecido por Deus e,
apressada e rapidamente, se preparasse para partir, não duvidando
de sua própria preservação.
A partir desse relato, infere-se com probabilidade que ele então
não tinha filhos naquela cidade porque, em consequência da exorta-
ção dos anjos, ele imediatamente teria tentado tirá-los dali. Já vimos
previamente que ele possuía um amplo e numeroso grupo de ser-
vos; porém, eles não são mencionados, visto que aqui se registra
somente os homens livres. No entanto, é provável que alguns ser-
vos tenham saído com ele, para levar provisões e alguns objetos.
Porque, de onde suas filhas obtiveram no monte desértico o vinho
que deram a seu pai, a menos que algumas coisas, que Moisés não
menciona, fossem levadas em jumentos, ou camelos, ou carroças?
Contudo era possível que, em uma quantidade tão numerosa de
servos, muitos preferissem perecer com os homens de Sodoma a
serem associados e estarem na companhia de seu senhor, em bus-
ca de segurança. Mas é melhor não especular sobre aquelas coisas
que o Espírito de Deus não quis revelar.
17. Livra-te, salva tua vida. Isso foi acrescentado por Moisés para
nos ensinar que o Senhor não apenas nos estende sua mão por um
momento, a fim de dar início à nossa salvação, mas que, sem deixar
sua obra imperfeita, ele a levará até o fim. Certamente não foi um
ato comum da graça, o fato de que a ruína de Sodoma foi predita ao
próprio Ló, para que ela não lhe sobreviesse de surpresa; e, que
uma firme esperança de salvação foi dada pelos anjos; e, finalmen-
te, que ele foi conduzido pela mão para fora do perigo. Contudo, o
Senhor, não satisfeito com haver-lhe concedido tantos favores, lhe
informa do que mais tarde estava para fazer, e assim prova ser ele o
guia de sua vida, até que Ló chegasse ao abrigo seguro.
Ló estava proibido de olhar para trás para que ele soubesse
que estava deixando para trás uma morada pestilenta. Isso foi feito,
primeiramente, para que ele não cedesse a nenhum desejo e, pos-
teriormente, pudesse refletir sobre a singular bondade de Deus, pela
qual havia escapado do inferno. Moisés já havia dito quão fértil e
rica era aquela planície; Ló agora é ordenado a sair dali, para que
percebesse que foi libertado, como que do meio de um naufrágio. E
embora, enquanto habitava em Sodoma, seu coração se visse conti-
nuamente atormentado, e dificilmente era possível que evitasse con-
trair alguma mácula de um esgoto de perversidade tão profundo, es-
tando agora, pois, prestes a ser purificado pelo Senhor, ele é priva-
do daqueles deleites nos quais tivera muito prazer deleite. Aprenda-
mos, pois, que Deus faz melhor provisão para nossa salvação quan-
do elimina aquelas superfluidades que servem ao deleite da carne; e
quando, com o propósito de corrigir a excessiva autoindulgência, ele
nos bane de uma doce e agradável planície, para uma montanha
deserta.
19. Eis que o teu servo achou mercê diante de ti. Embora Ló vis-
se duas pessoas, ele dirige seu discurso só a uma. Disso inferimos
que ele não confiava nos anjos, porque estava convencido de que
eles não tinham autoridade própria, e que sua salvação não foi colo-
cada nas mãos deles. Portanto, Ló não considera a presença dos
anjos de outro modo, senão como um espelho no qual a face de
Deus pode ser contemplada. Além disso, ele celebra a bondade de
Deus não tanto para testificar sua gratidão, mas para adquirir maior
confiança para pedir mais. Porque, visto que a bondade de Deus
não se esgota nem se cansa em doar, quanto mais pronto o acha-
mos em dar, mais confiantes ficamos em esperar pelo que é bom. E
isto é realmente uma característica da fé: encorajar o futuro, com
base na experiência do favor dado no passado. E Ló não falha nes-
se ponto; porém, age precipitadamente, indo além da palavra para
agradar ao seu ego. Por isso que digo que sua oração, embora fluís-
se da fonte da fé, ainda continha algo turvo do lamaçal da afeição
carnal. Então, confiemos no favor de Deus e não hesitemos em es-
perar dele todas as coisas, especialmente aquelas que ele mesmo
prometeu, e as que ele nos permite escolher.
Não posso escapar no monte. De fato, Ló não se ira de modo
malicioso e deliberado contra Deus, como costumam fazer os per-
versos; contudo, porque não descansa na palavra de Deus, ele res-
vala e quase cai. Pois, por que ele teme a destruição no monte,
onde estaria protegido pela mão de Deus, e, no entanto, espera
achar naquela região uma morada segura, que ficava perto de So-
doma e estava sujeita a juízo similar, em razão de seus impuros e
perversos habitantes? Mas é próprio da natureza humana preferir
buscar sua segurança no próprio inferno, a buscá-la no céu, sempre
que seguem sua própria razão. Vemos, pois, quão gravemente Ló
falha, vendo e desconfiando de uma montanha que não estava in-
fectada com nenhum contágio de iniquidade, e preferindo uma cida-
de que, transbordando de pecados, não poderia senão ser odiada
por Deus. Ele diz que ela é bem pequena, para que seu pedido pu-
desse ser atendido mais facilmente. Como se ele dissesse que ape-
nas queria um canto onde pudesse ter um refúgio seguro. Isso teria
sido certo, se ele não rejeitasse o abrigo que lhe foi divinamente
concedido, e imprudentemente tivesse inventado para si outro.
30. Ló subiu de Zoar. Essa narrativa prova aquilo que eu disse an-
teriormente, a saber, que aquelas coisas que os homens inventam
para si mesmos, mediante conselhos imprudentes, extraídos da ra-
zão carnal, nunca prosperam; especialmente quando os homens,
iludidos por vã esperança, ou impelidos por desejos depravados, se
apartam da palavra de Deus. Pois, embora a princípio a imprudência
geralmente aparente ter sucesso, e que aqueles que são levados
por suas concupiscências exultam no jubiloso resultado dos negóci-
os, contudo o Senhor, por fim, amaldiçoa tudo quanto não é em-
preendido com sua aprovação; nisso se cumpre a declaração de
Isaías: “Ai dos filhos rebeldes, diz o Senhor, que executam planos
que não procedem de mim, e fazem aliança sem minha aprovação,
para acrescentarem pecado sobre pecado!” [Is 30.1].
Ló, quando ordenado a ir para o monte, preferiu habitar em
Zoar. Depois de se lhe conceder essa habitação, segundo seu pró-
prio desejo, logo se arrepende e se entristece, porquanto treme ao
pensar que a destruição está a cada momento mais perto de um lu-
gar tão próximo de Sodoma, onde, provavelmente, reinavam a mes-
ma impiedade e perversidade. Mas que os leitores lembrem-se do
que eu já disse: que só foi pela maravilhosa bondade de Deus que
ele não recebeu punição imediata ou muito severa. Pois o Senhor,
mesmo o perdoando naquele momento, fez com que Ló finalmente
se tornasse juiz de seu próprio pecado. Pois ele não foi expulso de
Zoar pela força, nem pela mão humana; mas uma cega ansiedade
mental o arrastou e o lançou numa caverna, por haver seguido o de-
sejo de sua carne, em vez do mandamento de Deus. E assim, ao
castigar os fiéis, Deus ameniza sua punição, com o objetivo de con-
vertê-la em seu melhor remédio. Pois se ele fosse tratar estritamen-
te com a insensatez deles, cairiam em total confusão. Deus, pois,
lhes dá espaço para arrependimento, para que voluntariamente re-
conheçam seu erro.
33. Sem que ele notasse. Embora Ló não tenha pecado conscien-
temente, contudo, visto que sua embriaguez foi a causa de seu pe-
cado, sua culpa é diminuída, mas não anulada. Sem dúvida, o Se-
nhor castigou seu descontentamento desta maneira. Eis algo raro e
estranho: que seus sentidos fossem de tal modo dominados pela in-
fluência do vinho que ele, como um homem morto, extravasasse sua
luxúria. Portanto, suponho que ele não se embriagou totalmente
com o vinho, mas que seu excesso é castigado por Deus através do
espírito de ignorância. E, se Deus não poupou o santo patriarca,
como, pois, podemos nós pensar em ficar impunes, enquanto come-
temos o mesmo excesso? Compreendamos, pois, por esse exem-
plo, que a lei da modéstia nos é prescrita, para nos alimentarmos
modesta e moderadamente.
Entretanto, existem algumas pessoas profanas que consideram
Ló como o protetor de perversidade deles. Ao contrário, por que não
atinamos para o horrível escândalo em que ele caiu por haver usado
vinho com tanto excesso? Como eu já disse, não devemos conside-
rar simplesmente o que a embriaguez arrasta consigo e com que
outros vícios ela se acha conectada, mas temos que levar em conta
a punição de Deus. Portanto, ele quis difundir abertamente esse trá-
gico crime, para que a embriaguez seja abominada. Diariamente, o
Senhor testifica, por meio de castigos pesados, o quanto esse vício
lhe desagrada. Ao vermos que o sobrinho de Abraão, o anfitrião de
anjos, um homem venerado com extraordinária fama de santidade,
se deixa macular por relação sexual impura, porque se embriagou, o
que, pois, sucederá aos beberrões e às meretrizes que se embria-
gam diariamente? Mas já falamos extensamente sobre isso no nono
capítulo [Gn 9.1], o que qualquer um pode reler.
Com respeito à frase, quando Moisés diz que Ló não percebeu
que suas filhas se deitaram e se levantaram – há quem o explique
que ele não viu a diferença entre uma estranha e sua própria filha.
Mas, embora ele não estivesse totalmente entorpecido, é possível
que de manhã ele se despertasse de sua intoxicação consciente de
que mantivera relação sexual com sua filha. Alguns dizem, para di-
minuir sua culpa, que ele não estava muito embriagado, mas que
estava deprimido pela tristeza. Quanto a mim, porém, sustento que,
visto ser dotado com os dons mais esplêndidos, ele também mere-
ceu uma punição mais severa; e que, portanto, sua razão foi com-
prometida para que, como um animal irracional, se envolvesse na
luxúria sensual.
35. Entrando a mais jovem, se deitou com ele. Esse ponto nos
ensina quão perigoso é cair nas armadilhas de Satanás. Pois, quem
nelas cair, se envolve num abismo cada vez mais profundo. É verda-
de que Ló foi sempre um homem modesto, mas, independente das
circunstâncias que permitiram que sua filha mais velha se deitasse
com ele – ou porque ele se achava triste, ou porque estava embria-
gado – Ló foi novamente enganado no dia seguinte. Por isso, deve-
mos resistir diligentemente ao primeiro impulso, pois é quase impos-
sível que aqueles que uma vez são entorpecidos por sua doçura, se
percam totalmente nos vícios. Portanto, os homens devem estar
sempre vigilantes contra os estímulos para o mal, como sendo ma-
les mortais; e os homens deveriam temer cada lisonjeira tentação
como algo venenoso. E esta circunstância merece atenção: que Ló,
entre os sodomitas, pelo acúmulo de crimes que quase macularam
céu e terra, era casto e puro como um anjo. De que maneira ele
conseguiu manter-se puro mesmo estando em Sodoma, senão pelo
conhecimento do mal que o cercava, o qual o manteve em diligente
vigilância? E agora, estando a salvo no monte, Satanás o sitia com
novas armadilhas. Por esse exemplo, o Espírito nos admoesta à vi-
gilância, de modo que, quando menos pensamos, um inimigo invisí-
vel nos arma ciladas. De igual modo, Moisés disse anteriormente
que Adão foi enganado no Paraíso. Quando cuidamos de nós mes-
mos, isso nos deixará vigilantes contra todas as astúcias de nosso
inimigo. Pois, não há ninguém que não carregue consigo milhares
de tentações para seu próprio engano.
1 A versão utilizada por Calvino traduz o termo por “conhecer”, como fazem também as
versões Almeida Corrigida Fiel e Almeida Revista e Corrigida. A versão Almeida Revista e
Atualizada traduz o termo por “abusar”.
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7. Agora, pois, restitui a mulher a seu marido. Deus não fala ago-
ra de Abraão como se este fosse um homem comum, mas como al-
guém que lhe é mui peculiarmente querido, por quem empreende a
defesa de seu leito conjugal por um tipo de privilégio. Ele denomina
Abraão de profeta e um exemplo de honra, como se estivesse acu-
sando Abimeleque de haver injuriado um homem de grande e singu-
lar excelência, para que ele não se espantasse ante a grandeza da
punição que lhe era infligida. E, embora a palavra profeta seja espe-
cificamente o nome de um ofício, creio que aqui ela tem um signifi-
cado mais abrangente, e que é expressa por um homem escolhido,
e um que, é para Deus, mui familiar. Pois visto que, naquele tempo,
não existia nenhuma Escritura, Deus não apenas se fazia conhecido
por meio de sonhos e visões, mas também escolhia para si homens
especiais e excelentes, para que espalhassem a semente da pieda-
de, pela qual o mundo se tornasse ainda mais indesculpável.
Visto, porém, que Abraão é um profeta, ele é constituído, por
assim dizer, um mediador entre Deus e Abimeleque. Cristo, sempre
foi o único Mediador; mas isso não era motivo para que os homens
não orassem por outros; especialmente aqueles que se destacavam
em santidade e eram aceitos por Deus, como o apóstolo ensina:
“Muito pode, por sua eficácia, a súplica do justo” [Tg 5.16]. E não
devemos, hoje, negligenciar tal intercessão, contanto que ela não
obscureça a graça de Cristo, nem nos desvie dele. Mas é um absur-
do que os papistas, sob esse pretexto, recorram à ajuda dos mortos.
Pois como o Senhor, aqui, não envia o rei de Gerar a Noé, ou a al-
gum dos pais falecidos, e sim à presença do Abraão vivo, assim o
único preceito que temos sobre esse tema é que, pela oração mú-
tua, uns pelos outros, cultivemos entre nós a caridade.
Se, porém, não lha restituíres. Dessa passagem descobrimos
a intenção daquelas ameaças e denúncias com que Deus aterroriza
os homens, a saber, que ele impele pela força ao arrependimento
aqueles que são demasiadamente obstinados. No início desse dis-
curso, foi declarado em termos absolutos: “Vais ser punido de mor-
te”; agora é acrescentada uma condição: “A menos que tu a restitu-
as.”. Entretanto, o significado de ambas as expressões é o mesmo,
ainda que a princípio Deus fale mais asperamente, para que inspire
o ofensor com maior terror. Agora, porém, quando ele se sujeita,
Deus expressa sua intenção mais claramente, e lhe deixa a espe-
rança de perdão e salvação. Assim, o nó, com o qual muitos se en-
laçam, se desata quando percebem que Deus nem sempre, ou ins-
tantaneamente, executa as punições que havia anunciado; porque
eles consideram um sinal, ou que Deus mudou de propósito, ou que
ele pretende algo diferente, por sua palavra, daquilo que havia de-
cretado secretamente.
Pela instrumentalidade de Jonas, ele ameaçou os ninivitas com
destruição, e mais tarde os poupou [Jn 3.4]. Os indoutos não perce-
bem como podem escapar de um dos dois absurdos, a saber, ou
que Deus retraiu sua sentença, ou que ele fingiu estar para fazer o
que realmente não pretendia. Mas, se retivermos firme o princípio
de que a exortação ao arrependimento está inclusa em todas as
ameaças, a dificuldade estará resolvida. Pois embora Deus, no pri-
meiro caso, fala a homens como perdidos e, portanto, os constrange
com o presente temor da morte, contudo se deve levar em conta o
objetivo. Pois, se ele os convida ao arrependimento, segue-se que
se deixa a esperança de perdão, contanto que se arrependam.
10. Que estavas pensando para fazeres tal coisa? Com essa per-
gunta, o rei faz provisão para o futuro. Ele acredita que Abraão não
praticou essa dissimulação irrefletidamente; e, visto que Deus era
gravemente ofendido, ele teme cair outra vez no mesmo perigo. Por-
tanto, ele testifica, por uma inquirição tão incisiva, que deseja reme-
diar o mal. Ora, é um sinal extraordinário de uma justa e mansa dis-
posição, o fato de Abimeleque permitir que Abraão apresente uma li-
vre defesa. Sabemos quão nítida e veementemente protesta quem
acha que foi ofendido; tanto maior louvor, pois, se deve à modera-
ção desse rei, para com um forasteiro desconhecido. Por isso,
aprendamos, por esse exemplo, o seguinte: sempre que nos quei-
xarmos contra nossos irmãos por eles nos ter feito algum mal, per-
mitamos que se defendam livremente.
12. Ela, de fato, é também minha irmã. Alguns supõem que Sara
fosse a própria irmã de Abraão, contudo, não da mesma mãe, mas
nascida de uma segunda esposa. Entretanto, como o título irmã tem
uma ampla gama de significação entre os hebreus, de bom grado
adoto uma hipótese distinta, a saber, que ela era sua irmã em se-
gundo grau; assim será verdadeiro que tinham um pai comum, isto
é, um avô, de quem haviam descendido como irmãos. Além disso,
Abraão ameniza sua ofensa e traça uma distinção entre sua omis-
são e uma mentira; e, certamente, ele professa com verdade que
era irmão de Sara. Aliás, parece que ele nada inventara em palavras
que diferisse dos próprios fatos; contudo, quando todas as coisas
fossem minuciosamente consideradas, sua defesa provaria ser frí-
vola, ou, ao menos, demasiadamente frágil. Porque, visto que ele in-
tencionalmente usava o título irmã como um pretexto, para que os
homens não alimentassem alguma suspeita sobre seu casamento,
ele, sofisticamente, lhes propiciou ocasião de cair em erro. Por isso,
embora não mentisse verbalmente, com respeito à matéria de fato,
sua dissimulação implicava em uma mentira. Contudo, ele não teve
outra intenção senão declarar que ele não tratara Abimeleque de
modo fraudulento; mas que, numa questão de grande ansiedade,
ele lançara mão de um método indireto de escapar da morte, pelo
pretexto de sua prévia relação com sua esposa.
13. Quando Deus me fez andar errante. Porque o verbo é aqui ex-
presso no plural, exponho livremente a passagem como uma refe-
rência aos anjos que guiavam a Abraão através de suas várias an-
danças. Alguns, com demasiada sutileza, inferem da expressão uma
Trindade de Pessoas, como se fosse escrito: “Os deuses me fizeram
peregrinar”. De fato, admito que o substantivo (Elohim) frequen-
temente é empregado na Escritura para se referir a Deus, mas o
verbo com que está conectado é sempre singular. E, toda vez que
se acrescenta um verbo plural, o substantivo significa “anjos” ou
“príncipes”. Alguns pensam que Abraão, porque estava falando com
alguém que não era corretamente instruído, falou assim em confor-
midade com o costume comum dos pagãos; mas, em minha opinião,
isso é um erro. Pois, a que propósito ele, ao erigir altares, fez mani-
festo que se devotara ao serviço do único verdadeiro Deus, se lhe
fosse lícito mais tarde negar, verbalmente, o próprio Deus a quem
cultuava? Já fizemos uma exposição desse tema anteriormente,
conforme o contexto exigia.
Abraão, contudo, não acusa os anjos, como se ele tivesse sido
desviado do caminho pelas orientações falaciosas deles; mas desta-
ca qual era sua própria condição anterior, ou seja, que, tendo deixa-
do sua própria pátria, não apenas migrou para uma terra distante,
mas se viu constantemente obrigado a mudar de domicílio. Por isso,
não é de admirar que a necessidade o conduziu a novos propósitos.
Alguém inquiriria, por que ele faz dos anjos os guias de sua peregri-
nação? A resposta é imediata: embora Abraão soubesse que pe-
rambulava unicamente pela vontade e providência de Deus, ele se
refere aos anjos que, como em outro lugar reconhece, lhe foram da-
dos para serem os guias durante a sua jornada.
A suma do discurso tende para o seguinte objetivo: ensinar a
Abimeleque que Abraão era igualmente livre de astúcia maliciosa e
de falsidade; e, então, porque estava vivendo uma vida de peregri-
nações e inquietudes, Sara, por concordar, sempre dissera a mes-
ma coisa que fizera em Gerar. Essa miserável ansiedade do santo
homem poderia levar Abimeleque à compaixão, a ponto de aplacar
sua ira.
1 Termo usado na antiguidade romana para descrever senhoras casadas, respeitáveis pela
idade e pelo seu prudente proceder.
2 Na tradução que o próprio Calvino faz desse versículo, ele traduz a segunda sentença do
verso por: “ele é para ti uma cobertura dos olhos”, que equivale à frase: “será isto compen-
sação por tudo quanto se deu contigo”, na versão Almeida Revista e Atualizada. Portanto,
algumas partes de seu comentário ao verso 16 tratam diretamente da frase, tal como Calvi-
no a traduziu. As versões Almeida Corrigida Fiel e Almeida Revista e Corrigida traduzem a
frase semelhantemente a Calvino: “E a Sara disse: Vês que tenho dado ao teu irmão mil
moedas de prata; eis que ele te seja por véu dos olhos para com todos os que contigo es-
tão, e até para com todos os outros; e estás advertida”. Assim, que o leitor esteja ciente de
que o comentário do verso 16 tem essa particularidade.
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3. Pôs Abraão o nome de Isaque. Moisés não quer dizer que Abra-
ão fosse o inventor do nome, mas que ele aceitou o nome que antes
havia sido dado pelo anjo. Esse ato de obediência, contudo, foi dig-
no de recomendação, visto que ele não apenas confirmou a palavra
de Deus, mas também executou seu ofício como ministro de Deus.
Porque, como arauto, ele proclamou a todos o que o anjo lhe havia
confiado.
4. Abraão circuncidou a seu filho Isaque. Abraão seguiu em fren-
te em sua invariável condição de obediência. Pois, embora lhe fosse
doloroso ferir o tenro corpo da criancinha, contudo, abrindo mão de
toda afeição humana, obedece à palavra de Deus. E Moisés registra
que ele fez como o Senhor lhe ordenara, porque não há nada mais
importante do que tomar a pura palavra de Deus por nossa norma, e
não sermos sábios acima do que é lícito. Esse espírito submisso é
especialmente requerido em referência aos sacramentos, para que
os homens não inventem para si coisa alguma, nem destinem aque-
las coisas que são ordenadas pelo Senhor a algum uso que lhes
aprouver. De fato, vemos quão desordenadamente os caprichos dos
homens aqui prevalecem, visto que eles têm ousado inventar inúme-
ros sacramentos. E para não ficar apenas com um exemplo, en-
quanto Deus entregou à Igreja Cristã somente dois sacramentos, os
papistas se vangloriam de que possuem sete. Como se, na verdade,
estivesse em seu poder fazer promessas de salvação, as quais pu-
dessem sancionar com sinais imaginados por eles mesmos. Mas se-
ria supérfluo relatar com quantas ficções os sacramentos têm sido
poluídos por eles. Isto certamente é manifesto: que não há nada so-
bre o que eles sejam menos cuidadosos do que observar o que o
Senhor tem ordenado.
5. Tinha Abraão cem anos. Uma vez mais, Moisés registra a idade
de Abraão, para melhor exercitar a mente de seus leitores a uma
consideração do milagre. E, embora somente Abraão seja mencio-
nado, devemos nos lembrar de que ele é, aqui, posto diante de nós,
não como um homem concupiscente, mas como marido de Sara, o
qual obteve, através dela, uma descendência legítima, em extrema
velhice, quando a força física de ambos já estava quase extinta.
Pois o poder de Deus era principalmente evidente nisto: que embora
não tivessem obtido filhos durante um casamento de mais de 60
anos, de repente obtêm descendência. Sara, na verdade, a fim de
corrigir a dúvida a que ela se submetera, agora, com exultação, pro-
clama a bondade de Deus, com convenientes louvores. Em primeiro
lugar, ela diz que Deus lhe dera ocasião de alegria; não de uma ale-
gria comum, mas de uma alegria que faria com que todos os ho-
mens se congratulassem com ela. Em segundo lugar, com o propó-
sito de enfatizar, ela assume o caráter de um inquiridor atônito:
“Quem teria dito a Abraão que Sara amamentaria um filho?”. Há
quem explique a frase “vai rir-se juntamente comigo”, como se Sara
dissesse, envergonhada, que ela seria um provérbio para o povo co-
mum. Mas o sentido inicialmente destacado é mais próprio, a saber,
“Todo aquele que ouvir isso, vai rir-se juntamente comigo”, isto é,
com o intuito de congratular-se comigo.
20. Deus estava com o rapaz. Pode-se dizer que há vários senti-
dos em que Deus está presente com os homens. Ele está presente
com seus eleitos, a quem governa pela graça especial de seu Espí-
rito; ele também está presente, algumas vezes, no que diz respeito
aos cuidados da vida, não só com seus eleitos, mas também com os
estranhos, concedendo-lhes alguma bênção grandiosa; exatamente
como Moisés, aqui, louva a graça extraordinária pela qual o Senhor
declara que sua promessa não é invalidada, uma vez que ele perse-
gue Ismael com favor, porque este era filho de Abraão. Entretanto,
disso se infere esta doutrina geral: que a Deus se deve atribuir o
fato que os homens se desenvolvam, que desfrutem da luz e do so-
pro comuns do céu, e que a terra os supra com alimento. Mas é pre-
ciso lembrar que a prosperidade de Ismael emanava desta causa:
que uma bênção terrena lhe fora prometida, por amor de seu pai
Abraão.
Ao dizer que Agar tomou esposa para Ismael, Moisés está pen-
sando na ordem civil; porque, visto que o matrimônio constitui uma
parte primordial da vida humana, é certo que, ao contraí-lo, os filhos
estejam sujeitos a seus pais e devem obedecer a seus conselhos.
Esta ordem, a qual a natureza prescreve e dita, foi, como vemos,
observada por Ismael, um homem selvagem no barbarismo do de-
serto; pois ele foi submisso a sua mãe na escolha de uma esposa.
Disso percebemos que terrível monstro foi o Papa quando ousou
subverter esse sagrado direito da natureza. A isso também se adici-
ona o imprudente orgulho em consentir um perverso menosprezo
aos pais, em honra do santo matrimônio. Além disso, a esposa egíp-
cia era um tipo de prelúdio à futura discórdia entre israelitas e isma-
elitas.
22. Por esse tempo. Moisés declara que essa aliança foi feita entre
Abraão e Abimeleque, com o propósito de mostrar que, após diver-
sas perturbações, finalmente se concedeu ao santo homem algum
descanso. Ele estava constrangido, como peregrino, e sem uma ha-
bitação fixa, a mudar sua tenda de um lugar para o outro, ao longo
de 60 anos. Mas, embora Deus quisesse que ele fosse um peregri-
no até a morte, contudo, sob o rei Abimeleque, ele lhe concedera
uma habitação tranquila. E o propósito de Moisés é mostrar como foi
que ele ocupou um lugar além do habitual.
Deve-se notar a circunstância de tempo, a saber, logo depois
que ele despedira seu filho. Pois tudo indica que sua grande tribula-
ção foi imediatamente seguida por essa consolação, não somente
para que ele tivesse algum alívio das contínuas inconveniências,
mas também para que ele fosse mais encorajado e se ocupasse
mais tranquilamente da educação de seu filhinho Isaque. Entretanto,
é certo que a aliança não lhe foi, no sentido pleno, motivo de alegria;
visto que percebia que era provado por meios indiretos, e que havia
muitas pessoas naquela região a quem ele parecia desagradável e
odioso. De fato, o rei revelou abertamente sua própria suspeita acer-
ca dele; contudo, essa era a honra mais elevada que o rei daquela
região, de acordo com sua própria vontade, dava a um estrangeiro:
entrar em aliança com ele.
Entretanto, pode-se indagar se essa aliança foi feita sob condi-
ções justas e equitativas, segundo o costume entre aliados. Não te-
nho dúvida de que Abraão prestou livremente a devida honra ao rei,
nem é provável que o rei quisesse abrir mão de algo de sua própria
dignidade, a fim de conferi-la a Abraão. O que, pois, ele fez? Real-
mente, enquanto o rei concedia a Abraão uma morada estável, o
mantinha ligado a si por um juramento.
Deus é contigo em tudo o que fazes. O rei começa em ter-
mos amigáveis e pacíficos; não acusa a Abraão, nem se queixa de
ele haver negligenciado algum dever para consigo mesmo, mas de-
clara que deseja ardorosamente sua amizade; no entanto, seu obje-
tivo é o de querer se proteger contra Abraão. Então se pode indagar
qual é a origem dessa suspeita, ou medo, se Abraão era não ape-
nas um estrangeiro, mas também um homem honesto e moderado.
Em primeiro lugar, sabemos que os pagãos frequentemente ficam
ansiosos sem causa, e se deixam alarmar mesmo em tempos de
tranquilidade. Em segundo lugar, Abraão era um homem merecedor
de reverência, pois o número de servos em sua casa mais parecia
uma pequena nação; e também não há dúvida de que suas virtudes
lhe proporcionaram grande dignidade; foi por isso que Abimeleque
suspeitou de seu poder.
Mas, enquanto Abimeleque pensava consigo mesmo sobre
essa questão, o Senhor, que melhor sabe como dirigir os aconteci-
mentos, providenciou um repouso para seu servo. Entretanto, pode-
mos aprender do exemplo de Abraão, se, em algum momento, os
dons divinos suscitam a inimizade dos homens contra nós, contudo
devemos nos conduzir com uma moderação tal, que eles nada en-
contrem desfavorável em nós.
27. Tomou Abraão ovelhas e bois. Aqui fica evidente que a aliança
feita não foi do tipo comumente feito entre iguais; pois Abraão pon-
dera sobre sua posição, e como sinal de sujeição oferece um pre-
sente dentre seus rebanhos ao rei de Gerar; porque, o que os lati-
nos chamam “pagar imposto” ou “pagar tributo”, e o que chamamos
“prestar homenagem”, os hebreus chamam “oferecimento de pre-
sentes”. E, de fato, Abraão não espera até que algo seja pela força,
e com autoridade, extorquido dele pelo rei; mas, por uma doação
voluntária de honra, se antecipa aquele que ele sabe tinha o domí-
nio sobre a região. Sabe-se claramente quão grande desejo de
exercer autoridade cerca os homens. Por isso, maior louvor se deve
à modéstia de Abraão, que não só se abstém do que pertence a ou-
tro homem, mas ainda oferece, sem imposição, o que, em sua pró-
pria mente, considera ser devido a outrem, em razão de seu ofício.
Entretanto, surge uma questão adicional: visto que Abraão sa-
bia que o domínio sobre a terra lhe fora divinamente confiado, seria
lícito professar uma sujeição pela qual reconhecia outro como se-
nhor? Mas a resposta a isso é simples, porque o tempo de tomar
posse ainda não havia chegado; pois ele era senhor só em expecta-
tiva, enquanto que, de fato, ele era um peregrino. Portanto, ele agiu
corretamente em comprar uma habitação, até que viesse o tempo
em que o que lhe fora prometido seria entregue à sua posteridade.
Assim, logo depois, como veremos, ele pagou o preço pela sepultu-
ra de sua esposa. Em suma, até que ele fosse posto, pela mão de
Deus, como autoridade legítima sobre a terra, não hesitou em tratar
com os habitantes daquele lugar, para que tivesse a permissão de
habitar entre eles, ou pelo pagamento de certo preço.
31. Por isso, se chamou aquele lugar Berseba. Moisés uma vez
já havia chamado o lugar por esse nome, porém prolepticamente.
Agora, porém, ele declara quando e por qual razão foi dado esse
nome, a saber, porque ali ele e Abimeleque, respectivamente, havi-
am jurado; por isso eu traduzo o termo por “o poço do juramento”.
Outros o traduzem por “o poço dos sete”. Moisés, porém, evidente-
mente deriva a palavra de juramento; não importa se a pronúncia
seja ligeiramente diferente da exatidão gramatical, a qual, em no-
mes próprios, não é observada de modo rigoroso. De fato, Moisés
não restringe a etimologia à palavra poço, mas envolve toda a alian-
ça. Contudo, não nego que Moisés estivesse se referindo ao núme-
ro sete.
1 O plural aqui indicado não é ressaltado na versão Almeida Revista e Atualizada, diferente
da Almeida Corrigida Fiel, que traduz assim: “Disse mais: Quem diria a Abraão que Sara
daria de mamar a filhos? Pois lhe dei um filho na sua velhice”.
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4. Viu o lugar de longe. De fato ele viu, com seus olhos, o lugar
que antecipadamente lhe fora mostrado em uma visão secreta. Mas,
quando lemos que ele ergueu seus olhos, sem dúvida Moisés quer
dizer que ele estivera extremamente ansioso durante os três dias.
Quando Abraão ordenou a seus servos que esperassem, foi para
que não impusessem as mãos sobre ele, como se fosse um velho a
sofrer de delírio e insanidade. E aqui a sua grande nobreza é evi-
denciada, pois ele tem seus pensamentos tão serenos e tranquilos
que não faz nada de maneira desequilibrada.
Contudo, ao dizer que voltaria com o rapaz, parece que Abraão
estava agindo com dissimulação e falsidade. Alguns acreditam que
ele fez essa declaração em termos proféticos; visto, porém, ser cer-
to que ele nunca perdera a visão o que lhe havia sido prometido a
respeito do desenvolvimento da descendência de Isaque, pode ser
que ele, confiando na providência divina, acreditava que seu filho
sobreviveria até mesmo à morte. E, visto que ele partiu, como se es-
tivesse com os olhos fechados, para o sacrifício de seu filho, nada
há de improvável na suposição de que ele falava confusamente de
um caso muito obscuro.
19. Então, voltou Abraão aos seus servos, e, juntos, foram para
Berseba. Moisés reitera que Abraão, depois de haver enfrentado
essa severa e incrível tentação, habitou tranquilamente em Berseba.
Esta narrativa é inserida, juntamente com o que segue acerca do
acréscimo na família de Abraão, com o propósito de mostrar que o
santo homem, quando foi arrancado outra vez do abismo da morte,
veio a ser feliz de várias maneiras. Pois Deus de tal modo o quis re-
vitalizar, que ele seria como um novo homem. Moisés registra ainda
a descendência de Naor, mas por outra razão, a saber, porque Isa-
que estava para tomar sua esposa dessa descendência. Pois a
menção de mulheres na Escritura é rara; e é certo que muitas filhas
nasceram de Naor, dentre as quais apenas uma, Rebeca, é aqui
apresentada. Moisés distingue os filhos da concubina dos demais,
porque ocuparam um lugar de menos honra. Não que a concubina
fosse considerada uma prostituta, mas porque ela era uma esposa
inferior, e não a senhora da casa, a qual tinha comunhão de bens
com seu esposo. O fato, contudo, que levou Naor a tomar uma se-
gunda esposa não faz da poligamia uma prática legítima; apenas
mostra que, com base no costume dos demais homens, ele presu-
miu que lhe seria lícito o que na verdade emanava da pior corrup-
ção.
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