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ÉTICA PARA O MEIO AMBIENTE

Para Flávia Neto, em memória.

André Brayner de Farias1

Introdução

O tema da ética ambiental e do direito dos animais ganhou relevância a partir das
discussões sobre a crise ecológica ou crise dos recursos da natureza, surgidas já no
século XIX, mas intensificadas principalmente ao longo da segunda metade do século
XX. De uma maneira geral a ética ambiental enquadra o conjunto das abordagens éticas
que enfatizam a responsabilidade humana diante do meio ambiente, primeiramente
entendido como os elementos da natureza, mas cada vez mais ampliando-se para
envolver o conjunto de tudo o que nos envolve. A ética ambiental pode ser entendida
como uma estratégia em vista da sustentabilidade ecológica da vida no planeta, que
significa buscar respostas para questões do tipo: de que modo regular nossas ações para
que as mesmas não comprometam as gerações futuras? Certamente, tais questões só
podem surgir a partir do diagnóstico geral da crise ecológica, que vai tender
inevitavelmente a encontrar sua principal causa no padrão de nossa atual civilização
industrial e tecnológica.
A discussão da ética ambiental, em geral, tem deslocado o acento antropocêntrico que
caracteriza a tradição ética do ocidente. De fato, a tendência majoritária do discurso da
ética ambiental vai buscar um equilíbrio de consideração moral entre animais humanos
e não humanos, mais ou menos acentuado na direção de um igualitarismo, a depender
da corrente de pensamento em questão. Mais ou menos radicais em sua defesa dos
animais não humanos, as éticas ambientais tenderão a criticar o antropocentrismo de
nossa tradição ético-filosófica.
A crítica da racionalidade tecnocientífica, origem da civilização industrial, está
frequentemente presente no debate da ética ambiental, constituindo um importante
núcleo de entendimento e justificativa da questão. A análise é, em geral, a seguinte: o
pensamento científico moderno surge com o pressuposto da objetividade da natureza e

1
Oceanólogo e Doutor em Filosofia. UCS/PUCRS.
com o desenvolvimento do método experimental, a natureza torna-se cada vez mais
objeto de experiência científica, objeto do conhecimento científico e, em seguida, objeto
da produção e da transformação industrial, o que leva a natureza a ter os seus processos
intensivamente acelerados, ao ponto de chegar aos seus limites e de esgotar a sua
capacidade produtiva – é a chamada crise dos recursos naturais. Ou seja, partimos da
racionalidade científica, avançamos para a tecnologia, a aliança entre a ciência e a
técnica, daí para a industrialização e o uso intensivo da natureza, e finalmente chegamos
ao ponto culminante, a escassez dos recursos naturais. Sem a oferta de recursos naturais,
a vida está ameaçada. É necessária, então, uma relação mais crítica com a racionalidade
que fundamenta e alimenta todo o processo, toda a cadeia de eventos que nos leva ao
esgotamento da natureza como ameaça à sustentabilidade da vida.
Outra questão que está em jogo na ética ambiental é a concepção de natureza: o que
entendemos pelo termo natureza quando queremos ‘salvar a natureza’? O que nos
permite separar o espaço da natureza do espaço da não-natureza, que chamamos de
cultura? O que sustenta a ideia que fazemos de nós mesmos como seres culturais? A
ideia de natureza tem uma história, e a nossa concepção de natureza, tecnicista e
salvacionista, é tributária dessa história. Quando a ética ambiental levanta a questão de
nossa responsabilidade face à natureza, obviamente que precisamos tomar consciência
do estado atual da história da ideia de natureza. No mínimo porque a relação
problemática que a nossa civilização mantém com a natureza, que tem levado ao quadro
crítico de esgotamento de recursos, deriva de uma determinada representação, científica
e objetificadora, que reduz a natureza a reserva de matéria-prima. Quando tomamos
consciência do desequilíbrio ecológico e advogamos a favor da preservação ambiental,
contribuindo, dessa forma, para uma certa ‘sacralização da natureza’, nossa adesão à
causa da natureza está de fato apontando para uma outra representação da natureza ou
está apenas mostrando o outro lado da ideia objetificadora, que responde, como
sabemos, pelo mesmo desequilíbrio ecológico que nos desperta o amor pela natureza?
Tais questões estão em jogo no debate da ética ambiental.
Uma ética ambiental que seja propositiva deve ser crítica do atual modelo de
desenvolvimento econômico, baseado na produção intensiva de bens e serviços e no
consumo descartalizante, não apenas pelo fato óbvio do acúmulo de lixo e do
desperdício de energia e de recursos, mas principalmente pela racionalidade
objetificadora que projeta o modelo econômico. O discurso da ética ambiental precisa
despertar a consciência de que a questão da crise ecológica, o esgotamento da natureza
coincide com a questão do esgotamento de um modelo de racionalidade econômica. E a
tendência do modelo econômico é adaptar-se a demanda do equilíbrio ecológico,
tornando-se uma economia verde2. Mas a economia verde continua jogando o mesmo
jogo da produção intensiva e do consumismo que descarta e entulha. Nossa tendência é
tornarmo-nos consumidores verdes, quando reduzimos o discurso da ecologia a uma
discussão estritamente econômica, acreditando cegamente no poder autorregulador do
mercado e na ação de uma suposta mão invisível. A ética ambiental deseja se
comprometer com uma mudança mais estrutural - da matriz axiológica e da cultura, o
que envolve também a economia. Mas não se trata de uma discussão econômica da qual
se esperaria a proposição de um novo modelo de produção. O que se deve esperar, a
partir do discurso da ética ambiental, uma vez que ele tem espaço, vez e voz, é que
qualquer que seja o modelo econômico ele deve ser necessariamente sustentável3, ou
seja, ele deve saber responder às demandas das gerações futuras, deve considerar a
viabilidade da sociedade humana do ponto de vista de sua reprodutibilidade, de seu
fluxo, de sua duração.
O presente capítulo está dividido em três partes, sem contar a introdução e a conclusão:
a primeira parte fará uma apresentação geral e uma discussão comparativa das
principais correntes da ética ambiental. O elenco de perspectivas de ética para o meio
ambiente é grande e foge às dimensões deste capítulo. Dadas as limitações optamos pela
análise de três correntes bastante significativas do ponto de vista do debate filosófico: o
sencientismo, o biocentrismo e o ecocentrismo – o objetivo da primeira parte é estudar o
estado atual da discussão filosófica em ética ambiental; a segunda parte propõe uma
problematização da ideia de natureza no contexto da crise ecológica, o objetivo dessa
discussão é a superação crítica de certos dilemas que envolvem o pensamento ecológico
de cunho ético e político em defesa da natureza. A terceira parte dedica-se a apontar
novos caminhos de desenvolvimento de uma ética para o meio ambiente a partir das
consequências críticas da problematização filosófica da natureza, chamaremos tal
perspectiva de ética ambiental vitalista.

2
Ricardo Abramovay em Muito além da economia verde propõe que o novo modelo de vida econômica
seja fundamentado numa nova aliança entre sociedade e natureza, economia e ética: “A importância da
ética na vida econômica não é apenas uma nova e longínqua aspiração filosófica alternativa, e sim um
traço decisivo da vida social e que a sociedade da informação em rede valoriza de forma inédita”.
(ABRAMOVAY, 2012. p. 25).
3
Para uma abordagem do conceito de desenvolvimento sustetável, consultar NOBRE, Marcos;
AMAZONAS, Maurício de Carvalho (Orgs.). Desenvolvimento sustentável – a institucionalização de um
conceito, e também LEFF, Enrique. Discursos sustentáveis. Referências completas ao final.
1. Paradigmas da ética ambiental: o estado atual da discussão

Em geral as correntes da ética ambiental dividem-se conforme o alcance de seus


critérios de consideração moral. O foco principal e comum é o valor moral da
natureza, e aqui se inscreve a tendência que distancia as éticas ambientais das
éticas tradicionais. A abordagem ambiental tende a criticar o antropocentrismo
que, em linhas gerais, caracteriza o discurso da abordagem tradicional. O
antropocentrismo das éticas tradicionais não admite nenhuma consideração
moral além do ser humano, e mesmo quando se trata de responder aos
problemas da crise ecológica, os argumentos continuam centrados nos interesses
humanos: devemos salvar a natureza não exatamente porque ela mereça uma
consideração moral, mas porque percebemos que dela dependemos: toda nossa
condição econômica, portanto nossa sobrevivência, está baseada nos recursos
dos ecossistemas. As éticas ambientais propõem linhas de argumentação que
ampliam o nicho da consideração moral para além dos interesses humanos, e
nesse sentido, rompem com o antropocentrismo tradicional.
Abordaremos a seguir algumas das principais correntes, procurando entender o
núcleo argumentativo de cada uma, bem como propondo pontos de
problematização para que o debate permaneça aberto e não linear. Não
partiremos aqui para buscar verdades, mas antes para propor divergências
afirmativas e não exclusivistas de perspectivas, pois nenhuma corrente de
pensamento deveria se pretender suficiente.
1.1 O sencientismo
O argumento central do sencientismo4, também chamado de ética do bem
estar animal, baseia-se na senciência. Entende-se por senciência a
capacidade dos animais para sentirem dor e prazer, permitida pela presença
de consciência e sensibilidade. Esta corrente enquadra-se na ética
utilitarista5, que baseia a decisão moral nas consequências da ação e não em
regras gerais a priori. Segundo a doutrina utilitarista a melhor ação é aquela

4
Para uma abordagem apurada do sencientismo ver: FELIPE, Sônia T. Antropocentrismo, sencientismo e
biocentrismo: perspectivas éticas abolicionistas, bem-estaristas e conservadoras e o estatuto de animais
não humanos. Revista Páginas de Filosofia, v.1, n.1, jan-jun/2009.
5
Ver neste Manual de ética o capítulo O consequencialismo, de Cinara Nahra.
capaz de gerar as melhores consequências para o maior número de
envolvidos, e as melhores consequências são sempre aquelas que podem
gerar maior felicidade, maior prazer e maior bem estar, ou, negativamente,
aquelas ações capazes de diminuir o grau de infelicidade e sofrimento. O
raciocínio da moral utilitarista rompe com o critério das éticas tradicionais
baseado na racionalidade: a moralidade não se restringe à comunidade dos
seres racionais, mas à comunidade dos seres sencientes, ou seja, são dignos
de consideração moral todos os animais capazes de sentir dor e prazer. O
utilitarismo propõe que ao invés de perguntarmos sobre se é capaz de
pensar, perguntemos sobre se é capaz de sofrer. O sencientismo é a vertente
utilitarista da ética ambiental e seu principal representante contemporâneo é
o filósofo Peter Singer.6
Na ética do bem-estar animal o ponto de partida é uma classificação dos
animais conforme o critério da senciência. É a capacidade de experimentar
dor e prazer a condição para a entrada do animal na comunidade dos seres
dignos de consideração moral. A observação empírica demonstra a
capacidade dos animais em expressar a dor e o prazer, e quanto mais
evoluídos, quanto maior é a tendência de especialização do sistema nervoso,
mais sencientes se tornam os animais. Esse é um aspecto problemático da
abordagem senciocêntrica, pois a teoria pressupõe uma certa objetividade da
capacidade de sentir dor e prazer, dificilmente verificada na experiência. A
divisão tende a ser forçosa por falta de condições objetivas que
fundamentem com precisão a capacidade biológica de sentir dor e prazer, e
também deve admitir uma certa linearidade, problemática, do processo
evolutivo da vida7. Obviamente que os vertebrados parecerão mais dignos
moralmente, pois o seu comportamento de reação à dor é bastante
semelhante ao nosso. Um certo antropocentrismo parece querer se insinuar
na medida em que a ética da senciência toma como referência o
comportamento semelhante ao nosso. Mas o que nos autoriza a negar a
senciência ao invertebrado incapaz de gemer ou de gritar? Eis uma
dificuldade do argumento utilitarista: como entender ou como escutar a

6
Autor, dentre outras obras, de Ética prática e Libertação animal.
7
No próximo item apresentaremos uma visão não linear de evolução da vida, que permitirá novos focos
de análise.
sensibilidade e consciência 8 dos animais em geral para além do código
comportamental comum à maioria dos vertebrados? Como decidir sobre a
senciência em geral se nossa compreensão a respeito da capacidade de sentir
deriva de nossa própria senciência? Essas questões encontram uma resposta
na perspectiva biocêntrica.
A partir do momento em que podemos decidir quais são os que sofrem e
quais são os que não sofrem, a partir do momento em que aceitamos que o
sofrimento é uma categoria biológica, localizada no sistema nervoso, e
concluir que uns sofrem e outros não, ampliamos o nicho da moralidade para
abrigar os animais que sofrem. Os seres morais do sencientismo são aqueles
que, segundo o nosso critério de senciência, expressam sensibilidade à dor e
sofrimento. O argumento utilitarista estabelece a nossa obrigação moral na
comunidade senciente: agir de modo que as consequências da ação não
signifiquem sofrimento e, de preferência, que elas resultem no incremento
do bem estar.
1.2 O biocentrismo
A abordagem biocêntrica9 da ética ambiental amplia a comunidade dos seres
morais a todo organismo vivo. O argumento central estabelece que toda vida
constitui um centro teleológico, todo organismo vivo tem uma finalidade. A
ação moral deve, portanto, reconhecer o interesse inerente ao ser vivo de
permanecer vivendo, ou seja, cumprindo a sua finalidade. O critério da
senciência é alvo de crítica, pois a capacidade de sofrer não resolve o
problema da moralidade ambiental: para o biocentrismo a capacidade de
viver, por ser anterior e mais fundamental, é que deve pautar o decisionismo
moral. Ainda que não sejamos capazes de compreender o valor inerente que
toda forma de vida constitui, é possível que sejamos capazes de intuí-lo: o
esforço mais próprio e genuíno da vida, o da manutenção de si mesma, é
8
Entenderemos consciência como dimensão coextensiva da vida, tal conceito será aprofundado
proximamente.
9
Consultamos para este item: STÖHR, Andreas. Ética e ecologia: um levantamento sobre os
fundamentos normativos da ética ambiental. Em: NOBRE, M; AMAZONAS, M. C. (orgs.).
Desenvolvimento sustentável – a institucionalização de um conceito; FELIPE, Sônia T. Antropocentrismo,
sencientismo e biocentrismo – perspectivas éticas abolicionistas, bem-estaristas e conservadoras e o
estatuto de animais não-humanos; TAYLOR, Paul W. The Ethics of Respect for Nature, disponível em:
www.umweltethic.at, acesso em junho de 2013. Indicamos também o volume especial da revista ETIC@,
Revista Internacional de Filosofia da Moral, da UFSC, dedicado ao tema da ética ambiental. O volume
apresenta uma excelente abordagem sobre o debate em ética ambiental, apresentando autores como
Tom Regan, Paul Taylor e Kenneth Goodpaster, expoentes do pensamento ambiental estadunidense.
aquilo que produz e indica o valor da vida. Está em questão o
reconhecimento da autonomia prática das formas de vida, ou seja, a tomada
em consideração do valor que constitui a capacidade inerente à vida de
autoprover-se.
A crítica ao antropocentrismo toma a forma radical do combate à
discriminação especista, sustentada por um modelo linear de evolução 10 .
Uma ética que tem como centro de decisão o conceito de vida simplesmente
não vai admitir nenhuma vantagem moral a espécies mais evoluídas. O grau
evolutivo deixa de valer como critério moral a favor do valor inerente da
vida.
A objeção mais óbvia ao modelo de ética biocêntrica diz respeito a própria
sustentabilidade da vida, que impõe aos organismos a necessidade de se
alimentarem de outros organismos, processo que a ecologia chama de cadeia
alimentar. O biocentrismo parece sugerir um igualitarismo que problematiza
o encadeamento alimentar que sustenta a vida, e que nos levaria a considerar
a morte de um ser humano tão condenável quanto a morte de qualquer outro
animal. A resposta biocêntrica é que a interferência na vida de outros seres
impõe uma justificativa razoável. Em princípio, não há nenhum dado
objetivo que torne uma forma de vida mais valiosa ou mais merecedora de
consideração do que outra, apenas a necessidade de sobrevivência pode
justificar a interferência na vida de outro organismo. Assim, de acordo com
o biocentrismo, a morte de um ser humano resultante de uma ação extrema
de autodefesa pode ser justificada da mesma forma como a morte de um
animal para prover a necessidade de sobrevivência em circunstâncias
igualmente extremas; por outro lado, não tenho razão moral para esmagar
uma fileira de formigas simplesmente porque tenho nojo desses insetos. É
preciso que as razões sejam fortes o suficiente, e elas não podem favorecer
sempre o interesse humano, pois o centro do interesse é a vida sem distinção
de espécie.

10
No próximo item tratamos do conceito de especismo em sua relação com o modelo linear de evolução
biológica.
O modelo biocêntrico de Paul Taylor 11 propõe quatro regras básicas que
devem ser seguidas se quisermos levar a sério o respeito pela natureza: a
não-maleficência, a não-interferência, a fidelidade e a justiça restitutiva.
Por não-maleficência entende-se a regra que nos obriga a não praticar ações
que possam fazer mal ao paciente moral. Entende-se por paciente moral o
partícipe da comunidade moral incapaz de compreender as ações que pratica
ou sofre ou todo ser que age sem o comando de uma autoconsciência
deliberativa. Obviamente que pacientes morais não cometem maldade,
simplesmente porque não são capazes de compreender suas próprias ações,
portanto, não podem ser responsabilizados. Agente moral é todo ser humano
capaz de deliberar e compreender as consequências de suas próprias ações. A
regra da não-maleficência obriga o agente moral a não praticar ações que
privem qualquer espécie viva de sua própria vida ou que prejudiquem sua
comunidade.
Por não-interferência entende-se a regra que nos impede de interferir na
liberdade de outros seres vivos. O organismo é livre quando goza de todas as
condições naturais para o seu autoprovimento, como alimentação, abrigo e
possibilidade de escolher o seu território e constituir a sua comunidade. Toda
ação que interfira em qualquer desses processos da vida livre deve ser
evitada. São compreendidas como interferentes também as ações de manejo
e controle da vida selvagem, como são, em geral, as práticas
conservacionistas, e não importa se tais medidas são bem intencionadas, pois
elas partem de um pressuposto autoritário que impõe à natureza um
ordenamento artificial e centrado no interesse humano. Assim, qualquer
forma de captura, controle e confinamento da vida, para o bem ou para o
mal, não pode ser justificada do ponto de vista biocêntrico, pois significa o
prejuízo da liberdade dos indivíduos, condição básica para o exercício de sua
autonomia prática.
Por fidelidade entende-se a regra que obriga o agente moral a não trair a
confiança que recebe em seu convívio com os outros animais. A confiança é
a condição mais básica da relação pacífica entre indivíduos, ela é inocente,
pois implica na entrega das armas quando ocorre o encontro. Um animal é

11
Filósofo estadunidense, uma das principais referências da ética biocêntrica, autor da obra Respect for
nature: studies in moral, political and legal philosophy.
capaz de conviver pacificamente com o outro quando sua relação é capaz de
produzir confiança mútua e, consequentemente, mútua recusa de autodefesa.
Significa a capacidade de acolher eticamente a existência do outro. 12 A
ausência de articulação intelectual por parte dos animais não humanos abre o
código da confiança para horizontes ampliados, que fogem do nosso alcance
de compreensão. Os animais se entregam a nós a partir de seus horizontes e
nós, em geral, nos aproveitamos da nossa inteligência para ludibriar a
confiança que os animais nos dão tão genuína e gratuitamente. O mesmo
acolhimento responsável que somos capazes de dar a um bebê humano
recém nascido devemos aprender a dar aos animais, que como os bebês não
articulam intelectualmente, são pacientes morais. Segundo o biocentrismo,
não só aos animais, a todo ser vivo animal e vegetal. A regra da fidelidade
diz simplesmente que não temos o direito de trair a confiança dos animais
nas relações que compomos com eles.
Por justiça restitutiva entende-se a obrigação de restituir aos animais e
plantas os danos que lhes provocamos. Preferencialmente que ela seja a
última alternativa, pois, por exemplo, se respeitamos a regra da não-
interferência, a justa restituição não precisa ser mobilizada. Obviamente que
se quisermos imaginar uma sociedade decidida a viver conforme o modelo
ético biocêntrico, dificilmente conseguiremos imaginar a justiça restitutiva
não ser a regra mais frequentemente aplicada, tardaríamos muito em
aprender a viver conforme a regra da não-interferência, e, portanto, teríamos
que restituir com muita frequência. Digamos que o ideal de justiça
biocêntrica seja uma sociedade capaz de viver sem provocar interferência,
para que não corra o risco de causar mal, para que não corra o risco de trair a
confiança e, finalmente, para que não necessite restituir.
(Um inevitável questionamento. Nossa sociedade teria que primeiro restituir
bastante, por bons períodos de duro aprendizado, até que conseguiríamos
viver em sociedade não interferente. Sejamos aqui bem francos: é muito
difícil imaginar uma tal composição ecológica entre as comunidades bióticas

12
Ricardo Timm de Souza discute a questão ambiental a partir da categoria da alteridade, situado,
sobretudo, na teoria ética de Emmanuel Levinas. Para o autor, uma ética ambiental deveria acolher a
natureza como alteridade ética, e não ficar iludida com uma visão holística e ingênua de natureza. Esta
proposta está de acordo com a ideia de confiança, muito sensível e significativa para a chamada ética da
alteridade levinasiana.
humanas e não humanas. Primeiramente é muito artificial e ilusória a
divisão que esta teoria pressupõe que exista entre natureza e sociedade
humana ou cultura. É muito difícil que uma tal sociedade, bastante
hipotética, diga-se, de um realismo e de um pragmatismo remotos, não tenha
que estabelecer áreas de proteção ambiental para isolar a natureza das
violentas e não merecedoras de confiança sociedades humanas. Como se as
sociedades tivessem brotado do nada, de uma não natureza, como se não
fôssemos o trabalho livre da própria natureza, o princípio natural da
indeterminação que ganha corpo no psiquismo humano. O biocentrismo é
uma reverência incondicional ao valor da vida, sem distinção de espécie, e
nesse aspecto, é o exemplo mais elevado de ética ambiental autêntica, mas
padece ainda de uma visão romântica de natureza, quando idealiza um
mundo onde humanos não interferem na vida que julgam natural. Como não
admitir que não temos saída a não ser convivendo com a natureza e todos os
seres vivos? Talvez o biocentrismo possa privilegiar a regra da fidelidade,
pois certamente não tem melhor lição a ser aprendida por nós humanos do
que a da confiança. Creio que seja muito menos artificial e mais fácil de
imaginar uma cultura capaz de acolher a natureza e todos os seus seres como
se acolhe alguém em sua própria casa. Seria esta uma sociedade
autenticamente biocêntrica).
1.3 O ecocentrismo
O ecocentrismo é o conjunto das correntes de ética ambiental que estendem o
critério de consideração moral para além das entidades vivas. Passam a merecer
valor moral as paisagens, os rios, a atmosfera, as florestas, as montanhas.
Ganham voz as noções de ecossistema e biotic community (comunidade biótica).
O conceito clássico de ecologia, cunhado pelo darwinista alemão Ernst Haeckel
(1834-1919), que acentua o caráter da interação, entre indivíduos e destes com
seu meio, é apropriado para enfatizar o valor supremo da comunidade. Se no
biocentrismo, a vida é o centro de gravidade da moral, no ecocentrismo, o valor
moral é desindividuado: o indivíduo não vale tanto quanto a sua comunidade, ou
antes, vale na medida de sua relação com a comunidade. O foco se volta para o
coletivo, não o indivíduo, mas a população; e não só a comunidade biótica, mas
a paisagem física, os rios, as montanhas.
É preciso haver um equilíbrio na composição das populações. Se uma população
se sobressai a outras algo está errado, um prejuízo para a biodiversidade que
mantém a beleza e a integridade dos ecossistemas. A saúde dos indivíduos está
subordinada à saúde da população; a saúde da população está subordinada à
saúde da comunidade de populações; a saúde da comunidade está subordinada à
saúde do ecossistema, que por sua vez está subordinada à saúde da biosfera, o
planeta Terra. O individual se dilui no todo, por isso o ecocentrismo é um tipo
de ética ambiental holística, o valor está no todo e as partes valem enquanto
estão integradas, ou seja, dependendo da forma como estão integradas nesse
todo.
O paradigma do ecocentrismo 13 é a ética da Terra de Aldo Leopold (1887 –
1948), certamente uma das mais importantes corrente de ideias que influenciou o
movimento ecológico, notadamente estadunidense, no século XX. Em seu
pequeno artigo intitulado Ética da Terra (The Land Ethics), presente no livro A
Sand County Almanac (1949), encontramos a fórmula básica do ecocentrismo:
“Uma coisa está certa quando tende a preservar a integridade, a estabilidade e a
beleza da comunidade biótica; está errada quando tem a tendência inversa”
(LEOPOLD, 1949.). O desequilíbrio entre populações traz como consequência o
prejuízo da comunidade biótica, que se torna feia, instável e desintegrada. É
necessário evitar que isso aconteça promovendo o controle das populações.
Dado que o ecocentrismo também não discrimina por espécie, é uma ética não
especista, toda e qualquer população é alvo de controle e está sujeita a medidas
radicais para sua contensão. O que significa concretamente que, da mesma
forma como controlamos com veneno uma determinada praga de insetos
transmissores de doenças, teríamos que promover o extermínio de populações
humanas para devolver a estabilidade, a beleza e a integridade do ecossistema.
Mas teríamos antes que decidir os critérios para distinguir os elimináveis.

13
Algumas referências sobre ecocentrismo consultadas para a produção deste item: STÖHR, Andreas.
Ética e ecologia: um levantamento sobre os fundamentos normativos da ética ambiental. Em: NOBRE,
M.; AMAZONAS, M.C. (Orgs.). Desenvolvimento sustentável – a institucionalização de um conceito;
GALVÃO, Pedro. O dilema da ética da Terra (Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa), que analisa
sobretudo as implicações ecofascistas do modelo ecocêntrico de Aldo Leopold, retirado de:
http://pedrogalvao.weebly.com/artigos.html, acesso em junho de 2013; FERREIRO, Maria de Fátima
Palmeiro. Paisagens invisíveis: a ética da Terra segundo Aldo Leopold, retirado de:
www.apdr.pt/siterper/numeros/RPER20/20.8.pdf, acesso em junho de 2013; DIÉGUES, Antônio Carlos.
O mito moderno da natureza intocada, sobretudo o capítulo I, onde se analisa a ética da Terra na
história do pensamento e do movimento conservacionista nos Estados Unidos.
Sabemos que o Nazismo se fez com base em argumentos muito semelhantes a
este, que reverenciavam a grandeza da raça ariana e justificavam o genocídio.
De fato, a ênfase no valor da comunidade em detrimento do indivíduo e o caráter
não especista da ética da Terra abrem espaço para a acusação de que o
ecocentrismo seria uma ética ambiental fascista, um ecofascismo. Embora seja
muito improvável que um genocídio se pratique atualmente em nome do
equilíbrio ecológico, ao menos temos razões para esperar que um Estado que o
fizesse deliberadamente seria condenado moral e politicamente pelos
organismos internacionais responsáveis; embora não pareça justo acusar de
fascistas os adeptos do argumento ecocêntrico, temos razões de sobra para temer
as consequências práticas e políticas de levarmos a sério o projeto social e
ecológico de um modelo como o da ética da Terra. Sobretudo por que parece
bastante ingênuo e pouco consistente o argumento que nega o valor moral da
individualidade, transferindo-o para o coletivo, e se tem algo com o qual a
filosofia não pode conviver é a ingenuidade e a falta de consistência.
Não podemos ser ingênuos, em nenhum aspecto.
No que diz respeito a ideia fundamental que mobiliza o discurso da ética
ambiental, sintetizada no nosso dever de respeitar a natureza, duas observações
são importantes: primeiramente, pecamos por ingenuidade acreditando que
estaremos salvando a natureza através da implantação de unidades de
conservação; depois, pecamos por má-fé se continuarmos a praticar os abusos
que tem levado ao quadro geral da crise socioambiental, criando ilusões que
justificam a continuidade inevitável e irrecusável do crescimento econômico,
que por mais verde que possa ser, nunca vai deixar de pressionar negativamente
o planeta.
Há uma necessidade urgente que se coloca para a ética ambiental, que
certamente passa pela revisão de nossa ideia de natureza e da relação que temos
que ter com ela.

2. Sobre a ideia de natureza desde uma perspectiva não linear da evolução


Certamente um grande mérito de Darwin foi mostrar que o homem é tão animal
como qualquer outro animal da natureza. O pensamento evolucionista é, nesse
sentido, um golpe contra o antropocentrismo. Ao mesmo tempo o animal mais
inteligente da natureza está na ponta da lança da evolução, e o darwinismo não
consegue escapar do modelo linear de interpretação da vida, herdeiro de
Aristóteles. Por conta de uma tendência linear ou unilateral o evolucionismo de
Darwin ao mesmo tempo em que desloca o ser humano do centro, posiciona-o
na condição de mais evoluído. Se o evolucionismo não se presta para uma
apropriação moral, dado que Darwin está analisando fenômenos da natureza,
onde vigora um determinismo independente da construção deliberada e
consciente de valores, no entanto ele está no fundo do argumento
antropocêntrico que sustenta a supremacia ou a exclusividade da condição moral
do ser humano.
Os defensores de uma ética para os animais acusam a tradição moral majoritária
do ocidente de ser especista. O especismo é a posição que discrimina o valor
moral dos animais conforme o grau evolutivo de sua espécie. O argumento do
especista é semelhante ao do racista e do sexista: a diferença de espécie, de cor
da pele e de sexo implicariam em diferença de valor moral. E da mesma forma
como discriminar moralmente um indivíduo pela cor de sua pele ou pelo seu
sexo é absurdo e arbitrário, discriminar pelo grau evolutivo da espécie também
carece de fundamento. Obviamente que o especismo é anterior ao
evolucionismo, provavelmente se confunde com a própria história do Homo
sapiens, mas a teoria evolutiva fortalece a convicção de nossa superioridade
moral, ao mesmo tempo em que abre perspectivas para o descentramento
humano.
Um evolucionista não precisa ser necessariamente um especista, basta que ele
consiga admitir para o fenômeno da vida um desenvolvimento não linear.
O filósofo francês Henri Bergson (1859 – 1941) propõe em sua obra Evolução
criadora (1907) um modelo de evolução que rompe com o esquema da
linearidade. Bergson entende que a vida evolui não em uma única direção, mas
tomando vias divergentes. O movimento da vida obedece a um princípio de
diferenciação, que consiste na variação dos caminhos pelos quais a vida
encontra saídas para expandir o seu fluxo. O princípio de diferenciação não
obedece a uma finalidade dada a priori nem se reduz à teoria da adaptação
darwiniana, que tende a uma explicação mecânica da interação entre organismo
e meio. O princípio da diferenciação e a ideia das linhas divergentes propostos
por Bergson tem a dupla vantagem de fortalecer argumentos não especistas e de
problematizar a ideia de natureza pelas consequências do desenvolvimento da
inteligência. Essas vantagens interessam, como veremos, para o projeto de uma
ética do meio ambiente.
Segundo Bergson, três são as direções fundamentais que a vida toma no
processo evolutivo, são elas: o torpor vegetativo, o instinto e a inteligência. A
vida ou, mais especificamente, o impulso vital é uma espécie de consciência que
invade a matéria forçando-a a assumir as variadas formas dos seres vivos. Cada
organismo é um resultado mais ou menos exitoso desse processo que é o
movimento de expansão do impulso vital. A consciência está presente em toda
forma de vida, embora na grande maioria permaneça adormecida, e tudo indica
que ela está mais associada à função locomotora da vida animal. Quanto mais se
complexifica a função locomotora, mais a consciência se expande.
Os vegetais tendem à fixação, produzindo e armazenando continuamente energia
através do processo fotossintético. Os animais tendem ao movimento e
desenvolvem dispositivos para assimilar a energia produzida pelas plantas e por
outros organismos. A atividade animal vai se desenvolver em duas grandes vias,
o instinto, que prevalece na vida invertebrada, e a inteligência, que evolui na
direção dos vertebrados. O mais importante a se notar nesse modelo de Bergson
é o caráter divergente do movimento de expansão da vida: a inteligência não é a
superação evolutiva do instinto, nem o instinto uma espécie inferior de
inteligência, senão que instinto e inteligência configuram dois métodos distintos
e eficientes de solução para os problemas da vida animal. São tendências da
vida, e entre elas vigora uma diferença de natureza e não apenas de grau: o
esquema tradicional, linear, não reconhece a importância da diferença de
natureza porque se acostumou a ver na evolução da vida apenas uma graduação
que se desdobra dos vegetais até a vida inteligente.
O processo de diferenciação é uma seleção de tendências que diferem por
natureza: a via dos invertebrados é adequada para o desenvolvimento instintivo,
que chega a seu ápice nos insetos himenópteros, formigas e abelhas; a via dos
vertebrados é adequada para o desenvolvimento da inteligência, que chega a seu
ápice no ser humano. Mas a diferenciação não exclui a outra tendência, ainda
que selecione e privilegie o desenvolvimento de uma delas. Obviamente que não
deixamos de ser instintivos porque nos tornamos inteligentes, aliás o instinto
permanece sendo a grande força de sustentação da vida.
Mas importa saber em que o instinto difere da inteligência. O que há em cada
tendência que só se observa nela? A consciência encontra na rota dos
vertebrados, os animais que desenvolvem o sistema cérebro-espinhal, um
caminho mais livre para se expandir, que proporcionará formas de vida cada vez
mais capazes de selecionar e fazer escolhas. Tudo indica que a consciência
deseja encontrar a máxima liberdade possível ou proporcionar a forma de vida
mais apta a selecionar e deliberar. Essa observação da consciência sinaliza a
diferença mais visível e reconhecida entre instinto e inteligência: o gesto
instintivo é mais automático, como se só pudesse ter aquela direção enquanto
que o gesto inteligente é mais seletivo porque consegue dispor de uma variação
de alternativas; o instinto é um movimento espontâneo, de consciência
entorpecida, a inteligência é um movimento calculado, de consciência desperta.
O animal basicamente instintivo obedece ao ritmo da natureza; o animal
inteligente tende a imprimir o seu próprio ritmo ao da natureza, tentando imitar,
mas criando novidade. O instinto não surpreende a natureza, a inteligência sim.
A natureza contém o instinto, a inteligência expressa a vontade de conter a
natureza.14
O protótipo da vida instintiva é o formigueiro e a colmeia. Nessas sociedades
vigora uma ordem perfeita na medida em que toda ação é internamente regulada
e como que orientada para dentro: o indivíduo vive em função de sua
comunidade e, dessa forma, a individualidade não tem sentido. Não existe
liberdade porque a ação é programada e determinada naturalmente. Não há
distinção significativa entre um formigueiro e outro da mesma espécie de
formiga, a não ser alguma variação devida a circunstâncias ambientais.
O protótipo da inteligência é, obviamente, a vida humana. Em nossas sociedades
a ordem está bem distante da perfeição e ela só é aproximadamente conquistada
através de dispositivos regulatórios que devem ser internalizados: o indivíduo

14
Bergson tem várias formas de distinguir as duas tendências da vida animal, numa delas diz que o
instinto é a capacidade de fabricar e utilizar instrumentos organizados e a inteligência é a capacidade de
fabricar e utilizar instrumentos inorganizados (Ver BERGSON, 2001. p. 131). O instrumento do animal
instintivo é o corpo do organismo, pinças, antenas, garras; o instrumento do animal inteligente são
coisas tomadas da natureza e transformadas pela intenção do indivíduo. O instintivo fabrica um
instrumento de função limitada e, em geral, exclusiva a um ponto determinado da natureza e o tipo de
ação que tal instrumento proporciona cumpre perfeitamente o seu objetivo; o inteligente fabrica um
instrumento de ação ilimitada, aplicável em diversas circunstâncias, porém o instrumento nunca cumpre
com perfeição o seu objetivo, o que leva o organismo a querer aperfeiçoar o aparelho inventado. O
instinto é repetitivo, a inteligência é inventiva, capaz de variação.
não vive espontaneamente em função do grupo, ele precisa aprender a conviver
e tal processo é variável em cada sociedade e entre sociedades. A complexidade
da vida inteligente se deve ao alcance da liberdade, proporcional ao nível de
abertura da consciência. Como a possibilidade de escolha é larga, o critério
tende a favorecer o próprio indivíduo: a liberdade acena para a individualidade.
O grande desafio da sociedade humana é a conjugação das liberdades.
Duas forças antagônicas estão implicadas na vida social dos humanos: a força da
coesão social e a força da liberdade; a pressão externa para manter o vínculo
com o grupo e a pressão interna, individual, para manter o vínculo apenas
consigo mesmo. O equilíbrio entre essas duas forças quase nunca é satisfatório,
pois os indivíduos devem se contentar com limites estreitos para o exercício de
suas liberdades.
Tal interpretação vitalista da inteligência e da vida social dos seres inteligentes
permite superar certos impasses de nossa relação com a natureza. No fundo de
toda ética ambiental palpita uma determinada concepção de natureza. O exame
da crise ecológica, em geral, leva ao entendimento de que a atividade humana é
quase que necessariamente predatória e que a natureza para ser salva precisa ser
isolada e protegida da sociedade humana. Porém, tal análise só parece possível
se desconsiderar o fato de que a vida inteligente é filha legítima da natureza.
Temos que admitir como natural o princípio inteligente de negação do
determinismo natural. Obviamente que tal consideração não sinaliza nenhuma
possibilidade de justificativa moral do prejuízo que a humanidade inteligente
tem causado ao chamado mundo natural. Trata-se, antes, de atualizar a nossa
concepção de natureza, ainda demasiadamente herdeira de uma modernidade
que primeiramente objetifica e instrumentaliza para, posteriormente e após haver
se ressentido, idealizar e romantizar. O pensamento ecológico contemporâneo
ainda padece de um certo romantismo ressentido da modernidade.
Uma ética ambiental não pode carregar tal ressentimento, não pode ter pena da
natureza, porque esta natureza merecedora de piedade pode deixar de existir se
recuperarmos uma relação mais autêntica com a nossa natureza (interior e
exterior). Para tanto devemos formar outro imaginário da natureza, porque o que
temos não nos serve, seja porque violentamos, seja porque sacralizamos.
Precisamos formar outro imaginário da natureza para nos livrar do hábito quase
automático de consumir a natureza na produção de utilitários e também do mito
da natureza intocada, de que nos fala Antônio Carlos Diégues. O hábito e o mito
se retroalimentam e se autoiludem. O resultado de tal ilusão é que tendemos a
conceber éticas ambientais pregadoras de um retorno mítico à vida selvagem,
por um lado, e por outro a escapar para versões sofisticadas e onerosas de
desenvolvimento sustentável, ambas alternativas pouco viáveis e pouco efetivas.
O desenvolvimento sustentável não consegue frear a voracidade consumista do
mundo globalizado, aliás tem se sustentado da mesma voracidade e da mesma
saciedade insuficiente e também tem produzido boas relações com as propostas
de retorno mítico, (veja-se o mercado ecológico e sua oferta de opções de
viagens para os paraísos ecológicos protegidos ao redor do planeta).
A natureza é algo que contem em si o princípio de sua mutação. Os seres vivos
são as unidades indivisíveis – indissociáveis desse todo orgânico e
profundamente dinâmico – que representam a luta perpétua do impulso vital
para fazer durar a matéria viva do planeta.
A natureza é o conjunto das infindáveis estratégias de sobrevivência do impulso
vital, é o movimento único da vida que se estende em diversas direções em
busca da saída mais sofisticada para os problemas que vão surgindo na medida
em que a vida inventa e reinventa suas formas. A força íntima e fundamental da
vida é o instinto, por conta dele a natureza mantem a sua perenidade e o seu
vigor. Mas o instinto é repetitivo porque sua consciência é dormente. É pela via
da inteligência que a natureza encontra as formas mais adequadas para a sua
própria reinvenção, para sua diversificação. O ser humano é o salto mais ousado
e mais arriscado do impulso vital, porque é através dele que a consciência
desperta plenamente, a ponto de escapar do determinismo e forjar as suas
próprias condições. A liberdade é o maior risco da vida e o seu maior achado,
seu mais precioso tesouro. A natureza, ao criar condições para a vida inteligente
e livre abre para si um campo variado de possibilidades.
A cultura não é a negação da natureza, mas a sua diferenciação, o reencontro de
seu próprio princípio de criação.

3. Ética para o meio ambiente – uma proposta vitalista


A expansão inteligente e humana da consciência é abertura da natureza para
futuro indeterminado. O princípio da temporalidade histórica foi introduzido na
natureza, mas por ela própria. A mesma ciência ecológica que reage
politicamente à apropriação da natureza pela cultura, abrindo espaço para as
propostas de retorno mítico, admite pelo paradigma da interação dos elementos a
continuidade entre a história natural e a história humana. A consciência humana
expandida em liberdade é o ponto de abertura da natureza para fora de seu
determinismo. O destino antiecológico da humanidade não é inevitável, é apenas
uma entre tantas outras possibilidades igualmente corrigíveis ou aperfeiçoáveis
pelo mesmo princípio de abertura e de diferenciação que a consciência
expandida da inteligência pressupõe.
Escapar ao determinismo implica em assumir a responsabilidade de seu próprio
destino liberado. Cabe à ética ambiental problematizar a fatalidade de tal destino
e isto implica em repropor a relação entre liberdade e responsabilidade. 15 O
desafio do paradigma ecológico é converter a cultura em campo de
problematização ética, começando pela tomada de consciência de nossa
responsabilidade de existir culturalmente.
Qual o sentido da cultura? Por que produzimos artefatos? O que fazemos quando
transformamos as coisas naturais em utilitários? A resposta óbvia e imediata é
que essa é a forma como damos conta de sobreviver e reproduzir. Produzimos
objetos porque não estamos determinados pelas coisas que nos rodeiam e porque
já temos necessidades que exigem a invenção de objetos, que por sua vez
despertarão novas necessidades que levarão a novas invenções. Produzimos
cultura porque somos livres e para que possamos sê-lo ainda mais. É provável
que seja este o sentido da cultura: a liberdade.16
Mas Também produzimos objetos para nos habituar a eles, e não estamos
falando apenas em coisas materiais, pois, obviamente, também faz parte da
cultura a criação de ideias e crenças. Uma cultura não teria sentido se não
quisesse se manter, ser transmitida, gerar valores que transformamos em bens
herdáveis. Toda cultura tende a virar tradição, que desejará se perpetuar
produzindo inclusive crenças e ideologias a favor de sua conservação. Com o

15
O princípio responsabilidade de Hans Jonas é um exemplo de esforço nessa direção, focalizado na
crítica da civilização tecnológica. Remeto o leitor ao capítulo Ética, ciência e técnica, de Itamar Soares
Veiga e José Carlos Köche, deste Manual de ética.
16
Uma indicação para essa linha de interpretação encontramos em Vilém Flusser: “No fundo, o que é
bom é apenas a liberdade. As coisas são boas apenas na medida em que contribuem para me libertar. E
isto é exatamente também a medida da cultura. Tecnologia não é cultura. E tecnocracia (governo da
tecnologia não controlado) é anticultura. Em suma: cultura é tecnologia mais liberdade.” FLUSSER, V.
Natural:mente – vários acessos ao significado de natureza. São Paulo: Annablume, 2011. p. 55.
tempo, aquilo que significou conquista de liberdade pode vir a significar
exatamente o contrário, pois nada impede ninguém de querer viver de maneira
avessa a sua própria cultura. Nada impede ninguém de desejar trair, em nome de
sua própria liberdade, a sua tradição cultural. A cultura vive da consagração do
hábito e a moral do hábito tende a gerar um novo determinismo e,
consequentemente, a minar o espaço da liberdade. Mas, se aceitamos que o
sentido de nossa existência cultural é a liberdade, somos eticamente convocados
a superar o determinismo dos nossos próprios hábitos.
A crise ecológica é certamente um reflexo de nossa crise cultural. Não é difícil
compreender que o esgotamento dos recursos naturais revela a saturação de
nossos hábitos e a necessidade urgente de mudança em nossos padrões de
comportamento. A análise de tal fenômeno é difícil, pois tende a se estender em
diversas direções, não respeitando fronteiras, por isso não é exagero tratar a
questão ambiental como mudança de paradigma. A ecologia solicita uma nova
visão da natureza: orgânica, não mecanicista, não utilitária; um novo
entendimento de nossa relação com a natureza: responsável, solidário, não
objetificante; uma nova cultura, que não se contente em mudar hábitos a partir
de um jogo onde as cartas já estão marcadas, que não seja simplesmente a
conversão para uma economia verde onde nos contentaríamos em ser
consumidores ecologicamente conscientes, mas uma cultura nascida da
superação da esgotada dicotomia entre natureza e cultura. Uma cultura, enfim,
que leve adiante o impulso criador da vida, o que demanda uma visão integrada
da natureza e uma relação responsável e solidária com o ser vivo.
O caminho que tomamos até aqui, que situa a expansão da consciência humana
no quadro geral da evolução da vida, nos permite conceber a ética em
coextensão à vida. Isto não implica numa visão naturalista da ética, pois se
desenvolvemos biologicamente um psiquismo capaz de ação refletida e livre
significa que nossas ações são indetermináveis, não são controláveis pela
natureza, somos capazes de surpreender a nós mesmos e à natureza, somos
capazes de objetificar a árvore em madeira e o rio em hidrelétrica. Conceber a
ética em coextensão à vida é afirmar o movimento da vida na nossa condição
ética, como se o drama ético da vida representasse o seu próprio movimento
criador, poético, no sentido da poiésis,17 como se a expansão do impulso vital
continuasse forçando a vida, introduzindo através do ser humano a
temporalidade na natureza, a abertura para o futuro, aquilo que não se pode
prever. Exatamente porque somos livres, ou seja, capazes de causar surpresa,
inventamos a moral, ou seja, aquilo que vai nos determinar a agir corretamente,
o que quer dizer sem causar surpresa. Os valores morais são como artefatos que
inventamos, e eles prescrevem, se tornam velhos e inoperantes, substituíveis
como qualquer outro artefato. Por isso o mais importante é fazer da vida moral
uma vida ética. Quero dizer que devemos afirmar a nossa capacidade de
criação de mundo, que pressupõe a consciência aguda e atenta do nosso
condicionamento moral. Voltamos assim ao problema do hábito, essa força de
repetição da vida: fazer da vida moral uma vida ética é enfrentar a força do
hábito, desviar da repetição, se convocar para a criação de si mesmo e do
mundo.
Ao encontro dessa perspectiva, uma ética para o meio ambiente se compromete
com uma concepção aberta de ecologia 18 , de natureza e de cultura. O
pensamento ecológico deve ser variado da predominância científica e ser
vitalizado por uma filosofia intuitiva, ao estilo bergsoniano, capaz de elaborar
um novo imaginário da natureza. Uma ecologia contaminada por tal filosofia
devolve à natureza a sua organicidade, altamente prejudicada por uma visão
majoritariamente científica e tecnológica.19 Uma ecologia filosófica, sem deixar

17
Conceito da filosofia antiga que expressa a potência ou capacidade humana da criação, típica dos
poetas, mas não restrita a estes.
18
O conceito de ecologia menor proposto por Ana Godoy é muito apropriado para uma ética ambiental
afirmativa da vida enquanto psiquismo criador. A autora contrapõe à ecologia maior, esta que
encontramos nos compêndios científicos e que domina as políticas voltadas para a natureza, quase que
invariavelmente de caráter conservacionista e territorialista, a ecologia menor, que libera a vida das
fórmulas abstratas da ciência porque parte do entendimento de que a vida é estado de criação que
compõe a sua própria ecologia (menor) reinventando-se constantemente.
19
A ética ambiental aqui proposta não é do tipo que teme a tecnologia, é diferente, portanto, da
proposta de Hans Jonas, baseada na chamada heurística do temor. A responsabilidade não precisa estar
associada ao medo do que a tecnologia pode causar. Jonas tem razão a respeito do fato de que
produzimos tecnologia tão complexa que as consequências desastrosas são cada vez mais prováveis, e
que, portanto, a civilização tecnológica deve estar calcada no princípio da responsabilidade. Isto é
absolutamente incontornável. Mas a responsabilidade não precisa ser uma relação movida pelo temor
do que pode acontecer. Uma ética ambiental de estilo vitalista, como a que estamos propondo, concebe
a responsabilidade como o ato livre da vida inteligente, afirmativo e não reativo, portanto não
temeroso. O temor enfraquece a consciência, embora provenha dela, pois a zona de possíveis que a
consciência ilumina produz hesitação e pode levar a paralisar a ação. Obviamente que o medo tem uma
função vital fundamental, mas a vida não evolui sem boa dose de risco. A responsabilidade deve ser
afirmativa e livre e não reativa ou condicionada pelo temor do que pode acontecer, ela não pode ser
de ser científica, pode ultrapassar o impasse da dicotomia entre natureza e
cultura, elevar tanto a noção de cultura para além do mero impulso fabricador e
utilitário, favorável à vida mas não suficiente enquanto modelo de psiquismo,
quanto elevar a noção de natureza para além do esquematismo geométrico
cartesiano, base metafísica da objetificação técnica, e para além da sacralização
romântica e ressentida que norteia o pensamento e o movimento ecológico que
em nada ameaçam o modelo econômico e exploratório da vida no mundo
contemporâneo, no máximo lhe investe de sentimento culposo que deverá gerar
medidas compensatórias de conservação da natureza pretensamente intocada.
Uma ética para o meio ambiente afirma uma noção de cultura não antagônica
mas solidária à noção de natureza, porque parte de uma perspectiva orgânica e
não mecanicista de natureza, ou seja, uma natureza que gera e abriga o conceito
de cultura.
Está em questão a recuperação de um dinamismo afirmativo e criador da vida,
que corresponderia a um modelo vitalista de ética ambiental.
O pensamento ecológico majoritário é predominantemente conservacionista e
preservacionista, calcado, portanto, na ideia de que a natureza deve ser
conservada ou preservada e, para tanto isolada da população humana. Uma ética
para o meio ambiente de cunho vitalista não pode se alimentar do mito da
natureza intocada e não pode se contentar com o reducionismo de uma ecologia
científica e matemática, que retém da natureza apenas aquilo que pode ser
previsto para que possa ser dominado, não fazendo diferença se para o bem ou
para o mal. Não se trata de pregar o retorno mítico a um estado inexistente e
artificial de natureza, mas de reafirmar o estado criador da natureza assumindo
a cultura como movimento ético. O problema da sustentabilidade da vida na
Terra é mais radical do que supõem as fórmulas abstratas da ciência ecológica.
Um outro olhar se impõe, não protecionista, não temeroso, não reativo; um outro
modo de relação precisa surgir, sensível, solidário e responsável pela vida e pelo

sinônima da hesitação, que é uma fraqueza da consciência. Não pode haver liberdade autêntica sem
responsabilidade. Mas também, não temer a tecnologia não significa ser cegamente confiante em nosso
destino tecnológico, que se não é feliz não é por conta da tecnologia em si mesma, mas da relação de
dependência que temos inventado com ela e que tem escravizado as pessoas seja pelo acesso seja pela
exclusão. O princípio da responsabilidade é o mesmo da liberdade, ele não tem saída, a não ser acolher
o que pode acontecer, assumindo o risco. Temer a tecnologia não é o mesmo que rejeitar a relação de
dependência que tem minado o campo da civilização tecnológica para as boas condições de
sustentabilidade da vida.
ser vivo. Criar valores que potencializem um novo olhar sobre a natureza e a
cultura e uma nova relação de solidariedade com a vida é o desafio que se
impõe a uma ética ambiental de inspiração vitalista.

Conclusão
O ponto decisivo do debate sobre ética ambiental é certamente a crítica do
antropocentrismo. As correntes mais representativas dessa ordem de discurso
concordam que o ser humano não pode continuar ocupando com exclusividade o
território da comunidade moral do ecossistema terrestre, mesmo que as respostas
dadas a tal questão variem. Seja qual for o caminho, um novo olhar sobre nossa
relação com a natureza e com a cultura – capaz de elaborar mudanças de atitude,
novos padrões de hábito, novo entendimento da vida, de nossa liberdade e de
nossa responsabilidade – é irrecusável. O desafio do paradigma ecológico é
grandioso e não irá se contentar com soluções paliativas ou reformistas do
modelo vigente. Ele exige o mergulho nas disposições mais profundas que
sustentam nossa posição no mundo e nossa história.
Nesse sentido, e tomando a etimologia da palavra eco-logia – o estudo da casa,
deveríamos proceder num estudo dinâmico da casa, aberto, que leve a casa a
revelar suas interações, o modo como ela resolve a interferência de suas
externalidades, suas estratégias homeostáticas. É preciso fazer uma ecologia
com portas e janelas abertas, entender a nossa casa como processo temporal,
capaz de afirmar e acolher as externalidades que inevitavelmente produz. A
natureza é um acontecimento dinâmico, constantemente se autoproduzindo e
buscando novos padrões de equilíbrio, ela não pode ficar confinada na unidade
de conservação enquanto fazemos das cidades espaços cada vez mais voltados
para o confinamento e a automatização da vida. Ao isolar a natureza na unidade
de conservação, confinamos a nossa vida nos aglomerados urbanos. A ciência
ecológica proveniente de tal concepção arcaica de natureza é abstrata porque
acredita que pode estudar a casa sem abrir suas portas e janelas. O resultado de
tal estudo abstrato é uma visão artificial e mercadológica da natureza.
Se o estudo da casa for aberto e dinâmico, a cultura terá a chance de se
reencontrar novamente, de tomar o controle de si mesma, de fazer as pazes com
a natureza porque terá percebido que ela mesma é processo de produção da
natureza. A situação existencial em tal cultura e natureza de portas e janelas
abertas é a da liberdade.
A complexidade de tal estudo dinâmico de ecologia problematiza as soluções e
exige diálogo de perspectivas, pluralidade e não linearidade. A divergência é
salutar e o nível filosófico do debate, que foi privilegiado aqui, exige que
mantenhamos o horizonte da crítica. Mas ele não pode ser excludente, pois todas
as perspectivas produzem intuições capazes de iluminar caminhos novos e
interessantes. Dificilmente um modelo pode se afirmar de modo universal. O
estudo dinâmico da natureza e da cultura exige que a ecologia abra as portas e
janelas da casa. Uma ética para o meio ambiente necessita fazer o mesmo.

BIBLIOGRAFIA

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2012
BERGSON, Henri. A evolução criadora. Lisboa: Edições 70, 2001.
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SOUZA, Ricardo Timm de. Alteridade e Ecologia. Em: Totalidade e desagregação –
sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.
Leitura 1: SERRES, Michel. O contrato natural. (p. 64-65)
Existe um ou diversos equilíbrios naturais, descritos pelas mecânicas, as termodinâmicas, a
fisiologia dos organismos, a ecologia ou a teoria do sistemas. As culturas inventaram de
igual modo um ou diversos equilíbrios de tipo humano ou social, decididos, organizados,
defendidos pelas religiões, os direitos ou as políticas. Precisamos de pensar, construir e
colocar em prática um novo equilíbrio global entre esses dois conjuntos.
Porque os sistemas sociais compensados em si mesmos e fechados sobre si próprios,
influenciam com o seu novo peso as suas relações, objetos-mundos e atividades, os sistemas
naturais por si mesmos compensados, tal como outrora os segundos faziam correr riscos aos
primeiros, na época em que a necessidade se sobrepunha em força aos meios da razão.
Cega e muda, a fatalidade natural negligenciava então o estabelecimento de um contrato
expresso com os nossos antepassados por ela esmagados: eis-nos agora vingados desse
arcaico abuso por um abuso moderno recíproco. Resta-nos pensar num novo equilíbrio,
delicado, entre esses dois conjuntos de equilíbrios. O verbo pensar, próximo de compensar,
não conhece, que eu saiba, outra origem para além desta justamente pesada. É a isso que
hoje chamamos pensamento. Eis o direito mais geral para os sistemas mais globais.

Leitura 2: FLUSSER, Vilém. Natural:mente – vários acessos ao significado de natureza. (p.


51-52)
A observação da chuva pela janela é acompanhada de sensação de aconchego. Lá fora, os
elementos da natureza estão em jogo e sua circularidade sem propósito gira como sempre.
Quem está preso em seu círculo fica exposto a forças incontroladas. Parte impotente de seu
girar violento. Cá dentro, estão em jogo processos diferentes. Quem está do lado de dentro
dirige os eventos. Eis a razão da sensação do abrigo: é a sensação de quem está na história e
cultura, e contempla a turbulência sem significado da natureza. As gotas que batem contra a
vidraça, projetadas pela fúria do vento, mas incapazes de penetrar a sala, representam a
vitória da cultura contra a natureza. Quando observo a chuva pela janela, não apenas me
encontro fora dela, mas em situação oposta a ela. Tal situação caracteriza cultura:
possibilidade de contemplação distanciada da natureza.
No entanto (e infelizmente), não é isto que temos em mente ao falarmos em conquistas da
cultura: estarmos sentados em lugar seco e quente, contemplando a chuva fria, fumando
cachimbo e ouvindo Mozart. Infelizmente, temos em mente coisas como “controle da
chuva”. Pretendemos mudar a estrutura dos eventos da natureza. Romper sua circularidade,
fazê-los correr linearmente em busca de um propósito por nós escolhido. Chuva não mais
como fase da circulação eterna da água, mas como fase de uma deliberada irrigação do meu
campo. Se a chuva tivesse sido vencida, não mais cairia como cai agora (“chuva de
setembro, de todo setembro desde sempre”), mas cairia como “esta chuva programada para
as quatro horas da tarde de hoje”. Seria chuva histórica, porque sujeita a programas,
portanto, parte da cultura, não da natureza. Vista da janela, tal chuva não se distinguiria
daquela que está caindo agora, e, no entanto, estaria caindo do lado de cá, não de lá, da
janela da cultura.

Leitura 3: SOUZA, Ricardo Timm de. Alteridade e Ecologia (p. 159-160)


A Natureza somente pode ser concebida, fora das conveniências da ideologia da
acumulação infinita, como absolutamente Outra – ou seja, somente pode ser concebida
eticamente. Todas as outras formulações, que se inclinam à suavização desta Alteridade, são
apenas estratégias de protelação da questão básica – a existência mesma, apesar da
Totalidade, de uma realidade não dependente desta Totalidade.

Leitura 4: GODOY, Ana. A menor das ecologias. (p.152)


O Outro da casa é o Outro do mundo, a terra a ser descoberta, mundos possíveis que não se
esgotam no atual, mas que o confrontam. As ecologias que a vida produz dizem respeito a
outros modos de sentir e pensar, de se relacionar, outros modos de existência para além da
conservação – que já não é só a da espécie para reprodução, mas de um pensamento que
atribui à vida esta finalidade –, que abalam a casa ao habitá-la como estrangeiro, investindo-
a da força de um arquipélago para fazer coexistirem as diferenças “sem lei e sem rei”.
Vontade que arrisca, potência de invenção que experimenta todas as forças habitantes do
corpo-casa, abrindo-se para outras e tantas formas de coexistência irredutíveis à virulência
das unificações, e que apontam outros modos de encarar a relação com o outro.

Leitura 5: GUATTARI, Félix. As três ecologias. (p. 14-15)


Se não se trata mais – (...) – de fazer funcionar uma ideologia de maneira unívoca, é
concebível em compensação que a nova referência ecosófica indique linhas de
recomposição das práxis humanas nos mais variados domínios. Em todas as escalas
individuais e coletivas, naquilo que concerne tanto à vida cotidiana quanto à reinvenção da
democracia – no registro do urbanismo, da criação artística, do esporte etc – trata-se, a cada
vez, de se debruçar sobre o que poderiam ser os dispositivos de produção de subjetividade,
indo no sentido de uma re-singularização individual e/ou coletiva, ao invés de ir no sentido
de uma usinagem pela mídia, sinônimo de desolação e desespero. Perspectiva que não exclui
totalmente a definição de objetivos unificadores tais como a luta contra a fome no mundo, o
fim do desflorestamento ou da proliferação cega das indústrias nucleares. Só que não mais
tratar-se-ia de palavras de ordem estereotipadas, reducionistas, expropriadoras de outras
problemáticas mais singulares resultando na promoção de líderes carismáticos.

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