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NEM “JARDIM ENCANTADO”, NEM

“CLUBE DOS INTELECTUAIS


DESENCANTADOS”

Lísias Nogueira Negrão

O título deste artigo contrapõe duas metáfo- valores progressistas e iluministas. Embora sejam
ras. A primeira é muito conhecida, pois foi utiliza- relativamente pouco numerosos, são muito in-
da por Max Weber (1951, 1958) para caracterizar as fluentes, pois controlam as instituições que defi-
religiões orientais como casos radicais de encanta- nem “oficialmente” a realidade, principalmente o
mento em que, apesar das diversas condições que sistema educacional, os meios de comunicação
a China e a Índia antigas disporiam para desenvol- de massa e os níveis mais altos do sistema legal
(2001, pp.16-17).
ver uma economia racional de tipo capitalista, ja-
mais poderiam espontaneamente chegar a ela, em
decorrência de obstáculos religiosos intransponí- A realidade que no título declaro não repro-
veis. A segunda delas é de minha lavra, mas inspi- duzir nenhuma nem outra das situações metafóri-
rada em Peter Berger que, em texto recente, par- cas é, em termos genéricos, a sociedade brasileira
cialmente publicado em português, declara existir e, mais especificamente, o campo religioso brasi-
leiro contemporâneo. Mas este será meu ponto de
[...] uma subcultura internacional composta por chegada, ao final da exposição.
pessoas de educação superior no modelo ociden- Pretendo discutir, de início, algumas interpre-
tal, em particular no campo das humanidades e tações da sociologia da religião de Max Weber, se-
das ciências sociais, que é de fato secularizada. guramente o autor clássico que exerce a maior in-
Essa subcultura é o vetor principal de crenças e fluência não só na sociologia contemporânea, mas
nas ciências sociais em geral (Souza, 2000). Entre
Artigo recebido em março/2005 as alternativas possíveis, escolhi dois autores que
Aprovado em julho/2005 me parecem mais expressivos na área da sociolo-

RBCS Vol. 20 nº. 59 outubro/2005


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gia da religião e que podem ser considerados qua- realidade empírica. Também Marx não está au-
se “clássicos”: Pierre Bourdieu (1974) e Peter Ber- sente, implícito em sua afirmação de que esta
ger (1971, 2001). Como complemento da discus- realidade é um produto coletivo da ação hu-
são, introduzi um autor brasileiro, Antônio Flávio mana, o que para ele seria um pressuposto da
Pierucci (1988, 2001, 2003), que vem se empe- antropologia marxista. Trata-se, portanto, de
nhando na sistematização teórica e na clarificação sínteses teóricas tecidas com sutileza e criativi-
de conceitos weberianos. dade e não de “amálgamas grosseiras” ou de
O primeiro deles não é propriamente um so- “simples bricolages”.
ciólogo da religião, mas um teórico da cultura. 2. Por outro lado, ambos admitem a existência de
Sua escolha, não obstante sua obra exígua na área certa analogia entre os fenômenos religiosos e
de meu interesse, decorre da qualidade de seu os econômicos. Bourdieu assume que o cam-
trabalho e de sua criatividade conceitual: a noção po religioso foi precedido por uma situação de
de campos diferenciados de relações sociais, ge- autoconsumo, em que os próprios consumido-
nericamente por ele utilizada em suas análises, res dos bens religiosos eram os seus produto-
conduziu, em sua aplicação às relações religiosas, res. Expropriados pelos sacerdotes, que pas-
ao conceito de campo religioso, largamente utili- sam a deter o monopólio legítimo da gestão
zado pela sociologia da religião, mesmo em con- desses bens, transformam-se em leigos, estra-
textos teóricos distanciados da referência inicial. nhos ao sagrado, porém dotados de um habi-
Quanto a Peter Berger, já estamos diante de tus religioso que os faz sentir a necessidade de
um assumido sociólogo da religião, autor de vá- consumi-los. Já em Berger, há a distinção en-
rios outros livros além do citado, nesta área de es- tre uma situação de monopólio religioso, em
tudos, embora um tanto discriminado pela intelec- que se tem apenas uma religião institucionali-
tualidade brasileira, antes por motivos ideológicos zada, protegida pelo Estado, ao qual confere
– é protestante, liberal e foi assessor para assuntos legitimidade por lhe atribuir origem divina. Ao
religiosos do ex-presidente Nixon – que propria- monopólio se contrapõe o mercado religioso,
mente acadêmicos. Vai além da proposta de Bour- característico das sociedades modernas, plura-
dieu porque não se limitou a rever as teorias clás- listas do ponto de vista religioso. As diferentes
sicas da religião, como este, mas aplicou sua teoria igrejas ou agências religiosas competem entre
na análise empírica, no caso das religiões norte- si, agora diante de um Estado neutro e assegu-
americanas contemporâneas. rador da livre concorrência pela preferência
A seleção de ambos justifica-se também por dos leigos-consumidores.
alguns traços comuns presentes em suas análise, 3. Nem sempre são fiéis a Weber. Ao incorporar
entre os quais menciono três: a perspectiva weberiana, partem dele e de
seus conceitos para, no avançar de suas refle-
1. São autores teoricamente ecléticos, que partem xões, dele se distanciarem a ponto de implí-
de pressupostos das três tradições clássicas, cita ou explicitamente renunciarem às suas
dos três “círculos mágicos”. Bourdieu (1974) proposições fundamentais. Permanecem os con-
afirma levar a sério tanto a concepção durkhei- ceitos, mas agora como rótulos despidos de
miana da origem social da religião, quanto a seus conteúdos explicativos.
afirmação marxista da realidade das classes so-
ciais e sua influência sobre a religião e, ain- Minhas análises centrar-se-ão neste último
da, a idéia weberiana da ação religiosamen- ponto, pois que a proposta, no momento, é justa-
te orientada. Berger (1971) radicaliza tal posição mente demonstrar que, apesar das intenções teó-
em sua “dialética do social”, ao afirmar que ricas sintéticas, Weber não é realmente integrado
apenas juntas as posições weberiana – a reali- às interpretações dos autores, nelas aparecendo
dade social constituída de significações huma- de forma secundária, desligado de suas intenções
nas – e durkheimiana – a objetividade do so- originais.
cial contrastante com a esfera individual – são Em seu estudo, Bourdieu parte de um pres-
corretas e capazes de captar adequadamente a suposto weberiano, o do “trabalho religioso”, exer-
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cido pelos protagonistas do sagrado – sacerdote, ou mesmo ação coletiva. Esta aproximação de
profeta e feiticeiro – em luta desigual, devido ao Bourdieu à perspectiva durkheimiana consolida-
monopólio da legitimidade detido pelo primeiro se em sua crítica à teoria do carisma de Weber,
deles, quanto à ministração dos serviços religio- central na explicação das mudanças sociais para
sos. Pondera que o próprio Weber considerava tal este autor. Tal crítica incide em quatro pontos in-
idéia um aspecto secundário em sua obra, posto terrelacionados: no caráter natural/sobrenatural
que, argumenta Bourdieu, estaria mais preocupa- que Weber atribuía ao carisma; na especificidade
do em demonstrar a capacidade criativa das idéias religiosa deste; na ausência de remissão da busca
religiosas ante o materialismo histórico. Esta já é de salvação à desigualdade social; e na atuação
uma suposição em si discutível, conforme desde demiúrgica do líder carismático.
há muito considera Gabriel Cohn, especialista em Quanto ao primeiro ponto, Bourdieu deve ter
sociologia weberiana que, diante de afirmações como referência a afirmação de início feita por We-
como esta, advertia seus alunos do Curso de Ciên- ber, de que
cias Sociais da USP para o fato de que o pensa-
mento de um sociólogo deste porte não poderia O Carisma pode ser – e só neste caso merece tal
ser considerado tributário do pensamento de ou- nome com pleno sentido – um dom que o obje-
tro, mas se sustentaria por ele próprio. Mas, mes- to ou a pessoa possuem por natureza e que não
mo assim, entre restrições críticas, Bourdieu exal- se pode conseguir de forma alguma. Ou pode e
deve ser criado artificialmente no objeto ou na
ta o valor do conceito de trabalho religioso, pois
pessoa mediante qualquer meio extraordinário
por meio dele
(1971, pp. 328-329, grifo meu, trad. minha).

Weber nos fornece o meio de escapar à alternati-


va simplista de que são produto suas análises
Este texto tem que ser interpretado não como
mais duvidosas, ou seja, à oposição entre a ilusão um posicionamento pessoal de Weber, uma crença
da autonomia do discurso mítico ou religioso e a religiosa sua. Afinal, não foi ele mesmo quem afir-
teoria que torna este discurso o reflexo direto da mou não ter “ouvido religiosamente musical”? Deve
estrutura social (1974, p. 32). ser entendida dentro do contexto da metodologia
de sua sociologia compreensiva, que recomenda
Embora partindo de Weber, Bourdieu dele se partir-se do sentido atribuído pelos agentes. São es-
distancia em um ponto essencial: na avaliação do pa- tes que concebem o carisma desta forma, como
pel da intersubjetividade na mudança histórica. Con- algo inato, ou então, que possa ser criado median-
sidera a análise weberiana dos protagonistas da ação te rituais mágicos. Isso apenas para salientar que a
religiosa problemática pelo seu caráter típíco-ideal e aquisição do carisma não é um ato voluntário, ape-
a critica pela pobreza histórica de suas generaliza- sar de todo o empenho do pretenso líder em osten-
ções. Propõe-se a corrigir (!) o esquema relacional tá-lo, mas que depende do referendo coletivo.
entre especialistas e leigos elaborado por Weber, Além disso, esta questão da essência e da origem
passando a entendê-las não mais como relações in- do fenômeno religioso fora por Weber afastada
tersubjetivas e pessoais como sustentava este, mas como sociologicamente irrelevante ou inoportuna,
como relações objetivas entre posições estruturais, já no início de suas análises sobre a comunidade re-
que comporia um sistema dotado de lógica e dinâ- ligiosa na obra Economia e sociedade.
mica próprias. Não só estruturado, mas também es- A segunda característica da teoria do carisma
truturante, tal sistema seria independente das subje- criticada por Bourdieu, relativa à especificidade reli-
tividades envolvidas. giosa atribuída por Weber à mensagem profética,
Ao assim proceder, perde ele totalmente as deve também ser remetida aos posicionamentos teó-
intenções originais de Weber, que teve sua moti- rico-metodológicos do autor clássico, no caso, à fuga
vação para fazer sociologia justamente na rejeição de explicações baseadas em monismos determinísti-
às idéias de objetividade, coerção do social sobre cos. As determinações entre as diferentes esferas da
o subjetivo, desconsiderando inclusive a possibi- vida social existem, mas suas direções nunca são pre-
lidade de haver papéis sociais institucionalizados visíveis, pois que variáveis histórica e espacialmente
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A mensagem religiosa ética pode, e freqüentemente sofrimento, dos pobres e infelizes demandando por
está, reconhece ele, perpassada por interesses políti- salvação. Mesmo no caso do hinduísmo, Weber re-
cos e econômicos, embora, como afirmações radicais laciona o sistema de castas à que seria a mais efi-
de valores, reflitam sobretudo interesses ideais. Mas é ciente teodicéia jamais produzida pela humanidade,
justamente o trabalho religioso exercido pelo prota- a doutrina do Karma.
gonista do sagrado (paradoxalmente concepção tão Por fim, a questão do caráter extraordinário
exaltada por Bourdieu), no caso o profeta, que lhe do líder carismático, enfaticamente criticada por
confere sua essência religiosa. Como expressão radi- Bourdieu. Na abordagem sociológica, não podendo
cal de valor, o autêntico carisma, que somente existe tal caráter provir da natureza ou do transcendente,
em estado puro no momento de sua manifestação embora, para ele, Weber assim o considerasse, de-
inicial, é o oposto de toda racionalidade econômica veria provir necessariamente da sociedade. Mas,
ou burocrática, não visa o lucro e ignora as regras. A como em sua leitura do autor clássico, tal fonte so-
fonte do poder político e da qualificação administra- cial não fosse considerada, seria ela então uma
tiva é exclusivamente carismática. inexplicável “criação ex-nihilo” (1974, p. 73). Para
Se, para Bourdieu, Weber não qualificava o fugir desses pretensos equívocos da teoria weberia-
profetismo como sendo movimento de caráter po- na do carisma, Bourdieu propõe considerar o pro-
lítico e econômico, seria justamente porque não feta não como homem excepcional, mas como o
levaria em conta a realidade das classes sociais di- homem das situações excepcionais. Colocação essa
ferenciadas, segundo o modelo explicativo mar- que de novo acrescenta apenas ênfase à perspecti-
xista. Isto fica muito claro quando critica a noção va de Weber, que já se referira à estrutura carismá-
weberiana de teodicéia: tica como sendo nascida do entusiasmo de situa-
ções extraordinárias, em épocas de grandes
Se a religião cumpre funções sociais, tornando-se, atribulações de ordem psíquica, econômica, políti-
portanto, passível de análise sociológica, tal se ca ou religiosa.
deve ao fato de que os leigos não esperam da re- Diria que somente uma interpretação em que
ligião apenas justificações capazes de livrá-los da se rompa com qualquer continuidade entre o indi-
angústia existencial da contingência e da solidão, víduo e seu contexto social, visto estrutural ou con-
da miséria biológica, da doença, do sofrimento
junturalmente, poderia desconectar o profeta de seu
ou da morte. Contam com ela para que lhes for-
tempo, de sua época, de sua situação. Para Weber
neça justificações de existir como de fato existem,
ou seja, com todas as propriedades que lhe são o profetismo é um tipo de relação e de dominação
socialmente inerentes [...]. Assim, as teodicéias social calcada na emotividade. O líder só o é por-
são sempre sociodicéias (1974, pp.48-49). que tem liderados seguidores que acreditam em
suas virtudes excepcionais e em suas mensagens. A
Mesmo refutando o materialismo histórico análise weberiana, calcada na intersubjetividade é
como teoria explicativa dos fenômenos da desigual- sim, análise sociológica, evoluindo da ação indivi-
dade social, Weber sempre incluiu a relação classe dual, passando pela relação até chegar ao plano
social/tipo de religião em suas análises, como afini- das institucionalizações e suas rupturas.
dades eletivas: a magia como característica do cam- Porém não é esta a percepção de Bourdieu:
pesinato; entre as classes médias citadinas (no caso,
artesãos e comerciantes) e as profecias éticas; entre Para romper com esta definição, é preciso conside-
a burguesia e o proletariado e a indiferença religio- rar a relação entre o profeta e os discípulos leigos
como um caso particular da relação que se estabe-
sa, embora a primeira tenha se identificado ao pro-
lece, segundo Durkheim, entre um grupo e seus
testantismo ascético em suas origens e o segundo,
símbolos religiosos: o emblema não é apenas um
em casos de ameaças de expoliação, tenha aderido signo que exprime “o sentimento que a sociedade
a religiões salvacionistas. Por outro lado, no caso tem de si mesma”; ele “constitui” este sentimento.
das teodicéias também se preocupou em relacioná- Da mesma forma que o emblema, a fala e a pessoa
las às condições sociais de seus agentes, tal como do profeta simbolizam as relações coletivas porque
aparece na dicotomia teodicéia da felicidade, dos ri- contribuíram para constituí-las (1974, p.92).
cos e felizes demandando por legitimação, e a do
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O profeta como emblema do social, assim que o mundo humano é um mundo socialmente
como o totem seria o emblema do clã. Puro Dur- criado e mantido, constitui-se no agente privile-
kheim! De Weber nada restou, a não ser a desqua- giado da falsa consciência e da alienação. Embo-
lificação de suas interpretações. Em tese relativa- ra use estes últimos termos, sua análise nada tem
mente recente, Pierucci assim referiu-se ao texto de marxista, pois o que se oculta não é a domi-
do autor: nação de classe, mas o caráter social da constru-
ção da sociedade. Esta é vista por Berger como
Aquele compêndio sistemático de sociologia da uma totalidade indivisa, cuja transmissão se dá
religião publicado em Economia e Sociedade, o entre gerações. A questão em pauta é a da ordem,
qual Bourdieu sistematizou ainda mais, e esque- de sua transmissão e manutenção. Mais próxima
matizou, dando-lhe um plus inesperado de ope- de Durkheim que de Marx ou mesmo de Weber.
racionalidade (2003, p. 16). No entanto, em Berger a temática weberiana
do sentido e da orientação normativa da ação estão
Ainda que isso possa ser, em parte, verda- claramente presentes. No capítulo 5, denominado
deiro, tal operacionalização custou muito caro: “O Processo de secularização”, o autor procura con-
nada menos o que nele há, especificamente, de textualizar a sociologia da religião de Weber, me-
sociologia compreensiva. diante sua interpretação geral do processo de racio-
Passemos ao outro autor, Peter Berger. nalização característico do Ocidente, do papel da
Berger entende a religião como uma forma profecia ética, especialmente do judaísmo e do pro-
de atribuição de significado à vida natural e social testantismo no desencantamento do mundo e, por
que exerce função nomizadora. Na ausência de fim, da secularização no mundo moderno, que abre
instintos sociais, os homens sentem-se compeli- espaço ao pluralismo religioso contemporâneo.
dos a criar uma ordem significativa, por ele desig- Suas análises reproduzem sinteticamente as inter-
nada pela palavra “nomos”, extensão do cosmos pretações weberianas, com alguma imprecisão, con-
sagrado e absoluto, fora do qual existe apenas o tudo, no que se refere aos conceitos de desencanta-
caos, os terrores da anomia. mento do mundo e de secularização. Diversamente
de Bourdieu, a influência da metodologia e da pers-
Quando se dá por estabelecido o nomos como pectiva weberiana de análise dos fenômenos religio-
próprio da “natureza das coisas”, entendido cos-
sos permaneceu grande no livro de Berger, mesmo
mológica ou antropologicamente, se lhe dota de
que dela tenha se afastado em textos posteriores.
uma estabilidade que deriva de fontes mais pode-
rosas do que os esforços históricos dos seres hu-
Mais recentemente, Berger (2001), impres-
manos. É este o ponto em que a religião entra sionado com o que chamou de ressurgência das
significativamente em nossa exposição. A religião religiões nas últimas décadas do século passado,
é a empresa humana mediante a qual se estabe- passou a defender a discutível idéia da dessecula-
lece um cosmos sagrado. Para dizê-lo de outra rização. Neste novo trabalho continua a atrapalhá-
maneira, a religião é a cosmicização de um modo lo sua falta de clareza conceitual, principalmente
sagrado (1971, p. 40, trad. minha). no que se refere à própria secularização. Suspen-
do essa discussão, no momento, para retomá-la
Mas a religião é também uma forma de alie- mais adiante, a propósito das considerações dos
nação, pois por meio dela a sociedade oculta seu sociólogos da religião, inclusive brasileiros, sobre
caráter de construção humana. Como tal, sua or- as transformações que se deram no campo reli-
dem é relativa e precária, uma vez que pode ser gioso na atualidade, sobretudo no Brasil.
transformada por um ato de vontade ou decisão. Em meados do século XX as análises webe-
Reconhecer-se como produto humano não permi- rianas relativas ao desencantamento do mundo e
tiria que fosse legitimada e aceita pelas novas ge- à secularização crescente no mundo contemporâ-
rações. Daí a ocultação, necessária à sua reprodu- neo pareciam ter sido confirmadas. Não que We-
ção ordenada no tempo, obtida através da ber adotasse uma perspectiva evolucionista de
remissão a um cosmos sagrado. A religião, na me- longo alcance, que pressuporia a morte da reli-
dida em que produz a perda da consciência de gião em uma sociedade moderna totalmente ra-
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cionalizada pela ciência, pela tecnologia e pelo lado, e à falência das experiências do socialismo
cálculo. Não. Weber considerava que na moderni- real, de outro, ressurgem as religiões no cenário
dade a religião preservaria seu espaço, mas que mundial. O Papa João Paulo II recompôs a autori-
seria extraditada da esfera pública para a privada. dade da Igreja centralizada em Roma e ganhou
Naquela predominaria um Estado secularizado, projeção, inclusive como vulto político de relevân-
legitimado pelo direito racional e burocraticamen- cia internacional. Os seminários voltam a ter um
te administrado. Isso não quer dizer que tais ten- público maior de pessoas com vocação religiosa e
dências o agradassem: sua metáfora da “jaula de a Igreja deixa-se revitalizar por movimentos leigos,
aço” (sempre discutida se dele mesmo ou de seu porém controlados de perto. No mundo todo, mas
tradutor para o inglês, Talcot Parsons) e seus la- especialmente na América Latina, tem-se o que
mentos de que a sociedade moderna, burocrática Berger chama de “explosão evangélica” que, jun-
e sufocante da criatividade individual seria “à pro- tamente com a “explosão islâmica”, passa a ser a
va de fuga”, revelam-no bem. Mas nesta socieda- força motriz da religiosidade em contraponto à se-
de a religião deveria persistir, isto é, continuar cularização: “A contra-secularização é um fenôme-
sendo uma de suas esferas, porém não mais com no ao menos tão importante no mundo contempo-
o poder de antes, restrita ao universo da indivi- râneo quanto a secularização” (Berger, 2001, p.
dualidade e da família. Partindo dessas considera- 13). Seria a “revanche de Deus”, conforme radica-
ções e mantendo seu espírito, considera Berger: lizava Kepel (1991), expressão que se tornou sim-
bólica do retorno do “Deus exilado”.
Tal religiosidade privada, por mais “real” que pare- Essas religiões ressurgentes, chama a atenção
ça ao indivíduo que a adota, já não pode cumprir a Berger, são conservadoras e com forte apelo funda-
função clássica da religião – a de construir um mun- mentalista, características que, segundo o autor, as-
do comum no interior do qual toda a vida social re- seguram ou renovam as certezas solapadas pela mo-
cebe um significado supremo que une a todos. Pelo dernidade, sobretudo das classes menos favorecidas
contrário, esta religiosidade limita-se a domínios es-
– não pertencentes às elites intelectualizadas –, que
pecíficos da vida social, que efetivamente podem
têm mais dificuldade em lidar com o relativismo e a
estar segregados dos setores secularizados da socie-
dade moderna. Os valores próprios da religiosidade
insegurança presentes na sociedade contemporâ-
privada são tipicamente alheios a outros contextos nea. Como, normalmente, aqueles que se interes-
institucionais que não sejam da esfera privada [...]. sam pela segurança do absoluto não têm mentalida-
A religião manifesta-se como retórica pública e vir- de secularizada, as religiões que buscam não são as
tude privada. Em outras palavras, até onde a reli- que internalizaram racionalizações mais elaboradas.
gião é comum, carece de “realidade” (1971, pp. 164- Voltaremos a essas questões mais adiante, após aná-
165, trad. minha). lise dessa ressurgência religiosa no Brasil.
Antonio Flávio Pierucci, em artigo publicado
Nas décadas de 1960 e 1970, em âmbito inter- em 1998 e em tese de livre docência defendida
nacional, o que também repercutiu no Brasil, o de- em 2001 e publicada em 2003, aprofundou a aná-
sencantamento e a secularização emergiram de for- lise e a discussão de dois conceitos essenciais à
ma contundente: falava-se no exílio do sagrado compreensão da sociologia da religião em Weber –
(para o refúgio de grupos comunitários), em “reli- secularização e desencantamento do mundo. São
gião invisível” (Luckman) e em “Eclipse do sagra- ambos, artigo e tese, produtos de cuidadosa e pa-
do” (Acquaviva). Vivia-se o período da “crise das ins- ciente pesquisa sobre os textos weberianos e de
tituições religiosas produtoras de sentido”, das profícuo diálogo com outros comentadores. Seu
igrejas vazias, da crise de vocações religiosas para objetivo foi não só esclarecer os conceitos, me-
o sacerdócio, da perda da influência das autorida- diante sua localização nos escritos do autor, como
des religiosas e, no Brasil, do abandono da Igreja também elucidar o contexto em que foram em-
Católica por parte de padres que se engajavam em pregados, ordená-los cronologicamente e, enfim,
movimentos políticos. realizar sua exegese.
Nas últimas décadas do século XX, paralela- Pierucci encontrou o termo secularização em
mente à expansão globalizadora ocidental, de um oito passagens da sociologia do direito (Economia
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e sociedade, cap. VII, parte 2, tomo 1), distinguin- ce isolado por nove vezes, e em quatro é acompa-
do os seguintes empregos: expropriação dos bens nhado pelo significado perda de sentido. Nos qua-
eclesiásticos; destradicionalização; racionalização tro “passos” restantes, aparece apenas a expressão
formal das leis, do pensamento jurídico e do po- perda de sentido, o que não é nada desprezível, já
der; surgimento do direito natural como uma esfe- que seu uso pôde ser constatado oito vezes, isola-
ra diferenciada de valor; dessacralização do pen- da ou em combinação com “desmagificação”. Por-
samento; e desencantamento. Conclui o autor que, tanto, esses dois sentidos juntos constituem, segun-
neste contexto da sociologia jurídica e da burocra- do o autor, o núcleo da significação do conceito.
tização do Estado, aparece genericamente “o sen-
tido forte de secularização como decadência do O uso do termo em Weber de fato não é unívo-
poder hierocrático” (1998, p. 61, grifo do autor). co, lá isso é verdade. Ele muda: dependendo da
Fora desse contexto, o autor constatou a utili- questão em tela – e não do transcurso dos anos
zação do termo, em todas as suas variações grama- do autor, atenção! – ele se expande e se retrai,
ticais, apenas cinco vezes, três em A ética protestan- fica mais forte ou mais fraco, mas nem por isso
te e o espírito do capitalismo e duas no ensaio sobre chega a se pôr como desbragadamente polissêmi-
co. É isso que pretendo deixar bem demonstrado
as seitas protestantes norte-americanas. Nessas pas-
aqui: não é hiperpolissêmico e muito menos con-
sagens o termo parece ter aplicações mais variadas:
traditório (Pierucci, 2001, p. 35).
apego ao material pelos protestantes, na ótica cató-
lica; ideologização do senso comum pelos holande-
Na fuga à polissemia, em si louvável, contu-
ses, em que a identificação entre pobreza e crença
do o autor projeta-se na direção contrária, rumo
em Deus se transmuta em identificação entre traba-
ao estreitamento do conceito além do que, talvez,
lho e baixos salários; confisco das propriedades da
o próprio Weber pretendeu. Digo isso a partir da
Igreja no século VIII por Carlos Martel; e substitui-
leitura atenta dos 17 “passos” pinçados pelo ana-
ção da afiliação a seitas protestantes por associa-
lista, de sua contextualização bibliográfica e dos
ções civis a que se adentram por votação, como ga-
comentários pertinentes realizados sobre eles.
rantia de confiabilidade para homens de negócio. O
Meu ponto de partida será o primeiro “passo”,
uso rarefeito e variado do conceito de secularização
nas demais obras de Weber, em face de sua univo- onde parece haver um equívoco de leitura por
cidade e abundância relativa em sua sociologia ju- parte de Pierucci. Vamos a ele:
rídica, leva Pierucci a concluir que esta constituiria
A ação orientada segundo representações mágicas,
seu núcleo duro e monossêmico.
por exemplo, tem muitas vezes um caráter subjeti-
Quanto ao conceito de desencantamento de
vamente muito mais racional com relação a fins do
mundo, Pierucci compulsou dezessete textos ao lon- que qualquer comportamento “religioso” não má-
go da obra weberiana escrita entre os anos de 1913 gico, posto que a religiosidade, à medida que
e 1920, aos quais denominou “passos”. O conceito avança o desencantamento do mundo, se vê obri-
não é unívoco, pois desdobra-se em dois tipos: de- gada a aceitar referências de sentido cada vez mais
sencantamento do mundo pela religião e pela ciên- subjetivamente irracionais com relação a fins (refe-
cia. O primeiro refere-se ao processo de desmagifi- rências “de convicção” ou místicas, por exemplo)
cação procedida pela religião ética, iniciado pelos (Weber, “Sobre algumas categorias da sociologia
profetas pré-exílicos israelitas e que alcançou seu compreensiva”, p. 47, apud Pierucci, 2003, p. 16).
ápice com a emergência do protestantismo ascético
racionalizado; o segundo, pelo desenvolvimento da Neste texto Weber inverte, como bem o per-
ciência, do cálculo e da tecnologia, que relegaram a cebe Pierucci, sua tradicional oposição entre ma-
religião ao âmbito do irracional e a destituíram de gia e religião, considerando esta irracional diante
sua proeminência na vida social. daquela. O que aqui está sendo discutido por We-
Examinando os conteúdos do conceito, Pie- ber é justamente a distinção entre formas alterna-
rucci chega à seguinte contabilidade: em 13 dos 17 tivas de acesso ao supra sensível. Não é sem mo-
“passos” considerados, o desencantamento do tivo, portanto, que Pierucci elabore uma excelente
mundo significa desmagificação – o termo apare- análise sobre a questão, chamando a atenção para
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o que Weber enfatiza a esse propósito ao longo de ao contrário, constitui seu poder de conferição de
seus escritos e omite no texto citado: o caráter sis- sentido de vida eticamente racionalizada. Creio
temático e racional da profecia cosmogônica dian- que essa mesma leitura possa ser estendida à inter-
te do caráter parcelar da manipulação mágica. O pretação de Pierucci relativa ao “passo 3”, a saber:
fato de esta dicotomia entre o carisma mágico e o
carisma religioso ter sido focada pelo próprio We- Quanto mais o intelectualismo repele a crença na
ber mostra que o desencantamento de mundo a magia, e com isso os processos do mundo ficam
que ele se refere no “passo 1” é aquele realizado desencantados, perdem seu sentido mágico e do-
pela religião, e não pela ciência. Tanto é assim ravante apenas “são” e “acontecem” mas não “sig-
nificam” mais nada, tanto mais urgentemente re-
que suas referências às expressões tidas, neste tex-
sulta a exigência, em relação ao mundo e à
to, como mais irracionais, em face da magia no
“conduta de vida” como um todo, de que sejam
que se refere aos seus fins, são as profecias éticas postos em uma ordem significativa e “plena de
(de convicção) ou místicas, e não as intrinseca- sentido” (Weber, Economia e sociedade, apud Pie-
mente racionais, como seriam no caso do “desen- rucci, 2003, p. 48).
deusamento” da religião pela ciência. São irracio-
nais quanto aos fins por se tratar de valores Não há dúvida alguma de que, no texto, a ên-
incapazes de serem cientificamente verificados ou fase na desmagificação está dada, conforme Pie-
validados, e por remeter a um imaginário absolu- rucci registra. No entanto, o agente da desmagifica-
tamente transcendente. No entanto, são capazes ção no contexto do pensamento weberiano não é a
de orientar comportamentos, estes sim, muito mais ciência, mas a religião. O que se perde é o “sentido
racionalizados do que os dos rituais mágicos. mágico”, que, como sabemos, tem uma racionalida-
Se minha leitura está correta, o significado de apenas embrionária e prática. O intelectualismo
do desencantamento não é a perda de sentido, que repele a magia é o dos profetas éticos, dotados
como pretende Pierucci (2003, p. 47), mas justa- da “cultura intelectual de sua época”, conforme as-
mente o seu contrário – ganho de sentido! Sendo severa Weber, não o dos cientistas afeitos ao cálcu-
o mundo desencantado pela religião, esta, ao mes- lo e à racionalidade instrumental. Somente aqueles
mo tempo em que desmagifica, confere sentido ao profetas é que podem apresentar o mundo em
mundo, mesmo que apelando a valores subjetiva- uma ordem significativa, conferindo-lhe sentido, já
mente irracionais e remetendo ao transcendente. que para os cientistas, afeitos ao “espírito de sua
Contrariamente à religião profética, racionalizada época”, isto seria impossível. Portanto, mais uma
e eticizada, a magia não pode conferir sentidos vez temos ganho e não perda de sentido, contra-
cosmológicos mais amplos por ser deles despro- riamente ao que supõe Pierucci.
vida; seus sentidos são imediatos e parciais, Não poderia ser de outra maneira. Não só
como bem afirma o próprio Pierucci: porque quem desmagifica é a profecia ética, mas
também porque não se pode desmagificar sem ofe-
Magia não porta racionalidade teórica, nem sistê- recer uma visão de mundo coerente, sistêmica e
mica, mas prática. Não prático-ética, mas prático- cosmicizante como alternativa dentro do campo re-
técnica. Uma racionalidade subjetivamente signi- ligioso. Desmagifica-se ao mesmo tempo e me-
ficativa apenas se encarada de modo avulso,
diante a plena conferição de sentido capaz de in-
desconexo, desconjuntado. Uma racionalidade
tegrar história, biografia e natureza. E quem pode
elementar, não sistêmica. Os atos mágicos não se
perfilam numa seqüência significativa, não se or-
fazer isso é somente a profecia ética, não a ciência,
denam num plexo homogêneo de sentido, não reitero. Da mesma forma afirmo que não só nesses
são capazes de travejar coerentemente uma con- dois “passos” a idéia de ganho está implícita ou ex-
duta de vida. Não “fazem sentido”, um sentido plicitamente presente, mas em todos os outros oito
que arregimente a vida de sua dispersão constitu- em que a desmagificação seja referida. Haveria
tiva (2003, p. 80, grifos do autor). apenas perda de sentido nos casos em que Weber
se refere ao desencantamento de mundo pela ciên-
Tal caráter evidentemente antimágico do de- cia, sobretudo nos textos de A ciência como voca-
sencantamento religioso do mundo não anula mas, ção (“passos” 7 a 12). Aí, sim, aparece claramente
NEM “JARDIM ENCANTADO”... 31

a questão da perda de sentido, pois esta é a voca- ções e inconsistências sem qualquer serventia
ção da ciência, qual seja, a de remeter a religião ao técnico-científica esse núcleo duro do conceito
campo do irracional e de afirmar a carência de sen- que na sociologia tardia de Weber alberga o tem-
tido vinculada a origens e fins últimos. po todo uma plurivocidade binária concomitante
e não estratificada (Idem, ibidem).
Embora Pierucci insista em vincular à des-
magificação a perda de sentido, no que se refere
ao conceito de desencantamento de mundo we- Tal reconhecimento, que vem atenuar a tendência
beriano, ele próprio termina por reconhecer que a uma excessiva restrição do conteúdo sociológico
não se pode, dentro do universo religioso, desma- do conceito weberiano de desencantamento, po-
gificar sem conferir sentido. É apenas no contex- deria, ainda, ser mais bem explicitado quanto às
to da expansão da ciência moderna que se pode- suas especificidades: se em sua primeira forma
ria encontrar um desencantamento ao mesmo pode ser entendido como desmagificação, não o é
tempo desmagificador e despojado de sentido: na segunda forma. Neste caso corresponderia a um
outro processo, pois é preciso supor que, no caso
É deveras intrigante observar como a noção de um do Ocidente moderno, analisado por Weber, a re-
sentido metafísico que transforma o mundo em ligião atacada pelos fundamentos da racionalidade
cosmos ordenado, quando considerado do ponto técnico-científica já havia se expurgado dos com-
de vista do desencantamento de mundo, tem em ponentes mágicos mais evidentes. Diante da ma-
Weber uma dupla entrada e, mais importante, uma gia, afirmava-se racionalizada ritual e doutrinaria-
dupla direção. O judaísmo profético, quando de- mente. É a essência da crença ético-religiosa que é
sencanta o mundo, confere-lhe um sentido ho- contestada pela ciência emergente, a qual se torna
mogêneo, tal como explica Weber, longamente, forma de saber hegemônica, ou seja, é antes “de-
no final da seção de Economia e sociedade dedi-
sendeusamento” que desmagificação. E é justa-
cada ao profeta; em compensação, a ciência em-
mente por remover a crença em deuses que afasta
pírica moderna, quando desencanta o mundo, re-
tira-lhe o sentido, transformando este mundo o sentido conferido pela religião, relegada à irra-
num mero mecanismo causal, em cosmos da cau- cionalidade. Mas a religião ética, ao mesmo tempo
salidade natural, conforme dito e repetido n’A em que resiste à modernidade, tentando se preser-
ciência como vocação e na Consideração inter- var, de certa forma preparou-lhe o caminho, ao
mediária.[...] Pode-se desencantar o mundo orde- moldar mentalidades desencantadas e racionaliza-
nando-o sob um sentido que unifica, como fez a das, com ela eletivamente afinadas.
profecia ético-metafísica, e pode-se desencantá-lo Infelizmente este reconhecimento, por parte
estilhaçando este sentido unitário, como tem feito de Pierucci, do caráter conferidor de sentido e não
a ciência empírico-matemática (2003, p. 185, gri- seu anulador, contido no processo de desencanta-
fos do autor).
mento do mundo pela religião, não teve maiores
conseqüências em sua análise, pois continuou a
Reconhece, portanto, que a conferição de classificar os textos weberianos (“os passos”, referi-
sentido é concomitante à desmagificação, no caso dos anteriormente) como oscilando entre significa-
do desencantamento religioso, admitindo inclusi-
dos contraditórios de desmagificação e ausência de
ve que
sentido. A constatação não altera sua contabilidade
nem matiza a diversidade dos conteúdos/sentidos
Aqui, sim, talvez caiba pensar em plurivocidade
compulsados. Insiste, portanto, na contradição a
do desencantamento, mais ou menos na direção
apontada por Ricoeur, para evitar que o conceito um só tempo lógica e teórica entre desmagificação
se torne vítima de uma univocidade acanhada e perda de sentido no contexto do desencantamen-
(Idem, p. 183). to de mundo propriamente dito.
Retomemos esta seqüência histórica entre os
Mas, mesmo assim, insiste: dois momentos do amplo processo de desencan-
tamento de mundo captado por Weber. Ater-me-ei
Talvez, digo eu, e vou logo acrescentando: con- aos dois conceitos focalizados, desencantamento e
tanto que não seja para dissipar em metaforiza- secularização. Em sua busca dos sentidos de am-
32 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 20 Nº. 59

bos os conceitos, tal como os entendia Weber, Pie- reito racional, resta-lhe o estreito espaço da sub-
rucci aproxima-se de suas obras, seleciona e ana- jetividade. Na modernidade, o novo agente racio-
lisa os textos em que foram utilizados, relacionan- nalizador não a provê de um novo sentido, mas
do-os entre si e com o horizonte mais amplo de elimina os já existentes. A secularização seria um
Weber: a racionalidade característica do Ocidente. processo que se dá no plano estrutural da vida so-
Trabalho paciente, criterioso e produtivo, apesar cial. Sociedade secularizada é aquela em que a re-
da discutível superposição acima exposta, no pri- ligião permanece, repetindo agora Berger, “como
meiro dos conceitos, entre desmagificação e per- retórica pública e virtude privada”.
da de sentido. Nesta exposição irei apenas ao es- Armado do aparato conceitual weberiano,
sencial para a análise que, a partir deles, pretende Pierucci opôs-se às interpretações que viam na
focalizar suas implicações relativas à realidade re- ressurgência das religiões a queda de mais um pa-
ligiosa brasileira. radigma sociológico, o da secularização. Não se
Há um longo e contínuo processo de raciona- refere ele a Berger, que se enquadraria muito bem
lização na civilização ocidental, cujo destino último entre seus adversários teóricos, uma vez que re-
(“o destino do nosso tempo”) seria o surgimento jeitou a teoria da secularização e passou a usar os
da ciência e seu progresso ininterrupto. Neste pro- termos dessecularização e contra-secularização. Em
cesso, podem-se observar dois momentos cruciais. verdade, esta crítica poderia ter sido feita. Mencio-
O primeiro é o célebre desencantamento do mun- nei anteriormente que Berger faz certa confusão en-
do. Corresponde ao fim de uma etapa da vida da tre os conceitos de desencantamento e seculariza-
humanidade em que a magia seria a forma predo- ção, não os distinguindo como racionalização,
minante de crença, instrumentalizada para fins uti- respectivamente, dentro do campo religioso (que
litários e econômicos. Apesar de ter a sua raciona- atua sobre as mentalidades) e dentro do campo
lidade específica, fixada pela tradição, incentivava científico (fenômeno socioestrutural). Em decor-
práticas sociais descontínuas e isoladas, que ini- rência disso, o autor norte-americano considera
biam a exploração e a incorporação mais eficiente que a secularização pode se dar não apenas no
da natureza. Com o aparecimento da religião ética plano da sociedade, mas também na esfera da
por meio das profecias, a mensagem religiosa ra- cultura e da subjetividade.
cionaliza, metodiza e moraliza as relações, desma- As baterias de Pierucci voltaram-se contra
gificando o universo de crenças. Este seria o senti- aqueles a quem designa “sociólogos religiosos da
do principal do termo desencantamento percebido religião”, pois, de alguma forma, não apenas acre-
por Pierucci nos textos de Weber. Seria, portanto, ditariam como se regozijariam da dessecularização.
a atuação da religião sobre a magia, embora esta Suas críticas recaíram em várias direções, a saber:
não tenha sido eliminada de todo, persistindo sub- • Trariam a idéia de um Weber ao mesmo tem-
missa e enfraquecida em certas simbioses com a po evolucionista e profético, no sentido de
própria religião. No fundo, seria a descosmicização que teria previsto o fim das religiões no
do sagrado, que deixa de ser imanente e se trans- mundo moderno.
cendentaliza, abrindo caminho para a atuação ra- • A religião jamais tornará a retomar sua rele-
cional do homem no mundo. Processo longo, que vância social, pois a ciência seria, segundo
se inicia com os profetas judaicos, retroage com o Weber, “o destino de nosso tempo”.
catolicismo e chega a seu ápice com o protestan- • O ressurgimento das religiões no mundo
tismo ascético. Com ele a vida humana individual contemporâneo é um produto da seculariza-
e social ganha um sentido capaz de explicá-la em ção – somente esta poderia gerar o pluralis-
sua totalidade. mo religioso.
O segundo momento seria o da seculariza- • Fatos empíricos tais como o crescimento das
ção. A racionalização avança, sendo agora a vez antigas religiões julgadas estagnadas ou o
da ciência, mas também da tecnologia e do cálcu- aparecimento de novas religiões, grupos re-
lo atuarem sobre a religião, restringindo seu cam- ligiosos e de uma religiosidade difusa e in-
po de ação dentro da sociedade. Não mais tendo forme, nada significariam de especial. De-
influência sobre o Estado, que se legitima pelo di- monstrariam apenas o surgimento de
NEM “JARDIM ENCANTADO”... 33

“comunidades emocionais” sem maior rele- Nessa passagem específica, vale dizer, ape-
vância social. nas uso o termo desencantamento de forma adje-
• A persistência da crença em Deus por parte tivada (“mundo desencantado”), para qualificar tal
da grande maioria das pessoas também nada período. Utilizei-me da expressão “reencantamen-
significa. São apenas dados empíricos. to” por duas vezes, justamente porque a ressur-
gência religiosa se daria no plano das realidades
Fui um dos agraciados com o (des)qualifica- culturais e das subjetividades, o que não implica
tivo de “sociólogo religioso da religião”. Tive, em em dessecularização, ou seja, retomada da in-
duas oportunidades, uma pequena citação trans- fluência da religião no plano socioestrutural. Não
crita por ele, como exemplar desta minha filiação, significava, também, nenhum reconhecimento ou
no artigo sobre secularização e em sua tese. Re- insinuação relativa ao fim do paradigma da secula-
meto-me a essa citação para, a partir dela, escla- rização, embora a concisão do texto pudesse per-
recer minhas concepções. mitir tal interpretação. Ao final, menciono a persis-
tência do sagrado, no caso brasileiro. Com isso
Vale ouvir o que tem sido dito por aqui mesmo, no quis dizer que houve, no Brasil, uma persistência
Brasil. Cito como exemplo significativo a formula- do encantamento. Defendo essa posição com base
ção de um pesquisador da USP, altamente presti- em análises da realidade religiosa brasileira desde
giado nos meios brasileiros de sociologia da reli-
a época colonial até o Brasil contemporâneo. Rea-
gião, apenas para ter por onde acessar esta grande
firmo a impropriedade de se entender o desencan-
onda formada pelos defensores do reencantamen-
to do mundo: “As análises de Weber foram válidas
tamento estritamente como desmagificação. O de-
para um período encerrado da história do Ociden- sencantamento em Weber é visto como processo
te: o apogeu da racionalidade num mundo desen- que implica na “desmagificação da atitude ou da
cantado, em que o sagrado se exilou. Mais recen- mentalidade religiosa” (Idem, p. 43). Como pro-
temente vivemos o período do chamado ‘retorno cesso, pode refluir (caso do catolicismo em rela-
do sagrado’ ou ‘revanche de Deus’, em que este ção ao judaísmo) ou intensificar-se e chegar ao
mundo, de alguma forma, se reencanta. Mesmo se seu ápice (caso do protestantismo ascético). Mas
considerarmos a realidade do terceiro mundo em é um processo que transcorre na esfera da subje-
geral e do Brasil em particular, em que o sagrado tividade; nas palavras de Pierucci, trata-se de inci-
persistiu, é inegável que a religião aí se revitalizou,
dências no plano da atitude e da mentalidade,
paralelamente ao reencantamento primeiro mun-
nada tendo a ver com secularização, se não como
dista” (Pierucci, 1998, pp. 46-47).
uma forma inicial de racionalização que lhe pre-
para o campo:
Este texto foi escrito há quase dez anos, um
simples comentário que me pediram pra redigir
Não é preciso conhecer muito de sociologia de
para a apresentação de seminário sobre misticis-
Weber para daí deduzir, seguindo as regras bási-
mo e novas religiões. Nele eu aceito a idéia de cas de seu pensamento, que não há racionaliza-
reencantamento das religiões no mundo moder- ção possível da conduta de vida – e é isto que no
no, baseado em minhas leituras sobre a realidade fundo interessa a Weber como indagação socioló-
religiosa mundial. Mas o período encerrado da gica significativa – sem que se quebre, não só o
história a que me referia não era o da racionalida- feitiço, mas o poder do feitiço sobre a mente das
de desencantada, da ciência, ou da modernidade, pessoas (Idem, p. 56).
mas o do seu apogeu, que teria se dado em mea-
dos do século XX. Após isso, não só teria se dado, Na formação da sociedade brasileira nada hou-
então, a grande ressurgência da religião, mas a ve de semelhante à ética protestante, no campo re-
própria ciência vinha sendo contestada pelo não ligioso, desde seus primórdios. O país foi inicial-
cumprimento da totalidade de suas promessas e mente povoado por aldeões portugueses e
pelos efeitos colaterais danosos que seu desen- degredados que trouxeram consigo seus santos e
volvimento, sobretudo o tecnologicamente aplica- demônios, seu culto às almas. Formou-se a partir
do, causaram. daí um catolicismo popular acentuadamente mági-
34 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 20 Nº. 59

co, voltado ao controle dos males deste mundo, podem ser consideradas a última manifestação
centrado no ato devocional. Trata-se do conhecido dessa natureza (IURD, Internacional da Graça de
“catolicismo rústico”, componente essencial da Deus, Renascer em Cristo, entre outras).1
“cultura rústica” tal como a caracterizaram Antonio É em plena época da consolidação do Esta-
Candido de Mello e Souza (1972), Maria Isaura Pe- do republicano modernizante e do surto de urba-
reira de Queiroz (1965, 1968) e Duglas Teixeira nização e industrialização a partir dos anos de
Monteiro (1974). Conviveu aqui com religiões afro- 1930 que os grupos pentecostais iniciam seu per-
brasileiras e indígenas, com as quais trocou deuses, curso para se tornar religiões de massa, rivalizan-
crenças e rituais, formando uma mentalidade reli- do com o catolicismo popular. Além deles, várias
giosa híbrida e sincrética, densamente mágica e en- modalidades de cultos afrobrasileiros, tais como
cantada. Não se quebrou o feitiço, nem sua influên- umbanda, candomblé, batuque e outros, fixaram-
cia sobre a mentalidade popular. se sobretudo no cenário urbano, onde adquiriram
Ao longo dos períodos colonial e imperial e uma importância cultural maior que o número de
de quase todo o republicano, delgadas camadas seus adeptos faria supor. Religiões mágicas, en-
populacionais urbanas litorâneas, sobre as quais cantadas, portanto. Juntas compuseram todas elas
atuaram sobretudo ordens religiosas afinadas com um campo religioso amplo e popular, no Brasil
o projeto de romanização do catolicismo no Brasil, do século XX urbano e rural.
permaneceram mais próximas a um catolicismo or- Insisto que não houve, de forma significativa,
todoxo, romanizado. Hoje, apesar de religião ain- nada semelhante à mensagem profética racionaliza-
da majoritária, a maior parte dos católicos é formal, dora neste contexto religioso prenhe de encanta-
despossuída de habitus religioso, sendo que pro- mento. Os grupos protestantes históricos (batistas,
vavelmente um terço deles (conforme apontam os presbiterianos metodistas), potenciais herdeiros da
resultados de minhas pesquisas atuais) freqüentam racionalidade e da ascese puritana tradicional, são
outros grupos religiosos, têm crenças e práticas minoritários, crescendo apenas vegetativamente, a
não católicas, sobretudo mágicas. Isto para não fa- não ser quando também se pentecostalizam e, por-
lar na Renovação Carismática, movimento leigo ao tanto, aderem à milagrosa manifestação do Espírito
mesmo tempo incentivado e controlado pela hie- (Mendonça, 1984; Mendonça e Velasques Filho,
rarquia. Apesar de fiel à Igreja e ao sacerdócio, e 1990). Por outro lado, os pentecostais em geral as-
embora seja um movimento basicamente formado similaram uma doutrina de origem norte-america-
por pessoas de classe média, sua religiosidade é na, a Teologia da Prosperidade, que nada tem a
bastante emotiva, incluindo elementos mágicos em ver com a metodização da prática econômica leva-
seus cultos, voltados às curas e à solução de pro- da a efeito pela ética protestante tradicional. Vol-
blemas pessoais de natureza diversa. Uma espécie ta-se ao consumo, à fruição dos bens deste mun-
de pentecostalismo católico. do, ao gasto irresponsável (Mariano, 1999). Os
Weber tinha acabado de redigir a Ética protes- maiores grupos religiosos brasileiros, inclusive os
tante, quando o protestantismo de conversão se fir- católicos – lembre-se de que Weber considerou o
mava e começava a crescer entre nós. Embora com surgimento do catolicismo um retrocesso no pro-
algum potencial ético e racionalizador, tratava-se de cesso de desencantamento – permanecem com
formas pentecostais (inicialmente a Assembléia de sua mentalidade encantada, buscando e partici-
Deus e a Congregação Cristã) centradas nas mani- pando de rituais mágicos. A afirmação do mistério,
festações de dons miraculosos do espírito; mais tar- a crença no milagre e a prática da magia conti-
de, em meados do século XX, surgem as igrejas nuam encantando o cotidiano da grande maioria
fundadas por pastores brasileiros como O Brasil dos religiosos brasileiros, avessos às fidelidades
para Cristo e Deus é Amor. São as únicas igrejas religiosas e à racionalização do comportamento.
protestantes que realmente se desenvolveram, Sendo a racionalização mediante o desen-
plenas de emotividade e encantadas pelas mani- cantamento – isto é, a desmagificação – um passo
festações do Espírito Santo, e vêm se desdobran- teoricamente prévio porém historicamente não
do em “ondas” até o presente – as igrejas neopen- efetivado no Brasil, mas antecedente necessário à
tecostais fundadas a partir da década de 1970, posterior racionalização secularizante na análise
NEM “JARDIM ENCANTADO”... 35

weberiana referente à emergência do capitalismo o desenvolvimento inicial do protestantismo ascé-


no mundo ocidental, como teria se dado a secula- tico e o mundo secularizado contemporâneo de
rização no Brasil? Esta é a questão pertinente, pois, Weber, há também casos de retrocesso, resistên-
não obstante a permanência do encantamento no cias e impasses.
plano das mentalidades, o Brasil é, de fato, secu- A sociedade brasileira, com sua religiosidade
larizado: existe a separação entre Igreja e Estado, que permanece em parte encantada pois que reni-
a administração realiza-se a partir de códigos le- tentemente mágica, é um caso particular da realida-
gais e órgãos executivos seculares, sem nenhuma de em que a generalidade típico-ideal do método
influência decisiva por parte de grupos religiosos. weberiano não é capaz de abarcar plenamente. E
A ciência, a tecnologia e o cálculo racional presi- isso nenhuma surpresa deveria causar, pois, é sabi-
dem às atividades produtivas. do, ou deveria sê-lo, que os tipos ideais não são fins
Minha hipótese para explicar tal descompas- em si mesmos, são instrumentais. Devem ser cons-
truídos com base na realidade, mas não a esgotam
so é de que nossa modernização racionalizante é
nem a substituem. E a realidade concreta, à qual o
extra-religiosa. Sem contar com a racionalização
tipo é usado como instrumento heurístico, não ne-
prévia da desmagificação/desencantamento, a mo-
cessita reproduzi-lo, pode dele distanciar-se, diferir,
dernidade foi introduzida com maiores esforços
pois não são tipos empíricos, nem muito menos de
pelos seus agentes, em especial o Estado. Talvez
abrangência universal. Cada sociedade, cada mo-
em razão disso, em alguns episódios da República mento histórico, tem a sua fisionomia própria, que
nascente – refiro-me a Canudos e ao Contestado – cabe ao pesquisador captar.
ela tenha sido conseguida por meio da força das Os referenciais weberianos, seus conceitos tí-
armas e do poder bélico do exército. Mas o Estado pico-ideais, sua interpretação quanto ao processo
também soube agir de maneira mais sutil, por de racionalização crescente da civilização ociden-
exemplo com a massificação dos rudimentos da ra- tal não podem ser usados de maneira fundamen-
cionalidade – leitura, escrita, matemática elemen- talista. Com efeito, isso descaracterizaria seu méto-
tar, procedimentos do conhecimento científico – e do e significaria a perda da concretude histórica à
com a crescente universalização do sistema educa- qual Weber objetivava alcançar. Proceder assim se-
cional de ensino básico. O Estado e seus aliados ria recair no mesmo erro já cometido em relação
privados – tais como grupos de produtores de bens a Marx, isto é, deixar que os resultados de sua
e serviços, nacionais e estrangeiros, mecanismos análise, tidos como paradigmáticos, prevalecessem
de comunicação de massa –, em esforço conjunto, sobre sua metodologia e suas intenções. Que We-
tiveram êxito em construir uma nação secularizada, ber continue a ser o instigante autor que sempre
de economia fundada na racionalidade instrumen- foi e que não se crie, em nome de uma suposta
tal capitalista. Mas tal racionalidade é relativa, uma ortodoxia teórico-conceitual, uma esterilização da
vez que lhe falta o fundamento das mentalidades criatividade e da imaginação sociológicas.
desencantadas, mesmo que religiosas. Não seria,
talvez, esta a razão pela qual as classes médias e
mesmo as elites instruídas e bem postas profissio- Notas
nalmente, desempenhando funções ligadas à tec-
nologia de ponta, se sintam no Brasil atraídas por 1 Entre outros autores, ver Souza (1969) e Campos
esoterismos, por discursos da Nova Era, por filoso- (1997).
fias religiosas de origem oriental?2 2 Trata-se de uma hipótese a ser considerada, embo-
Creio que esta interpretação de nossa perma- ra o mesmo fenômeno atinja, em certa medida, a
nência num estado de semi-encantamento e secu- Europa ocidental, conforme chama a atenção Cecí-
larização relativa não esteja em desacordo com a lia Mariz (2001).
teoria weberiana. Desde logo porque desencanta-
mento e secularização são processos que, embora
busquem a racionalidade, são reversíveis. Se hou-
ve momentos históricos em que tais processos se
deram de maneira plena e absoluta – vale lembrar
36 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 20 Nº. 59

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cias Sociais, 13 (37), jun.
164 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 20 Nº. 59

NEM “JARDIM ENCANTADO”, NEITHER “ENCHANTED GAR- NI “JARDIN ENCHANTÉ”,


NEM “CLUBE DOS DEN” NOR “DISENCHANTED NI “CLUB DES
INTELECTUAIS INTELLECTUALS CLUB” INTELLECTUELS
DESENCANTADOS” DÉSENCHANTÉS”

Lísias Nogueira Negrão Lísias Nogueira Negrão Lísias Nogueira Negrão

Palavras-chave Keywords Mots-clés


Sociologia da religião; Max We- Sociology of Religion; Max Sociologie de la religion; Max We-
ber; Desencantamento de mun- Weber; World disenchantment; ber; Désenchantement du monde;
do; Secularização; Campo reli- Secularization; Brazilian reli- Sécularisation; Champs de la re-
gioso brasileiro. gious field. ligion au Brésil.

Este artigo parte da retomada das I review the main concepts of Cet article analyse la relecture
principais concepções da sociolo- Max Weber’s Sociology of religion des principaux concepts de la so-
gia da religião de Max Weber, rea- to reaffirm their sheer importance ciologie de la religion de Max
firmando sua excepcional impor- to understand religious phenome- Weber, et réaffirme son importan-
tância para a compreensão dos na, both in their own dynamics ce exceptionnelle pour la com-
fenômenos religiosos, seja em sua and in their links with other préhension des phénomènes reli-
dinâmica própria, seja em suas ar- dimensions of social life. Then I gieux, soit dans le cadre de sa
ticulações com outras dimensões turn myself to the task of follow propre dynamique, soit par rap-
da vida social. Procuramos acom- up in a critical vein some of the port à son articulation avec d’au-
panhar de maneira crítica algumas readings of Weber done by con- tres aspects de la vie sociale.
das leituras que têm sido realiza- temporary sociologists in France L’auteur propose, ensuite, l’étude
das de sua obra por sociólogos (Pierre Bourdieu), in the United de quelques interprétations de
contemporâneos na França (Pierre States (Peter Berger), and in l’œuvre de Weber par des socio-
Bourdieu), nos Estados Unidos Brazil (Flavio Pierucci). Though logues contemporains: Pierre Bour-
(Peter Berger) e no Brasil (Flávio arriving at controversial results, dieu (France), Peter Berger (État-
Pierucci), autores que, tentando they are fine attempts to super- Unis) et Flávio Pierucci (Brésil).
superá-la ou resgatando sua au- sede Weber’s work but keep this En tentant de surpasser le con-
tenticidade, chegam a resultados though alive. In the final part of cept de Weber et de récupérer
bastante controversos. Finalmen- the article, I change criticism into son authenticité, ils arrivent à des
te, e a propósito desta última lei- proposition trying to understand résultats controversés. Finale-
tura, introduzimos algumas refle- the scope of processes of world ment – et à partir de cette derniè-
xões sobre a realidade religiosa disenchantment and seculariza- re lecture de son œuvre – l’auteur
brasileira e sobre o alcance dos tion in the Brazilian context. propose quelques réflexions sur
processos de desencantamento do la réalité religieuse brésilienne et,
mundo e de secularização nesse dans un contexte social, de la por-
contexto social. tée des processus de désenchante-
ment du monde et de la séculari-
sation.

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