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taTb_éll pal_a historiograÊa o início de uma "modernização',, da qual reconhecia que os títulos em quescão "talvez significassem outra coisa para os
1lg::a
seríamos, or.l somos, cributários até hoje - ,rm, Àoderniza_ção, [o. i.ãG, jovens da direita"), não passava de um mo[e para discutir o traba-lho de seu
.Ç
'( largamgnç_e ide{U!6qada à admirável rríade formada por G_ifberro Fleyre, Sérgioi amigo Sérgio Buarque 30 anos depois de seu aparecimenco.
Bua_1gu9!9 HSle-qd+ ç Caig PradgJúnler. --' No encanto, as apropriações que dele se fizeram em geral supervaloriza-
Notada por Arantes, Mota e tâÍrfos outros intérpretes, essa idencificação: ram esse mote, redimensionando algo que, em seu contexto original, era secun-
.f.
:,remete, em sua origem, a um autor e a um texto específicos: o famoso dírío e, mais importante, transformando o que era "memória" em "hisrória",
prefá_,
.g-l gg1tt.9diç-19-d9"-naQ91d9.By4sil, d3çadq de.\!-67 e escriro pelo mesmo com implicações sérias e graves, as quais só muito recentemente começam a ser
Á$-qdg.Ça3dido 1c!m1 penci,onado. Mais especificamente, ao seu segundo i percebidas e discutidas. Maria Stella Martins Bresciani (2005:23), por exemplo,
- parâgrafo, no qual Candido (1994:xxxix) aÊrma que: em seu recence livro sobre o lugar de Oliveira Vianna entre os incérprécã§do
Brasil, não deixa de referir-se a esse "clássico prefácio" para ressaltar que:
Os homens que esrão hoje um pouco para cá ou um pouco para 1á dosi
cinquenta anos aprenderam a refletir e a se interessar pelo Brasil sobre- Essas reflexões de caráter autobiográfico, definidas pelo autor como
tudo em termos de passado e em função de três livros: Casa-grandc ü. balanço do passado a que chegamos a certa alura da vida, ou mesmo
senznla, de Gilberro Freyre, publicaclo [1933] quando esrávamos no gi- como "resremunho" ou "registro de uma experiência", que poderia ser
nâsio; Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, publicado [1936] a de muitos contemporâneos seus, ganharam, a despeito das intenções
quando estávamos no curso complemencar; Forrnação do Brasil contempo- do autoq o estatuto de paradigma e de divisor de águas da historiogra-
râ.neo, publicado [19a2] quando 'estávamos na escola superior. São estes fia brasileira. São numerosos os trabalhos fundamentados nessa afir-
os livros que podemos considerar chaves, os que parecem exprimir a mação, alguns diretamente referidos ao "Prefácio", oucros fazendo uso
mentalidade ligada ao sopro de radicalismo inrelecrual e análise social dele sem a devida referência.
que eclodiu depois da Revolução de 1930 e não foi, apesar de rudo, aba-
fado pelic Estaclo Novo. Ao lad.o de rais livros, a obia por cancos aspecros É também sintomático que o próprio Antonio Candido tenha se manifes-
penetrânte e anrecipadora de Oliveira Viannajá parecia superada, cheia tado nos últimos tempos contra o estabelecimento desse paradigma, ou pior,
de preconceitos ideológicos e uma vonrade excessiva de adaprar o real a de um cânone, a partir de suas palavras. Segundo ele, isso ocorreu à sua revelia
desígnios convencionais. e em função da incompreensão de seu texco, pois, como declarou ao jornal Fo-
lha de S.Paulo por ocasião dos 70 anos de Raízes do Brasll, nunca negou tratar-se
Vale descacar que, embora Antonio Candido dedique um parágrafo para de "um relato pessoal de influências", muito menos haver "livros tão impor-
cada uma das três obras citadas, comentando sucintamente o valor de suas con- tantes antes e depois dessa tríade nascida sob o governo de Getúlio Vargas".
tribuições para o conhecimento do Brasil, sua preocupação é, o rempo rodo, Algo óbvio, sem dúvida, mas que não o impediu de "ter sido cobrado até'por
sugerir a "atmosfera intelectual" em que âpareceu o livro de escreia de Sérgio pessoas de responsabilidade' pela ausência deste ou daquele livro no suPosto
Buarque, para, a partir daí, caracterízar suas inovações metoclológicas, teóricas panteão do pensamento social brasileiro" (Cariello e Colombo,2006).
e interpretativas - isto é, discutir "o signiÊcado de Raízes do Brasif', como anun- Desnecessário dizer que o problema c{essas leituras não está navalort-zaçáo
ciava o tículo de seu texro. Nesse sentido, seu exercício de memória. por mais do trio de autores e obras destacado por Anronio Candido, cuja importância
qlle tivesse a pretensão de servir como testemunho de uma geração, ou melhor, é ine§âvel,como o próprio crítico, em primeiro lugar, recônhàce ainda hoje. O
de um grupo que encão adotava posições políricas de esquerda (pois ele mesmo problema está, sim, na criscalizaç{çr dg qgulnomes, beqn como dos de outros
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3"191..1
preocgpados em discutir as questões de seu tempo, "rrT lugar atem-
$l-t!4.de
e tegicimidade, e isto, por ma!' q:.._p1l"ç1'.lyfd:
:3y:1u.
esloffas, ).::l
po...I{r c_9-o interprecação definitiva", para citar novamenre a professgra disputas próprios aos jogos dq pgde-r:
Stg-!..kr
ilf.::-r!-:.
B1g'qc!_111i (2005:16), para quem "considerar seus texlos- interpretações c1nô1i Quanto ao segundo aspecto - direcamente relacionado ao primeiro -,
casconsticui, a meu ver, uma rraição a eles".r Ao jogar por terra, ainda que de não é sensato imaginar que esses nossos "clássicos modernos" tenham apareci-
-oào l.ruolr'rncáÍio, a própria dinâmica da história que os envolve, tal proce- do e se aÊrmado por obra e graça da genialidade de seus autores, apenas. Uma
dim"nto acaba por ocultar, a um só tempo, tanto a trtjetôrladiferenciada de crítica recente vinda do campo dos estudos literários é, aqui, muico útil para ,
cada uma das obras desde o seu lançamento quânto a riqaeza e a diversidade pensar essa questão: em seu trabalho sobre o romance brasileiro produzido r
da produção historiográfrca brasileira no momento em que surgiram. na mesma década-chave de 1930, Luís Bueno também se mostra incomodado -.
N9.PílqSfrp çêsq,-q que cabe aqui destacar é que rais livrot, ,9 com os cânones habituais de nossa literatura, em que Guimarães Rosã ê Chri: - _-
-:"":-tj=:
do que
l diz., o prefácio
1,,
de Antonio Candido, não "nasceram" clássicos, e sim "se ce Lispector figuram, invariavelmente, em posição de desraque; d.e seu diálogo .
,...
côrnaram" clá1sicos, banalidade raramente levada em conta nas abordagens com autores como Silviano Santiago e Flora Sussekind, então, despontam os
habituais a seu_respeito. Há que se nocar, assim, que os três tiveram uma re- seguintes comentários:
cepção crítica diferenclada, glntg em seu próprlo mqmento quanlo posterior-.
sgus "impactos incelectuais" (ourra expressão de Candido)
Tgl!": :t port1n-to: Textos como estes, escritos por estudiosos bem postados, elaboram
-
va1iara14., _e
multo, com o tempo aré a sua consagração definitiva, inconcestq. ou mais que isso -, dão forma a uma espécie de lugar-comum da his-
Tal dinâmica, em termos muito amplos, corresponde às demandas do pensar tória literária brasileira nesta virada de século, que, mais que canonizar
o Brasil no decorrer do século XX, ao longo do qual nossa historiografia pro- Clarice Lispector e Guimarães Rosa como os grandes nomes da nossa
gregsivamente se aproxima "aos parâmetros acadêmicos de produção do co- ficção no século XX, tende a isolá-los como se, demiurgos de si mesmos,
nlecimenlo hi$p-fiçq, acgmplnlando a afirg5ão dos próprios curs-os supe- pairassem isolados sobre nosso ambiente lirerário, totalmente desco-
rlorês de Histó1!4 e a_consequente especialização por ela acarretada" (Franzini nectados das experiências anteriormente feitas no câmpo d.a prosa em
e Goncijo,2009:159); em outras palavras, à medida que encre nós se afrrma a nossa sempre criticável tradição licerária.
historio-grafia acadêmica, profissio.nal, afirma-se também o panreão que lhe dá
-
A questão a se colocar é se de fato esses escritores cêm a força de, para
além de tirar do nada suas obras, conseguir legitimáJas num ambience
tÀnda a respeito de ta1 cristalização, que consagrà alguns nomes ao mesmo rempo que trai o seu pensa-
literário totalmente estranho a elâs, ou se, ao contrário, a leitura que se
menro, a importância do tema fz com que valha notar uma aguta obseruação de Nicolau Sevcenko em faz da tradiçío da prosa brasileira de ficção não tem deixado de lado
sua entrevista para olivro Conyersas com historhdores brasileiros: de acordo com ele, "hoje os nomes claquela
primeira geração republicma são grmdes reFerênciro, tidos como os intelectuais que estão na gênese do
experiências importantes, de forma a dar a falsa impressão de que Gui
pensmento bruileiro contemporâneo. Mx isso fez com que eles prosasem da posição de gente empur- marães Rosa e Clarice Lispector são casos absolutamente isolados, ver-
rada paa c margens, diante de uma elite que era reFratária ao que eles tinharn a dizer, para serem Íepen-
dadeiros meceoros caídos sobre nós para extinguir velhos dinossauros e
tinmente catapultados para a condição - que Machado de Assis deÊniu tão bem - de 'meda.lhão'. O que
tâÍnbém neutraliza o pensmento deles, porque os envolve em uma celebração que os tornâ palaráveis iniciar uma era povoada de outros animais (Bueno, 2006:18).
para todos os conseruadores e instituiçóes conseruadoru, e o elemento radical daquele pensamento pãsa
aser mero detalhe decorativo. Consagrar os professores Sérgio Buarque, Caio Prado, Florestan Fernandes,
ou Euclides da Cunha, Lima Barreto, é algo diverso e até contário a levu à últimas consequêncix o con- No caso da historiografia produzida nos anos 1930, a sua redução a Gil-
teúdo crítico da miiirância inteleccual deles. É um percurso lmentável. O nome está presente, a imagem, berto, Sérgio e Caio raramenre dá a devida atenção ao mulrifacetado conjunco
mc como'medalhão'- e não como geratrizfertlltztdora do debate intelectual, que foi toclo ele mutilado,
cxtrado". Moraes e Rego (2002:344). 1o qual eles se inserem e que dá senddo à sua própria prodqção. A melhor
Esruoos DE HISToRIoGRAFIA BRASILEIRA A DÉCADA or 1930, ENTRE A MEMóRIA E A HtsróRIA DA HtsroRIocRAFIA BRASILEIRA 267
expressão desse conjunto talvez se encontre na proliferação de collções dedi-, próprio Freyre: podia-se ouvir ali com facilidade ecos de Casa-grande (, senzala
!,
cadas a abrigar estudos os mais variados sobre a nossa formação, que ficariam . e de Sobrados e mocambos,a começar da atenção dedicada ao caráter histórico de
íi i. conhecidas por um nome tão genérico quanto sugestivo, "brasilianas", tomado memóriàs.a biosrafias,
o livros de viaqem e c;da "uma vari"dade de mãceria.l em
' -,-
ú'. de empréstimo da primeira delas, lançada em 1931 p"la ôà.np-""hià sditora á..lllp-itç llde-virgçnl'-(F.9vl:. 1?1 !1.V), ramba* I lh:*9:_ti:la_ o.
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\." Brasil, reivindicada na aber[ura de sua primeira obra, reaparecia na reFerência
,) Nacional.2 Entre elas, a série mais representativa da preocupação da época corp
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.'a hisrória do Brasil, bem como das novas abordagens e novos discursos que procul-19 cg.Irhgcer o gassado brasileiro na sua maior intfmidad,e"
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então se produziam a seu respeito, foi construída pela LivrariaJosé Olympio ;
(Freyre, 1936a:VI). Ou enrão o acento no caráter diversificado da história e na
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em "estado quase bruto" ou analisado de forma criceriosa, ele estaria na base res ligados às modernas ciências sociais e ao meio acadêmico, casos de Heloisa
dol gabalhos a serem publicados, como eradito praticamente a cada parágrafo. Alberto Torres e de Donald Pierson; e até mesmo um autor duramente cri-
O propósiro era, parece claro, a afirmação de um conhecimenco "verdadeiro" ticado em Casa-grande d2 senzala, Oliveira V-i4n1 Finalmente, mesmo os "es-
.i sobre o Brasil, do conhecimenro do Brasil "real", fundamentado não em recons- trangeiros como Na,sh, Koch-Grünberg, Guenther, Normano, DeFfontaines,
\1§-
'-'i truções ou especulações superficiais e estéreis, e sim 9m inrerprerações "com- Martin" (Freyre, 1936b:VIII-X), cujas obras se pretendia :raduzir, podiam ser
prováveís" a seu respeiro. Numa palavra) tratavâ-se de afirmar o conhecimento enconcrados quase todos pelas páginas dos dois livros de Freyre, a ajudá-lo a
"cleniíficol'- s.o,bre -o- E1a,q!! -elab911{o por "especialistas; q,r. à"lr*rn "vida" aos - Fundamentar suas análises.
documentos para juntá-los "à história social do brasileiro" (Freyre, 1936a:MI). A arquitetura da coleção mostrava-se, Portanto, uma bem planejada exten-
úão ... diÍicil, assim, perceber o quanto tal perspectiva ernulava o trabalho do são da casa-grande intelectual consrruíd, pC]q hlqço1ildor-sociólogo Pernam-
bucáno, algo que a sucessão dos vofumes nos-T-tos s:guintes só- co1llmarra'
2
Como diz o antropólogo Gustavo Sorá (s.d.:11, nota 9), "brsilimaes una palabra que baliz,a h bistoria del Gilberto Freyre, portanto, podia ser - e era_ uq1 gr,.a-nde inoyado-r estudos
1os
libro en Brasil. Indica el principio más pod*roso pdra orgdniz/lr colecciones cm aquellos libros que deben ser leídos Pard
sobre a formação da sociedade brasileira, mas não se mostrava disposto ao iso-
e!
conocr al Brasil Denota una biblioteca metafóica del país, dnnde un lexor foráneo, por ejemplo, pueda, dc un golpe,
tener tod.d. li calturd nadonal a su akance" . lamento- Tanto que, mesmo após abrir mão, surpreendentemente, da direçào
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A DÉcADA or 1930, ENTRE A MEMóRrA E A HrsróRrA DA HrsroRroGRÂFIÂ BRAsTLETRA 269
-,---i.\
da série em meados de 1938,Lele não deixaria de influenciar seus rumos, fosse perfis mais vivos e humanizados, o qual fundamentava, desde pelo menos frns
por meio de seu prestígi«iãu por meio da arnizade que o ligava ao edicorJosé
dpl!9c.gda de 1920, uma.verdadeira "epidemia biográfica", segundo o crítico
Olympio e ao novo direcor, Occávio Tarquínio de Sousa. deAchayde.
entrada de Tarquínio, contudo, deram novos rumos
TTe
A saída de Freyre ea
A expressão, cunhacla para designar "a expressão do estado de espírito
ao empreendimento editorial da Documentos Brasileiros, revelando ourra fa-
da época, u5n.e_stado maScado por utna grqyf9191t4jn9i? ?-i:!!i!ddc", segundo
.àeta mar.".rte da nossa historiografia à época. Intelectual respeicado e histo-
Marcia de Almeida Gonçalves, levou esta historiadora a indagar se a prepon-
riador dedicado ao estudo d9 llmeiro R9in1d_o,.,o;tl:::_T1_lgllli", q" §lg5. derância do gênero na coleção daJosé Olympio após 1939 "não teria sido re-
tal como o autor de Casa-grande 49 senzala, também tinha interesse em projetar
sultado dos gosros e escolhas do diretor da Documentos Brasileiros, na é?ggq
sobre a coleção as suas concepções acerca do conhecimento do Brasil, em geral,
ele mesmo um biógrafo cujos trabalhos integraram a coleção, ou se nesse fato
e da história, em particular, as quais Passavam pela valorização da biogragl
encontraríamos porventura as marcas de um tempo ávido por narrativas de
Para ele, o biógrafo tinha a obrigação de emPre-
,igg_o,89_q9lq-h§::1.-gt?-4ç-o, vida" (Gonçalves,2003:238). Diante do exposto, umapossível resposta poderia
."ender uma contextualização rigorosa, sernpre fundamentada em documentos,
afirmar que as opçóes não são excludentes, e sim "complementares": ao que
, a Êm de entender o indivíduo, suas ações, suas contradições, sem sobrepôJo
I tudo indica, os inreresses da época foram filrados pelos "gostos e escolhas"
; a seu tempo ou consagrar-lhe características "heroicas" - algo muito distan-
de Tarquínio, forçosamenre associados às propostas originais da coleção. Mas
\ te d., tradicionais nârrativas laudatórias dos "grandes feitos de grandes ho-
é importanre notar também que a atenção às particularidades e aos funda-
\mens", comumente produzidas tanto Por hisroriadores quanto por literatos,
mentos do trabalho do historiador lornava Octávio Tarquínio de Sousa uma
e em sintonia com autores que, em diferentes lugares, empenhavam-se pela
exceção, tanto em meio à grande produção de biografias do período quanco
renovação do próprio gênero.3
'" diante do rradicional personalismo cultivado no âmbito do Instituto Históri-
Assim, com sua.ascensão ao comando da Documentos Brasileiros, as bio-
co e Geográfrco Brasileiro. Mesmo entre os muitos títulos que ele próprio aco-
grafias ganharam grande peso: nos cinco anos seguin[es, 13 dos ZS vol"mes
lhiq poucos conseguiam alcançar semelhante reconhecimento, e não é casual
lançados seriam de caráter biográfico ou memorialístico, de André Rebouças
que estes fossem, em geral, escritos por literatos sobre outros liceratos, como
dtrdués de sua autobiografa, de Inácio José Veríssimo (com prefácio dele mesmo, "'
A tida de Lima Barreto, de Francisco de Assis Barbosa, ou a reedição do Machado
Tarquínio), ao No Branco do crítico r(lvaro Lins, passando por dois livros seus,
de Assis de Lúcia Miguel-Pereira; independentemente do tratamento que davam
Diogo Antônio Feijó, de L942, e José Bonificio, de 1945. Ao prefaciar um desses
ao passado, livros assim eram ridos a Priori como perlencentes a um râmo "es-
lançamentos, as Minhas recordações, de Francisco de Paula Ferreira de Rezende
(t944), o próprio Tarquínio assumia Q94a:2I) que, "tendo lido os originais, pecífico", portanro diferente, da história::" hisória 114e_tfr:*gl{:lvertente
Eambém bastante contemplada pela coleção, da reedição de clássicos como a Culiogo é que, enquanto tal frágil "história das ideias" enconrrava abrigo
Histórid da literatura brasileira de Sílvio Romero e de José Veríssimo à produção nos volumes da Docurnentos Brasileiros, outra novidade, esca mais abrangente
dos noios, como P_edro Ç-"1-+-stt,-1.!r-il dg Ç1!pra Cascudo e, mais umq v,g?,^1 e muito melhor definida, seria ignorada pela coleção: o marxismo. Delibera-
Lúcia Miguel-Pereira.,. ilamente ignorada, talvez seja possível dizer, já qu" desá" o início da década
t"
Mas nem só de uma "nova" his-t^ó-ria, de inspiração freyrian4 . do_ltggÉflgo ae tgaO nossos circuitos intelectuais mostravalTl-se acentos à emergência da
üiveu a Documentos Brasileiros. Uma história dita "da asleias-r-por exemplo, Àcerpretação materialista da hisrória do Brasii com: a inte1l"a
Í:-?":rl."a
rambém desponca aqui e ali na coleção, reivindicada em momentos discinros difusão de obras marxistas, clássicas e contemporâneas, em geral realizada por
por alguns autores sem qualquer articulação entre si. O primeiro a trilhar esse pequenas edicoras e com sucesso comercial considerável, segundo Edgard Ca-
-
caminho foi Afonso Arinos de Melo Franco, co.r,n O índ.io brasileiro e a Reuolação $ne (2004:63). Nada disso, contudo, lornaria a Documentos Brasilêirôs sensí-
Francesa,publicado logo no início da série, em 1937. Vinte anos depois, a expres- vel a autores comprometidos com a interpretação materialista da hiscória e da
são "história das ideias" volcaria a aparecer, desta vez já no rículo do livro de realidade, algo que decerto não deve ser creditado a um possível conservadoris-
g9fyyr,u.gão à histqria das iàeids no
Br4-il, cuio complemento, "O
J911C1r1zç_g sqE mo, muito menos reacionarismo, do editor. De p_qgtg_r-p libgral,José Olympio
desenvolvimento da 6losofia no Brasil e a evolução hisrórica nacional", delineava era um dos principais fomenradores do novo e crítico romance social que sur-
melhor o seu conteúdo. No ano seguinre, gia à época no país, e ainda daria guarida profissional a autores assumidamen-
"*-":ly.y:4.1:n19!_r§-ioçpraada,deJoãq
Camilo de OliveiraTorres (1958:15), aparecia com a precensão de,
te de esquerda perseguidos pela ditadura do Escado Novo, como, Graciliano
Ramos eJorge Amado. Ademais, a crescente tensão política enrre 1935 e 1937
dencro dos métodos e intenções da disciplina que se inticula a "hisrória
e, depois, a insticucionaltzaçío da censura fizeram-no sofrer bastan[e com a
das ideias", analisar os diferentes sistemas ideológicos que exerceram
violência contra a livre manifestação da cultura e do pensamento, que reta-
iníluência no Brasil, seja em seu desenvolvimenco político, como no
liava ranco os romances tidos por "comunistas" que publicava quanto âs suas
caso presente, seja na Formação espiritual, seja ainda na vida religiosa
ediçôes de livros integralistas, os quais defendiam "o tipo errado de fascismo"
ou social.
(Hallewell, 2004:45 5).
Como hipórese, talvez seja possível atribuir tal ausência ao perfrl de seus
O longo hiato temporal a separar tais estudos, bem como as discrepânctas
r,espectivos di_r-e_tores. No caso de Gilblto Freyre, sua reticência ao materialismo
enrre suas perspectivas analíticas indicam bem como aqui no Brasil a então
hisrórico-dialético se explicitara já à páginas iniciais de Ca.sa-granàe ü senza.la,
nascente "história das ideias" encontrava um eco fugidio e ambíguo corno sua
o1{1, .p"rr. de não ser negado de rodo, fora caracterizado como "tantas vezes
própria identidade, formulada de diferences maneiras em diversas tradições
exageqado nas suas generalizaçóe9 - principalmente em crabalhos de sectários
historiográficas, da Geistesgesglicht9 alerná à bstory of ideas de Arrhur Lovejoy.
Antes de representar uma tendência bem delineada da nova historiografrabra' 1!ng1!Ces" (Freyre, 1936b:XI). Já com relação a Octávio Tarquínio, sua Pre-
dileção pelo biográfico necessariamente implicava algumll a-nge a
sileira, ela funcionava muito mais como um rótulo para classiÊcar trabalhos de {iferenql
int-erpretafao materialista da história. Estas, no entanto, não o colocavam em
temática pouco usual, que calvez não se encaixassem bem nos compartimentos
estabelecidos por nossa própria tradição. Ambos os fatores fazial::^ com que ío.tcã opoiiçáo marxismo, a!é porque seu propósito era sempre, como já
"o
tais autores reivindicassem novos olhares para novas faceras do passado brasi- foi notado, o de entender o homem em si mesmo e em relação com seu meio
leiro, em sinconia com o movimento maior dahistoriogra6a ocidencal, é cerlo, e seu momenco; como conscatou-Marcia de Almeida Gonçalves ao analisar a
todavia ainda marcados, em maior ou menor grau, por uma forma hiscoricista, introdução à fundadores d.o Império do Brasil, em que o próprio Marx
História dos
ou historicizance, de abordar ideias e autores (Falcon, 1997). é dipcucido por Tarquínio, para ele,l'a luca de classes não implicava a. negaçáo
272 Estuoos DE HISToRIocRAFIA BRASILEIRA A nÉceoe oe 1930, rNrnr a UEMóRrA E A HrsróRrA DA HrsroRroGRAFIA BRAsTLETRA 273
da interferência de grandefP!-r,s.--o-nalidades, dotadas de qualidades morail g!5 nossa hisgoriografia e,reencontrarmos a sua vitalidade, o que significa reen-
L--.
6l".ru'.ir, õdã§"""óilimento das sociedades" (Gonçalves, 2OO3i2gO).ú;r""t ã .s'üíprópria história. E aqui, píra frnalizar, vale reromar o que diz
ç_qltaf
assim, a tolerância muito maior que a de Freyre não foi suficiente para abrir a., Luís Bueno (2006:1,3), coincidentemente inspirado por uma aurora daqueles
coleção à esquerda. rempos (Lucia Miguel-Pereira), acerca das possibilidades de "ourra" hisrória
Em contrapartida, uma hisroriografia mais rradicional fazia-sé muito da literacura brasileira:
'presente entre seus volumes - e "cradicional", aqui, nada tem de pejorativo,tl
antes refere-se à permanência e predominância de certos traços característi: Ao invés de tentar um amplo painel que desse conra da evolução da
cos da produção historiográfica oirocentista, como o foco em Personagens er i Iiteratura, o historiador poderia trabalhar mais extensivamenre sobre
acontecimentos políticos e a sobreposição aparentemente acrítica de nomes,
j""i um momento dessa evolução. Dessa maneir4 é possível romper o cír-
âtos e datas. Além ea despeito disso, mesmo nelas aparecem mudanças con- ,
culo dos "principais" autores, sempre confundidos com os "melhores"
sideráveis em relação à forma pela qual se recuPera o passado, bem nítidas i autores, e voltar os olhos para escritores cuja obra, embora possa ser
em alguns casos, quase imperceptíveis em outros. Tomadas em conj'unto) tais visca num determinado momento como falhada, representou esforço
abordagens espelhariam, como há temPos escreveu José Roberto- do-Amaral significacivo e, mesmo, muitas vezes, definidor das letras do seu tempo.
Lapa(1976:74), a continuidade da história éuénementielle, mas agora-Preocu- A restrição aos "melhores" favorece o hábito de fazer da história literá-
ria um repisar das mesmas ideias sobre os mesmos au[ores, umavez que
pada e atenta ao revisionismo do passado estabelecido, algo que a levava mes-
seu escopo já aparece predefinido, em função do que valeria a pena ou
mo a se abrir a novas quesrões e a novos temas de nossa história. Neste caso
insêiem-se títulos como Históriq,4qCl:S'dST.oyg,{: p.d.g C_alm9n (1939),,{ não ler. Ora, antes de ler efetivamente, é impossível saber se, para um
.
yrande uida de Fernão Dias Paes, de AFonso d'Escragnolle Taunay (1955), Ensaios '; dererminado rrabalho de história literâri4vale a pena ou não ler esta ou
Garcil aquela obra que, para alguém que rabalhou em ourra perspecriva, anos
q hiJtórid. potítiç| q adminislraüya do Brasil (1500-1810), de Rodolfo :
11'bi1 antes, ficou claro que não valia.
(ilSO). Neles se expressa o alro grau de especialização de historiadoresjá"pro-
fissionais", que, inseridos ern instituições de ensino e pesquisa, nao apeÀãi
Substituindo, na citação acim4 "liceratura" por "historiografrl', "letras"
fazíamdo estudo, do ensino e da divulgação do passado o seu trabalho como i
por "história" e "história lirerária" por "história da historiografia", só resta
ainda eram publicamente reconhecidos Por ele. Suas obras, nesse sentido,
subscrevê-la.
eram coesas e arriculadas com uma linha teórico-metodológica_bem definida
e cumprida à risca, apoiando-se em rigorosa pesquisa e fartl q9ltmenia;õ
c_ggg_ggsip,11Ê g_1l1_e:!Ig de 1odo9.os 91ês, Capiqç1a"o $-" A_b19_1:Só isso já irn-
Referências
plicava necessariamente novos enfoques sobre a história pâtrta, fazendo com
que os remas e as aborclagens pudessem ser "tradicionais" à primeira vist4
ARANTES, Paulo Eduardo. Providências de um crítico literário na periferia do ca-
mas, pelas aberturas neles encontradas, bem como pelas sugestões que deixa-
piralismo. In: : ARANTES, Otília Beatriz Ftori. Sentido da formação. Três
vam, incitassem a his.toriograÊa brasileira à renovação.
estudos sobre Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza e Lúcio Costa. fuo de
Este rápido e sintérico painel indica, Portanco, o quão complexo era o ce-
Janeiro: P az e Terra, 1997. p. 7 -66.
h!sto19gry-q:o_ décadl de 1930, cuja configuração, em suas
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linhas mestras, estende-se pelo menos até fins dos anos 1950. Atencar a tal BRESCIANI, Maria Stella Martins. O channe da ciência e a sedução da objetiuidade. Oli-
complexidade pode ser a chave para Fugirmos à memória consagrada sobre a veira Vianna entre incérpretes do Brasil. São Paulo: Unesp, 2005.
274 Esruoos DE HISToRIoGRAFIA BRASILEIRA A DÉCADA »T 1930, ENTRE A MEMÓRIA E A HIsTÓRIÀ DA HIsToRIoGRAFIA BRAsILEIRA 275
BUENO, Luís. tlma história do romance de 30. Sío Paulo: Edusp, Unicamp, 2006. I NovAIS, Fernando. Influências e invenção na sociorogia brasileira (comentário
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