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Julho 2017
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especial
(Continente)
HISTÓRIA
A CRISE
DOS MÍSSEIS
FOI HÁ
55 ANOS
• A Havana
de Batista
• A revolução
• A baía
dos Porcos
• O bloqueio
• A vida privada
• A sucessão
• O futuro de Cuba
FIDEL
CASTRO
O revolucionário e o ditador
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SIH 23
Sonho e despertar 4
O legado de Fidel
A Havana de Batista 10
Pântano norte-americano em Cuba
E assim se fez Fidel 18
O triunfo da revolução
Os barbudos da serra 26
Imagens que deram a volta ao mundo
Esticar a corda 36
A luta com Eisenhower
Até à vitória, sempre! 44
Triunfo na baía dos Porcos
O mundo em suspenso 52
A crise dos mísseis de 1962
Figuras cruciais 60
Personagens em torno de Fidel
Objetivo: matar Fidel 70
Operações secretas da CIA
Fidel em privado 78
Na intimidade do comandante
Poder ao delfim 86
Raul Castro no governo
Futuro indefinido 92
Cuba depois dos irmãos Castro
O líder invulnerável
Fidel Castro foi vítima de inúmeras tentativas
de assassinato, mas chegou aos 90 anos.
Aqui, durante a sua visita aos Estados Unidos
para apaziguar os ânimos após a revolução,
exibe um jornal que dá conta do alarme
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Colaboraram nesta edição Edição, Redação e Administração da GyJ España Ediciones, S.L.S en C. e a
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e Vicente Fernández de Bobadilla. Esta publicação é propriedade exclusiva da GyJ España Ediciones, S.L.S en C.
O legado de Fidel
Sonho e
despertar
Fidel Castro e a sua
revolução despertaram
paixões diversas, ilusões e
desilusões, amores e ódios…
Eis o testemunho
de Norberto Fuentes,
que esteve muito próximo
do líder cubano.
T
inha quatro telefones pretos em cima da
secretária, à esquerda. Foi através destes
aparelhos que passou a história da revolução Passado, presente e futuro. Esta imagem
nas últimas décadas. Através deles, Fidel articu- simboliza a incerteza atual sobre o rumo que Cuba
lou argumentos, ordens, nomeações e compromissos. vai tomar: um antigo carro dos anos 50 passa junto
a um cartaz pró-revolução, a 27 de novembro
Poucos o sabem, mas dedicou noites a fio a falar com
de 2016, dois dias depois da morte de Fidel.
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4 SUPER
acabava de ganhar um prémio de produção. “O que é mos argumentos de sobra para nos transformarmos
que achas? Ganham um prémio e enviam-me este cha- em inimigos de morte – e de morte fomos, compa-
ruto. São nobres.” nheiro –, mas, naquela noite provavelmente de feve-
reiro, com as minhas calças Levi’s e com as suas eternas
UMA SOLIDÃO IMENSA calças de campo da guerra na selva, éramos dois seres
Na verdade, havia mais do que inocência neste diá- equipados apenas com as nossas solidões e, como
logo. Algo que, vão-me perdoar, era não apenas per- navajos com os seus pequenos tesouros de bugigangas,
turbador, mas inspirador de compaixão. Talvez não nada mais tínhamos para partilhar, dois náufragos que
houvesse alguém melhor do que eu, naquele momento, trocam acenos de desespero ao longe, na vastidão do
para processar toda a informação que estava a ser pro- oceano, e de imediato, motivados por correntes con-
duzida e atuar como era necessário, porque sou escritor trárias e que não dominam, continuam a caminhar,
e porque aprendi arduamente a lição do meu mestre cada um com o seu rumo. “Caramba”, disse para mim
Hemingway quando dizia que um escritor tinha de se próprio. “Que solidão, a deste homem.”
habituar à sua própria solidão. Aquele homem não era Recolocou o troféu de tabaco na estante que estava
um escritor, era seguramente, por natureza, um assas- atrás dele e deve ter pensado que ainda não tinha atin-
sino tão implacável como temperamental e não podia gido o objetivo que queria, porque deu um suspiro pro-
ser escritor porque lhe faltava uma verdadeira capa- fundo, ou melhor, teve um arrepio, e perguntou-me,
cidade de abstração e porque o seu pensamento não de modo imperativo, “Que horas são?”, como se não
era parabólico e, portanto, não podia conceber morais tivesse relógio. Claro que me dei conta de que eu próprio
da história; razão para que nos anos seguintes tivésse- já estava à espera da sua próxima investida. “São sete,
Interessante 5
O julgamento da história
N a quinta-feira, dia 1 de janeiro de 1959,
era madrugada, Fidel Castro acabara de
derrotar um dispositivo militar que os parti-
cesso de uns cubanos de cabelo desgrenhado
e determinados que marchavam sobre Havana
nos tanques capturados ao exército de Batista.
dários de Batista descreviam como “os 40 mil A verdade é que faltavam apenas dois anos e
efetivos” e Fidel, em reiteradas conversações quatro meses para Fidel, utilizando material
comigo, calculou “pelo menos 70 mil homens de guerra soviético, aniquilar uma brigada dos
e umas 700 esquadras de polícia”. O certo é que Estados Unidos (ou recrutada, treinada, armada
tinha conseguido o impossível: no momento e lançada para o combate pelos Estados Unidos,
mais alto da guerra fria e no meio da histeria o que, para o caso, vale o mesmo), na baía dos
anticomunista dos Estados Unidos, ganhou Porcos; demoraria exatamente três anos para
uma guerra e ocupou Cuba com o seu exército que as suas esquadras de aviões de combate
de camponeses e desprotegidos e um punhado MiG desfilassem a bel-prazer, fazendo piruetas,
de estudantes para, logo a seguir – num curto trepando para os céus, sobre a Praça da Revo-
espaço de dois anos –, estabelecer um bastião lução de Havana, ao mais estrito estilo da Praça
comunista quase nas praias da Flórida. Com Vermelha em Moscovo. Seriam precisos apenas
uma Casa Branca dirigida por um general co- três anos e dez meses para que Cuba se conver-
mandante em chefe de todas as tropas aliadas da tesse num ponto de estacionamento de ogivas
Segunda Guerra, um Dwight Eisenhower que nucleares soviéticas. Fidel esteve, assim, prestes
se apressou a reconhecê-lo como governante a fazer-nos desaparecer da história, incluindo as
legítimo, mas que não teve capacidade nem provas da nossa existência, premindo o botão, a
intuição para ver para onde se dirigia este pro- ver de que lado se posicionaria.
6 SUPER
CONTACTO
Ícone. Os revolucionários (Fidel saúda,
em cima de um camião) entraram em
Havana no dia 8 de janeiro de 1959.
rado e que serviria depois de residência permanente do misturar a sua vida pessoal com a política. Nesse
embaixador cubano. Tinha um pequeno jardim murado, caso, nada melhor do que a sua guarda pretoriana
contíguo à porta principal, e a casa era recuada. Ao para traçar e defender essa fronteira.
meio-dia, calmamente, Fidel saiu de casa e foi ao pátio É aqui que se marca a sua verdadeira preocupação:
interior, com um roupão comprido que lhe dava pelos dispor do melhor serviço de escolta do mundo. Ideia e
tornozelos, e de pantufas. Deu uns passos com as mãos escolta que logo lhe servem (logicamente) para grandes
nos bolsos do roupão, quando se deu conta de que alguns festejos e casas de segurança ou, como aconteceu numa
colaboradores estavam no estacionamento do outro certa ocasião, para tentar iludir a perseguição cons-
lado do muro da casa e voltou para dentro. tante que Celia Sanchez – a companheira do tempo de
A seguir, apareceu no mesmo pátio o coronel Joseíto guerrilha na serra Maestra – lhe montou por todo o país
– José Delgado –, o chefe da sua guarda pessoal, quando soube dos seus devaneios amorosos com Dalia
que se virou para o grupo e disse, num autêntico tom Soto del Valle. No que toca à família, é preciso dizer
de súplica: “Meus senhores, por favor, saiam dessa que este conceito de fortaleza foi levado ainda mais
entrada e parem de olhar para cá, para ele pensar que a sério. Estou a falar da família oficial, desta senhora,
está sozinho.” Em todo o meu tempo de convívio com Dalia, e dos cinco filhos que com ela teve, em ordem
Fidel, guardo este momento como o mais patético de decrescente: Alex, Alexis, Alejandro, António e Ángel.
todos. Demasiado inteligente para saber que era impos-
sível estar só, parecia contentar-se com essa ilusão. NEM RAUL CASTRO TEVE TOTAL ACESSO
No entanto, e naturalmente, podia estar sozinho, mas De vez em quando, nos últimos tempos, surgiram
com a garantia da presença de uma companhia reforçada algumas fotos da intimidade familiar que foram publica-
dos comandos das Tropas Especiais, vindos de Havana das fora de Cuba, mas a reação institucional sobre estas
e armados até com foguetes antiaéreos portáteis. fugas foi de resignação: era normal que acontecesse,
porque os filhos tinham crescido e seguido o seu cami-
PERÍMETRO DE INTIMIDADE nho. Não os podiam ter sempre debaixo de olho. Na
Implícito na cena, o lado patético – termo que não verdade, bem vistas as coisas, para além de umas escas-
utilizo de forma pejorativa – é revelador de uma perso- sas fotos publicadas em revistas cor-de-rosa fora de
nalidade em permanente luta por um perímetro de inti- Cuba, foi uma vitória do Serviço de Segurança Pes-
midade que o tornasse inviolável. Isto revelou-se, e jus- soal, porque, até serem maiores, ninguém teve acesso
tificou-se ideologicamente, de muitas formas, e trouxe, sequer a imagens dos pequenos.
até, dividendos inesperados. A ideia – difundida pelas Tudo teve origem num critério criado por Fidel Castro
palavras do próprio Fidel Castro – de que não devia – um critério político, embora ele o quisesse transfor-
Interessante 7
O sonho de Angola Só depois de eles
serem adultos
F oi, sem dúvida, a operação mais ambiciosa e
que mais fama e benefícios políticos trouxe
a Fidel Castro, mas começou com um desastre: deixou fotografar
os cinco filhos
o de Che Guevara no Alto Zaire (Congo). 24
de abril de 1965: o argentino – como Fidel cha-
mava ao seu lugar-tenente da guerrilha da serra
Maestra – chega ao Congo, atravessando o lago
Tanganica; Che Guevara e 13 cubanos – depois mar numa questão de segurança: segundo as suas pró-
chegaram mais – que o acompanham neste de- prias palavras, muitas vezes ditas num círculo mais res-
sígnio. A aventura termina sem grande sucesso, trito de amigos, tratava-se de não contaminar a família
como tanto lhes agradava (ao argentino e a ele). com os seus subordinados. Isso não se aplicava apenas
Não receberam apoio do povo e o movimento ao povo. Nem sequer Raul Castro teve acesso a essa
revolucionário zairense parecia uma piada de família e às suas casas. Raul ficou louco de alegria no dia
mau gosto. O povo irredutível do Alto Zaire, em que o seu filho Alejandro, já com mais de vinte
como ficou demonstrado, está mais interessado anos, pôde conhecer alguns dos primos, dois dos filhos
em ter comida na mesa do que conseguir a liber- de Fidel, de forma informal, numa festa.
tação definitiva da humanidade por via do so- Foi um momento de exaltação para o general do
cialismo científico. Fidel – através de mensagens Exército e chefe das Forças Armadas (e atual presidente
transmitidas por rádio ou pessoalmente – deixa de Cuba), quando soube disso; chamou os subordina-
a decisão de retirada nas mãos de Che, e este dos que estavam por perto e mandou buscar vodka
dá-se conta de que Havana o está a atirar para a para brindar ao encontro. Não era apenas o contacto
jaula dos leões. Assim, o argentino retira. Está de entre primos. O acesso de Raul e os seus familiares,
novo nas margens do lago Tanganica, enquanto tal como de qualquer outro cidadão, à piscina térmica
espera pela lancha militar que o há de ir buscar, sob o telhado da famosa clínica CIMEQ, estava vedado
quando escreve um dos últimos apontamentos quando Dalia queria utilizá-la.
no seu diário de campanha no Alto Zaire: “É As explicações para a conduta de Fidel e para a cor-
assim que passo as últimas horas, desolado e tina de proteção em que fez viver a sua família podiam
perplexo, até que, às duas da manhã, chegam os ser múltiplas, mas o argumento básico terminava ine-
botes.” Porém, dez anos depois, exatamente a 10 xoravelmente na CIA. Claro que essa é também uma
de novembro de 1975, já com Che Guevara en- desculpa externa. Eu diria – devido às minhas obser-
terrado numa pista de aviação na selva boliviana, vações bem próximas – que as razões podem ser tão
Fidel inicia a maior aventura militar jamais leva- íntimas como as que revelou o coronel Joseíto naquela
da a cabo por um país subdesenvolvido: a con- manhã em Harare: sentir-se só. Assim, até ao final, o
quista de Angola. Mais do que uma empresa mi- que temos é um homem que dava sinais de distração
litar, parece fruto da imaginação. Separados por permanente, metódica. Enfim, um homem coberto por
12 mil quilómetros de Atlântico, e tendo Angola uma carapaça de enigmas e que teve o apoio de todo
onze vezes o tamanho de Cuba, esta faz desem- o aparelho repressivo de um estado para conseguir
barcar em Luanda o primeiro destacamento de atingir o objetivo.
82 homens das Tropas Especiais para conter o
avanço dos exércitos regulares da África do Sul e MULTIPLICIDADE DE PONTOS DE VISTA
do Zaire e o movimento de guerrilhas locais di- Contudo, eu pensei que tinha descoberto uma brecha
rigidos pela UNITA e pela FNLA, armados por no momento de penetrar a couraça por imperativos
quase todo o mundo (a China comunista, Israel, meramente profissionais. Se a história de Fidel Castro
a África do Sul, os Estados Unidos). É a hora de se podia escrever com menor ou maior facilidade, sem
Fidel. Uma hora que dura 15 anos e da qual sai sequer ter de consultar todos os jornais ou fazer buscas,
vitorioso. A expectativa norte-americana de que nesta era de Google e internet gratuitos, para reconsti-
Angola se convertesse num Vietname cubano tuir com uma certa ordem cronológica as ações que pro-
não se concretizou. No final, depois de enviar tagonizou, todos sabemos que isso nos levaria apenas
mais de meio milhão de homens, Fidel sofreu ao limite das aparências. Não pode ser de outra forma
2000 mortes; destas, um terço aconteceu em com a vida de um conspirador, um conspirador obsti-
combate; outro terço, em acidentes; o outro, por nado que, em todo o seu percurso político, tudo o que
doença. A iniciativa deixou na mão de governos nos deu foram pistas falsas.
autónomos os destinos de três nações: Angola, Apercebi-me disso no dia em que cheguei a uma sim-
Namíbia e a própria África do Sul. ples conclusão literária. A novela da revolução cubana
tinha de passar por esta personagem. Este foi precisa-
8 SUPER
Família preservada. Segundo revela este
artigo, até a Raul Castro, o irmão de Fidel e atual
presidente, foi vedado, durante muito tempo,
o acesso à companheira do comandante,
Dalia Soto (à direita, com o seu irmão, Raul,
e a ex-presidente argentina, Cristina Fernández).
EFE
mente o desafio que me levou a escrever, a tornar-me era aí que eu tinha de estar, tomar a decisão de fazê-lo
escritor, desde tenra idade. Então, no silêncio da minha e manter a convicção de que a novela é um instrumento
imaginação, não surgiu apenas a vida de Fidel Castro de conhecimento tão válido como o ensaio ou a história,
como um projeto, mas percebi também, nesse e muito mais ainda, porque é o único completamente
momento, que ia ser algo mais complicado do que um livre. No caso da presente monografia, foi esse o desafio.
trabalho académico. Na verdade, não podemos escrever A historiadora e jornalista norte-americana Barbara
mais uma biografia de Fidel Castro, daquelas que Tuchman afirmou, na sua formidável obra As Armas de
enchem as estantes. O próprio conceito de biografia, Agosto: “O que a imaginação é para o poeta, os atos
assumido em todo o seu rigor, obriga-nos a fazer parte, são-no para o historiador. A sua opinião nasce da sele-
seja de que forma for, da luta – já bastante cansada e ção, a arte da sua composição.” Será a apreciação do lei-
gasta – entre revolucionários e contrarrevolucionários; tor que determinará se o encontro de autores, pontos
quer dizer, leva-nos a tomar partido. de vista e trabalhos reunidos no presente volume
Temos de atravessar uma selva de contradições e supera a marca de uma colagem e, inclusivamente, de
aprender algumas coisas. A primeira é que a única forma uma boa e sólida antologia.
de realmente contar a história é sem juízos morais. N.F.
A segunda, é a velha premissa de Hemingway de que
se deve contá-la na primeira pessoa para que nos con- N.R. – Norberto Fuentes, nascido em Havana, em 1943, é
siderem idóneos para contar a vida de um político que escritor e jornalista. Participou na revolução e foi amigo
atraiu a atenção mundial nos últimos 50 anos. Este, na de Fidel Castro até 1989. Em 1993, tentou fugir de Cuba
minha opinião, é um barco que só se pode controlar num barco. Conseguiu sair da ilha em 1994. Desde então,
quando se está ao leme. Em minha casa, como escritor, vive nos Estados Unidos.
Interessante 9
Mão de ferro. Primeiro como coronel entre
1934 e 1940, depois como presidente (1940-1944)
eleito democraticamente e, por fim, como ditador
desde 1952 a 1959, Fulgêncio Batista dirigiu com
mão pesada a repressão contra os movimentos
socialistas e comunistas, enquanto apoiava as
operações criminosas da Máfia norte-americana.
A Havana de Batista
Sob a ditadura de Fulgêncio, a capital cubana foi a “Paris
das Caraíbas”, frequentada por estrelas de Hollywood
e com organizações mafiosas apoiadas pelo presidente.
10 SUPER
ALBUM
Interessante 11
Para os ricos
norte-americanos,
Cuba era um éden
de sexo e jogo
N
uma luxuosa suite do Hotel Comodoro, no
elegante bairro de Miramar, em Havana,
um mafioso italo-americano chamado
Santo Trafficante organizou em 1957 uma
orgia com várias prostitutas para a qual foi convidado
John F. Kennedy, um jovem senador do Massachusetts
que pouco depois se tornaria presidente dos Estados
Unidos. Kennedy não sabia que na suite havia um vidro
através do qual os gangsters se divertiam a ver o espe-
táculo. Anos depois, Trafficante lamentou não ter tido
uma câmara para gravar a cena.
O futuro inquilino da Casa Branca e milhares dos
seus compatriotas viajaram para Cuba nos anos 40 e
50 do século passado para desfrutar do paraíso de jogo
e sexo que a Máfia tinha montado na ilha. Ao longo
da marginal da capital cubana, ainda são visíveis os
símbolos do poder da Cosa Nostra na “pérola das Caraí-
bas”: entre outros, o Hotel Sevilha, onde os gangsters
montaram a base de operações, ou o Hotel Nacional, em
que se realizou a cimeira do crime organizado, em 1946.
Aquela mistura de casinos e hotéis de luxo criou uma
sensação de prosperidade que chocava frontalmente
com os graves problemas sociais de que padecia o povo
cubano. Esse negócio multimilionário era controlado por
dois capos mafiosos, Lucky Luciano e Meyer Lansky, Meca do jogo. O Hotel Nacional (ainda hoje
sendo este o cérebro financeiro do submundo italo- em funcionamento) foi o centro nevrálgico das
-americano. Foi Lanksy que concebeu, em 1933, o pro- operações do crime organizado norte-americano
em Cuba. Aqui, o casino do complexo hoteleiro
jeto de conversão de Cuba num estado mafioso que ser-
em pleno apogeu, em 1957.
visse de trampolim para lançar novos negócios ilícitos
na América Latina. Os mafiosos sabiam que o governo
norte-americano estava prestes a publicar a Lei Seca, o
que iria deixá-los sem a principal fonte de rendimento: a capital cubana num imenso negócio de jogo e prosti-
o contrabando de álcool. Essa foi a razão pela qual tuição. Num abrir e fechar de olhos, Havana passou a
concordaram com o plano de Lansky. ser “o bordel da América do Norte”, ao qual acorriam
milhares de norte-americanos, ávidos de sexo, jogo e
CAMINHO DESIMPEDIDO PARA A MÁFIA belas praias. Aquele modelo de gestão foi o mesmo
O cubano que lhes iria abrir as portas da ilha era Ful- que a Cosa Nostra aplicaria mais tarde em Las Vegas.
gêncio Batista, um ambicioso militar que acabava de Em 1945, a população da cidade rondava o milhão
ser nomeado coronel-chefe do exército. Cada um dos de habitantes. Mais de metade vivia no mais profundo
principais capos da Máfia desembolsou meio milhão de abandono, tentando apanhar as migalhas dos negócios
dólares para um fundo comum, do qual sairia a gigan- do jogo, das drogas e da prostituição. O sonho da Máfia
tesca maquia (entre três e cinco milhões de dólares por de criar um império do crime onde pudesse organizar os
ano) que Lansky tinha prometido a Batista, se este lhes negócios ilegais nos Estados Unidos e noutras partes do
assegurasse o monopólio dos casinos em Havana e mundo estava prestes a cumprir-se. Em 1940, Batista
noutros locais do país. ganhou as eleições. Sucedeu-lhe no cargo Ramón Grau
Pouco depois, Batista deu a Lansky o controlo do San Martín, em junho de 1944, mas Batista continuou
Hotel Nacional e do seu casino, que se tornou a base a controlar os fios do poder nos bastidores, à espera
sobre a qual o gangster criou a estrutura para converter de voltar à presidência.
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Ditador autodidata
F ulgêncio Batista nasceu em 1901, numa
família humilde. O pai era apanhador
de cana-de-açúcar na todo-poderosa em-
presa norte-americana United Fruit. Para
acrescentar à receita paterna, a família culti-
vava bananas que vendia na aldeia. Com 20
anos, Batista mudou-se para Havana para
se alistar no exército, onde alcançou o grau
de sargento estenógrafo do Estado-Maior.
Logo se afeiçoou à leitura, graças à qual ob-
teve grande parte dos seus conhecimentos.
Foi um genuíno autodidata, mas também
um homem ambicioso e sem escrúpulos.
Ascendeu na carreira militar até se tornar o
responsável pela proteção do presidente. De-
pois da queda do ditador Gerardo Machado,
em 1933, tornou-se chefe das forças armadas
e o homem mais poderoso da ilha, receben-
do apoio económico dos Estados Unidos.
O agradecido militar cubano defendeu
os interesses das grandes empresas norte-
-americanas em Cuba. Nas eleições de 1940,
foi eleito presidente, até que abandonou o
cargo em 1944, apesar de ter permanecido
na sombra, à espera de voltar à presidência.
Regressou em 1952, quando fez o golpe de
estado. A partir de então, recebeu quantias
milionárias dos empresários norte-ame-
ricanos e de capos mafiosos. O seu estado
corrupto propiciou a revolução de 1959. No
mesmo dia em que os guerrilheiros castristas
entravam na capital, Batista encheu as malas
com milhões de dólares e apanhou um avião
para se refugiar na República Dominicana e,
posteriormente, em Espanha.
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APOIO DOS ESTADOS UNIDOS Delano Roosevelt deu luz verde para a criação de um
Em 1936, enquanto Lansky iniciava os seus contactos sindicato específico italo-americano, o Italian American
na bela ilha das Caraíbas, Lucky Luciano foi acusado, Labour Council, cujo objetivo era apoiar as forças arma-
nos Estados Unidos, de diversos crimes de prostituição das dos Estados Unidos e seus aliados no sul de Itália.
forçada, o que lhe custou uma pesada pena de 35 anos Murray Gurfein, responsável pela operação, fez com que
de cadeia. Depois de passar cinco anos atrás das grades, dessem a Luciano uma cela confortável na prisão de
o capo mafioso viu a luz do dia quando o governo Comstock como prémio pela sua contribuição patriótica.
norte-americano lhe pediu ajuda para colaborar com a Aproveitando as ligações com a Máfia, Luciano faci-
polícia e o FBI numa missão secreta. Washington queria litou a comunicação entre os capos sicilianos e os ofi-
que os homens da Máfia que controlavam os portos ciais norte-americanos, conseguindo que o mandato
da Costa Leste dos Estados Unidos desmascaras- militar na ilha corresse sem contratempos. Depois de
sem os nazis que pretendiam sabotar os barcos que ser revogada a pena de prisão pela sua colaboração
transportavam armas para o Reino Unido durante a durante a guerra, as autoridades judiciais não lhe per-
Segunda Guerra Mundial. mitiram permanecer em solo norte-americano e extra-
Quando os Aliados organizaram o desembarque na ditaram-no para Nápoles (Itália), mas Luciano não
Sicília (Operação Husky), Washington voltou a pedir estava disposto a perder a vida do outro lado do oceano:
a colaboração de Luciano. O presidente Franklin em 1946, sete meses depois da sua chegada a Itália,
Interessante 13
O governo dos
Estados Unidos
mobilizou os capos
contra Fidel Castro
mudou-se para Cuba. “A cooperação secreta de
Luciano com a Marinha norte-americana durante a
Segunda Guerra Mundial tornou possível a sua saída da
prisão e estabeleceu as fundações da era da Máfia em
Cuba”, afirma o escritor e jornalista T.J. English em
Noturno de Havana.
PONTO DE ENCONTRO
Em dezembro de 1946, Luciano e Lansky mandaram
fechar os últimos pisos do Hotel Nacional para uma
cimeira em que estiveram presentes os altos comandos
da Cosa Nostra. Quase uma trintena de líderes, vindos
de várias partes dos Estados Unidos, reuniram-se na
capital cubana com o objetivo de analisar o futuro da
“Família”. O primeiro a chegar foi Vito Genovese, um
mafioso da velha escola que conhecia Luciano desde
antes da guerra. Frank Costello, Albert Anastasia e
Santo Trafficante foram os gangsters mais famosos
que participaram no encontro, para além de Joseph e
Rocco, primos de Al Capone. As coristas dos três prin-
cipais clubes noturnos da cidade, o Tropicana, o Sans
Souci e o Montmartre, estiveram disponíveis para os
mafiosos, assim como uma impressionante frota de Complot falhado. Frank Sturgis (à direita,
com o seu advogado, R. Golfard) confessou
cinquenta automóveis com chauffeur.
ter recebido a missão de matar Fidel Castro.
Uma das propostas que Lansky lançou sobre a mesa
foi a de transformar a ilha num Monte Carlo das Caraí-
bas, com uma imensa rede de hotéis com casinos e
aeroportos privados, para os quais era necessário contar
com o investimento da própria Máfia. Na reunião, falou- um grupo de jovens cubanas, acompanhadas de uma
-se de como estruturar a hierarquia da organização, freira, tinha subido à suite de Sinatra para o cumpri-
de drogas, de prostituição e de novos investimentos mentar e entregar-lhe um prémio. Ao entrarem na
na ilha. Outro tema escaldante que se discutiu foi o de suite, deram de caras com garrafas pelo chão, roupa
Benjamin (Bugsy) Siegel, a quem a Máfia tinha confiado interior pendurada nos candeeiros, quatro mulheres
a construção do Hotel Flamingo, em Las Vegas, cujo nuas e um Sinatra em roupão, com cara de espanto.
orçamento tinha disparado para seis milhões de dólares, A freira e as jovens saíram do quarto a correr.
cinco vezes mais do que o previsto. Meyer Lansky e
os outros presentes achavam que Bugsy tinha ficado GOLPE DE ESTADO
com o dinheiro da organização, pelo que concordaram As consequências daquela anedota viriam a ser
em eliminá-lo. desastrosas para Luciano. Um jornalista escreveu um
Uma vez terminado o encontro, os mafiosos apro- artigo sobre a festa no Hotel Central, revelando a pre-
veitaram os dias seguintes para desfrutar do jogo e das sença do capo mafioso em Cuba. A publicação do artigo
prostitutas, numa sucessão de intermináveis festas nos Estados Unidos provocou o mesmo efeito que uma
para as quais foi convidado Frank Sinatra, que deleitou bomba de hidrogénio. As autoridades norte-americanas
a fina flor da Máfia com a sua voz fantástica. Naquelas descobriram que o gangster tinha fugido de Itália para
semanas loucas, um dia em que Luciano e Sinatra se se instalar em Cuba, a uns escassos 150 quilómetros
encontravam em plena bacanal no Hotel Central, houve do litoral norte-americano. De imediato, exigiram a
uma falha de coordenação entre os guarda-costas dos Batista que expulsasse Luciano da ilha, o que este fez
capos. Aparentemente, ninguém se apercebeu de que depois de hesitar durante algumas semanas.
14 SUPER
A vingança da Máfia
O fracasso da invasão da baía dos Porcos
convenceu o presidente John F. Kennedy
da necessidade de acabar com Fidel Castro por
outros meios. Foi então que a CIA e a Máfia
uniram esforços no Projeto Cuba, que incluía a
Operação Mangusto, na qual participou ativa-
mente Santo Trafficante, um dos mafiosos que
mais dinheiro tinham perdido com a revolução
castrista. A CIA proporcionou aos criminosos
umas pílulas letais para acabar com a vida de
Castro, mas o complot fracassou, tal como ou-
tros semelhantes, que saíram frustrados anos
depois. Em 1975, o contrabandista de armas
Frank Sturgis declarou sob juramento, perante
uma comissão do governo norte-americano,
que Meyer Lansky lhe tinha oferecido, em
1959, um milhão de dólares para matar o líder
da revolução cubana, mas que não conseguiu
levar a cabo o atentado. Anos depois do assas-
sinato de John F. Kennedy, o nome de Santo
Trafficante voltou a surgir no Congresso dos Es-
tados Unidos como um dos chefes da Máfia que
provavelmente estavam ligados ao assassinato
presidencial em Dallas (Texas). Segundo essa
hipótese, os capos vingaram-se do presidente
Kennedy por permitir que o seu irmão Robert
investigasse os negócios do crime organizado e
acusasse alguns dos principais chefes. A verda-
de é que o assassinato de Kennedy e o posterior
atentado mortal contra o irmão, Robert, inter-
romperam os trabalhos dos agentes federais no
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O precipitado regresso do capo mafioso a Itália Jaimanitas até à promissora praia de Varadero”,
converteu Lansky no manda-chuva da Cosa Nostra em escreve o autor cubano Enrique Cirules em A Vida Secreta
Havana. Na sua posição de poder, Lansky convenceu de Meyer Lansky em Havana.
Batista a regressar à política ativa. Garantiu-lhe que
estavam em jogo milhões e milhões de dólares que não NEGÓCIOS DE VENTO EM POPA
podiam ser desaproveitados. Em março de 1952, o militar Em 1952, o mafioso Amleto Battisti comprou o Hotel
fez um golpe de estado e converteu-se no ditador de Cuba. Sevilha, onde instalou, no último piso, um casino, um
Pouco depois, o gangster foi nomeado conselheiro restaurante de luxo e um cabaret, que era frequentado
da Comissão Nacional de Turismo pelo novo governo. pelos crápulas da classe dominante e pelas mulatas mais
Nada poderia deter a corrente de dinheiro ilícito que iria exuberantes da capital cubana. Este hotel e outros, como
converter a ilha no paraíso da Máfia imaginado pelo o Nacional ou o Capri, foram o bastião cubano da Máfia
génio financeiro da Cosa Nostra. nos florescentes anos 50, quando o general Batista
Apesar de a Constituição ter sido suspensa e de terem governava o país com mão-de-ferro.
sido dissolvidos todos os partidos políticos, os Estados Outra personagem que ganhou fama em Cuba foi
Unidos apoiaram o governo de Batista. “Com o golpe de Santo Trafficante, o gangster de Tampa (Flórida) que
10 de março, inicia-se um conjunto de projetos, no seio organizou a bacanal para John F. Kennedy numa suite
de uma grande pirâmide de negócios, que incluía a cons- do Hotel Comodoro. Em pouco tempo, tornou-se o
trução de cinquenta novos hotéis ao longo do litoral criminoso mais poderoso da cidade, a seguir a Lansky.
norte da ilha, com casinos luxuosos, cabarets faustosos, Em 1953, comprou uma participação maioritária do
esplêndidos restaurantes e bordéis reluzentes, desde clube Sans Souci e alargou os seus negócios na ilha.
Interessante 15
Depois da fuga de
Fulgêncio Batista,
o povo invadiu
os hotéis e casinos
Porém, nem tudo corria muito bem na “pérola das
Caraíbas”. Em janeiro de 1953, marchou pelas ruas da
capital uma grande manifestação que incluía estudantes
universitários e operários. Dias depois, deu-se o assalto
ao quartel de Moncada por um grupo de rebeldes
encabeçados por Fidel Castro e pelo seu irmão Raul.
A insurreição armada contra a ditadura militar não
preocupou a Máfia. Em Havana, os casinos, os clubes
noturnos e os bordéis luxuosos continuavam a pro-
piciar somas milionárias aos gangsters, a Batista e a
alguns dos seus familiares, como o cunhado, Roberto
Fernández Miranda, que controlava, a meias com os
criminosos, os negócios das máquinas de jogo e dos
parquímetros da cidade.
REVOLUÇÃO ADIADA
A 16 de outubro, Fidel Castro compareceu perante
um tribunal que o julgou pela implicação na tomada do
quartel de Moncada. O líder da oposição defendeu-se
a si próprio com o famoso discurso de duas horas, conhe-
cido pelo título “Havana absolver-me-á” e que, com
o decorrer do tempo, se converteu no manifesto da
revolução cubana. Foi condenado a 15 anos de prisão.
Depois de ser eleito presidente dos Estados Unidos,
Eisenhower nomeou Arthur Gardner como novo
embaixador em Cuba. Batista era seu amigo e, assim,
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Povo em armas. Coincidindo com a celebração
da entrada em 1959, nas ruas cubanas viveu-se
a libertação do regime de Fulgêncio Batista.
Aqui, os guerrilheiros ocupam o Hotel Hilton.
altos comandos do exército conspiravam para o depor. e as colunas de Camilo e Che avançavam para a capital
Dias depois, Washington pressionou-o para que se cubana”, recorda Enrique Cirules em O Império de Havana.
demitisse e saísse da ilha. Os acontecimentos preci- Os bandidos pensaram que os revolucionários lhes per-
pitaram-se. O ditador preparou a saída de Cuba em mitiriam continuar com os negócios (ao fim e ao cabo,
segredo, sem nada comunicar aos amigos do crime a economia do país dependia deles, em grande parte),
organizado. Como noutros anos, o ambiente natalício mas enganaram-se.
fazia brilhar Havana, cujos casinos e hotéis estavam Os turistas, os amigos do ditador, muitos mafiosos
cheios de turistas. Na noite de passagem de ano, à e os funcionários do governo dos Estados Unidos
meia-noite, todo o mundo contou as badaladas. acudiram em massa ao porto e aos aeródromos para
Batista aproveitou aqueles momentos de celebração abandonar a ilha. As execuções contra os torturadores
para fugir de Cuba num avião carregado de malas e assassinos da ditadura começaram de imediato. Lansky
repletas de milhões de dólares. A ilha entrou em efer- percebeu que já nada tinha a fazer em Cuba. O dinheiro
vescência. Em Havana, as pessoas encheram as ruas e investido na ilha pelo crime organizado estava prestes
as avenidas. “O povo tomou a cidade e começaram a a esfumar-se. Em outubro de 1960, os revolucionários
destruir parquímetros e as salas de jogo: derrubaram anunciaram a confiscação e a nacionalização dos hotéis
as mesas, destruíram os tapetes e as roletas, as máqui- e das empresas norte-americanas na ilha. O que podia
nas de jogo foram atiradas para a rua e os baluartes ter sido o paraíso da Máfia nas Caraíbas tornou-se o pior
militares do regime foram cercados, enquanto San- negócio da história.
tiago de Cuba era ocupado pelas forças guerrilheiras, F.C.
Interessante 17
Banho de multidão. Em dezembro de 1959, pouco antes do primeiro aniversário
do triunfo da revolução, Fidel fez um discurso no centro de Havana. A multidão, como
vemos nesta foto, encheu o lugar. Era apenas o primeiro de meio século de discursos.
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O triunfo da revolução
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E assim se fez Fidel
Depois de mais de cinco anos de luta, a 1 de janeiro
de 1959, Fidel Castro e os seus seguidores entraram
em Santiago de Cuba e tomaram o poder,
enquanto Batista fugia para o exílio.
Interessante 19
Fidel tentou
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derrubar Batista
cinco anos antes
da revolução
O
s homens que se reuniam na fazenda de
Siboney não estavam a construir um gali-
nheiro. Essa era a desculpa para os encon-
tros. Em 26 de julho de 1953, mais de cem
guerrilheiros que tinham estado secretamente em
treino nessa pequena fazenda nos arredores de San-
tiago de Cuba, com a desculpa de estarem a montar
um aviário, partiram de autocarro em direção à cidade.
Comandados por um jovem advogado desiludido com
a via eleitoral, Fidel Castro, queriam conseguir a mudança
política que o golpe de Fulgêncio Batista, um ano antes,
tinha tornado impossível. Para tal, iam começar por
assaltar o principal quartel da cidade, o de Moncada.
Antes de partir, os guerrilheiros tinham ouvido uma
exortação do líder, o jovem Fidel, que os inspirou com
estas palavras: “Companheiros: poderão vencer dentro
de horas ou serem vencidos, mas, seja como for, façam
o melhor que possam! Independentemente de tudo, o
movimento sairá triunfante. Se for amanhã, será mais
rápido do que Martí imaginou. Se acontecer o contrário,
o gesto servirá de exemplo para o povo de Cuba. Liber-
Mítico. Uma réplica do Granma, apresentada em 2006,
dade ou morte!” O discurso incluiu igualmente porme-
durante as celebrações do 80.º aniversário de Fidel.
nores menos empolgantes, como o facto de alguns
dos revolucionários terem de ficar na fazenda por falta
de armas para todos. Apesar de avisarem Fidel de que
o plano era perigoso, apenas quatro dos 135 guerrilhei- A MELHOR DEFESA É O ATAQUE
ros decidiram não dar o passo que o líder lhes pedira. A reação de Batista foi brutal e diz-se que deu ordens
O ataque foi organizado em três grupos: o comando para que fossem mortos dez revolucionários por
principal, encabeçado por Fidel, atacaria o edifício do cada soldado caído. Os prisioneiros foram maltratados
quartel, enquanto duas outras secções assaltariam dois e torturados. No entanto, estes excessos virar-se-iam
quarteirões contíguos, onde se encontravam o Hospital contra Batista, porque geraram uma forte solidariedade
Civil e o Palácio da Justiça. A ofensiva sobre este último com os revolucionários, que se estendeu a toda a ilha.
seria dirigida por Raul Castro, o irmão mais novo do líder. Personalidades proeminentes, como o bispo de Santiago,
Os assaltos colaterais foram executados facilmente, pediram que fosse poupada a vida de Fidel Castro. Este,
mas o principal não. Depois de ter conseguido passar sendo advogado, decidiu fazer a sua própria defesa em
a guarita do quartel, Fidel e os companheiros foram tribunal, que decidiu a seu desfavor. Converteu as suas
surpreendidos por uma patrulha da guarda e por um alegações numa denúncia contra Batista e numa decla-
sargento. Tudo se complicou e ficaram a descoberto ração de intenções políticas que incluiu o seu projeto de
as debilidades dos guerrilheiros: os inimigos eram mais “cinco leis revolucionárias” que publicaria se vencesse.
numerosos e estavam mais bem armados (o veículo que Essas leis refletiam o seu projeto político, com medidas
transportava as armas mais eficazes tinha-se perdido). como instaurar o direito dos trabalhadores das fábricas
Além disso, o quartel estava situado no topo de uma de açúcar – a principal riqueza económica de Cuba – a
ladeira e os seguidores de Castro tiveram de combater receber 55 por cento dos lucros obtidos pelas empresas,
pela encosta acima. Porém, durante a batalha, mor- e 30% no caso dos trabalhadores industriais. Também
reram mais defensores do que atacantes, apesar de queria instituir uma reforma agrária e eliminar os lati-
serem membros do exército regular cubano, enquanto fúndios.
os últimos eram apenas uns noviços pouco batidos no No entanto, o discurso de Fidel ficou conhecido pela
campo de batalha. Fidel Castro foi detido. sua famosa frase final, “La historia me absolverá”, pro-
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A memória do Granma
É um dos barcos mais famosos da história e, a
seguir ao Titanic, talvez seja o mais recordado
do século XX. Falamos do Granma, o iate a bordo
do qual Fidel e outros 81 guerrilheiros percorreram
mais de 2000 quilómetros no golfo do México para
dar início à revolução e que é hoje objeto de culto
em Cuba. O nome do iate, Granma, vem do dimi-
nutivo da palavra “avó”, em inglês. Era propriedade
de um casal norte-americano que vivia no México
e que o vendeu a Antonio del Conde, um mexica-
no que colaborou com Fidel Castro na compra de
armas para a revolução. A travessia do Granma da
costa de Veracruz, no México, até à praia de Las Co-
loradas, no sueste de Cuba, foi épica, uma odisseia
cheia de dificuldades de navegação (sobretudo, a
ondulação) durante oito longos dias. Apesar de a
“invasão” que os seus promotores planeavam não
ter decorrido como esperavam, a chegada por mar
de Fidel Castro e dos seus companheiros, para
enfrentarem o regime de Batista, é considerada
como o acontecimento primordial da revolução.
Hoje em dia, o nome "Granma" é omnipresente em
Cuba: de forma destacada, é o nome dado ao jornal
oficial do Partido Comunista e à província onde se
localiza a praia na qual desembarcou. Nesta última,
encontra-se igualmente a Universidade Granma. O
iate pode ser visto hoje pelo público no Memorial
Granma, uma das secções do Museu da Revolução,
em Havana.
nunciada depois de ter sabido que ia ser preso, afir- radical e fundou o Movimento Revolucionário 26 de Julho
mando que a prisão “será dura como nunca foi para (em memória da data em que tinham feito o ataque ao
ninguém, cheia de ameaças e de malvadez cobarde”: quartel de Moncada), juntamente com os seus seguido-
“Não a temo. Condenem-me, pouco importa”, disse antes res mais convictos. Esta formação seria o braço político
de terminar a sua intervenção com a frase que hoje já faz de Fidel Castro. Não hesitou em anunciar a radicalização
parte dos manuais de política. do movimento nos artigos de jornal que foi publicando
nos meses seguintes, durante os quais residiu em
O BRAÇO POLÍTICO Havana. Os comentários depreciativos que fazia sobre
Foi dura a passagem de Fidel pela prisão, sim, porque Batista, que apelidou de “fanfarrão, desonesto e cor-
foi preso com 25 dos seus companheiros no presídio rupto”, provocaram o restabelecimento da censura.
modelo da remota ilha de Los Pinos, a 60 quilómetros Fidel resolveu fugir para o México, onde chegou em
de Cuba. Porém, também foi muito mais curta do que julho de 1955 num voo dos chamados “leiteiros” (por-
os 15 anos da pena a que o condenaram. Após 22 meses, que parava em todas as cidades para deixar e recolher
em maio de 1955, foram todos libertados, graças a passageiros).
uma amnistia concedida por Batista a todos os presos
políticos, após ter ganhado de forma fraudulenta as UMA ALMA GÉMEA
eleições presidenciais. A sua vitória, embora irregular (o Castro via o México como o país ideal para preparar
único rival tinha desistido perante a óbvia manipulação a revolução. O próprio regime mexicano, nascido do
de votos), tinha dado a Batista segurança suficiente na movimento mais esquerdista que alguma vez tinha
solidez do seu regime para se permitir mostrar magnâ- existido na região, caracterizava-se por medidas
nimo, mas este desanuviamento político pouco durou. muito ideológicas, em especial a de não reconhecer o
Fidel não tinha ficado mais manso na cadeia; pelo con- regime de Franco em Espanha. O México era também
trário. Saiu em liberdade convertido num político mais um lugar de refúgio político para praticamente todos
Interessante 21
Che Guevara
desconfiava
das intenções
norte-americanas
os perseguidos pelas ditaduras latino-americanas. Era
ali que se encontrava, havia meses, o seu irmão Raul,
que o apresentou a um desses exilados, um jovem via-
jante e revolucionário argentino, Ernesto Guevara, que
tinha chegado ao território mexicano depois de fugir
da Guatemala, onde os militares tinham feito um golpe
de estado financiado pela CIA contra o governo.
A ligação entre os dois jovens foi total, e influencia-
ram-se mutuamente com as suas ideias, o que rapida-
mente traçaria o destino de Cuba. Por exemplo, foi Che
que contagiou Fidel com a desconfiança que sentia em
relação aos Estados Unidos, a cujas manobras para
defender os interesses económicos tinha assistido pes-
soalmente na Guatemala. Unia-os sobretudo a crença de
que a insurreição violenta era o único caminho possível.
TREINO DE GUERRILHA
Fidel Castro queria constituir uma força guerrilheira
e dedicou a sua estada no México a tentar angariar
dinheiro para a sua causa: se à chegada achou que con-
seguiria angariá-lo entre a população mexicana, logo se
apercebeu de que esta ajuda não daria para muito. Por
isso, concentrou-se na comunidade cubana no exílio,
que já então era considerável, tanto ali como na Venezuela
e nos Estados Unidos, país onde ele próprio foi em outu-
bro de 1955 para fazer vários discursos. O seu principal
financiador foi Sánchez Arango, um antigo ministro que
tinha tentado a via armada, anos antes, e que nessa
altura estava exilado em Miami.
O grupo inicial de guerrilheiros que conseguiu juntar
era muito reduzido: apenas vinte recrutas. Primeiro,
treinavam num campo de tiro, fazendo-se passar por
desportistas; depois de o fazerem igualmente em Vera- sidente Carlos Prío Socarrás, para comprar um barco.
cruz, finalmente, com todo o dinheiro angariado, Fidel Fidel teve de engolir uns sapos, já que no passado tinha
arrendou uma fazenda em Chaco, a 30 quilómetros da criticado a corrupção no tempo de Socarrás (deposto
Cidade do México. A propriedade era um novo começo, por Batista) e aceitava agora o dinheiro “roubado à
como nos tempos da quinta em Siboney. Desta vez, teve república”. Mais tarde, explicaria que o fez “porque
a colaboração de um militar profissional, Alberto Bayo, havia que salvar a revolução”. Com esses fundos,
um espanhol que tinha combatido no lado republicano adquiriu um pequeno iate a motor, o Granma. A inten-
da guerra civil espanhola. ção era transportar nele a sua pequena quadrilha de
Estar longe de Cuba não era garantia de tranquilidade revolucionários.
absoluta. A fazenda foi identificada e Fidel e Che Guevara
foram detidos. Por sorte, o presidente mexicano, Lázaro ÊXITO DE PROPAGANDA
Cárdenas, intercedeu para que os libertassem a ambos. A 2 de dezembro, o Granma atracou num recife perto
Fidel e os companheiros continuaram com o treino militar, da praia de Las Coloradas, na província de Oriente.
mas num lugar mais remoto. A tripulação, enjoada pela viagem, atrasou-se dois
Paralelamente, Fidel conseguiu financiamento de dias, o que fez alterar os planos, já que se previra que o
outro político cubano afastado da ribalta, o antigo pre- desembarque iria coincidir com um levantamento em
22 SUPER
O encontro com Che
U m dos acontecimentos mais transcenden-
tes da revolução cubana foi a ligação que
criou entre Fidel Castro e o argentino Ernesto
(Che) Guevara. A cumplicidade e a proximida-
de de ideias entre o cubano e o argentino não
só iria levar à sua união no esforço de derrubar
Batista, mas converteu-os também em símbolos
da revolução esquerdista em toda a América
Latina, em prol de um maior progresso social. A
primeira vez que se encontraram foi na Cidade
de México, em 1955, numa reunião noturna
em casa de uma amiga comum, a cubana Ma-
ría Antonia González, célebre por ajudar os
refugiados políticos. Foi Raul Castro quem os
apresentou, e os dois conversaram sobre políti-
ca internacional. Che recordaria mais tarde que
“a altas horas daquela noite – madrugada den-
tro – eu já era um dos futuros expedicionários”.
Por seu lado, Fidel recordou com pormenor,
em entrevistas com os seus biógrafos, a pri-
meira impressão que teve do hoje mítico Che
Guevara, assassinado na Bolívia em 1967, por
ordem da CIA: “Lembro-me dele vestido de
forma muito simples. Sofria de asma e era, na
verdade, muito pobre. Tinha um carácter afável
e era muito progressista, realmente marxista,
apesar de não estar filiado em qualquer partido.
Desde que ouvi falar do Che, apercebi-me da
simpatia que despertava nas pessoas. Com estes
antecedentes, conheci-o e conquistei-o para
que se juntasse a nós na expedição do Granma.”
Che Guevara foi recrutado como médico da
expedição, porque era licenciado em medicina.
“Ninguém sabia nessa altura que se iria conver-
Irmãos. Entre o líder da revolução cubana ter naquilo que hoje é: um símbolo universal”,
e Ernesto (Che) Guevara desenvolveu-se
reconheceu Castro.
de imediato uma cumplicidade absoluta.
Santiago que distrairia os militares e permitiria levar que se seguiram nos dias seguintes instalaram-se na
os guerrilheiros até à montanha, sem dificuldade, nos serra Maestra, a grande cordilheira do sueste de Cuba,
camiões que os esperavam. A manobra de distração um lugar remoto para quem tinha sido criado em
tinha sido efetuada, mas a 30 de novembro, dois dias Havana, como o próprio Fidel, que apenas a conhecia de
antes, como estava previsto. Sem notícias do Granma, uma visita que tinha feito em pequeno e pelos livros
também o transporte que estava à espera dos revolu- de geografia. Por isso, foi fulcral a ajuda de um líder
cionários teve de se retirar. Para culminar, o desembar- camponês, Crescencio Pérez, que lhes garantiu o
que foi descoberto e os revolucionários perseguidos, apoio da população rural e favoreceu, junto dela, o
desde o momento em que puseram o pé em terra recrutamento de combatentes para a nova guerrilha.
firme. Foram detidos vários guerrilheiros, outros foram Assim, conseguiram reunir 800 combatentes e prepa-
mortos e apenas alguns conseguiram atravessar um rar-se para um longo confronto, apesar de se tratar de
mangal próximo e dispersar, segundo os números uma força exígua, comparando com os 70 mil homens
divulgados posteriormente nas múltiplas histórias do exército de Batista. Além disso, as hostes de Batista
(para não lhes chamar lendas) que giram em volta tinham sido reforçadas com a criação de umas brigadas
deste episódio mitificado. paramilitares integradas por civis e conhecidos como
Os poucos sobreviventes deste e de outros confrontos “Tigres de Masferrer”, devido ao nome do seu líder,
Interessante 23
O apoio dos
camponeses
foi vital para
a revolução
Rolando Masferrer, um antigo esquerdista conver-
tido à agitação fascizante. Os seus homens semea-
ram o terror em Santiago de Cuba, vestidos com os
inconfundíveis bonés de basebol brancos, liderando a
repressão oficiosa.
Entretanto, a guerrilha converteu-se num êxito pro-
pagandístico, ao conseguir levar às recônditas monta-
nhas um correspondente de guerra do New York Times,
Herbert Matthews, que relataria a aventura de Fidel
e dos seus companheiros nos “escarpados e quase
impenetráveis redutos da serra Maestra”. A descrição
favorável que fez de Fidel Castro acrescentou uma aura
ao revolucionário: “Tenho à minha frente um fanático
educado, dedicado à causa que defende, um homem de
ideais, corajoso, com notáveis qualidades de liderança.”
Matthews dizia que Fidel tinha “cativado a imaginação
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RIVALIDADE COM OS COMUNISTAS comunistas inclinavam-se não para apoiar Fidel Castro
Na zona que controlava, Fidel Castro começou a mas para a criação de uma frente popular que pudesse
aplicar uma política reformista: fundaram-se bases em disputar as eleições.
que se cultivavam alimentos, se criava gado e onde
funcionavam fábricas, centros de alfabetização e hos- O ASSASSINATO DE FRANK PAÍS
pitais, entre outros equipamentos. Deste modo, pre- O ano tinha começado com a ambiciosa intenção de
tendia começar a funcionar de forma autónoma com atacar o palácio presidencial de Havana e matar Batista.
uma jurisdição diferenciada, um ensaio do que estaria Para tal, os castristas tinham chegado a um acordo com
para vir se a revolução triunfasse. Conseguiu o apoio outra das forças guerrilheiras que operavam na ilha, a
dos camponeses, que seria um dos seus bastiões. Organização Autêntica – braço armado do partido dos
Seria incorreto limitar o êxito dos revolucionários às Autênticos –, financiada também pelo antigo presidente
façanhas dos guerrilheiros no sueste de Cuba. Estes Socarrás. Um grupo de 50 guerrilheiros, dirigido por
apenas atacavam guarnições militares da zona costeira, Fauré Chomón e Carlos Gutiérrez Menoyo, levou a cabo
próxima da serra em que se encontravam. Na verdade, a operação. Conseguiram entrar no palácio e chegaram
a revolução não poderia ter triunfado sem o trabalho até ao terceiro piso, mas não conseguiram localizar
que o Movimento 26 de Julho fazia nas grandes cidades, Batista, que presumivelmente tinha conseguido fugir
como Havana ou Santiago. É claro que o apoio urbano por uma escadaria interior, a partir do seu gabinete.
não foi unânime, como não o era entre a classe política. O assalto simultâneo à emissora Radio Reloj – através
A mensagem que transmitia tinha impacto, sobretudo, da qual se pretendia anunciar a morte do ditador e con-
entre os estudantes universitários e a classe média, não vocar uma greve geral – também fracassou, e o chefe
entre os partidos tradicionais; nem sequer agradava da guerrilha dos Autênticos, José Antonio Echeverría,
aos comunistas, o Partido Socialista Popular, com mais também jovem e carismático, morreu durante a operação.
de duas décadas de existência. Este fracasso, paradoxalmente, deixava Fidel Castro
Este partido sentia-se melhor a atuar no âmbito polí- como único líder visível da rebelião. No dia 22 de julho
tico. “Negociavam com o poder sempre que surgia a desse ano, em Santiago, ocorreu um incidente lamen-
oportunidade e opunham-se à velha tradição liberal de tável e decisivo que acabaria por fomentar a simpatia
organizar uma rebelião armada, cada vez que viam blo- pelos revolucionários, no seio dos quais existiam ainda
queado o acesso ao poder”, escreveu o britânico Richard alguns receios. A polícia matou Frank País, o líder do
Gott, autor de Cuba – Uma Nova História. Em 1957, os braço estudantil do Movimento 26 de Julho de Fidel.
24 SUPER
Frank País, demostrando novamente a sua capacidade
propagandística, na qual sempre tiveram vantagem em
relação ao regime que pretendiam apear. Nos projetos
para derrubar Fulgêncio Batista, consideravam que o
acontecimento fundamental deveria ser uma greve
geral revolucionária, que incluiria ações armadas. Ten-
tou-se negociar com todas as forças políticas da opo-
sição para aumentar a repercussão das ações e pro-
gramou-se a sua convocatória para o dia 9 de abril de
1958. Foi um fracasso, porque se tratava de uma ação
sobretudo urbana e os ativistas urbanos careciam de
armas suficientes.
Interessante 25
CONTACTO
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Imagens que deram a volta ao mundo
Os barbudos da serra
Liderados por Fidel Castro, os revolucionários
do Movimento 26 de Julho refugiaram-se nas montanhas
do sueste da ilha e treinaram-se como guerrilheiros.
Livres ou mártires. Este lema de Fidel pesou treino militar, para não repetir os erros básicos do
mais no ânimo dos seus companheiros do que ataque ao quartel de Moncada. Em 25 de novembro
a estratégia guerrilheira. Tudo começara com a de 1956, o iate Granma zarpou do México com
ordem de Batista para deter os rebeldes. A maioria 82 tripulantes, incluindo os irmãos Castro, Che,
exilou-se no México, em 1955. Ali cristalizou Camilo Cienfuegos e outros futuros líderes da
o núcleo revolucionário que entraria vitoriosamente insurreição. Após uma difícil travessia, o grupo foi
em Havana, nos primeiros dias de 1959, e ali descoberto pelo exército. No combate, morreram
se conheceram Castro e Che Guevara, um jovem três guerrilheiros; outros foram presos e mais
médico argentino. Os preparativos do regresso tarde fusilados. Os sobreviventes reagruparam-se
a Cuba incluíram uma viagem de Fidel aos Estados na serra Maestra, onde iniciaram uma guerrilha.
Unidos para angariar fundos, além de um intensivo Na foto, Fidel na serra Maestra em 1963.
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Entrevista lendária
A lenda dos barbudos da serra
Maestra foi alimentada em grande
medida pela entrevista de Fidel
a Herbert Matthews, realizada
em 17 de fevereiro de 1957
e publicada no New York Times.
A publicação do encontro entre
o jornalista nova-iorquino e o
revolucionário cubano coincidiu com
o momento em que o governo de
Batista garantia que o comandante
tinha morrido. “Fidel Castro, o líder
rebelde da juventude cubana, está
vivo e a lutar com êxito na intrincada
serra Maestra.” Assim começava
o texto de Matthews, que resumia
mais adiante o pensamento de Fidel:
“A sua mentalidade é mais de político
do que de militar. As suas ideias
de liberdade, democracia, justiça
social, necessidade de restaurar
a Constituição, de realizar eleições,
estão bem arraigadas. Também
tem as suas próprias teorias
económicas, que talvez um
entendido considerasse pobres.”
Na foto, um novo recruta, chegado
à serra Maestra para se juntar
aos guerrilheiros, treina a pontaria
sob a supervisão de Fidel Castro.
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Interessante 29
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Sobreviver à Operação Verão. A partir de sucessivamente como comandantes Che, Raul
dezembro de 1956, os revolucionários barbudos Castro, Camilo Cienfuegos e outros, e tomou
ocuparam parte da selva sueste de Cuba. para si o título de comandante-chefe (mais tarde,
Durante meses, os veteranos treinaram os comandante-em chefe). Em maio de 1958,
voluntários que subiam a montanha para se unirem o exército batistiano lançou contra os rebeldes
a Fidel e derrubar Batista. As tropas castristas a Operação Verão, cujo objetivo era bloquear
chegaram a somar mais de 800 combatentes a serra Maestra, isolar os guerrilheiros e eliminar
(contra os mais de 70 mil efetivos governamentais), o comando, mas os castristas somaram uma série
com os quais iniciaram um levantamento à escala de surpreendentes vitórias. Na foto, revolucionários
nacional, embora a sua carência de armas fosse preparados para a luta, poucas horas antes
uma condicionante fundamental. Fidel apontou do ataque dos batalhões governamentais.
Interessante 31
32 SUPER
CONTACTO
O médico e o comandante
Depois do primeiro encontro
entre os dois, Che Guevara escreveu
no seu diário: “Um acontecimento
político é ter conhecido Fidel Castro,
o revolucionário cubano, jovem,
inteligente, muito seguro de si
e de extraordinária audacia; creio
que simpatizamos mutuamente.”
A amizade entre o jovem médico
argentino e o líder cubano duraria
até à morte do primeiro, em 1967.
Em dezembro de 1958, Che
iniciou com 300 homens a batalha
de Santa Clara: fizeram descarrilar
um comboio blindado com armas
que se dirigia à capital, apesar
de o governo ter colocado 3000
militares a protegê-lo. Na foto,
Fidel expõe a estratégia de ataque.
Che está à esquerda, ajoelhado.
Interessante 33
GETTY
34 SUPER
AFP
Finalmente,
a revolução!
O líder cubano
(na página oposta,
na serra Maestra,
em 1958) distribuiu
os seus homens
por várias frentes,
cada uma delas a cargo
de um responsável
pelas operações
guerrilheiras.
Raul Castro (na
foto, à esquerda do
comandante-em-chefe)
liderou a Segunda
Frente Oriental Frank
País. A Coluna 4,
“filha” da Coluna José
Martí, a cargo de
Che Guevara, estava
nas mãos de Camilo
Cienfuegos (na foto,
atrás de Castro), que
cumpria a função de
chefe da vanguarda.
Em 1957, Castro lançou
o Manifesto da Serra
Maestra, que, entre
outras questões,
estipulava que, se a
revolução triunfasse,
se celebrariam
imediatamente
eleições presidenciais;
no entanto, tal nunca
aconteceu. Nesta
página, o comandante
em plena selva,
dias antes de entrar
triunfalmente em Havana.
Interessante 35
BOB HENRIQUES / MAGNUM / CONTACTO
Esticar a corda
Desde o primeiro minuto, os Estados Unidos recearam que
o triunfo de Fidel ameaçasse os seus interesses e alargasse
a influência do comunismo. Uma escalada de eventos
desestabilizou o equilíbrio geoestratégico da guerra fria.
36 SUPER
Face amável. Fidel Castro efetuou em fevereiro de 1959 uma visita a Washington
e Nova Iorque para dissipar temores, que fez efeito. Na imagem, o revolucionário
rodeado de alunos de um colégio de Queens, que imitam os barbudos cubanos.
Interessante 37
Num primeiro
momento,
os revolucionários
cederam o poder
N
o dia 1 de janeiro de 1959, enquanto os
guerrilheiros ocupavam as ruas de Havana,
o ditador Fulgêncio Batista fugiu de avião,
rumo à República Dominicana, onde outro
ditador, Trujillo, lhe deu abrigo. Sete dias mais tarde,
montado num carro de combate, Fidel Castro fez a sua
entrada triunfal na capital cubana. O líder da guerrilha
foi recebido como um herói nacional por Manuel Urrutia ,
que tinha sido nomeado presidente interino de Cuba
pelos comandantes e pelas instituições civis. Apoiado
pelos homens da sua confiança e aclamado pelo povo,
Fidel fez um discurso empolgante que levou rapida-
mente à sua nomeação como primeiro-ministro.
O irmão, Raul, passou a ser comandante-em-chefe das
Forças Armadas, enquanto a chefia do Estado-Maior
do Exército recaiu sobre Camilo Cienfuegos. Os outros
membros do primeiro governo revolucionário perten-
ciam à classe média acomodada. Quase todos eram
políticos e não pareciam ameaçar os interesses norte-
-americanos em Cuba, o que aparentemente tranquili-
zou o presidente Dwight Eisenhower.
No entanto, qualquer observador neutral teria podido
comprovar que o poder revolucionário não estava nas
mãos do presidente Urrutia e da ala menos radical da
revolução, mas nas de Fidel, cujos discursos perante
grandes multidões – aos quais chamou “democracia
direta” – o tinham convertido no homem forte de Cuba.
Na suite que ocupavam no Hotel Havana Hilton, Fidel
Castro, o irmão Raul, Che Guevara, Camilo Cienfuegos Dirigentes por medida. Quem ousasse
e outros guerrilheiros negociaram o futuro da ilha com opor-se aos irmãos Castro era tratado como
Aníbal Escalante, Carlos Rafael Rodríguez e outros contrarrevolucionário. Foi o que sucedeu a Manuel
Urrutia, substituído na presidência por Osvaldo
representantes do Partido Comunista. A 2 de fevereiro,
Dorticós (na foto, com Fidel e Che), mais "manobrável".
o embaixador norte-americano em Havana, Daniel
Braddock, enviou uma mensagem ao Departamento
de Estado em que avisava que Ernesto (Che) Guevara,
com o apoio de Fidel, ia impulsionar a libertação de sublinhando com veemência que a sua lei da reforma
várias nações latino-americanas, uma informação que agrária apenas afetaria as terras abandonadas.
provocou grande preocupação na Casa Branca. Num tom conciliador, expressou o desejo de que os
Estados Unidos, o maior comprador de açúcar da ilha,
TOM CONCILIADOR aumentasse a quota, e mostrou o seu desprezo pelo
Poucas semanas depois, Fidel viajou à capital dos comunismo, bem como o apoio à imprensa livre.
Estados Unidos, vestido com o seu uniforme de guer- Eisenhower manteve-se em segundo plano e confiou
rilheiro e acompanhado de uma grande comitiva de a negociação com o líder cubano ao vice-presidente,
assessores, na qual se destacava a ausência do seu Richard Nixon. Apesar de ambos se mostrarem cordiais
irmão Raul e de Che. O líder revolucionário tratou de em público, a reunião não foi frutífera. Entre Nixon e
dissipar os temores de Washington, garantindo que res- Fidel, não havia empatia.
peitaria o tratado de defesa recíproca com os Estados Castro compreendeu que a única maneira de satisfazer
Unidos e os investimentos norte-americanos em Cuba, os norte-americanos era responder por completo aos
38 SUPER
Biografia breve
F idel Castro nasceu na povoação de Bi-
rán, em Mayarí, um município da antiga
província de Oriente, em 1926, filho de um
emigrante espanhol, Ángel Castro Argiz,
casado em segundas núpcias com Lina Ruz
González, descendente também de espa-
nhóis. O revolucionário destacou-se no as-
salto ao quartel de Moncada em 1953, pelo
qual foi condenado a prisão. Depois de ser li-
bertado, exilou-se no México, onde planeou
a invasão guerrilheira de 1956. Chegou ao
poder depois de encabeçar a revolução que
triunfou a 1 de janeiro de 1959, derrotando a
ditadura de Fulgêncio Batista. Foi nomeado
primeiro-ministro a 27 de fevereiro desse
mesmo ano pelo presidente Manuel Urrutia.
Em 1961, apoiou a adoção do marxismo por
um governo revolucionário, estabelecendo
o primeiro estado socialista da América.
Depois da reforma constitucional de 1976,
foi eleito presidente do Conselho de Estado
e do Conselho de Ministros. Foi, além disso,
fundador do Partido Comunista, em 1965,
e desde então até 2011 foi o seu primeiro-
-secretário. Em 2006, numa carta publicada
no jornal Granma, anunciou a sua renúncia
ao poder. Faleceu dez anos mais tarde, em
2016. O líder cubano foi filho ilegítimo até
o seu pai o ter reconhecido, aos 16 anos. Em
teoria, não foi um bastardo, porque o pai le-
galizou a paternidade, mas a sua legitimidade
perturbou-o durante a adolescência. Na
opinião de Serge Raffy, jornalista do Nouvel
Observateur e autor de um livro sobre Fidel,
“aquela situação familiar anómala pode
explicar o seu comportamento nos anos se-
guintes: é como se tivesse uma necessidade
imperiosa de reconhecimento social e mes-
CONTACTO
mo sentimental”.
seus desejos, o que implicava um ataque à soberania o Egito, viajou até à Índia, à Indonésia, à Jugoslávia
cubana. Por seu lado, Nixon achava que Fidel era um e ao Ceilão, membros estratégicos do Pacto de Ban-
perigoso comunista que devia ser eliminado a todo o dung, com os quais Fidel queria estabelecer relações
custo. Quando regressou a Havana, Fidel assinou a lei diplomáticas e comerciais. Era vital que Cuba não
da reforma agrária, deu o apoio à criação do Instituto ficasse isolada internacionalmente.
Nacional da Reforma Agrária (INRA) e enviou Che numa
viagem pelo exterior para iniciar contactos com o maior PANFLETOS CONTRARREVOLUCIONÁRIOS
número possível de países e compensar, dessa forma, o Três meses depois, Che Guevara regressou a Havana.
crescente arrefecimento das relações com os Estados Durante esse tempo, a aplicação da reforma agrária
Unidos. A 12 de junho, Che foi a Madrid, a caminho do tinha aberto a porta às primeiras expropriações de ter-
Cairo. Na capital espanhola, o revolucionário tirou fotos ras, o que alarmou o governo norte-americano, que
vestido de guerrilheiro na Praça de Las Ventas e no ameaçou o cubano com represálias se os norte-ameri-
franquista Arco da Vitória da Moncloa. Depois de visitar canos afetados não fossem de imediato compensados,
Interessante 39
A política
GETTY
norte-americana
foi-se tornando
mais agressiva
uma ameaça a que Fidel fez ouvidos moucos. Nessa
altura, o chefe da força aérea cubana, Pedro Dias Lanz,
desertou para os Estados Unidos. Em Washington,
denunciou que as forças armadas cubanas estavam
infiltradas por comunistas.
O presidente Urrutia desmentiu Dias Lanz e declarou
a sua oposição ao comunismo, o que enervou Fidel, que
respondeu com grande dureza contra ele, por corromper
a unidade revolucionária. Consciente de que tinha come-
tido um erro e reconhecendo o grande apoio popular
de Fidel, Urrutia renunciou e pediu asilo à embaixada do
México, onde residiu durante vários anos antes de sair
do país. Por aclamação do povo, Fidel voltou ao cargo de
primeiro-ministro e nomeou como novo presidente
Osvaldo Dorticós. A partir de então, qualquer pessoa
que tentasse mudar o rumo político que Fidel, Che e
Raul tinham em mente seria tratado como contrarre-
volucionário. A 20 de outubro, o comandante Huberto
Matos, chefe militar de Camagüey, apresentou a demis-
são e acusou Fidel de entregar a revolução aos comu-
nistas. Os irmãos Castro fulminaram Matos, a quem
acusaram publicamente de traição à pátria.
Nessa altura, o desertor Dias Lanz sobrevoou Havana
num bombardeiro norte-americano B-26 e lançou
panfletos que exigiam a expulsão dos comunistas do
regime. Fidel acusou os Estados Unidos de fornecerem
um avião a Dias Lanz para atacar a soberania cubana Ícone do século XX. Alberto Korda
com a foto que tirou a Che Guevara
e afirmou com veemência que o país se defenderia de
depois da sabotagem do La Coubre.
qualquer ingerência externa. A 28 de outubro, o Cessna
que transportava o comandante Cienfuegos de Cama-
güey para Havana despenhou-se sem deixar rasto.
“O desaparecimento do comandante mais popular da norte-americanas em Cuba, aviões da CIA disfarçados
revolução, a seguir a Fidel Castro, no meio de um debate lançavam bombas incendiárias contra as plantações
sobre o comunismo, gerou toda a espécie de rumores e cubanas. Os planos dos serviços de informação norte-
lendas que ainda hoje persistem”, recorda o historiador -americanos para invadir a ilha ou para eliminar Fidel
cubano Rafael Rojas em História da Revolução Cubana. Castro e outros revolucionários importantes coinci-
diram no tempo com os últimos anos de Eisenhower
NACIONALIZAÇÕES E EXPROPRIAÇÕES como presidente dos Estados Unidos.
Nos finais de 1959, Che Guevara assumiu o cargo de O novo candidato republicano à Casa Branca era o
presidente do Banco Nacional e Fidel ordenou a inter- vice-presidente Richard Nixon, cuja campanha para a
venção nos meios de comunicação, como o diário con- presidência incluía o problema cubano e a ameaça aos
servador Avance ou o Canal 12 da televisão. Em janeiro castristas de uma drástica redução da quota de açúcar.
de 1960, no início do chamado "ano do confronto", as Fidel contra-atacou anunciando a nacionalização de
relações entre os Estados Unidos e Cuba agravaram-se todos os latifúndios, tanto cubanos como estrangeiros.
de tal forma que já ninguém em Washington confiava A 4 de fevereiro de 1960, o vice-primeiro-ministro da
num acordo com o governo revolucionário. Enquanto o União Soviética, Anastas Mikoyan, chegou a Havana
secretário de Estado Herter protestava contra as apro- numa visita de cortesia. Assim que aterrou, Che Guevara
priações ilegais e sem indemnização das propriedades pediu-lhe que levasse a Cuba a Grande Exposição Sovié-
40 SUPER
A destruição
do La Coubre
A 4 de março de 1960, deu-se a explosão
no porto de Havana do vapor francês La
Coubre, que transportava armas belgas para
a ilha. A sabotagem causou a morte de 101
pessoas e mais de 200 feridos. Soube-se que
tinha havido um incêndio no porão e Fidel
atribuiu-o a uma sabotagem planeada pela
CIA. O governo cubano afirmou que, apesar
das pressões dos Estados Unidos, compraria
armas a quem as vendesse. No dia seguinte,
Fidel e Che Guevara encabeçaram o cortejo
fúnebre que percorreu o Malecón. Enquanto
o líder revolucionário falava à multidão numa
varanda, um jovem fotógrafo cubano, chamado
Alberto Korda, captou uma imagem singular
de Che Guevara, que estava de pé, junto a Fi-
del, enquanto este se dirigia ao povo cubano. A
fotografia converteu-se logo num símbolo que
correu mundo. Fidel queria armas da URSS
para se defender dos Estados Unidos e pressio-
nou o representante russo em Havana. Vinte e
quatro horas depois, chegou uma mensagem
de Moscovo, dizendo que as armas estavam a
caminho. A 8 de maio desse ano, Fidel anun-
ciou o reatamento das relações diplomáticas
com os russos. Semanas antes, o presidente
norte-americano, Eisenhower, dera ordens
para uma operação militar para invadir a ilha.
A 29 de junho de 1960, o governo cubano con-
fiscou as refinarias da Texaco Oil Company, da
Esso e da Shell. Como represália, o presidente
norte-americano decretou o bloqueio à ilha. O
conflito estava aberto.
tica de Ciência e Tecnologia que Moscovo tinha montado em órbita o primeiro satélite e uma cadela viva?”,
no México para mostrar ao mundo o avanço tecno- escreve Jon Lee Anderson na biografia de Che Guevara.
lógico e cultural da URSS. Mikoyan passou o pedido No dia 13 de fevereiro de 1960, cubanos e soviéticos
ao Kremlin e o presidente Nikita Krushev aceitou, deli- tornaram público um acordo de cooperação comercial:
ciado. Foi a primeira aproximação séria entre a URSS Moscovo aceitou comprar quase meio milhão de tone-
e a Cuba revolucionária. ladas de açúcar nesse ano e quatro milhões nos quatro
anos seguintes, pagando com petróleo e outros produ-
COOPERAÇÃO COMERCIAL COM A URSS tos. A partir do quinto ano, os soviéticos pagariam em
A exposição foi um êxito. Durante três semanas, dinheiro. Adicionalmente, Cuba receberia um emprés-
mais de cem mil cubanos visitaram as maquetas das timo de cem milhões de dólares a 2,5% de juros, pago ao
instalações industriais soviéticas, bem como a réplica longo de dez anos, para financiar a compra de equipa-
do satélite Sputnik 1. “Eram os avanços tecnológicos de mento industrial. Poucas semanas depois, o cargueiro
um estado que, como disse Krushev aos norte-ameri- francês La Coubre, que acabava de ser rebocado para
canos, os ultrapassaria num futuro não muito distante. o porto de Havana, sofreu uma explosão. Os porões
Para o cidadão cubano comum do início da década transportavam armas de origem belga para o governo
de 1960, que nunca tinha saído da ilha, uma mostra cubano. Fidel acusou a CIA de sabotagem.
deste tipo era convincente. Não tinham os russos posto A grande notícia, a que mais poderia inquietar a Casa
Interessante 41
A intransigência
de Einsenhower
atirou Cuba para
os braços da URSS
Branca, surgiu em 8 de maio. Nesse dia, Fidel anunciou o
reatamento das relações diplomáticas com Moscovo.
Cuba iria converter-se num peão estratégico dos sovié-
ticos na guerra fria contra os Estados Unidos, e o peão
estava localizado nas Caraíbas, a poucas horas de barco
de Miami, um cenário inaceitável para Washington.
O primeiro a instalar-se em Havana foi o novo embaixador,
Serguei Kudriatzov. Depois, chegaram os assessores
militares, que foram recebidos de imediato por Fidel
e Che Guevara. Estes transmitiram-lhe as principais
necessidades de Cuba para se defender dos Estados
Unidos. Em primeiro lugar, faltavam canhões antiaéreos
e aviões. Falou-se depois de artilharia e de carros de
combate. Os soviéticos ofereceram tanques T-34 usa-
dos, que tinham sido utilizados na Segunda Guerra
Mundial, mas possuíam grande qualidade técnica e
eram muito resistentes.
Poucas semanas depois, as armas soviéticas come-
çaram a chegar à ilha das Caraíbas. Durante os festejos
do 1.º de Maio, Fidel fez um dos seus intermináveis dis-
cursos na Praça da Revolução, no qual insistiu na ameaça
de uma invasão iminente. Também recordou que não Sorrisos e abraços. 1960 é o ano da deriva
haveria eleições porque o povo já governava Cuba e, ideológica do regime surgido na revolução
por isso, eram desnecessárias. Enquanto a voz pos- cubana (que, em grande medida, foi forçada
sante de Fidel ecoava em Havana e os primeiros car- pela intransigência do governo de Eisenhower).
Aqui, Fidel abraça fortemente Nikita Krushev
gueiros soviéticos navegavam no Atlântico em direção
na Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque.
à ilha, a CIA instruía centenas de cubanos anticastristas
para organizarem um desembarque nas praias do país.
42 SUPER
no Hotel Theresa, situado no bairro negro de Harlem, o boicote total quando, a 16 de dezembro de 1960, ALBUM
para mostrar a sua solidariedade com a população de cor Eisenhower reduziu a quota de açúcar para zero.
oprimida, o que, sem dúvida, incomodou Washington. Em novembro, Che Guevara foi a Moscovo, onde
Naquele hotel da Rua 125, Fidel Castro recebeu os assistiu ao desfile militar em comemoração do 43.º ani-
presidentes soviético e egípcio, o primeiro-ministro versário da revolução soviética. Ocupou lugar de des-
indiano e o dirigente negro Malcolm X, o que também taque na tribuna de honra na Praça Vermelha, junto
não deve ter agradado ao Congresso norte-americano. dos mais altos funcionários do partido e dos altos digni-
tários dos países de Leste. O cubano José Pardo Llada,
AGRESSÃO E IMPERIALISMO que também estava na tribuna, recordou anos depois que
Na Assembleia Geral, Fidel e Krushev acusaram os Che Guevara estava radiante e feliz no meio da nata
Estados Unidos de agressão e imperialismo, reclamando internacional do comunismo. A 1 de janeiro de 1961, Fidel
o desarmamento nuclear global. O russo ficou na história organizou um desfile militar em Havana para mostrar ao
quando interrompeu o discurso do primeiro-ministro mundo o que tinha comprado à União Soviética. Dois
britânico batendo com o sapato na bancada soviética. dias depois, numa das suas últimas medidas antes de
A 15 de outubro, Fidel decretou a nacionalização da pro- entregar o poder ao novo presidente, John F. Kennedy,
priedade urbana, o que afetava interesses norte-ame- Eisenhower cortou definitivamente relações diplomá-
ricanos. Quatro dias depois, Washington respondeu ticas entre os Estados Unidos e Cuba. Em março desse
proibindo as exportações para a ilha, salvo certos ali- ano, a CIA estava preparada para invadir a ilha.
mentos e produtos médicos. Ao embargo, juntou-se F.C.
Interessante 43
Triunfo na baía dos Porcos
CONTACTO
Até à vitória, sempre!
Foi a principal tentativa de invasão de Cuba no tempo
de Fidel, e um rotundo fracasso para os Estados Unidos.
Os anticastristas enviados pela CIA, em abril de 1961,
foram vencidos pelo exército cubano em três dias.
44 SUPER
Fiasco. Em abril de 1961 e em vésperas da fracassada invasão de Cuba
que terminou no desastre da baía dos Porcos (na foto, militares cubanos
celebram o triunfo), o senador Fulbright deu a Kennedy um conselho que este
não seguiu: “Não invada, Fidel Castro sabe de tudo e está à vossa espera.”
Interessante 45
A URSS tornara-se
hegemónica
nos países do
Leste europeu
O
quadro internacional no início de 1961 asse-
melhava-se a uma caldeira prestes a explo-
dir. O planeta, dividido em dois grandes
blocos antagónicos, sofria de esquizofrenia
galopante. Os Estados Unidos e a União Soviética
encontravam-se na fase mais quente da guerra fria.
Inexplicavelmente, depois de ter sido devastado pelos
invasores nazis e de ter enterrado 20 milhões de cidadãos,
o grande estado comunista tinha-se tornado muito mais
forte do que era antes da guerra. Após a detonação da
primeira bomba atómica, quatro anos depois de Hiro-
xima, a URSS tinha transformado metade dos estados
europeus em países satélites, isolados por detrás da Cortina
de Ferro, e o seu nível tecnológico tinha-lhe permitido pôr
em órbita o primeiro satélite artificial, o Sputnik 1.
No entanto, os progressos militares e técnicos faziam-
-se à custa da pobreza e da quase escravidão da sua
população: apesar de Kruschev ter denunciado os crimes
sistemáticos de Estaline e ter exposto aos camaradas
os horrores do Gulag, o regime comunista não mostrava
escrúpulos quando era necessário derrubar qualquer
obstáculo que se opusesse aos seus desígnios.
LEVANTAMENTOS NACIONALISTAS
O bloco ocidental movimentou os seus peões quando
percebeu que os soviéticos não estavam dispostos a
largar o saque da guerra: a zona ocupada estava a con-
verter-se em zona anexada, de modo que as fronteiras
dos países libertados pelo Exército Vermelho eram, na
verdade, as novas fronteiras soviéticas. Os levantamen-
tos nacionalistas populares na Hungria e na Polónia
GETTY
46 SUPER
Sob a bota soviética. Em 1956, surgiu
um movimento contra o governo da República
Popular da Hungria e as políticas impostas
a partir da URSS. Esta abafou a rebelião. Na foto,
a estátua de Estaline derrubada em Budapeste.
mãos de empresas e latifundiário norte-americanos, hostilidades. Os Estados Unidos atacaram com sanções
Eisenhower aprovou uma série de planos da CIA para económicas e Cuba contra-atacou com ações políticas,
destronar Fidel e liquidar a ameaçadora revolução. ou seja, com nacionalizações de empresas norte-ame-
ricanas. Em dezembro, os Estados Unidos deixaram de
COMEÇAM AS HOSTILIDADES comprar açúcar cubano; a 3 de janeiro de 1961, rompe-
Como bandeira, decidiu utilizar elementos dissidentes ram-se as relações diplomáticas entre os dois países,
anticastristas, tanto vindos do interior de Cuba como apenas alguns meses após o seu restabelecimento.
exilados nos Estados Unidos. Os ativistas internos leva- Apesar de ter sido militar durante toda a sua vida, a
ram a cabo numerosos atos terroristas na ilha, o que não última coisa que Eisenhower fez, enquanto presidente,
ajudou à aproximação de Cuba aos Estados Unidos, e foi avisar o povo norte-americano para o imenso
Fidel virou-se, assim, para a União Soviética, que lhe poder acumulado pela indústria de armamento, que tinha
ofereceu um crédito de cem milhões de dólares, em sido alimentada durante a Segunda Guerra Mundial e se
março de 1960. A partir de então, tornou-se impossível tornara mais poderosa do que nunca, depois de Hiroxima.
qualquer melhoria das relações: tinham começado as Uma vez na posse da “arma”, a questão era como lançá-la
Interessante 47
Kennedy tinha
um plano diferente
para lidar com o
problema cubano
sobre o objetivo, da forma mais eficiente possível. Do
ponto de vista militar, seguiu-se o exemplo das bom-
bas voadoras nazis, a V1 e a V2, que foram estudadas
exaustivamente; projetaram-se e fabricaram-se varian-
tes da bomba com mísseis telecomandados.
Assim se estabeleceram as bases da exploração espa-
cial, mas era preciso também descobrir a forma de lançar
bombas a partir de lugares desconhecidos pelo inimigo,
de modo que se organizou um complicado sistema
de bombardeiros e submarinos atómicos carregados
com armas nucleares. Um desses submarinos, o George
Washington, bateu o record de permanência debaixo de
água, estabelecendo-o em 67 dias, que se cumpriram
dois dias depois de um novo presidente ter assumido
o poder nos Estados Unidos.
PONTO DE VIRAGEM
Em 20 de janeiro de 1961, a política norte-americana
sofreu um ponto de viragem com a chegada de John
Fitzgerald Kennedy à Casa Branca. Tinha ganho as elei-
ções por muito pouco, mas a sua popularidade começou
a crescer desde o primeiro dia em que tomou posse.
Entre outras coisas, Kennedy fez algo muito importante
e subtil: desviou grande parte do poder acumulado
pelos fabricantes de armas para a corrida espacial, que
até então era controlada pelos soviéticos. Queria fabricar
naves em vez de mísseis balísticos. Apresentou a ideia
como um desafio e o povo abraçou-o com entusiasmo.
Porém, também herdou outras coisas, entre elas o que
muitos viam como “o cancro de Cuba”.
O futuro presidente tinha sido informado, no final
de 1960, da existência de uma operação encomendada
por Eisenhower à CIA para acabar com o “problema
cubano”. Kennedy chegava com ideias diferentes, que
se materializariam três meses depois com a constituição
da Aliança para o Progresso, uma tentativa de travar a
expansão comunista na América, apoiando e contro-
lando materialmente o desenvolvimento dos países
e não mediante o uso da força. Porém, a operação
anticastrista que tinha herdado não podia esperar,
segundo afirmava Allen Dulles, diretor da CIA e um dos
civis norte-americanos mais poderosos do seu tempo.
Kennedy tinha de decidir. Segundo Dulles, que pintava
a sua operação de cor-de-rosa, o plano estava bem deli-
neado. O necessário apoio dos Estados Unidos seria
camuflado da melhor maneira possível: a invasão não Vingança. Muitas dúvidas sobre os motivos
para o assassinato de Kennedy apontam para
partiria de portos norte-americanos, mas sim nicara-
os anticastristas derrotados na baía dos Porcos.
guenses, e seria formada por elementos cubanos anti-
48 SUPER
A morte de JFK
J á foi várias vezes ventilado, de forma mais ou
menos aberta, que o magnicídio de Dallas
teve origem no rancor que os exilados cubanos
nutriam por Kennedy, por este se ter negado
a intervir na ajuda aos anticastristas que de-
sembarcaram na baía dos Porcos. É um rancor
compreensível, já que aqueles que morreram no
assalto e foram capturados na praia Giron para
lá tinham sido conduzidos pelo mesmo governo
norte-americano que depois os abandonou à sua
sorte. Parece indubitável que agentes da CIA,
em contacto com os grupos de Miami (as orga-
nizações conhecidas como Alpha 66 e Omega 7)
fizessem recair toda a responsabilidade daquela
traição sobre Kennedy, que se converteu, desde
então, no alvo dos anticastristas. Quem viu o
filme JFK (Oliver Stone, 1991) recordará a frota
de cubanos mafiosos que desfilam pela tela. A
organização Omega 7, que participou na invasão
frustrada, desapareceu, mas a Alpha 66 ainda
hoje perdura. Um dos fundadores da Alpha 66,
Antonio Veciana, declarou perante o Congresso
dos Estados Unidos que o grupo se formou em
torno do mesmo agente da CIA que em setem-
bro de 1963 tinha sido apresentado em Dallas
a Lee Harvey Oswald, acusado, dois meses de-
pois, do assassinato de Kennedy e assassinado,
de seguida, enquanto era levado pela polícia.
Interessante 49
Os invasores
não encontraram
apoio entre
a população
acusaria os Estados Unidos de agressão, o que os exporia
à mesma denúncia de imperialismo de que eles acusavam
a União Soviética.
Porém, o senador pregava no deserto. Naquela reu-
nião, predominavam os falcões. Quem o não era, queria
salvaguardar-se, porque o mandato presidencial tinha
apenas três meses. Por isso, quando Kennedy pediu a
opinião do grupo, a resposta foi um rotundo sim à inva-
são. Mesmo assim, o presidente exigiu algumas mudan-
ças do plano, porque o que mais o preocupava era
dissimular ao máximo o protagonismo norte-americano.
O número de aviões que iriam participar na operação
foi reduzido a metade. O contingente aéreo era consi-
derado fundamental, porque o seu objetivo era destruir
as modestas forças aéreas revolucionárias, para que não Baixas. A tentativa de invasão não foi muito
mortífera, mas na praia Giron perderam a vida
pudessem retaliar a agressão. A 15 de abril, seis B-26
cerca de 150 combatentes de cada um dos lados.
norte-americanos, pintados com as cores da aviação
cubana, saíram da Nicarágua para cumprir a missão. Não
conseguiram levá-la a cabo, porque ficaram intactos
nove aparelhos castristas que seriam decisivos nos niu-se com Kennedy e aconselhou-o a apoiar a invasão
combates subsequentes. De facto, os voos dos aviões com aviação e artilharia naval, mas o presidente res-
espiões norte-americanos confirmaram que a destrui- pondeu que, se o fizesse, estaria a admitir a autoria do
ção tinha ficado longe do planeado. No dia 17, desem- ataque e teria de sustentar uma guerra declaradamente
barcaram na praia Giron, na baía dos Porcos, as forças imperialista contra Cuba. Essa perspetiva não era coisa
terrestres que deviam levar a cabo os combates, cujo que Kennedy considerasse: ele não era assim e não podia
núcleo era a Brigada 2506. Recheada de anticastristas permitir que o mundo acreditasse nisso, comprome-
de todas as classes, desde ex-polícias e ex-militares de tendo o futuro do seu mandato.
Batista até donos de grandes negócios expropriados, A partir desse momento, os invasores estavam con-
a brigada foi reunida pela CIA e transportada para a denados. Isolados, desorganizados e atacados de forma
Guatemala, onde recebeu treino de combate. sistemática, foram obrigados a retroceder para as praias,
em busca das embarcações em que tinham chegado,
PRIMEIRA DESILUSÃO mas quando lá chegaram viram, desolados, que os bar-
Quando desembarcaram na praia Giron, eram 1400 cos os tinham traído e já não estavam lá: tinham fugido
homens que pensavam ir ser recebidos de braços perante os ataques da aviação cubana e fizeram-
abertos pelos compatriotas e saudados como liberta- -no depressa. Depois de umas breves escaramuças,
dores, mas isso não aconteceu. Os habitantes da zona com poucas munições, bombardeada e superada pelo
estavam encantados com o desenrolar das medidas exército castrista, a Brigada 2056 rendeu-se, 65 horas
revolucionárias para a melhoria da exploração das ter- depois do desembarque, maldizendo o que considera-
ras, e o seu comportamento foi hostil aos invasores. vam uma traição dos Estados Unidos. Chegaram con-
A notícia chegou a Havana e, pela madrugada, o resto das vencidos de que depois dos primeiros avanços teriam
humildes forças aéreas castristas atacou os invasores, o apoio do poderia militar norte-americano e, em vez
destruiu os aparelhos de escuta que traziam e expulsou disso, tinham à sua frente todo o exército castrista.
duas embarcações de apoio, carregadas de munições. Em Havana, Fidel estava consciente de algo muito
Por sua vez, o exército cubano mobilizou-se a toda a inquietante. Era voz corrente que, se os combates duras-
velocidade, cerrou fileiras e contra-atacou. sem mais de 72 horas, os assaltantes podiam nomear
Kennedy encarou um novo e crítico dilema. Dadas as um governo fantoche que os Estados Unidos poderiam
circunstâncias, os invasores não podiam avançar sem a reconhecer e apoiar de imediato. De forma que a resposta
ajuda efetiva e declarada dos Estados Unidos. A CIA reu- de Castro foi contundente, apesar de ter reservado
50 SUPER
As relações entre Cuba
e a União Soviética
A invasão da baía dos Porcos deu todos os
motivos a Fidel Castro para repudiar os
Estados Unidos e aproximar-se da União So-
viética. Nos finais daquele ano de 1961, Fidel
declarou-se marxista-leninista até à morte e,
a partir desse momento, o mercado russo co-
meçou a comprar o açúcar cubano e a vender
petróleo a muito bom preço. De facto, foram
aqueles convénios que permitiram a sobrevi-
vência económica da ilha, que o embargo de-
cretado pelos Estados Unidos tornava impos-
sível. O próprio Che Guevara foi à Rússia para
assinar um tratado com o Kremlin e solicitar
ajuda militar contra os Estados Unidos. Krus-
chev não só aceitou como também ofereceu
as armas atómicas que desencadearam a crise
dos mísseis. A colaboração durou enquanto se
manteve de pé a União Soviética. Com a sua
dissolução, em 1991, Cuba entrou numa nova
etapa económica de ainda maior dificuldade,
o chamado “Período Especial”.
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uma parte das forças armadas para o caso de a baía dos fotografias que – segundo ele – demonstravam clara-
Porcos ser uma manobra de diversão que escondesse um mente a inocência do seu governo no assalto à ilha.
verdadeiro desembarque. Tal não aconteceu por vontade Perante isto, os cubanos mostraram centenas de pro-
expressa de Kennedy, que se impôs perante as pressões vas de toda a ordem e o testemunho dos membros da
do exército e da CIA para atacar militarmente Cuba. Brigada que tinham sido capturados, agora prisioneiros
Tornou-se mais radical a opinião dos anticastristas de e desejosos de revelar como o governo norte-americano
Miami, que, a partir daquela traição, nunca mais puderam os tinha abandonado e sacrificado.
ver Kennedy. O assalto foi um autêntico fracasso, mas, Dos 1200 invasores detidos, cinco foram reconhecidos
pelo menos, foi pouco violento. No total, perderam a como torturadores e violadores durante o governo de
vida cerca de 150 assaltantes e outros tantos castristas. Batista e fuzilados. Nove outros foram condenados a 30
Porém, como Fulbright previra, teve o efeito contrário anos de prisão; os restantes foram autorizados a
ao desejado. O bombardeamento do dia 15 coincidiu regressar aos Estados Unidos, em troca de medica-
com a explosão em Havana dos populares armazéns mentos, comida e maquinaria agrícola de que Cuba
El Encanto, e no dia seguinte, Fidel batizou inequivoca- necessitava com urgência e valia milhões de dólares.
mente a sua revolução como socialista, o que não tinha Numa perspetiva temporal, o episódio da baía dos
feito até à altura. Depois da vitória na praia Giron, o Porcos foi o primeiro de uma série de erros norte-ame-
prestígio do comandante cresceu muito no interior ricanos em relação a Cuba. A história poderia ter sido
e no exterior de Cuba. Curiosamente, alguns círculos diferente se os receios do exército e da CIA não tivessem
de exilados anticastristas sentiram um certo orgulho sido exacerbados. Os Estados Unidos tiveram a opor-
patriótico. Pelo contrário, o prestígio de Kennedy tunidade de granjear o apoio do povo e até do governo
sofreu grandes danos dentro e fora do país, o que nada de Fidel Castro, afastando-o do comunismo, se tivesse
augurava de bom num início de mandato. colaborado de forma leal com Cuba, como Fulbright
propunha. A Cuba castrista não devia ser interpretada,
REVÉS DIPLOMÁTICO disse o senador, como uma punhalada no coração,
Diplomaticamente, as Nações Unidas sofreram um mas como uma espinha entalada na garganta. No
duro revés quando Cuba acusou formalmente os Estados entanto, no ano seguinte, aqueles equívocos levaram a
Unidos de estar por detrás do ataque. O representante um dos momentos mais graves que a espécie humana
norte-americano, Adlai Stevenson, teve de mentir e algum dia viveu: a crise dos mísseis.
cometeu mesmo o ato ridículo de apresentar algumas J.A.M.
Interessante 51
A crise dos mísseis de 1962
O mundo suspenso
De 16 a 28 de outubro de 1962, o mundo susteve
a respiração enquanto assistia ao conflito mais
quente da guerra fria. A Cuba de Fidel foi
o cenário e os protagonistas foram Kennedy
e o novo líder soviético, Kruschev,
que levaram a ameaça de um confronto
nuclear a limites nunca antes vistos.
52 SUPER
CONTACTO
A solidão do poder. Esta imagem do presidente
John F. Kennedy foi tirada na Sala Oval da Casa
Branca no dia 19 de fevereiro de 1961, mais de um
ano antes da crise dos mísseis. No entanto, tornou-se
um ícone do “trabalho mais solitário do mundo”.
Interessante 53
Para evitar
a invasão de Cuba,
Kruschev forneceu
material de guerra
A
revolução cubana tinha trazido consigo a
nacionalização dos bens norte-americanos,
à qual Eisenhower respondeu com um cres-
cente bloqueio comercial, desde finais da
década de 1960, que deixou Cuba em grandes dificul-
dades. Entretanto, a guerra fria atingira o pico; nesse
mesmo ano, tinha sido abatido nos céus da Rússia o
piloto Gary Powers enquanto fazia um voo de espio-
nagem e, em 1961, os soviéticos começaram a erguer
o muro de Berlim. O confronto entre os dois blocos
parecia iminente. Disposto a acabar com a revolução,
Eisenhower ordenou à CIA que planeasse a invasão de
Cuba, além de outra ações hostis contra Fidel Castro.
Quando John F. Kennedy chegou à presidência, herdou
a tensão e seguiu os passos do seu antecessor, o que levou
à frustrada invasão da baía dos Porcos, em abril de 1961.
Depois deste fracasso, os Estados Unidos montaram
a Operação Mangusto, que, para além de ações ter-
roristas destinadas a paralisar a economia cubana,
contemplava a possibilidade de uma invasão militar,
por parte de tropas regulares. Quando os soviéticos
tomaram conhecimento da operação, alertaram Cuba,
e Nikita Kruschev, depois de um acordo solene esta-
belecido em maio de 1962, começou a enviar material
de guerra abundante, com a finalidade de assegurar a
defesa da ilha, o que alinhou definitivamente a jovem
revolução com o bloco socialista. Poder aéreo. Cerca de 50 caças
MiG-21 fizeram parte da força militar
ALBUM
54 SUPER
As armas da discórdia
A s armas soviéticas instaladas em Cuba incluíam
uns quarenta mísseis SS-3, SS-4 e SS-5 (tam-
bém conhecidos por R-14), capazes de carregar
artilharia antiaérea e infantaria mecanizada. Zarpa-
ram igualmente quatro submarinos equipados com
torpedos nucleares, apesar de não terem conseguido
cinquenta ogivas de potências diversas, que também chegar a Cuba. Os cubanos, por seu lado, prepara-
tinham chegado à ilha e somavam uma potência de ram um exército de 300 mil homens. Do lado norte-
1,65 megatoneladas (1,25 vezes mais do que em -americano, participaram no bloqueio mais de 180
Hiroxima). 42 bombardeiros Ilyushin Il-28, com navios de guerra com 40 mil soldados a bordo e uns
mais de 2000 quilómetros de alcance, completavam 600 aviões (incluindo os aviões de espionagem de
a força ofensiva. Também se instalaram na ilha cerca voo estratosférico U-2), além de serem ativadas cin-
de cinquenta caças MiG-21 e diversas unidades de co divisões aerotransportadas.
seguinte, descobriu-se, com surpresa, que havia rampas Na sua primeira reunião, o comité calculou que os
de lançamento de mísseis SS-3 e SS-4, totalmente ins- mísseis poderiam estar completamente operacionais
talados, embora ainda sem carga nuclear colocada; o dentro de duas semanas. Os militares defenderam um
diretor da CIA foi informado nesse mesmo dia à tarde. ataque imediato, meramente cirúrgico, sobre as insta-
A histeria instalou-se rapidamente, pois os Estados lações balísticas ou até mesmo uma invasão em força,
Unidos nunca tinham estado ameaçados de forma tão mas o presidente e os assessores civis sabiam que a URSS
próxima, mas o presidente só foi informado no dia 16 responderia, atacando Berlim e a Alemanha Ocidental,
de manhã, depois de se terem verificado os dados: foi lançando, assim, o mundo para uma guerra aberta e
o ponto de partida para treze dias de pânico mundial. para o possível holocausto nuclear. Perante a ausên-
cia de acordo, houve quem propusesse a ideia de um
MATÉRIA DE SEMANAS bloqueio naval que impedisse a chegada de mais arma-
Kennedy ficou estarrecido com a notícia de tal perigo mento e enviasse uma mensagem firme aos soviéticos.
a apenas 150 quilómetros da costa e, perante a falta de A reunião foi suspensa sem se chegar a um acordo e,
planos de contingência, consultou o irmão, Robert, e o mais secretamente possível, para não alertar os russos,
convocou de urgência os assessores, constituindo um um novo voo de reconhecimento, efetuado a 17 de
novo organismo criado para o efeito, o Comité Executivo outubro, confirmou a instalação de mísseis SS-5 (cujo
do Conselho de Segurança Nacional. alcance era o dobro dos SS-4), o que deixava apenas
Interessante 55
ALAMY
Quatro porta-mísseis
Atrelados com
oxidante
Atrelados com
combustível
56 SUPER
ALAMY
Sábado negro
N o sábado, 27 de outubro, quando se
anunciava o acordo, foi o momento em
que se esteve mais perto da guerra, devido
a três incidentes que quase fizeram disparar
o conflito. O primeiro foi o episódio de um
avião-espião U-2, que saiu do Alasca, rumo
à Sibéria, num voo de observação de rotina.
Rampa de Um erro de navegação fez o aparelho entrar
lançamento no espaço aéreo soviético: foi detetado pelos
radares e foram enviados vários MiG-21 para
17 mísseis o intercetar. Quando o piloto se apercebeu,
pediu ajuda à sua base, que enviou um caça:
por sorte, conseguiu desviar-se a tempo e
recuar para céus neutrais, evitando, assim, o
choque. Quando a Casa Branca se apercebeu,
vociferou pela imprudência dos comandan-
tes da aviação. Segundo testemunhas que
estavam presentes, Kennedy afirmou declara-
damente: “Tem de haver sempre um filho da
puta que não percebe nada!” Pouco depois,
nos céus cubanos, era abatido outro U-2, que
fotografava as bases de mísseis; o seu tripu-
choque, ao ler os documentos, porque nada sabia sobre lante morreu. Kruschev tinha dado ordens
os mísseis em Cuba. Uma hora depois, o presidente claras para não se atacarem aviões norte-ame-
apareceu na televisão e durante um quarto de hora ricanos, mas um oficial soviético, pressionado
explicou a ameaça dos mísseis e a resposta que, caso pelos cubanos, decidiu, por sua conta, dispa-
fossem disparados, os Estados Unidos dariam. A crise rar o míssil antiaéreo. Quando o líder soviéti-
tornou-se pública e o medo espalhou-se, apesar de co foi informado, também explodiu e reiterou
Kennedy ter recebido grande apoio popular. Em simul- a ordem de que nenhuma das baterias abrisse
tâneo, o exército entrou em DEFCON 3 (o que significa, fogo, a não ser em caso de ataque. Os cuba-
entre outras coisas, que a todo o momento existem nos, ignorando os seus pedidos, continuaram
aviões bombardeiros em voo, com armas nucleares a a disparar com armas convencionais contra
bordo). os aviões que voavam no seu espaço aéreo,
No dia 23, no Conselho de Segurança da ONU, houve apesar de, felizmente, nenhum dos aparelhos
um momento de grande tensão quando o represen- ter sofrido danos consideráveis, pelo que
tante dos Estados Unidos perguntou ao homólogo Kennedy não exerceu qualquer represália. O
soviético: “O senhor nega, embaixador Zorin, que a incidente mais grave ocorreu à tarde, quando
URSS instalou mísseis de médio alcance e plataformas um submarino soviético B-59, equipado
de lançamento em Cuba? Sim ou não? Não esteja à com torpedos nucleares, foi localizado pelos
espera de tradução. Sim ou não?” Perante a resposta norte-americanos a tentar romper o bloqueio.
vaga, o norte-americano insistiu: “Estou disposto a Durante horas, foi submetido a cargas de
esperar pela resposta até que o inferno congele, e tam- profundidade para o obrigar a emergir. Não
bém estou disposto a apresentar provas nesta sala.” estava em comunicação com Moscovo e não
Quando passou a mostrar as fotografias, a agitação apo- sabia se a guerra tinha começado, mas o capi-
derou-se dos presentes. A descoberta dos mísseis em tão e o comissário político decidiram disparar
Cuba, por parte dos Estados Unidos, e a sua reação sur- as armas nucleares. No entanto, segundo as
preenderam Moscovo, mas naquele dia limitaram-se a instruções do Kremlin, era necessária tam-
declarar que o bloqueio naval ia contra o direito inter- bém a aprovação do segundo oficial, neste
nacional e era uma ameaça à paz. A resposta dada caso Vasili Arkhipov, que se negou frontal-
através da Agência TASS foi mais dura: ameaçava-se mente a defender a opinião dos outros dois.
com o ataque aos navios que efetuassem o bloqueio. Depois de emergirem, souberam que tinha
Por seu lado, Fidel Castro negou a presença dos sido alcançado um acordo. Provavelmente, o
mísseis em Cuba e ameaçou com uma resposta militar. mundo salvou-se devido à teimosia e sensatez
Pouco depois, descobria-se que os soviéticos tinham daquele oficial.
acelerado a instalação dos mísseis quando começa-
Interessante 57
Fidel foi completamente afastado
das negociações para resolver a crise
ram a surgir submarinos para escoltar os seus barcos. à embaixada soviética e os mísseis turcos foram incluídos
No entanto, Kruschev duvidou – os seus conselheiros na negociação. Parecia, por fim, que ia haver acordo
também estavam divididos em “falcões e pombas” – de paz e quase todos os navios soviéticos pararam os
se devia mandar as embarcações soviéticas ignorar motores e mudaram de rota.
o bloqueio ou não, enquanto os Estados Unidos espe- O dia 27 amanheceu otimista, mas uma série de
ravam, angustiados, a decisão que iria tomar. Em simul- incidentes estiveram prestes a pôr em causa todos os
tâneo, toda a diplomacia internacional, incluindo o esforços efetuados e, assim, esse dia ficaria na história
papa João XXIII, se mobilizou para tentar evitar o holo- como o “sábado negro”. À tarde, os Estados Unidos
causto. Por sugestão britânica, e para dar mais tempo endureceram a sua posição e negaram-se a retirar os
aos soviéticos para ponderarem a situação e poderem mísseis da Turquia, mas, sabendo que a URSS não acei-
ceder, Kennedy deu ordem para fazer reduzir a linha taria, o secretário de Estado, Dean Rusk, propôs manter
de bloqueio para 750 quilómetros da costa cubana o desmantelamento pouco depois, apesar de o fazer
(em vez de 1200, como estava planeado no início). de forma secreta, para dar a entender, perante a NATO
e os turcos, que não iria ceder. No dia 28, Kruschev
FRENTE A FRENTE aceitou, embora soubesse que a ala mais dura do
Às 10 horas do dia 24 de outubro, entrou em vigor a Partido Comunista lhe iria cobrar a fatura. Porém, o
“quarentena”, enquanto 19 navios soviéticos se apro-
ximavam da linha limite. Os 16 primeiros reduziram de
imediato a marcha e mudaram mesmo de rota, mas o
petroleiro Bucareste e os cargueiros Gagarin e Kimovsk,
escoltados por um submarino, seguiram o seu rumo
sem parar. Os Estados Unidos enviaram em resposta o
porta-aviões USS Essex. O confronto parecia iminente,
e nem Kennedy nem Kruschev queriam ser os pri-
meiros a ceder, com receio de perderem o apoio das
suas opiniões públicas e dos seus militares, apesar de
nenhum desejar chegar à guerra, dadas as terríveis
consequências que esta traria.
Nesta partida de póquer, uma nova mensagem de
Moscovo reiterou que não pensava ceder perante o
bloqueio, e o alarme passou para DEFCON 2, o passo
que precede a guerra aberta. Nem assim cessou a
troca de mensagens, destinadas a alcançar um acordo.
A 25 de outubro, o navio Bucareste cruzou a linha de
bloqueio sem que os norte-americanos o detivessem:
era um petroleiro e não era concebido para transpor-
tar armamento, razão pela qual não se ia provocar uma
guerra por causa de um transporte; ao mesmo tempo,
queria transmitir-se uma mensagem conciliadora.
Paralelamente, surgiram na imprensa norte-ameri-
cana notícias sobre um possível desmantelamento dos
mísseis na Turquia e os russos fizeram o mesmo em Cuba.
No dia 26, houve um encontro entre um jornalista norte-
-americano e um espião soviético num restaurante
de Washington. O segundo transmitiu a proposta da
URSS de retirar os mísseis, em troca do compromisso
norte-americano de não invadir a ilha. A Casa Branca
recebeu a proposta da URSS e fê-la chegar a Fidel Castro,
através do embaixador brasileiro. À tarde, chegou uma
carta de Kruschev que reiterava a oferta.
Entretanto, outro cargueiro, o Marucla, foi abordado,
mas como não foram encontradas armas a bordo, dei-
ALBUM
58 SUPER
perigo de uma guerra iminente desapareceu, e um não se tira.” Obviamente que não conseguiu os seus
mês depois, voltou-se ao estado de alerta DEFCON 4. objetivos, entre os quais estava a recuperação de
Os Estados Unidos respiraram de alívio, ao ver como Guantánamo e impedir o isolamento comercial futuro,
em poucas semanas os mísseis e os bombardeiros com apesar de terem acabado, em grande parte, os atos de
capacidade para transportar ogivas nucleares aban- sabotagem e a violação do espaço aéreo e marítimo
donavam o solo cubano, pelo que, perante a opinião de Cuba. A realidade era que esta tinha passado a ser
pública mundial, os Estados Unidos tinham vencido o um simples peão no grande jogo da política de blocos,
braço de ferro. A URSS, embora de forma mais discreta, do qual tentaria escapar, apoiando os movimentos
também colheu os seus louros, porque garantiu que revolucionários de África e da América Latina.
Cuba não seria invadida e manteve a sua influência; Curiosamente, a crise custou uma pesada fatura a
na Turquia, os mísseis foram retirados nos seis meses ambos os dirigentes que a lideraram. No caso de Ken-
seguintes. nedy, a sua recusa em invadir Cuba pode ter sido um dos
motivos que levaram ao seu assassinato, um ano
UMA PESADA FATURA depois. Quanto ao líder soviético, o seu poder foi debili-
Apenas parte dos generais norte-americanos lamen- tado, em grande parte, pelo Politburo, ao ponto de ser
tou ter desaproveitado a oportunidade para expulsar afastado do poder poucos anos depois, apesar de ainda
Fidel Castro do poder. O líder cubano estava muito ter conseguido impulsionar o programa nuclear sovié-
ofendido porque tinha sido ignorado nas negociações tico, reduzindo a desproporção de forças existente até
e sentia-se traído por Kruschev. Tinha sido, assim, des- ao momento.
cartado o seu pedido insistente de que os mísseis não Outra consequência, não menos importante, foi a
abandonassem a ilha, pois, na sua opinião, eram criação do “telefone vermelho”, a linha direta (que
imprescindíveis para garantir a independência de Cuba. nunca foi um telefone, nem vermelha) entre Moscovo
Conta-se que, quando soube da retirada, Fidel, entre um e Washington, que permitia assegurar uma perma-
rol de impropérios, deu um pontapé numa divisória, nente e imediata comunicação entre os blocos, evi-
partindo um espelho. Entretanto, nas ruas, os seus tando as lentas traduções e descodificações, e, assim,
partidários cantavam: “Nikita, mariquita, o que se dá gerir mais rapidamente possíveis crises no futuro.
J.C.L.
Interessante 59
Em torno de Fidel
Figuras
cruciais
Apesar do que dizem
os seus numerosos
detratores e inimigos,
a biografia de Fidel Castro é
uma das mais apaixonantes
do século XX. Protagonista
indiscutível de alguns
dos episódios cruciais
do século passado,
ao longo do exercício
da sua liderança política, Ernesto (Che) Guevara
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60 SUPER
ao fomento da criação de grupos de guerrilheiros no
Congo e na Bolívia. Fidel, com a sua habitual descon-
fiança, não viu com bons olhos a crescente populari-
dade do seu antigo companheiro de armas, pelo que
decidiu apoiar a sua nova aventura revolucionária,
considerando que era a oportunidade perfeita para o
afastar do caminho. Che Guevara morreu em outubro
de 1967, depois de ser ferido e capturado por forças
especiais bolivianas, treinadas pelos Estados Unidos.
O PRINCIPAL INIMIGO
A chegada de John Fitzgerald Kennedy como novo
inquilino da Casa Branca coincidiu com a fase de maior
tensão entre Cuba e os Estados Unidos. O jovem pre-
sidente herdou da administração de Eisenhower, o seu
antecessor, um plano elaborado pela CIA para remover
à força Fidel Castro do poder e acabar, assim, com a revo-
lução cubana. No contexto da guerra fria, os Estados
Unidos não podiam permitir um regime socialista no
seu “quintal”, e JFK, pressionado pelos falcões de
Washington, deu luz verde ao desembarque na ilha de
um contingente de cerca de 1500 exilados cubanos,
treinados e equipados pelos Estados Unidos. A invasão
iniciou-se a 17 de abril de 1961, na baía dos Porcos, mas
em menos de três dias os anticastristas tinham sido der-
rotados pelas tropas cubanas dirigidas pessoalmente
por Fidel. Abandonados à sua sorte, Kennedy negou-se
a proporcionar-lhes o apoio aéreo e naval norte-ameri-
cano que teria evitado a sua derrota. O incidente refor-
çou a figura de Fidel, que foi apresentado ante a opinião
pública internacional como um campeão contra o impe-
rialismo norte-americano. Pelo contrário, JFK recebeu
John Kennedy
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Interessante 61
AGE
Nikita Kruschev
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Gamal Abdel Nasser
Interessante 63
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Henry Kissinger
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João Paulo II
rializar-se e os planos para invadir Cuba acabaram por tura para aliviar a situação do país, decisões que se
ser deixados de lado quando Jimmy Carter derrotou revelaram insuficientes. Neste sentido, a visita de João
Gerald Ford nas eleições presidenciais de 1976. Paulo II podia antever uma reviravolta que aliviasse
a pressão sobre Cuba e os seus representantes, cada
CUBA ABRE-SE AO MUNDO vez mais criticados dentro e fora das suas fronteiras.
A 21 de janeiro de 1998, o papa João Paulo II iniciou Fidel Castro assim o entendeu, deixando de parte o
uma visita histórica de cinco dias a Cuba. Era a primeira seu laicismo militante que, por vezes, embelezava com
vez que um pontífice visitava a ilha das Caraíbas, e o um manifesto anticlericalismo, e recebeu o papa de
regime castrista saudou-o com uma calorosa receção. braços abertos.
O próprio Fidel Castro deixou pendurado no armário João Paulo II tinha-se caracterizado pela sua oposi-
o seu eterno uniforme de comandante revolucionário ção aberta aos países totalitários de Leste, tutelados
para vestir um fato cinzento escuro e receber pessoal- pela União Soviética, regimes que conhecia muito bem
mente o ilustre convidado nas escadas do avião. A visita por experiência própria. Declarado anticomunista,
do papa deu-se num momento complicado da história assistiu ao seu colapso depois do fracasso de políticas
de Cuba. O país confrontava-se com uma vasta crise que iam contra os desejos de liberdade dos seus cida-
económica do sistema, que ficou conhecida em Cuba dãos. A Cuba de Castro era um dos últimos baluartes do
pelo eufemismo “Período Especial”. O colapso da União comunismo e o pontífice foi à ilha com a intenção de agi-
Soviética, o mais firme aliado do regime cubano na lizar as mudanças democráticas. Foi o que manifestou
esfera internacional, juntamente com o bloqueio comer- em repetidas ocasiões nas suas homilias, apelando para
cial dos Estados Unidos, provocou a degradação das que Cuba se abrisse ao mundo e dando a mão a Fidel, que
condições de vida dos cubanos. Forçado pelas circuns- via cambalear o sistema político que tinha construído
tâncias, o castrismo aplicou medidas tímidas de aber- desde o triunfo da revolução.
Interessante 65
AGE
Raul Castro
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Juanita Castro
quando parecia que o seu destino seria converter-se seguiu um visto para que Juanita pudesse sair do país,
numa jovem de roupas elegantes que se destacava exilando-se no México em junho de 1964, antes de dar
pela sua beleza nas festas organizadas pela oligarquia o salto para Miami no ano seguinte. Desde então, não
cubana, atravessou-se na sua vida a revolução liderada voltou a ver os irmãos.
pelo irmão Fidel. A partir desse momento, Juanita Depois de denunciar publicamente a repressão do
tornou-se ativista do movimento, dedicada a recolher regime castrista e de assistir ao fracasso da invasão da
fundos para a causa. Envolvida na insurreição armada baía dos Porcos, agentes da CIA contactaram com
contra a ditadura de Batista, realizou um intenso tra- Juanita e fizeram-lhe uma proposta surpreendente.
balho humanitário, erguendo escolas e hospitais de Conhecendo o seu compromisso com a oposição,
campanha nos territórios liderados pelos “barbudos”. ofereceram-lhe a hipótese de trabalhar com eles para
Juanita parecia destinada a ocupar um lugar no depor o irmão, proposta que aceitou na condição de não
governo depois da revolução. No entanto, não tardou participar em qualquer assassinato. Convertida em espia
a mostrar o seu desacordo quanto à reviravolta que e atuando com o pseudónimo de Donna, Juanita partici-
começaram a tomar os acontecimentos, criticando Fidel pou na Operação Mangusto, o plano elaborado pela CIA
pela perseguição e detenção de todos aqueles que se para sabotar a economia cubana e desestabilizar o
opunham aos seus planos políticos. A relação entre ela regime castrista.
e o irmão mais velho piorou quando Juanita protegeu A colaboração de Donna com os serviços secretos
alguns destacados opositores, provocando a ira de norte-americanos prolongou-se até 1970. Nesse ano,
Fidel. Preocupado com um problema que começava Richard Nixon procurou uma aproximação à União
a ultrapassar o âmbito familiar, Raul Castro tentou Soviética, afrouxando a pressão que mantinha sobre
apaziguar o confronto entre os irmãos. No entanto, todos Cuba, e instou Juanita a deixar de atacar Fidel com as
os esforços foram inúteis, enquanto assistia impotente suas denúncias propagadas pelos meios de comunica-
a uma rápida deterioração da relação. A morte de Lina ção anticastristas de Miami. A recusa de aceitar essas
Ruz, a 6 de agosto de 1963, precipitou os acontecimentos. novas condições marcou um fim da sua realação com
Até esse momento, a sua presença tinha garantido a a CIA. A partir de então, dedicou-se a escrever as suas
segurança da filha, comprometida depois do faleci- memórias e a dar conferências sobre a situação em
mento. Prevendo o que poderia passar-se, Raul con- Cuba e a relação mantida com os irmãos.
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Alina Castro
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Gabriel García Márquez
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A primeira vez que García Márquez ouviu o nome de gos do regime, mansão que García Márquez podia uti-
Fidel foi em 1955, durante o exílio do escritor em Paris, lizar sempre que visitava a ilha. A casa passou a ser um
quando o poeta Nicolás Guillén lhe falou de um jovem ponto de encontro no qual ambos passaram longas
revolucionário disposto a pôr fim à ditadura de Batista. noites falando sobre literatura, cinema e política,
A poucas semanas da entrada triunfal de Fidel em enquanto desfrutavam dos prazeres da boa mesa, e
Havana, García Márquez foi para a capital cubana para na qual não faltava caviar vindo da União Soviética,
viver como repórter aqueles dias históricos. regado com bom vinho.
Os dois conheceram-se em janeiro de 1959, estabele- A admiração que o Prémio Nobel da Literatura
cendo-se então entre eles uma forte ligação que nunca colombiano manifestou por Fidel não ficou isenta de
desapareceria. No entanto, apesar das aparências, duras críticas, sendo acusado de ser vítima de fascí-
a camaradagem que os uniu nunca esteve ao mesmo nível. nio pelo poder e de manter um cobarde silêncio cúm-
Fidel encarregou-se de marcar a diferença, ficando sem- plice perante a perseguição do regime aos opositores.
pre acima do escritor, que considerou como um segui- As atividades de García Márquez na ilha também não
dor incondicional que gozava de certos favores por ser passaram despercebidas ao FBI, da parte do implacável
útil aos seus propósitos. J. Edgar Hoover, acérrimo anticomunista, que abriu um
No verão de 1959, o jornalista e escritor acabou por ficheiro dedicado ao escritor colombiano e às suas
fazer parte do núcleo fundamental da agência Prensa relações com Cuba.
Latina, criada por Che Guevara para contrabalançar a Gabriel García Márquez faleceu em 17 de abril de 2014,
propaganda anticastrista e apresentar ao mundo os no México, onde morava há anos, devido a um cancro
sucessos da revolução cubana. A partir desse momento, do sistema linfático. Ao receber a notícia, a reação de
García Márquez esteve permanentemente ligado a Fidel limitou-se a uma lacónica nota de imprensa publi-
Cuba e ao seu líder. Fidel pôs à disposição do escritor cada no diário Granma, na qual lamentava a sua morte.
uma das luxuosas residências reservadas para os ami- J.L.H.G.
Interessante 69
Operações da CIA
Objetivo:
matar
Fidel
Ao longo da sua vida
política, o líder cubano
sofreu centenas de
tentativas de assassinato.
Apesar da persistência
da CIA, o comandante
foi um alvo impossível
de eliminar.
N
o dia 1 de maio de 2011, Barack Obama assistiu
em direto, a partir da Casa Branca, à elimina-
ção, por parte de militares da Marinha norte-
-americana, do inimigo público número 1 dos
Estados Unidos, Osama Bin Laden, líder da Al-Qaeda e
o terrorista mais procurado de todo o planeta, à altura.
O êxito da operação foi solenemente anunciado à opi-
nião pública numa conferência em que o presidente se
congratulava pela morte do presumível ideólogo dos
atentados do 11 de Setembro, o maior ataque sofrido
pelo país desde Pearl Harbor.
A execução de Bin Laden ressuscitou indiretamente um
velho debate. Nos anos 60, como veio demonstrar, nos
últimos anos, a desclassificação de comprometedores
documentos da CIA, o governo norte-americano institu-
cionalizou a prática do chamado “assassinato seletivo”
como mais um instrumento, perfeitamente legítimo, da
sua política externa, num momento em que a paranoia
anticomunista e as tensões entranhadas em ambos os
lados da Cortina de Ferro aconselhavam a defesa dos
interesses da nação por qualquer meio ao alcance.
Por isso, não era a primeira vez que os Estados Unidos Amante e espia. Marita Lorenz teve
deitaram mão a este recurso para eliminar líderes polí- uma relação sentimental com o comandante,
o que fez dela a agente perfeita para tentar
ticos, mas foi a primeira vez que a execução de um
eliminá-lo, mas arrependeu-se à última hora.
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Interessante 71
A CIA esteve
por detrás
de múltiplos
assassinatos
espetáculo mediático, levada a cabo com holofotes e
jornalistas e não nas profundezas do estado, apagando
o rasto da operação sob uma pilha de documentos
classificados. Durante décadas, a CIA planeou “ações
executivas” que implicavam a eliminação direta ou
indireta de líderes internacionais incómodos para os
interesses norte-americanos.
A novidade, em 2011, era que Osama Bin Laden não era
um líder estrangeiro convencional; existia consenso na
opinião pública norte-americana em relação à sua clas-
sificação como terrorista e ao facto de que a sua morte
seria “justa”. Pela primeira vez, a execução foi “pública”
e, pela primeira vez também, a dimensão ética da ope-
ração foi objeto de debate entre os cidadãos comuns.
Em pleno século XXI, naturalmente, os “assassinatos
seletivos” não são o que foram no passado. A Operação
Gerónimo, que acabou com a vida de Bin Laden no seu
refúgio paquistanês, desenhou-se em redor de uma rede
logística e tecnológica espantosa. Nada a ver com os
métodos artesanais e os pitorescos truques caseiros
que a CIA utilizou nos anos 60 para eliminar Fidel. Essa
falta de meios, juntamente com a perícia dos serviços
secretos cubanos, e a necessidade de despachar o
assunto à revelia da opinião pública, de forma clandes- Despachado. O estado em que ficou
o carro do ditador dominicano Rafael Trujillo,
tina e no maior secretismo, explicam que Fidel fosse
metralhado com armas fornecidas pela CIA.
capaz de sobreviver a mais de 600 tentativas, apadri-
nhadas ou não pela CIA, para acabar com a sua vida.
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Documentos
desclassificados
E m 2007, o diretor da CIA, Michael Hay-
den, desclassificou finalmente, depois
de anos de pressão da imprensa e da opinião
pública, centenas de documentos que re-
velavam os segredos da agência entre 1953
e 1973 e, portanto, os seus procedimentos
durante os anos mais duros da guerra fria.
Trata-se de cerca de 700 páginas, conhecidas
como “as Joias da Família”, que pormenori-
zam as tentativas falhadas de assassinar Fidel
Castro, mas também muitas outras ações
de legalidade e moralidade mais do que
duvidosas, cuja revelação foi um duro golpe
na reputação da CIA. Nos documentos,
descrevem-se as estratégias seguidas pelos
serviços secretos para travar, por qualquer
meio necessário, a expansão do comunismo
nas áreas de influência norte-americana e,
muito especialmente, na América Latina.
Entre as muitas ações polémicas durante
esses anos, reveladas por estes documentos,
estão a Operação Mangusto, em Cuba, es-
cutas telefónicas ilegais, atos de espionagem
contra cidadãos norte-americanos ou os
complots falhados com diferentes graus de
participação, para eliminar Trujillo ou Lu-
mumba, entre outros. Fidel Castro reagiu à
publicação dos documentos afirmando que
o governo dos Estados Unidos tinha sido
uma “máquina de assassinatos”.
Interessante 73
A Operação 40
visava eliminar
os líderes da
revolução cubana
com a América Latina”, que se concentrava nas relações
comerciais e aliviava a pressão militar, num gesto de
desanuviamento de tensões que a guerra fria estilhaçou.
De facto, o conflito com o bloco comunista propiciou
uma revisão da política externa norte-americana na
América Latina, com visões muito menos conciliadoras
e abertamente intervencionistas, centradas em três
objetivos: reforçar o controlo do comércio, consolidar
uma hegemonia incontestada no hemisfério ocidental,
livre da “tóxica” influência comunista, e promover sis-
temas democráticos ou ditaduras próximas dos inte-
resses norte-americanos.
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Os mais estranhos
A proximar-se o suficiente de Fidel para
o assassinar não era tarefa fácil e, para o
conseguir, os autores dos complots contra o lí-
der cubano tiveram de aguçar o engenho, por
vezes demasiado. Os métodos para perpetrar
os atentados foram, por vezes, quase bizarros.
Um dos métodos preferidos foi o dos charu-
tos. No final dos anos 60, a CIA contaminou
com a toxina botulina uma caixa de charutos
destinada a Fidel, que o teria matado quase
ao primeiro contacto. O problema é que eram
tão venenosos que não se encontrou forma
de os fazer chegar ao líder sem risco para os
agentes implicados na operação. Nessa mesma
altura, colocaram uma caixa de charutos ex-
plosivos, escondida no hotel de Fidel em No-
va Iorque, onde tinha ido para a Assembleia
Geral da ONU, mas, no último momento, a
delegação cubana decidiu mudar de quarto.
Durante essa visita, tentaram, também sem
êxito, colocar sais de tálio, que provocam a
queda do cabelo, nos sapatos de Fidel. No
pior dos cenários, o comandante perderia a
sua barba; no melhor, podia causar-lhe uma
paralisia mortal. Pouco depois, no decurso da
chamada Operação MK Ultra, disseminaram
drogas alucinogénias, como LSD, no estúdio
de televisão no qual estava previsto que Fidel
falaria, mas o plano foi novamente frustrado.
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ções em Miami, sob os auspícios da CIA, deu, por fim, situação, ao ter-se limitado a proteger o ditador Batista
operacionalidade aos planos para eliminar Fidel, coinci- e a fomentar o aumento dos benefícios das empre-
dindo com a colocação em marcha da Divisão WH-4, que sas norte-americanas. Porém, o novo presidente não
incluía bases de treino em diferentes pontos da América hesitou em tornar sua a ideia de “por qualquer meio
Central, encarregada de organizar atos de sabotagem necessário” eliminar um Fidel que não tinha dúvidas
de intensidade diversa contra interesses cubanos, e que em chamar-lhe “analfabeto e milionário ignorante”, na
chegou a executar mais de uma centena de atenta- Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1960.
dos em instalações elétricas, petrolíferas e meios de O presidente estava firmemente disposto a fazer
transporte. com que Fidel engolisse o que tinha dito. Os planos de
Ganhava corpo, assim, a chamada Operação 40, que eliminação do líder cubano desenvolveram-se paralela-
coordenava a ação de assassinos ao serviço da CIA, mente aos preparativos da invasão falhada da baía dos
estabelecendo como alvos os principais dirigentes do Porcos, no meio de um clima de extraordinária tensão
novo regime cubano, e que foi, em larga medida, um política e militar que iria desembocar na crise dos mísseis,
presente envenenado que Eisenhower deixou ao seu em outubro de 1962.
sucessor na Casa Branca. Kennedy confrontou-se com
uma infraestrutura já plenamente operacional e com PRIMEIROS FALHANÇOS
capacidade para atacar o regime castrista em várias As primeiras tentativas de resolver a questão cubana
frentes, em paralelo com os preparativos da execução assassinando Fidel datam de finais dos anos 50, durante
da invasão da baía dos Porcos e, o que é mais impor- a administração Eisenhower. Em dezembro de 1958,
tante, para o fazer assassinando o líder. meses antes do triunfo final da revolução cubana, Alan
Kennedy era muito crítico da gestão de Eisenhower Robert Nye, um mercenário recrutado pelo FBI, infil-
acerca do “problema cubano”, que, segundo ele, tinha trou-se no Exército Revolucionário com a intenção de
contribuído substancialmente para a deterioração da matar Fidel. Capturado pelos rebeldes na serra Maestra,
Interessante 75
Até na Colômbia. A Cimeira Ibérica
de Cartagena das Índias, em 1994, terá
sido uma das últimas ocasiões em que
a CIA tentou eliminar Castro.
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Sucederam-se novas tentativas falhadas, como a A assinatura do Tratado de Proibição Parcial de Testes
Operação Patty, que pretendia o assassinato simultâneo Nucleares a 5 de agosto de 1963 aliviou, por fim, as tensões
de Fidel e do seu irmão Raul, em cerimónias públicas entre os Estados Unidos e a União Soviética. Nesse
em julho de 1961, ou o Plano Liborio, coordenado com contexto, a Operação Mangusto foi terminada, mas a
proeminentes figuras contrarrevolucionárias, que pro- verdade é que a pressão sobre o regime cubano con-
curou, sem êxito, desembaraçar-se dos principais diri- tinuou e as tentativas de eliminar o líder, por conse-
gentes da revolução num atentado frente ao Palácio guinte, também, num novo programa de ações secre-
Presidencial. tas que incluía iniciativas de sabotagem que provoca-
ram várias mortes de civis, e que foi abençoado por
OSSO DURO DE ROER Kennedy no verão de 1963.
Fidel estava a revelar-se um osso duro de roer e, num Com o desaparecimento dos Kennedy, nas admi-
empenho para redobrar esforços para o depor, Ken- nistrações de Johnson, Nixon, Carter, Reagan, Bush e
nedy deu carta branca à chamada Operação Mangusto, Clinton, novas operações foram planeadas (se foi com
nos finais de 1961. O problema cubano convertia-se, ou sem consentimento direto do presidente, é objeto
segundo Robert, o irmão do presidente, na “primeira de debate entre os historiadores), o que implica que
prioridade do governo dos Estados Unidos para que os atentados continuaram para além da guerra fria
não se poupassem esforços, nem tempo, nem meios”. e do colapso da União Soviética. Em 1971, fracassou
Edward Lansdale, uma das figuras centrais da CIA, era um plano que contemplava matar Fidel durante uma
o responsável pela operação, cujo objetivo era usar visita ao Chile, com uma câmara de televisão manipu-
todos os meios possíveis para fomentar a subversão, lada, na qual se ocultava uma arma; no último minuto,
aumentar o número e a intensidade das operações de como acontecera tantas outras vezes, os executores
sabotagem, intervir militarmente na ilha quando fosse acobardaram-se.
necessário e, claro, matar Fidel Castro de uma vez por Também teve sorte em 1985, durante a tomada de
todas. posse de Daniel Ortega na Nicarágua, ou em 1994 e 1997,
Procedeu-se à infiltração de grupos treinados para a no decurso da IV e da VII Cimeira Ibero-Americana de
execução das sabotagens (atacando indústrias e des- Chefes de Estado, prolongando-se as operações e os
truindo culturas) e para os assassinatos seletivos, e planos de atentado, cada mais isolados e intermitentes,
facilitou-se o envio de armamento para os movimentos até finais dos anos 90. Talvez tenha havido um total
contrarrevolucionários. Mangusto era a resposta da de 638 tentativas de assassinato. É o número de vidas
Administração Kennedy ao fracasso da baía dos Porcos do irredutível Fidel Castro, o homem que, por todos
e prolongou-se até início de 1963, promovendo toda a os meios, os Estados Unidos quiseram matar, mas não
espécie de ações secretas, incluindo várias novas ten- souberam como fazê-lo.
tativas de assassinar Fidel. R.P.
Interessante 77
Recordações. O comandante visita
a casa onde nasceu, em Birán, em 2003,
para inaugurar uma exposição de homenagem
à mãe, no centenário do seu nascimento.
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Na intimidade do comandante
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Fidel em privado
O líder cubano teve uma trajetória sentimental agitada:
casou duas vezes e teve numerosas conquistas.
No entanto, essa parte da sua imagem, tal como a relação
que tinha com os filhos, poucas vezes foi revelada.
Interessante 79
Marita Lorenz
chegou a Cuba
num paquete
dirigido pelo pai
F
idel Castro ocupa um lugar de destaque na
galeria de personagens-chave do século XX:
presente em muitos acontecimentos que mar-
caram a segunda metade do século passado,
o seu papel político é bem conhecido, tanto em Cuba
como no exterior. No entanto, o seu círculo mais próximo
conseguiu manter um hermetismo absoluto sobre a sua
vida pessoal, que apenas se rompeu em raras ocasiões.
Fidel Alejandro Castro Ruz nasceu em 13 de agosto de
1926 em Birán, uma pequena localidade do município de
Mayarí, província de Holguín, no leste de Cuba. O pai,
Ángel Castro Argiz, um emigrante galego que tinha
chegado à ilha sem um cêntimo, tinha conseguido uma
pequena fortuna em terras, gado e negócios de açúcar
e madeira. Na sua grande propriedade de Manacas, vivia
como um terratenente patriarcal, dono e senhor da vida
de 300 trabalhadores e suas famílias. Fidel foi o terceiro
dos nove filhos do pai, nascido de segundas núpcias
com Lina Ruz, cozinheira da família, depois de se ter
divorciado de María Luisa Argota Reyes, a sua primeira
mulher. Ángel Castro deu ao filho a melhor educação
possível, inscrevendo-o na escola primária marista Dolo-
res, em Santiago, depois na escola secundária jesuíta
de Belém, em Havana (nessa época, um colégio interno
reservado aos filhos das elites cubanas), e posterior-
mente na Faculdade de Direito da Universidade da
capital cubana.
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Vida buliçosa. Marita Lorenz conheceu
Fidel em 1959. Segundo as suas memórias,
engravidou, abortou e depois foi recrutada
pela CIA para matá-lo, mas não conseguiu.
Esses anos de frenética atividade política despertaram ganho as eleições pela terceira vez, ao mesmo tempo
nele a admiração por personalidades históricas como que se atrevia a pedir-lhe uma nota de dez dólares,
Alexandre, o Grande, Júlio César, Robespierre e Napo- com a desculpa de “gostar de ter uma”. Em troca,
leão. Obcecado pelo conquistador macedónio, quando o jovem Fidel oferecia-se para lhe mostrar as minas
fez 18 anos trocou legalmente o segundo nome, Hipó- de ferro de Mayarí, as maiores de Cuba, das quais o
lito, por Alexandre, gesto com o qual reforçou a con- presidente norte-americano poderia extrair o minério
vicção de estar predestinado a dirigir as massas. necessário para construir os seus navios de guerra.
Essa carta não deve ser considerada como uma simples
UMA PERSONALIDADE FORTE anedota histórica. O seu conteúdo, redigido com uma
Fidel Castro nunca passou despercebido. Com 12 anos, franqueza que expunha a forte personalidade do
enviou uma carta ao presidente Franklin Delano Roo- pequeno, apresenta-o como um precoce manipulador
sevelt, escrita num inglês pobre, para felicitá-lo por ter e astuto negociador, qualidades de qualquer político que
Interessante 81
Da sua última
companheira, 2
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Uma família muito,
muito numerosa
5
F idelito, o único filho nascido do
casamento entre Fidel Castro e Mir-
tha Díaz-Balart, estudou física nuclear
na Universidade Lomonosov de Mos-
covo e casou-se com Olga Smirnova,
uma jovem russa que conheceu durante
a sua estada na União Soviética e com
quem teve dois filhos, Fidel e Mirtha.
Divorciado da primeira mulher, casou-se
pela segunda vez com Victoria Barreiro,
uma cubana filha do general responsável
7
pelos serviços de informação cubanos.
Fidelito desempenhou vários cargos
públicos, à sombra do pai. No entanto,
foi destituído de forma fulminante por
razões nunca esclarecidas, relacionadas
com um presumível caso de corrupção.
Nos últimos anos, e coincidindo com a
doença de Fidel, foi reabilitado, voltan-
do aos gabinetes ocupados pela elite do
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Interessante 83
Foi apresentado
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como frugal,
mas tinha gostos
requintados
Durante muitos anos, Mirtha foi privada da companhia
do seu filho Fidelito, jovem aplicado que acabou por
estudar na Universidade Estatal de Lomonosov, em
Moscovo. Depois da morte do segundo marido, e ao
tornar-se pública a grave doença de que padecia Fidel
Castro, Mirtha regressou a Cuba, sendo recebida pelo
filho. Esta visita foi interpretada como o desejo de Mir-
tha de se despedir daquele que foi o seu primeiro amor,
antes do falecimento do líder cubano, que parecia imi-
nente. Passaram vários anos até ele morrer.
Depois da tomada do poder por Fidel Castro, em 1959,
o romance mais famoso da época foi com a jovem alemã
Marita Lorenz, que chegou a Cuba com 19 anos, na
companhia do pai, comandante do paquete Berlin.
A atração entre ambos aconteceu numa visita que Fidel
fez à embarcação, iniciando-se uma relação que durou
sete meses, segundo afirma Marita nas suas memórias.
Ficou grávida, mas foi provocado o aborto, depois de ser
recrutada por agentes da CIA para assassinar Fidel.
Como epílogo desta rocambolesca história de amor, na
qual se entrelaçam elementos dignos de um romance de
espionagem, Marita depôs como testemunha nas
investigações efetuadas após o assassinato de Kennedy. Amigo. Fidel com García Márquez durante o
Festival dos Charutos Havanos, em março de 2000.
Notem-se as unhas referidas por Norberto Fuentes.
LISTA INTERMINÁVEL
A lista de amantes de Fidel Castro durante os anos de
consolidação da revolução cubana é interminável. Os
nomes sucedem-se e alguns sobrepõem-se no tempo. entrevistar e que o teria seduzido pela sua beleza e
Entre eles, destacam-se Celia Sánchez Manduley, pela sua inteligência.
companheira de armas durante os tempos de guerrilha, Foi preciso esperar até ao final dos anos 90 para ser
Lupe Véliz, mulher de corpo escultural que posterior- revelado o nome da mulher que durante mais tempo
mente se converteu em dirigente da Federação das prendeu o seu coração. Dalia Soto del Valle (Dalita, como
Mulheres Cubanas, e a britânica Jenny Isard, uma jovem Fidel lhe chamava na intimidade) fez a sua primeira apa-
de 23 anos que Fidel conheceu em Nova Iorque quando, rição pública em 1999. Foi no decurso de um jogo de
em setembro de 1960, participou na Assembleia Geral basebol entre as seleções de Cuba e da Venezuela, no
da ONU. Segundo um rumor que circulava por Havana qual também esteve presente Hugo Chávez. Sentada
nessa altura, o líder da revolução “disparava sem umas filas atrás na tribuna para as personalidades que
desembainhar, depressa e com as botas calçadas, sem assistiram ao jogo, manteve uma atitude discreta, que,
grandes pruridos”. no entanto, não passou despercebida a quem conhecia
Correm rumores, nunca confirmados pelos protago- a sua história de amor com Fidel.
nistas, de que Fidel Castro chegou a ter uma aventura Dalia Soto, filha de um proprietário agrícola de Cien-
apaixonada com Ava Gardner, durante uma visita que fuegos, era uma jovem professora de 17 anos, de cabelos
a atriz fez a Havana para conhecer pessoalmente o louros e olhos verdes, quando Fidel apareceu na sua
guerrilheiro. O suposto encontro teria despertado os vida. O casal conheceu-se depois de um discurso
ciúmes de Marita Lorenz, a sua amante oficial naquele pronunciado em 1961 pelo líder revolucionário para
momento. No final da década de 1970, também terá apoiar uma campanha de alfabetização. Desde esse
tido uma relação com a jornalista norte-americana momento, nunca mais se separaram. Um mês depois
Barbara Walters, que foi a Havana duas vezes para o daquele primeiro encontro, Dalia ficou grávida do pri-
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Preferidos e amigos
C omo acontece com tudo o que se relaciona
com a vida privada de Fidel Castro, a pro-
paganda do regime cubano guardou sigilo sobre
os aspetos relativos às preferências e amizades
pessoais do líder. Fidel sempre teve gostos requin-
tados, próprios da classe a que pertencia a família
e, apesar de as informações oficiais terem insistido
em apresentá-lo como um homem modesto e
frugal que se mantinha com o salário mensal de
apenas 900 pesos (34 euros), a verdade é que
nunca renunciaria a um nível de vida confortável.
Uma das suas paixões foi sempre a boa mesa. Em
cartas dirigidas aos amigos quando esteve preso,
na sequência do fracasso do assalto ao quartel
de Moncada, descrevia com todo o pormenor os
pratos que preparava para os seus companheiros
de cárcere. Com jeito para a cozinha, o seu prato
favorito era a massa italiana, preparada de diferen-
tes formas. No faustoso complexo de Cayo Piedra,
uma pequena ilha privada situada a sul da baía
dos Porcos, Fidel desfrutou de longas jornadas de
pesca, até a doença o impedir de o fazer. Chegava
ao local a bordo do Aquarama II, um luxuoso iate
fabricado num estaleiro da antiga União Soviética
e decorado com madeiras nobres angolanas. Ali
recebeu como visitas alguns dos seus amigos, co-
mo Erich Honecker, então presidente da Repúbli-
ca Democrática Alemã, Ted Turner, fundador do
canal de notícias CNN, e o escritor Gabriel García
Márquez, com os quais partilhou cigarrilhas e co-
pos de Chivas Regal, o seu whisky preferido.
meiro de cinco filhos que teve da sua relação com o Fidel nunca se mostrou disposto a romper essa tradi-
comandante da revolução. ção, apesar de, nos últimos anos, se terem operado algu-
Ao longo dos últimos 54 anos, o incorrigível líder mas mudanças que surpreenderam os observadores
manteve romances com outras mulheres, mas voltou internacionais, manifestação da abertura política que
sempre aos braços de Dalita, que via como a fiel compa- se vivia no país. A presença de Dalia Soto foi-se tor-
nheira, a quem acudia nos momentos difíceis. Quando nando habitual nas últimas receções feitas por Fidel na
se tornou pública a grave doença do comandante, até sua residência, e apareceu ao seu lado nas fotografias
então mantida como segredo de estado fielmente que foram difundidas nos encontros mantidos com
guardado, a presença de Dalita tornou-se habitual nas François Hollande ou o papa Francisco, nos quais
poucas aparições públicas de Fidel. exerceu o papel de anfitriã dos ilustres convidados do
regime. Vestida impecavelmente de branco e mostrando
ATÉ AO FIM um sorriso permanente, a sua atitude discreta fez com
Quando se divorciou de Mirtha, Fidel Castro afirmou: que a confundissem com uma assessora ou uma intér-
“Casei-me uma vez, não preciso de mais”, máxima a prete do velho comandante.
que se manteve fiel até que, em 1980, contraiu matri- Dedicado durante décadas à causa revolucionária e a
mónio com Dalia Soto. No entanto, a antiga professora alcançar os seus objetivos pessoais, Fidel nunca se preo-
nunca chegaria a conseguir o estatuto de primeira-dama cupou demasiado com a família, relegando-a sempre
do regime. A cúpula do governo cubano, dominada por para segundo plano. Nem Dalia conseguiu ser exceção.
homens, caracterizou-se por não apresentar em público Orgulhoso até ao final, o defunto comandante nunca teve
as mulheres, uma possível herança da época soviética um gesto carinhoso em público para com a sua mulher.
que não justifica uma certa atitude machista. J.L.H.G.
Interessante 85
Viva Fidel! Com esta frase, Raul Castro
iniciou o seu mandato como presidente
de Cuba, sucedendo ao irmão. Na foto, o dia
da investidura do novo dirigente, em 2008.
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Raul no governo
Poder
ao delfim
A 24 de fevereiro de 2008,
Raul Castro tomou posse
do cargo de presidente de
Cuba. O sucessor de Fidel
tinha estado sempre a seu
lado, apoiando-o em todas
as mudanças de estratégia.
S
ou um revolucionário, e os revolucionários não
renunciam”: foi esta a resposta contundente
que Fidel Castro deu à jornalista norte-ame-
ricana Ann Louis Bardach quando esta lhe
perguntou sobre a possibilidade de um abandono do
poder. O episódio teve lugar em 1994, quando uma série
de acontecimentos decisivos na história de Cuba, e na
do próprio Fidel, nem sequer se podiam ainda prever.
Castro deixou de ser oficialmente presidente de Cuba
em 24 de fevereiro de 2008. Nesse dia, o irmão Raul
substituiu-o no cargo, tornando definitiva a substituição
que, de início, era apenas temporária, provocada pelos
problemas de saúde de que tinha começado a sofrer
havia alguns anos. O que não tinham conseguido as
denúncias internacionais, a oposição interna e externa
e os planos de assassinato, fê-lo a natureza humana.
Passou desde então quase uma década, e uma pesquisa
no Google pelo apelido Castro produz cada vez mais
resultados sobre Raul do que sobre o próprio Fidel,
como se a tecnologia se esquecesse da história para ir
esfumando a sua figura. Porém, era uma personagem
que se recusava a desaparecer. Desde o momento da
sua renúncia, muitos se perguntaram se Fidel teria,
realmente, atirado a toalha ao chão; apesar de tudo,
se o substituto era Raul, apenas cinco anos mais novo
do que ele, poucas mudanças seriam de esperar.
Os rumores que sempre acompanharam a figura de Fidel
como o fumo de um charuto havano centraram-se na
suspeita de que o seu irmão seria apenas uma marioneta
nas mãos de alguém que tinha demasiado poder para
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Interessante 87
Apesar de muito
debilitado,
Fidel continuou
a ter peso mundial
Como é habitual nas ditaduras, o estado de saúde
do líder supremo é o principal gerador do processo de
renúncia; por isso, os serviços de propaganda ocultam ou
censuram qualquer informação sobre doenças graves.
Graças às fugas de informação da Wikileaks, no entanto,
sabemos que Fidel sofreu de uma hemorragia intestinal
severa em julho de 2006, quando viajava de avião entre
Holguín e Havana; foi tão forte que obrigou a uma ater-
ragem de emergência e a uma intervenção cirúrgica
imediata; no entanto, recusou-se a fazer uma colostomia,
porque lhe limitaria as capacidades e teria tornado
impossível esconder o seu estado de saúde.
Pouco depois, a doença impôs-se e a colostomia tor-
nou-se inevitável. Fidel entrou numa convalescença pro-
longada, durante a qual perdeu 18 quilos; foi então que
Despedida. Marcelo Rebelo
delegou o poder, pela primeira vez, em Raul, especifi-
de Sousa foi um dos últimos líderes
cando que o fazia de forma provisória. Para o provar, o
GRANMA
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Doente mediático
A s fotografias de Fidel Castro em fato de
treino tornaram-se tão populares nos últi-
mos tempos como aquelas em que, antigamente,
apareceu em uniforme militar; nos últimos anos,
o governo cubano geria-as a conta-gotas, quase
sempre na altura de visitas oficiais ao país e ao
ex-presidente, por parte de algum governante
ou personalidade estrangeira (Hugo Chávez,
Evo Morales, os papas Bento XVI e Francisco, o
patriarca ortodoxo russo Kirill, o ex-presidente
norte-americano Jimmy Carter, Marcelo Rebelo
de Sousa), ou como instrumento de comunica-
ção, quando disparavam de novo os rumores so-
bre a sua saúde ou, inclusivamente, sobre se ain-
da estaria vivo. O próprio Fidel parecia prestar-se
a este jogo: em 2013, foi pessoalmente votar nas
eleições provinciais, algo que nunca tinha feito
até ao momento (delegou sempre o seu voto em
alguém); em 2015, escreveu uma carta a Diego
Maradona, desmentindo os rumores sobre a sua
morte. Verdadeiro mestre da comunicação, sabia
que não era preciso mais do que isso, ou do que
conceder uma entrevista ou publicar um artigo
para atrair a atenção da imprensa mundial.
continuou a fazê-lo, mesmo depois de o seu irmão o Fidel, com o passar dos anos, se manteve insensível a
ter mandado parar. “Durante os primeiros anos da revo- qualquer mudança na revolução, Raul prestou cada vez
lução, a mão-de-ferro que mantinha as coisas em ordem mais atenção às novas fórmulas que se estavam a ensaiar
através da repressão era Raul, não Fidel”, diz Latell. nos dias finais da URSS e sobretudo, na China atual.
Apesar de as aparências indicarem o contrário, por
vezes sob a forma de famosos escândalos em público, NADA DE RECUAR
Raul nunca foi um subordinado de Fidel, mas sim uma Em que momento começou a consolidar-se a sucessão?
pessoa da sua máxima confiança, alguém que mantinha Especulações sobre o fim de Fidel foram muitas, e sempre
um gabinete ao lado do seu no Palácio da Revolução, acompanhadas de outras, sobre a forma como iria cair
ligado por uma porta privada. Era, ao mesmo tempo, o castrismo. Sebastian Balfour recorda, em Fidel Castro
alguém de idade apenas um pouco mais jovem, de quem – Uma Biografia Política, que os boatos se espalharam a
não se podia esperar uma continuidade especialmente partir da queda da União Soviética, mas a sua “sobrevi-
prolongada no tempo. vência nos anos 90 não deveria ter sido uma surpresa;
Por isso, a missão de Raul não tem a ver com devolver em Cuba, não existia uma oposição organizada contra
ao país a democracia ou a economia de mercado, mas o estado, porque não era permitida e porque qualquer
tomar medidas para assegurar o futuro do castrismo tentativa de expressar as críticas coletivas às suas polí-
quando nenhum Castro estiver em condições de ticas era duramente reprimida; o exército ainda era a
governar, e que passam, obrigatoriamente, pela instituição mais poderosa de Cuba e a lealdade dos ofi-
nomeação de um novo delfim. O próprio Raul deixou ciais superiores a Fidel era inquestionável”.
clara essa missão no seu discurso perante a Assembleia O próprio Fidel deixou claro que de modo algum
Geral do Poder Popular, em 1 de agosto de 2009: “Não pensava dar um passo atrás, e demonstrou-o nos anos
me nomearam presidente para restaurar o capitalismo seguintes, quando caíram algumas figuras castristas de
em Cuba nem para entregar a revolução. Fui escolhido renome, segundo a versão oficial, por prestarem dema-
para defender, manter e continuar a aperfeiçoar o siada atenção às influências externas. Foi o caso de
socialismo, não para destruí-lo.” Carlos Aldana, antigo número três do regime, que chegou
Se os irmãos estavam em desacordo, não era no a reunir-se na União Soviética com Mikhail Gorbachev, e
objetivo, mas no método. Nesse sentido, parece ter-se que foi afastado bruscamente das suas funções em 1992,
produzido uma metamorfose curiosa, já que, enquanto ou de Roberto Robaina, ministro dos Negócios Estran-
Interessante 89
Raul anunciou
a retirada em 2018
e já preparou
a sua sucessão
geiros, expulso do partido em 2001, depois de muitos
anos de fidelidade inquebrantável.
Raul esteve sempre ali, apoiando o irmão em todas as
suas mudanças de estratégia de endurecimento ou de
abertura do comércio e da economia e, ao mesmo tempo,
desempenhando um papel de gestor que abarcava áreas
de início fora do alcance de um chefe militar. Como o
jornalista Enrique Meneses recordou, “Raul foi sem-
pre o administrador do país: quando a Cortina de Ferro
caiu e a URSS se desmembrou, foi ele quem obteve as
divisas necessárias para sobreviver, utilizando o ouro e
os diamantes de alguns países onde o exército cubano
tinha ajudado a implantar governos comunistas, como
Angola”.
Sebastian Balfour também aponta um traço particular
do exército cubano: “As Forças Armadas Revolucionárias
desempenharam um papel central na economia nacio-
nalizada, já que administravam toda uma série de
empresas que abarcavam desde a mineração, o turismo,
as propriedades imobiliárias, a tecnologia da infor- Próxima geração. Da esquerda para
mação e a construção até à agricultura e à criação de a direita, Miguel Díaz-Canel, vice-presidente de
Cuba, Esteban Lazo, presidente da Assembleia
gado. Os tecnocratas militares também tinham desem-
Nacional do Poder Popular, e Raul Castro.
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E depois de Raul?
A segunda transição de poder cubano poderá
não estar longe de produzir-se: o próprio
Raul declarou que abandonará a presidência em
2018 e que estabelecerá um limite de idade para
ocupá-la, bem como o limite de cinco anos para
cada mandato. Esta poderá ser a maior mudança
jamais produzida na ilha, sobretudo tendo em
conta as décadas em que os dois irmãos elimi-
naram de forma eficaz, e às vezes implacável,
qualquer oposição interna. Pelo caminho, desa-
pareceram figuras que poderiam ter tomado o seu
lugar e, num país cuja política interna está sempre
sujeita a conjeturas dos analistas, não é imprová-
vel que fosse a proximidade do poder a precipitar
a sua queda. Porém, são tempos novos. Se Fidel
viveu mais do que alguma vez pensou possível,
Raul espera chegar aos 86. Concluirá o seu se-
gundo mandato para deixar Cuba com os prin-
cípios do castrismo reiniciados, para continuar
a funcionar sem os Castro. Miguel Díaz-Canel,
de 56 anos e nomeado vice-presidente por Raul,
parece, de momento, a opção mais provável.
Mais habituado aos fatos de alfaiate do que aos
uniformes militares, é considerado a imagem de
uma mudança geracional que não se sabe se será
acompanhada de uma mudança ideológica. A sua
simples chegada ao poder já seria uma transição,
a primeira em mais de meio século em que Cuba
teria um presidente cujo apelido não seria Castro.
“em substituição” a acompanhar o seu cargo, ace- tinha consultado previamente. Desde então, Raul não
lerou-as. Os ventos de fora sopravam a seu favor: o parou, com uma política de viagens e encontros com
anticastrismo feroz dos oito anos de presidência de outros governantes que culminou na sua primeira reu-
George W. Bush deu lugar à Administração Obama, que nião com Obama, em 11 de abril de 2015, seguida de uma
prometia, como não tardou a ver-se, uma política mais visita aos Estados Unidos, país no qual apenas tinha
aberta e dialogante com Cuba. Regressou-se aos tempos passado 24 horas da sua vida. Como resultado, os Esta-
da era Clinton, facilitando as viagens entre ambos os paí- dos Unidos suavizaram o embargo económico, cuja eli-
ses, apesar de o embargo se manter, bem como a gene- minação, obstaculizada por um Congresso de maioria
rosa ajuda que o Congresso proporciona aos grupos republicana, poderia significar a mudança definitiva
anticastristas sediados nos Estados Unidos. que o castrismo procurava para que tudo continue na
As mudanças anunciadas não podiam levar-se a cabo mesma.
sem substituição de pessoas. Em março de 2009, Raul Entretanto, Fidel permaneceu onde durante tantos
levou a cabo uma profunda limpeza nos cargos governa- anos estivera o seu irmão, afastado das luzes da ribalta,
mentais, na qual cairiam mais de uma dezena de nomes apesar de o velho leão ter continuado a dar sinais
sonantes. Esta ação foi vista de várias formas, seja como esporádicos de que continuava vigilante: em agosto de
uma maneira de demonstrar que as rédeas tinham 2015, na data do seu 89.º aniversário, e precisamente um
mudado de mãos, destituindo fidelistas convictos, ou dia antes da visita a Cuba de John Kerry, o secretário de
como o primeiro passo para a construção de um governo Estado norte-americano, para restaurar as relações
mais de acordo com as ideias reformistas que Raul tinha diplomáticas entre os dois países, publicou um texto
anunciado no seu discurso de tomada de posse. Porém, no Granma em que reclamava aos Estados Unidos
na sua coluna “Reflexões”, no Granma, o próprio Fidel o pagamento de milhões de dólares de indemnização
justificou as destituições, indicando que havia entre pelas décadas de embargo económico.
elas muitos cargos indignos e revelando que o irmão o V.F.B.
Interessante 91
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Incerteza. Na noite de 25 de novembro de 2016,
Cuba recebeu a notícia do falecimento daquele que
foi seu líder durante meio século. Aqui, uma mulher
lê a imprensa diária depois da morte de Fidel Castro.
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Cuba depois dos irmãos Castro
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Futuro indefinido
Após décadas de embargo norte-americano, a perda
da ajuda soviética com a queda da URSS, a imposição
do “estado de austeridade” e a transferência de poder
de Fidel para o seu irmão Raul, o país continua na
expectativa de melhoria na economia e na liberdade.
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Quase não há
analfabetismo e
os índices de saúde
são dos melhores
D
esde que Washington ordenou o bloqueio
comercial ao país, em 1963, os cubanos vive-
ram numa profunda crise que se agravou
quando a União Soviética cortou as ajudas
económicas, em 1990. Desde então, Cuba não conseguiu
erguer-se. Agora, a realidade está prestes a mudar.
A reabertura de relações diplomáticas entre Havana e
Washington poderá colocar um ponto final na longa
fase de restrições sofrida pela “pérola das Caraíbas”.
Enquanto não chega o momento desejado, os mais de
55 anos de economia de estado apagaram os instintos
comerciais de muitos camponeses, que tiveram de
aprender à pressa os truques fundamentais da negocia-
ção para sobreviverem aos novos tempos. Com a tímida
abertura económica dos finais da década de 90, os
cubanos saíram à rua para vender o pouco que possa
existir em casa. O regime tratou de restringir as licenças
de venda ambulante, mas a avalanche de merolicos foi
tal que as forças de segurança pouco puderam fazer.
Em Havana, a poucos metros do Capitólio, o visitante
dá de caras com um pequeno mercado. Nas bancas, há Aposta. Com o governo revolucionário,
tudo o que possa render uns dólares ou que sirva de a educação tornou-se uma prioridade
em Cuba, tal como o sistema de saúde.
troca para obter o que o vizinho da frente está a vender.
Aqui, a abertura do ano escolar 2009/2010.
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É paradoxal o aparecimento de instalações luxuosas Desde então, a situação mudou ligeiramente. No
de hotéis num país tão imerso na miséria, mas o setor entanto, as rimas de Nicolás Guillén continuam a
leva à economia nacional cerca de 3500 milhões de descrever o ambiente de escassez que assola o país:
dólares anuais, mais do que as exportações de tabaco, “Que a carne, quando aparece, é tão velha e de vacas
níquel e açúcar em conjunto. Dada a sua importância, tão duras que é feita de pau, isso é seguro. Mas que a
não é de estranhar que Raul Castro tenha decidido, escassez desse alimento é fruto do negócio, apesar de
há uns anos, recolher as rendas do “grande negócio”. o lamentar, não o juro. Que estamos sem água e que
sofremos para fazer um café, isso é seguro. Mas que
SITUAÇÃO EM MUDANÇA moído e maduro, o povo finja que gosta de quem não
Após a perda definitiva de ajuda soviética, em 1992, o é porto [de abrigo] nem poço [sem fundo], isso juro.”
país iniciou uma vertiginosa queda a pique. Na tentativa Perto das instalações portuárias fica o mercado dos
de salvar o que ainda restava da economia, Fidel decretou Quatro Caminhos, um dos maiores de Havana. Só pode
o “Estado de Austeridade”, conhecido eufemistica- ter acesso aos produtos quem recebe dólares do exterior,
mente como “Período Especial”. O endurecimento sejam as jineteras, que fazem negócio nos quartos dos
do bloqueio, imposto por George W. Bush, reduziu o hotéis, os poucos que iniciaram algum negócio ou os que
montante de dinheiro que os exilados cubanos podiam trabalham no setor turístico e dispõem de um punhado de
enviar às famílias, o que piorou ainda mais a situação do divisas nos bolsos. Em frente ao mercado, vê-se um cartaz
país. O cerco que Washington decretou incluiu a restri- com a frase “Só os fracos se queixam”. Junto a esta
ção da frequência de viagens dos exilados à sua pátria palavra de ordem, o radical de serviço escreveu, em
(de uma visita anual, passou para uma a cada três anos) letras pequenas: “Esfomeados e f..., mas magros e
e a quantidade de dinheiro que podiam gastar em Cuba esbeltos.”
durante as visitas que faziam. Nem tudo são críticas. Os comencadelas, identificados
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A normalização de relações deveria
promover um boom no turismo
com o regime, continuam a acreditar no sucesso da mesmas: “Saúde e educação são inegociáveis.” Um
revolução. Este setor de fiéis contribui para que o cas- objetivo que é de louvar e que noutros tempos foi pos-
trismo, agora encabeçado por Raul, continue firme- sível, mas que agora se torna cada vez mais difícil de
mente no poder. A não ser uma mão cheia de bloggers alcançar. No entanto, há que reconhecer o esforço do
e grupos crescentes de jovens sem esperança, o regime castrista na educação e na saúde.
governo não tem uma oposição forte, capaz de lhe fazer Ao contrário de outras zonas das Caraíbas, as crianças
frente, apesar dos terríveis dados económicos: o salário cubanas são escolarizadas e os jovens podem aceder à
de um engenheiro de telecomunicações é de apenas 500 universidade. Quando surgiu o surto de ébola em África,
pesos, cerca de 450 euros. o governo cubano enviou centenas de médicos para
Com esse dinheiro, consegue-se comprar uma garrafa ajudar a eliminar uma peste que ceifava milhares de vidas
de rum, três frangos congelados e alguns enchidos, em naquela zona tão castigada do planeta. Ninguém
qualquer das lojas oficiais do país. Neste ambiente de poderá negar ao castrismo a sua solidariedade perante
miséria, as prioridades políticas continuam a ser as as desgraças que acontecem nos países pobres.
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A mesma luta? Na Praça da Revolução,
o presidente e o vice-presidente norte-americanos,
Barack Obama e John Kerry, prestam homenagem
Degelo ameaçado?
ao herói nacional cubano José Martí.
N o dia 17 de dezembro de 2014, os Esta-
dos Unidos e Cuba anunciaram o início
de conversações para abrir embaixadas diplo-
máticas, que estiveram fechadas durante mais
de meio século, desde os tempos de Dwight
D. Eisenhower. Os planos eram ambiciosos.
Intensificaram-se as viagens e o comércio, assim
como a cooperação em diversas áreas, e era pre-
visível que, a médio prazo, a chegada de turistas
norte-americanos fosse em massa: cerca de um
milhão de visitantes por ano. O passo seguinte
seria acabar com o embargo económico à ilha,
que levou à pobreza da sociedade cubana e não
conseguiu o objetivo pretendido: acabar com a
revolução de 1959. O desafio era difícil, já que
os setores mais anticastristas do Partido Repu-
blicano iriam sempre lutar para impedir que o
poder legislativo norte-americano acabasse com
o bloqueio. Mesmo assim, Obama visitou Cuba
antes de terminar o seu mandato. Foi o primeiro
inquilino da Casa Branca a pousar no solo de
Havana em quase um século. Em 2015, Obama
e Raul Castro reuniram-se em duas ocasiões, e
meses depois anunciaram o desejo de retomar
os voos comerciais diretos entre ambos os paí-
ses. Também estava prevista a cooperação sobre
o meio ambiente e a abertura de portas aos turis-
tas norte-americanos, que voltariam a desfrutar
das maravilhas da “pérola das Caraíbas”, após 55
anos de embargo. O caminho iniciado pelos dois
países parece irreversível, a longo prazo. Porém,
CORDONPRESS
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Novos sabores. Desde as conversações
entre Obama e Raul Castro em 2014, setores como
o turístico aumentaram o número de empregados,
e abriram novos restaurantes. Aqui, o restaurante
La Vitrola, muito popular entre os turistas.
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O país prepara-se lentamente
para a sociedade de consumo
Um natural de Havana responde à questão: “Algum lidade de viajar para o estrangeiro, sugerem que algo
yankee de m... vai fazer o negócio da vida dele, com- vai mudar no país, mas mais de 80 por cento das famílias
prando-os por meia dúzia de dólares.” cubanas recorrem a algum tipo de ilegalidade para con-
Nas lojas da capital cubana, o turista pode encontrar seguirem chegar ao fim do mês. Atacados pela escassez
os produtos mais variados: livros do século XX, sapatos de recursos, decidiram instalar chiqueiros domésticos,
velhos, discos dos lendários Carlos Puebla e Ignacio onde engordam o porco para a matança.
Piñeiro e o seu Septeto Nacional ou os utensílios neces- Apesar das carências, nos dois últimos anos o setor
sários para o cerimonial dos santos que até agora eram privado cresceu a um ritmo que superou as expectativas
proibidos, mas hoje em dia se admitem como algo do governo, sobretudo no setor turístico. Na ilha, há
pitoresco que “não atenta contra a revolução”. Na agora cerca de 1500 restaurantes. Nos últimos dois
verdade, desde há alguns anos que é habitual ver nas anos, os chamados cuentapropistas (trabalhadores por
ruas de Havana as santeiras, com os vestidos brancos conta própria) passaram de 300 para cerca de meio
e os panos enrolados na cabeça. Muitos cubanos recor- milhão, e o governo estima que em 2018 o número possa
rem a estas mulheres para pedir conselhos, curar-se chegar ao milhão de trabalhadores independentes.
de alguma doença ou resolver um problema amoroso. A aproximação diplomática aos Estados Unidos, um
processo que teve início em dezembro de 2014, permitiu
SETOR PRIVADO A CRESCER alimentar a esperança de que Cuba, esse “vasto cro-
Desde que os jovens “barbudos” tomaram o poder, codilo verde”, conseguirá um dia sarar as suas feridas.
nunca as orishás (divindades yoruba) tinham tido tanta Se os planos de Obama e Castro se cumprissem, o
importância. É verdade que os tímidos avanços socio- país encaminhar-se-ia para uma nova sociedade.
económicos que o país está a viver, como o apareci- Até à entrada em cena de Donald Trump...
mento de uma mão cheia de empresários ou a possibi- F.C.
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