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N AT I O N A L G E O G R A P H I C .

P T | DEZEMBRO 2021

O ESPECTÁCULO DO

SERENGETI
O N D E A L U TA P E L A S O B R E V I V Ê N C I A P R O D U Z
A LG UM A S DA S C E N A S M A I S FA S C I N A N T E S DA T E R RA
N.º 249 MENSAL
N AT I O N A L G E O G R A P H I C DEZEMBRO 2021

S U M Á R I O

ESPECIAL SERENGETI
F O T O G R A F I A S D E C H A R L I E H A M I LT O N J A M E S

2 20
Na capa
Gnus e zebras atravessam
juntos o rio Mara durante a
migração anual em busca
de pastos frescos. Quando
Migrações O gnu: um rei improvável alcançarem as planícies do
A migração dos gnus no O rei do Serengeti não é Norte, os dois herbívoros
Serengeti é um dos maiores o leão. É o gnu, um antílope procurarão zonas diferentes
espectáculos da Terra e este de aspecto caricaturesco cuja para se alimentarem.
comportamento espantoso é migração funciona como motor CHARLIE HAMILTON JAMES
crucial para a vitalidade de um de um ecossistema complexo.
ecossistema que junta milhares Todos os anos, mais de um
de espécies de fauna e flora. milhão destes ungulados
A investigadora queniana Paula percorrem quase três mil
Kahumbu analisa as ameaças quilómetros numa longa
que pendem sobre esta caminhada em que renovam
complexa rede biológica e traça a vegetação, adubam os solos
um diagnóstico para o futuro. e alimentam predadores.
T E X T O D E PA U L A K A H U M B U T E XTO D E P E T E R GW I N
R E P O R TA G E N S S E C Ç Õ E S

34
A S UA F OTO

VISÕES

EXPLORE
Ensaio fotográfico: O anfiteatro de Ammaia
Guardiãs da terra
O que sucede quando as A mão evolutiva
comunidades humanas necessitam De armadilha letal
de mais solo, mais combustível a peça de arte
ou mais alimentos? As florestas O quinto oceano do Sul
são abatidas e os animais vítimas
da caça furtiva. Uma teia de
tradições culturais e de aspirações E D I TO R I A L
de progresso envolve o Serengeti.
BASTIDORES

58
A voz espiritual da floresta
A região de Loita é pouco conheci-
Í N D I C E A N UA L

P RÓX I M O N ÚM E RO

da, mas essencial para o Serengeti.


A mais de dois mil metros de
altitude, existe ali uma floresta
luxuriante, considerada sagrada
pelos masai. Uma conversa com
um ancião transforma-se numa
lição sobre a vida e a natureza.
T E X TO D E Y VO N N E A D H I A M B O O W U O R

66
Ensaio fotográfico:
Luta pela sobrevivência
Para as criaturas do Serengeti,
a vida é uma luta constante para
obter comida… e não ser comido.
Nesta região de abundância e
escassez, animais de todos os tama-
nhos sofrem com a fragmentação de Envie-nos comentários
para nationalgeographic
habitats num ecossistema já @ rbarevistas.pt
afectado pelas alterações climáticas.
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Na natureza, os padrões ajudam portugal
os animais a camuflarem-se ou a
destacarem-se. No projecto Photo
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Ark, Joel Sartore tem encontrado
e atendimento
estratégias muito diferentes dos
ao cliente
animais para se camuflarem de
Telefone 21 433 70 36
qualquer ameaça.
(de 2.ª a 6.ª feira)
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V I S Õ E S | A SUA FOTO

PA U L O N A B A I S D A C R U Z Algumas cidades ganham cores especiais no Outono, como se fossem roupas guardadas para dias
de gala. Viseu é um desses casos. “É neste período e com esta luz que todo o esplendor da cidade fica realçado”, diz o autor.

T I A G O S A PA G E No miradouro do Carrascalinho, em Freixo de Espada à Cinta, um abutre abre as asas talvez para secar a
plumagem ou aproveitar os últimos raios de Sol. “É a envergadura de um abraço onde os céus dominam”, explica o autor.
V I S Õ E S
Portugal
Do céu, a maior central solar
do país, instalada no concelho
de Alcoutim, é uma visão
perturbadora do futuro.
São 660 mil painéis solares
concentrados em 320 hectares:
uma potência instalada de
219 megawatts, cinco vezes
mais do que na Amareleja.
LUÍS FERREIRA
Costa Rica
Esta rã de vidro (Espadarana
prosoblepon) tem uma
distribuição ampla neste
país centro-americano e
caracteriza-se pela presença
da espinha umeral que os
machos usam para segurar a
fêmea durante a reprodução.
JAVIER LOBÓN-ROVIRA
Marrocos
No coração de Marraquexe, os
souks atraem os viajantes com a
sua explosão de cores, cheiros e
sons. A cerâmica chama a atenção
pelo excesso de cor. Pratos,
travessas, taças e tajines com
desenhos geométricos ou florais
e em tons garridos, preenchem
o chão e paredes destas lojas.
ARTUR CABRAL
E X P L O R E

O ANFITEATRO Portugal

Marvão

DE AMMAIA
Ammaia

UM A DA S M A I S F O RT E S I M AG E N Sque temos da época


romana são os grandes recintos lúdicos, como o célebre Coli-
seu de Roma, onde se realizavam combates entre homens
(gladiadores) ou de homens com animais, espectáculos então
muito populares. Boa parte das cidades romanas tinha o seu
anfiteatro onde os habitantes locais podiam assistir a estes
jogos. Agora sabemos, a cidade de Ammaia não foi excepção.
Dispomos de uma imagem bastante precisa do urbanismo
desta cidade romana, situada em pleno Parque Natural da
Serra de São Mamede, depois de extensos trabalhos de arqueo-
logia não invasiva. Mas subsistia a dúvida sobre se teria
edifícios lúdicos (teatro, anfiteatro, circo). Certo era que, a
existirem, estariam fora da cidade propriamente dita, por
ser esta a tradicional implantação destes edifícios, pelas suas
dimensões dificilmente acomodáveis no tecido urbano, e
porque as prospecções realizadas não os tinham identificado.
A zona noroeste extramuros parecia o local adequado para
a sua localização, pela configuração do terreno. Tinha havido
ali alguma pesquisa anterior, dificultada pelo espesso mato,
mas também iludida pela presença de uma antiga frente de
pedreira, que poderia explicar a sugestiva topografia da área.
Em 2018, o Centro de Arqueologia da Universidade de Lis-
boa (Uniarq) e o Museu Nacional de Arte Romana, de Mérida,
em parceria com a Fundação Ammaia e a Fundación de Estu-
dios Romanos, lançaram um projecto que visava a identifica-
ção e estudo dos recintos lúdicos da cidade de Ammaia. A zona
foi eleita para as pesquisas, primeiro por meios não invasivos,
depois, pela boa fortuna dos resultados, por escavação.
Assim se identificou o quinto anfiteatro conhecido da
antiga província romana da Lusitânia. Não seria um edi- A E S T RU T U R A
fício monumental construído com betão (opus caementi- Os trabalhos ainda vão con-
cium), como os de Mérida e Conímbriga, mas um modesto, tinuar, mas, na sua aparente
simplicidade, o anfiteatro apre-
parcialmente edificado com madeira, semelhante aos já senta engenhosas soluções
conhecidos em Bobadela (Oliveira do Hospital) e Cáparra arquitectónicas. Boa parte do
(Haza del Olivo). A dimensão e requinte dos edifícios lúdi- perímetro foi erguido sobre
rocha, cortada e afeiçoada para
cos depende da riqueza local ou do investimento que se o efeito, permitindo o assen-
entendeu fazer. tamento da bancada. A frente
de pedreira identificada nas
Até agora, só uma porta foi identificada, e junto dela dois primeiras observações foi o
compartimentos serviriam para albergar homens e animais, local de onde se extraiu parte
antes do espectáculo. da pedra para a edificação do Dados os materiais
muro perimetral da arena, uma utilizados no anfiteatro e
O edifício foi construído no século I da nossa era e construção de alvenaria, rebo-
seguramente reutilizados
terá funcionado até ao século V, quando o encerramento cada com argamassa de cal,
provavelmente pintada. Em posteriormente noutras
das portas com paredes de alvenaria assinala o fim do seu cerca de um quarto do seu perí- estruturas, os artefactos
uso. Ontem como hoje, novos hábitos e novos gostos con- metro, um potente enchimento mais comuns nesta fase
denaram e baniram o que antes foram populares espectá- de cascalho criou a elevação da escavação têm sido
necessária para a instalação da
culos. — C A R L O S FA B I ÃO bancada de madeira (cavea).
os pregos.

N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Foi construído com
alvenaria na parte inferior
e a parte superior terá
sido de madeira.

O anfiteatro foi encastrado


na encosta virada
Após o corredor a nascente. Cerca de
da entrada triunfal, dois terços da bancada
subsistem, no lado assentavam na encosta
esquerdo, vestígios de dois e o restante sobre uma
cárceres, construídos em estrutura de alvenaria
pleno pódio, por baixo da bancada. e madeira.

FOTOGRAFIA: J. CARLOS JIMÉNEZ. ILUSTRAÇÃO DE ANYFORMS


FONTES: CARLOS FABIÃO E JOAQUIM CARVALHO
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E S
D
DE
A HISTÓRIA
COMO NUNCA
LHE FOI
CONTADA
Porque a história deve ser
contada por quem mais sabe do assunto
Os nossos artigos são escritos por professores universitários,
historiadores, filólogos, autores de prestígio e especialistas.

Porque é espectacular... no sentido literal


Contamos-lhe episódios da história em grande estilo,
usando as melhores fotografias e ilustrações. Nós fornecemos
uma verdadeira viagem de luxo ao passado.

Porque temos um selo de qualidade


A nossa marca fala por si. A National Geographic significa
prestígio e conteúdos de nível superior.

Nº2
NAS BANCAS
E X P L O R E | FOTOGRAFIA

O macabro esqueleto de um embrião

A MÃO EVOLUTIVA
de morcego frugívoro de cauda curta
revela ossos alongados. A asa do morcego
ilustra “como a receita para ‘produzir’
uma mão se modificou durante a evolu-
ção, conduzindo a inovações surpreen-
dentes”, explica Dorit Hockman. A imagem
FOTOGRAFIA DE DORIT HOCKMAN faz parte do trabalho desta bióloga para
E VA N E S S A C H O N G - M O R R I S O N “identificar as camadas do processo de
desenvolvimento embrionário” e perceber
melhor a erupção de formas físicas no reino
animal.— O L I V E R W H A N G

FOTOGRAFIA: DORIT HOCKMAN E VANESSA CHONG-MORRISON,


UNIVERSIDADE DA CIDADE DO CABO; CORTESIA DE NIKON SMALL WORLD
E X P L O R E | AT L A S

O QUINTO
RECENTEMENTE RECONHECIDO pela divisão cartográfica da National
Geographic Society, o oceano Antárctico liga o Árctico, o Atlân-
tico, o Índico e o Pacífico como uma divisão primária do ambiente

OCEANO
marinho da Terra. Nos nossos mapas, o limite norte estava defi-
nido no paralelo 600 Sul (com ajustes para o mar da Escócia e a
passagem de Drake), um compromisso forçado pela corrente

DO SUL
circumpolar antárctica (que circunda a Antárctida) e que flui de
oeste para leste. Os cientistas consideram estas águas, mais frias
e densas, mas menos salgadas, um oceano independente limitado
pela forte correnteza. — M AT T H E W W. C H WA S T Y K

Cabo Agulhas
ÁFRICA
OCEANO DO SUL
Canal de

ÍND TICO
Moçambique

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ATLÂNTICO SUL

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OCEANO

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OCEANO
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I. Macquarie Grande Baía


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Australiana
PACÍFICO SUL I. Auckland
Tasmânia
I. Stewart

As linhas mais grossas a azul Ilha Sul


Mar da
escuro mostram os limites dos AUSTRÁLIA
diferentes oceanos. As linhas mais NOVA T a s m â n i a
finas designam divisões menores, Ilha Norte ZELÂNDIA
como mares, baías ou golfos. 500 km

FONTES: CENTRO AUSTRALIANO DE DADOS SOBRE A ANTÁRCTIDA; ORGANIZAÇÃO HIDROGRÁFICA INTERNACIONAL; NASA
«Acreditamos no poder da ciência, da exploração
e da divulgação para mudar o mundo.»

A National Geographic Society «XPDRUJDQL]D©¥RJOREDOVHPƃQVOXFUDWLYRVTXHSURFXUDQRYDVIURQWHLUDVGD


exploração, a expansão do conhecimento do planeta e soluções para um futuro mais saudável e sustentável.

NATIONAL GEOGRAPHIC MAGAZINE PORTUGAL NATIONAL GEOGljAPHIC SOCIETY

Dr. Jill Tiefenthaler


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MIQUEL APARICI, Director de Arte 3lj(6,'(17$1'&+,()23(lj$7,1*2)),&(lj Michael L. Ulica
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HELENA ABREU, Coordenadora editorial &+,()',9(lj6,7<2)),&(lj
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CARLOS FABIÃO, Arqueologia SERAFÍN GONZÁLEZ, Director de negócios &+,()),1$1&,$/2)),&(ljljRE<RXQJ

CARVALHO RODRIGUES, Aerospacial digitais e serviços comerciais %2$Nj'2)7Nj867((6

CLÁUDIO TORRES, Arqueologia ___________________________________________ &+$,lj0$1 Jean M. Case


9,&(&+$,lj0$1 Katherine Bradley
FRANCISCO ALVES, Arqueologia Náutica IMPRESSÃO E ENCADERNAÇÃO
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FRANCISCO PETRUCCI-FONSECA, Zoologia Rotocobrhi, S.A.U. Elizabeth Comstock, Jack Dangermond, Joseph M. DeSimone,
GALOPIM DE CARVALHO, Geologia Ronda de Valdecarrizo n.º 13 Alexandra Grosvenor Eller, Jane Lubchenco, Kevin J. Maroni,
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JOÃO DE PINA CABRAL, Antropologia Social
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5œ66,$Andrei Palamarchuk. 6‹59,$ Igor Rill. 7$,:$1 Yungshih Lee. 7$,/„1',$ Kowit Phadungruangkij.
78548,$ Nesibe Bat RAMON FORTUNY, Director de Produção
D E Z E M B R O | EDITORIAL

ESPECIAL
SERENGETI
O Serengeti não morrerá
em magia,
TA LV E Z O L E I TO R N ÃO AC R E D I T E
mas alguns topónimos são mágicos para a
National Geographic. Representam um
ponto no mapa, mas têm também o poder
de evocar imagens e sensações e de con-
centrar nelas ressonâncias culturais pode-
rosas. Ouvimo-los e sorrimos ou trememos
consoante a carga ideológica e histórica
que lhes atribuímos. Krakatoa não é só o
nome de uma ilha indonésia. É o vulcão
dos vulcões. Tsavo não é apenas uma região
do Quénia. Representa o momento de uma
luta entre homens e leões, metáfora diabó-
lica do embate entre a tecnologia e a vida
selvagem em África. A menção ao Serengeti,
em contrapartida, desperta sempre um
sorriso. É um local abençoado pelos deuses.
O próprio nome masai significa «planícies
intermináveis», a primeira condição geo-
gráfica para a diversidade de habitats que,
por sua vez, permite a concentração de mais duas semanas de férias no então território No Parque Nacional do
de cinco centenas de espécies de aves e do Tanganica para poder avistar a migração Serengeti, dois leões
descansam no leito
mamíferos e inúmeras plantas e insectos. dos grandes ungulados do Serengeti. Grzi- seco de um lago.
A água é o outro sortilégio geográfico que mek sabia que os operadores turísticos
assegura a vida na região, condicionando alemães não tinham essa oferta disponível,
os movimentos neste ecossistema. Na esta- mas a pressão do público foi tão intensa
ção das chuvas, a água abunda, mas, quando que rapidamente se organizaram múltiplas
os céus não libertam água, resta um único viagens ao Serengeti. Grzimek transformara
rio perene, o transnacional Mara. A gestão os espectadores em activistas ambientais
dessa inevitabilidade fronteiriça influencia e os historiadores modernos concordam
todos os planos de gestão do território. que os seus documentários e a sua pressão
Todos os equilíbrios do Serengeti são sobre o governo britânico ajudaram a sus-
delicados. Como grande parte das actuais ter a destruição deste ecossistema precioso.
áreas protegidas em África, o parque come- Dedicamos a edição de Dezembro ao
çou por ser uma reserva de caça, um terri- território sagrado do Serengeti numa
tório colonial reservado a uma elite pagante altura em que a pressão humana em redor
que, com as balas das suas espingardas, da área protegida nunca foi tão intensa.
projectava em África a sua visão do mundo. Como um malabarista aprendiz, a gestão
Cedo se constatou, porém, que a natureza de um ecossistema é um dos equilíbrios
não é uma loja de conveniência onde os mais ingratos do mundo, exigindo a pon-
stocks são constantemente repostos. Com deração de todas as forças vivas e de todos
a Segunda Guerra Mundial em curso, foi os interesses, sem deixar cair ao solo qual-
criado o Parque Nacional do Serengeti. Mas quer uma das bolas que pairam no ar.
os problemas não cessaram. Bernhard Grzimek testemunhou a sua
Em 1960, o veterinário alemão Bernhard experiência num livro e num documentá-
Grzimek promoveu na televisão um dos rio premiados, que abriram caminho ao
maior bluffs da história mediática alemã. activismo ambiental na Alemanha. Intitu-
No seu programa televisivo Ein Platz für lavam-se: O Serengeti não morrerá”. Saiba-
Tiere, desafiou a audiência a encomendar mos ser dignos desse legado. j

CHARLIE HAMILTON JAMES


MIGR
PÁ G I N A N AT I O N A L G E O G R A P H I C
2 SERENGETI

A MIGRAÇÃO DO SERENGETI CONSTITUI UM DOS GRANDES


ESPECTÁCULOS DO PLANETA E É ESSENCIAL PARA A VIDA NUMA
REGIÃO DE MAGNÍFICAS PAISAGENS E CULTURAS VIBRANTES.

A migração de mais de um milhão de gnus no


A grande ecossistema do Serengeti é um processo
arrebatador que não deixa ninguém indiferente.
C H A R L I E H A M I LT O N J A M E S fotografa esta viagem
intemporal e P A U L A K A H U M B U , P E T E R G W I N e Y V O N N E
A D H I A M B O OW U O R escrevem sobre temas humanos, ecoló-
gicos e culturais que moldam uma região onde o delicado
equilíbrio da natureza enfrenta ameaças crescentes.
AÇOES
D ATA
DEZ. 2021

FOTOGRAFIAS DE CHARLIE HAMILTON JAMES


UMA COMPLEXA REDE BIOLÓGICA P O R PA U L A K A H U M B U
P GINA 10

O REI IMPROVÁVEL P O R P E T E R G W I N
P GINA 20

E N S A I O F OTO G R Á F I C O : GUARDIÃS DA TERRA


P GINA 34

VOZ DA FLORESTA P O R Y V O N N E A D H I A M B O O W U O R
P GINA 58

E N S A I O F OTO G R Á F I C O : LUTA PELA SOBREVIVÊNCIA


P GINA 66

XXXXXXXXXX 3
Gnus precipitam-se por
um barranco íngreme
na margem do rio Mara,
na sua demanda por
água e pasto fresco.
Todos os anos, cerca
de 1,3 milhões de
animais seguem as
chuvas sazonais num
circuito em sentido
horário, partindo da
Tanzânia para o Quénia
e regressando ao ponto
de partida. É a maior
migração terrestre
do planeta.

4
Todos os anos, em
Fevereiro, antes de
iniciarem uma viagem
extenuante para norte,
os gnus e as zebras que
acompanham a manada
reúnem-se para pastar e
parir nas planícies junto
da fronteira meridional
do Parque Nacional do
Serengeti, na Tanzânia.
Meio milhão de jovens
gnus nascem aqui todos
os anos: uma média de
24 mil por dia. As crias
conseguem caminhar
poucos minutos depois
de nascerem.
Há milhares de anos
que os gnus atravessam
as planícies da África
Oriental. As manadas
não têm um líder
natural, mas os trilhos
ajudam a orientá-las,
como uma memória de
grupo de viagens
anteriores. Nesta
viagem anual, formam
uma megamanada,
rodeada por outras
mais pequenas que se
separam para encontrar
boas terras de pasto.
UMA COMPLEXA
REDE BIOLÓGICA
T EX TO D E PÁ G I N A
PA U L A K A H U M B U 10

D ATA N AT I O N A L G E O G R A P H I C
DEZ. 202I SERENGETI

po-
N A I M AG I N AÇ ÃO Até o nome, Serengeti (que se pensa derivar da palavra “Maa”
que significa “planície sem fim”) é enganador. O Serengeti é
N
pular, o ecossistema
do Serengeti é uma constituído por muitas paisagens, incluindo savanas, bosques
paisagem africana e florestas ribeirinhas.
ancestral de planí- É o lugar que acolhe as últimas populações prósperas de al-
cies douradas a perder de vista, gumas espécies e onde os seres humanos vivem em equilíbrio
desde sempre inalterada. Girafas com os animais desde o início da nossa jornada. No entanto,
altas deslocam-se graciosamente alguns dos animais sobre os quais já aprendemos tanto correm
em sintonia. Manadas de elefantes o risco de desaparecer à medida que nós, humanos, reivindica-
atravessam ondas de capim. Leões mos cada vez mais os seus habitats e aquecemos o clima.
perseguem antílopes com chifres Para cientistas como eu, o Serengeti é uma cápsula do tempo
espiralados em caçadas sangrentas. de uma época imemorial e um indicador do nosso futuro. É uma
Linhas ziguezagueantes de gnus e rede intrincada de vida, que depende de paisagens situadas
zebras deslocam-se em constante para lá dos parques, reservas e zonas de conservação já criadas.
movimento. E as pessoas que vi- À semelhança da maioria das pessoas nascidas e criadas na
vem no Serengeti, masai e outros, África Oriental, nunca visitei o Serengeti quando era pequena.
se é que alguém se lembra deles, Era um sítio reservado aos turistas, um sítio que consideráva-
são genericamente retratadas como mos fora do nosso alcance. Contudo, ao contrário de muitos,
figuras exóticas teimosamente agar- tive a sorte de ver, enquanto crescia, na década de 1970, alguns
radas a arcaicas tradições pastoris. dos animais selvagens do Quénia em estado selvagem. Eu e o
Estas representações não conse- meu irmão explorávamos a floresta dos arredores, trepávamos
guem captar a complexidade de um às árvores, nadávamos nos rios e atravessávamos pântanos a
vasto ecossistema que se estende vau. Um dia, vislumbrámos um animal engraçado que parecia
desde o Norte da Tanzânia ao Su- um porquinho-da-índia gigante, no alto de uma figueira. Um
doeste do Quénia e acolhe milhares vizinho parou o carro ao pé de nós, abriu a janela e explicou-
de espécies de plantas e animais. -nos que era um hírax, um parente distante do elefante.
Disse-nos que lhe levássemos todos os que apanhássemos var que a migração está saudável,
vivos e ele falar-nos-ia mais sobre eles. Levámos-lhe cobras, mas as tendências de longo prazo
lagartos, aves, rãs, ratos e, certa vez, um rato-gigante-africano contam uma história diferente. As
– que eu estava certa de ser uma nova descoberta. Este homem populações de mamíferos de grande
de paciência infinita era Richard Leakey, o paleoantropólogo, porte diminuíram em todo o país.
na altura director do Museu Nacional do Quénia. Jackson Looseyia, masai, opera-
Muito mais tarde, quando tinha 15 anos, consegui convencer dor de viagens e co-apresentador do
os meus pais a deixarem-me participar, com alguns colegas, programa televisivo “Big Cat Tales”,
numa expedição científica no Norte do Quénia, num local dis- disse-me que, na última década, ele
tante e desabitado onde era possível morrer de sede ou por ata- e os seus colegas guias repararam
ques de bandidos ou leões. Alguns anos mais tarde, quando a em dez espécies que quase desapa-
minha mãe me mandou para a escola de secretariado, fugi e fui receram: o cudo, o bambi-comum,
ter com Leakey. Ele arranjou-me um estágio que me projectou o bauala, o porco-bravo, o porco-gi-
para o meu sonho de ser vigilante da natureza. gante-da-floresta, o oribi, o macaco-
-colobo, a palanca-negra, a palanca-
VISITEI, POR FIM, O SERENGETI já depois dos -ruana e, claro, o rinoceronte-negro.
20 anos, quando trabalhava para o Serviço de Vida A maioria destes animais não figura
V Selvagem do Quénia. Certa vez perguntei a cien- no topo das listas turísticas, mas eles
tistas norte-americanos na Reserva Nacional de são barómetros essenciais da saúde
Masai Mara se tinham quenianos nas suas equipas. do ecossistema.
“Sim, claro”, responderam. “O motorista e o cozinheiro.” Na década de 1990, assistimos ao
Isto violava as regras das licenças de investigação: no entan- colapso da migração dos gnus no
to, ao regressar a Nairobi, o meu patrão limitou-se a encolher os ecossistema de Athi-Kaputiei, ime-
ombros. Ninguém esperava que os africanos fizessem investi- diatamente a sul de Nairobi. Nem
gação de campo. Apesar dessas atitudes, segui em frente e con- sequer nos apercebemos do que es-
cluí o doutoramento em Ecologia e Biologia Evolutiva. Adorava tava a acontecer até ser demasiado
trabalhar como cientista, mas há alguns anos percebi que tudo tarde. Hoje, o mesmo parece estar
aquilo que me era querido enfrentava uma grave ameaça. En- a acontecer, em maior escala, no
tão, mudei de ponto focal e concentrei-me na conservação. Serengeti. E a ameaça é aumentada
Um dos meus projectos é uma série documental chamada pelas alterações climáticas. Leakey
“Wildlife Warriors”, produzida por quenianos e para o público temia que perdêssemos a maior par-
queniano, que destaca os nossos compatriotas que desenvol- te da nossa vida selvagem no nosso
vem esforços para proteger os nossos animais. Quando apre- tempo de vida, se não enfrentásse-
sentei esta ideia pela primeira vez, disseram-me que os quenia- mos o problema a nível global.
nos não iriam ver o programa. No entanto, a resposta tem sido Se existir um ambiente capaz
impressionante. No ano passado, 51% do país assistiu ao docu- de suportar o massacre do aqueci-
mentário e recebemos e-mails e cartas de apoio, bem como su- mento, é o ecossistema do Seren-
gestões para novos temas, vindas de espectadores de todas as geti, um local com uma resiliência
idades. A mensagem é clara: os quenianos querem saber mais espantosa. Acho que somos capa-
sobre a sua vida selvagem. zes de defender estas terras bravias
A preocupação é justificada porque há muito em jogo. A mi- e preservá-las para as gerações fu-
gração dos gnus, que percorrem uma rota circular no ecossiste- turas, mas isso só acontecerá se os
ma do Serengeti, encontra-se sob pressão. A chegada anual de cidadãos quenianos e tanzanianos
mais de um milhão de gnus às margens do rio Mara parece pro- assim o exigirem͘ഩj

A NATIONAL GEOGRAPHIC SOCIETY está empenhada em dar a


conhecer e proteger as maravilhas do nosso mundo. Desde
2010 que financiamos Paula Kahumbu, Exploradora do Ano Rolex
National Geographic de 2021, que trabalha para proteger espécies
na África Oriental. Através da Campanha Wyss for Nature,
financiámos o trabalho de campo do explorador Charlie Hamilton
James, que passou mais de dois anos a fotografar as pessoas e os
animais do grande ecossistema do Serengeti.
ILUSTRAÇÕES DE JOE MCKENDRY
Há predadores
esfomeados nas
proximidades e, por
isso, as zebras
mantêm-se perto dos
gnus. Nas planícies
setentrionais, os dois
herbívoros tendem a
procurar zonas de
pastagem diferentes.
As zebras precisam de
mais alimento, preferin-
do comer erva mais
alta com os seus
compridos incisivos.
Os gnus trazem
consigo um ecossistema
completo. As garças-
-boieiras, por exemplo,
juntam-se aos gnus
que pastam na Tanzânia.
Pairam nas proximida-
des, chegando até
a pousar no dorso
deles, aguardando
que, com as patas,
eles levantem do solo
um cocktail de insectos.
A mortandade de gnus
é um banquete para
crocodilos e abutres
no rio Mara. Num só
dia, seis mil a nove mil
gnus (que nadam mal
e se confundem com
facilidade) podem
pisar-se uns aos outros
e afogar-se nas corren-
tes rápidas do rio.
Os gnus atravessam
o rio Mara num local
abaixo de Lookout Hill,
no Quénia. “Esta é
a fotografia clássica
de uma travessia”, diz
o fotógrafo Charlie
Hamilton James,
mas não nos fornece
a imagem completa.
Se apontar a máquina
fotográfica para um
local diferente,
poderá ver turistas
em todo o lado.
T EX TO D E PÁ G I N A

PETER GWIN 20

D ATA N AT I O N A L G E O G R A P H I C
DEZ. 2021 SERENGETI

UM

RE
IMPROVÁVEL
O ANIMAL MAIS IMPORTANTE
DO SERENGETI É O GNU, UM
ANTÍLOPE DE ASPECTO ESTRANHO
CUJA MIGRAÇÃO ANCESTRAL
IMPULSIONA UM COMPLEXO
CICLO DE VIDA.

I
A L I N H A S U RG I U no horizonte

A como um fio cinzento sobre


uma colcha verde-pálida,
mas, à medida que o avião se
aproximava, transformou-se numa
coluna composta por algumas centenas
de animais, serpenteando pela planície.
“Gnus”, gritou Charlie, elevando a voz
acima do rugido do motor. “É um grupo
pequeno.” Estávamos a norte da cratera
do Ngorongoro, na Tanzânia, e, como
era Março, sabíamos que os gnus iriam,
em breve, deslocar-se para noroeste,
entrando no Quénia.
Ali estavam eles, numa caravana per-
feitamente ordenada, seguindo a
direito. Eu conseguia distinguir os seus
chifres curvos e cabeças compridas,
subindo e descendo enquanto cami-
nhavam penosamente sob o sol da
manhã. Várias crias avançavam encos-
tadas aos flancos das progenitoras.
Há milhares de anos que as ma- -se sozinho. Parecia morte certa para uma criatura solitária.
nadas de gnus atravessam o grande A manada ignorara o rebelde e seguira o seu caminho. Aquele
ecossistema do Serengeti num cir- gnu está condenado, pensei.
cuito em sentido horário. Cada ani- Tendo em conta a pista de obstáculos que havia adiante, é
mal percorre cerca de 2.800 quilóme- normal concluirmos que muitas manadas de gnus estão con-
tros, a distância aproximada entre denadas. Vão ficar à mercê dos padrões inconstantes do clima,
Lisboa e Berlim. Seguem as chuvas corrigindo frequentemente o seu rumo e percorrendo longas
e comem a vegetação, adubando o distâncias para encontrar pasto fresco. Vão ser incessantemen-
solo e tornando-se alimento para os te atacadas por predadores. Nos últimos anos, também tive-
predadores. E aqui, marchando ao ram de se debater com obstáculos humanos e a concorrência
longo do trilho intemporal dos seus de crescentes rebanhos de ovelhas e cabras.
antepassados, esta manada dirigia- No entanto, o teste mais intimidante poderá ser outro: o rio
-se para noroeste. Mara, que os animais são obrigados a transpor para chegarem às
Atenção! Desta vez, não se enca- melhores terras de pasto na Reserva Nacional de Masai Mara, no
minhavam para noroeste. Quénia, e, mais tarde, para regressarem à Tanzânia. Charlie, que
“Por que estão a avançar para sul?”, filma e fotografa o Serengeti há mais de duas décadas, já assistiu
perguntei a Charlie em voz alta. a dezenas de travessias e viu milhares de gnus seguirem-se des-
“Não sei”, respondeu. “Andam à preocupadamente uns aos outros até à morte. “Estive cá no ano
procura de erva. Não há muito para passado e havia centenas de carcaças empilhadas nas margens
comer aqui.” e a flutuar no rio”, disse-me. “É um pesadelo.”
Viajei até à Tanzânia para assistir Muitos dos mais jovens e fracos são pisados quando as ma-
à grande migração de gnus, reunin- nadas descem as margens escarpadas cobertas de lama e mer-
do-me a Charlie Hamilton James, gulham no rio. Centenas afogam-se ou são arrastados sob as
que documenta as suas viagens há águas pelos crocodilos que abundam no rio. Quanto aos gnus
dois anos. Partimos de Arusha, com que conseguem chegar à outra margem, muitos são imediata-
o monte Kilimanjaro a pairar no ho- mente perseguidos pelos leões ou hienas que os aguardam.
rizonte. A terra desdobrara-se como Charlie contou-me que, certa vez, avistou um sobrevivente de
um mar de tons luxuriantes de ver- uma difícil travessia mudar inexplicavelmente de ideias minu-
de, uma manta de retalhos de explo- tos mais tarde e voltar para trás, repetindo todo o sofrimento,
rações de café e manchas de floresta para morrer ao tentar regressar ao local de onde acabara de sair.
densa, mas, depois de sobrevoar- É esse o grande enigma do gnu: a sua migração anual é um
mos a cratera, o terreno deu lugar a exemplo requintado do elaborado funcionamento do mecanis-
planícies amplas, formadas por flu- mo da natureza. Observados de perto, porém, são criaturas de
xos de lava antigos cobertos por ca- aspecto divertido e enigmático que podem parecer irremedia-
madas férteis de cinzas depositadas
pelos vulcões vizinhos.
Apenas um mês antes, a área que
se estendia lá em baixo era um tape-
te de erva altamente nutritivo, mas
OS GNUS
as chuvas tinham acabado e agora,
praticamente em todas as direc-
SÃO ESTÚPIDOS?
ções, o solo parecia ressequido, com
escassos tufos de erva. A coluna de “NENHUM ANIMAL
É ESTÚPIDO. ALGUNS
gnus parecia uma tribo perdida à
deriva, apanhada em campo aber-
to, alvo fácil para qualquer grupo de
leões ou família de hienas.
Foi então que reparei num gnu
SÃO MAIS ESPERTOS
tresmalhado. O animal olhara em
redor e começara a andar na direc-
ção oposta, como se tivesse concluí-
DO QUE OUTROS.”
do que o grupo estava a ir para o sítio
errado e tivesse decidido aventurar-
—EKAI EKALALE, GUIA QUENIANO
R E P O RTA G E M PÁ G I N A
U M R E I I M P R OVAV E L 23

D ATA N AT I O N A L G E O G R A P H I C
DEZ. 2021 SERENGETI

velmente burras. Contudo, há milénios que vivem nesta paisa- po. Esta constituição, mais pesada
gem complicada e implacável. Pensei no gnu solitário que ia na parte dianteira e equilibrada so-
aventurar-se sozinho e não pude deixar de me perguntar: como bre pernas finas, confere ao animal
conseguiu esta espécie improvável sobreviver? uma passada deselegante. Depois,
há ainda o ruído incessante e entor-
POUCO DEPOIS DE O SOL NASCER em Masai Mara, pecedor que produzem que levou os

P estou enrolado num olkarasha, o pano axadrezado


que os masai usam tradicionalmente como manto,
primeiros nómadas africanos a cha-
marem-lhe “gnu” numa tentativa de
para afastar o frio, e a beber café de uma garrafa replicar o seu som.
térmica com Ekai Ekalale, um guia queniano. O resultado é uma criatura tão es-
Observamos alguns gnus a pastar à frente do nosso Land Rover. tranha mas tão despretensiosa que
Estão suficientemente perto para conseguirmos ouvi-los masti- os colonos holandeses, quando a
gar bocas cheias de erva. Uma hora antes, vimos duas leoas mata- viram pela primeira vez, lhe deram
rem uma cria de búfalo para depois serem assaltadas por um um dos nomes menos imaginativos
bando de hienas. Isso aconteceu a menos de 1,5 quilómetros e do léxico animal: animal selvagem.
este grupo deve ter ouvido os gritos e guinchos frenéticos das Como terá a natureza inventado este
hienas, mas os gnus parecem alheios ao perigo. Comem alegre- Frankenstein do reino animal?
mente, abanando as orelhas grandes e as caudas para espantar Para descobrir, telefonei a Anna Es-
pequenas nuvens de moscas. tes, ecologista de Carleton College que
Pergunto a Ekai se ele acha que os gnus são estúpidos. “Ne- trabalha na Tanzânia. “Pode parar aí”,
nhum animal é estúpido”, diz. “Alguns são mais espertos do disse-me. “O meu pai levaria a peito
que outros.” No entanto, comenta que não sou o único a fazer se alguém tentasse impugnar o wilde-
essa pergunta. Há séculos que os gnus confundem as pessoas beest.” Telefonei a Anna porque o seu
que vivem mais perto deles: os masai e outras tribos da região. pai, o biólogo Richard Estes, escreveu
Uma lenda local explica que o gnu foi criado com partes que so- “The Gnu’s World”, uma história mi-
braram de outros animais. “Recebeu a cabeça de um facoque- nuciosa sobre a vida do gnu e uma
ro, o pescoço de um búfalo, as riscas de uma zebra e a cauda de contra-argumentação abrangente
uma girafa”, diz Ekai. Há muitas versões deste mito, incluindo para todas as piadas que possam ser
uma que diz que o gnu tem o cérebro de uma pulga. feitas. Richard iniciou a sua pesquisa
Pode ser um mito, mas parece uma boa descrição. Os gnus em 1962 e foi um dos primeiros cien-
parecem de facto desajeitados e simplórios. São membros da tistas a estudar o comportamento da
família dos antílopes, algo em que é difícil acreditar quando subespécie de gnu Connochaetes
os vemos ao lado dos seus primos – a elegante impala ou a gra- taurinus mearnsi no Serengeti. Anna
ciosa, mas acrobática, gazela de Thomson. Os seus pequenos cresceu aos saltos num Land Crui-
chifres e olhos minúsculos parecem demasiado pequenos para ser amolgado, seguindo as manadas
o seu focinho longo, acentuado por exageradas barbas com- enquanto o pai via os animais acasa-
pridas e desgrenhadas. E os seus corpos parecem desconfor- lar, parir, afastar predadores e, sim, a
tavelmente desequilibrados, com grandes corcundas atrás dos morrer em grandes números. O pai
ombros, que dão lugar a quartos traseiros inclinados, como um reformou-se e Anna continuou a es-
halterofilista que trabalhou apenas na parte superior do cor- tudar a ecologia do Serengeti.
10 km

RILEY D. CHAMPINE E MATTHEW W. CHWASTYK


FONTES: GRANT HOPCRAFT, THOMAS
MORRISON E CALLUM BUCHANAN,
UNIVERSIDADE DE GLASGOW; JARED STABACH,
INSTITUTO SMITHSONIAN DE BIOLOGIA DE
CONSERVAÇÃO; PARQUES NACIONAIS DA
TANZÂNIA; INSTITUTO DE INVESTIGAÇÃO DE
VIDA SELVAGEM DA TANZÂNIA; SERVIÇO DE
VIDA SELVAGEM DO QUÉNIA
Pensemos no assunto desta forma, sugeriu ela: uma das me- Os predadores estão preparados
didas do sucesso evolutivo é a população. Neste aspecto, o gnu, para este festim anual e deliciam-
com mais de 1,3 milhões de indivíduos, é, de longe o mamífero -se com os recém-nascidos, mas só
de grande porte mais bem-sucedido do Serengeti. Os elefantes, conseguem consumir uma peque-
com a sua tão apregoada inteligência e incontestável força, são na fracção deles. Passadas algumas
apenas cerca de 8.500; os leões, os chamados reis da planície, semanas, as crias e os adultos já co-
são uns insignificantes 3.000. Os concorrentes mais próximos meçaram a avançar para a paragem
são as gazelas de Thomson e as zebras (com umas poucas cen- seguinte, com os números engrossa-
tenas de milhares cada) e ambas bem atrás dos gnus. dos em quase um terço.
Este sucesso está directamente relacionado com o aspecto Fui à procura de outros exemplos
estranho das partes do seu corpo, que são adaptações meticu- do comportamento engenhoso dos
losamente afinadas ao longo de mais de um milhão de anos gnus. Descobri que parem sempre
para ajudá-los a percorrer enormes distâncias e a colher todos em plena luz do dia e isto pode pa-
os benefícios do singular ecossistema do Serengeti. Os peque- recer torná-los mais vulneráveis, só
nos chifres são minúsculos, se comparados com os enormes que os leões e as hienas costumam
capacetes cornudos do búfalo-africano, mas implicam menos caçar entre o crepúsculo e a alvorada
peso para carregar ao percorrer longas distâncias, ou ao atra- do dia seguinte. E as glândulas odo-
vessar rios a nado, e têm menos probabilidades de ficar presos ríferas dos seus cascos deixam um
no meio de vegetação densa. Os focinhos achatados permitem rasto de hormonas que ajudam os
pastar rente ao solo, como um cortador de relva. O dorso incli- animais a encontrar o caminho.
nado promove uma passada altamente eficiente e os tornoze- Em seguida, deparei-me com um
los têm grande elasticidade, permitindo-lhes saltar quando exemplo que me levou de volta ao
correm e contribuindo para a poupança de energia durante a avião, ao lado de Charlie, recordan-
longa migração. Por mais desajeitados que pareçam, os gnus do o mistério do gnu que parecia
são capazes de acelerar a 80 quilómetros por hora, fugindo ter-se aventurado sozinho. Se uma
às hienas e ultrapassando os leões. Também são bons a sentir progenitora se separar da sua cria,
onde a chuva cai e a dirigirem-se na direcção de tempestades sai da coluna e começa a andar na
distantes, que terão dado origem ao crescimento de mais erva direcção oposta – para o fim da fila,
quando a manada lá chegar. onde as crias se agrupam natural-
Contudo, a mais impressionante adaptação do gnu é a sua mente quando se perdem.
estratégia para trazer a nova geração ao mundo. A partir do
final de Janeiro, as manadas juntam-se nas mesmas planícies para
A N T E S D E PA RT I R
que eu e Charlie sobrevoámos, quando ainda estão cobertas de
erva luxuriante, alimentada por chuvas sazonais e com um solo
A o Serengeti, li sobre um
jovem ecologista que
rico em nutrientes vulcânicos. Ao contrário de muitas outras mudou a forma como
espécies de antílopes, o gnu não esconde os seus juvenis e as os cientistas viam o
fêmeas parem em campo aberto. Cerca de 500 mil crias de gnu gnu. Tony Sinclair cresceu na Tanzâ-
nascem em três semanas: aproximadamente 24 mil por dia. nia, estudou zoologia em Oxford e
Sete minutos depois de emergir do útero, a cria está de pé e, 24 passou mais de uma década a contar
horas depois, pode correr ao lado da progenitora. as populações de animais do Serengeti.

R E P O RTA G E M PÁ G I N A
U M R E I I M P R OVAV E L 25

D ATA N AT I O N A L G E O G R A P H I C
DEZ. 2021 SERENGETI
Em Abril de 1982, viajou até à Áfri-
ca do Sul para participar numa con-
´
AUMENTO DEMOGRAFICO
ferência de conservacionistas, onde A população de gnus do Serengeti
subiu ao pódio para anunciar notí- quintuplicou em menos de duas décadas,
cias espantosas: ele e outro ecolo- depois de, no início da década de 1960,
gista, Mike Norton-Griffiths, tinham um surto de peste bovina ter sido
contado a maior manada de ungula- praticamente erradicado.
dos de que havia registo.
O feito de calcular com precisão o 1,4 milhões
tamanho de uma manada migrató-
ria tão grande antes de ser possível
usar satélites e outras tecnologias
avançadas era impressionante, mas
ainda mais espectacular era o facto
de esta manada representar a maior
população de gnus do Serengeti. 260.000
A partir da década de 1890, os gnus
começaram a ser dizimados por sur-
1961 1977
tos de um vírus conhecido como
peste bovina, mortal para o gado do-
méstico e os seus primos selvagens, MOLDANDO O SERENGETI
incluindo o búfalo-africano e o gnu. O aumento súbito desencadeou repercussões
de grande alcance, dando aos cientistas uma
Uma vacina eficaz fora ampla- oportunidade rara de estudar o papel vital
mente administrada no início da dé- que os gnus desempenham no ecossistema.
cada de 1960, travando os surtos en-
tre o gado e o gnu estava a recuperar.
Aumento
Antes de a vacina erradicar a peste
bovina, a população de gnus do Se- Decréscimo

rengeti era aproximadamente de


Mais gnus comem mais erva e aumentam
260 mil. Em apenas 17 anos, porém,
as populações de predadores.
entre 1961 e 1977, mais do que quin-
tuplicara para 1,4 milhões. Tony
Sinclair mostrou-me uma fotografia
a preto e branco captada num dos
seus inúmeros voos: uma enorme Predadores

manada de gnus a cobrir a terra, de


uma ponta à outra do horizonte. Vegetação
Em Pretória, porém, os seus cole-
Outros herbívoros
gas não partilharam o entusiasmo.
“Muitas pessoas acusaram-nos de ir-
responsabilidade”, recordou na nos-
Menos erva significa menos A erva mais pequena
sa conversa via Zoom. “E aconse- combustíveis. As árvores permite a chegada de
lharam-nos a propor medidas para regeneram: uma bênção mais luz e nutrientes às
para muitas espécies. plantas mais baixas.
extinguir metade da população.”
Era esse o dogma prevalecente
Os gafanhotos e
defendido por muitos cientistas em as gazelas de Thomson
África, lembrou. As populações de têm menos alimento
disponível.
animais selvagens teriam de ser ma-
nipuladas para manter o equilíbrio.
“Tinham de ser controladas”, dis-
se-me, explicando o seu raciocínio.
“De outro modo, iriam enlouquecer
e destruir tudo.”

DIANA MARQUES. LAWSON PARKER


´
NOVOS EQUILIBRIOS Tony Sinclair não estava conven-
cido. “Ocorreu-me que poderíamos
Depois do apogeu em 1977, a população demonstrar que não era esse o caso
de gnus estabilizou a um nível sustentável da população de gnus do Serengeti.”
para a cadeia alimentar: cerca de 1,3 milhões Regressou ao Serengeti e, ao longo
de animais. Os seus números ainda podem dos anos que se seguiram, começou
flutuar com variações na precipitação anual. a notar mudanças significativas jun-
tamente com os seus colegas. Em
primeiro lugar, as populações de
1,3 milhões predadores estavam a crescer. Não
era assim tão surpreendente, pois
mais presas implicam mais alimen-
to para leões, hienas, chitas e leopar-
A pior seca do dos. Porém, também se detectaram
Serengeti no
século XX. menos incêndios. Os dois investiga-
dores constataram que a grande ma-
nada de gnus mantinha a erva mais
1961 1977 1985 1995 2005 2018
pequena e consequentemente não
havia fogos tão frequentes, nem tão
quentes, permitindo às árvores cres-
~
CO N T RO LO DA P O P U L A AO cer. Subitamente, grandes áreas que
Os animais com menos de 150 quilogramas costumam eram pradarias há quase um século
morrer devorados por predadores e os de peso supe-
rior por falta de alimento. Os gnus de porte médio ten-
estavam a ser reflorestadas.
tam evitar estas duas ameaças através da migração. Mais árvores significavam mais
insectos, mais aves e mais animais
Menos Mortes devido Mais
que comem as folhas das árvores,
a predação incluindo girafas e elefantes. Além
Peso disso, enquanto viajavam, os gnus
corporal Oribi
espalhavam os seus excrementos,
melhorando os solos e produzindo
mais erva para si e para outras es-
pécies. As populações de elefantes
Os gnus migrantes são mais
Impala cresceram, as borboletas prolifera-
pequenos e mais ágeis do que os
residentes. O risco de serem ram, até espécies modestas como o
atacados por predadores é
reduzido pelo facto de se escaravelho-bosteiro prosperaram.
100kg
deslocarem em grupos grandes. Topi Tony Sinclair apercebeu-se de que
o Serengeti estava a ser transforma-
do num lugar de que poucos seres
150kg Zebra humanos vivos conseguiam lem-
Búfalo brar-se. E o gatilho dessa mudança
fora o humilde gnu. Nessa época, o
Os gnus residentes são conceito de espécie fundamental
Girafa maiores e não migram. (um animal singularmente essencial
Estas manadas têm de
1.000kg partilhar o seu território para a estrutura e saúde de um ecos-
com os predadores ao sistema) era relativamente novo. Até
Rinoce- longo de todo o ano.
ronte então, todas as espécies fundamen-
tais identificadas eram predadores
Hipo-
pótamo de topo. No Serengeti, porém, o leão
Elefante não era o rei: eram as suas presas.
Pondo as coisas de uma forma
simples, “não existe Serengeti, pelo
menos um que reconhecêssemos,
10.000kg
sem o gnu”, disse-me Tony Sinclair.
FONTES: ANTHONY R.E. SINCLAIR, CENTRO DE INVESTIGAÇÃO DE BIODIVERSIDADE,
UNIVERSIDADE DA COLÚMBIA BRITÂNICA; GRANT HOPCRAFT E THOMAS MORRISON,
UNIVERSIDADE DE GLASGOW; SEAN CARROLL, THE SERENGETI RULES, 2016
Quando as viagens
internacionais diminuí-
ram devido à pandemia
da COVID-19, os
operadores turísticos
reduziram os preços,
dando a mais quenianos
a possibilidade de ver
a migração em Mara.
“O resultado foi brilhan-
te”, diz o fotógrafo
Charlie Hamilton
James. “Muitos quenia-
nos raramente têm
a oportunidade de
ver a sua própria vida
selvagem, o seu legado.”
R E P O RTA G E M PÁ G I N A
U M R E I I M P R OVAV E L 30

D ATA N AT I O N A L G E O G R A P H I C
DEZ. 2021 SERENGETI

E N Q UA N TO C O N D U Z I A pulsação”. Um predador pode desferir o golpe mortal, mas só

E nas planícies, mesmo


quando não avistava
porque o animal já estava enfraquecido pela fome extrema.
A equipa de Grant também está a estudar os pêlos da cauda
gnus, vislumbrava fre- de um gnu. Os pêlos, com cerca de trinta centímetros de com-
quentemente os seus primento, contam a história do último ano e meio da vida do
restos, identificáveis por um crânio animal. Os cientistas cortam-nos em segmentos minúsculos,
adornado com os reveladores chifres representando cada um cerca de duas semanas de crescimen-
do gnu nas proximidades. to, e depois analisam-nos em busca de isótopos e hormonas
Tomei conhecimento de que um que revelam uma variedade de dados sobre o indivíduo. “Ima-
dos protegidos de Sinclair, Grant gine que o animal escreve um diário todos os dias”, disse Hop-
Hopcraft, um ecologista da Univer- craft. “‘Estou prenhe. Tenho fome. Estou nervosa. É aqui que
sidade de Glasgow, estava a estudar tenho andado a comer.’ É essa a informação que nos conta.”
restos de gnus e telefonei-lhe. E o que revelam estes diários do gnu? Os animais estão sem-
Eu presumira que a maioria dos pre cheios de fome, sobretudo as fêmeas. “Uma fêmea de gnu
animais tinha sido morta, mas está à beira de morrer de fome ao longo de quase toda a vida”,
Grant relativizou essa ideia. “As pes- disse Grant. “Porque nunca pára de se reproduzir.”
soas pensam que os gnus são mortos Como me explicou, ao longo do ano as fêmeas ora estão pre-
por leões, hienas ou crocodilos”, dis- nhes ora andam a amamentar. E durante quatro meses, entre
se. “Mas os predadores são respon- Junho e Setembro, estão a fazer as duas tarefas enquanto mi-
sáveis por apenas cerca de 25 a 30% gram, o que exige enorme necessidade de energia aos seus or-
das mortes entre adultos.” A primei- ganismos. “Isso leva-as a concentrarem-se completamente em
ra causa de morte? Fome. consumir o máximo possível da erva mais nutritiva até se irem
Grant e a sua equipa estudam embora, disse. Depois têm de perceber imediatamente onde
ossos de gnu, sobretudo fémures. está a chover, correrem cinco ou seis quilómetros até ao pasto
“Uma das tarefas que fazemos é exa- disponível mais próximo e começarem a comer, competindo
minar o conteúdo de medula óssea”, com os outros milhões de gnus que estão a fazer exactamente o
disse, explicando que, mesmo após mesmo. “Este é o motor da migração.”
a morte, esta continua a conter a Lembrei-me do gnu que Charlie vira atravessar o rio Mara
maior reserva de gordura do animal. duas vezes no mesmo dia e perguntei a Grant se a fome poderá
Se o conteúdo de gordura da me- levar um animal a ignorar ameaças tão evidentes. “Sim”, disse.
dula estiver esgotado, isso informa “Alguns dos seus comportamentos são moldados pelo esforço
que o animal metabolizara toda a de evitar predadores, mas a fome é a força dominante.”
energia armazenada nas camadas
adiposas existentes sob a pele e em reservei um safari barato em
H Á MU I TO S A N O S ,
redor dos órgãos, até mesmo parte
do seu tecido muscular, mergulhan- H Nairobi e, em menos de uma hora, estávamos no
meio de uma manada de gnus, emoldurados pela
do, por fim, nas reservas de emer- linha do horizonte da cidade. O ar cheirava ao seu
gência dos seus ossos. Por essa altu- pungente estrume e ecoava o seu perpétuo ga-nu.
ra, disse, “estes animais são aquilo O guia explicou que esta manada com cerca de 20 mil animais
a que chamamos uma carcaça com migraria depois para as vizinhas planícies de Athi-Kaputiei para,
em seguida, regressar. Era uma versão em miniatura da grande Joseph Ogutu disse-me que mui-
migração Serengeti-Mara, que circulava mais longe, a sudoeste. tos desses obstáculos constrangem
Referi isto a Joseph Ogutu e ele acenou tristemente com agora a migração do Serengeti em
a cabeça. Já era tarde em Nairobi quando conversámos via Masai Mara. Enquanto os enume-
Zoom e ele puxava os óculos para cima e esfregava os olhos rava (mais rebanhos de ovelhas e
com o cansaço de um homem que passa os dias a analisar da- cabras, mais vedações nas comu-
dos referentes a uma história perturbadora. Nascido e criado nidades masai, mais água desviada
na zona ocidental do Quénia, Joseph é analista sénior de esta- pelas explorações agrícolas), ima-
tística da Universidade de Hohenheim, em Estugarda. A sua ginei um cardiologista a examinar
especialidade é contar as populações de animais selvagens do uma ressonância magnética, reve-
Quénia e modelar as suas alterações ao longo do tempo. lando bloqueios no sistema circu-
Ele conhece demasiado bem a história da manada de Athi- latório de um paciente e a calcular
-Kaputiei. No início da década de 2000, começou a recons- durante quanto mais tempo o co-
truir os conjuntos de dados referentes a estes gnus recolhi- ração continuará a bater. O núme-
dos pelo governo do Quénia. “O governo fez um belíssimo ro de gnus que vem para o Quénia
trabalho na recolha de dados”, disse. Mas estavam espalha- está a diminuir, disse o meu inter-
dos por antigas unidades de fita, disquetes, discos rígidos locutor. “E os que vêm passam um
e documentos trancados em arquivadores cujas chaves ti- mês e meio a menos por ano em
nham desaparecido. Mara do que antigamente.”
Enquanto recuperava a informação e a comparava com os Se deixassem de vir, haveria uma
números actuais, surgiu uma imagem preocupante: a migra- alteração dramática no ecossis-
ção colapsara. A manada diminuíra de cerca de trinta mil ani- tema, mas também na economia
mais em meados da década de 1970 para menos de três mil em queniana, uma vez que milhares
2014. Foram identificadas causas humanas, incluindo o cres- de turistas estrangeiros visitam
cimento urbano de Nairobi, mais quintas vedadas e a expan- Mara para assistir ao espectácu-
são dos caminhos-de-ferro, entre outras. Por fim, estas pres- lo. Perguntei a Ogutu se ele acha-
sões invasoras asfixiaram as rotas seguidas pelos gnus para va que a tendência era reversível.
encontrar pasto suficiente. Sem capacidade de se deslocarem “Os sinais dos dados que tenho es-
em liberdade, os gnus remanescentes pararam de migrar. tado a analisar e as previsões para
o futuro não dão grandes esperan-
ças”, disse. “Excepto se reservar-
mos terra e a protegermos, para
“IMAGINE QUE O ANIMAL sempre, para o gnu.”

ESCREVE UM DIÁRIO dias


N UM D O S Ú LT I MO S

N que passei em Mara,

TODOS OS DIAS. ‘ESTOU estava a passear de


carro pela savana com

PRENHE. TENHO FOME.


Charlie e Ekai quando
avistámos um jovem gnu sozinho, a
galopar pela estrada. Não parecia

ESTOU NERVOSA. É AQUI perseguido. Ia simplesmente a correr


sozinho, um comportamento estra-
nho para um gnu. Conseguimos
QUE TENHO ANDADO A aproximarmo-nos e conduzimos ao
seu lado durante algum tempo. Ele

COMER.’ É ESSA A INFOR- ignorou-nos, com a cabeça a subir e


a descer e os olhinhos focados na
estrada à sua frente. Onde iria este
MAÇÃO QUE NOS CONTA.” animal? Em que estaria a pensar? Na
altura, pensei que estava, segura-
mente, condenado a morrer, mas
— G R A N T H O P C R A F T, E C O LO G I S TA agora não tenho tanta certeza. j
IMPACTES HUMANOS SOBRE AS MANADAS
Mais vedações, maior número de turistas, mais explorações agrícolas A
ÁSI
a desviar água: estes factores não são as únicas razões pelas quais
os gnus visitam Masai Mara, no Quénia, com menos frequência e Á F R I C A
ali permanecem menos tempo. No entanto, produzem um impacte ÁREA QUÉNIA
inegável. É nesta região que os ungulados costumam aguardar pelo DO MAPA
fim da estação seca. Muitos seguem as chuvas rumo a sul, regressando TANZÂNIA
à Tanzânia, enquanto um grupo residente se desloca para as planícies
Loita. É essa migração que os peritos temem que possa terminar.

Milhares de quilómetros de Zona de cultura


vedações, de barreiras eléctricas de Estrada
Área construída
alta voltagem e cercas tradicionais
com ramos entrelaçados foram Acampamento
instalados desde 2011. turístico
OLOISUKUT
Rio Pista de aterragem

Vedações na
área de estudo Parques principais
Ponte Mara
de Masai Mara Áreas totalmente protegidas que MARA
proibem a agricultura e a caça
As coleiras com equipamento de Kawai
NORTE
localização de GPS ajudam os Áreas de conservação de Masai Mara
especialistas a documentar mudanças Terras geridas pelas comunidades no
nos padrões de migração dos gnus. Quénia que dão prioridade à

Mara
conservação e ao uso sustentável do solo
Localizações dos gnus
acompanhados desde 2019 5 km
PL A N Í C I E
Localizações dos gnus lo O L OR U K O TI
acompanhados entre 1999-2013
lo
o
lo
O Os jipes com turistas podem
t desorientar e intimidar os gnus e
s oi são mais um contributo para a
E diminuição preocupante das
a travessias do rio Mara.
a rp
c QU
Es TA
ÉN
IA
Nyamongo NZ
ÂN
IA

Mara

T A N Z Â N I A
Gibaso PARQUE NACIONAL
Ma
ra

SERENGETI

~
AUMENTO DA POPULA AO
Famílias numerosas e bons empregos levaram a um
aumento considerável da população humana em
ÁREA EM
Lago
DESTAQUE redor de Masai Mara entre 2009 e 2018. Os grupos
Victória pastoris que se deslocavam historicamente com o
NAROK seu gado fazem agora parte integrante da paisagem
RES. NAC. onde, em tempos, os gnus deambulavam livremente.
MASAI MARA
MARA Nairobi
Q
TA U É N
NZ IA
ÂN
IA População em regiões adjacentes ao Parque
ARUSHA
SIMIYU
30,4% QUÉNIA
aumento (CONDADO NAROK)
TANZÂNIA
Densidade populacional (ARUSHA, MARA, SIMIYU) 45,2% aumento
0,73
4,74 milhões 6,18 milhões milhões 1,06 milhões
Baixa Elevada (2009) (2018) (2009) (2018)
Siongiroi
Sigor
O rio Mara é uma fonte vital de
Mulot
água doce para os gnus na estação
N Kipkeigei seca. Primeiro, porém, têm de
ala atravessar campos agrícolas,
ya
Am
ngori
aglomerados humanos superlota-
dos e locais cheios de turistas
s

antes de chegarem às zonas de


protecção da vida selvagem a sul.

Ngorengore

ENONKISHU
MARA Narok
OLCHORRO NORTE Lemek Os gnus que tentam atravessar
OIROUA vedações ficam feridos ou
PLANÍCIE KILORITI morrem. Encurralados em pastos,
ie

ny podem ser difíceis de retirar. Em


Ki Outubro de 2019, um animal com
LEMEK Ol
as uma etiqueta de identificação
lin
Co ficou retido numa pastagem
durante quatro semanas.
Aitong

Ewaso N
gi r
Gnu isolado o
MOTOROGI e encurralado, 2019
PARDAMAT

Q U É N I A
P L A N Í C I E S L O I
T A
OLARE Olesere Maji Moto
IT A
OROK
MAR A-LO
GNUS RES
IDENTES EM
NABOISHO
OL KINYEI
A terra é cada vez mais adquirida
por privados e empresas de
exploração agrícola comercial. Isto
OLARRO
PL Talek NORTE mantém os gnus afastados das
AN
ek terras de pasto das planícies de
Í Tal Loita na estação das chuvas,
Nkoilale
CI

afunilando-os em aglomerados
E

NASHULAI ISAATEN
BU

mais sedentários a sul.


RR
UN

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Sekenani SUL CO
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N A C I O N A L Ol D
O
IT

M A S A I M A R A
A

Oloolaimutia

P L A N Í C I E S AUMENTO DO TURISMO 132


2019
Na última década, o ecossistema do
oi

S I A N A
Serengeti assistiu a um aumento
or

K
Ol dramático do turismo, sobretudo na
OLDERKESI região de Masai Mara. Os euros estrangei-
Sa
nd ros sustentam a economia local, mas o lixo
e os resíduos humanos, a procura de água
potável e o turismo automóvel exercem
pressão negativa sobre o ambiente.

QU
ÉN
TA IA Unidades turísticas instaladas
NZ
ÂN
IA
na região do Grande Serengeti
SOREN WALLJASPER E MATTHEW W. CHWASTYK;
ALEXANDER STEGMAIER
Primeira unidade inaugurada
FONTES: JARED STABACH E LACEY HUGHEY, INSTITUTO SMITHSONIAN
DE BIOLOGIA DE CONSERVAÇÃO; JAKE WALL, PROJECTO DOS ELEFANTES
1970
DE MARA; GRANT HOPCRAFT E THOMAS MORRISON, UNIVERSIDADE DE 18
GLASGOW; DANIEL SOPIA, ASSOCIAÇÃO PARA A CONSERVAÇÃO DA VIDA 2010
SELVAGEM DE MASAI MARA ; UNIVERSIDADE DE AARHUS
ENSAIO FOTOGRAFICO: AS PESSOAS

GUARDIAS DA TERRA
~

34
Quando era adoles- fronteira entre o
RIQUEZA DE TRADIÇÕES cente, Jeremiah Quénia e a Tanzânia

E GESTÃO DIFÍCIL Cheruiyot Maritim


matava animais para
para capturar os
caçadores furtivos.

DOS RECURSOS comer ou vender.


Agora, é vigilante da
Estes montam armadi-
lhas ou conduzem os
natureza e patrulha o animais até ravinas e
MOLDAM A VIDA. Serengeti junto da matam-nos com lanças.
No Quénia, o rio
Mara contorce-se entre
pequenas ilchampai
(explorações agrícolas
onde as culturas
estão intercaladas
com árvores) e culturas
de regueiro de escala
industrial. Juntas,
estas formas de
agricultura consomem
tanta água que a
altura do rio baixou
consideravelmente
nos últimos anos.
Aldeãos masai cuidam
dos animais em bomas
tradicionais (esta
localiza-se na Tanzânia):
a boma é uma proprie-
dade com casas e
currais delimitados por
vedações de ramos
espinhosos entrelaça-
dos para manter o gado
do lado de dentro e os
predadores à distância.
OS RAPAZES APRENDEM, Melubo Olenauni (à ovelhas e cabras e,
direita) e os filhos mais tarde, com vacas.
CEDO, A PROTEGER A MANADA regressam a casa na
Tanzânia depois de
Quanto se tornam
ilmurran, ou guerreiros,
E A VIVER EM HARMONIA recolherem as vacas. estão prontos para
Os rapazes aprendem serem responsáveis
COM A TERRA. o ofício de pastor com por toda a manada.
E N S A I O F OTO G R Á F I C O : A S P E S S O A S PÁ G I N A
GUARDIAS DA TERRA 41
A mesa de bilhar é
um centro social em
Irkeepusi, na Tanzânia,
onde os homens que
não estão a tratar do
gado jogam a dinheiro
durante o dia. As mulhe-
res trabalham em casa.
Ordenham vacas,
cortam e carregam
lenha e vão buscar água
para lavar e cozinhar.
Naserian Dennis
Lukumai dá banho a
Meng’oriki, de 3 meses,
o mais novo dos seus
quatro filhos, em casa,
na Tanzânia. Há uma
fogueira acesa 24 horas
por dia na zona
comunitária. Outras
duas salas abrigam
bezerros e ovelhas
que precisam de
atenção especial.
Enquanto a mulher
de 29 anos trata da
casa, o marido, Dennis,
trabalha como gerente-
-adjunto no acampa-
mento de safaris
Lemala Ngorongoro.
Ol Doinyo Lengai, ou
“Montanha de Deus”
no idioma masai, é
um vulcão activo na
Tanzânia. Considerada
o lar de Enkai, que
demonstra a sua ira com
erupções ou períodos
de seca, é um local de
peregrinação para os
pastores, que vão ali
rezar e pedir por chuva,
gado e filhos saudáveis.
Yohana Medukenya
trabalha num cabelei-
reiro em Irkeepusi,
inspirando-se numa
parede coberta de
fotografias de
celebridades. O jovem
de 22 anos prefere
arranjar o cabelo de
homens e mulheres no
MGZ Quality Hair Cuts
a cuidar das suas cinco
vacas. A família ajuda-o
a tratar dos animais.
À D I R E I TA

Os masai de Orboma
dão as boas-vindas a
turistas que pagam para
visitar a aldeia e
aprender tradições
como a adumu, ou
dança dos saltos, um
rito de passagem para
os rapazes. Eles
competem para ver
quem salta mais alto, a
direito, no ar, procu-
rando conquistar a
admiração de potenciais
noivas. “É fácil ser cínico
em relação ao turismo”,
diz o fotógrafo Charlie
Hamilton James, mas
espectáculos como este
são um intercâmbio
cultural. Os turistas
obtêm aquilo que
vieram ver e os masai
obtêm dinheiro para
sustentar as suas
comunidades.

E M B A I X O, À D I R E I TA

Na Escola para Guias


de Koiyaki, a oeste
de Nairobi, alunos
preparam-se para um
exame de condução.
Várias dezenas de
aspirantes a guias
turísticos, cerca de
metade dos quais com
bolsas de estudo,
frequentam cursos de
um ano para aprende-
rem a coordenar um
safari, desde a supervi-
são dos acampamentos
aos primeiros socorros.

TROCANDO OS OFÍCIOS TRADICIONAIS


NA ALDEIA POR CARREIRAS NO TURISMO,
OS JOVENS MASAI PREPARAM-SE PARA O FUTURO,
MAS TENTAM PRESERVAR OS MODOS DE VIDA TRADICIONAIS.

E N S A I O F OTO G R Á F I C O : A S P E S S O A S PÁ G I N A

GUARDIAS DA TERRA 50
Uma equipa de especialis- venenos é ilegal, mas
tas da organização Ol alguns pastores usam
Kinyei Conservancy, no pesticidas para matar
Quénia, cuida de grifos de os animais que caçam o
Rüppell e grifos-africanos, seu gado. Outros animais
espécies criticamente que comem os grifos
ameaçadas, que poderão envenenados, como os
ter-se alimentado de uma chacais, também podem
hiena envenenada. Dois morrer, numa tóxica
foram salvos. O uso de reacção em cadeia.
À D I R E I TA

A Floresta de
Nyakweri, em tempos
uma importante
maternidade de
elefantes, era terra
comunitária: dois mil
quilómetros de floresta
autóctone. Contudo, foi
subdividida e os masai
fizeram dela o seu lar:
deixaram de praticar a
transumância do gado.
Agora, tornaram-se
sedentários e mandam
as crianças para a
escola. As áreas
florestais têm pouca
utilidade para os
pastores. Por isso, os
masai contratam
pessoas de outras
tribos para abater
árvores e queimar
madeira, limpando
terreno e produzindo
carvão. Na África
Oriental, 80% da
população urbana usa
carvão como fonte de
energia para cozinhar.

E M B A I X O, À D I R E I TA
Francis Peenko
(apontando para o
ecrã) e outros vigilantes
da natureza trabalham
com o queniano Marc
Goss, do Projecto dos
Elefantes de Mara,
para pilotar um drone
equipado com uma
câmara térmica
e encontrar
caçadores furtivos.

O QUE ACONTECE QUANDO AS PESSOAS PRECISAM


DE MAIS TERRA, COMBUSTÍVEL E ALIMENTO?
AS FLORESTAS SÃO TRANSFORMADAS EM CARVÃO E
OS ANIMAIS SÃO CAPTURADOS PELOS CAÇADORES FURTIVOS.

E N S A I O F OTO G R Á F I C O : A S P E S S O A S PÁ G I N A

GUARDIAS DA TERRA 54
Leriro Tung’ung’wa,
líder da comunidade
Irkeepusi, ocupa-se
de questões como
a educação, os cuidados
de saúde, os direitos
de pastagem e o
fornecimento de água
para mais de sete mil
pessoas na margem
oriental da cratera
do Ngorongoro.
A
VOZ
ESPIRITUAL
DA
FLORESTA
T EX TO D E PÁ G I N A
YVONNE ADHIAMBO OWUOR 58

D ATA N AT I O N A L G E O G R A P H I C
DEZ. 2021 SERENGETI
A FLORESTA DE LOITA É O SERENGETI
ESCONDIDO, UMA REGIÃO BRAVIA
PRÍSTINA, SAGRADA PARA OS MASAI. UM
OCTOGENÁRIO, PROTECTOR DA FLORESTA,
VÊ UMA PAISAGEM MÍSTICA CADA VEZ
MAIS AMEAÇADA PELA GANÂNCIA.

numa expedição ao
PA RT I C I P E I R E C E N T E M E N T E

P interior do Serengeti. Não fui ao Serengeti que nos


habituámos a imaginar, o dos postais com savanas
ondulantes cobertas de capim amarelo, pontuadas
por acácias. E não fiquei num acampamento com tendas de
luxo, nem me juntei ao exército de carrinhas com turistas que
se amontoam em redor dos animais mortos pelos leões.
Na verdade, viajei até Loita, parte do vasto ecossistema do
Serengeti que não surge nos itinerários comuns. É um Seren-
geti escondido, de onde se avista uma paisagem luxuriante
de montanha que se ergue mais de dois mil metros acima do
nível do mar. Situa-se a 250 quilómetros de carro para
sudoeste de Nairobi e tem vista para a famosa Reserva Nacio-
nal de Masai Mara. No entanto, é um local desconhecido da
maioria das pessoas que visita o Quénia.
O meu plano era subir ao coração desta fortaleza verde, até
um local conhecido no idioma maa como Entim e Naimina
Enkiyio, ou a Floresta da Criança Perdida. São 330 quilóme-
tros quadrados de floresta húmida intacta, um território pra-
ticamente escondido à vista de todos. Uma vez ali chegada,
esperava conseguir uma audiência com o homem responsá-
vel pela supervisão destes domínios.
R E P O RTA G E M PÁ G I N A
A V O Z E S P I R I T U A L D A F L O R E S TA 60

D ATA N AT I O N A L G E O G R A P H I C
DEZ. 2021 SERENGETI

Em primeiro lugar, tenho de ex- dotado de excepcionais capacidades temporais e espirituais e


plicar que vivo num mundo longe instruídos em práticas de cura naturais e sobrenaturais.
de Loita: em Nairobi, uma metró- O Oloiboni Kitok, de estatuto mais elevado, vive entre mun-
pole com cerca de cinco milhões de dos como um intermediário, profeta e vidente; intercessor e
habitantes. Zumbe e sibila como um curandeiro; liturgista e estratego político; guardião das relações
dos pólos de inovação tecnológica entre a humanidade e a natureza. Há mais de 30 anos, Mokom-
de África. Aqui localiza-se a sede po ole Simel herdou o cargo vitalício de Oloiboni Supremo do
da delegação africana da ONU, bem pai, tornando-se o 12.º Oloiboni Kitok da linhagem do seu clã.
como uma infinidade de órgãos de É difícil descrever o alcance pleno da sua influência. Ele é
comunicação social internacionais o chefe espiritual de mais de um milhão de masai residentes
que transmitem atarefadamente as no Quénia e na Tanzânia. É procurado para conceder bênçãos
notícias do continente. Suportamos ou dar conselhos sobre assuntos mais ou menos importantes
engarrafamentos de perder a cabeça – desde o gado perdido por uma família a grandes planos de
e interrogamo-nos sobre as implica- conservação para Loita. Masai vindos de lugares tão distantes
ções locais das alterações climáti- como Samburu, no Norte do Quénia, fazem 300 quilómetros
cas. E claro, desde 2020, o flagelo da até Loita só para o verem. E não são apenas os masai que pro-
COVID-19 dominou-nos. curam os seus conselhos. Políticos de outros países já lhe pe-
Sentia-me claustrofóbica em Nai- diram bênçãos, conselhos e ajuda para conquistar as graças
robi e a oportunidade de viajar até do eleitorado.
Loita pareceu-me uma bênção. Na No entanto, ele não é um homem fácil de encontrar. Não po-
verdade, porém, eu não ia em busca demos simplesmente ir de carro até Loita e procurar o cami-
de alívio da cidade, mas sim da opor- nho até casa do Oloiboni Kitok. Temos de ser apresentados. Foi
tunidade de sentir o mundo de uma assim que vim ter com o amigo de um amigo chamado Mores
nova perspectiva: uma perspectiva Loolpapit, médico e profissional de saúde pública, um oloiboni
ancestral e intemporal. não-praticante e, por feliz acaso, sobrinho do Oloiboni Kitok.
E foi assim que, num dia de Maio, ao meio-dia, me sentei
O HOMEM QUE EU espe- sobre um tapete de erva verde e macia, adornado de minúscu-
rava ver era um líder las flores roxas e amarelas, debaixo de uma gigantesca árvore.
O masai chamado Naquele dia, o vento que soprava de leste trazia pequenas gotas
Mokompo ole Simel, de chuva gelada. Algures por perto, um burro zurrou.
também conhecido Mores demorara oito horas de viagem a conduzir até este lu-
como o Oloiboni Kitok. Nos séculos gar, por estradas que trepam gradualmente até à savana mon-
decorridos desde que os masai migra- tanhosa que serve de entrada a Loita. É aqui, na sua quinta, um
ram com o seu gado, descendo o vale conjunto de edifícios de tijolos de adobe com telhados de col-
do Nilo e instalando-se na África mo e currais, que o Oloiboni recebe em audiência. E eu queria
Oriental, incluindo na zona a que cha- pedir autorização para visitar Loita e entrevistá-lo.
maram Siringet (“o sítio onde a terra Neste dia, eu era uma de duas dezenas de visitantes, incluin-
se estende para sempre”), são guiados do uma delegação de cinco homens vinda da Tanzânia que
por homens que detêm o título de chegara antes do nascer do Sol. Fomos todos recebidos como
oloiboni. São provenientes de um clã peregrinos. Ninguém foi tratado como estranho.
O OLOIBONI A partir da sua casa, na
região isolada de Loita, no
Kitok. Seguindo uma longa
linhagem, ele incentiva a

SUPREMO
Quénia, Mokompo ole vigilância contra ameaças à
Simel passou três décadas floresta de montanha de
a aconselhar a comunidade crescimento antigo da
PAIRA ENTRE masai sobre problemas
grandes e pequenos, no
região, apelando aos seres
humanos que vivam em

MUNDOS. papel do seu líder espiri-


tual venerado, o Oloiboni
harmonia com a natureza.
KEVIN OUMA, CINEMATIC KENYA

De acordo com a tradição, nenhum convidado deve chegar lhas, cabras e vacas, despachando
de mãos a abanar e nós tínhamos trazido alguns artigos domés- um jovem até ao mercado e incum-
ticos – farinha, especiarias, livros de colorir e canetas – para bindo o seu filho Lemaron (primei-
oferecer às mulheres e aos filhos do Oloiboni. Eu segurava na ro na linha de sucessão) a prestar
mão quatro preciosos rebentos de cafezeiro: o meu tributo es- serviços de cura para acalmar três
pecial. Esperámos cerca de duas horas. visitantes nervosos.
Por fim, o homem apareceu. Assim que surgiu, começou logo O Oloiboni apoiava a sua passada
o bulício. Um coro de vozes humanas saudou-o e os emissários irregular num cajado grosso e enta-
ali reunidos avançaram na sua direcção. Um dos seus bezerros lhado. Um barrete de lã azul-escuro
preferidos correu para junto dele, as cabras baliam e um quin- cobria-lhe a cabeça. Vestia um man-
teto de girafas passeava lá ao fundo. to masai azul e vermelho chamado
Este octogenário andava ligeiramente inclinado, gesticu- olkarasha. À medida que se apro-
lando como um maestro de orquestra sinfónica, dizendo a ximava, estabelecia contacto visual
um pastor para que pastagens poderia conduzir as suas ove- com aqueles que o aguardavam.
Com rugas profundas no rosto, Levantei-me.
tinha os olhos castanho-dourados “Onde vais, na Floresta de Mokompo?”, perguntou Mores.
marcados por cataratas. Levantei- Eu não pensara em locais específicos. “À queda de água.”
-me para cumprimentá-lo. Num “Há muitas”, escolhe uma. “Escolhe uma.”
olhar prolongado, pareceu ler-me,
fazendo uma avaliação rápida das NA MANHÃ SEGUINTE, fortalecidos pela bênção do
minhas virtudes e defeitos íntimos.
A voz do Oloiboni era baixa e áspe- N Oloiboni, partimos para a queda de água escolhida.
Enquanto conduzíamos entre a neblina, pensei na
ra: “Estás cá”, disse em maa. lenda que deu nome à Floresta da Criança Perdida.
“Estou”, respondi. Respeitando o Em tempos, uma rapariga masai em busca dos
costume masai, curvei a cabeça para seus bezerros tresmalhados entrou na floresta. Os bezerros vol-
que ele pudesse tocar-lhe numa sau- taram para casa sem ela. Homens jovens andaram à sua procura,
dação. mas não a encontraram. A floresta decidira ficar com ela.
Depois alinhei os quatro rebentos Quando chegámos ao cume onde a nossa caminhada iria co-
de cafezeiro na erva entre mim e o meçar, havia três anciãos à nossa espera. Estes batedores eram
Oloiboni, agora sentado. Eu não falo homens majestosos, magros e rijos, vigilantes e taciturnos,
maa e o Oloiboni não fala suaíli, por excepto o gregário Langutut ole Kuya. A nossa queda de água
isso Mores apresentara-me e dissera ficava à distância de uma caminhada de cinco horas.
que seria o nosso intérprete. Passada a terceira travessia de um pântano, os sapatos já
“Fala”, disse o Oloiboni. estavam cobertos de lama e as pernas das calças encharcadas.
Então, contei-lhe uma história Não encontrei maneira de permanecer seca. Havia água por
sobre como um espírito errante da todo o lado. Riachos irrompiam do solo, enquanto outros ga-
floresta se tornara o cafezeiro das guejavam e evaporavam-se a meio do curso. Água escorria de
florestas do antigo Reino de Kaffa. rochas ou caía num longo fio de altos afloramentos rochosos.
Assumira um papel terapêutico, es- Toda esta água afluía àquilo que parecia um pântano, mas
timulando conversas que remenda- era na verdade um rio sinuoso, o Olasur. Fomos seguindo o seu
vam relações desfeitas. Era também crescimento à medida que se tornava mais largo e mais fundo.
um companheiro e presença litúrgi- O guia disse-nos que nele viviam peixes, hipopótamos e, preo-
ca consumida pelos monges ortodo- cupantemente, crocodilos. E depois desapareceu na floresta,
xos na antiga Abissínia (actual Etió- através de um túnel repleto de vegetação. Enquanto rastejáva-
pia) enquanto comungavam com mos entre os densos matagais, embora não víssemos o rio, os
Deus e com os santos. sons da sua corrente guiaram-nos como um farol.
Enquanto Mores interpretava, o Passado algum tempo, cambaleámos até um local conhecido
Oloiboni ouvia com muita atenção. pelos masai como “sítio das águas escaldantes”, poças quentes
Os seus olhos pareceram ficar mais borbulhando lentamente, alimentadas por fontes geotermais.
claros. Concluí a minha história: Subimos e descemos, deslizando por margens cobertas de cas-
“Por isso, trouxemos-lhe estes para calho, segurando-nos a lianas para trepar encostas íngremes
si e para esta floresta, se concordar, e descendo trilhos lamacentos aos tropeções para depois nos
para os depositar sob a sua protec- arrastarmos até ao cimo de mais um monte.
ção para que o espírito também pos- Esgueirámo-nos entre rochedos revestidos de musgo, trans-
sa encontrar refúgio aqui.” pusemos teias de aranha gigantes, tornámo-nos demasiado ín-
Silêncio. Chilreios de aves. Mur- timos de urtigas e formigas vermelhas e aprendemos a passar
múrios de homens. Espera. silenciosamente ao largo dos locais onde os guias adivinhavam
Por fim, o Oloiboni brindou-nos a presença de elefantes e búfalos. Consegui, no entanto, pisar
com um aceno de cabeça. Com um os excrementos de ambos.
sorriso nos lábios, virou bruscamen- Langutut reparava em tudo: apontou-nos e comentou a for-
te a cabeça. “Lemaron!”, chamou, se- ma das árvores, as texturas das folhas, os padrões dos líque-
guido por uma troca de palavras em nes nas rochas, a posição de uma árvore caída, a forma como
maa. Mores traduziu: “O Oloiboni os ramos estavam partidos, os arranhões na casca. Falou so-
Kitok dá-te as boas-vindas. Abençoa bre as trajectórias de voo de aves e insectos, a intensidade e
a tua visita. Podes ir onde quiseres. temperatura do vento, a textura da luz que penetra entre as
Podes entrar na floresta. Quanto à copas das árvores, o cheiro das coisas, a respiração das plan-
entrevista, espera pela sua palavra.” tas, o significado dos silêncios.
NAIROBI
Colinas Ngong A REDE DO SERENGETI
A região de Loita é menos conhecida, mas integra o
Mts. mais vasto ecossistema de Serengeti-Mara. É formada
Oloolkisailie
por uma floresta luxuriante 2.000 metros acima do
nível do mar, com vista para o vale do Rifte. Longe
das manadas de gnus que vivem nas planícies
cobertas de erva, a floresta isolada é palco de
G R cerimónias tradicionais masai e serve de refúgio a
A N elefantes e outros animais.
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Í C I G QUÉNIA
E D O S E R E N G E T I ÁREA EM
DESTAQUE

A ESCALA VARIA NESTA PERSPECTIVA. A DISTÂNCIA ENTRE A FLORESTA


Nairobi
N DE LOITA E NAIROBI É APROXIMADAMENTE DE 100 QUILÓMETROS. Floresta Loita
CHRISTINE FELLENZ. RELEVO: ERIC KNIGHT. FONTES: JAXA; OSM; PLANET NICFI TANZ.
À medida que caminhava, passei Um dos guias reparou num calau a piar e na mudança de
a concentrar-me apenas naquilo timbre do gro-gro-gro de um macaco colobíneo. Eram sinais de
que via à minha frente, reparando chuva. Retomámos os nossos passos lentos.
na maneira como o solo mudava de Por fim, emergimos acima de um vale vertiginoso revestido
castanho-escuro para vermelho- com penhascos de rocha castanha polvilhada de branco. Borbo-
-brilhante e depois quase negro, em letas azuis, brancas, verdes e amarelo-claras agitavam-se à nos-
seguida areia e marga, e, depois cor sa volta, assinalando o fim da estação das chuvas. Uma grande
de laranja e novamente para casta- ave de rapina descrevia círculos sobre a nossa cabeça. Lá em
nho, escuro e pálido. Comecei a ver baixo, avistava-se finalmente a queda de água, com o Olasur a
padrões nas folhas e sombras. precipitar-se a partir de um túnel rochoso, numa queda de cer-
Encontrámos várias colmeias. ca de 180 metros para o abismo existente sob a folhagem. Mais
“Também lhe chamam floresta do adiante, disse Langutut, juntar-se-ia ao rio Oloibortoto e, entre-
mel”, disse Langutut, reparando na gue ao seu curso natural, desaguaria no lago Natron.
abundância de arbustos com flor. Não podíamos ficar ali. Tínhamos de fazer o percurso de re-
Apontou para um bosque ao qual gresso através da floresta antes que anoitecesse e a neblina es-
chamou árvores do berçário. curecesse os pântanos. E, enquanto saíamos da floresta, apren-
“As árvores crescem em famí- di outras palavras em maa quando vislumbrámos a maior, mais
lias”, disse. “As árvores mais velhas cheia e mais luminosa das luas. Olapa.
cuidam e orientam as mais novas. Quando chegámos à hospedaria, o Oloiboni deixara-nos um
Partilham amizades entre si e com recado: conversaria comigo de manhã.
as pessoas.”
Descreveu o poder prático, medi- transportava um
U M G A L O D E P E N A S C A S TA N H A S
cinal e espiritual de algumas árvo-
res. Enquanto caminhávamos, ele U gafanhoto no bico enquanto passeava na residên-
cia do Oloiboni. Vacas e cabras foram pastar acom-
mencionou outros espaços sagra- panhadas por um jovem guardião. Ainda
dos no interior da floresta – grutas emocionada com as experiências da floresta, sen-
que continham riachos puros e arte tei-me sob a árvore colossal e esperei.
inscrita nas suas paredes. Falou Os olhos do Oloiboni iluminaram-se quando me viu. Não
sobre uma catedral de árvores gi- posso negar que senti a sua aura. Chamem-lhe carisma em
gantes onde o Oloiboni conduz as estado puro ou, possivelmente, o efeito de todas as lendas que
cerimónias mais privadas. Apren- ouvi, misturadas com as maravilhas da viagem do dia anterior.
di palavras elementares em maa, Ou talvez fosse a alegria de tropeçar num líder com uma alian-
como ewang’an (luz) e oloip (som- ça inabalável com o mundo natural. Vi uma simetria entre o
bra). Os meus ouvidos encheram- Oloiboni e a sua árvore, ambos enraizados, antigos e misterio-
-se de cantos de aves, sussurros do sos, ambos oferecendo sombra e abrigo a quem os procura.
vento, silvos e cliques de insectos As nossas conversas foram serpenteando como o Olasur.
e outras criaturas, o ritmo das go- Ele falou sobre a linhagem dos seus antecessores e da sua pro-
tas da chuva batendo nas folhas. le. Descreveu o que significava ser o Oloiboni Kitok: não era
O meu nariz encheu-se dos aromas uma escolha. Ele nascera nessa posição. Falou sobre a “sua”
da terra pungente. floresta: é um santuário e uma catedral, um refúgio e fonte

R E P O RTA G E M PÁ G I N A
A V O Z E S P I R I T U A L D A F L O R E S TA 64

D ATA N AT I O N A L G E O G R A P H I C
DEZ. 2021 SERENGETI
tado: O que disse ele? Em vez disso,
“FALÁMOS SOBRE mudei o tema da conversa para as
alterações climáticas.
A TERRA. SE PERDERMOS “Já ouvi falar nisso”, disse.
Já viu as estações mudar aqui?

A TERRA, PERDEMOS “O frio é mais intenso e mais fre-


quente, isso é verdade.”
E a seca?
A CULTURA. PERDENDO Ele franziu o sobrolho. “Só uma
vez, há cinco anos. Mas isso foi con-

A CULTURA, PERDEMOS sequência dos nossos desmandos.


Construímos vedações. Já emendá-
mos esse erro.”
O LUGAR. PERDENDO O tecelão voltou a trinar.
Tem alguma mensagem para

O LUGAR, PERDEMOS A uma humanidade confusa por for-


ça deste clima em mudança?

COMUNIDADE. PERDENDO Fez uma longa pausa. “O que pos-


so eu dizer?”, respondeu, finalmen-

A COMUNIDADE, PERDE-
te, com um sorriso bem-disposto.
“Somos convidados temporários
nesta casa a que chamamos vida.

MOS O NOSSO MODO DE Nesta casa que é a Terra, não deve-


ríamos já ter aprendido a compor-

VIDA. PARA SEMPRE.”


tarmo-nos de forma honrada?”
Para os masai, explicou, isto
significava aderir ao olmanyara.
É um termo difícil de traduzir.
—O OLOIBONI KITOK Noutra noite, em redor de uma
fogueira, Mores descreveu o ol-
manyara como um sistema de va-
lores que tem mais que ver com
de combustível. É o jardim de Deus, “a hospedaria da chuva”. conservação do que com custódia.
É uma escola, um supermercado, hospital, farmácia e uma Significa receptividade à natureza
casa de repouso. A perfídia humana ameaça-a, com a gula, o e noção da existência em todas as
orgulho, a luxúria e a inveja, em destaque. suas formas e tratá-la bem.
O Oloiboni referiu-se a vagas sucessivas de incursões de Trovões ressoaram ao longe. Es-
forasteiros: agentes governamentais duvidosos, falsos prega- tava a chover em Mara, um prelú-
dores e construtores ávidos. Falavam todos em termos subtis, dio para a retoma das primordiais
mas mortais: vedações, demarcação, escrituras, empréstimos migrações dos animais.
bancários, estradas atravessando a floresta. Aludiu a esque- “Nunca tem medo do futuro?”,
mas intermináveis, sobretudo de grupos internacionais de perguntei.
conservação com bolsos fundos que presumiam dizer às pes- “Deveria?”, gracejou. O ancião
soas o que era melhor para Loita. mudou de tom rapidamente e eu
Falámos sobre a importância da terra. “Se perdermos a voltei a ser de novo uma aluna na
terra, perdemos a cultura”, disse o Oloiboni. “Perdemos a sua presença. “Agora que estiveste
cultura, perdemos o lugar. Perdemos o lugar, perdemos a co- na nossa floresta, o que viste?”
munidade. Perdemos a cultura, perdemos a paz. Perdemos a “A minha ignorância”, respondi
comunidade, perdemos o nosso modo de vida. Para sempre.” rapidamente. “Pensava que a flo-
Sentámo-nos em silêncio. Vi um Atlas idoso, sustentando resta era só árvores.”
não só os céus, mas também a sua Terra. Um tecelão trinava O Oloiboni riu-se. Era um som
insistentemente à distância. O Oloiboni olhou na sua direc- jovial. Fez que com todos se rissem
ção. A tranquilidade instalou-se nele. Eu deveria ter pergun- também. “E que mais viste?” j
E N S A I O F O T O G R A F I C O : O S A N I M A I S S E LVA G E N S

LUTA PELA SOBREVIVENCIA

66
NUMA REGIÃO DE
ABUNDÂNCIA E PENÚRIA,
A REFEIÇÃO SEGUINTE
É TUDO.

Rastos de pneus custa dos gnus terão dificuldade em


deixados por veículos das imediações. encontrar presas e
de safari marcam um Os recém-nascidos alguns morrerão de
lugar onde os leões são mais vulneráveis. fome. É o ciclo de
descansam em Hidden À medida que o ano expansão e contracção
Valley, na Tanzânia. avançar e as manadas da região do Serengeti,
Estamos em Março e seguirem as chuvas que dita a morte e a
estes predadores para norte em busca vida dos predadores
alimentaram-se bem, à de pastos, estes leões da planície.
Os guias da Reserva
Nacional de Masai
Mara, no Quénia,
chamaram-lhes os
“Cinco Magníficos”.
Estas chitas caçaram
juntas durante mais
de quatro anos.
Os machos costumam
competir entre si,
mas a espécie é social
e altamente adaptável.
Estes animais permane-
ceram juntos enquanto
a sua aliança lhes
foi vantajosa.
As brincadeiras com trombas nas cabeças ou
animais de idade pousar uma orelha
próxima fazem parte sobre a cabeça ou o
dos comportamentos dorso de outro animal.
sociais exibidos pelos Demonstram deferência
elefantes machos face ao macho domi-
adultos. Convivendo nante, aproximando-se
junto de um charco, dele e pondo a ponta
podem enrolar as da tromba na sua boca.
QUANDO O SOL As crias de hiena controlando a distribui-
emergem da toca ao pôr ção e a população de
SE PÕE EM MASAI MARA, do Sol. Maioritariamente
noctívagas, as hienas,
várias presas. As crias
nascem com os olhos
CHEGA A ALTURA caçadoras e necrófagas, abertos, os dentes
são um carnívoro intactos e os músculos
DE CAÇAR. essencial no Serengeti, prontos para a acção.
E N S A I O F OTO G R Á F I C O : O S A N I M A I S S E LVA G E N S PÁ G I N A
L U TA P E L A S O B R E V I V E N C I A 73
Os combates pela
hegemonia entre os
machos podem ser
selváticos, sobretudo
quando há uma fêmea
em jogo. As zebras
usam o casco e os
dentes afiados no
combate. Um confronto
violento pode terminar
com um crânio rachado,
ossos partidos, uma
cauda mordida ou
mesmo a morte.
Para proteger a presa
de uma hiena agressiva
ou de um leão esfo-
meado, este leopardo
carregou a impala que
matou para a copa de
uma árvore, de forma
a poder devorá-la
em paz. Esquivos,
os leopardos procuram
ramos bifurcados
robustos para se
instalarem. Basta uma
escorregadela para uma
presa acabada de matar
cair e ficar ao alcance
de outros predadores.
À D I R E I TA

O turismo acrescenta
complexidade ao
ecossistema. No dia em
que captou esta
imagem em Masai Mara,
o fotógrafo Charlie
Hamilton James contou
48 veículos nas
proximidades. As chitas
são mais dóceis do que
os outros felinos
quando se encontram
perto de seres humanos
e, por isso, não é raro
ver uma a dormitar à
sombra de um veículo
de safari. Com efeito, já
há poucas rotinas diárias
destes felinos, incluindo
a caça, que não envolva
o público humano.

E M B A I X O, À D I R E I TA
A perseguição não
costuma durar muito
depois de as chitas
escolherem a sua presa.
São capazes de acelerar
dos zero aos 100
quilómetros por hora
em três segundos. Aqui,
duas chitas correm para
atacar um par de gnus
que se separou da
manada, mas o
desfecho não é
garantido. As chitas
matam as presas menos
de metade das vezes e
os gnus conseguem
galopar a 80 quilóme-
tros por hora, por vezes
descrevendo zigueza-
gues enquanto fogem.

CRESCERAM RODEADAS DE
CARROS POR TODO O LADO.
NO ENTANTO, OS OLHARES HUMANOS
NÃO ABRANDARAM ESTAS CHITAS.

E N S A I O F OTO G R Á F I C O : O S A N I M A I S S E LVA G E N S PÁ G I N A
L U TA P E L A S O B R E V I V E N C I A 78
A coligação de chitas
conhecida como os
Cinco Magníficos abateu
um gnu. Por norma, um
felino derruba o animal
e os outros estrangulam-
-no até a presa sufocar.
Sempre alertas, as
chitas têm de estar
atentas a ladrões
abusadores como
os leões e as hienas.
Abutres alimentam-se
de uma carcaça de gnu.
As aves limpam os restos
mortais mais depressa
do que outros necrófa-
gos, diminuindo o risco
de propagação de
doenças a outros
animais ou aos seres
humanos. Milhões de
moscas acompanham as
deslocações das mana-
das, com vista a obter
uma parte das presas
abatidas e a oportuni-
dade de depositarem
os ovos nas carcaças.
À D I R E I TA

Hipopótamos banham-
-se num rio, ao nascer
do Sol. Os animais
passam 16 horas por
dia em rios e charcos,
onde dormem juntos
em grupos de 10 a
30 indivíduos para
protegerem os seus
juvenis, que são
particularmente
vulneráveis a crocodi-
los. À noite, pastam,
chegando a percorrer
dez quilómetros e
consumindo cerca de
40 quilogramas de
erva. Os seus excremen-
tos são ricos em
nutrientes que mantêm
a saúde dos rios
africanos e beneficiam
várias espécies.

E M B A I X O, À D I R E I TA
Além dos predadores,
as impalas também
enfrentam concorren-
tes. Os machos jovens
começam a praticar
lutas desde novos.
Quando crescem,
vigiam territórios e
guardam grupos de
fêmeas, suas parceiras.
Quando são obrigadas
a fugir dos leões,
leopardos, chitas e
hienas, as impalas
podem dar saltos de
dez metros de compri-
mento e três de altura.

SENTINDO A PRESSÃO DA DIMINUIÇÃO


DOS HABITATS E DAS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS,
ANIMAIS GRANDES E PEQUENOS LUTAM
PELA VIDA NESTE FRÁGIL ECOSSISTEMA.

E N S A I O F OTO G R Á F I C O : O S A N I M A I S S E LVA G E N S PÁ G I N A
L U TA P E L A S O B R E V I V E N C I A 84
Virando as costas à
chuva, uma manada de
fêmeas, com as suas crias
e um macho dominante
(com chifres) espera que
o tempo amaine. Estes
ruminantes dependem
maioritariamente de
sinais auditivos para
detectar o movimento
dos predadores.
A chuva abafa os sons
e limita a visibilidade,
mas este grupo
sente-se à vontade.
Ao nascer do Sol,
dois leões devoram
um elande abatido
na noite anterior.
Um bando de abutres
aguarda nas proximida-
des. Os abutres tiveram
de esperar para comer
a sua dose. Este par
de grandes felinos
foi visto a alimentar-se
da carcaça durante
três dias.
OS RISCOS SÃO ELEVADOS PARA Uma girafa alimenta-se
de uma acácia. Os
ramos. Como todas as
criaturas do ecossistema,
ANIMAIS E SERES HUMANOS animais adultos podem
devorar mais de 45
o mamífero terrestre
mais alto da Terra tem
NUMA PAISAGEM quilogramas de folhas de disputar o seu
por dia e as suas línguas território num habitat
SEM IGUAL. ajudam-nos a limpar os cada vez mais reduzido.
E N S A I O F OTO G R Á F I C O : O S A N I M A I S S E LVA G E N S PÁ G I N A
L U TA P E L A S O B R E V I V E N C I A 91
PADROES
T EX TO E F OTO G R A F I A S PÁ G I N A
JOEL SARTORE 92

ESPIRAIS. RISCAS. SIMETRIAS. NA NATUREZA, OS PADRÕES


AJUDAM OS ANIMAIS A CAMUFLAREM-SE OU A DESTACAREM-SE.

Uma colcha de retalhos


cobre o pescoço de uma
girafa no Zoológico de
Houston, no Texas.

À D I R E I TA : Este corpo
coberto de escamas é a
cauda de um camaleão do
Iémen. O animal enrola-a
numa espiral apertada
quando está assustado.

FOTOGRAFADO EM LINCOLN, NEBRASKA (CAMALEÃO)


D I Á R I O D E U M F OTÓ G R A F O
PA D R O E S

O contraste entre a luz e a escuridão ajuda a camuflagem de cada animal consoante o seu objectivo.
N O S E N T I D O H O R Á R I O A PA R T I R D E C I M A À E S Q U E R D A : Barata, lémure-de-colar, borboleta, papagaio
de Timneh, gineta, peixe-faca-palhaço.
PÁ G I N A
95

N O S E N T I D O H O R Á R I O A PA R T I R D E C I M A À E S Q U E R D A : Cacatua-negra-de-bico-curto, cisne-de-pescoço-
-preto, krait-malasiana, raia, tartaruga-diamante da Florida, peixe-palhaço-comum.
ANIMAIS FOTOGRAFADOS NO ZOOLÓGICO DE BUDAPESTE, HUNGRIA; JURNG BIRD PARK, SINGAPURA; HENRY DOORLY ZOO E AQUARIUM, OMAHA, NEBRASKA; AQUÁRIO TROPICAL DO PALAIS
DE LA PORTE DORÉE, PARIS; ZOOLÓGICO DE MELBOURNE, AUSTRÁLIA; SANTUÁRIO MELAKA DE BORBOLETAS E RÉPTEIS, MALÁSIA; ZOOLÓGICO INFANTIL LINCOLN, NEBRASKA; ZOOLÓGICO DO
CONDADO DE SEDGWICK, WICHITA, KANSAS; PARQUE ZOOLÓGICO MILLER, BLOOMINGTON, ILLINOIS: ZOOLÓGICO BREVARD, MELBOURNE, FLORIDA; AQUÁRIO DALLAS WORLD, TEXAS.
D I Á R I O D E U M F OTÓ G R A F O
PA D R O E S

Qual dos saltadores desta página é mais venenoso?


A pequena rã vermelha da espécie Oophaga sylva-
tica, no canto superior direito. A partir daí, no sentido
horário, os restantes são apenas levemente veneno-
sos: Phyllomedusa tomopterna, Atelopus limosus,
Atelopus balios e Hyalinobatrachium aureoguttatum.
PÁ G I N A
97

A maioria das rãs é noctívaga, mas as mais venenosas são activas durante o dia, quando as suas cores e
padrões atraentes podem avisar os predadores para se manterem afastados. As espécies nesta página,
no sentido horário a partir do topo, são Ranitomeya variabilis, Oophaga sylvatica, Oophaga histrionica
(tanto com manchas amarelas e laranja como com manchas amarelas) e Dendrobates tinctorius.

RÃS FOTOGRAFADAS NA FUNDAÇÃO PARA OS ANFÍBIOS, ATLANTA; ZOOLÓGICO DE HOUSTON; CENTRO JAMBATU, QUITO, EQUADOR; AQUÁRIO NACIONAL,
BALTIMORE; E COLECÇÕES PRIVADAS
D I Á R I O D E U M F OTÓ G R A F O
PA D R O E S

U N S S ÃO M A I S O U S A D O S ,
outros mais subtis. Alguns
U exibem-se e outros mistu-
ram-se. Alguns dos nos-
sos animais favoritos são
conhecidos pelos seus padrões. O que
seria um tigre ou uma zebra sem as
suas riscas?
Nos padrões que competem pelo
carácter mais garrido, as aves parecem
ganhar o prémio. A sete-cores da Ama-
zónia, o turaco-de-poupa-vermelha, a
pintadinha-verde e a arara usam cores
sem qualquer inibição. Vermelhos, ver-
des e azuis coexistem lado a lado em
designs vibrantes.
O peixe-anjo brilha como se fosse
néon debaixo de água. Os cama-
leões podem mudar os seus mati-
zes. Os sapos venenosos ousam
vestir-se com tons estranhos azuis e
amarelos – eficazes para dissuadir pre-
dadores, presumem os especialistas.
No guarda-roupa dos animais, todas
estas espécies são exibicionistas.
No entanto, a cor nem sempre é
importante. O preto, o branco e o cinza
podem oferecer uma ampla diversidade.
A altamente tóxica krait-malasiana é
despretensiosa com as suas faixas inco- ´
ARCA FOTOGRAFICA
lores. O corpo branco como a neve de ~
um cisne sul-americano está coroado
REPRODUZ PADROES

A National
Geographic
Society está
empenhada em
destacar e proteger
as maravilhas do
nosso mundo. Financia criou este projecto com
desde 2012 o projecto a duração de 25 anos,
Photo Ark de Joel procurando captar
Sartore, explorador da imagens que inspirem
National Geographic. os seres humanos a
Autor, professor e salvarem espécies e
conservacionista, além habitats ameaçados.
de fotógrafo, Sartore ILUSTRAÇÃO DE JOE MCKENDRY
PÁ G I N A
99

por uma cabeça negra como o carvão. O peixe-faca-palhaço parece O castanho será monótono?
usar vigias pretas e brancas nas zonas prateadas do dorso. Enquanto EM CIMA: O ocapi é listado como a
alguns aves se exibem a cores, o papagaio de Timneh e a cacatua- zebra, mas o seu parente mais próximo
-negra-de-bico-curto mantêm-se fiéis ao cinzento. é a girafa. Este animal das florestas
Outros padrões vão buscar inspiração à paisagem envolvente. húmidas da R. D. do Congo usa a língua
com mais de 42cm para se alimentar
O padrão de manchas escuras e turvas do galhudo imita as mudanças
de mais de cem espécies de plantas.
de padrões de escuridão e luz do fundo do oceano, pelo que as suas
À E S Q U E R D A : Este lagarto que vive no
barbatanas cintilam como a luz do Sol na água. As escamas de uma
interior seco da Austrália, o diabo-es-
cobra-chicote expressam os tons da floresta tropical que ela atravessa. pinhoso mostra uma pele espinhosa
O reino animal oferece padrões em abundância. Interpretamos o e blindada, mas não é apenas para
propósito de alguns, mas outros parecem formas e cores arbitrárias autodefesa. A sua configuração aju-
que se combinam com despreocupação. É a arte da natureza. j da-o a manter a humidade no corpo.

FOTOGRAFADO NO MUSEU DE MELBOURNE, AUSTRÁLIA (LAGARTO); WHITE OAK CONSERVATION, YULEE, FLORIDA (OC API)
B A S T I D O R E S | UMA FOTOGRAFIA

QUEM PORFIA SEMPRE ALCANÇA


T E X TO D E MARIE-AMÉLIE CARPIO

era um
C H A R L I E H A M I LT O N J A M E S “Os animais precisam de criar coragem
espectador regular da migração dos e isso pode demorar um dia”, explica.
gnus no Serengeti, mas a busca da “As hipóteses de acontecer algo minu- O fotógrafo
britânico Charlie
imagem perfeita estava a tornar-se tos antes do pôr do Sol eram quase
Hamilton James
traumática (ver páginas 4-5). “Quando nulas.” Quando Charlie começou, especializou-se em
se está a fotografar o ecossistema do resignadamente, a arrumar o equipa- fotografia de vida
selvagem e ambiental.
Serengeti, há uma imagem indispen- mento, Ekai, o motorista, gritou:
Fotografa em Masai
sável: a dos gnus a atravessar o rio «Charlie, eles estão a mover-se de Mara há 25 anos.
Mara”, explica o fotógrafo. Fotografá- novo!» O fotógrafo ergueu os olhos
-los, no entanto, é difícil. “É difícil con- para ver a manada a correr para os
seguir algo um pouco diferente de arbustos do outro lado do rio. Os ani-
todas as fotografias captadas anterior- mais pararam brevemente e amontoa-
mente.” Em 2020, após sete semanas ram-se na margem, levantando poeira.
no local, o fotógrafo ainda não tinha Por fim, um dos gnus avançou e o
“nada de especial”. grupo entrou na água. “Acho que não
No final de Setembro, a maior parte tirei o dedo do botão do obturador
das travessias já tinha acontecido. durante dez minutos”, diz. “A travessia
Charlie deu a si próprio mais uma foi épica, dramática e bela entre a
semana para captar o momento, mas poeira dourada levantada pelos cascos
voltou a não ter sucesso. No último dia, e iluminada pelo sol poente. Tirei cen-
meia hora antes do pôr do Sol, uma tenas de fotografias e sabia que, entre
manada de gnus surgiu junto do rio. elas, estaria a imagem desejada.”

CHARLIE HAMILTON JAMES (NO TOPO); REBECCA HALE/NATIONAL GEOGRAPHIC


Í N D I C E | 2021

JANEIRO FEVEREIRO MARÇO ABRIL


Abutres-pretos 2 Os mistérios dos vírus 2 Obcecados com Marte 2 O regresso
2 Nova Zelândia, modelo 30 Costa Rica: preservar 30 Encarcerados do lince-ibérico
de conservação o paraíso injustamente 26 O custo moral do
30 Animais terrestres 50 Cinco relatos de 56 Uma fronteira nas ar poluído
em movimento mulheres migrantes montanhas 54 Onde há fogo, há
40 Tráfico de menores 82 A expansão europeia 84 O ciclo das sardinhas fumo tóxico
66 Caçadores do Japão da vespa-asiática 100 Antologia botânica 64 A minifauna das copas
84 Mordeduras que matam 94 Lisboa a aguarela e fotográfica 82 A genialidade de Aretha

MAIO JUNHO JULHO AGOSTO


Especial: Oceanos 2 As múmias guanches 2 Demasiado calor Gaivota de Audouin
Pedra do Valado 28 Definir “raça” em seis para viver 2 Gladiadores
2 Segredos dos cetáceos palavras 24 A sombra que divide 32 Rãs de vidro
38 Oceano planetário 54 Idanha-a-Velha 38 Os fósseis da lixeira 46 Ensaios na Terra
44 O resgaste dos recifes 70 A Dama romana 54 Ciência dos campeões para viver no espaço
64 28 dias sob o mar da Amadora 66 Turismo de safari 66 Sobrevivência no
Mediterrâneo 74 A árvore do fim do mundo 90 O massacre racial deserto do Kalahari
88 Robert Ballard 88 O puma da Florida de Tulsa 90 Arte de trabalhar com giz

SETEMBRO OUTUBRO NOVEMBRO DEZEMBRO


Fortes no Minho Bioplásticos 2 100 maravilhas Especial: Serengeti
2 Os restos do Sistema Solar 2 Automóveis limpos da arqueologia 2 Migrações
24 Origens do planeta 26 Aviação ecológica 38 Ilhas Selvagens 20 O gnu
50 A perigosa cisão 46 Tradições pagãs na 50 Etiópia em guerra 34 Guardiãs do território
do Afeganistão Bulgária 66 Um mundo de gelo 58 A voz da floresta
72 11 de Setembro de 2001 78 Mar aberto em fusão 66 Luta pela sobrevivência
88 Zoo (marinho) de vidro 92 Marcas das minas 84 Paul Salopek 92 Padrões da natureza
N AT I O N A L G E O G R A P H I C | NA TELEVISÃO

Investigação:
Naufrágios no Oceano
E S T R E I A : 1 9 D E D E Z E M B R O, À S 2 2 H 3 0

Em Dezembro, o canal National Geographic estreia


uma nova série. Juntando mergulhadores e arqueó-
logos subaquáticos, a série conta os momentos
finais de alguns navios e daqueles que seguiam
Ataque a Pearl Harbor a bordo. A narrativa analisa os vestígios de cada
naufrágio e reconstitui, com tecnologia CGI, uma
E S T R E I A : 9 D E D E Z E M B R O, À S 2 3 H
versão verosímil de cada episódio. Os testemunhos
Em dois episódios, analisamos o dia que mudou pessoais e intensos dos participantes completam
o rumo da Segunda Guerra Mundial. Em Pearl a abordagem de uma série documental que não
Harbor, ocorreu uma das maiores tragédias da o deixará indiferente. Nos primeiros episódios
Marinha dos EUA. Revelamos os antecedentes da temporada, são abordados três naufrágios de
do ataque, desde o plano militar aos obstáculos
deparados aos militares japoneses, bem como submarinos alemães, incluindo o UC-66 (o primeiro
as oportunidades que poderiam ter ajudado os afundado por um avião) e o U480, o primeiro
norte-americanos a evitar o desastre. submarino furtivo do mundo.

EAU Vistos Observe os Emirados Árabes Unidos como nunca


viu: do céu. O espectacular crescimento desta nação
de Cima ao longo dos últimos 50 anos fica bem expresso
neste documentário, que não esquece as histórias
ESTREIA: 5 DE pioneiras, os primeiros projectos arquitectónicos e
D E Z E M B R O, À S 2 1 H 4 0 os cultivos possíveis nos limites do deserto.

MALLINSON SADLER PRODUCTIONS (NO TOPO);


BARCROFT STUDIOS (AO CENTRO); NATIONAL GEOGRAPHIC (EM BAIXO)
Wild Winter
S Á B A D O S E D O M I N G O S D E D E Z E M B R O,
A PA RT I R DA S 1 7 H O R A S

Em Dezembro, celebramos a magia do Inverno na


natureza com a série “Wild Winter”. Todos os fins-
-de-semana acompanhamos criaturas grandes e
pequenas no seu esforço para suportar a estação
mais dura e implacável do ano, sobrevivendo e
prosperando. Para o público português, o entu-
siasmo será redobrado com o episódio “Europe’s
Wild Islands”, onde o fotógrafo e documentarista
Nuno Sá (em cima, à direita), com várias reporta-
gens já publicadas nesta revista, serve de cicerone
nos recantos mais apetecidos dos Açores… em terra
e no mar. Os outros documentários da série serão
“Dr. Oakley, Yokon Vet Comp: Wild Winter”, “Wild
Arctic: Kingdom of Ice”, “Europe’s Wild Islands”,
“The Alps: Winter Fortress”, “Winters Hidden Won-
ders” e “Wild Alaska”.

Acreditamos que os mamíferos governam o


Planet of the mundo, mas os répteis são habitantes deste
Reptiles Stunt planeta há muito mais tempo. Por vezes vistos
como monstros e reminiscências de outras eras,
S E X TA S - F E I R A S , são frequentemente considerados primitivos,
ÀS 17 HORAS mas nada poderia estar mais longe da verdade.

NATIONAL GEOGRAPHIC (NO TOPO);


2008 JAMES BALOG/EXTREME ICE SURVEY AO CENTRO); EVOLVE FILMS (EM BAIXO)
P R Ó X I M O N Ú M E R O | JANEIRO 2022

Centenário da Chitas à venda A corrida ao Calendário 2022:


viagem aérea num tráfico global ouro no Peru Geoparque Oeste
Em 1922, Sacadura Cabral Desde a Antiguidade Uma das marcas do Começamos o ano com
e Gago Coutinho que o ser humano sente século XXI será segura- um novo calendário de
concluíram uma viagem fascínio pela elegância e mente a extracção parede, consagrado ao
aérea inédita no velocidade das chitas e mineira desenfreada. Geoparque Oeste, um
Atlântico Sul. Mais do há notícia de animais em Uma reportagem notável território de enorme
que uma proeza aero- cativeiro em cortes de dá conta de como o Peru geodiversidade, tradições
náutica, a viagem de 1922 reis do Egipto ou de vive uma autêntica vivas e cultura. Compre o
foi o triunfo dos métodos Roma. Lamentavel- corrida ao ouro, com seu exemplar na banca ou
de orientação imagina- mente, o tráfico persiste um elevado custo reserve-o junto do nosso
dos pelos dois aviadores. na actualidade. ambiental associado. serviço de assinaturas.

EMPRESA PÚBLICA DO JORNAL O SÉCULO, FOTOGRAFIAS DE


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N AT I O N A L G E O G R A P H I C IMAGEM CEDIDA PELO ANTT

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