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P T | DEZEMBRO 2021
O ESPECTÁCULO DO
SERENGETI
O N D E A L U TA P E L A S O B R E V I V Ê N C I A P R O D U Z
A LG UM A S DA S C E N A S M A I S FA S C I N A N T E S DA T E R RA
N.º 249 MENSAL
N AT I O N A L G E O G R A P H I C DEZEMBRO 2021
S U M Á R I O
ESPECIAL SERENGETI
F O T O G R A F I A S D E C H A R L I E H A M I LT O N J A M E S
2 20
Na capa
Gnus e zebras atravessam
juntos o rio Mara durante a
migração anual em busca
de pastos frescos. Quando
Migrações O gnu: um rei improvável alcançarem as planícies do
A migração dos gnus no O rei do Serengeti não é Norte, os dois herbívoros
Serengeti é um dos maiores o leão. É o gnu, um antílope procurarão zonas diferentes
espectáculos da Terra e este de aspecto caricaturesco cuja para se alimentarem.
comportamento espantoso é migração funciona como motor CHARLIE HAMILTON JAMES
crucial para a vitalidade de um de um ecossistema complexo.
ecossistema que junta milhares Todos os anos, mais de um
de espécies de fauna e flora. milhão destes ungulados
A investigadora queniana Paula percorrem quase três mil
Kahumbu analisa as ameaças quilómetros numa longa
que pendem sobre esta caminhada em que renovam
complexa rede biológica e traça a vegetação, adubam os solos
um diagnóstico para o futuro. e alimentam predadores.
T E X T O D E PA U L A K A H U M B U T E XTO D E P E T E R GW I N
R E P O R TA G E N S S E C Ç Õ E S
34
A S UA F OTO
VISÕES
EXPLORE
Ensaio fotográfico: O anfiteatro de Ammaia
Guardiãs da terra
O que sucede quando as A mão evolutiva
comunidades humanas necessitam De armadilha letal
de mais solo, mais combustível a peça de arte
ou mais alimentos? As florestas O quinto oceano do Sul
são abatidas e os animais vítimas
da caça furtiva. Uma teia de
tradições culturais e de aspirações E D I TO R I A L
de progresso envolve o Serengeti.
BASTIDORES
58
A voz espiritual da floresta
A região de Loita é pouco conheci-
Í N D I C E A N UA L
P RÓX I M O N ÚM E RO
66
Ensaio fotográfico:
Luta pela sobrevivência
Para as criaturas do Serengeti,
a vida é uma luta constante para
obter comida… e não ser comido.
Nesta região de abundância e
escassez, animais de todos os tama-
nhos sofrem com a fragmentação de Envie-nos comentários
para nationalgeographic
habitats num ecossistema já @ rbarevistas.pt
afectado pelas alterações climáticas.
Siga-nos no Twitter em
92
@ngmportugal
PA U L O N A B A I S D A C R U Z Algumas cidades ganham cores especiais no Outono, como se fossem roupas guardadas para dias
de gala. Viseu é um desses casos. “É neste período e com esta luz que todo o esplendor da cidade fica realçado”, diz o autor.
T I A G O S A PA G E No miradouro do Carrascalinho, em Freixo de Espada à Cinta, um abutre abre as asas talvez para secar a
plumagem ou aproveitar os últimos raios de Sol. “É a envergadura de um abraço onde os céus dominam”, explica o autor.
V I S Õ E S
Portugal
Do céu, a maior central solar
do país, instalada no concelho
de Alcoutim, é uma visão
perturbadora do futuro.
São 660 mil painéis solares
concentrados em 320 hectares:
uma potência instalada de
219 megawatts, cinco vezes
mais do que na Amareleja.
LUÍS FERREIRA
Costa Rica
Esta rã de vidro (Espadarana
prosoblepon) tem uma
distribuição ampla neste
país centro-americano e
caracteriza-se pela presença
da espinha umeral que os
machos usam para segurar a
fêmea durante a reprodução.
JAVIER LOBÓN-ROVIRA
Marrocos
No coração de Marraquexe, os
souks atraem os viajantes com a
sua explosão de cores, cheiros e
sons. A cerâmica chama a atenção
pelo excesso de cor. Pratos,
travessas, taças e tajines com
desenhos geométricos ou florais
e em tons garridos, preenchem
o chão e paredes destas lojas.
ARTUR CABRAL
E X P L O R E
O ANFITEATRO Portugal
Marvão
DE AMMAIA
Ammaia
N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Foi construído com
alvenaria na parte inferior
e a parte superior terá
sido de madeira.
%
0
sem custos de envio adicionais
E escolha o número da revista com
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que pretende iniciar a assinatura
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E S
D
DE
A HISTÓRIA
COMO NUNCA
LHE FOI
CONTADA
Porque a história deve ser
contada por quem mais sabe do assunto
Os nossos artigos são escritos por professores universitários,
historiadores, filólogos, autores de prestígio e especialistas.
Nº2
NAS BANCAS
E X P L O R E | FOTOGRAFIA
A MÃO EVOLUTIVA
de morcego frugívoro de cauda curta
revela ossos alongados. A asa do morcego
ilustra “como a receita para ‘produzir’
uma mão se modificou durante a evolu-
ção, conduzindo a inovações surpreen-
dentes”, explica Dorit Hockman. A imagem
FOTOGRAFIA DE DORIT HOCKMAN faz parte do trabalho desta bióloga para
E VA N E S S A C H O N G - M O R R I S O N “identificar as camadas do processo de
desenvolvimento embrionário” e perceber
melhor a erupção de formas físicas no reino
animal.— O L I V E R W H A N G
O QUINTO
RECENTEMENTE RECONHECIDO pela divisão cartográfica da National
Geographic Society, o oceano Antárctico liga o Árctico, o Atlân-
tico, o Índico e o Pacífico como uma divisão primária do ambiente
OCEANO
marinho da Terra. Nos nossos mapas, o limite norte estava defi-
nido no paralelo 600 Sul (com ajustes para o mar da Escócia e a
passagem de Drake), um compromisso forçado pela corrente
DO SUL
circumpolar antárctica (que circunda a Antárctida) e que flui de
oeste para leste. Os cientistas consideram estas águas, mais frias
e densas, mas menos salgadas, um oceano independente limitado
pela forte correnteza. — M AT T H E W W. C H WA S T Y K
Cabo Agulhas
ÁFRICA
OCEANO DO SUL
Canal de
ÍND TICO
Moçambique
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ATLÂNTICO SUL
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PACÍFICO SUL I. Auckland
Tasmânia
I. Stewart
FONTES: CENTRO AUSTRALIANO DE DADOS SOBRE A ANTÁRCTIDA; ORGANIZAÇÃO HIDROGRÁFICA INTERNACIONAL; NASA
«Acreditamos no poder da ciência, da exploração
e da divulgação para mudar o mundo.»
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MIQUEL APARICI, Director de Arte 3lj(6,'(17$1'&+,()23(lj$7,1*2)),&(lj Michael L. Ulica
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78548,$ Nesibe Bat RAMON FORTUNY, Director de Produção
D E Z E M B R O | EDITORIAL
ESPECIAL
SERENGETI
O Serengeti não morrerá
em magia,
TA LV E Z O L E I TO R N ÃO AC R E D I T E
mas alguns topónimos são mágicos para a
National Geographic. Representam um
ponto no mapa, mas têm também o poder
de evocar imagens e sensações e de con-
centrar nelas ressonâncias culturais pode-
rosas. Ouvimo-los e sorrimos ou trememos
consoante a carga ideológica e histórica
que lhes atribuímos. Krakatoa não é só o
nome de uma ilha indonésia. É o vulcão
dos vulcões. Tsavo não é apenas uma região
do Quénia. Representa o momento de uma
luta entre homens e leões, metáfora diabó-
lica do embate entre a tecnologia e a vida
selvagem em África. A menção ao Serengeti,
em contrapartida, desperta sempre um
sorriso. É um local abençoado pelos deuses.
O próprio nome masai significa «planícies
intermináveis», a primeira condição geo-
gráfica para a diversidade de habitats que,
por sua vez, permite a concentração de mais duas semanas de férias no então território No Parque Nacional do
de cinco centenas de espécies de aves e do Tanganica para poder avistar a migração Serengeti, dois leões
descansam no leito
mamíferos e inúmeras plantas e insectos. dos grandes ungulados do Serengeti. Grzi- seco de um lago.
A água é o outro sortilégio geográfico que mek sabia que os operadores turísticos
assegura a vida na região, condicionando alemães não tinham essa oferta disponível,
os movimentos neste ecossistema. Na esta- mas a pressão do público foi tão intensa
ção das chuvas, a água abunda, mas, quando que rapidamente se organizaram múltiplas
os céus não libertam água, resta um único viagens ao Serengeti. Grzimek transformara
rio perene, o transnacional Mara. A gestão os espectadores em activistas ambientais
dessa inevitabilidade fronteiriça influencia e os historiadores modernos concordam
todos os planos de gestão do território. que os seus documentários e a sua pressão
Todos os equilíbrios do Serengeti são sobre o governo britânico ajudaram a sus-
delicados. Como grande parte das actuais ter a destruição deste ecossistema precioso.
áreas protegidas em África, o parque come- Dedicamos a edição de Dezembro ao
çou por ser uma reserva de caça, um terri- território sagrado do Serengeti numa
tório colonial reservado a uma elite pagante altura em que a pressão humana em redor
que, com as balas das suas espingardas, da área protegida nunca foi tão intensa.
projectava em África a sua visão do mundo. Como um malabarista aprendiz, a gestão
Cedo se constatou, porém, que a natureza de um ecossistema é um dos equilíbrios
não é uma loja de conveniência onde os mais ingratos do mundo, exigindo a pon-
stocks são constantemente repostos. Com deração de todas as forças vivas e de todos
a Segunda Guerra Mundial em curso, foi os interesses, sem deixar cair ao solo qual-
criado o Parque Nacional do Serengeti. Mas quer uma das bolas que pairam no ar.
os problemas não cessaram. Bernhard Grzimek testemunhou a sua
Em 1960, o veterinário alemão Bernhard experiência num livro e num documentá-
Grzimek promoveu na televisão um dos rio premiados, que abriram caminho ao
maior bluffs da história mediática alemã. activismo ambiental na Alemanha. Intitu-
No seu programa televisivo Ein Platz für lavam-se: O Serengeti não morrerá”. Saiba-
Tiere, desafiou a audiência a encomendar mos ser dignos desse legado. j
O REI IMPROVÁVEL P O R P E T E R G W I N
P GINA 20
VOZ DA FLORESTA P O R Y V O N N E A D H I A M B O O W U O R
P GINA 58
XXXXXXXXXX 3
Gnus precipitam-se por
um barranco íngreme
na margem do rio Mara,
na sua demanda por
água e pasto fresco.
Todos os anos, cerca
de 1,3 milhões de
animais seguem as
chuvas sazonais num
circuito em sentido
horário, partindo da
Tanzânia para o Quénia
e regressando ao ponto
de partida. É a maior
migração terrestre
do planeta.
4
Todos os anos, em
Fevereiro, antes de
iniciarem uma viagem
extenuante para norte,
os gnus e as zebras que
acompanham a manada
reúnem-se para pastar e
parir nas planícies junto
da fronteira meridional
do Parque Nacional do
Serengeti, na Tanzânia.
Meio milhão de jovens
gnus nascem aqui todos
os anos: uma média de
24 mil por dia. As crias
conseguem caminhar
poucos minutos depois
de nascerem.
Há milhares de anos
que os gnus atravessam
as planícies da África
Oriental. As manadas
não têm um líder
natural, mas os trilhos
ajudam a orientá-las,
como uma memória de
grupo de viagens
anteriores. Nesta
viagem anual, formam
uma megamanada,
rodeada por outras
mais pequenas que se
separam para encontrar
boas terras de pasto.
UMA COMPLEXA
REDE BIOLÓGICA
T EX TO D E PÁ G I N A
PA U L A K A H U M B U 10
D ATA N AT I O N A L G E O G R A P H I C
DEZ. 202I SERENGETI
po-
N A I M AG I N AÇ ÃO Até o nome, Serengeti (que se pensa derivar da palavra “Maa”
que significa “planície sem fim”) é enganador. O Serengeti é
N
pular, o ecossistema
do Serengeti é uma constituído por muitas paisagens, incluindo savanas, bosques
paisagem africana e florestas ribeirinhas.
ancestral de planí- É o lugar que acolhe as últimas populações prósperas de al-
cies douradas a perder de vista, gumas espécies e onde os seres humanos vivem em equilíbrio
desde sempre inalterada. Girafas com os animais desde o início da nossa jornada. No entanto,
altas deslocam-se graciosamente alguns dos animais sobre os quais já aprendemos tanto correm
em sintonia. Manadas de elefantes o risco de desaparecer à medida que nós, humanos, reivindica-
atravessam ondas de capim. Leões mos cada vez mais os seus habitats e aquecemos o clima.
perseguem antílopes com chifres Para cientistas como eu, o Serengeti é uma cápsula do tempo
espiralados em caçadas sangrentas. de uma época imemorial e um indicador do nosso futuro. É uma
Linhas ziguezagueantes de gnus e rede intrincada de vida, que depende de paisagens situadas
zebras deslocam-se em constante para lá dos parques, reservas e zonas de conservação já criadas.
movimento. E as pessoas que vi- À semelhança da maioria das pessoas nascidas e criadas na
vem no Serengeti, masai e outros, África Oriental, nunca visitei o Serengeti quando era pequena.
se é que alguém se lembra deles, Era um sítio reservado aos turistas, um sítio que consideráva-
são genericamente retratadas como mos fora do nosso alcance. Contudo, ao contrário de muitos,
figuras exóticas teimosamente agar- tive a sorte de ver, enquanto crescia, na década de 1970, alguns
radas a arcaicas tradições pastoris. dos animais selvagens do Quénia em estado selvagem. Eu e o
Estas representações não conse- meu irmão explorávamos a floresta dos arredores, trepávamos
guem captar a complexidade de um às árvores, nadávamos nos rios e atravessávamos pântanos a
vasto ecossistema que se estende vau. Um dia, vislumbrámos um animal engraçado que parecia
desde o Norte da Tanzânia ao Su- um porquinho-da-índia gigante, no alto de uma figueira. Um
doeste do Quénia e acolhe milhares vizinho parou o carro ao pé de nós, abriu a janela e explicou-
de espécies de plantas e animais. -nos que era um hírax, um parente distante do elefante.
Disse-nos que lhe levássemos todos os que apanhássemos var que a migração está saudável,
vivos e ele falar-nos-ia mais sobre eles. Levámos-lhe cobras, mas as tendências de longo prazo
lagartos, aves, rãs, ratos e, certa vez, um rato-gigante-africano contam uma história diferente. As
– que eu estava certa de ser uma nova descoberta. Este homem populações de mamíferos de grande
de paciência infinita era Richard Leakey, o paleoantropólogo, porte diminuíram em todo o país.
na altura director do Museu Nacional do Quénia. Jackson Looseyia, masai, opera-
Muito mais tarde, quando tinha 15 anos, consegui convencer dor de viagens e co-apresentador do
os meus pais a deixarem-me participar, com alguns colegas, programa televisivo “Big Cat Tales”,
numa expedição científica no Norte do Quénia, num local dis- disse-me que, na última década, ele
tante e desabitado onde era possível morrer de sede ou por ata- e os seus colegas guias repararam
ques de bandidos ou leões. Alguns anos mais tarde, quando a em dez espécies que quase desapa-
minha mãe me mandou para a escola de secretariado, fugi e fui receram: o cudo, o bambi-comum,
ter com Leakey. Ele arranjou-me um estágio que me projectou o bauala, o porco-bravo, o porco-gi-
para o meu sonho de ser vigilante da natureza. gante-da-floresta, o oribi, o macaco-
-colobo, a palanca-negra, a palanca-
VISITEI, POR FIM, O SERENGETI já depois dos -ruana e, claro, o rinoceronte-negro.
20 anos, quando trabalhava para o Serviço de Vida A maioria destes animais não figura
V Selvagem do Quénia. Certa vez perguntei a cien- no topo das listas turísticas, mas eles
tistas norte-americanos na Reserva Nacional de são barómetros essenciais da saúde
Masai Mara se tinham quenianos nas suas equipas. do ecossistema.
“Sim, claro”, responderam. “O motorista e o cozinheiro.” Na década de 1990, assistimos ao
Isto violava as regras das licenças de investigação: no entan- colapso da migração dos gnus no
to, ao regressar a Nairobi, o meu patrão limitou-se a encolher os ecossistema de Athi-Kaputiei, ime-
ombros. Ninguém esperava que os africanos fizessem investi- diatamente a sul de Nairobi. Nem
gação de campo. Apesar dessas atitudes, segui em frente e con- sequer nos apercebemos do que es-
cluí o doutoramento em Ecologia e Biologia Evolutiva. Adorava tava a acontecer até ser demasiado
trabalhar como cientista, mas há alguns anos percebi que tudo tarde. Hoje, o mesmo parece estar
aquilo que me era querido enfrentava uma grave ameaça. En- a acontecer, em maior escala, no
tão, mudei de ponto focal e concentrei-me na conservação. Serengeti. E a ameaça é aumentada
Um dos meus projectos é uma série documental chamada pelas alterações climáticas. Leakey
“Wildlife Warriors”, produzida por quenianos e para o público temia que perdêssemos a maior par-
queniano, que destaca os nossos compatriotas que desenvol- te da nossa vida selvagem no nosso
vem esforços para proteger os nossos animais. Quando apre- tempo de vida, se não enfrentásse-
sentei esta ideia pela primeira vez, disseram-me que os quenia- mos o problema a nível global.
nos não iriam ver o programa. No entanto, a resposta tem sido Se existir um ambiente capaz
impressionante. No ano passado, 51% do país assistiu ao docu- de suportar o massacre do aqueci-
mentário e recebemos e-mails e cartas de apoio, bem como su- mento, é o ecossistema do Seren-
gestões para novos temas, vindas de espectadores de todas as geti, um local com uma resiliência
idades. A mensagem é clara: os quenianos querem saber mais espantosa. Acho que somos capa-
sobre a sua vida selvagem. zes de defender estas terras bravias
A preocupação é justificada porque há muito em jogo. A mi- e preservá-las para as gerações fu-
gração dos gnus, que percorrem uma rota circular no ecossiste- turas, mas isso só acontecerá se os
ma do Serengeti, encontra-se sob pressão. A chegada anual de cidadãos quenianos e tanzanianos
mais de um milhão de gnus às margens do rio Mara parece pro- assim o exigirem͘ഩj
PETER GWIN 20
D ATA N AT I O N A L G E O G R A P H I C
DEZ. 2021 SERENGETI
UM
RE
IMPROVÁVEL
O ANIMAL MAIS IMPORTANTE
DO SERENGETI É O GNU, UM
ANTÍLOPE DE ASPECTO ESTRANHO
CUJA MIGRAÇÃO ANCESTRAL
IMPULSIONA UM COMPLEXO
CICLO DE VIDA.
I
A L I N H A S U RG I U no horizonte
D ATA N AT I O N A L G E O G R A P H I C
DEZ. 2021 SERENGETI
velmente burras. Contudo, há milénios que vivem nesta paisa- po. Esta constituição, mais pesada
gem complicada e implacável. Pensei no gnu solitário que ia na parte dianteira e equilibrada so-
aventurar-se sozinho e não pude deixar de me perguntar: como bre pernas finas, confere ao animal
conseguiu esta espécie improvável sobreviver? uma passada deselegante. Depois,
há ainda o ruído incessante e entor-
POUCO DEPOIS DE O SOL NASCER em Masai Mara, pecedor que produzem que levou os
R E P O RTA G E M PÁ G I N A
U M R E I I M P R OVAV E L 25
D ATA N AT I O N A L G E O G R A P H I C
DEZ. 2021 SERENGETI
Em Abril de 1982, viajou até à Áfri-
ca do Sul para participar numa con-
´
AUMENTO DEMOGRAFICO
ferência de conservacionistas, onde A população de gnus do Serengeti
subiu ao pódio para anunciar notí- quintuplicou em menos de duas décadas,
cias espantosas: ele e outro ecolo- depois de, no início da década de 1960,
gista, Mike Norton-Griffiths, tinham um surto de peste bovina ter sido
contado a maior manada de ungula- praticamente erradicado.
dos de que havia registo.
O feito de calcular com precisão o 1,4 milhões
tamanho de uma manada migrató-
ria tão grande antes de ser possível
usar satélites e outras tecnologias
avançadas era impressionante, mas
ainda mais espectacular era o facto
de esta manada representar a maior
população de gnus do Serengeti. 260.000
A partir da década de 1890, os gnus
começaram a ser dizimados por sur-
1961 1977
tos de um vírus conhecido como
peste bovina, mortal para o gado do-
méstico e os seus primos selvagens, MOLDANDO O SERENGETI
incluindo o búfalo-africano e o gnu. O aumento súbito desencadeou repercussões
de grande alcance, dando aos cientistas uma
Uma vacina eficaz fora ampla- oportunidade rara de estudar o papel vital
mente administrada no início da dé- que os gnus desempenham no ecossistema.
cada de 1960, travando os surtos en-
tre o gado e o gnu estava a recuperar.
Aumento
Antes de a vacina erradicar a peste
bovina, a população de gnus do Se- Decréscimo
D ATA N AT I O N A L G E O G R A P H I C
DEZ. 2021 SERENGETI
Vedações na
área de estudo Parques principais
Ponte Mara
de Masai Mara Áreas totalmente protegidas que MARA
proibem a agricultura e a caça
As coleiras com equipamento de Kawai
NORTE
localização de GPS ajudam os Áreas de conservação de Masai Mara
especialistas a documentar mudanças Terras geridas pelas comunidades no
nos padrões de migração dos gnus. Quénia que dão prioridade à
Mara
conservação e ao uso sustentável do solo
Localizações dos gnus
acompanhados desde 2019 5 km
PL A N Í C I E
Localizações dos gnus lo O L OR U K O TI
acompanhados entre 1999-2013
lo
o
lo
O Os jipes com turistas podem
t desorientar e intimidar os gnus e
s oi são mais um contributo para a
E diminuição preocupante das
a travessias do rio Mara.
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Nyamongo NZ
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Mara
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Gibaso PARQUE NACIONAL
Ma
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SERENGETI
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AUMENTO DA POPULA AO
Famílias numerosas e bons empregos levaram a um
aumento considerável da população humana em
ÁREA EM
Lago
DESTAQUE redor de Masai Mara entre 2009 e 2018. Os grupos
Victória pastoris que se deslocavam historicamente com o
NAROK seu gado fazem agora parte integrante da paisagem
RES. NAC. onde, em tempos, os gnus deambulavam livremente.
MASAI MARA
MARA Nairobi
Q
TA U É N
NZ IA
ÂN
IA População em regiões adjacentes ao Parque
ARUSHA
SIMIYU
30,4% QUÉNIA
aumento (CONDADO NAROK)
TANZÂNIA
Densidade populacional (ARUSHA, MARA, SIMIYU) 45,2% aumento
0,73
4,74 milhões 6,18 milhões milhões 1,06 milhões
Baixa Elevada (2009) (2018) (2009) (2018)
Siongiroi
Sigor
O rio Mara é uma fonte vital de
Mulot
água doce para os gnus na estação
N Kipkeigei seca. Primeiro, porém, têm de
ala atravessar campos agrícolas,
ya
Am
ngori
aglomerados humanos superlota-
dos e locais cheios de turistas
s
Ngorengore
ENONKISHU
MARA Narok
OLCHORRO NORTE Lemek Os gnus que tentam atravessar
OIROUA vedações ficam feridos ou
PLANÍCIE KILORITI morrem. Encurralados em pastos,
ie
Ewaso N
gi r
Gnu isolado o
MOTOROGI e encurralado, 2019
PARDAMAT
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A terra é cada vez mais adquirida
por privados e empresas de
exploração agrícola comercial. Isto
OLARRO
PL Talek NORTE mantém os gnus afastados das
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ek terras de pasto das planícies de
Í Tal Loita na estação das chuvas,
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afunilando-os em aglomerados
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Serengeti assistiu a um aumento
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K
Ol dramático do turismo, sobretudo na
OLDERKESI região de Masai Mara. Os euros estrangei-
Sa
nd ros sustentam a economia local, mas o lixo
e os resíduos humanos, a procura de água
potável e o turismo automóvel exercem
pressão negativa sobre o ambiente.
QU
ÉN
TA IA Unidades turísticas instaladas
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na região do Grande Serengeti
SOREN WALLJASPER E MATTHEW W. CHWASTYK;
ALEXANDER STEGMAIER
Primeira unidade inaugurada
FONTES: JARED STABACH E LACEY HUGHEY, INSTITUTO SMITHSONIAN
DE BIOLOGIA DE CONSERVAÇÃO; JAKE WALL, PROJECTO DOS ELEFANTES
1970
DE MARA; GRANT HOPCRAFT E THOMAS MORRISON, UNIVERSIDADE DE 18
GLASGOW; DANIEL SOPIA, ASSOCIAÇÃO PARA A CONSERVAÇÃO DA VIDA 2010
SELVAGEM DE MASAI MARA ; UNIVERSIDADE DE AARHUS
ENSAIO FOTOGRAFICO: AS PESSOAS
GUARDIAS DA TERRA
~
34
Quando era adoles- fronteira entre o
RIQUEZA DE TRADIÇÕES cente, Jeremiah Quénia e a Tanzânia
Os masai de Orboma
dão as boas-vindas a
turistas que pagam para
visitar a aldeia e
aprender tradições
como a adumu, ou
dança dos saltos, um
rito de passagem para
os rapazes. Eles
competem para ver
quem salta mais alto, a
direito, no ar, procu-
rando conquistar a
admiração de potenciais
noivas. “É fácil ser cínico
em relação ao turismo”,
diz o fotógrafo Charlie
Hamilton James, mas
espectáculos como este
são um intercâmbio
cultural. Os turistas
obtêm aquilo que
vieram ver e os masai
obtêm dinheiro para
sustentar as suas
comunidades.
E M B A I X O, À D I R E I TA
E N S A I O F OTO G R Á F I C O : A S P E S S O A S PÁ G I N A
GUARDIAS DA TERRA 50
Uma equipa de especialis- venenos é ilegal, mas
tas da organização Ol alguns pastores usam
Kinyei Conservancy, no pesticidas para matar
Quénia, cuida de grifos de os animais que caçam o
Rüppell e grifos-africanos, seu gado. Outros animais
espécies criticamente que comem os grifos
ameaçadas, que poderão envenenados, como os
ter-se alimentado de uma chacais, também podem
hiena envenenada. Dois morrer, numa tóxica
foram salvos. O uso de reacção em cadeia.
À D I R E I TA
A Floresta de
Nyakweri, em tempos
uma importante
maternidade de
elefantes, era terra
comunitária: dois mil
quilómetros de floresta
autóctone. Contudo, foi
subdividida e os masai
fizeram dela o seu lar:
deixaram de praticar a
transumância do gado.
Agora, tornaram-se
sedentários e mandam
as crianças para a
escola. As áreas
florestais têm pouca
utilidade para os
pastores. Por isso, os
masai contratam
pessoas de outras
tribos para abater
árvores e queimar
madeira, limpando
terreno e produzindo
carvão. Na África
Oriental, 80% da
população urbana usa
carvão como fonte de
energia para cozinhar.
E M B A I X O, À D I R E I TA
Francis Peenko
(apontando para o
ecrã) e outros vigilantes
da natureza trabalham
com o queniano Marc
Goss, do Projecto dos
Elefantes de Mara,
para pilotar um drone
equipado com uma
câmara térmica
e encontrar
caçadores furtivos.
E N S A I O F OTO G R Á F I C O : A S P E S S O A S PÁ G I N A
GUARDIAS DA TERRA 54
Leriro Tung’ung’wa,
líder da comunidade
Irkeepusi, ocupa-se
de questões como
a educação, os cuidados
de saúde, os direitos
de pastagem e o
fornecimento de água
para mais de sete mil
pessoas na margem
oriental da cratera
do Ngorongoro.
A
VOZ
ESPIRITUAL
DA
FLORESTA
T EX TO D E PÁ G I N A
YVONNE ADHIAMBO OWUOR 58
D ATA N AT I O N A L G E O G R A P H I C
DEZ. 2021 SERENGETI
A FLORESTA DE LOITA É O SERENGETI
ESCONDIDO, UMA REGIÃO BRAVIA
PRÍSTINA, SAGRADA PARA OS MASAI. UM
OCTOGENÁRIO, PROTECTOR DA FLORESTA,
VÊ UMA PAISAGEM MÍSTICA CADA VEZ
MAIS AMEAÇADA PELA GANÂNCIA.
numa expedição ao
PA RT I C I P E I R E C E N T E M E N T E
D ATA N AT I O N A L G E O G R A P H I C
DEZ. 2021 SERENGETI
SUPREMO
Quénia, Mokompo ole vigilância contra ameaças à
Simel passou três décadas floresta de montanha de
a aconselhar a comunidade crescimento antigo da
PAIRA ENTRE masai sobre problemas
grandes e pequenos, no
região, apelando aos seres
humanos que vivam em
De acordo com a tradição, nenhum convidado deve chegar lhas, cabras e vacas, despachando
de mãos a abanar e nós tínhamos trazido alguns artigos domés- um jovem até ao mercado e incum-
ticos – farinha, especiarias, livros de colorir e canetas – para bindo o seu filho Lemaron (primei-
oferecer às mulheres e aos filhos do Oloiboni. Eu segurava na ro na linha de sucessão) a prestar
mão quatro preciosos rebentos de cafezeiro: o meu tributo es- serviços de cura para acalmar três
pecial. Esperámos cerca de duas horas. visitantes nervosos.
Por fim, o homem apareceu. Assim que surgiu, começou logo O Oloiboni apoiava a sua passada
o bulício. Um coro de vozes humanas saudou-o e os emissários irregular num cajado grosso e enta-
ali reunidos avançaram na sua direcção. Um dos seus bezerros lhado. Um barrete de lã azul-escuro
preferidos correu para junto dele, as cabras baliam e um quin- cobria-lhe a cabeça. Vestia um man-
teto de girafas passeava lá ao fundo. to masai azul e vermelho chamado
Este octogenário andava ligeiramente inclinado, gesticu- olkarasha. À medida que se apro-
lando como um maestro de orquestra sinfónica, dizendo a ximava, estabelecia contacto visual
um pastor para que pastagens poderia conduzir as suas ove- com aqueles que o aguardavam.
Com rugas profundas no rosto, Levantei-me.
tinha os olhos castanho-dourados “Onde vais, na Floresta de Mokompo?”, perguntou Mores.
marcados por cataratas. Levantei- Eu não pensara em locais específicos. “À queda de água.”
-me para cumprimentá-lo. Num “Há muitas”, escolhe uma. “Escolhe uma.”
olhar prolongado, pareceu ler-me,
fazendo uma avaliação rápida das NA MANHÃ SEGUINTE, fortalecidos pela bênção do
minhas virtudes e defeitos íntimos.
A voz do Oloiboni era baixa e áspe- N Oloiboni, partimos para a queda de água escolhida.
Enquanto conduzíamos entre a neblina, pensei na
ra: “Estás cá”, disse em maa. lenda que deu nome à Floresta da Criança Perdida.
“Estou”, respondi. Respeitando o Em tempos, uma rapariga masai em busca dos
costume masai, curvei a cabeça para seus bezerros tresmalhados entrou na floresta. Os bezerros vol-
que ele pudesse tocar-lhe numa sau- taram para casa sem ela. Homens jovens andaram à sua procura,
dação. mas não a encontraram. A floresta decidira ficar com ela.
Depois alinhei os quatro rebentos Quando chegámos ao cume onde a nossa caminhada iria co-
de cafezeiro na erva entre mim e o meçar, havia três anciãos à nossa espera. Estes batedores eram
Oloiboni, agora sentado. Eu não falo homens majestosos, magros e rijos, vigilantes e taciturnos,
maa e o Oloiboni não fala suaíli, por excepto o gregário Langutut ole Kuya. A nossa queda de água
isso Mores apresentara-me e dissera ficava à distância de uma caminhada de cinco horas.
que seria o nosso intérprete. Passada a terceira travessia de um pântano, os sapatos já
“Fala”, disse o Oloiboni. estavam cobertos de lama e as pernas das calças encharcadas.
Então, contei-lhe uma história Não encontrei maneira de permanecer seca. Havia água por
sobre como um espírito errante da todo o lado. Riachos irrompiam do solo, enquanto outros ga-
floresta se tornara o cafezeiro das guejavam e evaporavam-se a meio do curso. Água escorria de
florestas do antigo Reino de Kaffa. rochas ou caía num longo fio de altos afloramentos rochosos.
Assumira um papel terapêutico, es- Toda esta água afluía àquilo que parecia um pântano, mas
timulando conversas que remenda- era na verdade um rio sinuoso, o Olasur. Fomos seguindo o seu
vam relações desfeitas. Era também crescimento à medida que se tornava mais largo e mais fundo.
um companheiro e presença litúrgi- O guia disse-nos que nele viviam peixes, hipopótamos e, preo-
ca consumida pelos monges ortodo- cupantemente, crocodilos. E depois desapareceu na floresta,
xos na antiga Abissínia (actual Etió- através de um túnel repleto de vegetação. Enquanto rastejáva-
pia) enquanto comungavam com mos entre os densos matagais, embora não víssemos o rio, os
Deus e com os santos. sons da sua corrente guiaram-nos como um farol.
Enquanto Mores interpretava, o Passado algum tempo, cambaleámos até um local conhecido
Oloiboni ouvia com muita atenção. pelos masai como “sítio das águas escaldantes”, poças quentes
Os seus olhos pareceram ficar mais borbulhando lentamente, alimentadas por fontes geotermais.
claros. Concluí a minha história: Subimos e descemos, deslizando por margens cobertas de cas-
“Por isso, trouxemos-lhe estes para calho, segurando-nos a lianas para trepar encostas íngremes
si e para esta floresta, se concordar, e descendo trilhos lamacentos aos tropeções para depois nos
para os depositar sob a sua protec- arrastarmos até ao cimo de mais um monte.
ção para que o espírito também pos- Esgueirámo-nos entre rochedos revestidos de musgo, trans-
sa encontrar refúgio aqui.” pusemos teias de aranha gigantes, tornámo-nos demasiado ín-
Silêncio. Chilreios de aves. Mur- timos de urtigas e formigas vermelhas e aprendemos a passar
múrios de homens. Espera. silenciosamente ao largo dos locais onde os guias adivinhavam
Por fim, o Oloiboni brindou-nos a presença de elefantes e búfalos. Consegui, no entanto, pisar
com um aceno de cabeça. Com um os excrementos de ambos.
sorriso nos lábios, virou bruscamen- Langutut reparava em tudo: apontou-nos e comentou a for-
te a cabeça. “Lemaron!”, chamou, se- ma das árvores, as texturas das folhas, os padrões dos líque-
guido por uma troca de palavras em nes nas rochas, a posição de uma árvore caída, a forma como
maa. Mores traduziu: “O Oloiboni os ramos estavam partidos, os arranhões na casca. Falou so-
Kitok dá-te as boas-vindas. Abençoa bre as trajectórias de voo de aves e insectos, a intensidade e
a tua visita. Podes ir onde quiseres. temperatura do vento, a textura da luz que penetra entre as
Podes entrar na floresta. Quanto à copas das árvores, o cheiro das coisas, a respiração das plan-
entrevista, espera pela sua palavra.” tas, o significado dos silêncios.
NAIROBI
Colinas Ngong A REDE DO SERENGETI
A região de Loita é menos conhecida, mas integra o
Mts. mais vasto ecossistema de Serengeti-Mara. É formada
Oloolkisailie
por uma floresta luxuriante 2.000 metros acima do
nível do mar, com vista para o vale do Rifte. Longe
das manadas de gnus que vivem nas planícies
cobertas de erva, a floresta isolada é palco de
G R cerimónias tradicionais masai e serve de refúgio a
A N elefantes e outros animais.
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A V O Z E S P I R I T U A L D A F L O R E S TA 64
D ATA N AT I O N A L G E O G R A P H I C
DEZ. 2021 SERENGETI
tado: O que disse ele? Em vez disso,
“FALÁMOS SOBRE mudei o tema da conversa para as
alterações climáticas.
A TERRA. SE PERDERMOS “Já ouvi falar nisso”, disse.
Já viu as estações mudar aqui?
A COMUNIDADE, PERDE-
te, com um sorriso bem-disposto.
“Somos convidados temporários
nesta casa a que chamamos vida.
66
NUMA REGIÃO DE
ABUNDÂNCIA E PENÚRIA,
A REFEIÇÃO SEGUINTE
É TUDO.
O turismo acrescenta
complexidade ao
ecossistema. No dia em
que captou esta
imagem em Masai Mara,
o fotógrafo Charlie
Hamilton James contou
48 veículos nas
proximidades. As chitas
são mais dóceis do que
os outros felinos
quando se encontram
perto de seres humanos
e, por isso, não é raro
ver uma a dormitar à
sombra de um veículo
de safari. Com efeito, já
há poucas rotinas diárias
destes felinos, incluindo
a caça, que não envolva
o público humano.
E M B A I X O, À D I R E I TA
A perseguição não
costuma durar muito
depois de as chitas
escolherem a sua presa.
São capazes de acelerar
dos zero aos 100
quilómetros por hora
em três segundos. Aqui,
duas chitas correm para
atacar um par de gnus
que se separou da
manada, mas o
desfecho não é
garantido. As chitas
matam as presas menos
de metade das vezes e
os gnus conseguem
galopar a 80 quilóme-
tros por hora, por vezes
descrevendo zigueza-
gues enquanto fogem.
CRESCERAM RODEADAS DE
CARROS POR TODO O LADO.
NO ENTANTO, OS OLHARES HUMANOS
NÃO ABRANDARAM ESTAS CHITAS.
E N S A I O F OTO G R Á F I C O : O S A N I M A I S S E LVA G E N S PÁ G I N A
L U TA P E L A S O B R E V I V E N C I A 78
A coligação de chitas
conhecida como os
Cinco Magníficos abateu
um gnu. Por norma, um
felino derruba o animal
e os outros estrangulam-
-no até a presa sufocar.
Sempre alertas, as
chitas têm de estar
atentas a ladrões
abusadores como
os leões e as hienas.
Abutres alimentam-se
de uma carcaça de gnu.
As aves limpam os restos
mortais mais depressa
do que outros necrófa-
gos, diminuindo o risco
de propagação de
doenças a outros
animais ou aos seres
humanos. Milhões de
moscas acompanham as
deslocações das mana-
das, com vista a obter
uma parte das presas
abatidas e a oportuni-
dade de depositarem
os ovos nas carcaças.
À D I R E I TA
Hipopótamos banham-
-se num rio, ao nascer
do Sol. Os animais
passam 16 horas por
dia em rios e charcos,
onde dormem juntos
em grupos de 10 a
30 indivíduos para
protegerem os seus
juvenis, que são
particularmente
vulneráveis a crocodi-
los. À noite, pastam,
chegando a percorrer
dez quilómetros e
consumindo cerca de
40 quilogramas de
erva. Os seus excremen-
tos são ricos em
nutrientes que mantêm
a saúde dos rios
africanos e beneficiam
várias espécies.
E M B A I X O, À D I R E I TA
Além dos predadores,
as impalas também
enfrentam concorren-
tes. Os machos jovens
começam a praticar
lutas desde novos.
Quando crescem,
vigiam territórios e
guardam grupos de
fêmeas, suas parceiras.
Quando são obrigadas
a fugir dos leões,
leopardos, chitas e
hienas, as impalas
podem dar saltos de
dez metros de compri-
mento e três de altura.
E N S A I O F OTO G R Á F I C O : O S A N I M A I S S E LVA G E N S PÁ G I N A
L U TA P E L A S O B R E V I V E N C I A 84
Virando as costas à
chuva, uma manada de
fêmeas, com as suas crias
e um macho dominante
(com chifres) espera que
o tempo amaine. Estes
ruminantes dependem
maioritariamente de
sinais auditivos para
detectar o movimento
dos predadores.
A chuva abafa os sons
e limita a visibilidade,
mas este grupo
sente-se à vontade.
Ao nascer do Sol,
dois leões devoram
um elande abatido
na noite anterior.
Um bando de abutres
aguarda nas proximida-
des. Os abutres tiveram
de esperar para comer
a sua dose. Este par
de grandes felinos
foi visto a alimentar-se
da carcaça durante
três dias.
OS RISCOS SÃO ELEVADOS PARA Uma girafa alimenta-se
de uma acácia. Os
ramos. Como todas as
criaturas do ecossistema,
ANIMAIS E SERES HUMANOS animais adultos podem
devorar mais de 45
o mamífero terrestre
mais alto da Terra tem
NUMA PAISAGEM quilogramas de folhas de disputar o seu
por dia e as suas línguas território num habitat
SEM IGUAL. ajudam-nos a limpar os cada vez mais reduzido.
E N S A I O F OTO G R Á F I C O : O S A N I M A I S S E LVA G E N S PÁ G I N A
L U TA P E L A S O B R E V I V E N C I A 91
PADROES
T EX TO E F OTO G R A F I A S PÁ G I N A
JOEL SARTORE 92
À D I R E I TA : Este corpo
coberto de escamas é a
cauda de um camaleão do
Iémen. O animal enrola-a
numa espiral apertada
quando está assustado.
O contraste entre a luz e a escuridão ajuda a camuflagem de cada animal consoante o seu objectivo.
N O S E N T I D O H O R Á R I O A PA R T I R D E C I M A À E S Q U E R D A : Barata, lémure-de-colar, borboleta, papagaio
de Timneh, gineta, peixe-faca-palhaço.
PÁ G I N A
95
N O S E N T I D O H O R Á R I O A PA R T I R D E C I M A À E S Q U E R D A : Cacatua-negra-de-bico-curto, cisne-de-pescoço-
-preto, krait-malasiana, raia, tartaruga-diamante da Florida, peixe-palhaço-comum.
ANIMAIS FOTOGRAFADOS NO ZOOLÓGICO DE BUDAPESTE, HUNGRIA; JURNG BIRD PARK, SINGAPURA; HENRY DOORLY ZOO E AQUARIUM, OMAHA, NEBRASKA; AQUÁRIO TROPICAL DO PALAIS
DE LA PORTE DORÉE, PARIS; ZOOLÓGICO DE MELBOURNE, AUSTRÁLIA; SANTUÁRIO MELAKA DE BORBOLETAS E RÉPTEIS, MALÁSIA; ZOOLÓGICO INFANTIL LINCOLN, NEBRASKA; ZOOLÓGICO DO
CONDADO DE SEDGWICK, WICHITA, KANSAS; PARQUE ZOOLÓGICO MILLER, BLOOMINGTON, ILLINOIS: ZOOLÓGICO BREVARD, MELBOURNE, FLORIDA; AQUÁRIO DALLAS WORLD, TEXAS.
D I Á R I O D E U M F OTÓ G R A F O
PA D R O E S
A maioria das rãs é noctívaga, mas as mais venenosas são activas durante o dia, quando as suas cores e
padrões atraentes podem avisar os predadores para se manterem afastados. As espécies nesta página,
no sentido horário a partir do topo, são Ranitomeya variabilis, Oophaga sylvatica, Oophaga histrionica
(tanto com manchas amarelas e laranja como com manchas amarelas) e Dendrobates tinctorius.
RÃS FOTOGRAFADAS NA FUNDAÇÃO PARA OS ANFÍBIOS, ATLANTA; ZOOLÓGICO DE HOUSTON; CENTRO JAMBATU, QUITO, EQUADOR; AQUÁRIO NACIONAL,
BALTIMORE; E COLECÇÕES PRIVADAS
D I Á R I O D E U M F OTÓ G R A F O
PA D R O E S
U N S S ÃO M A I S O U S A D O S ,
outros mais subtis. Alguns
U exibem-se e outros mistu-
ram-se. Alguns dos nos-
sos animais favoritos são
conhecidos pelos seus padrões. O que
seria um tigre ou uma zebra sem as
suas riscas?
Nos padrões que competem pelo
carácter mais garrido, as aves parecem
ganhar o prémio. A sete-cores da Ama-
zónia, o turaco-de-poupa-vermelha, a
pintadinha-verde e a arara usam cores
sem qualquer inibição. Vermelhos, ver-
des e azuis coexistem lado a lado em
designs vibrantes.
O peixe-anjo brilha como se fosse
néon debaixo de água. Os cama-
leões podem mudar os seus mati-
zes. Os sapos venenosos ousam
vestir-se com tons estranhos azuis e
amarelos – eficazes para dissuadir pre-
dadores, presumem os especialistas.
No guarda-roupa dos animais, todas
estas espécies são exibicionistas.
No entanto, a cor nem sempre é
importante. O preto, o branco e o cinza
podem oferecer uma ampla diversidade.
A altamente tóxica krait-malasiana é
despretensiosa com as suas faixas inco- ´
ARCA FOTOGRAFICA
lores. O corpo branco como a neve de ~
um cisne sul-americano está coroado
REPRODUZ PADROES
A National
Geographic
Society está
empenhada em
destacar e proteger
as maravilhas do
nosso mundo. Financia criou este projecto com
desde 2012 o projecto a duração de 25 anos,
Photo Ark de Joel procurando captar
Sartore, explorador da imagens que inspirem
National Geographic. os seres humanos a
Autor, professor e salvarem espécies e
conservacionista, além habitats ameaçados.
de fotógrafo, Sartore ILUSTRAÇÃO DE JOE MCKENDRY
PÁ G I N A
99
por uma cabeça negra como o carvão. O peixe-faca-palhaço parece O castanho será monótono?
usar vigias pretas e brancas nas zonas prateadas do dorso. Enquanto EM CIMA: O ocapi é listado como a
alguns aves se exibem a cores, o papagaio de Timneh e a cacatua- zebra, mas o seu parente mais próximo
-negra-de-bico-curto mantêm-se fiéis ao cinzento. é a girafa. Este animal das florestas
Outros padrões vão buscar inspiração à paisagem envolvente. húmidas da R. D. do Congo usa a língua
com mais de 42cm para se alimentar
O padrão de manchas escuras e turvas do galhudo imita as mudanças
de mais de cem espécies de plantas.
de padrões de escuridão e luz do fundo do oceano, pelo que as suas
À E S Q U E R D A : Este lagarto que vive no
barbatanas cintilam como a luz do Sol na água. As escamas de uma
interior seco da Austrália, o diabo-es-
cobra-chicote expressam os tons da floresta tropical que ela atravessa. pinhoso mostra uma pele espinhosa
O reino animal oferece padrões em abundância. Interpretamos o e blindada, mas não é apenas para
propósito de alguns, mas outros parecem formas e cores arbitrárias autodefesa. A sua configuração aju-
que se combinam com despreocupação. É a arte da natureza. j da-o a manter a humidade no corpo.
FOTOGRAFADO NO MUSEU DE MELBOURNE, AUSTRÁLIA (LAGARTO); WHITE OAK CONSERVATION, YULEE, FLORIDA (OC API)
B A S T I D O R E S | UMA FOTOGRAFIA
era um
C H A R L I E H A M I LT O N J A M E S “Os animais precisam de criar coragem
espectador regular da migração dos e isso pode demorar um dia”, explica.
gnus no Serengeti, mas a busca da “As hipóteses de acontecer algo minu- O fotógrafo
britânico Charlie
imagem perfeita estava a tornar-se tos antes do pôr do Sol eram quase
Hamilton James
traumática (ver páginas 4-5). “Quando nulas.” Quando Charlie começou, especializou-se em
se está a fotografar o ecossistema do resignadamente, a arrumar o equipa- fotografia de vida
selvagem e ambiental.
Serengeti, há uma imagem indispen- mento, Ekai, o motorista, gritou:
Fotografa em Masai
sável: a dos gnus a atravessar o rio «Charlie, eles estão a mover-se de Mara há 25 anos.
Mara”, explica o fotógrafo. Fotografá- novo!» O fotógrafo ergueu os olhos
-los, no entanto, é difícil. “É difícil con- para ver a manada a correr para os
seguir algo um pouco diferente de arbustos do outro lado do rio. Os ani-
todas as fotografias captadas anterior- mais pararam brevemente e amontoa-
mente.” Em 2020, após sete semanas ram-se na margem, levantando poeira.
no local, o fotógrafo ainda não tinha Por fim, um dos gnus avançou e o
“nada de especial”. grupo entrou na água. “Acho que não
No final de Setembro, a maior parte tirei o dedo do botão do obturador
das travessias já tinha acontecido. durante dez minutos”, diz. “A travessia
Charlie deu a si próprio mais uma foi épica, dramática e bela entre a
semana para captar o momento, mas poeira dourada levantada pelos cascos
voltou a não ter sucesso. No último dia, e iluminada pelo sol poente. Tirei cen-
meia hora antes do pôr do Sol, uma tenas de fotografias e sabia que, entre
manada de gnus surgiu junto do rio. elas, estaria a imagem desejada.”
Investigação:
Naufrágios no Oceano
E S T R E I A : 1 9 D E D E Z E M B R O, À S 2 2 H 3 0