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INTERESSANTE HISTÓRIA

EDICIÓN
COLECCIONISTA
EDIÇÃO
BIBLIOTECA

LENDA
Vida, morte
e maldição

ÉPOCA
O dia-a-dia na
corte do faraó

TESOUROS
As últimas
descobertas

EGIPTOLOGIA
O que falta
descobrir

TUTANKAMON
“Possa o teu espírito viver
e durar milhões de anos,
tu que amas Tebas, sentado
com a cara ao vento norte,
os olhos cheios de felicidade”

INSCRIÇÃO NUMA TAÇA DE ALABASTRO


DO TÚMULO DE TUTANKAMON
ALBUM

“Ó, bom rei, volta à tua casa!


Apazigua o teu coração, não há qualquer dos teus inimigos!
Junto a ti, as tuas duas irmãs protegem
o teu féretro, chamam-te em pranto!
Regressa ao teu féretro!
Observa as mulheres, fala-nos!
Rei, nosso senhor, afasta todas as penas dos nossos corações!”

V
oltar a casa. Era o que pediam Ísis e Neftis nesta antiga
litania (papiro Berlim 3008) ao seu irmão, o deus Osíris.
Voltar a casa depois da sua morte. Melhor, apesar
da sua morte, porque no Antigo Egito a morte não era
o fim da vida. Com esta nova série de especiais SUPER História,
também desejamos voltar a casa, a uma conceção da história rica
em conhecimento e aventura. Desejamos ler, com os olhos curiosos
e atrevidos da infância, essas histórias passadas que nos tornaram
quem somos. Histórias escritas pelos melhores especialistas
em cada matéria, capazes de contagiar-nos com o seu entusiasmo,
de partilhar erudição sem falar de cátedra. Textos, seguindo Walter
Benjamin, sempre contra o pêlo, para não ficarmos com uma
única visão das coisas, para continuarmos a interrogar-nos.
Começamos com o faraó menino, Tutankamon. Se Carter disse
“não tenho vergonha de confessar que, ao vê-lo, fiquei com um nó
na garganta”, também não nos custa afirmar que nos emocionámos
mais de uma vez com estas páginas. O saber é uma paixão.

C.S.

3
Conteúdos
10 26
EGITO ETERNO O REBELDE DE AMARNA
De onde vem a paixão Akhenaton, pai e antecessor de Tutankamon,
pelo país do Nilo? rompe com a ordem religiosa.

38
QUEM FOI TUTANKAMON?
Como era o seu dia-a-dia? Que educação
recebeu? Últimas descobertas.

48
A IMPORTÂNCIA DE UM NOME
Para assinalar o regresso à ordem tradicional,
o faraó mudou de nome.

54
A LENDA DA MALDIÇÃO
As estranhas mortes que rodearam
a descoberta cobriram-na de mistério.

58
A ÉPOCA DA XVIII DINASTIA
Como se vivia naquela altura?
O que se passava no Egito?

18
HOWARD CARTER
Quem era este
arqueólogo sem
formação que conseguiu
transformar a sua
paixão em realidade?

4
68
COMO VIVIAM AS MULHERES?
O que sabemos sobre elas, a partir
dos escritos nos túmulos e outros textos.

88
MORTE E VIAGEM AO INFRAMUNDO
As crenças sobre o Além foram mudando
ao longo da história do Egito.

100
O VALE DOS REIS
A última morada dos faraós tutméssidas,
na margem oriental do Nilo.

124
TÚMULO MISTERIOSO
O que continha e o que revelou esta extraordinária
descoberta que continua a surpreender-nos.
82
O LIVRO DOS MORTOS
Datado do Segundo Período
Intermédio, descreve como
sobreviver no Além.

162
TESOUROS FASCINANTES
Descobriram-se mais de 5000
objetos, alguns dos quais
raramente são referidos.

144
TÚMULOS INTACTOS
Uma recapitulação das descobertas
mais significativas.

5
Cronologia
de uma civilização
3800 a.C. 1600 a.C.
Na Mesopotâmia, consolida-se A civilização minoica de Creta atinge
a cidade suméria de Uruk. Os seus dirigentes o apogeu. Surge a cultura micénica,
e habitantes inventam a burocracia, no Mediterrâneo ocidental.
a contabilidade e o comércio externo.

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Palácio minoico
3500 a.C. de Cnossos
A desertificação das terras interiores (Creta).
do Alto Egito obriga os seus reis a mudar-se
para as margens do Nilo. Cultivam os campos
e estabelecem as primeiras cidades.

2950 a.C.
O rei Narmer unifica o Egito, um facto
decisivo: é o primeiro estado-nação do mundo.

2500 a.C.
1539 a.C.
Inicia-se a construção das grandes pirâmides
O faraó tebano Amósis I
de Gizé: as de Kéops, Kefrén e Miquerinos.
liberta o Egito dos hicsos
e trava uma invasão núbia.

2080 a.C. 1490 a.C.


Grandes turbulências sociais e políticas A rainha Hatshepsut governa
desembocam numa guerra civil as Duas Terras durante mais de 20 anos.
que divide o Egito. Sucede-lhe o afilhado, Tutmés III.
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2000 a.C.
O faraó Mentuhotep II reunifica
as Duas Terras. Começa o Império Médio.
AGE

Akhenaton presta
tributo ao disco solar.

1353 a.C.
Akhenaton revoluciona o Egito
A coroa do faraó ao impor o culto a Aton, o disco solar.
representa a união Será o pai de Tutankamon.
das Duas Terras.

1278 a.C.
1800 a.C.
Ramsés II conquista a Líbia, chega a um
Os hicsos, procedentes dos atuais Líbano e acordo de paz com os hititas e reforça
Síria, conquistam Mênfis. Introduzem o cavalo o papel do Egito como potência imperial.
e o carro de guerra. Começa a XV Dinastia. No seu longo reinado, são construídos
vários grandes templos.
1792 a.C.
O rei Hammurabi dá início ao império
babilónico, na Mesopotâmia. 1250 a.C.
No final do reinado, ordena a execução Moisés e os hebreus abandonam o Egito
do código legal conhecido pelo seu nome. a caminho da Palestina, a Terra Prometida.

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SHUTTERSTOCK

7
1100 a.C.
462–429 a.C.
Na sua expansão comercial
pelo Mediterrâneo, os fenícios fundam A era de Péricles, em Atenas,
Gades (atual Cádis, Espanha) e Útica é o momento de maior esplendor
(perto da futura Cartago, na atual Tunísia). cultural da Grécia clássica.

945 a.C.
Os líbios chegam ao poder no Egito com
o rei Sheshonq I, que submete os tebanos.

814 a.C.
Fundação de Cartago, cujos habitantes
se expandirão pouco a pouco
pelo Mediterrâneo ocidental.
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Ruínas
de Cartago Péricles num quadro do século XIX.

ALBUM
(Tunes).

336 a.C.
Alexandre, o Grande, conquista
extensos territórios. Funda a cidade
de Alexandria, no Egito, e chega ao Indo.

305 a.C.
Após a morte de Alexandre,
os generais macedónios repartem entre si
o império. Ptolomeu fica com o Egito.

58–44 a.C.
Júlio César conquista as Gálias,
reforça o poder de Roma e invade
o Egito, onde manterá uma relação
sentimental com a rainha Cleópatra VII.
27 a.C.
Após a morte de Marco António
750 a.C. e Cleópatra, Otávio assegura o poder
no Egito e em Roma. Passará à
Fundação da cidade de Roma, história como Augusto, o primeiro
na península Itálica. imperador romano.
747 a.C.
Os núbios assumem o poder
no Egito, liderados por Piye, caudilho
de Kush. É a época dos faraós negros.

680 a.C.
O rei assírio Ashardon
invade o Egito e arrasa Mênfis.

587 a.C.
Os exércitos babilónios capturam Jerusalém,
o que provoca o exílio dos hebreus. Estátua de Augusto
(Prima Porta, Roma).

525 a.C.
Os exércitos persas conquistam o Egito
e revitalizam o comércio
e a economia do vale do Nilo.
ALBUM
ALBUM

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ete egito

10
Foi na sequência da campanha napoleónica

AGE
rno
rno
no Egito (aqui, a batalha das Pirâmides, em 21
de julho de 1798, num óleo de Louis-François
Lejeune) que despertou o fascínio pela
milenária civilização do Nilo na velha Europa.

AGE

11
N
o que toca a civilizações antigas, arqueológica interdisciplinar realizada no
é possível que hoje saibamos mais mundo.
sobre a egípcia do que sobre qual- Os seus resultados foram recolhidos nos 21
quer outra, e há um par de boas volumes da monumental Description de
razões para isso. Por um lado, estamos a falar l’Égypte, uma das publicações mais impor-
da mais duradoura e refinada das culturas tantes da história. A obra, muito cuidadosa e
que o mundo conheceu, com cerca de quatro exuberante, pesava um total de meia tonelada
milénios de história, o dobro do vigente cris- e lançou as buscas apaixonadas das missões
tianismo. Por outro, referimo-nos ao setor francesas, inglesas, alemãs e italianas no Vale
mais ativo e dinâmico do nosso interesse pelo dos Reis que teriam lugar nos dois séculos
passado: a egiptologia. seguintes.
Pode dizer-se que a arqueologia atual nasceu Porém, o que mais se destacou de todo aquele
no Egito e que o seu primeiro impulsionador esforço extraordinário acabou por ser fruto
foi Napoleão Bonaparte. As pirâmides de Gizé do acaso. Um tenente francês chamado Bou-
sempre lá estiveram, como objeto de admira- chard ter-se-á apercebido de inscrições
ção para o mundo, mas, até ao século XIX, o numa das pedras que os seus soldados estavam
Ocidente olhava o velho universo faraónico a remover durante as operações de fortificação
de longe. Em 1798, a expedição militar de na cidade de Rosetta, localizada 50 quilómetros
Napoleão ao Nilo para interromper a comu- a leste de Alexandria. Ao observá-la com mais
nicação do Império Britânico com as suas atenção, reparou que os sinais estavam agru-
possessões orientais integrava uma comitiva pados em três blocos distintos, como se fossem
de 170 naturalistas, filólogos, historiadores, três alfabetos diferentes.
topógrafos e artistas que levou a cabo, durante Tratava-se de um edital faraónico escrito em
quase três anos, a primeira grande missão hieróglifos, demótico e grego durante a era
ptolemaica. Esse monólito seria a porta pela
qual se entraria no conhecimento da escrita
hieroglífica 23 anos depois, quando o linguista
Jean-François Champollion (1790–1832)
conseguiu terminar a decifração da pedra de
Rosetta, o que significava resolver, em grande
parte, o problema. De repente, os grandes pai-
néis cheios de sinais hieroglíficos que cobriam
as paredes dos templos e túmulos faraóni-
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AGE

Compilação essencial O linguista


e historiador
Àdireita, capa da edição original francesa da Descrição do Egito, Jean-François
um colossal compêndio em 21 volumes que narra todas as descobertas Champollion
da primeira grande missão arqueológica interdisciplinar no país do Nilo. e a Pedra
Esta obra foi a origem da egiptomania na sociedade europeia de Rosetta.
na primeira metade do século XIX.

12
O prussiano Karl
Richard Lepsius
foi um destacado
arqueólogo,
mas destruiu
materiais
e “ofereceu”
ao Museu de
Berlim uns 15 mil
objetos. Nesta
litografia colorida
que ilustra um
dos seus livros,
vemos o interior
do Templo de
Philae, chamado
“Pérola do Nilo”
e consagrado
à deusa Ísis.
AGE

Napoleão foi ao país do Nilo


para cortar as comunicações entre
Londres e as suas possessões orientais e
levou 170 naturalistas, filólogos,
historiadores, pintores e desenhadores

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Giovanni cos podiam desvendar os
Battista Belzoni mistérios da civilização
(1778–1823) foi do Nilo.
uma das figuras
da era dos EGIPTOMANIA
espoliadores do O século XIX foi a época
início do século dos grandes egiptólogos
XIX. Costumava espoliadores, tal o entu-
vestir-se “à turco”, siasmo que as suas des-
para passar cobertas provocavam nas
despercebido.
ilustradas Londres, Paris
e Berlim. O Egito estava
na moda, tendo triunfado personagens como
Giovanni Battista Belzoni (1778–1823), um
jovem italiano ruivo de dois metros de altura
que trabalhou no teatro londrino e mais tarde
acompanhou as tropas de Wellington na
península Ibérica para animar os tempos de
descanso dos soldados.
Belzoni visitou o Egito e caiu nas graças do
então governador otomano Mehmet Ali
(c. 1769–1849), pelo que foi o primeiro europeu
a realizar escavações no Vale dos Reis, o grande
cemitério dos faraós. A descoberta do mag-
nífico túmulo do faraó Seti I tornou-o mun-
dialmente famoso e, com as suas exposições
e publicações, conseguiu que o Egito se
enraizasse na cultura popular britânica, tendo
reunido a fabulosa coleção de peças que esteve
na base da criação das salas do Museu Britânico
dedicadas ao país do Nilo.
Belzoni foi seguido por dezenas de outros
investigadores europeus, como o inglês John
Gardner Wilkinson (1797–1875), que investi-
gou e catalogou os túmulos do Vale dos Reis
e compilou relatórios importantes sobre o
estado de muitos monumentos e túmulos, dos
quais entretanto alguns se deterioraram ou
desapareceram totalmente.

A GENEROSIDADE DO PAXÁ
Estima-se que o número de peças retiradas
do Egito nos últimos dois séculos pode
ser maior do que o daquelas que foram lá
deixadas. Não apenas pelo saque e pelo con-
trabando, mas também por vontade dos

A pedra de Rosetta
contém um edital
faraónico escrito
em hieroglífico,
demótico e grego
na era ptolemaica
AGE

14
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Nesta ilustração, são


governantes otomanos, sobre­ recriados os supostos homens e transportes para
restos do Grande
tudo Mehmet Ali, que represen­ facilitar a espoliação: a oferta
Labirinto. Hoje,
tou o sultão otomano entre 1805 consistia num conjunto de 15
duvida-se de que estas
e 1848. Mehmet sabia que o seu mil objetos e peças de todos
ruínas lhe pertençam.
país estava na moda na Europa e os tipos (nenhum deles medío­
que os monumentos faraónicos eram muito cre) que foram a base do Departamento de
cobiçados. Em 1829, negou o seu apoio a Antiguidades Egípcias do Museu de Berlim.
França na ocupação da Argélia, tendo ofere­
cido, à laia de compensação, os dois obeliscos SANGRIA HISTÓRICA E ARTÍSTICA
de 23 metros de altura que ladeavam a entrada França, Itália e Estados Unidos foram
do Templo de Luxor. Um chegou a Paris e foi outros dos destinos das antiguidades egípcias
instalado na Praça da Concórdia, onde ainda durante o século XIX, que incluíam não só
hoje se mantém; o outro acabou por ficar no museus como também os magníficos salões
Egito, devido a dificuldades de transporte. das mansões das classes altas. Por fim, o senso
Quando lhe interessava, Mehmet Ali era muito comum francês acabou por prevalecer
generoso. Foi o que aconteceu com o rei da perante a sangria histórica e artística que estava
Prússia, Frederico Guilherme IV (1795–1861), a assolar o Egito.
que, encorajado pelo geógrafo e naturalista Quando o quarto filho de Mehmet Ali, Said
Alexander von Humboldt (1769–1859), Pachá (1822–1863), que tinha estudado em
patrocinou uma missão arqueológica de três Paris, chegou ao poder, o prestigiado con­
anos ao Egito, comandada pelo linguista Karl servador do Museu do Louvre, Auguste
Richard Lepsius (1810–1884). Mariette (1821–1881), propôs­lhe criar uma
Os prussianos tinham um grande amor pró­ instituição (o Serviço de Antiguidades) para
prio, e as suas atividades no exterior nunca zelar pelo património egípcio e para ter onde
podiam ser inferiores às das outras nações. expor as peças mais perfeitas e delicadas. Foi­
Assim, a excelente dotação financeira atribuída ­lhe, então, oferecido um edifício em Bulak,
para o efeito permitiu a Lepsius recolher antecessor do atual Museu Egípcio. Hoje, é
materiais de todo o Egito, chegando, para isso, impensável retirar do Egito qualquer peça
a recorrer a explosivos. No final da missão, arqueológica, a não ser que seja um presente
Mehmet disponibilizou­lhe os seus melhores oficial, como o belo Templo de Debod, ofere­

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A esfinge e as pirâmides

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de Gizé são algumas
das maiores maravilhas
da civilização egípcia.

cido a Espanha como retribuição pela ajuda perto do lago Moeris e não muito longe da
no salvamento dos templos núbios que iriam Cidade dos Crocodilos. Vi este monumento
ser inundados pelas águas da grande barra- e achei-o superior a qualquer descrição.
gem de Assuão. Nenhuma obra ou edifício grego se lhe pode
comparar: todos são inferiores. Os templos
ONDE ESTÁ O LABIRINTO? de Éfeso e de Samos são admiráveis, mas as
Apesar de tudo o que sabemos sobre o Antigo pirâmides superam-nos em muito. No entanto,
Egito, ainda há coisas fabulosas por aparecer. o labirinto é ainda superior. É composto por
Uma das mais faladas, embora sem grandes doze pátios rodeados por paredes cujas portas
fundamentos históricos, é o Grande Labi- se encontram de frente umas para as outras,
rinto. Devemos a sua descrição ao grego seis a norte e outras seis a sul. As salas estão
Heródoto (c. 485–c. 425 a.C.), considerado duplicadas: existem 1500 subterrâneas e outras
“o pai da história”. No Livro II da sua obra 1500 na superfície, 3000 no total. Visitei
pioneira, precisamente chamada História, as salas superiores, de modo que falo com
narra o seguinte: “Construíram um labirinto conhecimento de causa, como testemunha

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“Os templos de Éfeso e de Samos são
admiráveis, mas as pirâmides superam-nos
em muito. No entanto, o labirinto é ainda
superior”, escreveu Heródoto. Atualmente,
sabemos que se trata apenas de uma lenda.

ocular. Quanto às salas subterrâneas, não sei uma pirâmide de duzentos côvados de altura
mais do que me contaram, porque servem com figuras de animais esculpidas, na qual se
como sepulturas dos reis que construíram entra por um corredor subterrâneo.”
o monumento e a sua visita está vedada. As Depois de Heródoto, outros cronistas e his-
que visitei na superfície são, aos meus olhos, toriadores, como os gregos Diodoro Sículo
a coisa maior que alguma vez o ser humano (c. 90–60 a.C.) e Estrabão (63 a.C.–23 d.C.),
construiu. É impossível não ficar boquiaberto considerado “o pai da geografia”, ou o romano
com a variedade de corredores tortuosos Caio Plínio (c. 23–79 d.C.), falaram sobre
que, a partir dos pátios, conduzem às salas esta incomparável construção labiríntica,
e destas, por sua vez, a outros pátios. Cada que supostamente ainda poderia ser visitada
secção do monumento é composta por uma no século II da nossa era. A partir desta data,
infinidade de salas que terminam em passa- nunca mais se soube dela: a que havia sido
gens que levam a outros edifícios cujas salas a obra arquitetónica maior e mais complexa
há que atravessar para desembocar em novos da Antiguidade dilui-se no ar como se fosse
pátios. Os tetos são todos de pedra, bem como fumo. Terá sido uma lenda urbana grega.
as paredes, decoradas com figuras em baixo- Na realidade, julga-se hoje que era o templo
-relevo. Em torno dos pátios, há colunas de funerário adjacente à pirâmide de Amenófis III.
pedra branca perfeitamente ordenadas. No
ângulo em que o labirinto termina, eleva-se A.P.

17
Carter no seu

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quarto do Hotel
Waldorf-Astoria,
logo depois de ter
chegado no navio
SS Berengaria.

18
O arqueólogo
Carter
Q
uem era o homem que esteve por ciava as suas escavações em Amarna, foi fácil
detrás do achado do túmulo de convencê-lo que o contratasse como aju-
Tutankamon, essa descoberta que dante. Longe de se arrepender, o exigente
marcou o momento mais espeta- egiptólogo ficou encantado com o novo cola-
cular da história da arqueologia? Era o último borador, a quem ensinou a escavar.
de onze filhos de Samuel John Carter, um Entre 1893 e 1899, Carter tornou-se o dese-
reconhecido ilustrador de animais, e herdou nhador e fotógrafo oficial do suíço Edouard
do seu pai a paixão pelo desenho. Nascido em Naville. As suas representações dos baixos-
1874, em Kensington (Londres), desde menino -relevos do templo de Mentuhotep, em Deir
que acompanhava o progenitor nas suas el-Bahari, foram muito valorizadas pelo
visitas às luxuosas casas de campo dos seus rigor que apresentavam.
clientes. Numa delas, conheceu o deputado Por fim, o trabalho de Carter viria a cha-
William Amherst, dono de uma das coleções mar a atenção do responsável do Serviço
de arte egípcia mais relevantes de Inglaterra. de Antiguidades egípcio, Gaston Maspero,
Aquele encontro alimentou o seu interesse que, apesar da sua juventude (tinha na
pela egiptologia e mudou-lhe a vida. altura 25 anos) e da sua falta de formação
Um dia, casualmente, lady Amherst conhe- académica, o nomeou inspetor-chefe de
ceu o biólogo Percy Newberry, um professor Antiguidades para o Alto Egito. Estreou-se
de egiptologia da Universidade do Cairo que no cargo com uma viagem ao sul do país que
procurava um desenhador, e falou-lhe de marcaria o início da sua grande oportunidade
Carter, o filho. O professor, seduzido pela e de uma amizade para a vida.
qualidade dos seus trabalhos, não hesitou em
contratá-lo para o Egypt Exploration Fund. VIDA DE INSPETOR
Nem a falta de experiência (tinha apenas 17 Entre as múltiplas responsabilidades de
anos), nem a nula formação científica impe- Carter, estavam as tarefas de conservação,
diram Carter de se lançar à aventura. de inspeção das escavações em curso e dos
No início, nem todos reconheceram o seu monumentos abertos ao público, de con-
potencial. Entre os seus detratores, estava o cessão de autorizações de escavação e da
egiptólogo mais destacado na época: William instalação de luzes elétricas nos túmulos.
Flinders Petrie, que reconhecia o seu inte- Absorvido pelo seu trabalho, Carter, que
resse pela pintura e pela história natural, não costumava expressar facilmente os seus
mas não via “utilidade em torná-lo escava- sentimentos, escrevia cartas à mãe a des-
dor”. Apesar das reticências e da sua falta crever as tarefas de que estava incumbido.
de confiança, Carter conseguiu tornar-se “As minhas visitas de inspeção a lugares
arqueólogo no terreno. imprevistos fazem os dias parecerem sema-
nas. É uma vida estranha: chega uma carta
A CAMINHO DA FAMA durante a manhã e tudo muda. Nunca sei
Uma vez terminada a sua colaboração com onde devo acudir. Saio na direção contrá-
Newberry em Beni Hassan, Petrie recru- ria à que estava previsto, a menos que me
tou-o de novo graças à intervenção de lady peçam para ficar onde estou. Seja como for,
Amherst. Uma vez que era ela quem finan- é a vida de inspetor.”

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Lord Carnarvon, a sua filha, lady Evelyn Herbert,
ALBUM e Howard Carter, à entrada da escada que leva
ao túmulo de Tutankamon, no vale dos Reis, em 1922.
Ainda não sabiam exatamente o que iriam encontrar.

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“Nunca sei onde


devo acudir. Saio
na direção contrária
à que estava previsto.
É a vida de inspetor”

Entre as suas atividades, estava a luta contra EMPURRADO PARA


os roubos. Os tesouros dos faraós, escon- UM POSTO MENOR
didos sob a areia do Vale dos Reis, eram Carter supervisionou os seus trabalhos entre
uma tentação para os habitante pobres da 1902 e 1904, mas a relação entre ambos
região, e Carter chegou a ter de fazer de nunca foi boa. Apesar de tudo, ainda reali-
detetive. Chegou à conclusão, por exemplo, zou várias escavações extraordinárias que
que o roubo do túmulo de Amenófis II fazia apresentou sob a assinatura de Davis. Entre
parte de uma grande rede de corrupção que elas, destacam-se a localização dos túmulos
incluía a Polícia. de Tutmés IV e de Tutmés I, o maior do Vale,
Apesar de gostar do que fazia, o sonho de ampliado para servir também de sepulcro à
Carter era escavar no Vale dos Reis. Naquele sua filha Hatshepsut.
tempo, o Egito estava na moda, pelo que era A prometedora carreira de Carter na altura
relativamente fácil encontrar entusiastas da foi bruscamente interrompida devido a um
arqueologia abastados que patrocinassem incidente. Embora haja várias versões do
uma escavação. Um deles era o advogado mesmo, a mais conhecida é aquela de que o
norte-americano Theodore M. Davis, que escritor francês Christian Jacq (n. 1947) dá
tinha conseguido a concessão de todo o Vale conta no livro La Vallée des Rois – Histoire
dos Reis. Davis só tinha interesse em encon- et Découverte d’une Demeure d’Éternité
trar peças espetaculares que chamassem a (1992): “Um grupo de franceses, já muito
atenção e de se fazer fotografar com elas. embriagados, exigiu visitar o Serapeum

20
Ilustração de como terá sido
o momento em que Carter viu pela
primeira vez o interior do túmulo.

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após a hora de encerramento. O guarda, de nada posso fazer a esse respeito”, escreveu.
acordo com as instruções recebidas, negou- Dizia-se que ele tinha mau génio.
-se. A confusão instalou-se, não faltando
alguma pancadaria. Carter dirigiu-se ao local SOBREVIVER A VENDER PINTURAS
e tomou partido pelo seu funcionário, expul- Enquanto Davis continuava a escavar no Vale
sando os insubordinados. Porém, eles dis- dos Reis, Carter encontrava-se sem trabalho
punham de apoio diplomático. Houve quem e sobrevivia a vender as suas pinturas. A sua
interviesse junto de Maspero, que pediu a sorte mudou quando conheceu George
Carter que apresentasse as suas desculpas.” Edward Stanhope Molyneux Herbert (1866–
Tudo indica que ele se tenha negado e, embora –1923), quinto conde de Carnarvon, que
Maspero quisesse mantê-lo a seu lado, atri- encarnava o estereótipo do cavalheiro inglês:
buiu-lhe uma função menor, como inspetor distinto, rico, grande colecionador, apaixo-
da zona do delta, pelo que o arqueólogo pre- nado por cavalos e automóveis. Depois de
feriu demitir-se. “Tenho um temperamento sofrer um grave acidente de viação, mudou-
fogoso, e além disso possuo aquela tenacidade -se para o Egito à procura de um clima seco
que as pessoas mal intencionadas descrevem que o ajudasse a melhorar. Como se sentia
às vezes como casmurrice e que os meus ini- aborrecido, começou a fazer escavações sem
migos, até hoje, se alegraram a assinalar como suspeitar que acabariam por se tornar a sua
sendo um sinal de mau caráter. Pois bem, grande paixão.

21
Maspero autorizou-o a escavar num pequeno Por fim, em 1914, o governo autónomo (o
terreno que tinha comprado e onde encontrou Egito era um protetorado britânico) auto-
um gato mumificado que o motivou a conti- rizou Carnarvon a escavar no Vale dos Reis.
nuar. Por isso, pediu ao Serviço de Antigui- Ele quis pôr logo mãos à obra, mas a eclosão
dades um arqueólogo profissional para come- da Primeira Guerra Mundial acabou com o
çar a desenvolver um projeto mais relevante. sonho mesmo antes de ele começar: o aristo-
Maspero viu ali a oportunidade de “recuperar” crata regressou a Inglaterra e tentou alistar-
Carter, algo que reforçou para sempre a ami- -se, mas sem sorte, e Carter ficou no Egito
zade criada entre ambos. a fazer pequenas escavações no Vale dos
Reis, sobretudo no triângulo formado pelos
AVENTURA NO VALE DOS REIS túmulos de Ramsés II, Rerenptah e Ramsés VI.
Carter e lord Carnarvon eram os parceiros per- O seu principal objetivo era localizar o
feitos: um egiptólogo autodidata, sem qualquer túmulo de Tutankamon, um faraó pratica-
ligação a museus ou universidades, e um abas- mente desconhecido mas cuja existência na
tado cavalheiro apaixonado pela egiptologia e zona era dada como certa, dedicando-se de
disposto a tornar-se um mecenas de missões corpo e alma à descoberta da sepultura do
arqueológicas. A dupla tinha de funcionar, e jovem rei esquecido pela história. Sondou
assim foi. Começaram a traba- o terreno ao longo de vários
lhar juntos em 1907, enquanto Carter limpa quilómetros, e um exército de
Davis escavava caoticamente os óleos de conservação operários removeu milhares de
na necrópole sem que Maspero da múmia de toneladas de escombros. Ao fim
interviesse, por acreditar que o Tutankamon, que de cinco anos de esforços, não
vale estava “esgotado”. estavam colados obteve quaisquer resultados.
à máscara funerária.
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22
Em baixo,
primeira página
do jornal
que noticiou
a abertura
do túmulo.
À esquerda,
um vista
da antecâmara
do túmulo.
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Carter convenceu
Carnarvon a realizar
uma última temporada,
e aproveitou-a bem

ALAMY
Lord Carnarvon era um homem rico, mas os a Carnarvon: “Fizemos uma descoberta
seus bolsos tinham limites, e pensou aban- extraordinária no Vale: um túmulo luxuoso
donar o projeto. Carter, que ainda acreditava cujos selos ainda estão intactos. Voltámos a
nele, convenceu-o a realizar só mais uma fechá-lo até à sua chegada. Felicidades.” Car-
temporada. Era a última oportunidade e não narvon chegou vinte dias depois. Desmonta-
queria perdê-la. ram a porta, pedaço a pedaço, e descobriram
um corredor de pedra calcária. Havia uma
4 DE NOVEMBRO DE 1922 segunda porta, também engessada e com os
A sua intuição levou-o junto aos acessos ao selos do rei-menino.
túmulo de Ramsés VI e, às dez da manhã de
4 de novembro de 1922, apareceu, debaixo da “COISAS MARAVILHOSAS”
entrada do mesmo, uma escada escondida a No dia 26 de novembro, teve lugar a cena mais
quatro metros de profundidade. Os degraus famosa da história da arqueologia. Carter fez
levavam a uma porta tapada e engessada, um pequeno orifício na segunda porta, por
ainda com os selos intactos. “Não havia dúvi- onde introduziu uma vela. “No início, não
das de que o túmulo tinha todas as caracte- via nada, mas, à medida que os meus olhos
rísticas próprias da XVIII Dinastia. Pertencia se acostumavam àquela escuridão, os porme-
a um aristocrata enterrado com autorização nores foram ganhando contornos. Animais
real ou era um esconderijo real que guar- estranhos, estátuas e ouro que brilhava por
dava, por razões de segurança, a múmia e o toda a parte. Durante alguns segundos, que
seu mobiliário. A menos que fosse o túmulo pareceram uma eternidade aos meus compa-
do rei ao qual eu tinha dedicado tantos anos nheiros, fiquei mudo de espanto”, recordou.
de busca”, escreveu Carter. Ao seu lado, estavam lord Carnarvon, a filha
Sem perder tempo, enviou um telegrama deste e outro egiptólogo, de nome Callender.

23
Howard Carter
demorou dez
anos a catalogar
tudo o que
encontrou no
túmulo de
Tutankamon.
ALAMY

Quando lhe perguntaram o que via, respon-


deu: “Coisas maravilhosas.” Naquele instante,
Carter levou
ainda não sabia se se tratava de um túmulo dez anos a extrair
ou de um esconderijo. A dúvida volatilizou-
-se três dias depois, quando abriu a porta e e catalogar
entrou na antecâmara. Duas estátuas guarda-
vam uma montanha de objetos, incluindo um
todos os objetos
trono, e havia uma terceira porta. encontrados
Três anos após a descoberta do túmulo, che-
gou o momento mais aguardado: o encontro do rei, coberto com a famosa máscara com
com a múmia real. Foi nessa altura que Car- pedras incrustadas.
ter teve consciência da importância daquele “Foi então que nos apercebemos realmente
achado. Quatro placas de ouro decoradas da beleza da nossa descoberta, quando aquela
com motivos do Livro dos Mortos rodeavam peça única e maravilhosa, essa massa de ouro
um sarcófago de grandes dimensões (5,20 por fabulosamente trabalhada, resplandeceu à
3,35 por 2,75 metros), que encerrava outros nossa frente. A máscara tinha uma expressão
sepulcros. O quarto e último féretro, de ouro triste e serena, sugerindo a juventude prema-
maciço e 110 quilos de peso, continha o corpo turamente surpreendida pela morte”, diria

24
Homem sem estudos
“O meu pai foi um grande da sorte, alcançar a fama, pude ter aulas de desenho
pintor de animais com algu- embora a sua educação e pintura e não era esse o
ma fama e a minha mãe era tenha sido muito limitada. meu desejo”, constataria.
uma pequena mas extraor- Esta carência, que sempre Ainda assim, saiu-se bem
dinária mulher, que amava lamentou, pode explicar o como autodidata, e aos 15
o luxo, o belo, a perfeição, seu caráter seco e a sua ten- anos já ganhava a vida. Num
a elegância e o bem-fazer”, dência para estar constante- obituário. o egiptólogo Guy
escreveu Carter, que herdou mente à defesa. Ele próprio Brunton escreveu: “Se Car-
as qualidades da mãe e a reconhecia o seu tempera- ter tivesse podido frequentar
paixão pelo desenho do pai. mento irritável e teimoso, uma boa escola, poderia ter
Graças a elas, conseguiu que os inimigos apelidavam sido realmente uma grande
prosperar e, com a ajuda de “mau génio”. “Nunca figura pública.”

Retirada de alguns
objetos do túmulo,
incluindo partes
de um carro.
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Carter. Segundo ele, o aspeto da múmia era anos depois. O resto da sua vida foi dedicado
ao mesmo tempo “magnífico e terrível”, e o a fazer um relatório preliminar que apenas
rosto do rei “pacífico, suave, de adolescente; listava resumidamente os objetos desco-
era nobre e de belos traços, com os lábios bertos, sem análise epigráfica e técnica. De
desenhados com linhas muito nítidas”. acordo com muitos especialistas, o arqueó-
Ainda havia uma quarta sala repleta de mara- logo não estava à altura do trabalho ao qual
vilhas: o tesouro, com cofres, caixões em havia dedicado três décadas da sua vida.
miniatura, joias, pérolas, arcos, flechas... Ainda assim, dada a magnitude do empreen-
Tudo o que um rei egípcio podia desejar para dimento, ninguém teria feito melhor.
poder ser feliz no Além. Fosse como fosse, Howard Carter pôde, gra-
ças a Tutankamon, realizar o seu sonho: “Foi
SONHO REALIZADO a coisa mais maravilhosa que me foi dado
A repercussão do achado foi gigantesca. viver, e, a meu ver, permanecerá inigua-
Enquanto repórteres e turistas chegavam lável”, afirmou. Morreu em 2 de março de
em massa para visitar o túmulo do faraó- 1939, em Londres, convertido no arqueólogo
-menino, Carter catalogava e restaurava mais famoso do mundo.
tudo o que tinha sido tencontrado, uma
tarefa colossal que apenas terminou dez L.M

25
Pilar de pedra
AGE calcária com
uma estátua
de Amenófis IV
para ser adorada
no Templo de Aton,
em Karnak (Museu
do Cairo). Na página
oposta, o mesmo rei
com o ureu, numa
escultura ao estilo
de Amarna.

26
O rebelde
de Amarna
A
história do Antigo Egito desenro- gente juntamente com o seu pai, se bem que
lou-se ao longo de quatro milénios haja debate entre os egiptólogos sobre se na
e, embora existam e se tenham realidade este reinado conjunto terá ou não
escavado (e se continuem a escavar) acontecido
múltiplos documentos escritos, bem como
uma infindade de espaços urbanos, militares PRIMEIROS ANOS DE REINADO
e necrópoles, na hora de reconstruir a sua O príncipe subiu ao trono como Amenófis IV
história, encontramos lacunas recorrentes em e escolheu para Grande Esposa Real Nefertiti,
diversos períodos. Isso deve-se a vários fatores: que era filha de Ay, um alto funcionário da
ao acaso, ao estado de conservação dos materiais corte que foi adquirindo cada vez mais res-
e ao interesse dos egiptólogos.
No que se refere ao reinado de Akhenaton,
pai de Tutankamon, temos a sorte de pos-
suir numerosas fontes de informação, graças
aos achados extraordinários e ao indubitável
interesse dos egiptólogos por este reinado
excecional, que centraram os seus estudos nos
principais lugares relacionados com Akhena-
ton: a sua capital, Akhet-Aton, os templos e
túmulos da antiga Tebas egípcia e outros locais
ao longo do vale do Nilo.
Quando Akhenaton nasceu, recebeu o nome
de Amenófis, como o seu pai, o faraó Ame-
nófis III. A sua mãe era a Grande Esposa Real
Tiy. Ele era o segundo descendente masculino
do rei, que provinha de uma longa dinastia
de faraós que, depois de unificarem o Egito,
tinham alargado as suas fronteiras por todo
o Canã e a Núbia. O Egito era a primeira
potência militar, económica e cultural da região.
Recebia tributos de vários reinos conquistados
e presentes dos vizinhos.
O jovem príncipe Amenófis não estava des-
tinado ao trono; o escolhido era o seu irmão
mais velho, Tutmés, que entretanto morreu.
O acontecimento ocorreu antes do Primeiro
Festival de Heb Sed de Amenófis III, que se
celebrou no seu trigésimo ano de reinado.
A partir daquele ano, ou numa data posterior,
o jovem príncipe Amenófis torna-se o her-
deiro e, segundo alguns especialistas, corre-
AGE

27
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À esquerda, Akhenaton e Nefertiti com três das suas filhas (baixo-relevo amarniense de cerca
de 1350 a.C.). À direita, Akhenaton em esfinge numa oferenda ao Sol como Aton (baixo-relevo
amarniense, 1373 a 1357 a.C.).

ponsabilidades até chegar a ser faraó, três PERÍODO DE AMARNA:


décadas depois deste casamento. Durante os 1349–1336 A.C.
primeiros anos do seu reinado, Amenófis IV Estas e outras alterações implicaram um
demonstrou a sua predileção por uma divin- confronto direto com a ordem religiosa
dade que se foi desenvolvendo nos círculos estabelecida. Nos primeiros meses do quinto
palacianos, pelo menos desde o reinado do ano do seu reinado, Amenófis IV deu mais
seu avô, Tutmés IV: Aton. Tratava-se de uma um passo que afetava a figura do faraó: a
das numerosas formas do deus Rá, o deus-Sol: mudança de nome. De Amenófis (Amenho-
em concreto, o disco solar, uma das suas mais tep), que significava “Amon está satisfeito”,
recentes representações e cujos raios termi- passou a chamar-se Akhenaton (“Benéfico
nam numas mãos que tocam exclusivamente para Aton”), eliminando desta maneira o
no rei e na rainha, a quem concede a vida e a teónimo Amon do nome real. A sua principal
prosperidade. mulher, Nefertiti, acrescentou também ao
Em Karnak, o principal lugar de culto de seu nome o cartucho de Neferneferuaton
Amon-Rá, rei dos deuses, o jovem Amenófis IV (“A mais bela de Aton”).
desenvolveu um ambicioso plano arquite- Pouco depois, Akhenaton percorreu o país
tónico no qual se podem apreciar as ino- para encontrar um lugar puro para a sua
vações iconográficas que foram típicas do seu nova capital. Encontrou-o no Médio Egito,
reinado. Entre elas, a partir do terceiro ano, próximo do lugar onde estabeleceria a loca-
Aton passou a estar referido no cartucho real, lidade de Amarna, perto da atual cidade de
de tal forma que ficava implícito que este Minya, e a meio caminho entre Mênfis e Tebas.
deus se equiparava ao rei terreno. Por outro Era um grande anfiteatro rochoso que ainda
lado, as instituições dos deuses tradicionais não tinha sido ocupado. Nos montes a leste
ficaram economicamente subordinadas ao do rio Nilo, a montanha reproduzia em cada
culto de Aton. amanhecer a elevação do Sol entre outras
Esta mudança, a juntar ao facto de Amon duas montanhas, assemelhando-se ao ideo-
deixar de ser a principal divindade relacionada grama utilizado para a palavra “horizonte”.
com a realeza, teve importantes consequências Isto tinha uma dupla leitura: por um lado,
políticas que, com toda a probabilidade, relacionava-se com o conceito egípcio de
revolucionaram a estabilidade interna do estado renascimento diário; por outro, vinculava a
egípcio. nova capital ao deus Rá e ao seu ciclo diurno.

O afastamento de Amon como principal


divindade, substituído por Aton, o disco
solar, provocou grande instabilidade

28
Como não podia deixar de ser, a cidade foi
chamada de Akhet-Aton (“O horizonte de
Aton”).

NOVA E EFÉMERA CAPITAL


A nova cidade foi delimitada com 14 estelas
visíveis para quem se aproximasse da capital
vindo de qualquer direção. Incluía não só o
anfiteatro, onde se ergueria o centro urbano
e as necrópoles, como também as terras para
a agricultura. No total, Akhet-Aton teria uns
160 quilómetros quadrados e nela ter-se-ão
estabelecido entre 20 e 50 mil pessoas, nos
seus dias de maior glória. Porém, Akhet-
-Aton teve uma vida efémera, pois foi aban-
donada por Tutankamon, cerca de 21 anos
depois da sua fundação. A partir de então,
a zona não voltou a ter grande densidade
populacional, mas tornou-se um local de
exceção para os arqueólogos. Amarna permite
obter uma imagem clara da organização de
uma capital durante a segunda metade do
segundo milénio a.C.
Após a delimitação do espaço, Akhenaton
investiu boa parte dos recursos do estado na
construção de todo um complexo urbano e
funerário. No que respeita ao primeiro, a cidade
carecia de um planeamento prévio; foi traçada
numa franja de deserto relativamente plana,
à volta de uma via já existente (o “Caminho
Real”), que ligava o norte ao sul do país.
Na atualidade, o sítio de Amarna divide-se em
várias áreas para facilitar a sua compreensão.
De norte para sul, encontram-se a Cidade
Norte, o Palácio Norte, o Bairro Norte, a Cidade
Central e os Bairros do Sul. A leste destas
Rá, o deus Sol, foi a divindade suprema
áreas, foram construídos outros centros sub-
do Egito desde, pelo menos, meados
sidiários, entre os quais se destaca o povoado
do terceiro milénio a.C. Tinha muitas
dos artesãos que se encarregavam da cons-
formas divinas: por exemplo, ao meio-dia,
trução dos túmulos reais. Este povoado, de demonstrava todo o seu poder.
forma quadrangular e muralhado, possuía 68
casas com dimensões idênticas, à exceção de
uma, de maior tamanho, que seria ocupada lar, como testemunham os seus alicerces.
pelo responsável pelos trabalhadores. Estes Infelizmente, como quase todos os edifícios
operários, pagos pelo estado, eram os melhores construídos em pedra, este também foi des-
construtores e artistas de todo o Egito e foram, mantelado na época de Ramsés II. Tinha uma
por certo, transferidos de um povoado seme- superfície delimitada de cerca de 17 hectares,
lhante que existia em Tebas. nos quais se erguiam pilones com mastros
decorados, que davam acesso a uma colu-
EDIFÍCIOS MAGNÍFICOS nata. À sua volta, havia centenas de altares
Para lá dos aglomerados de casas, o Caminho ao ar livre, onde se realizavam as oferendas
Real tornou-se uma avenida retilínea à volta ao deus Aton. Estava propositadamente
da qual foram construídos os edifícios mais orientado segundo o eixo leste-oeste, de forma
importantes de Akhet-Aton: o Grande Tem- a seguir sempre o ciclo do Sol no céu. A confi-
plo de Aton, o Grande Palácio, a Casa do Rei e guração do templo, que ficou inacabado, era
o Pequeno Templo de Aton. O Grande Templo completamente inovadora e contrastava com
de Aton deve ter sido um edifício espetacu- os templos egípcios que durante milénios

29
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Apesar de ter perdido
uma grande quantidade
de pedra e construções
inteiras, a Amarna
abandonada (em cima
e à direita), depois
de ter sido utilizada como
capital, é uma grande
fonte de informação
sobre a sua organização.

tinham sido construídos no Egito. Enquanto pintados com cores vivas e cenas do mundo
os edifícios anteriores eram espaços fechados natural, bem como os principais inimigos do
e escuros, os templos erguidos por Akhenaton Egito, de tal forma que eram pisados por todos
procuravam que os raios solares banhassem aqueles que visitavam o palácio, incluindo os
todos os rituais. embaixadores estrangeiros.
Este edifício monumental estava ligado a um
GRANDES MORADAS palacete (a Casa do Rei) através de uma ponte
Lamentavelmente, do Grande Palácio também que atravessava o Caminho Real. Era a partir
pouco sobreviveu. Estendia-se desde o deste edifício menor que Akhenaton fazia os
Caminho Real até às margens do Nilo e estava despachos e governava o país, em conjunto
organizado em torno de um grande pátio com os seus oficiais. Junto à Casa do Rei, foi
rodeado por estátuas colossais do rei, hoje construída a chamada “Mansão de Aton”,
desaparecidas. As salas mostravam chãos que, na realidade, era uma versão mais

30
Como nova capital do Egito, Akhet-Aton
passou a ser residência de altos oficiais,
que construíram nela grandes moradas
pequena do Grande Templo. É muito pro- necrópole. A zona escolhida para o descanso
vável que a função deste templo fosse a de eterno da família real encontrava-se num
um lugar onde o faraó celebrava os rituais wadi principal, a cerca de onze quilómetros
religiosos e as oferendas a Aton diante de um da cidade. Foi lá que se escavou um túmulo
público escolhido. Uma vez que o eixo do para Akhenaton e outros membros da sua
templo estava alinhado com o túmulo real, família, embora conste que apenas uma das
julga-se que tenha sido desenhado como um suas filhas, Meketaton, tenha sido ali enter-
templo funerário para o faraó. rada, para além do rei. O facto de Akhenaton
Como nova capital do Egito, Akhet-Aton ter planeado ficar enterrado com outros
transformou-se na residência oficial dos membros da sua família no mesmo hipogeu
mais altos funcionários do estado, os quais era uma novidade, já que tanto antes como
construíram grandes moradas compostas depois os faraós do Império Novo eram
por um casarão de dois pisos, jardim, cozi- enterrados sozinhos, enquanto os seus fami-
nhas, capela, cavalariças, armazéns e casas liares mais próximos ficavam em túmulos
mais modestas para os serviçais. Nos salões individuais ou coletivos.
mais nobres do edifício principal, situados Alguns dos altos funcionários também pre-
no piso térreo, sobreviveram restos de pararam o seu túmulo em Amarna, concre-
decorações figurativas pintadas com muitas tamente em duas áreas das falésias rochosas
representações de vegetais e de animais, que compunham o anfiteatro que delimitava
refletindo a paisagem fértil do vale do Nilo. a cidade. Ambas as zonas estavam situadas a
Um dos grandes artesãos do palácio, Tutmés, norte e a sul da entrada do wadi que conduzia
tinha a oficina na sua própria casa e, em à necrópole real. Atualmente, conhecem-se
1912, foi descoberto nela um grande número 25 túmulos, alguns dos quais não chegaram
de peças de gesso e bustos da família real, a ser terminados.
incluindo o famosíssimo busto policromado
da rainha Nefertiti que hoje se encontra em
Berlim.

SEM SEPARAÇÕES POR CLASSES


A cidade não estava dividida socialmente,
e mesmo as casas mais ricas podiam estar
rodeadas de outras muito mais modestas.
As moradas estavam organizadas em quar-
teirões com ruas mais ou menos largas,
dispostas em paralelo ao Nilo.
A partir dos diferentes achados arqueoló-
gicos e das cenas que resistiram, é possível
BRITISH MUSEUM

afirmar que a atual planície de Amarna era


muito diferente da capital no seu pleno apo-
geu. Assim, os edifícios e as casas mais nobres
estavam ornamentadas com inúmeras árvores
O Heb Sed
que proporcionavam a necessária sombra aos
Erradamente conhecido também como
seus residentes, e tinham os seus próprios “Festival do Jubileu”, o Heb Sed era na
poços de abastecimento de água. No entanto, realidade um festival que os antigos reis
havia poços espalhados por toda a cidade, do Egito celebravam (nesta época, por
destinados à população em geral. Este gene- volta do 30.º ano de reinado), no qual o
roso abastecimento de água não era comum faraó, através de rituais, morria e renas-
nas cidades egípcias, pelo que, sem dúvida, cia magicamente para renovar os seus
Akhet-Aton oferecia maior bem-estar aos poderes cósmicos e a sua relação divina
seus habitantes. com os restantes deuses.
Akhet-Aton também dispunha de uma

31
NOS BRAÇOS DE ATON
Durante a construção da nova capital, Akhe­
naton mandou eliminar, em todos os monu­
mentos, os nomes do deus Amon e da sua
mulher, a deusa Mut. Este damnatio memoriae
significou, sem dúvida, a imposição da
religião real sobre a tradicional. Estas ações,
levadas a cabo muitas vezes por indivíduos
que mal sabiam reconhecer os hieróglifos
que compunham ambos os nomes, não pro­
vocaram confrontos violentos no país.
A nova fé situava Aton como o criador uni­
versal sem ter uma forma humana ou animal,
o que o distinguia das crenças ancestrais. Era
representado como um disco solar com raios
que terminavam em forma de mãos. A sua
universalidade implicava o seu reconheci­
mento por todos os países e povos.
Nesta nova ordem religiosa, o faraó desem­
penhava um papel primordial, já que era a
única figura à qual havia que obedecer, pois
era o mais amado de Aton. O faraó e a sua
família nuclear (a Grande Esposa Real Nefer­
titi e as suas filhas) também tiveram um papel
fundamental nas representações religiosas.
Antes do período de Amarna, as represen­
tações públicas estavam centradas no faraó
e nos deuses. Raramente apareciam outras
personagens (as esposas principais eram as
grandes exceções). Os príncipes e as princesas
quase nunca eram representados ou sequer
mencionados.
No entanto, agora as novas temáticas artís­
ticas centravam­se na família real, e nelas as
princesas apareciam ao lado dos seus proge­
nitores. Desenvolviam­se no âmbito privado,
sempre beneficiadas pelo deus Aton. Estas
novas composições têm um objetivo religioso
evidente, de modo a identificar a família real
com os conceitos sintetizados pelo deus Aton:
criação, fertilidade, abundância e vida. Neste
sentido, Akhenaton e Nefertiti encarnavam
todos estes aspetos abençoados por Aton.

PRIMEIRO MONOTEÍSMO?
À parte o debate existente sobre se a religião
de Aton foi ou não a primeira fé monoteísta,
o que parece claro é que o principal benefi­
ciado foi o faraó, em quem se concentrava
todo o poder por vontade divina. No entanto,
o desenvolvimento desta fé não foi muito
mais além do que as esferas relacionadas com
ASC

Foi neste reinado que apareceram as primeiras


representações das princesas, filhas do faraó

32
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A rainha Nefertiti beija uma filha,
provavelmente Meritaton, neste
o palácio. No próprio sítio de Amarna, foram baixo-relevo encontrado em Amarna
encontrados numerosos vestígios que provam e datado dos anos 1352 a 1336 a.C.
que a população continuava a praticar a
religião tradicional, como menções, em várias
capelas domésticas, a diversos deuses, FAMÍLIA REAL
incluindo o proscrito Amon e divindades Graças a um grande número de represen-
mais populares como Bes ou Taweret. tações de Akhenaton e da sua família, foi
Durante as duas guerras mundiais, escre- possível reconstituir cronologicamente como
veu-se muito sobre o suposto pacifismo de ela foi aumentando. A Grande Esposa Real,
Akhenaton na sua política externa, mas este Nefertiti, foi mãe de seis princesas: Meritaton,
pensamento não podia estar mais longe da nascida durante o primeiro ou segundo ano de
realidade. Este rei não só mandou os seus reinado; Meketaton, nascida no ano seguinte
exércitos para o exterior, como comprova ao da sua irmã, faleceu por volta do 14.º ano
a campanha na Núbia durante o seu 12.º ou de reinado; Ankesenpaaton, nascida no quarto
13.º ano de reinado, como era habitualmente ou quinto ano de reinado; Neferneferuaton-
representado como um faraó triunfante. Tasherit, nascida no sétimo ou oitavo ano
O principal problema externo que Akhenaton de reinado e falecida nos últimos três anos
teve de enfrentar foi a inconstante situação do reinado; Neferneferure, nascida entre o
que se vivia no Médio Oriente, pois o reino oitavo e o décimo ano de reinado e falecida
hitita tornou-se uma potência militar deter- antes do final do reinado; Setepenre, nascida
minante na região. entre o 10.º e o 12.º do reinado e falecida
No entanto, não há dúvida de que o Egito se pouco depois.
manteve como ator principal no panorama Assim, do 12.º ano até ao final do reinado
internacional da zona, como mostram as de Akhenaton, morreram Meketaton, Nefer-
representações do seu festival Sed, durante o neferuaton-Tasherit, Neferneferure e Seten-
qual era homenageado por todos os territórios penre. Estas mortes podem estar relacionadas
sob a sua alçada, bem como pelos restantes com a reduzida esperança de vida de todas
grandes reinos. as sociedades pré-industriais, mas também

33
Apesar da sua fama de pacifista,
Akhenaton foi representado
como um rei vitorioso.

com a peste que assolou boa parte do Médio que o casamento tenha sido consumado e
Oriente naqueles anos, como mencionam que o título não fosse meramente simbólico.
várias fontes. No caso de Meketaton, a representação de
uma menina no colo da princesa poderia ser
FILHAS, MÃES, NETOS a revelação do ka desta após a sua morte.
Há várias referências e representações de Igualmente de difícil interpretação é o caso
algumas das filhas de Akhenaton e Nefertiti, de Ankesenpaaton-Tasherit, filha da terceira
como Meritaton, Meketaton e Ankesenpaaton, filha.
que podem ter sido mães de outras tantas filhas Akhenaton teve igualmente mulheres se-
do seu próprio pai, mas infelizmente estas cundárias: entre elas, uma tal Kiya, cujo no-
informações carecem de confirmação. me pode ter sido uma forma “egipcianizada”
O que se sabe é que Meritaton chegou a ser de Tadukhepa,princesa de Mitani, que fora
Grande Esposa Real durante os últimos três mulher do pai de Akhenaton, Amenófis III.
do reinado do seu pai, mas isso não indica Embora haja poucas referências a Kiya, sabe-

34
Após a sua morte,
Akhenaton
foi praticamente
apagado
da história

reinado, devido a causas desconhecidas, muito


provavelmente antes dos 40 anos de idade.
Foi enterrado no seu túmulo, próximo de
Akhet­Aton, mas é possível que o seu corpo
tenha sido trasladado pouco depois, talvez
para Tebas. De facto, terá sido identificado
com os restos encontrados no túmulo 55 do
Vale dos Reis, embora isso não esteja cem por
cento confirmado. A razão é que o seu túmulo
original, no Vale Real de Amarna, foi atacado
e o seu sarcófago destruído (hoje, pode ver­se
reconstruído no Museu do Cairo).

GRAFITO ESCLARECEDOR
Em 2004, descobriu­se um grafito em Deir
Abu Hinnis (Médio Egito) que ajudou a
reconstruir o final do reinado de Akhenaton.
Nesta inscrição, o faraó encontra­se ao lado
de Nefertiti no 16.º ano do reinado, um dado
que demonstra que a esposa principal con­
tinuava viva naquela época, facto que se
desconhecia.
O que se sabia de Nefertiti não ia muito além
da morte de Meketaton, e havia várias expli­
cações, algumas romanceadas, sobre o destino
da rainha depois da morte da princesa. Além
disso, esta inscrição permitiu determinar
que Semenkhkare morreu pouco antes de
Akhenaton e não lhe sucedeu, de tal forma
que Akhenaton escolheu um desconhecido,
Ankh(et)kheperure Nefereneferuaton, para o
acompanhar na direção do estado.
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Segundo a egiptóloga belga Athena van der


Perre, Ankh(et)kheperure Nefereneferuaton
mos que foi a mãe de Tutankaton (mais tarde não é outra pessoa senão a própria Nefertiti,
Tutankamon), nascido no oitavo ou nono ano que teria sucedido ao seu marido e reinado
do reinado do pai. durante três anos sozinha após a morte
daquele. A partir desta reconstrução, uma das
FINAL DO REINADO cartas descobertas em Amarna faz mais sentido:
A morte da princesa Meketaton no 14.º ano do uma rainha solicita ao rei hitita Suppiluliuma
reinado de Akhenaton pode ser considerada que lhe envie um filho para, ao seu lado, ocupar
um ponto de inflexão. Um ano mais tarde, o o trono do Egito. Este príncipe foi assassinado
faraó escolheu como corregente um desco­ antes de chegar à corte, o que terá possivel­
nhecido, Semenkhkare, talvez um meio­ mente mudado o destino de Nefertiti à frente
­irmão ou um filho de uma mulher secundária. do Egito. Pouco depois, Tutankaton tornar­
A legitimidade ao trono, ganhou­a através de se­ia o rei Tutankamon.
Meritaton, que se tornou a sua consorte.
Akhenaton morreu durante o 17.º ano do seu A.J.S

35
T
u
t
a
n
k
a
m
O
n
36
Genealogia
do faraó-menino
No Antigo Egito, a tradição
ditava que a Grande Esposa
Real, que coexistia com outras
mulheres e concubinas,
tinha de ser de linhagem real,
pois eram as princesas nascidas
das esposas principais quem
fazia a transmissão da realeza
faraónica. A consanguinidade
era muito comum.
Tiye
Esposa principal
de Amenófis III
Amenófis III e mãe de Akhenaton.
(1390–1353 a.C)
Avô de Tutankamon
e pai de Akhenaton.
Governou um reino imenso.

Akhenaton Nefertiti
(1353–1336 a.C.) Grande Esposa Real de
Também conhecido como Akhenaton, deu à luz seis
Amenófis IV. Promoveu meninas. Kiya, princesa de
a deus único o disco solar Mitani e esposa secundária,
e construiu uma nova foi, provavelmente,
capital: Amarna. a mãe de Tutankamon.

Tutankamon Ankhesenamon
(1332–1323 a.C.) Terceira filha de
Também conhecido Akhenaton e Nefertiti,
como Tutankaton. meia-irmã de
Tutankamon e sua mulher.

37
Quem foi
Tutankamon?
O
faraó-menino foi o último des- “jovem senhora” eram irmãos, ambos filhos
cendente por linhagem sanguí- de Amenófis III e da rainha Tiyi.
nea da poderosa XVIII Dinastia Embora nenhuma das hipóteses seja con-
de reis do Antigo Egito, os tut- siderada definitiva (ainda está muito por
méssidas, que governaram durante o período demonstrar), pelo menos ambas explicam os
conhecido como Império Novo. A sua coroa- elevados níveis de consanguinidade entre os
ção ocorreu por volta de 1334 a.C., altura em pais de Tutankamon e que estarão por detrás
que adotou o nome de reinado de Nebkhepe- da frágil saúde do jovem monarca.
rure. Dado que subiu ao trono quando contava
cerca de oito anos e viveu apenas até aos 19, INFÂNCIA POUCO SAUDÁVEL
o seu reinado foi breve. Ao nascer, chamava-se Tutankaton, “imagem
Reconstruir a sua existência continua a ser viva de Aton”, nome com o qual o seu pai
um desafio para os historiadores, a começar honrou o disco solar durante o seu reinado.
logo desde o seu nascimento. Tutankamon Desde pequeno que as suas deformações físicas
veio ao mundo entre o nono e o 12.º ano de eram facilmente visíveis. Diz-se que tinha
reinado de Akhenaton. Era descendente de lábio leporino e fenda palatina e que padecia
uma segunda esposa real, não da famosa de síndrome de Köhler no osso escafoide do
rainha Nefertiti, com a qual, segundo parece, pé e de uma debilid de palpável na restante
Akhenaton só teve filhas, o que explica o estrutura óssea, que o fez sofrer durante toda
motivo pelo qual Tutankamon não aparece a sua existência. De facto, parece que as ben-
representado juntamente com o resto da galas como as que foram encontradas no seu
família real em numerosas cenas em que os túmulo foram companheiras contínuas ao
monarcas surgem ao lado das princesas. longo da sua curta vida.
Na verdade, há várias teorias sobre a identi- O menino terá sido criado no berçário real,
dade dos progenitores de Tutankamon, ainda como as suas seis meias-irmãs e o seu meio-
que todas defendam que ele tinha sangue real. -irmão mais velho e herdeiro do trono,
Durante décadas, a mais plausível argumen- Semenkhkare. Alguns investigadores argu-
tava que ele era filho de Akhenaton e de Kiya, mentam que Semenkhkare governou ao lado
provavelmente a princesa mitânia Taduhepa, do pai durante os seus dois últimos anos de
que se tornara esposa secundária do faraó e, mandato, enquanto outros defendem que
provavelmente, morreu durante o parto. sobreviveu a Akhenaton e reinou sozinho
Por outro lado, um estudo forense que di- durante um biénio. Seja como for, pode con-
vulgou os seus resultados em 2010 encon- firmar-se que, em princípio, Tutankamon
trou grandes coincidências genéticas entre nunca esperou reinar e nos seus primeiros
Tutankamon e a múmia daquela que é anos de vida recebeu formação cortesã para
conhe cida como “jovem senhora” e que, ser príncipe. Depois da sua passagem pelo
diz-se, terá sido sepultada juntamente com berçário real, o jovem continuaria a sua for-
SHUTTERSTOCK

Akhenaton, embora não esteja comprovado. mação no Kap, a escola da corte, com outros
Consta que Akhenaton e a não identificada membros da família real, da nobreza e dos

38
Estátua de pedra
de Tutankamon,
no estilo monumental
típico do Egito.

39
O príncipe foi criado como tal, mas
não estava destinado ao trono, que cabia
por direito ao seu meio-irmão mais velho
príncipes convidados de outros territórios baratos e acessíveis e utilizados na escrita
sob a influência egípcia, incluindo os her- convencional.
deiros da oligarquia núbia.
Podemos imaginar o nosso príncipe a apren- EDUCAÇÃO DE ELITE
der a ler aos quatro anos, reconhecendo e Esta preparação completava-se com exer-
pronunciando os muitos hieróglifos egípcios cícios físicos, com momentos dedicados à
que faziam parte de um idioma formado ao natação e à luta corpo-a-corpo. Como nos
longo de várias centenas de anos. Dominada mostram os relevos e as pinturas de cenas
a gramática, também teve de assistir a lições de caça, o aluno também se exercitava no
de aritmética e aprendeu a prática da retórica tiro com arco, uma prática muito apreciada
necessária para o exercício político, e até pelos reis da XVIII Dinastia. Não sabemos se
mesmo a reconhecer os caracteres asiáticos a saúde frágil de Tutankamon lhe permitiu
de civilizações com as quais o Egito mantinha realizar por completo todas estas atividades,
relações comerciais e políticas. Além disso, mas de alguma forma deve ter participado
ainda em menino, descobriu a escrita sobre em práticas deste tipo. Algumas vezes mon-
o caro e exclusivo papiro usado na docu- taria a cavalo sobre os exemplares oferecidos
mentação oficial, bem como em óstracos, aos seus pais por soberanos asiáticos, embora
quadros de pedra calcária ou terracota, mais este fosse um costume pouco comum entre

Ruínas do pórtico
do templo
de Hermópolis,
atual Ashmunein
(gravura de 1817).

40
os egípcios, mais habituados ao uso do carro.
O seu destino tranquilo como membro do
família real, sem a responsabilidade política
agregada ao líder de toda a sociedade egípcia,
mudou com a morte do seu meio-irmão. Foi
então que Tutankamon se tornou herdeiro
e soberano do país, colocando sobre a sua
cabeça as coroas do Alto e do Baixo Egito.
A partir desse momento, provavelmente
manipulado por interesses cortesãos mediados
pelos sacerdotes de Amon, que viram nele
uma oportunidade para recuperarem o seu
poder, protagonizou a primeira reversão
do período extraordinário amarniense e o
regresso à ordem secular egípcia.

MUDANÇA ESTRATÉGICA
Para promover a sua legitimidade ao trono,
o ainda Tutankaton tinha casado com a sua
meia-irmã Ankhesepaaton, filha de Akhena-
ton e de Nefertiti, o que contribuiu para que
aquele enlace tivesse uma completa ascen-
dência real. Além disso, no segundo ano do

SHUTTERSTOCK
SHUTTERSTOCK

Busto da rainha Nefertiti,


conservado no Museu Egípcio
de Berlim, que tem sido
a fonte da sua lendária beleza.

41
Pormenor de um batalha contra núbios, pintada no túmulo de Tutankamon, por volta
de 350 a.C. Os carros egípcios foram projetados para serem uma força de ataque rápido,
com uma estrutura de madeira muito leve e partes de lona ou couro. No lado esquerdo,
veem-se os inimigos núbios mortos em combate, espezinhados pelo carro do faraó.
Ao centro, Tutankamon lança flechas sobre os inimigos. No lado direito,
estão representados a comitiva e os guerreiros que acompanhavam o faraó.

seu reinado, os reis mudaram os seus nomes que reinou depois de Ay, terminando assim
de nascimento. Assim, Tutankaton tornou-se a XVIII Dinastia e dando lugar à XIX Dinastia,
Tutank amon, “imagem viva de Amon”, e a dos raméssidas.
a sua mulher passou a chamar-se Ankhe- Horemheb tinha iniciado a sua carreira
senamon. Isto pode parecer meramente durante o novo reinado e foi o porta-voz do
simbólico, mas, para os egípcios, o rei era rei em matéria de política externa, com des-
a reencarnação do deus Hórus, filho de Ísis tacadas ações na Núbia e na Palestina. Por seu
e de Osíris, pelo que qualquer mudança de lado, Ay é referido em algumas inscrições do
nomenclatura implicava também uma modi- reinado de Akhenaton como “o pai divino”,
ficação das crenças de todo o país. Com esta marido da ama-de-leite de Nefertiti, embora
estratégia, a administração de Tutankamon algumas interpretações considerem que ele
estava simplesmente a reativar o culto milenar era o pai da rainha. Isto explicaria a sua posição
egípcio para se apoiar na tradição. como intendente do cavalo real, tenente-
No seu governo, Tutankamon foi acompa- -general do carro do faraó e seu escriba
nhado pelo antigo servidor da corte amar- pessoal, além de detentor do privilégio de
niense, Ay, seu sucessor no trono. Ao seu abaná-lo com o leque. Com todos estes cargos,
lado, esteve também o general Horemheb que lhe permitiram ter a máxima proximi-
(é possível que seja o oficial mencionado no dade à realeza, nos primeiros anos do novo
reinado de Akhenaton chamado Remheb) reinado gozou de grande influência política,

42
através da qual liderou as mudanças que completar a tarefa, de modo que a venali-
restituíram a primazia do culto a Amon e dade e a arbitrariedade do serviço público e
tiraram o faraó de Amarna. do sacerdócio egípcio só seriam seriamente
extirpadas no governo de Horemheb. Ainda
REINADO CURTO E MENOR assim, há que assinalar conquistas impor-
A espetacular descoberta do túmulo de tantes, como o fim do isolamento provocado
Tutankamon tornou-o um ícone do mundo pelo regresso da chancelaria real à inter-
egípcio, mas o seu reinado foi certamente venção ativa na política externa, descuidada
de pouca importância comparado com os durante o reinado de Akhenaton ao ponto
grandes reis da XVIII Dinastia. Entre outras de se perder toda a influência alcançada nos
questões, apesar das tentativas da adminis- tempos de Amenófis III.
tração de Tutankamon para acabar com as Para romper com o período anterior,
práticas corruptas do período anterior, a Tutankamon abandonou Amarna (Akhet-
sua morte precoce tornaria quase impossível -Aton, “o Horizonte do Disco Solar”), fundada

Tutankamon foi acompanhado


pelo servidor da corte amarniense Ay,
seu sucessor no trono, e pelo general
Horemheb, que reinou depois de Ay,
encerrando a XVIII Dinastia
e dando lugar à XIX, a dos raméssidas

43
Parte do conjunto
AGE

monumental
do Templo de
Amon-Rá em Luxor.

44
por Akhenaton. Após a morte deste, o ainda Sabemos que
Tutank aton viveu durante algum tempo
no bairro norte de Amarna, mas trocou a sofreu de inúmeras
capital do seu pai por Mênfis e pelo palácio enfermidades,
de Malkata, transformado em residência
temporária durante as suas estadas em Tebas. pelo que deverá ter
Além disso, para tornar o regresso ao estado
anterior mais forte, ordenou que lhe cons-
usado bengalas
truíssem um túmulo perto do do seu avô, desde muito cedo
Amenófis III.
criou o seu próprio, com traços estilísticos
TEMPO DE RECONSTRUIR de arte figurativa oficial. Se no reinado do
Face ao período de destruição que implicou o seu pai a aposta recaiu em formas curvas e
devaneio amarniense do seu pai, o tempo de sensuais inéditas na representação de figuras
Tutankamon foi de tentativa de reconstrução. humanas, com um grande número de cenas
As intervenções arquitetónicas levadas familiares da monarquia surpreendentemente
a cabo em seu nome são em maior número do íntimas, nas quais as personagens apresen-
que se tinha pensado até agora, já que, depois tavam deformações físicas curiosas (alonga-
do seu breve reinado, os seus sucessores mento do crânio ou grandes abdómenes), no
usurparam muitas das suas iniciativas, des- reinado de Tutankamon regressa-se a uma
virtuando a sua memória. Como restaurou o representação rígida do poder hierático.
culto de vários deuses egípcios, privilegiando São dadas poucas concessões ao naturalismo
Amon, as esculturas representavam um faraó e ao retrato, e os faraós são representados
de regresso ao Templo de Karnak, santuário como seres que não pertencem a este mundo.
tebano de Amon. Por exemplo, Tutankamon Além disso, a conclusão da Colunata Pro-
ao lado daquele deus e da sua mulher, a deusa cessional de Amenófis III, em Luxor, com a
Mut. Há outros exemplos, como o de uma inclusão da sua efígie na porta da parede
estátua colossal de Amon esculpida em Karnak norte, é igualmente uma declaração explícita
com o rosto do nosso protagonista. da vontade de se sobrepor ao reinado do pai e
Assim, com ele não só terminou o período de retomar a imagem dinástica do avô através
monoteísta do reinado de Akhenaton como das artes plásticas.

A descendência que não chegou


Tutankamon e Ankhese- no Vale dos Reis, perto do de de cerâmicas, alimentos e
namon não tiveram filhos. Ay, com quem Ankhesena- ferramentas compatíveis com
Assim, extinguiu-se com eles mon casou após a morte de a proximidade de um enterro
a linhagem sanguínea da Tutankamon. A sua possível real. Com a ajuda de radares,
dinastia iniciada com o rei descoberta foi anunciada a expedição encontrou uma
Amósis I. O casal real ainda pelo egiptólogo Zahi Hawass anomalia no subsolo que
esperou um herdeiro (na em 2018, depois de detetar, pode corresponder à entrada
realidade, seriam duas gé- numa escavação, restos da sepultura.
meas), mas Ankhesenamon
sofreu um aborto espontâ-
neo que deitou por terra os
seus desejos. Esta teoria
apoia-se no achado de fetos
mumificados junto dos restos
mortais do faraó que corres-
pondiam a duas meninas (a
diferença de tamanho não
impediu que os egiptólogos
os considerassem fruto de
uma gravidez única). Atual-
AGE

mente, está a ser procurado Tutankamon sentado com a mulher, Ankhesenamon, num
o túmulo de Ankhesenamon suporte de madeira dourada da antecâmara do seu túmulo.

45
Uma dinastia a querer O MISTÉRIO DA SUA MORTE
De qualquer forma, embora na Estela de Res-
transcender-se tauração de Cultos se descreva o estado mise-
rável em que o país se encontrava devido aos
Quando Tutankamon morreu, a rainha Ankhe- erros de Akhenaton, é importante destacar
senamon fez uma tentativa desesperada de que Tutankamon respeitou a memória do
impedir o fim da sua linhagem. Com esse obje- pai, que só mais tarde foi considerado um
tivo, endereçou uma carta ao rei dos hititas, inimigo do país. Podemos afirmá-lo porque a
Suppiluliuma, a solicitar o envio de um dos múmia de Akhenaton só foi ultrajada algumas
seus filhos para o Egito de modo a casar com décadas após a sua morte, momento em que
ele e torná-lo faraó. Nela, a rainha confessava, a sua memória começou oficialmente a ser
inclusivamente, o horror que sentia face à ideia denegrida. Na verdade, a transição política de
de poder vir a unir-se a um servidor da corte pai para filho foi pacífica, até porque ambos
para evitar a perda de poder. Suppiluliuma os reinados foram considerados, no seu tempo,
demorou a convencer-se da veracidade desta como parte da revolução amarniense, tal como
oferta e só enviou o seu filho Zennanza depois o de Ay, sucessor de Tutankamon. Pode,
de receber a confirmação de um embaixador pois, concluir-se que a mudança foi mais
que tinha passado pela corte tebana. No en- gradual do que inicialmente se pensava.
tanto, todos os seus receios estavam certos,
porque o príncipe foi assassinado durante
a viagem, outra morte que se junta às acu-
sações por assassínio formuladas contra Ay. A colunata do Templo
Alguns investigadores apontam, contudo, que de Karnak é um dos
a responsável por esta proposta ao rei hitita monumentos que
tenha sido Nefertiti, para, à morte de Akhena- mais informação
ton, ter hipótese de reinar. Daqui surgiu a ideia oferecem
de que Semenkhkare nunca existiu e que, na sobre a época.
verdade, foi o nome que Nefertiti adotou para,
travestida de homem, aceder ao trono após a
morte do marido.
ALAMY

Escultura de pedra,
provavelmente hitita,
do rei Suppiluliuma,
com mais de 3000
anos de antiguidade.

46
A colunata de Luxor mostra
a vontade de Tutankamon de colocar
um ponto final na deriva religiosa do pai
A morte repentina de Tutankamon deu lugar algum usurpador de poder. Além disso, as
a várias suposições sobre as possíveis causas. pinturas da sua sepultura, que parece ter sido
Alguns investigadores apostaram num um reaproveitamento de outra, foram reali-
assassínio, uma vez que a múmia apresentava zadas à pressa e os objetos não eram os mais
um buraco no crânio, tendo sido interpretado adequados ao enterro de um rei.
como o resultado de um golpe com um A pergunta que continua no ar é se não terá
objeto contundente. Nos últimos anos, tam- sido Ay o causador da sua morte, a fim de aceder
bém tem ganhado força a suspeita de um à coroa e ao poder absoluto do Egito, se foi um
acidente de carro, que pode ter sido provocado acidente de caça ou outro ou se, pelo contrário,
ou não. o jovem faraó Tutankamon morreu em resultado
O certo é que a rapidez com que o seu das suas inúmeras doenças.
túmulo foi arranjado indica que não era uma
morte esperada, talvez determinada por S.R.R.

AGE

47
48
GETTY
A importância
de um nome
O
s reis egípcios não tinham um, Akhenaton (Amenófis IV), decidiu instau-
mas cinco nomes, que os definiam rar a sua ideia de religião monoteísta no
como o único soberano do país do Egito.
Nilo e confirmavam a sua dupla
natureza entre a humana e a divina. Entre REGRESSO À ORDEM TRADICIONAL
os mais importantes, vale a pena destacar o Assim, o nome de ambos era na verdade
nome de coroação (prenomen) e o nome de Tutankaton e Ankhesenpaaton. Uma vez
nascimento (nomen). Ambos são facilmente restabelecida a ordem, foi aplicada uma
distinguíveis porque eram escritos dentro do damnatio memoriae que também envolvia a
cartucho, termo dado ao círculo protetor que transferência da residência e da necrópole
emoldurava os nomes reais, pela sua seme- real para Tebas, antiga capital do país, a
lhança com as munições usadas pelos solda- recuperação dos cânones artísticos tradi-
dos franceses durante as campanhas militares cionais e o regresso a uma religião politeísta,
de Napoleão no final do século XVIII. a qual privilegiava o deus Amon, divindade
O nomen era o que recebia especial atenção que, aos poucos, tinha alcançado um lugar
da parte dos reis egípcios e aquele que estava relevante no panteão egípcio.
intimamente relacionado com as mudanças Este claro desejo de rutura com o estado
e a situação política do país. O paradigma anterior, que se tinha totalmente oposto à
deste facto está em Tutankamon, que teria ideia cosmogónica tradicional do Egito, foi
inicialmente nascido com outro nome. materializado pelo próprio rei através de
Tanto ele como a sua irmã Ankhesenamon uma mudança de nome: agora honrava
receberam um “nome de nascimento” que Amon, e o Egito seguia, mais uma vez, a
homenageava claramente Aton, um aspeto ordem natural das coisas.
menor do deus Rá transformado em divin-
dade única quando o seu antecessor, o rei M.L.G.G.T

“Oh, seja outro nome! o que há num nome?


Aquilo a que chamamos rosa
com qualquer outro nome
teria o mesmo doce aroma.”
William Shakespeare
(“Romeu e Julieta”)

49
Tutankamon
Nome de nascimento original

= Tutankaton
“A viva imagem de Aton”

Após a restauração da ordem

=Tutankamon
“A viva imagem de Amon,
governador de Tebas”

Ankhesenamon
Nome de nascimento original

= Ankhesenpaaton
“Ela vive para Aton”

Após a restauração da ordem

=Ankhesenamon
“Ela vive para Amon”
AGE

50
51
Objetos
pessoais
O
túmulo de Tutankamon continha PROBLEMAS DE SAÚDE
um dote funerário composto por Dos estudos clínicos que foram sendo
5398 objetos, entre os quais vários realizados ao longo do tempo à múmia
pertences pessoais e íntimos, que do jovem faraó, sabemos que, entre os vários
nos dão uma imagem mais humana e próxima problemas de saúde que o seu corpo de 19
do faraó.Foram encontrados cerca de 40 baús anos apresentava, estava um pé de equino-
de madeira que continham joias, roupas e varo, ou pé torto (o esquerdo). Trata-se de
outros utensílios pessoais. A coleção de tecidos, uma deformação congénita que lhe deverá
ainda muito pouco estudada, é considerada a ter causado grandes dificuldades em andar
mais importante da arqueologia egípcia. Entre ou manter-se de pé, pelo que necessitava de
as diferentes peças, estão as cuecas do faraó, calçado adaptado e de bengalas, das quais
a primeira roupa interior historicamente foram encontradas 130 exemplares de vários
documentada. É uma espécie de fralda de linho, tamanhos e materiais.
de forma triangular, que se colocava por baixo Entre as diferentes sandálias, Carter também
da túnica. encontrou algumas que apresentavam
Há também mais de 40 pares de sandálias, de uma estrutura curiosa que garantia melhor
vários tamanhos. Algumas foram claramente aderência do pé esquerdo quando pousado
usadas pelo monarca, devido às marcas de no chão. Tutankamon terá tido, sem dúvida,
desgaste que apresentam; outras são novas, o que podemos considerar o primeiro sapato
para estrear no Além. Algumas das sandálias ortopédico da história.
eram feitas com papiro e junco, enquanto Todos estes objetos pessoais do monarca
outras eram de couro e lâminas de ouro, bor- revelam uma imagem invulgar: a de uma
dadas com contas. Entre todas, destacam-se criança frágil, incapacitada, com sapatos
as sandálias em que, na base, podemos ver adaptados e que precisava de bengalas para
representados os seus inimigos, núbios de poder manter-se de pé, o que deve ter sido
pele escura e asiáticos de barba pontiaguda, muito difícil para um dos faraós mais conhe-
amarrados, simbolizando os adversários do cidos da história do Egito.
rei, esmagados a cada passo sob os seus pés e
a sua força divina. V.B.T

52
GETTY

As peças dão
muita informação
sobre a vida de
Tutankamon

GETTY
Este frasco
cosmético continha
O cabo de uma uma mistura de
das bengalas gorduras vegetais
do faraó que e animais.
o ajudavam O leão representa
a manter-se de pé Tutankamon
representa por cima dos
dois dos seus seus inimigos
escravos ou tradicionais, da
AGE

prisioneiros. Núbia e da Ásia.

No túmulo, havia
mais de 40 pares
de sandálias, todas
muito ornamentadas,
em cuja base se
podem observar
representações
dos seus inimigos.
Algumas estavam
adaptadas ao seu
problema dos pés.

O trono real de
Tutankamon é feito
de madeira, folha
de ouro, prata,
gemas de vidro
e pedras preciosas.
A sua elaboração
é de uma
complexidade
extraordinária.
GETTY

53
A lenda
da maldição
A
pós sete anos a escavar no Vale dos na presença do próprio Carter, de Carnarvon,
Reis, a longa e até então infrutífera de Arthur Callender, amigo de Carter e antigo
expedição de Howard Carter estava funcionário egípcio, de lady Evelyn Herbert,
prestes a fazer perder a paciência filha de Carnarvon, do químico Alfred Lucas
ao seu mecenas, lord Carnarvon. Porém, o e do fotógrafo Harry Burton.
milagre aconteceu, e aquela associação de As portas exteriores das câmaras tinham sido
talento e dinheiro que começara em 1908 deu abertas e saqueadas duas vezes na Antiguidade,
frutos em 4 de novembro de 1922, quando mas as da terceira, coberta de ouro, que
o arqueólogo inglês descobriu o túmulo de continha o sarcófago real, ainda estavam
Tutankamon, o mausoléu faraónico mais seladas, sugerindo que o seu conteúdo estaria
bem preservado e intacto jamais encontrado. intacto. Foi Carter quem quebrou o selo de
O achado viria a desencadear a febre da egip- entrada. No fundo de um corredor, numa
tologia no início do século XX e fez correr rios segunda parede, fizeram uma pequena aber-
de tinta. Por essas águas da imprensa, navegou tura pela qual o inglês introduziu uma luz.
também a notícia sensacionalista de que o Embora o seu mecenas, lord Carnarvon, e a sua
túmulo carregava uma terrível maldição que filha, lady Evelyn, estivessem ao seu lado, foi
se abateria sobre quem ousasse profaná-lo. o egiptólogo o primeiro a ver o sarcófago de
Sobre o achado, Carter ficou com todas as Tutankamon. Os seus olhos contemplaram ao
honras, mas a verdade é que o túmulo foi des- vivo, pela primeira vez, os restos milenares
coberto por um rapaz de dez anos, chamado do faraó e todo o seu dote funerário.
Hussein. Aguadeiro oficial da missão, foi ele
que, naquele dia, ao escavar com as mãos a MORTES ESTRANHAS
areia para acomodar os seus potes de barro, Dois meses depois, quando os trabalhos no tú-
encontrou acidentalmente o primeiro mulo mal tinham começado, lord Carnarvon
degrau de uma escada esculpida na pedra, morreu inesperadamente no Cairo. A sua morte
quatro metros abaixo da entrada do túmulo de prematura, aos 56 anos, foi oficialmente atri-
Ramsés VI. Quando isto aconteceu, o teimoso e buída a “uma pneumonia devida a erisipelas”,
solitário Carter tinha 47 anos e andava há 30 infeções cutâneas causadas por estreptococos.
à procura de algo assim nas areias do Egito, Dizia-se que tinha cortado uma borbulha de
mas sem sucesso. mosquito ao fazer a barba e que a infeção se
Retirada a areia da escada, esta conduzia a uma espalhara, culminando numa pneumonia
porta decorada e trancada. Carter introduziu devastadora (foi o que o seu filho contou à
uma lanterna elétrica por um pequeno buraco egiptóloga Christiane Desroches).
e avistou uma passagem. “Precisei de auto- Carnarvon tinha uma saúde delicada, devido
controlo para evitar derrubar a porta”, disse. a um acidente de automóvel que quase lhe
Carter ordenou que o achado fosse coberto e custou a vida, pelo que sofria com frequência
guardado, enquanto atravessava o Nilo para de infeções pulmonares, mas depressa
enviar um telegrama a Carnarvon, que chegou começou a surgir uma versão muito diferente
à cidade no final daquele mês. Em 16 de feve- que fez crescer a lenda da maldição da múmia,
reiro de 1923, a câmara funerária foi aberta, para a qual contribuíram outras mortes

54
“Estes homens encontrarão
ouro... e morte!”, terá
gritado um dos operários
egípcios quando viu Carter
GETTY

entrar no túmulo.
A maldição das múmias
já era uma lenda popular.

55
estranhas para além da do próprio conde: a de fizeram mais do que avivar a imaginação
Arthur Mace, que abriu o túmulo ao lado de da imprensa, que difundiu a ideia de que as
Carter e morreu antes de ele ser esvaziado; a do estranhas mortes eram consequência da
irmão de lord Carnarvon, Aubrey, que morreu profanação do túmulo (os jornais ingleses
subitamente no mesmo ano; a de sir Archibald chegaram a atribuir 30 mortes à maldição).
Douglas Reid, que tinha radiografado a múmia;
a do magnata norte-americano George Jay MALDIÇÃO ALIMENTADA
Gould, que morreu de pneumonia depois de Howard Carter nunca acreditou na maldição,
visitar o túmulo; a de Richard Bethell, secre- chegando a referir: “O espírito de compreen-
tário de Carter, que se finou estranhamente são inteligente está ausente dessas ideias
também em 1929. estúpidas.” A sua própria morte, 17 anos após
A verdade é que estudos posteriores revelaram a descoberta, ocorrida em Londres, aos 64 anos,
que, das 58 pessoas que estiveram presentes uma idade avançada para a época, e devida à
durante a abertura do túmulo e do sarcófago, doença de Hodgkin, é o melhor argumento
apenas oito morreram ao longo dos doze anos para os detratores da maldição. Porém, vários
seguintes, mas estes acontecimentos não fatores alimentaram a fantasia popular: a
segurança (provavelmente, o mito visava
assustar os ladrões de túmulos para que se
mantivessem afastados) e a imprensa.
A história da maldição foi impulsionada pelos
jornais da época, talvez pelo próprio Times,
que tinha conseguido o exclusivo do achado.
Personagens como o escritor escocês Arthur
Conan Doyle, criador de Sherlock Holmes, e

A imprensa inglesa
atribuiu à maldição
a morte de 30 pessoas,
incluindo Carnarvon

56
a popular romancista britânica Marie Corelli a versão infecciosa e várias revistas médicas,
também colocaram achas na fogueira. O pri- como a The Lancet, publicaram estudos a esse
meiro, segundo publicou a imprensa na altura, respeito. O microbiólogo Raul Rivas escreveu
atribuiu a morte de Carnarvon a um “mal que alguns agentes patogénicos, como o
elementar” guardado no túmulo, que assim Aspergillus niger, o Aspergillus terreus ou o
se vingava dos seus profanadores; a segunda Aspergillus flavus, conseguiram permanecer
escreveu uma carta ao jornal New York World, trancados na câmara real durante milénios,
alegando conhecer velhos textos árabes que acabando por atacar o imunodeprimido Car-
mencionavam uma maldição antiga (“A morte narvon.
estenderá as suas asas sobre todo aquele que se O facto de os esporos de Aspergillus poderem
atrever a entrar no túmulo selado de um faraó”) permanecer adormecidos por longos períodos
e que falavam de venenos depositados nos de tempo nos pulmões explicaria que não
túmulos egípcios para aniquilar aqueles que os tivesse apresentado sintomas de infeção nos
profanassem. Apesar de tanto egiptólogos cinco meses a seguir à entrada na sepultura,
como médicos terem desprezado a teoria do além de poderem estar relacionados também
veneno, acabaram por fornecer outra hipótese: com a infeção que sofreu nos olhos e nas fossas
germes que causariam uma infeção fatal. nasais. O certo é que, ainda hoje, a história da
infeção fúngica tem mais de rumor do que de
EXPLICAÇÃO LÓGICA? verdade. É uma ideia plausível como explica-
A teoria de que lord Carnarvon morreu de ção para a morte de Carnarvon, mas a ciência
uma infeção causada por fungos adormecidos não pode afirmar categoricamente que foi a
durante séculos no túmulo de Tutankamon causa.
perdurou porque chamou a atenção da ciên-
cia. Muitos cientistas começaram a discutir C.E.T

METROPOLITAN MUSEUM OF ART

Ao quebrar o selo
que fechava
a terceira câmara
do túmulo
de Tutankamon
(a que continha
o sarcófago real),
Howard Carter
abriu a porta
à lenda da
“maldição
da múmia”.

57
SHUTTERSTOCK

58
A época da
XVIII Dinastia
P
or volta de 1540 a.C., inicia-se, no escolher este impressionante lugar para
Egito, o período conhecido como acomodar, sob o sol escaldante do deserto,
Império Novo, uma era que vai fazer as suas moradas eternas.
florescer todo o vale do Nilo. Será
uma das fases mais apaixonantes e de maior EXPULSAR OS ESTRANGEIROS
esplendor de toda a história do país. Tebas Ao longo de vários séculos, o Egito viveu con-
torna-se a residência real, a grande capital do tínuas flutuações, períodos de declínio e de
Egito, uma fabulosa metrópole que se estendia florescimento, crises de poder, guerras civis.
por mais de 93 quilómetros quadrados, na Houve, inclusivamente, reis estrangeiros a
margem oriental do Nilo. Era o reino do deus governar o vale do Nilo. No entanto, poucos
Amon, cujo filho terreno era o faraó. acontecimentos foram tão importantes como
Do outro lado do rio, na margem ocidental, os ocorridos por volta de 1550 a.C. Cerca de
onde o Sol se põe, encontrava-se a montanha cem anos antes, governantes de origem asiá-
tebana, ou sagrada, onde se estendiam todas tica já tinham assumido o poder no Egito,
as necrópoles reais e civis da capital e os aproveitando a fraqueza dos reis e a decadên-
templos funerários dos faraós; era o reino cia da etapa conhecida como Império Médio.
de Osíris, senhor do Além. Os egípcios Pela primeira vez na sua história, o país estava
chamavam a este lugar el-Gurn ou monte a ser governado por estrangeiros, os hicsos,
ta-sejet-aat. O Corno ou Pico Tebano eleva-se termo que vem do antigo egípcio heqa kha-
a 420 metros de altitude e a forma da mon- sewet, que significava literalmente “gover-
tanha possui uma geometria curiosa que nante de terras estrangeiras”.
lembra as pirâmides, lugar de enterros reais Entre os muitos vassalos dos hicsos, encon-
no Império Antigo. É possível que este ele- travam-se nobres de Tebas que durante a
mento geomorfológico tenha impulsionado XVII Dinastia sempre cooperaram sem qual-
os primeiros faraós da XVIII Dinastia a quer resistência, até ao reinado de Seqenenre,

59
AGE
Esta gravura retrata a invasão dos hicsos, um termo que vem do egípcio antigo heqa khasewet e significava
literalmente “governante de terras estrangeiras”.

AGE

Avenida das Esfinges no Templo de Karnak, em Luxor.

60
Todos os reis fizeram
Questão de engrandecer
o Templo de Karnak,
o que deu mais poder
aos sacerdotes
que deu início à guerra de libertação do Egito.
Durante anos, lutas intensas abalaram o vale
do Nilo, até que, por fim, cerca do ano 1540
a.C., Amósis I saiu vitorioso quando enfrentou
os “governantes estrangeiros” e subiu ao
trono, inaugurando a XVIII Dinastia e uni-
ficando o país. É assim que começa uma das
etapas mais importantes e florescentes do
Antigo Egito.

MAIOR CIDADE DO MUNDO


O historiador inglês Ian Morris (n. 1960)
estimou que, por volta do ano 1500 a.C., Tebas
seria a maior cidade do mundo, com uma
população de mais de 75 mil habitantes. O deus
tebano Amon foi nomeado deus do Império,
e em sua honra foram construídos vários
santuários. O Templo de Karnak tornou-se
o maior centro religioso do mundo de então,
um complexo de recintos sagrados dedicado
aos deuses mais importantes do Egito.
Esta espetacular construção destaca-se pela
sua sala hipóstila, com mais de meio hectare,
e pelas 134 gigantescas colunas papiriformes
que a sustentam. Os seus colossais fustes
foram completamente decorados com relevos
policromados e simbolizam o grande pântano
primitivo a partir do qual surgiu a vida no
Egito. Todos os faraós desta dinastia quiseram Osíris era
engrandecer a majestosidade do lugar, cons- o Senhor
truindo templos, capelas e locais de culto dos Mortos
que, progressivamente, foram dando maior na antiga
poder à classe sacerdotal. religião egípcia.
Os primeiros reis da XVIII Dinastia começaram Podemos
a proteger as fronteiras do Egito, reforçando vê-lo aqui com
militarmente os territórios conquistados no o traje mortuário
Médio Oriente e na Núbia. O país começou com que se
a abrir-se cada vez mais ao exterior e o mumificava.
comércio e a arte floresceram por todo o lado. É uma ilustração
A rainha Hatshepsut chegou ao trono em 1479 baseada em
obras do Império
a.C., depois da morte do seu meio-irmão
Novo.
e marido Tutmés II. Com o seu reinado, iria
escrever-se um dos capítulos mais apaixo-
nantes das famílias reais egípcias.

INÍCIO DO FLORESCIMENTO
Depois de ficar viúva, Hatshepsut tornou-se
corregente com o seu sobrinho menor, Tut-
més III, filho do marido e de uma das suas
ASC

61
Coluna
com a cabeça
da deusa Hathor,
representada
com orelhas
de vaca
AGE

A localização privilegiada
do Templo Mortuário
de Hatshepsut
sublinha ainda mais
a sua magnificência.
As montanhas,
ao fundo, cobrem-no
como um manto.
ASC

62
esposas secundárias. Não demorou muito
para se autoproclamar faraó, fazendo-se
Fascínio sem fim
representar até com o arquétipo próprio de Desde que, em 1922, Howard Carter
um faraó: físico masculino, rosto e corpo descobriu o túmulo surpreendente do
vigorosos, toucado e a cerimonial barba pos- faraó esquecido, demorou mais de
tiça, como podemos observar nas imagens dez anos a escavá-lo, documentá-lo
do seu emblemático templo funerário em e extrair todo o seu tesouro. Hoje,
Deir el-Bahari. esta incrível história cheia de mistério
A história da sua vida esteve ligada a diferentes continua a fascinar, e a sua máscara
lutas pelo poder, que lhe pertencia legitima- de ouro, passados 3300 anos, con-
mente desde o nascimento. A ascensão da tinua a cativar o olhar de milhões as
rainha ao trono aconteceu graças ao apoio de pessoas. Carter escreveu: “A más-
um grupo de poderosos e influentes funcio- cara de ouro batido, um belo e único
exemplar da antiga arte retratista, tem
nários da corte real. Hoje em dia, sabemos que
uma expressão triste mas tranquila,
o seu reinado foi um dos mais florescentes,
evocando a juventude ceifada prema-
do ponto de vista artístico, de todo o Egito.
turamente pela morte. Esta máscara
A arte e a cultura tiveram um impulso incrível é, sem dúvida, uma das mais incríveis
em todo o vale do Nilo, muitas tradições joias de ourivesaria jamais realizadas.
antigas reativaram-se, ao mesmo tempo que Composta por onze quilos de ouro
surgiram grandes inovações. A rainha-faraó puro, lápis-lazúli, cornalina, turquesa,
atribuiu grande importância à construção e ao massa vítrea, quartzo e obsidiana,
restauro de edifícios religiosos, bem como aos apresenta um rosto com uma elegân-
contactos comerciais e diplomáticos com cia inigualável. A parte traseira contém
países estrangeiros. um texto extraído do capítulo 151 do
Impressionante, também, foi a expedição Livro dos Mortos, no qual se equipa-
comercial que, no oitavo ano do seu reinado, ram os órgãos sensoriais do falecido a
Hatshepsut enviou ao país de Punt, cuja divindades. Ao recitar o texto, o sobe-
localização exata ainda hoje se desconhece. rano torna-se um ser todo-poderoso.
Os esplêndidos relevos do seu templo fune- Este feitiço era um fortíssimo talismã
rário narram que a expedição durou vários na viagem para o Além e no caminho
meses e percorreu mais de mil quilómetros para a eternidade.” Extrair a máscara
em terras e mares estrangeiros, e que regres- do corpo mumificado do faraó não foi
sou com árvores de mirra, incenso, animais tarefa fácil. O próprio Carter contou:
exóticos, ouro e pedras preciosas. A viagem a “Estava tão presa que tive de arran-
car a escopro o material por baixo
Punt foi um marco na história da humani-
do tronco, dos braços e das pernas
dade, por ter sido a primeira grande decisão
para poder levantar os restos mortais
estratégica de política internacional com o
do rei.” O corpo estava praticamente
objetivo de controlar uma rota comercial colado ao caixão por uma substância
importante, neste caso para os interesses negra solidificada, por certo relacio-
do Egito. nada com uma quantidade excessiva
de óleos e resinas usados durante a
DO PACIFISMO À GUERRA mumificação.
Tudo o que o reinado de Hatshepsut teve de
pacífico se revelou belicoso e militar no do
seu sucessor, Tutmés III. Depois de subir ao
trono, este mandou destruir todos os monu-
mentos da sua antecessora (usurpou alguns) e A grandiosidade
fez apagar o nome da rainha enquanto faraó,
de tal forma que as listas de reis que surgiram
do Templo
posteriormente não mencionam a presença Mortuário
desta mulher no trono do Egito. Ficaram
famosas as suas campanhas militares contra de Hatshepsut
os mitani, no atual Curdistão, assim como as
realizadas na zona da Líbia e na Alta Núbia.
atesta
Com Tutmés III, Tebas tornou-se uma grande a importância
capital cultural e comercial.
Amenófis III, o nono faraó da XVIII Dinastia, da rainha-faraó

63
Relevo pintado
na colunata sobre
a expedição a Punt,
no Templo Mortuário
de Hatshepsut
em Deir el-Bahari.

Busto de madeira de Tutankamon,


encontrado no seu túmulo.

AGE

GETTY
Nenhum outro faraó da XVIII Dinastia
se fez representar tanto como Amenófis III
ISTOCK

Os Colossos de Mémnon são duas estátuas gémeas que mostram Amenófis III
a olhar para leste, em direção ao Nilo e ao Sol nascente.

64
Busca incessante da morada eterna
Dos 62 túmulos já desco- a data da sua descoberta; das dinastias XVIII, XIX e
bertos no Vale dos Reis, a pessoa que o descobriu XX. Podemos ver que o
apenas 24 pertencem e o tamanho do túmulo em túmulo de Tutankamon é o
realmente a faraós. Na ta- metros. Num dos ramais segundo mais pequeno da
bela abaixo, são referidos, ocidentais do Vale dos Reis sua dinastia, o que indicia
por ordem cronológica, (Kings’ Valley) está o Vale que o enterro do faraó foi
os da XVIII Dinastia (1550 dos Macacos ou Oci- repentino e improvisado. A
a 1295 a.C.) cujo túmulo dental (West Valley), local localização exata da última
foi encontrado; KV (Kings’ onde foram encontrados morada de muitos faraós
Valley) ou WV (West Valley); quatro túmulos de faraós continua a ser um mistério.

XVIII Dinastia Túmulo Descobrimento Descobridor Tamanho

Tutmés I (m. 1493 a.C.) KV 38 1899 Loret 25 m

Tutmés II (c. 1510–1479 a.C.) KV 42 1900 Carter 50 m

Hatshepsut (c. 1507–1458 a.C.) KV 20 1903 Carter 200 m

Tutmés III (1481–1425 a.C.) KV 34 1898 Loret 55 m

Amenhotep II (m. 1401/1397 a.C.) KV 35 1898 Loret 60 m

Tutmés IV (m. 1391/1388 a.C.) KV 43 1903 Carter 90 m


Jollois /
Amenhotep III (c. 1401–1353/1351 a.C.) WV 22 1799 100 m
Devillier
Tutankamon (c. 1342–c. 1325 a.C.) KV 62 1922 Carter 40 m

Ay (m. 1323/1319 a.C.) WV 23 1816 Belzoni 55 m

Horemheb (m. 1292 a.C.) KV 57 1908 Ayrton 114 m

proporcionou estabilidade e bem-estar ao FINAL INESPERADO


país. A sua política caracterizou-se por uma Tutankamon reinou apenas durante cerca de
audaciosa diplomacia com os reinos estran- dez anos, e o seu pequeno túmulo, pouco ade-
geiros, através dos seus casamentos com as quado para um faraó, leva a pensar que a sua
filhas de príncipes e governantes dos povos morte foi súbita e que a sua verdadeira morada
vizinhos. Nenhum outro faraó da sua dinastia para o Além ainda não estava preparada. A sua
mandou construir, por todo o país, tantos sepultura foi arranjada e decorada à pressa e
e tão monumentais templos e estátuas de si de forma pouco cuidada. Em contrapartida, o
mesmo. Vale a pena destacar, por exemplo, seu incrível enxoval funerário, composto por
os Colossos de Mémnon, que se encontravam 5398 objetos, continua a ser, ainda hoje, objeto
à entrada do seu templo funerário. de inúmeros estudos e análises.
Akhenaton subiu ao trono quando o seu irmão Tutankamon morreu aos 19 anos, sem deixar
mais velho, o príncipe-herdeiro, morreu herdeiros (as suas filhas morreram antes). Como
prematuramente. Este monarca deu início a disse Howard Carter (1874–1939), o arqueólogo
uma nova etapa na história da arte no Egito. inglês que descobriu o seu túmulo quase intacto,
Foi um rei visionário e radical e um grande em 1922, se alguma das filhas de Tutankamon
reformista. Quando Akhenaton morreu, subiu tivesse sobrevivido e reinado, a história do Egito
ao trono um soberano efémero, seguindo-se teria sido muito diferente. Assim, acabou por
uma criança com oito ou nove anos chamada extinguir-se a XVIII Dinastia.
Tutankaton, que depois mudou de nome para
Tutankamon. V.B.T

65
CAPELA
DA BARCA
DE AMON SALA
HIPOSTILA
PÁTIO SOLAR
DE AMENÓFIS III TERRAÇOS
DO PÁTIO

SALA
DO SANTUÁRIO

CAPELA
DA BARCA
DE JONSU

CAPELA
DA BARCA
DE MUT

GRANDE
COLUNATA

O esplendor
de Luxor
O
Templo de Luxor, um dos locais avenida de dois quilómetros rodeada por
de culto mais antigos do mundo, 700 esfinges com cabeça de carneiro. Um
s e r ve c o m o r e fe r ê n c i a p a r a caminho que, uma vez por ano, na Festa de
entender a magnitude das cons- Opet, era percorrido por Amon, o deus do
truções egípcias. Foi erguido na antiga Sol, quando este regressava da visita à deusa
Tebas por volta de 1400 a.C. Dedicado à tríade Mut, sua mulher, em Luxor (Khonsu, o deus
tebana (Amon, Mut e Khonsu), estava da Lua, foi o resultado da união de ambos).
relacionado com o Templo de Karnak, nas A viagem de ida desde Karnak era feita de
proximidades, do qual se separava por uma barco, pelo rio. Iniciado por Amenófis III,

66
RECONSTRUCCIÓN: JOSÉ ANTONIO PEÑAS
PÁTIO SOLAR
DE RAMSÉS II

ACESSO
AO CAIS

GRANDE
PILONE DE
RAMSÉS II

PORTA OBELISCO
DO POVO LEVADO
PARA PARIS

DECORAÇÃO
POLÍCROMA

que construiu a parte interior do templo, tíbulo e o santuário. Mais tarde, Ramsés II
viria a ser acabado por Ramsés II, que pro- acrescentaria outro pátio, a fachada, os
jetou o recinto externo. Outros reis também grandes colossos e os obeliscos. As paredes
intervieram na sua construção, como do pilone descrevem a batalha de Kadesh,
Tutankamon, Horemheb e, até, o conquis- travada por Ramsés II contra os hititas. Dois
tador grego Alexandre, o Grande. Tinha 260 obeliscos ladeavam a porta, mas, em 1836,
metros de comprimento e 50 de largura. um deles foi removido e levado para Paris,
A construção inicial era formada por um onde ainda hoje se encontra, na Praça da
grande pátio solar, a sala hipostila, o ves- Concórdia, frente ao pátio do Louvre.

67
Mulher e menina do tempo de Akhenaton, num baixo-relevo de 1349 a 1336 a.C.

METROPOLITAN MUSEUM OF ART

68
A vida
das mulheres
A
sociedade do Antigo Egito estru- SER MULHER
turava-se em torno da família e NO EGITO DOS FARAÓS
era tremendamente hierarqui- A partir dos escritos e de várias cenas que
zada e administrada por uma decoram as paredes de túmulos, templos e
elite minoritária. Neste contexto organi- papiros, entre muitos outros suportes, é fácil
zacional, as egípcias ocupavam um lugar deduzir que a mulher egípcia participava ple-
decisivo. A capacidade administrativa, legal namente na sociedade em que estava inserida.
e jurídica das mulheres egípcias do período As imagens mostram-nos desde mulheres de
faraónico estava equiparada, em muitos classes superiores às mais simples envolvidas em
aspetos, à dos homens. diversas atividades, representadas em cenas
É o que os textos indicam, ao mesmo que nos permitem observar o quotidiano
tempo que nos informam do da sociedade egípcia sob uma pers-
afeto e do respeito que petiva de género.
o varão nutria pela mãe As inscrições associadas às
ainda no seio familiar, suas figuras indicam-nos
partilhado depois, com as os cargos que as mulheres
devidas precauções, com podiam ocupar e os níveis
a mulher, como podemos sociais que algumas che-
ler em frases de sábios: gavam a alcançar, mas
“Divide ao meio a comida é precisamente em re-
que a tua mãe te deu, susten- lação a essas hierarquias
ta-a como ela te sustentou. Ela que constatamos que ser
teve uma carga pesada contigo, mulher limitava muito as
mas nunca te abandonou.” egípcias. Não eram muitas
“Não abras o teu coração à as posições relevantes às
tua mulher; o que quer que quais as damas da elite
lhe digas pertencerá à rua... podiam aspirar, embora
Abre-o com a tua mãe, que algumas, sempre em
é uma mulher discreta.” número inferior ao dos
seus pares masculinos,
atingissem elevadas
posições nos escalões
Uma princesa mais destacados do
de Amarna, talvez governo e do clero. Foi o
Nefertiti, numa que aconteceu ao longo da
GETTY

escultura de história do estado faraónico,


quartzito rosa que reconhecia e respeitava
de 29 cm de altura,
os direitos das mulheres,
atualmente no Museu
mas, normalmente, as su-
do Louvre (Paris).
bordinava à figura masculina.

69
As filhas
de Akhenaton
foram largamente
representadas,
o que demonstra
a sua importância;
aqui, num fresco
de Amarna datado
GETTY

de 1353 a 1335 a.C.

DEUS VIVO simbólicos e respondessem a razões proto-


Segundo a ideologia faraónica, o trono do colares.
Egito estava destinado ao homem. Uma vez Ao longo da história do Antigo Egito, estes
no poder, a natureza humana dessa persona- preceitos ideológicos foram sendo obviados,
gem fundia-se com uma divindade poderosa: em certas ocasiões. Durante a XVIII Dinastia,
o deus Hórus. Nessa capacidade, o faraó, verificaram-se, até, algumas irregularida-
enquanto expressão máxima da realeza, tor- des. A que mais se destaca é a ascensão ao
nava-se o instrumento sagrado que mediava trono da rainha Hatshepsut, ocorrido pouco
entre os deuses e a humanidade. A sua con- depois de 1470 a.C. Na mesma dinastia, houve
dição de Hórus vivo obrigava-o a proteger o esposas principais na realeza faraónica, como
reino de ameaças e adversidades. a rainha Tiy e Nefertiti, que não pertenciam à
Nessa missão sagrada, que envolvia dirigir e linhagem dinástica. No entanto, apesar da sua
proteger o país que governava, o faraó atuava chegada irregular à realeza, estas duas
ao lado da Grande Esposa Real, título de grande mulheres afirmaram fortemente o seu poder:
significado que mostrava a importância da atuaram à margem da discrição que havia
mulher nos meandros do poder real. caracterizado as suas antecessores e deixaram
a sua autoridade registada em inúmeros
TRANSMISSORAS DA REALEZA monumentos da época.
Essa tradição ditava que a esposa principal do
faraó, que coexistia com outras esposas e con- SENHORA DA CASA
cubinas do monarca, tinha de ser de linha- Como viviam as mulheres naquele tempo?
gem real, pois eram as princesas nascidas Nos túmulos dos homens da XVIII Dinastia,
das esposas principais que transmitiam a rea- é frequente encontrar cenas que mostram o
leza faraónica. Estas mulheres transferiam dono do monumento e a sua mulher. Ambas
a sua condição sagrada para o marido através do as figuras costumam estar equiparadas em
casamento, e as filhas nascidas de ambos tamanho e no tipo de ornamentos que exi-
herdariam a mesma capacidade da mãe para bem. As inscrições hieroglíficas, dedicadas
transmitir a realeza. principalmente ao varão, incluem, em regra,
Esta perceção dotou as princesas reais de o nome da sua mulher acompanhado pelo
grande transcendência e implicou que, ao título de “senhora da casa”, o que assinala
longo da história do Egito faraónico, se rea- a sua importância no âmbito do lar. Outras
lizassem casamentos entre irmãos, meios- vezes, as inscrições expunham, se fosse o
–irmãos e, até, entre pais e filhas, embora caso, o cargo por ela detido, frequentemente
muitos destes enlaces fossem meramente relacionado com o culto de uma divindade.

70
Alguns destes túmulos também oferecem igualmente vestidos requintados. Na deco-
representações de banquetes ou outras ração de túmulos, templos e capelas, veem-se
celebrações em que participam grupos femi- ainda cenas em que dançarinas profissionais
ninos. Essas mulheres aparecem cobertas com animam as mais diversas celebrações.
amplos vestidos de linho, grandes perucas e Noutros suportes semelhantes, as mulheres
adornadas com joias e outros acessórios que aparecem como carpideiras nos cortejos
fazem sobressair a sofisticação e o luxo femi- fúnebres que acompanhavam os defuntos até
nino da época nos círculos mais abastados. ao cemitério, bem como em variadíssimas
Nestas representações, as mulheres da cenas da vida quotidiana. No entanto, o número
nobreza são cuidadas por jovens que se cobrem em que estas figuras surgem representadas é
apenas com uma faixa de tecido, expondo sempre menor do que o dos homens em tarefas
os seus corpos com naturalidade. Algumas semelhantes.
destas jovens integram orquestras femininas Resumidamente, a partir destas e de outras
que acompanham a festa, atuando ao lado de fontes documentais, sabemos que as mulheres
outras tangedoras de instrumentos que usam egípcias de diferentes meios sociais da XVIII

ASC

Este baixo-relevo de Amarna pode representar Akhenaton e Nefertiti,


Semenkhkare e Meritaton ou Tutankamon e Ankhesenamon.

71
Tutankhamon e Ankhesenamon sob
o disco solar, no encosto de um dos
tronos encontrados no seu túmulo.
GETTY
As mulheres cuidavam das casas
e das crianças, participavam no culto
dos deuses e tinham vida social

Dinastia cuidavam das suas casas e participa- Sucedeu-lhe Tutmés III, do qual duas das
vam nos cultos dos deuses, atendiam como suas mulheres, Sitiah e Hatshepsut Merira,
anfitriãs, convidadas ou servas em várias fes- ostentaram o título de Grande Esposa Real,
tividades, eram músicas e dançarinas, chora- embora a sua pertença à linhagem funda-
vam os seus mortos e participavam nos rituais dora da dinastia seja duvidosa. Outra Grande
fúnebres, trabalhavam no campo, cuidavam Esposa Real de Tutmés III pode ter sido a sua
das crianças e desempenhavam tarefas de meia-irmã, a princesa Neferure, filha de Hat-
intendência. shepsut, sendo este o casamento que conferiu
a realeza ao faraó.
GRANDE ESPOSA REAL
No nível superior daquela sociedade, havia ESPOSAS PLEBEIAS
espaço para as damas da realeza. Entre elas, Os monarcas que lhe sucederam, Amenó-
destacava-se a figura da Grande Esposa fis II e Tutmés IV, tinham esposas principais
Real, que ocupava os cargos mais relevantes nascidas no seio da realeza. Apesar disso, o
do clero feminino, seguindo-se, por ordem de sucessor de Tutmés IV, Amenófis III, era filho
importância, as princesas nascidas dela, de uma princesa estrangeira, segundo parece
capazes de transmitir a condição divina, e a filha do rei de Mitani, país que se situava na
mãe do rei. Ainda nesse meio, conviviam as zona norte do Médio Oriente. Esta rainha,
outras esposas oficiais do faraó e as suas con- cujo casamento com Tutmés IV selava um
cubinas. acordo diplomático, é conhecida nas fontes
Entre as primeiras mulheres de sangue real egípcias com o nome de Mutemuya e osten-
da XVIII Dinastia, esteve a princesa Ahho- tou os títulos de Grande Esposa Real, apesar
tep, filha do rei tebano Seqenenre Taa I e da
rainha Tetisheri, monarcas da XVII Dinastia.
Ahhotep foi a Grande Esposa Real do seu irmão
Seqenenre Taa II. Deste casamento, nasceram
pelo menos quatro príncipes: duas meninas
e dois meninos, ambos chamados Amósis.
O primeiro morreu, provavelmente na ado-
lescência; o segundo viria a ocupar o trono do
seu pai, após o reinado de Kamose, e foi o pri-
meiro faraó da XVIII Dinastia. A rainha Ahho-
tep I tinha na altura o título de Mãe do Rei.
Pelo menos durante uma década, Ahhotep I
foi regente do jovem faraó Amósis I, que sempre
reconheceu que ele e o Egito muito deviam ao
bem-fazer desta rainha.
Durante os primeiros reinados da XVIII
Dinastia, o título de Grande Esposa Real foi usado
por princesas descendentes de Ahhotep I e
da linhagem que tinha fundado a dinastia. Os
seus casamentos colocaram no trono do Egito
os faraós Amenófis I, Tutmés I e Tutmés II.
À morte deste último, a sua viúva e meia-irmã, Busto
Hatshepsut, assumiu a regência em nome do do Templo
jovem príncipe Tutmés III, nascido de uma de Hatshepsut,
esposa secundária do rei falecido. Alguns anos provavelmente
depois, Hatshepsut autoproclamou-se faraó representando
e, apesar da sua condição feminina no trono a rainha.
de Hórus, esteve no poder durante mais de
vinte anos.
AGE

73
Representação
de Amenófis III
e da mulher,
a rainha Tiy,
ataviados com
o tipo de roupa
e objetos próprios
da sua condição.
AGE

GETTY

da sua origem estrangeira, e de Mãe do Rei.


Outras mulheres alheias à realeza alcançaram
as mesmas distinções nos reinados seguintes:
Amenófis III teve como esposa principal Tiy,
nascida de um casal de nobres com cargos
relevantes na corte e no clero. Este rei teve
outras mulheres, algumas delas estrangeiras,
como Gilukhipa e Tadukhipa, de origem
mitânica. De Amenófis III e Tiy, nasceram três
filhas, as princesas Sitamon, Ísis e Henuttabet,
e três filhos, os príncipes Tutmés, que morreu
na adolescência, Semenkhkare, cuja filiação foi
recentemente constatada através de estudos

Estela de Akhenaton, Nefertiti


e uma princesa de Amarna, que
não se vê na foto (Museu do Cairo).

74
Tutankamon, como príncipe, viveu
numa corte cheia de irmãs e meias-irmãs

genéticos, e Amenófis IV, também conhecido com ele com o grau de irmãs, meias-irmãs,
como Akhenaton e que veiculou o seu reinado tias e primas, além da sua mãe.
a Nefertiti, elevando-a a Grande Esposa Entre estas mulheres e meninas de várias
Real. Casou-se também com a rainha estran- idades, estariam as seis filhas de Akhenaton
geira Kiya, que alguns investigadores identi- e de Nefertiti: Meritaton, que detinha o título
ficam como a mitânica Tadukhipa, anterior- de Grande Esposa Real associado a Nefer-
mente casada com Amenófis III. nefruaton, nome aparentemente usado por
As mulheres mais significativas nos reinados Nefertiti como corregente do seu marido, e a
de Amenófis III e de Akhenaton foram, sem Semenkhkare, que sucedeu por pouco tempo
dúvida, as suas esposas principais, Tiy e a Akhenaton, em Amarna; Maketaton, que
Nefertiti. Apesar de não pertencerem a uma morreu na infância; a princesa Ankhesenpa-
linhagem real, nenhuma delas hesitou em aton, conhecida também como Ankhesena-
manifestar o seu estatuto de Grande Esposa mon, com a qual Tutankaton viria a casar;
Real em cenas e representações que partilham e as princesas Nefernefrutaton-Tasherit,
com os seus maridos. Nefernefrure e Setepenre, sobre as quais há
poucos dados.
AMBIENTE FAMILIAR Além das filhas de Akhenaton e de Nefertiti,
Foi também no meio da realeza que nasceu conhecem-se os nomes de outras princesas
um príncipe chamado Tutankaton, nome que que podem ter nascido da união de Akhena-
o ligou a Aton, o deus único proclamado na ton com a rainha Kiya. Estas e muitas outras
revolução de Akhenaton. Tutankaton nasceu mulheres da corte, que foram amas-de-leite,
e cresceu em Akhet-Aton, a capital da heresia. acompanhantes, educadoras e servas, fize-
Do seu ambiente infantil, faziam parte as ram parte do quotidiano do príncipe egípcio
esposas principais e outras rainhas de Ame- que conhecemos como Tutankamon.
nófis III, de Akhenaton e de Semenkhkare,
irmão daquele, e várias princesas aparentadas M.J.L.G.T

AGE

No luto pela morte de um faraó, as mulheres desempenhavam o papel de carpideiras.

75
Cleópatra VII, a última
rainha do Egito antes
da anexação por Roma,
não reinou sozinha,
mas como consorte
dos irmãos, embora
tenha estado sempre
ao comando.
GETTY

76
Poder no feminino
E
m mais de três milénios de histó- se encarregou de redigir a história do seu país
ria (3100–30 a.C.) do Antigo Egito, e de fazer o censo da longa lista dos seus reis.
foram poucas as mulheres que se No entanto, o número real das rainhas-faraó
destacaram no poder. Mesmo assim, não é consensual. Os achados arqueológicos
o estatuto social e as possibilidades de acesso trouxeram alguma luz sobre outras possíveis
a postos de comando das egípcias era muito candidatas, pelo que é possível que continuem
superior ao das gregas ou romanas, o que a aparecer pistas resgatadas do esquecimento,
se devia por um lado ao facto de em termos em muitos casos nem casual nem inocente,
legais haver igualdade em relação aos homens porque a sua memória foi perseguida e des-
(podiam denunciá-los por maus tratos, gerir truída pelos sucessores masculinos.
heranças, comprar e vender imóveis ou divor- Hoje, está historicamente documentado o
ciarem-se), e por outro às particularidades reinado de apenas três delas: Neferusobek,
da sua religião, com a deusa Ísis à cabeça. Hatshepsut e Tausert. As outras duas da lista
A relevância das mulheres na corte é indiscu- de Maneton e Diodoro (a obscura Nitocris e
tível. A Grande Esposa Real tinha um grande a fascinante Nefertiti) têm-se como muito
poder, fosse na sombra ou como corregente, prováveis. Há mais três, até um total de oito,
sendo considerada guardiã e protetora que emergiram das sombras do passado,
da nação. Além disso, casar com uma mulher envolvidas em dúvidas prudentes por serem
de sangue real dava legitimidade e facilitava muito anteriores no tempo.
o acesso ao trono por parte dos varões (daí
os frequentes casamentos entre irmãos). MERITNEITH
O trono estava, em princípio e por tradição, E AS DUAS KHENTKAUS
reservado ao homem, mas, devido a vazios na Meritneith é a mais antiga de todas, mas ainda
sucessão, por não haver um aspirante evidente, não se pôde demonstrar que tenha chegado
várias rainhas ocuparam a mais alta posição a governar com poder absoluto. Viveu por
do país do Nilo. volta do ano 3000 a.C., no início da I Dinastia
(Período Arcaico). O egiptólogo inglês W.F.
TRÊS, CINCO, OITO, MAIS? Petrie (1853–1942) catalogou-a como um faraó
Quem e quantas foram estas mulheres masculino chamado Merneith, mas várias
extraordinárias? Segundo o historiador greco- descobertas, como a ausência do nome Hórus
-latino Diodoro Sículo (90–30 a.C.), que (símbolo do rei composto por um falcão
compilou tudo o que se sabia sobre faraós, sobre um serej), demonstraram que quem foi a
tinham sido apenas cinco: por ordem crono- enterrar com insólitas honras reais, num
lógica, Nitocris, Neferusobek, Hatshepsut, grandioso túmulo em Abidos, foi uma mulher.
Nefertiti e Tausert. Para chegar a estes núme- Ela foi regente do seu filho Den enquanto este
ros, ele e outras fontes clássicas recorreram ao foi menor, mas a incógnita é se chegou a
trabalho anterior de Maneton, sacerdote egíp- possuir títulos próprios de um faraó ou se se
cio que, na época ptolemaica (século III a.C.), limitou a ser tutora do jovem herdeiro.

77
A rainha Tau-
sert (aqui, numa
pintura mural do
túmulo de Irinufer,
em Luxor) fechou
a XIX Dinastia.
ASC

78
Perseguida pelo clero, pelos militares
e pelos governantes núbios, Tausert
reinou durante apenas dois anos
Ainda mais enigmático é o caso das duas a VI Dinastia. O historiador grego Heródoto
seguintes e hipotéticas rainhas-faraó, que (século V a.C.) fez dela uma lenda e conta
partilham o nome e a etapa histórica, o Império que, para vingar a morte do seu marido,
Antigo. Da primeira, Khentkaus I, testemu- Merenra II, afogou no Nilo os assassinos,
nham-na o seu túmulo em Gizé e uma pequena incluindo o seu próprio irmão, e, em seguida,
pirâmide em Abusir que lhe é dedicada. Esti- suicidou-se lançando fogo a si mesma.
ma-se que tenha vivido na IV ou na V Dinastias Maneton elogiou-a pela sua beleza e bravura e
(2510 a 2470 a.C.). O que desconcerta os atribuiu-lhe erradamente a terceira pirâmide
egiptólogos são as representações nas quais de Gizé (de Miquerinos). É de certeza uma
aparece adornada por um uraeus (coroa com personagem central na crise que pôs fim ao
a serpente) e com a barba postiça faraónica. É Império Antigo.
conhecida, embora haja quem diga que é uma O Império Médio aniquilou outra soberana,
tradução imprecisa, por “Rei do Alto e Baixo Neferusobek, que reinou durante pelo menos
Egito e Mãe do Rei do Alto e Baixo Egito”. Dizem quatro anos, de 1777 a 1773 a.C. (foi a última
ser parecida com a figura de Dyedefptah, o governante da XII Dinastia). Também pouco
suposto último faraó da IV Dinastia, mas sem se sabe sobre ela: filha de Amenemhat III, terá
certezas. assumido o poder depois de enfrentar o irmão,
Igualmente incertos são os dados sobre Amenemhat IV, com quem, em princípio, o
Khentkaus II, já pertencente à V Dinastia: partilhava. O seu nome de coroação consta
terá sido um faraó ou apenas mãe de um? Há da lista real de Saqqara e foi na sua época que
várias representações suas com o uraeus e a se ergueu o complexo funerário de Ame-
barba, o que faz as duas Khentkaus serem as nemhat III, em Hawara. Apesar dos tempos
únicas a exibir esses atributos até à chegada conturbados em que viveu, parece que a sua
de Hatshepsut, cerca de mil anos depois. sucessão foi pacífica.
A seguinte da lista, a transcendental Hats-
DE NITOCRIS A TAUSERT hepsut, merece um capítulo à parte, tal como
A imprecisão também tira protagonismo à Nefertiti, quer pela sua faceta de consorte de
pioneira das rainhas-faraó. Segundo os histo- Akhenaton, quer pela (discutível) de rainha-
riadores clássicos, Nitocris, que é mencionada -faraó.
em certas listas reais, terá governado sozinha Isto leva-nos até à quinta e última, a rainha
durante dois anos, de 2183 a 2181 a.C., fechando Tausert, que surge igualmente num período

Primeiras-damas influentes
Algumas Grandes Esposas política semelhante à do seu a.C.), Grande Esposa Real
Reais, as principais cônjuge. Eram muito uni- de Ramsés II, cujo poder
mulheres do harém, ultra- dos, desde o seu casamen- se reflete nos monumentos
passavam as funções do to com apenas dez anos, e onde surge ao lado do
seu título. Foi o caso de aparecem como iguais nas marido em Abu Simbel.
Tiy, a “primeira-dama” de imagens que os honram. Houve também esposas
Amenófis III, que governou Tiy era a mãe de Akhenaton secundárias que tiveram um
o Egito de 1386 a 1349 e, portanto, sogra de Nefer- papel ativo na vida pública,
a.C. Apesar da sua origem titi, outra consorte lendária, como algumas do final da
plebeia, vários manuscritos não só pelo seu extraordi- XVII Dinastia (Tetisheri ou
(por exemplo, uma carta nário físico, mas também Ahhotep), que se desta-
de Tushratta, rei de Mitani) pela autoridade de que usu- caram na guerra contra os
mostram uma capacidade fruiu. O mesmo aconteceu hicsos tanto quanto os seus
de tomada de decisão com Nefertari (1295–1186 companheiros masculinos.

79
caótico e conflituoso: o fim da num papiro), era ambiciosa e
XIX Dinastia, a de Seti I e Ram­ Nefertiti inteligente e tinha grandes
sés II. Quando morreu o seu foi nomeada capacidades de comando.
marido, Seti II, Tausert assumiu Soube usar o seu sangue real
a regência do seu filho Siptah corregente para se esquivar às arma­
e, após a morte deste, subiu
ao trono e governou durante
pelo marido, dilhas sucessórias, casando
com o irmão, Tutmés II.
dois anos, de 1188 a 1186 a.C. Akhenaton Ao enviuvar, e num gesto
Não foi tarefa fácil: perseguida sem precedentes, afastou
pelo clero de Amon, pelos militares e pelos reis o herdeiro, Tutmés III, da linha dinástica,
núbios e questionada pelo povo, acabou der­ argumentando a sua tenra idade e uma
rubada por Sethnakhte, o fundador da XX linhagem duvidosa, dizendo ser filho de uma
Dinastia, que manchou a sua memória com concubina, e vestiu­se com o traje e a barba
calúnias e lendas. de faraó. Foi apoiada por duas pessoas pode­
rosas: o alto funcionário Hapuseneb e o
HATSHEPSUT, arqui teto real Senenmut (provavelmente,
A PODEROSA um amante seu). Autoproclamou­se filha de
A verdadeira rainha­faraó na história do Egito Amon, uma jogada de mestre cujo apoio teve
é, sem dúvida, a formidável Hatshepsut, cujo de “comprar” aos sacerdotes do culto àquele
reinado de 22 anos (1479 a 1457 a.C.) foi o mais deus, o que explicaria o excessivo poder pos­
longo dos governados por mulheres. É um terior deste clero.
para digma de poder feminino no mundo Assim começou uma das etapas mais prósperas
antigo. Filha predileta do faraó Tutmés I (que, e pacíficas da XVIII Dinastia e de todo o Antigo
segundo algumas fontes, a nomeou herdeira Egito. A rainha organizou campanhas defen­

Nefertiti ou Semenkhkare?
É sabido que Nefertiti, kheperura Neferneferuaton). vez são mais os especialis-
a Grande Esposa Real No entanto, após 14 anos tas a defender a possibili-
de Akhenaton, o herege de reinado, perde-se por dade de ela realmente não
monoteísta de Amarna, foi completo o seu rasto. Uma ter morrido, tendo mesmo
a única mulher de um faraó teoria diz que a dor da sua sobrevivido ao faraó,
tornada corregente oficial morte fez Aakhenaton per- falecido por volta de 1337
pelo rei (com o nome Ankh- der a memória, mas cada a.C., e substituindo-o com
nome de Semenkhkare.
Este nome aparece ligado
a um brevíssimo corregente
no final da vida de Akhena-
ton e reinou sozinho
durante mais alguns meses,
até à subida ao trono do
ainda muito jovem faraó
Tutankamon. Segundo esta
teoria, o fantasmagórico
Semenkhkare não teria
sido um homem, mas sim
a própria Nefertiti transfor-
mada em rainha-faraó para
assegurar o trono contra
os inimigos do seu amado
falecido. Vestígios arqueoló-
gicos em que aparece
com atributos faraónicos
(à esquerda) dão aval a esta
ALBUM

tese.

80
sivas na fronteira, dedicou-se a questões como
a famosa expedição a Punt, o mítico país da
mirra, restaurou templos e edifícios destruídos
durante as guerras com os hicsos e mandou
erguer construções fabulosas em Tebas,
incluindo obeliscos memoráveis. Senenmut
concretizou ainda o seu projeto mais conhe-
cido, o Templo Dyeseru (em Deir el-Bahari),
joia do Egito monumental.
Ainda por cima, Hatshepsut foi, que se saiba,
a única mulher faraó que se fez representar
como esfinge. A sua estrela foi-se apagando
com as mortes de Senenmut e de Hapuseneb,
provavelmente maquinadas por Tutmés III, o
seu sucessor, que a odiava por tê-lo afastado,
e que destruiu, assim que pôde, o seu legado.
A rainha ainda tentou estabelecer uma
dinastia feminina, nomeando como corre-
gente a sua filha Neferure (nascida talvez da
relação com o arquiteto), mas a morte ines-
perada da menina terá frustrado este sonho
e Hatshepsut acabou por morrer no seu
palácio de Tebas antes de completar 50 anos.
ALBUM

A sua múmia, descoberta no Vale dos Reis ao


lado da do seu amado pai, revelou, quando
foi analisada em 2007, que a soberana, nos Hatshepsut foi representada
seus últimos anos de vida, sofria de diabetes, com os atributos faraónicos:
a barba postiça e a coroa dupla.
obesidade e alopecia.

CLEÓPATRA: UM FIM GLORIOSO


As últimas rainhas do Egito surgiram expulsá-la de Alexandria. Com o amor e
no tempo dos ptolemeus, uma dinastia que a cumplicidade de Júlio César, Cleópatra
governou o país entre 305 e 30 a.C. após recuperou o trono, não sem passar por
ter sido instaurada por Ptolemeu I Sóter, uma guerra civil na qual ardeu a Biblioteca
general de Alexandre, o Grande. Não renun- de Alexandria. Assegurou o seu estatuto de
ciaram à sua essência helénica e foram rainhas rainha casando com outro dos seus irmãos,
porque se casaram com os seus irmãos, Ptolomeu XIV, e da sua relação com César
de forma a legitimá-los no trono. Algumas nasceu um filho, Ptolomeu XV, conhecido
destacaram-se, como foi o caso de Cleópa- como Cesarião.
tra II (185–116 a.C.) ou Berenice III (116–80 No seu reinado, Cleópatra embelezou a capital
a.C.), mas nenhuma como a última antes da helenística egípcia com várias obras públicas
anexação do Egito ao Império Romano: Cleó- e, após a morte de César (44 a.C.), reeditou a
patra VII. sua história de amor com um dos aspirantes à
A sua história está cheia de mitos: sobre a sucessão romana, Marco António, com quem
sua beleza, sobre o seu nariz... Mais do que à teve três filhos. Entretanto, havia seguido
aparência física, o historiador grego Plutarco um cruel costume ptolemaico: envenenou o
(46–120 d.C.) atribuiu o seu magnetismo à segundo marido, para não ter de parti lhar
inteligência e aos modos requintados. Muito o poder a não ser com Cesarião.
instruída, falava várias línguas além do grego Confrontada com o novo líder romano, Otávio
(foi o primeiro representante ptolemaico que Augusto, e com o povo egípcio mergulhado
aprendeu egípcio). Foi coroada em 51 a.C., na fome, Cleópatra e o seu amado caíram
aos 17 anos, com o seu irmão, Ptolomeu XIII, na batalha de Áccio (31 a.C.) e, em seguida,
de apenas 12, com quem casou, de acordo suicidaram-se. Segundo a lenda, a última
com a tradição. No entanto, Ptolomeu deixou- rainha do Egito ter-se-á feito morder por
-se levar pelas intrigas de Arsinoe, irmã uma serpente venenosa.
de ambos, e, juntamente com o eunuco Potino,
conseguiram afastar a jovem do trono e N.O.

81
Olho de Hórus ou de Rá,
símbolo apotropaico
egípcio que conferia
SHUTTERSTOCK

poderes curativos
e protetores.

82
O Livro
dos Mortos
S
egundo o sacerdote egípcio Maneton que representam humanos e animais ficaram
(século III a.C.), a V Dinastia terminou incompletos ou foram desenhados com muti-
com o reinado de Unas, cuja pirâmide lações, para evitar que causassem qualquer
está situada em Saqqara, perto do re- tipo de dano ao faraó morto.
cinto funerário construído em honra do faraó Sublinhe-se que, com o passar das gerações,
Djoser. Nela, destaca-se uma longa e bela cal- estes textos deixaram de ser um privilégio
çada, decorada com cenas de episódios con- exclusivo dos faraós, tendo sido igualmente
cretos da biografia do faraó. Esta não é, no utilizados pelos governadores regionais, pela
entanto, a principal inovação do monumento, aristocracia e pelos funcionários públicos de
porque a pirâmide sobressai ainda mais por nível superior. A descentralização política
ser a primeira em cujas câmaras funerárias se associada ao Primeiro Período Intermédio é
gravaram textos: os Textos das Pirâmides. também visível no que se refere ao mundo
Estes são as composições religiosas mais antigas religioso e funerário, como podemos observar
do Egito, pelo menos entre o que sabemos numa série de gravuras feitas nas partes late-
atualmente, e nelas expressam-se o desenvol- rais dos caixões de madeira, que representam
vimento da religião egípcia e as crenças sobre uma série de fórmulas mágicas e litúrgicas
o mundo além-túmulo desde os tempos pré- que, juntas, recebem o nome de Textos dos
-dinásticos. No caso da de Unas, vemos uma Sarcófagos.
clara tentativa de identificar o faraó com os
deuses Rá e Osíris, embora também se detete APOIAR O FALECIDO
o desenvolvimento de uma série de conceitos NO SEU CAMINHO
relacionados com os astros e outros de mais A origem deste novo corpus pode ser rastreada
difícil compreensão. Os motivos por que foram nos Textos das Pirâmides, já que ambos
gravados no interior do túmulo são óbvios: eram costumam aparecer juntos em sarcófagos do
essenciais para garantir a sobrevivência do rei Império Médio. Apesar de tudo, os Textos dos
na vida após a morte. Sarcófagos incluem um modelo diferente e
novos conceitos relacionados com o reino dos
PROTEÇÃO PARA O FARAÓ MORTO mortos. A sua principal contribuição é a
Aos poucos, a crença de que depois da morte inclusão das famílias dos falecidos, bem como de
física do faraó se entrava no reino de Osíris servos e amigos do defunto. A arqueologia
foi-se generalizando entre os egípcios. Jun- detetou uma série de mudanças na estrutura dos
tamente com o deus-Sol Rá, Osíris acabou túmulos, pois desde o Primeiro Período Inter-
por ter um protagonismo especial no âmbito médio predominam as mastabas com múltiplas
funerário. Curiosamente, os Textos das Pirâ- salas para acomodar famílias numerosas.
mides são escritos com um tipo de hieróglifos Por outro lado, as novas fórmulas sagradas e os
pouco comum, pois alguns dos ideogramas rituais funerários refletem uma clara influência

As fórmulas sagradas eram pintadas


nas paredes das câmaras funerárias para
orientar o falecido na vida após a morte

83
SHUTTERSTOCK
Papiro do Antigo Egito com uma passagem do Livro dos Mortos. Na página oposta, Toth,
deus antropomórfico com cabeça de pássaro. Era acompanhado nas suas representações
por um estilete e pela tábua de escriba celestial, usada para tomar nota dos pensamentos,
palavras e atos dos homens cujos corações serão pesados na balança.

de ajudar o falecido a superar os perigos, a influência teve noutros sistemas religiosos


encontrar o caminho da viagem pelo duat (o muito posteriores ao egípcio. A partir de então,
submundo onde ocorria o Tribunal de Osíris), o Livro dos Mortos apareceu escrito num rolo de
e a ser capaz de preservar a sua imortalidade. papiro e com o texto ilustrado com desenhos,
Além disso, permitem lembrar métodos para algo que na XIX Dinastia alcança uma grande
satisfazer necessidades quotidianas, como riqueza estilística.
alimentar-se na outra vida. Embora esteja mais ligado ao Império Novo,
a época de maior difusão deste enigmático
DIFUSÃO PROGRESSIVA texto religioso surge mais tarde. O Terceiro
O Livro dos Mortos, entendido como um con- Período Intermédio conhece o aparecimento
junto de sortilégios mágicos destinados a aju- da versão em escrita hierática, destinada a
dar os defuntos a superar o Tribunal de Osíris satisfazer as necessidades funerárias de toda
e a apoiá-los na sua viagem para a outra vida a sociedade egípcia. Durante esta fase, come-
(a aru) através do reino do submundo, tem ça ram a circular outros textos funerários,
origem no Segundo Período Intermédio, por como o Livro de Amduat, um reflexo fiel da
volta de 1650 a.C., em contextos funerários da obsessão que os habitantes do país do Nilo
cidade de Tebas. Os primeiros feitiços típicos tinham por compreender a vida além-túmulo.
deste texto religioso (não presente em perío- Esta versão é a que se vai manter no período
dos anteriores) podem ser vistos no túmulo da ptolemaico, mas partilhando importância com
rainha Mentuhotep, da XVI Dinastia, embora outras escrituras sagradas, como o Livro das
pareçam ter uma origem muito anterior. Respirações ou o Livro para Percorrer a
Na XVII Dinastia, o seu uso já se havia esten- Eternidade.
dido entre os cortesãos e funcionários mais
proeminentes do estado egípcio. Isto torna-se A INFLUÊNCIA
evidente a partir do Império Novo, quando NOS ROMANOS E CRISTÃOS
aparece o capítulo 125 na XVIII Dinastia, no qual O Livro dos Mortos deixou de ser utilizado no
é representada a pesagem do coração, que tanta século I a.C., embora a sua influência perma-

84
Câmara funerária de Tutmés III.
Nas paredes, vê-se a versão completa
do Livro de Amduat, que define os
feitiços e encantamentos necessários
para vencer as forças do mal durante
a viagem noturna para o outro mundo
(XVIII Dinastia, Vale dos Reis, Tebas).

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85
Um dos momentos principais
da segunda vida do defunto
era a pesagem do coração,
onde os egípcios colocavam aquilo
a que mais tarde se chamaria “alma”

neça: faz-se sentir na época romana e também homens e pelas mulheres do Nilo com os deuses
no aparecimento da nova religião cristã, cuja do extenso panteão egípcio. Para eles, a fronteira
natureza não se poderia compreender sem entre a magia e a crença religiosa não estava
recorrer à memória das antigas crenças do bem definida. A magia (heka) relacionava-se
Egito faraónico. com a força da palavra criadora, suficiente-
Quanto ao seu conteúdo, o livro é composto mente poderosa para influenciar as decisões
por um grupo de textos individuais, mas que em das divindades. O simples ritual de pronunciar
conjunto apresentam uma unidade com um uma palavra estava associado ao ato de criação,
significado coerente. A maioria dos fragmentos sendo este um dos elementos característicos
em que está dividido começa com a palavra do pensamento egípcio que influenciaria o
ro, cuja tradução mais aproximada poderá ser nascimento de outros sistemas religiosos.
“capítulo” ou “sortilégio”. Até hoje, conse- Para os egípcios, a sua própria escrita hiero-
guiram identificar-se 192 destes sortilégios, glífica tinha uma origem divina, por ter sido
embora não haja qualquer manuscrito indi- inventada por Toth. Vista nesta perspetiva,
vidual que reúna todos. não se estranha a sua crença na necessidade
A sua finalidade é muito variada: alguns dão de saber o nome místico de qualquer ele-
ao falecido uma imagem o mais aproximada mento para se ter poder sobre ele. Não é em
possível sobre o que o espera no Além; outros vão que uma das principais preocupações do
incluem métodos para garantir que as três Livro dos Mortos era dar a conhecer o nome
partes em que o homem se divide (corpo, alma secreto dos seres do submundo, para conferir
e espírito) possam reencontrar-se novamente ao morto controlo sobre eles.
no outro mundo; outros ainda visam proteger Nem todos os sortilégios presentes no texto
o defunto das forças hostis do submundo, para foram representados em papiro, já que alguns
que possa superar os obstáculos antes de foram feitos em amuletos mágicos destinados
alcançar a “salvação”. a proteger os defuntos dos perigos do Além.
Alguns destes amuletos foram encontrados
MAGIA E RELIGIÃO escondidos entre as ligaduras das múmias
A leitura do Livro dos Mortos permite-nos egípcias (por exemplo, o escaravelho).
verificar a união de elementos mágicos e
religiosos nas relações estabelecidas pelos C.S.T.

Estrutura do texto sagrado


A maioria dos estudiosos distingue quatro o Sol da manhã. A terceira (cap. 64 a 129)
secções no Livro dos Mortos. A primeira narra a viagem do falecido através dos
(capítulos 1 a 16) define os passos pelos céus a bordo da Barca Solar e a sua des-
quais o falecido entra no túmulo, desce cida para o submundo para se encontrar
para o submundo e, posteriormente, com Osíris ao cair da noite. Finalmente
recupera a fala e a compreensão. (cap. 130 a 189), o espírito do falecido
A segunda (cap. 17 a 63) fala sobre assume o poder do cosmos depois de
a origem mítica dos deuses, além da ser aceite pelos deuses e após superar
necessidade que os falecidos têm de o julgamento a que vai ser submetido
voltar a viver, podendo renascer como pelo deus Osíris (a pesagem do coração).

86
ALAMY

87
A última
viagem

88
Pôr do Sol no
Nilo e Templo
Egípcio (1869),
obra de
Carlo Macro
atualmente no
Museu Stibbert
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(Florença, Itália).

89
AGE

A
civilização egípcia Esta cena do túmulo nava o universo e, graças a ela, o
desenvolveu-se du- de Irynefer, em Deir Sol aparecia todos os dias, havia
rante mais de 3000 el-Medina, mostra cheias no Nilo e os mortos
anos; portanto, a saída da sombra renasciam no Além.
muitas das crenças acerca da do defunto e do seu ba
morte e do Além foram mu- para a luz do dia. SEGUNDA VIDA
dando ao longo da sua história. Os egípcios acreditavam que
No entanto, desde o início que os antigos todos os seres humanos são formados por
egípcios se recusavam a ter apenas uma vida vários elementos, tanto materiais e tangíveis
física e temporária e, para isso, instituíram como imateriais e intangíveis. Alguns podiam
uma série de ideias religiosas com o objetivo ser integrados na esfera terrena, mas outros
de alcançarem a imortalidade, baseadas em permaneciam na esfera não palpável, mais
ciclos de morte e renascimento. próximos do mundo dos deuses. Quando a
Não podemos esquecer que a religião e a morte ocorria, estes elementos desagrega-
política estavam intimamente ligadas e vam-se e a única forma de voltar a reuni-los
apoiavam-se no conceito abstrato de Maat. era através dos rituais fúnebres. Assim se
Este termo poderia traduzir-se por “verdade, chegava à sobrevivência e à imortalidade.
justiça universal, harmonia, ordem natural”. Se hoje temos estas informações, isso deve-se
Estava representado por uma deusa com o ao facto de se terem conseguido preservar
mesmo nome, filha de Rá. Esta ordem gover- muitos textos funerários que aludem a elas.

90
O processo de mumificação e o ritual fúnebre
foram mudando ao longo de milhares de anos.

Um ser humano
era composto por
vários elementos, que
a morte desagregava
ticas de cada indivíduo que o tornam único.
Pensava-se que este fugia com a morte do
indivíduo e que viajava para se unir ao ka e
transformar-se no akh. Representa-se com
um pássaro com cabeça humana. Todas as
noites, o ba deve reunir-se com o corpo para
poder sobreviver eternamente.
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O akh é o sopro da vida, espírito eterno e
transfigurado de uma pessoa morta que se
forma quando o ba se une ao ka no Além.
Graças aos egiptólogos, pôde-se estudar e Representa-se como uma múmia. Pensava-se
listar os elementos que compunham o ser que era duradouro e imutável e que residia
humano. Muitos são difíceis de compreender, para sempre no submundo.
mas podem resumir-se no que se segue. O nome, rn, também era parte primordial do
O ka é a força vital de cada indivíduo, ou seja, ser, já que sem ele não se pode existir. Costu-
o seu caráter, a sua natureza, o seu tempera- mava ser atribuído após o nascimento. Muitas
mento. Nasce com cada pessoa, moldado pelo vezes, para castigar os faraós (como aconteceu
deus Khnum no seu torno de oleiro, ao mesmo com Hatshepsut ou Akhenaton), procedia-se
tempo que o corpo físico. É representado à damnatio memoriae, ou seja, os seus nomes
com duas mãos levantadas e pode sobreviver eram eliminados dos monumentos, e assim
depois da morte do indivíduo, que, para isso, condenados ao esquecimento.
necessita que se realizem cultos funerários e Shwt, a sombra, era outro elemento impor-
oferendas de alimentos. O túmulo é o seu lar. tante e essencial do ser humano: para que o
Ba pode traduzir-se por “alma”, embora não indivíduo esteja completo, precisa de ter uma,
tenha a mesma conotação que nós lhe damos. para se proteger de possíveis males. Era uma
Podemos defini-la como a nossa ideia de per- entidade imbuída de poder e capaz de se mover
sonalidade, ou seja, o aspeto ou as caracterís- a grande velocidade.

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Vasos canópicos
identificados com
as divindades que
guardavam cada órgão.

91
VOLTAR A VIVER: A MUMIFICAÇÃO
A morte era apenas uma interrupção tempo-
rária da vida, já que os egípcios acreditavam
que se podia viver eternamente. Na procura da
imortalidade, mumificavam os corpos, um
ritual cuja missão era preservá-los para que
não se decompusessem e reconhecer os vários
elementos diferentes que compunham uma
pessoa para que pudessem voltar a ela após a
morte, altura em que se separavam, dando-
-lhe um novo alento e vida. Os rituais fune-
rários permitiam que voltassem a juntar-se.
O tipo de mumificação dependia do poder
económico do defunto. Há referências ao pro-
cesso de mumificação em autores clássicos
como os historiadores grego Heródoto (século
V a.C.) e romano Diodoro Sículo (90–30 a.C.),
que pormenorizam diferentes aspetos. As
origens da mumificação são difíceis de iden-
tificar e, embora já no Período Pré-dinástico
(c. 5000–2950 a.C.) se encontrem alguns
exemplos, foram-se aperfeiçoando com o
tempo. Nessa época mais primitiva, os mortos
eram enterrados nas areias do deserto, o que
O caixão (e o sarcófago, permitia uma dessecação natural do corpo.
se houvesse) era um Os primeiros corpos enrolados em ligaduras e
tratados com resinas (nas quais se embebiam
contentor mágico, as ligaduras) aparecem mais tarde, na época
protetor do corpo badariense (c. 5000–4000 a.C.) e também
em muitas das sepulturas pré-dinásticas de
GETTY

Hierakonpolis, no sul do Egito (nesta jazida,


até surgem animais mumificados, como um
Conjunto de caixões do sacerdote elefante). Nestes primeiros enterros, ainda
Djed Djehuty-Iuef-Dnkh, exposto no não se verifica a extração de quaisquer órgãos
Museu Ashmolean de Oxford (Inglaterra).
do corpo. Há que esperar até ao Império para se
falar realmente de mumificação. Os trabalhos
eram realizados em oficinas por embalsama-
Estes cinco elementos variaram ao longo da dores e o processo chegava a demorar 70 dias,
história do Egito. Por exemplo, enquanto no de acordo com autores clássicos, embora
Império Antigo (c. 2575–2125 a.C.) o ka tinha dependesse do nível económico do defunto.
maior importância e era o elemento essencial,
depois do Primeiro Período Intermédio EXTRAÇÃO DE ÓRGÃOS
(c. 2125–1940 a.C.), foi a vez de o ba, inicial- Em primeiro lugar, lavava-se o corpo e proce-
mente reservado aos deuses e ao faraó, se dia-se à extração dos seus órgãos. Os embal-
estender à elite e à classe média, tendo depois samadores faziam uma incisão no abdómen
grande importância durante o Império Novo para remover os órgãos do corpo, que também
(c. 1539–1069 a.C.), altura em que se inten- podiam ser extraídos através do ânus, se o
sificou a procura da vida eterna. falecido não tivesse recursos suficientes; em
Foram encontrados cerca de 14 componentes seguida, os órgãos eram lavados e secados com
do ser humano referentes àqueles momentos, natrão. Mais tarde, eram envolvidos em liga-
que podem ser observados no túmulo de Ame- duras de linho e colocados em vasos canópicos,
nemhat, em Tebas (TT82). Durante a Época cujas tampas representavam as quatro divin-
Baixa (664–332 a.C.) foram enumerados oito dades guardiãs: Imsety tinha uma cabeça
componentes; durante o período greco- humana e guardava o fígado; Hapi, em forma
-romano (332–395 d.C.) deixaram-se de lado de macaco, conservava os pulmões; Qebeh-
o ka e o ba e ganharam mais importância o senuef, com cabeça de falcão, mantinha os
nome (rn) e a sombra (shwt). intestinos; finalmente, Duamutef, que repre-

92
Anúbis, deus dos mortos
e com cabeça de chacal, realiza
a mumificação inclinado sobre
o defunto, que repousa sobre
uma cama com cabeças de leão.
Cena proveniente do túmulo
de Irynefer, em Deir el-Medina.

AGE
GETTY

Ushebtis
do túmulo
de Nassa
no oásis
de Bahariya
(663–525 a.C.),
XXVI Dinastia.

93
sentava um chacal, protegia o estômago. COMO SE TRATAVA O CORPO
Estes vasos costumavam ser depositados numa O corpo era também dessecado com natrão,
caixa de madeira que fazia parte do enxoval tratado com óleos e outros tipos de unguentos
funerário que acompanhava o caixão. e envolvido em ligaduras de linho. Eram
Em contrapartida, o coração costumava ser necessários muitos metros de ligaduras para
deixado no corpo ou embalsamado para voltar envolver o defunto (calcula-se que pelo menos
a colocá-lo no sítio, porque para os egípcios era 370 metros, embora variasse segundo o esta-
neste órgão que se encontravam a personali- tuto do defunto). As classes mais baixas reci-
dade, a memória e a consciência de cada ser clavam outros têxteis, como a roupa velha e
humano. tecidos que os embalsamadores transfor-
No início do Império Médio, muitas múmias mavam em longas tiras com oito a vinte
tinham o etmoide (cavidade nasal) perfurado; centímetros de largura. Entre as ligaduras,
era por aqui que, com um instrumento afiado sobretudo na Época Baixa, costumavam co-
e um gancho na ponta, extraíam o cérebro, locar-se os amuletos que ajudavam o falecido
uma vez que também era considerado um ór- a renascer e tinham um caráter protetor do
gão. Esta prática não se realizava sempre, pelo corpo. Além disso, muitas múmias estavam
que nem todas as múmias têm o etmoide per- ornamentadas com joias, colares, pulseiras,
furado. Durante o Terceiro Período Intermé- brincos, máscaras funerárias, etc.
dio, os órgãos voltam a ser introduzidos no Não podemos esquecer a mumificação de ani-
corpo após o processo de mumificação. mais, já que foi uma prática corrente no Egito,

94
GETTY
Escaravelho, olho de Hórus e génio funerário
com cabeça de falcão, amuletos protetores
da XXVI Dinastia habitualmente inseridos
entre as ligaduras das múmias (página oposta).

A mitologia conta que morreu afogado no


Nilo, assassinado por um complot organizado
por Seth, o seu irmão mais novo. O seu corpo
foi desmembrado e espalhado pelo Egito.
Posteriormente, Ísis (sua mulher e irmã)
encarregou-se de recolher as diversas partes
e embalsamá-las: foi a primeira múmia. Osíris
renasceu pelo poder mágico das irmãs, Ísis
GETTY

e Nephtys.
É neste mito que estão as bases da mumificação
a imitar a forma de Osíris. De facto, uma vez
sobretudo na Época Baixa. Tinha a mesma mumificado o defunto, este recebia o nome
finalidade: preparar a sua viagem para a eter- de Osíris e tinha de renascer também de
nidade. Encontramos desde gazelas a macacos, maneira mágica. A mumificação era supervi-
crocodilos, íbis, gatos, bois, cães, musara- sionada pelo deus Anúbis, guardião da necró-
nhos e escaravelhos, entre outros. Curio- pole e deus da mumificação. Os rituais eram
samente, algumas das múmias de animais acompanhados de objetos cerimoniais que
expostas em museus apenas têm a parte ajudavam o defunto a chegar ao Além.
exterior do animal, já que no seu interior não
há nada ou, às vezes, apenas um par de ossos. O CAIXÃO
Uma vez mumificado o defunto, colocava-se
MITO FUNDACIONAL a múmia no caixão. Este era um contentor
O corpo mumificado associava o defunto a mágico e protetor do corpo. Dependendo do
Osíris, o deus da morte, da ressurreição e nível económico do falecido, os caixões de
da fertilidade e governador do submundo. madeira podiam ser de vários tipos, decora-

O funeral propriamente dito era um ritual


muito elaborado, que podia durar vários dias

95
dos com inscrições ou com incrustações ou de uma série de objetos de caráter funerário
revestidos de metais preciosos, como os de e apotropaico que iriam contribuir para um
Tutankamon. Em muitos casos, sobretudo renascimento bem-sucedido e uma existência
nos associados à realeza, os defuntos eram eterna, além de satisfazer as necessidades do
colocados num sarcófago de pedra para con- defunto na duat. Muitos desses objetos eram
servar melhor o corpo. feitos de propósito para o enterro, mas outros
Depositavam-se depois na câmara funerária já pertenciam ao falecido durante a sua vida
do túmulo, juntamente com o enxoval que os terrena. A quantidade e a qualidade destes
iria ajudar na sua vida seguinte. Embora os dependia da classe social.
costumes tenham mudado ao longo da his-
tória do Egito, pode dizer-se que a tradição FERRAMENTAS E SERVIDORES
geral mandava colocar uma série de oferendas Barcos e maquetas funerárias que represen-
no túmulo. As mais importantes eram a comida tavam ofícios ou trabalhos do quotidiano,
e a bebida, para alimentar o ka, que se costu- muitas vezes retratados nas pinturas e relevos
mava colocar numa mesa de oferendas ao lado dos túmulos, são os objetos que mais se des-

Mumificação
O processo de mumificação podia
durar até 70 dias. Começava com
a extração dos órgãos (exceto o
coração, que se mantinha no sítio;
noutros casos, era removido, mumi-
ficado e devolvido ao lugar) através
de incisões de não mais de nove
centímetros. Uma vez guardadas as
vísceras em vasos canópicos que
seriam enterrados com a múmia,
desidratavam o corpo com natrão
(carbonato de sódio), cobrindo-o
com esta substância durante uns
35 dias. A seguir, envolviam-no com
ligaduras de linho impregnadas de
unguentos e perfumes, que reves-
tiam com resina para se fixarem
melhor, enquanto o sacerdote
rezava e se iam colocando amu-
letos entre as várias camadas. No
caso da realeza, cruzava-se o braço
direito sobre o peito, postura que
deu a primeira pista para identificar
Hatshepsut. O cérebro era extraído
com uns ganchos de cobre que
se introduziam pelos orifícios do
nariz. As vísceras eram retiradas
através de uma incisão no ventre.
Os pulmões guardavam-se no vaso
canópico de Hapi, com cabeça de
macaco. O fígado e a vesícula biliar
colocavam-se no vaso de Imsety,
com cabeça humana. O estômago
e o intestino grosso depositavam-se
no vaso de Duamutef, com cabeça
de chacal. O intestino delgado ia
para o vaso de Qebeshnuef, com
cabeça de falcão.

96
O objetivo do ritual funerário era reunir
e ordenar os elementos desagregados
tacam, além de roupa, mobiliário, artigos de na forma de pequenas estátuas de madeira,
toucador e cosmética, papiros e até armas. pedra ou faiança, equipadas com enxadas e
A razão pela qual se enterravam os mortos com outras ferramentas: o Além era um lugar físico
tudo isto estava relacionada com o conceito real, onde era preciso trabalhar. Os shabtis
de vida futura, em que o indivíduo voltava encarregar-se-iam de servir o falecido no
a existir e precisava de sustento, além de aaru, o paraíso da mitologia egípcia e o lugar
recursos diários. onde Osíris reinava, realizando as atividades
Outros objetos que sobressaem e costumam agrícolas e de construção.
encontrar-se em grande quantidade são os
shabtis ou ushebtis, literalmente “aqueles HORA DA VIAGEM DEFINITIVA
que respondem”. Eram os servos do falecido, Após a morte, a pessoa devia dar início a uma

SHUTTERSTOCK

Alguns objetos
funerários tinham sido
usados pelo morto,
outros eram criados
exclusivamente
para a vida no Além.

97
viagem em direção ao oeste e ultrapassar construção do seu túmulo e dotavam-se de
uma série de “enigmas” apresentados por um enxoval que levavam consigo para o Além.
demónios. Uma vez superados, devia sub- Os túmulos, além de guardarem e protegerem
meter-se ao tribunal de Osíris. Durante este o corpo, serviam de ponto de contacto entre os
julgamento, tinha de jurar que não havia dois mundos: o dos vivos e o dos mortos, na
cometido qualquer falta, e o seu coração era duat. A sepultura era uma casa para a eter-
pesado numa balança tendo como contrapeso nidade, prankh, segundo o termo egípcio.
uma pluma da deusa Maat, que era a divin- Tratava-se de um lugar físico para a vida eterna
dade da verdade e da justiça. do defunto.
Se a balança se mantivesse equilibrada, sig-
nificava que o defunto não havia cometido CERIMÓNIA FUNERÁRIA
qualquer transgressão e a sua vida tinha sido Depois da mumificação, realizava-se o funeral
exemplar. Como tal, podia viver eternamente e à porta do túmulo era levada a cabo uma
no aaru. Aqueles cujo coração pesava mais do cerimónia: a abertura da boca e dos olhos,
que a pluma e desequilibrava a balança, devido geralmente abreviada e conhecida como
aos seus atos perversos, não eram dignos do “abertura da boca”. A cerimónia é mencionada
aaru. Então, uma terrível criatura chamada nos Textos das Pirâmides como “ritual de
Ammit, com a metade superior do corpo em oferenda”, mas parece que naquele momento
forma de leoa e a inferior de hipopótamo com apenas se fazia às estátuas do faraó no seu
cabeça de crocodilo, que vivia no submundo, complexo funerário. As evidências deste ritual
encarregava-se de devorar os corações. começaram a aparecer no Império Antigo e
Durante a vida, os egípcios planeavam a foram até ao Período Romano, sendo mais

A primeira múmia embalsamada, segundo


a mitologia egípcia, foi a do deus Osíris

98
SHUTTERSTOCK
Anúbis, deus dos mortos,
frequentes durante o Império com cabeça de chacal, purificação, aromatização,
realiza a mumificação
Novo, em que incluía 75 passos. unção e feitiços. A pessoa
inclinado sobre o defunto
Durante este período, surgi- encarregada de o dirigir cos-
(neste caso, um faraó)
ram várias representações nos tumava ser o filho mais velho
túmulos, como, por exemplo, ou o herdeiro do defunto,
na capela do vizir Rekhmira, em Tebas, da como ato final de piedade, ou um sacerdote,
XVIII Dinastia, que contém uma das cópias o sem, que se considerava a representação de
completas que existem da cerimónia. Outras Hórus e ia vestido com uma pele de leopardo
representações foram também encontradas sobre uma túnica branca. Carpideiras con-
no túmulo do faraó Seti I (XIX Dinastia), no tratadas tinham de chorar e de se cobrir com
Vale dos Reis, e na capela do túmulo da sumo- areia e pó.
-sacerdotisa de Amon, Amenirdis, em Medinet Para levar a cabo esta cerimónia, o sem
Habu (XXV Dinastia), bem como em algumas tinha de se sentar agachado frente à múmia e
vinhetas do Livro dos Mortos. Era descrito simular um sonho cataléptico pelo intangível,
como um ritual de consagração em que se para assim devolver o ka ao morto, restabe-
vivificava, de forma simbólica, uma estátua lecendo-o na múmia. Entretanto, tocava em
do defunto ou a sua múmia. Ao abrir magi- várias partes da múmia ou da estátua com
camente a boca, este podia de novo respirar e ferramentas consideradas amuletos no Além,
falar: era-lhe devolvido o uso destas facul- como o peseh-kef, uma lâmina de ponta
dades, além de poder comer e beber, funções bifurcada, de sílex, obsidiana ou outro material;
básicas na vida na eternidade. além disso, acompanhavam-no mesas de
oferendas, copos de libações, recipientes de
PURIFICAÇÃO E FEITIÇOS óleos sagrados, incensários, etc. A nova vida
O ritual era muito elaborado e podia durar estava a um passo.
vários dias, dependendo também do nível
económico do falecido, mas incluía sempre J.M.A.G.T

99
O Vale
dos Reis
AGE

100
A imponência
do Vale dos Reis
só é comparável
às maiores
maravilhas do
mundo antigo.
Ao vê-lo,
é possível
compreender
a sua capacidade
simbólica
como destino
final de um ser
humano.

101
Os túmulos eram escavados
em total segredo,
para os salvaguardar dos ladrões

D
urante 500 anos e três dinastias mais amplos, as futuras câmaras, os trabalhos
(XVIII, XIX e XX), o Vale dos Reis avançavam em comprimento e em largura.
foi o local do enterro dos faraós a A escavação prosseguia através de túneis
partir de Tutmés I, à exceção de secundários à esquerda e à direita, mantendo a
Akhenaton e da sua família. Sobre a entrada rocha intacta nos lugares onde iriam ficar os
do vale, eleva-se a montanha mais alta do futuros pilares.
cordilheira ocidental, de nome Gurn, cuja Só havia problema quando se deparavam com
silhueta se assemelha à forma de uma pirâmide grandes nódulos de sílex (pedra de dureza
tradicional. Encontra-se a cerca de cinco extrema) ou camadas de xisto (rocha pouco
quilómetros do Nilo, frente à antiga cidade de firme). No primeiro caso, por vezes, os cons-
Tebas, a capital do país naquele período. trutores não tinham outro remédio senão
Rodeado por grandes falésias, que o ocultam desviar o eixo do túmulo. No segundo, devido
de olhares alheios desde as margens do Nilo, à probabilidade de derrocada, chegavam a
o vale é relativamente pequeno e fácil de pro- ter de abandonar a obra.
teger. Os túmulos reais foram escavados na
rocha, escondidos num lugar isolado pela ILUMINAÇÃO ARTIFICIAL
necessidade de mantê-los em segredo e longe da O acabamento final das paredes e dos tetos
vista. Foi neste vale que, pela primeira vez, fazia-se recorrendo a cinzéis de cobre ou de
foram construídas as sepulturas onde o rei era bronze até obter áreas com superfícies lisas.
enterrado independentemente dos templos Nos corredores, os tetos inclinavam-se, para-
funerários onde o culto fúnebre diário era lelos à inclinação das rampas ou das escadas.
realizado. Nas câmaras, o chão e os tetos eram paralelos
A sua localização, na margem esquerda do Nilo, entre si, planos e horizontais. Os pilares, qua-
tinha um forte caráter simbólico, já que os drados, com dimensões de dois por dois côva-
egípcios consideravam a margem oeste do rio dos (o côvado era a unidade de comprimento
o limiar entre esta vida e o Além, relacionando dos egípcios, equivalente a cerca de 50 centí-
o pôr do Sol com o submundo. Na verdade, metros), distribuíam-se equidistantes entre si
todas as necrópoles menfitas do Império Antigo e com as paredes das câmaras. Para finalizar,
se encontram na margem ocidental do Nilo. quando paredes e pilares estavam devidamente
esculpidos e polidos, aplicava-se uma camada
CONSTRUIR O PRÓPRIO TÚMULO de gesso que servia de base para as pinturas
Quando um novo rei chegava ao trono, incum- murais que os decoravam.
bia o arquiteto real (um funcionário da sua De forma a poderem realizar todos estes
confiança) de projetar o seu túmulo, a come- trabalhos em câmaras e corredores subter-
çar pela escolha da localização, que teria de râneos, os operários tinham de recorrer a
ser aprovada pelo rei. Dois exemplos de pla- iluminação artificial: vasos cerâmicos com
neamento de túmulos são os projetos do KV2, mechas de linho untadas de óleo ou gordura,
de Ramsés IV (Papiro de Turim 1885), e do KV6, recorrendo ao sal para evitar que fumegassem
de Ramsés IX (Cairo Ostracon 25184). e sujassem o sepulcro.
Os trabalhos de construção eram encomen-
dados aos habitantes de Deir el-Medina, uma VERIFICAÇÃO DA OBRA
povoação situada nos arredores do vale, onde No teto do primeiro túnel, marcava-se uma
os construtores se organizavam por ofícios. linha, que servia como eixo do túmulo, sobre
Muitas das sepulturas nunca chegaram a ser a qual se assinalava o comprimento dos dife-
completamente acabadas, algo que nos per- rentes espaços, e que servia para achar a sua
mite conhecer as diferentes fases da sua largura, de forma simétrica, de um lado e do
construção e decoração. outro do eixo. Para marcar e verificar a obra, os
A obra começava com a abertura de um túnel operários socorriam-se de diferentes tipos de
estreito. Os construtores iam cortando a pedra esquadros de madeira e prumos com os quais
até criarem os espaços interiores, onde, no geral, traçavam os ângulos dos cantos e verificavam
predominam as formas simples. Nos espaços a sua precisão. Por exemplo, podemos obser-

102
Como se construía o túmulo Nesta recriação
de um túmulo,
podemos observar
as diferentes
camadas e níveis
com que eram
construídos,
sendo que cada
um tinha uma
função específica
para salvaguardar
o corpo
do defunto.

Sarcófago
de ouro

Sarcófago
de madeira

J.A. PEÑAS

Placas de madeira
Sarcófago sobrepostas,
de pedra chapeadas a ouro

103
var um caso deste tipo no túmulo TT1, de veis, no sopé das falésias, com as entradas
Sennedjem, localizado em Deir el-Medina: bem ocultas. A necessidade de manter o
entre os objetos encontrados, destacam-se túmulo secreto está expressa numa inscrição
um prumo, um esquadro e um nível. autobiográfica do arquiteto Ineni, encontrada
Para concretizar o projeto previsto desde o na sua sepultura (TT81), quando, referindo-se
início, recorriam a desenhos muito porme- ao túmulo do seu rei, disse: “Presenciei como
norizados da construção. No Vale dos Reis, foi escavado na rocha o túmulo de sua majes-
foram encontrados muitos planos de ar- tade [Tutmés I]. Na solidão na rocha, ninguém
quitetura em óstracos (placas de cerâmica) viu, ninguém ouviu.”
que mostravam diversas partes do trabalho, Muitos dos túmulos tutméssidas permane-
incluindo medidas. Num esboço da planta de ceram escondidos até ao final do século XIX,
uma câmara com quatro pilares (especifica- início do XX, porque, com o tempo, as entradas
mente, o Ostracon MB 41228) estão definidas foram sendo cobertas por escombros que caíam
as distâncias concretas entre pilares e entre os das falésias, arrastados por tempestades.
pilares e as paredes, bem como o comprimento É provável que o primeiro túmulo a ser cons-
e a largura da câmara. truído no vale tenha sido o KV20 (Tutmés I e
Hatshepsut), que tem um longo corredor, com
PRIMEIROS SEPULCROS mais de 200 metros de comprimento, que ser-
Os túmulos reais da XVIII Dinastia (tutmés- penteava ao longo do seu percurso até chegar
sida) foram escavados em lugares inacessí- à câmara funerária, escavada nas profundezas.

AGE

A margem do Nilo, frente a Tebas,


inclui o Vale dos Reis, o das Rainhas
e a povoação de Sheikh Abd el-Qurna.
Os túmulos e outros edifícios parecem
fundir-se com as colinas desérticas.

104
Muitos conseguiram permanecer
escondidos até ao final do século XIX,
outros continuam por localizar

CARÁTER SIMBÓLICO começa uma escada que desce diretamente


Mais evoluído do que este, o túmulo KV34 para a do sarcófago, também com dois pilares,
(Tutmés III) tem planta em forma de L, localizada num nível mais profundo. A forma
que se repetiu nos túmulos seguintes. retangular com cantos arredondados desta
O acesso realiza-se por uma escada íngreme. câmara lembra a de um cartucho real (empre-
Sobre um primeiro eixo, há um corredor gado na escrita hieroglífica, é a representação
estreito, composto por várias secções alter- esquemática de uma corda com nós que rodeia
nadas de rampas e escadas, que descem desde o nome do faraó). Este desenho tem um forte
o acesso ao túmulo até à câmara do poço. Esta caráter simbólico: enquanto o eixo superior
câmara faz a ligação a uma outra de forma permite a entrada da luz solar, o inferior per-
trapezoidal, com dois pilares, onde o eixo do manece na escuridão, que está intimamente
túmulo gira para a esquerda. relacionada com o submundo e a morte.
Sobre um segundo eixo, a partir desta câmara, Os túmulos KV35 (Amenófis II), KV43 (Tut-
més IV) e KV22 (Amenófis III), embora com
ligeiras modificações, continuam a ter o mesmo
esquema arquitetónico, apresentando o eixo
típico que caracteriza os túmulos tutméssidas.
Em todos eles, os corredores e os diferentes
espaços são distribuídos ao longo de dois eixos
longitudinais dispostos num ângulo de 90 graus.
Contudo, os túmulos de Tutmés IV e Amenófis III
têm uma antecâmara que precede a câmara
funerária, onde se volta a mudar, pela terceira
vez, a direção do eixo do túmulo: o primeiro
(KV43) segue pela esquerda e o segundo
(KV22) pela direita. É um autêntico labirinto.

PRINCIPAIS ÁREAS
Num túmulo, sobressaem várias salas. A
câmara do poço, que deve o seu nome ao facto de
apresentar um grande poço vertical, tem
geralmente no seu nível inferior uma câmara
anexa. Embora este poço tivesse funções pro-
tetoras, o mais provável era ser meramente
simbólico. De facto, após a realização do
enterro, o acesso a partir desta câmara ao resto
do túmulo estava selado por uma parede de
adobe ou de pedra revestida de gesso e deco-
rada com pinturas, como as paredes laterais
adjacentes, a fim de fazer acreditar que o
túmulo acabava nesta primeira câmara.
Quanto à sala dos pilares, tratava-se de uma
câmara localizada logo após a câmara do poço.
Tinha uma forma retangular orientada a 90
graus da direção do primeiro eixo do túmulo.
O teto estava apoiado por dois pilares qua-
drados que a dividiam em duas naves. Do lado
esquerdo, partia um corredor descendente que
seguia na direção do segundo eixo do túmulo
diretamente para a câmara funerária.

105
Esta, muito mais ampla, era o lugar mais
importante no túmulo. O teto estava apoiado
em seis pilares que dividiam a câmara em três
naves. Por sua vez, o chão da sala apresentava
dois níveis diferentes, estando a parte poste-
rior, reservada para acomodar o sarcófago,
escavada em maior profundidade. O acesso
a esta zona fazia-se por uma escada situada
entre os dois últimos pilares da câmara. Havia
quatro pequenas câmaras escavadas nas

ASC

106
paredes laterais, onde se colocavam as ofe- outros. A alteração ao traçado dos túmulos
rendas e o enxoval funerário. poderia dever-se a que, com a adoção de um
esquema linear, ocupavam menos espaço,
ESPAÇO PRECIOSO algo que deveria ser precioso, após várias
Dois dos túmulos apresentam novidades: o gerações a construir sepulturas.
do último rei da XVIII Dinastia, Horemheb No início da XIX Dinastia, o túmulo KV17
(KV57), continua a ter o mesmo esquema dos (Seti I) repete a mesma disposição, com dois
túmulos anteriores, embora os eixos do túmulo eixos paralelos entre si, mas ligeiramente
já não estejam dispostos a 90 graus, mas na desviados um do outro. O desenho dos
mesma direção, embora desviados uns dos espaços deste túmulo apresenta dois desen-
volvimentos importantes. Em primeiro lugar,
a sala dos pilares é quadrada, em vez de retan-
gular, e o seu teto é apoiado por quatro pilares,
Interior do túmulo em vez de dois. Além disso, o teto da área para
de Tutmés III, o sarcófago foi, pela primeira vez, esculpido
no qual se
em cúpula, em vez de ser plano, com o que se
pode apreciar
conseguiu maior altura.
a elaborada
decoração que
acompanhava TÚMULOS RAMÉSSIDAS
o faraó no Além. Estes foram construídos em zonas mais planas,
À esquerda, próximas do centro do vale. Durante a XX
esquema das Dinastia, os construtores escavavam no
diferentes partes exterior um corredor que levava à entrada,
que configuram mas agora com dimensões monumentais. Por
o túmulo, em planta serem mais visíveis, estes túmulos foram os
e corte vertical. primeiros a ser descobertos.
A partir desta fase, o esquema arquitetónico
simplifica-se, de modo que os corredores e os
diferentes espaços estão dispostos simetri-
camente, ao longo de um único eixo retilíneo.
Os túmulos KV7 (Ramsés II), KV8 (Merenp-
tah), KV11 (Ramsés III) e KV9 (Ramsés V e VI)
continuam a ter este esquema arquitetónico.
No entanto, não existe um desenho único e
vinculativo.

INVASÃO DO SEPULCRO DO LADO


Por exemplo, na sepultura de Ramsés II,
o primeiro corredor, a sala dos pilares e o
segundo corredor estão dispostos seguindo um
único eixo de simetria, mas, ao chegar à ante-
câmara, o eixo do túmulo vira à direita, dire-
cionando a câmara funerária ortogonal para
o primeiro corredor, fazendo lembrar o eixo
duplo típico dos túmulos tutméssidas. Além
disso, durante a construção do túmulo de
Ramsés III, pouco antes de chegar à câmara

Os túmulos em L
combinavam
a simbologia da luz
solar e a obscuridade
da morte
AGE

107
A última morada
dos faraós
Segundo alguns autores, o poço da galeria
servia para regular as águas freáticas
e impedir que a chuva se infiltrasse,
preservando e isolando o túmulo.

ANÚBIS

A antessala,
também chamada
“sala das colunas”,
poderá ter sido
usada para depositar
oferendas e alimentos.

As salas suplementares
albergavam os sarcófagos
de familiares do rei
ou de membros
destacados da sua corte.

Na câmara sepulcral propriamente dita, Um pequeno armazém


repousava o corpo do rei, em sarcófagos situado junto à câmara
protegidos por camadas sobrepostas. era provavelmente usado
para guardar os objetos
pessoais do monarca:
roupa, armas, imagens
de divindades protetoras,
alimentos, bebidas, etc.

108
Corredor Os túmulos do Vale dos Reis são o equivalente às câmaras
sepulcrais das antigas pirâmides do Império Antigo e Médio.
O local escolhido para este fim foram as encostas das montanhas
tebanas na margem direita do Nilo, mesmo em frente ao pico
A sala funerária continha de Gurn. A natureza deste lugar só pode ser entendida tendo
os tesouros do faraó, em conta as novas ideias teológicas relacionadas com o mundo
que incluíam o seu carro da morte durante o Império Novo. Os textos religiosos, muito mais
de guerra (A), a Barca Solar (B), complexos do que os anteriores, vão começar a ser gravados nas
o tabernáculo que guardava paredes dos túmulos reais, provocando um aumento dos elementos
a sua alma (C), as suas camas (D), decorativos, e vão predominar os grandes murais cheios de cenas
os seus tronos (E) e outros de grande beleza. Os túmulos do Vale dos Reis aumentaram
objetos que refletiam progressivamente de tamanho à medida que o tempo foi passando.
o seu poder.

Nas pinturas da sala funerária, vários deuses


(Toth, Hórus...) guiavam o faraó pelo submundo
até aaru, o reino de Osíris, o paraíso egípcio.

TOTH
HÓRUS
OSÍRIS
b ÍSIS

c
d
a ANÚBIS

e
BASTET

Uma arca guardava


os canopos (vasos
mortuários) com
as vísceras do faraó.

ÍSIS

OSÍRIS
J.A. PEÑAS

109
do poço, foi invadido o túmulo vizinho, o KV10, túmulo deste período foi completamente aca-
o que forçou a deslocar ligeiramente o eixo bado. Por exemplo, a morte de Ramsés VII
para seguir uma linha paralela à inicial, lem- (túmulo KV1) aconteceu no início da escava-
brando o esquema dos túmulos KV57 e KV17. ção da quarta secção do seu corredor, antes de
Os túmulos foram crescendo em dimensão. chegar à câmara do poço, pelo que alargaram
A escavação adentrava-se cada vez mais no a terceira secção de modo a transformá-la em
interior da montanha, aumentando a super- câmara funerária.
fície e o volume do túmulo. As dimensões dos Um dos últimos túmulos do vale, o KV4
corredores aumentaram progressivamente (Ramsés XI), que provavelmente nunca foi
tanto em largura como em altura, evoluindo usado, seguia originalmente o esquema ar-
de uma altura inicial de cerca de dois metros, quitetónico típico dos túmulos raméssidas,
nos túmulos tutméssidas, até quase o dobro, mas, a partir da sala dos pilares (inacabada), o
nas últimas sepulturas raméssidas. Da mesma esquema simplifica-se: a antecâmara é elimi-
forma, a inclinação foi diminuindo progres-
sivamente, até que, já durante a segunda
metade da XX Dinastia, muitos são horizontais.
A partir desse momento, os degraus das escadas
foram divididos em duas secções por uma
rampa central (KV11, KV7 e KV8). No entanto,
como as escadas eram esculpidas na fase final
da obra, em algumas sepulturas inacabadas
foram substituídas por rampas.

ALTERAÇÕES NOS ESPAÇOS


Cada secção do corredor conduzia a uma
porta que servia de acesso ao vão seguinte.
O dintel e as ombreiras das portas eram es-
culpidos diretamente na rocha, embora por
vezes se eliminassem para facilitar a passagem
do sarcófago (cada vez maior), como no
túmulo KV8, onde foram posteriormente
substituídos por blocos de pedra.
A câmara do poço continuava a fazer parte do
esquema, embora, a partir de então, já quase
não haja exemplos em que tenha sido esca-
vado o poço funerário, à exceção do túmulo
de Ramsés III. A sala dos pilares passa a ser
quadrada em vez de retangular e é maior
do que em túmulos anteriores. O teto está
apoiado por quatro pilares, em vez de dois,
dispostos simetricamente à volta do eixo do
túmulo. Isto permite que a escada pela qual se
acede ao resto do sepulcro seja escavada sobre
o eixo.
A câmara funerária, por seu lado, também
aumentou de tamanho em comparação com
sepulturas anteriores. O teto está apoiado por
oito suportes, em vez dos seis dos túmulos
do passado, distribuídos em duas linhas de
quatro pilares que se dispõem ortogonalmente
ao segundo eixo do túmulo, situado na área
reservada para o sarcófago, na parte central,
com maior altura.
Sala hipostila do túmulo de
Seti I (XIX Dinastia) com um
O DECLÍNIO DO VALE fresco de Osíris entronizado.
No geral, os últimos reis raméssidas tiveram À direita, planta do túmulo.
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reinados muito breves, pelo que quase nenhum

110
A partir de certa altura, foi necessário
começar a Fazer túmulos lineares,
para poupar espaço
nada e surge uma câmara funerária (também manter o país unido por muito mais tempo.
inacabada) muito mais pequena, onde come- A partir desse momento, 500 anos após a cons-
çaram a escavar um poço. trução do primeiro túmulo, o Vale dos Reis
Em 1090 a.C., o “ano das hienas”, a econo- já não era um lugar tão seguro como antes,
mia do país cambaleava, a fome apoderava-se pelo que foi abandonado pelos faraós.
de Tebas, houve ataques de inimigos vindos
do deserto e a coroa não parecia ser capaz de J.A.M.H.

ASC

111
112
A orografia do Vale das Rainhas

ASC
é uma maravilha da natureza.
A sua variedade topográfica foi
um desafio para os construtores.

O Vale
das
Rainhas 113
C
onhecido pelos egípcios como Wadi A deusa Hathor
el-Malika, este topónimo que pode foi representada
ser traduzido de várias maneiras de muitas formas,
foi sugerido por Champollion. No sobretudo como
passado, os egípcios chamavam-lhe ta-set- uma mulher com
neferu,, que significaria “o lugar dos filhos do chifres de vaca
faraó”, referindo-se às sepulturas dos prínci- e um disco solar
pes reais. Trata-se de uma necrópole com mais sobre a cabeça.
de 90 túmulos, situada a sul da montanha tebana, Ísis também podia
um lugar que só recentemente começou a ser ser representada
visitado por turistas, que costumam preferir assim, pelo que,
o Vale dos Reis. muitas vezes,
Foi a partir da XVIII Dinastia que este local teve só se consegue
especial relevância, ao ter sido escolhido para distingui-las
através de alguma
enterrar os primeiros príncipes e princesas de
inscrição.
sangue real ao lado de ilustres personagens da
corte. Com Ramsés II, o vale serviu para inumar
as suas mulheres que tinham título real. Era um
lugar privilegiado e sagrado; a sua topografia
apresenta, ao fundo, uma cascata dentro de
uma caverna cuja configuração se assemelha e
representaria o ventre ou útero da Vaca Celestial,
uma das formas da deusa Hathor, da qual bro-
tavam as águas que anunciavam a ressurreição
dos defuntos.

DE NECRÓPOLE REAL
A CEMITÉRIO COMUM
Nesta necrópole, podemos encontrar dois ti-
pos de túmulos muito diferentes: os primeiros
pertencem à XVIII Dinastia e correspondem
a 60 hipogeus construídos em forma de poço
funerário, enquanto os segundos seriam os
grandes túmulos da XIX e da XX Dinastias, que
apresentam complexos funerários monumen-
tais e cujos modelos são muito semelhantes aos
sepulcros reais do vizinho Vale dos Reis (com
autênticos aposentos fúnebres).
A partir da XIX Dinastia, com o enterro de Sat
Ra, Grande Esposa Real de Ramsés I e mãe de
Seti I, o vale começou a receber os restos mortais
das mulheres dos faraós. Mais tarde, no período
raméssida, sofreu saques contínuos de ladrões,
como atestam numerosos papiros judiciais da
época. A partir do Terceiro Período Intermédio,
a necrópole tornou-se um local de enterro para
personagens sem sangue real, e, gradualmente,
tornou-se um cemitério popular. Na época copta,
por volta do século IV, vários túmulos foram
ASC

queimados e saqueados, tendo sido construído


no local o mosteiro de Deir Rumi, cujas ruínas
ainda são visíveis.

A descoberta destes túmulos e templos


funerários ocorreu num período muito recente

114
O mais belo
túmulo para
a mais bela rainha
Um dos túmulos mais impressionantes
encontrados no vale foi, sem dúvida, o da
rainha Nefertari, uma das sete grandes
esposas reais de Ramsés II. Descoberto
em 1904 pelo arqueólogo Ernesto Schia-
parelli, esteve fechado ao público durante
várias décadas, embora hoje seja visitável
e se considere o túmulo mais espetacular
e belo de todos os construídos no Antigo
Egito, tal a sua elegância e requinte.
Impressiona o seu colorido brilhante e a
qualidade excecional das suas pinturas
a têmpera. Nefertari Merien-Mut (“a mais
bela de todas, a amada de Mut”) foi uma
grande rainha e teve um papel muito
proeminente, em comparação com outras
esposas reais na história do Egito. Fez
sempre parte da comitiva do faraó, não só
nas cerimónias civis e religiosas como tam-
bém durante todas as viagens importantes,
como aquelas que ambos realizaram ao
reino da Núbia (por volta de 1255 a.C.),
aquando da construção do Templo de Abu
Simbel, onde se podem ver representações
da rainha em grandes estátuas do mesmo
tamanho das do faraó. A estrutura do seu
túmulo é típica da XIX Dinastia. Entra-se
por uma escadaria de 18 degraus que leva
ao primeiro nível do sepulcro, composto
por uma antecâmara quadrangular e um
anexo. A partir daí, um segundo lance de
escadas desce para a câmara funerária
propriamente dita, que possui três anexos
e em cujo centro terá sido colocado o
sarcófago da rainha, pois Schiaparelli só
encontrou alguns fragmentos da tampa.
Numa parede, tinha sido escavado um
pequeno nicho para provavelmente depo-
sitar a caixa com os vasos canópicos que
continham as vísceras. A complexa deco-
ração do túmulo evoca uma viagem ritual
da alma de Nefertari para o submundo, o
reino de Osíris, ao qual a rainha acede
depois de atravessar as portas descri-
tas nos capítulos 144 e 146 do Livro dos
Mortos, na sala do sarcófago. É aí que
acontece a gestação e o renascimento da
sua alma, que regressa à antecâmara, se
transfigura e resplandece. Por fim, Nefertari
aparece em plena luz do dia, representada Pintura a têmpera
no teto da porta de entrada do seu túmulo, de Nefertari,
seguindo uma imagem que evoca a saída datada de cerca
da escuridão e o regresso à luz eterna. de 1754 a.C.
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115
O túmulo
de Nefertari,
Grande Esposa Real
de Ramsés II,
é certamente
uma das joias mais Março de 1965: turistas
preciosas deixadas e operários observam
o Templo de Nefertari.
pelo Antigo Egito A areia protegeu as estátuas
de dez metros de altura
esculpidas na fachada.
DIFICULDADE OROGRÁFICA
Muitos dos túmulos reais da antiguidade que
foram ali erguidos apresentavam inúmeros
problemas estruturais, relacionados com as
características geológicas do lugar. Os pró-
prios artesãos que os construíram, há 3500
anos, sabiam que estavam a trabalhar um tipo
de rocha difícil, o que os forçou a recorrer
a técnicas específicas, como o uso maciço cabadas que existem no vale. Da mesma forma,
de muna, um gesso especial com o qual se foram detetados sinais de ter havido um
cobriam todas as paredes e tetos da sepultura, período de chuvas torrenciais que tiveram
dissimulando desta maneira as imperfeições efeitos devastadores em alguns túmulos.
da rocha.
Por vezes, o terreno escavado era tão mau que RESGATADO POR CHAMPOLLION
foi necessário desistir do trabalho e começar O lugar ficou esquecido durante 1500 anos,
de novo num local mais apropriado, o que até ter sido redescoberto pelos primeiros
explica o grande número de sepulturas ina- exploradores do século XIX. O primeiro a

116
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visitá-lo foi Robert Hay, em 1826, e só dois anos Schiaparelli, diretor daquele museu, que
mais tarde John Gardner Wilkinson fez aquela trabalhou no vale entre 1903 e 1906. A este
que seria a primeira classificação dos túmulos. arqueólogo devemos as descobertas mais
Foi nessa altura que Jean-François Champol- importantes, como os túmulos dos filhos de
lion lhe deu o nome de Vale das Rainhas. Ramsés III, embora a mais surpreendente
As investigações mais profundas do local só tenha sido certamente o túmulo de Nefertari,
começaram no início do século XX, quando o a Grande Esposa Real de Ramsés II.
Museu Egípcio de Turim (Itália) enviou uma
equipa de arqueólogos liderada por Ernesto V.B.

117
De que morreu
Tutankamon?

118
Tutankamon envolvido
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em linho, na sua vitrina


com temperatura controlada
no túmulo KV62,
no Vale dos Reis.

119
O processo
GETTY

de extração
da múmia
foipouco
cuidadoso
e causou
danos que
dificultam
o seu estudo.

P
or decisão de Howard Carter, o numerosas análises clínicas e antropológicas,
corpo mumificado do jovem faraó radiografias, análises de ADN, tomografias,
Tutankamon continua depositado etc. Apesar disso, há um manto de mistério a
naquela que foi escolhida como a cobrir a sua morte.
sua morada eterna, ou seja, repousa no seu
próprio túmulo, embora todo o seu tesouro INÍCIO DA LENDA
tenha sido distribuído por vários museus. Tutankamon foi encontrado intacto dentro
Quem já tenha entrado no túmulo KV62 do do seu sarcófago, e Carter demorou três anos,
Vale dos Reis terá por certo contemplado a desde a descoberta, até conseguir desenrolar
múmia coberta por um fino lençol de linho a múmia, olhá-la no rosto e examiná-la, che-
branco numa pequena urna de vidro. Muito gando a escrever: “Não tenho vergonha de
se tem especulado e escrito sobre a sua morte, confessar que quando olhei para ele fiquei
que ocorreu por volta de 1325 a.C. Trata-se, com um nó na garganta.” Ao que parece, o
sem dúvida, da múmia egípcia mais submetida processo de exploração do corpo não terá
a estudos médicos: o seu corpo foi alvo de sido muito meticuloso nem feito com o rigor

120
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Em cima, Zahi Hawass, arqueólogo egípcio


e ex-ministro de Estado para os Assuntos
das Antiguidades encarregado da investigação.
À direita, o rosto do faraó mumificado.

científico necessário: o corpo foi destruído a qualidade não foi a mais adequada. Na época,
com a amputação de todos os membros muito se especulou de novo sobre as causas
e a prática de várias incisões. da sua morte. As teorias passaram pelo assas-
Ainda hoje, os especialistas discordam sobre sínio com um golpe na cabeça até doenças
as numerosas feridas que a múmia apresenta: congénitas e infecciosas, um acidente de carro
não se sabe ao certo quais foram feitas no ou um envenenamento.
processo de embalsamamento, há 3300 anos, Em 2005, a múmia foi submetida a um exame
e quais as praticadas pela equipa de Carter. mais rigoroso através de tomografia axial com-
A primeira análise ou autópsia realizada por putorizada (TAC), que permitiu reconstruir
esta, em 1925, determinou que o faraó tinha uma imagem tridimensional de todo o corpo. Foi
1,67 metros de altura. Com base na estrutura o egiptólogo Zahi Hawass, chefe do Departa-
óssea, estimou-se que tivesse morrido entre mento de Antiguidades do Egito, quem liderou
os 17 e os 19 anos, embora posteriormente a a operação, tendo contado, para o efeito,
tomografia dos dentes do siso tenha ditado com uma equipa de especialistas de craveira
a idade da sua morte aos 19 anos. A primeira internacional. As conclusões desse estudo
análise concluiu, ainda, que o jovem rei morreu evidenciaram que Tutankamon terá morrido
devido a vários traumatismos. de um conjunto de causas e não apenas de uma,
motivadas pelo culminar de múltiplas circuns-
TEORIAS SOBRE A SUA MORTE tâncias e patologias. O corpo apresentava uma
Em 1968 e, mais tarde, em 1978, foram feitas fratura aberta acima do joelho esquerdo, causada
diversas radiografias à múmia com equipa- provavelmente por um acidente e cujo feri-
mentos portáteis dentro do túmulo, pelo que mento poderá ter sido fatal. Naquela época, uma

Os processos de Howard Carter


não eram rigorosos, pelo que é
difícil analisar a múmia

121
ASC

O que sabemos, por múltiplas fontes,


é que sempre foi uma criança doente

hemorragia ou uma infeção grave poderiam tem coração, órgão importante e fundamental
resultar numa morte certa. para chegar ao Além no Antigo Egito.
Também se especulou sobre o embalsama- Por outro lado, Tutankamon nasceu com
mento da múmia. Muitos especialistas indicam graves problemas congénitos, devido à forte
que ele não foi corretamente realizado, como endogamia da família real na XVIII Dinastia.
os cânones clássicos mandavam. Na verdade, Mais de 250 anos de casamentos incestuosos
a múmia de Tutankamon é uma das mais mal deixaram uma pegada genética fatídica. Os
preservadas de toda a sua dinastia. Isto talvez se seus pais, Akhenaton e a princesa Kiya, seriam
tenha devido ao facto de, provavelmente, ter irmãos, o que, sem dúvida, representaria uma
falecido longe de Tebas, numa batalha, incursão herança genética muito fragilizada, fazendo o
ou caçada, e, com a pressa, não ter havido tempo jovem faraó sofrer de malformações gravíssi-
para realizar um embalsamamento apropriado. mas desde o nascimento: foi-lhe diagnosticado
Este facto viria a confirmar que a sua morte lábio leporino e deformações nos pés, razão
ocorreu inesperadamente, e daí as falhas dete- pela qual foram encontradas cerca de 130
tadas no processo de mumificação, uma vez que bengalas no seu túmulo. As análises de ADN
os responsáveis pelo cuidado do seu corpo até revelaram igualmente que sofria de malária,
ao enterro definitivo não eram, seguramente, dando uma imagem muito frágil e débil do
especialistas. monarca egípcio.
Os dibersos testes ao corpo do jovem faraó
ENDOGAMIA, UM PROBLEMA efetuados em 2005 são os mais completos
A múmia também apresenta numerosas fratu- realizados até agora e, apesar de fornecerem
ras ósseas e lesões em partes moles, tornando muitos dados importantes, não foram con-
muito difícil atribuir a sua morte a uma causa clusivos sobre a causa da morte. O diagnóstico
específica apenas com base em imagens de TAC. médico que temos neste momento é que ele
Não é claro se estes ferimentos ocorreram, como morreu de necrose óssea na sequência de uma
foi dito, devido a um acidente de carro ou ao grave infeção de malária. O mistério continua,
processo de embalsamamento, ou se foram portanto.
causados pela equipa de Carter. Uma das coisas
que chamam a atenção é que a múmia não V.B.

122
Onde está o coração?
Normalmente, no processo coração era pesado numa ser gravado com o capítulo
de embalsamamento de um balança. Se o seu peso 30 do Livro dos Mortos e
faraó, o coração era extraído, fosse superior a uma pena, cuja missão era garantir,
dessecado e reintroduzido significava que o falecido através desse feitiço, que
no corpo do defunto. Os estava cheio de culpas, não o coração não revelaria os
egípcios pensavam que este tinha agido corretamente na pecados cometidos em vida.
órgão era o mais importante: vida e, consequentemente, O coração de Tutankamon
nele convergiam todos os seria devorado por Ammit, nunca foi encontrado:
fluidos do corpo e residiam a deusa com cabeça de durante o embalsama-
a inteligência, a consciên- crocodilo. Caso contrário, o mento, algo falhou e o órgão
cia moral e o pensamento. morto teria levado uma vida perdeu-se pelo caminho,
Durante a viagem para o justa e estava preparado sem que se saiba o que
Além, o coração desem- para alcançar a eternidade. aconteceu quando a alma do
penhava um papel funda- Para garantir esta passagem jovem faraó teve de enfrentar
mental, por isso tinha de pelo temido tribunal, sobre o Tribunal de Osíris. O que
ser preservado. A jornada o corpo do defunto e junto parece claro é que, com ou
do falecido terminava no ao coração colocava-se um sem coração, Tutankamon
Tribunal de Osíris, em que o escaravelho que costumava alcançou a vida eterna.

Reconstrução
forense do rosto
de Tutankamon,
que sugere
ter nascido com
lábio leporino.

GTRESONLINE

123
Howard Carter
(ajoelhado)
na abertura
do túmulo
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de Tutankamon,
em 1922.

124
Mistérios
sem fim
N
o dia 4 de novembro de 1922, após Com efeito, Carter tinha descoberto o túmulo
anos de buscas infrutíferas, os de um faraó que não aparecia em qualquer dos
trabalhadores de Howard Carter registos conhecidos, mas esse seria apenas
desenterraram três degraus no o primeiro dos mistérios: nem o tamanho do
chão do deserto. Era o começo de uma escada túmulo correspondia ao de um faraó, nem a
de pedra. Não era uma escada muito longa, disposição dos objetos era o que se poderia
pelo que em pouco tempo os operários esperar de uma sepultura real. A verdade é que,
conseguiram descer até ao que parecia um cor­ ainda hoje, o túmulo de Tutankamon continua
redor cheio de entulho. Depois de removidos a fascinar tanto os especialistas como os leigos,
os escombros, Carter não queria acreditar. porque, apesar de ser, provavelmente, um
Atrás do corredor, havia outra divisória com dos mausoléus mais famosos do mundo, a
selos reais estampados. Tudo apontava para última morada do faraó­menino continua a
que, pela primeira vez na história, se teria guardar muitos segredos.
descoberto um túmulo real egípcio não profa­
nado. Carter ordenou que a escada voltasse a LUGAR INSUSPEITO
ser coberta e enviou rapidamente um tele­ Não há dúvida de que as pirâmides erguidas
grama ao seu mecenas, lord Carnarvon, durante o Império Antigo egípcio são alguns
que chegou no dia 23, com a filha. Quando dos sepulcros mais espetaculares alguma vez
já se encontravam no corredor, ambos construídos. No entanto, essas grandiosas
puderam ler, pela primeira vez, o nome de um construções de faraós como Kéops ou Miqueri­
faraó perdido: Tutankamon. Depois de abrir nos demonstraram ser pouco práticas a longo
um pequeno buraco na parede, o arqueólogo prazo. Apesar de terem sido projetadas como
introduziu uma vela. Inicialmente, nada máquinas perfeitas para garantir a sobrevi­
discerniu, mas os seus olhos foram­se habi­ vência do faraó na eternidade, apresentavam
tuando à escuridão. “Consegue ver alguma uma falha óbvia: as pirâmides eram gigantes­
coisa?”, perguntou Carnarvon, expectante. cos chamarizes para os ladrões de túmulos,
As palavras de Carter ficaram na história da que assim sabiam facilmente onde atuar.
arqueologia: “Sim, coisas maravilhosas.” Por isso, no início da XVIII Dinastia, foi decidido

125
O túmulo de Tutankamon Antecâmara
Descoberto em 1922, ao contrário dos restantes túmulos reais, A sala estava selada
praticamente não foi saqueado, e por isso estava repleto por paredes. Quando
de tesouros magníficos. Tutankamon nasceu por volta de 1341 a.C. Carter atravessou
Reinou durante nove anos e morreu antes de chegar aos vinte. a primeira porta, ficou
Apesar de não se saber ao certo quem foram os seus pais, diante de uma câmara
cheia de objetos
os candidatos mais prováveis são Amenófis IV (mais tarde
pertencentes ao faraó,
conhecido por Akhenaton) e uma sua esposa secundária, Kiya. muitos deles fabricados
em ouro ou cobertos
de talha dourada.

Carros em
Continha tamanho real
mais
de 600
objetos

Entrada
Howard Carter
descobre,
em 4 de novembro
de 1922, após cinco
anos de buscas,
a entrada do úmulo, 1,7 m
escondida no solo
dos Vale dos Reis. 16
degraus
2m

Porta selada
Túmulo perdido e engessada
Duzentos anos após a morte de Tutankamon,
foi construído o túmulo de Ramsés VI.
Os escombros e os restos desta obra
esconderam a entrada da sepultura,
a um nível inferior da encosta, o que
permitiu que a última morada do jovem rei
Corredor Barcas em
do Egito permanecesse praticamente intacta.
O corredor de acesso miniatura
Ao que parece, houve duas tentativas
e as escadas, escavados
de roubo, mas o túmulo voltou a ser selado.
na rocha, estavam
Túmulo cobertos de pedra
Corredor picada. Também se
de Ramsés VI Câmara ritual
Entrada
Antecâmara encontraram alguns
Anexo objetos caídos,
possivelmente
Sala dos pilares provenientes
Antecâmara
Câmara funerária
de um roubo.
Entrada Continha
Túmulo de Tutankamon cerca
de 500
Corredor Anexo objetos

Tesouro Santuário Santuário Vasos canópicos


Junto à câmara funerária, canópico canópico
atrás de uma porta Continha os órgãos
selada, encontrava-se do faraó. Pulmões,
a Sala do Tesouro. fígado, intestinos
Uma estátua do deus e estômago
Anúbis vigiava a entrada. eram extraídos
O próprio Santuário do corpo antes
Canópico estava de se iniciar Arca de ouro
com os vasos Continham
protegido pelas estátuas o processo canópicos as vísceras do faraó
de quatro deusas. de mumificação. Deusas

126
CARLOS AGUILERA
Anexo Sarcófago Múmia Câmara funerária
Atrás dos móveis da antecâmara, Foi talhado Estava dentro Estava selada e era nela
encontrava-se uma sala, a última num bloco de três caixões que se encontrava o sarcófago.
a ser explorada, já que estava maciço de dourados. À entrada, havia duas estátuas
praticamente inacessível devido quartzite Na cabeça, de Tutankamon em tamanho real.
à grande quantidade de objetos vermelha. tinha uma Quatro santuários de madeira
que ali havia. Continha óleos, vinhos máscara cobertos de ouro, encaixados
e uma grande variedade de comidas. de ouro. uns nos outros, cobriam
o sarcófago, que continha
três caixões, os dois primeiros
de madeira chapeada a lâminas de
ouro e o terceiro de ouro maciço.
Lá dentro, repousava a múmia
do jovem faraó, com a cabeça
e os ombros cobertos por uma
Foram máscara de ouro que ficou célebre.
precisos dez anos
para esvaziar
o túmulo e levar
para o Cairo Primeiro santuário
as mais de Talhado em madeira de cedro,
5000 peças com peças de louça azul,
encontradas decorado com simbologia
protetora.

Segundo santuário
Coberto com uma carcaça
de madeira e tapado com
um tecido de linho.

Terceiro santuário
Decoração semelhante
aos anteriores, com
símbolos religiosos.

Quarto
santuário
Madeira talhada
Estátua com representação
de Anúbis de deuses.
A única Nut e Hórus
sala decorada cuidam do teto;
continha Ísis e Nephtys,
o sarcófago das portas.
e 300
objetos

Murais
As paredes
engessadas
e pintadas, em
fundo amarelo-ouro,
representam diversas
cenas do Livro
dos Mortos, num
estilo diferente
da decoração
tradicional.

127
As três pirâmides
de Gizé: Kéops,
Quéfren e Miquerinos.
A sua simples
presença alertava
os saqueadores
de túmulos
para a existência
de tesouros.

GETTY

Apesar da quantidade de grandes objetos


descobertos, é provável que a maior parte
das joias tenha sido saqueada
criar uma nova necrópole real num lugar dos túmulos anteriores, os que foram cons-
mais discreto, num terreno próximo da nova truídos no Vale dos Reis não apresentavam
capital que tinha sido estabelecida em Tebas, qualquer sinal exterior que os denunciasse.
o que hoje conhecemos como Vale dos Reis. Articulavam-se através de diferentes câmaras
Este estava situado numa margem do Nilo e que estavam ligadas entre si por galerias sub-
permitia um fácil controlo da zona, aumentando terrâneas.
assim a segurança dos túmulos reais. Além
disso, o vale encontrava-se sob a sombra do SEMPRE MAIORES, MENOS ESTE
monte Gurn, uma montanha em forma pira- Geralmente, as obras nos túmulos reais
midal que evocava os grandiosos monumentos começavam logo após a coroação do faraó. Os
dos seus antepassados. Ao contrário da maioria trabalhos, distribuídos por períodos laborais

128
Não tão intacto como se diz
Embora a lenda diga que à sepultura pouco depois
o túmulo de Tutankamon do enterro do faraó. Por
foi encontrado intacto outro, a câmara funerária
(o que servia os interes- terá sido selada novamente
ses de Carter), isto não com os cartuchos reais,
é exato. Quando Carter o que indica que, muito
entrou nele pela primeira provavelmente, os ladrões
vez, encontrou indícios de seriam trabalhadores que
que não seria o primeiro a tinham ajudado na sua
visitar o mausoléu depois construção ou no armaze-
de ele ter sido selado. namento. Os saqueadores
Por um lado, esbarrou terão levado apenas ador-
em objetos manipulados nos e pequenos objetos
de forma grosseira, e de fácil transporte. Com
também se apercebeu de estes roubos, calcula-se

GETTY
que outros teriam mudado que tenham desaparecido
de lugar. Na realidade, 60 por cento das joias A lenda do túmulo intacto
hoje sabemos que houve com as quais Tutankamon aumentou a fama de Carter,
pelo menos dois saques terá sido enterrado. mas não é exata.

de dez dias, começavam com o esvaziamento que o faraó tinha de percorrer para atravessar
em bruto do túmulo. Depois, grupos com cerca o submundo antes de chegar à vida eterna.
de 50 operários estavam encarregados de alisar Com o tempo, as sepulturas mudaram a sua
as paredes para aplicar a decoração. No final, organização para um corredor reto, para
estas eram rebocadas com gesso e pintadas para poupar espaço e sublinhar a ligação aos raios
adquirir o luxuoso e colorido aspeto que ainda solares do deus Rá. Porém, se algo define
hoje exibem. a evolução na construção dos túmulos do
Os túmulos construídos no Vale dos Reis, no Império Novo é que, em geral, cada um deles era
início da XVIII Dinastia, apresentavam uma mais comprido e amplo do que o anterior. Só
forma típica, em ângulo. Isto foi interpretado um túmulo não seguiu esta regra: o de Tutan-
como sendo uma metáfora do caminho tortuoso kamon.

SHUTTERSTOCK

Entrada atual do túmulo


KV62, o de Tutankamon.

129
O túmulo de Tutankamon é mais pequeno
do que os dos faraós anteriores
O ESTRANHO SEPULCRO KV62 anterior de Amarna, um facto que indica que
O túmulo de Tutankamon, também conhecido os artesãos seriam oriundos da corte do pai
como KV62, é composto por uma galeria de Tutankamon.
de acesso, uma antecâmara e três câmaras. Mais espetaculares do que a própria câmara são
A antecâmara não tem qualquer decoração os quatro tabernáculos de madeira dourada
e destinava-se a guardar os objetos de que o ali encontrados e que hoje podem ver-se
faraó iria necessitar no Além, como camas, no Museu do Cairo. Estes eram verdadeiras
cadeiras e carros, entre outros. Esta dava acesso capelas que, acomodadas umas dentro das
a uma pequena câmara que continha igual- outras, serviam para proteger o sarcófago do
mente vários objetos, incluindo mais de 26 faraó. Também chama a atenção o facto de o
jarros cheios de vinho. Outra das câmaras tabernáculo exterior ser tão grande (mais de
apresentava um tesouro com mais de 5000 cinco metros de comprimento por mais de três
objetos, a maioria de natureza funerária. de largura) que mal deixou espaço para andar
No entanto, a mais espetacular de todas as à volta dele. A câmara funerária era tão pequena
divisões é, sem dúvida, a câmara funerária. em comparação com os objetos ali guardados
Trata-se, além disso, da única que apresentava que foi preciso cortar um dos cantos para poder
decoração nas paredes. Um dos murais narra a introduzi-los. Era, pois, uma obra imprópria
história do Livro dos Mortos, enquanto os de um mausoléu régio.
outros três mostram o faraó em várias cerimó-
nias relacionadas com a viagem para o Além, ÚLTIMA MORADA PARA QUEM?
como a “abertura da boca” ou a receção de Se o tamanho insuficiente do túmulo nos diz ser
Osíris no submundo. As proporções das figuras um espaço pouco digno de um faraó, estar-
são semelhantes às realizadas no período -lhe-ia destinado? De facto, parece pouco

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O sarcófago
está agora vazio,
para proteger
a múmia do faraó,
guardada
numa vitrina
em condições
controladas.

130
GETTY
Pintura mural do túmulo
de Tutankamon que mostra
Ay a realizar o ritual da
“abertura da boca” do faraó.

131
Túmulo descoberto
em 2006, no Vale dos
Reis, que remonta
a uma data similar
ao de Tutankamon.

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As câmaras eram tão pequenas que
quase não havia espaço para circular
em volta dos tabernáculos
provável que o túmulo onde Tutankamon estavam antes de Carter abrir o túmulo. Isto
repousava tenha sido construído para o seu demonstra que o espaço foi selado antes de o
sarcófago. É o menor túmulo real em todo reboco de gesso das paredes ter acabado de
o Vale dos Reis, mas não é só o tamanho da secar, o que indica que o enterro foi feito com
sepultura que leva a suspeitar da sua verdadeira urgência, certamente devido à morte ines-
origem: há múltiplas evidências que indiciam perada do faraó. A confirmar esta teoria, os
que o enterro do faraó-menino foi fora do objetos que compõem o seu tesouro parecem
comum e repleto de contradições. ter múltiplas origens e diferentes adaptações,
A primeira delas encontra-se nas próprias dando a sensação de serem peças de um
pinturas da câmara funerária. Apesar de coin- enxoval em segunda mão.
cidirem com o estilo das de outras sepulturas Não podemos esquecer que foi durante o
do seu tempo, o espaço destinado ao enterro reinado de Tutankamon que a economia e a
de Tutankamon parece, à primeira vista, paz alteradas pelo seu pai foram restauradas.
pouco decorado. Se compararmos o seu No entanto, terá reinado durante dez anos,
mausoléu com outros contemporâneos, per- tempo suficiente para planear e começar a
cebemos que a quantidade de hieróglifos ali construir um panteão de maiores dimensões,
presentes é surpreendentemente menor. dignas do seu posto. Porque foi enterrado
Há outro pormenor que dá a entender que o numa sepultura mais própria de um nobre do
túmulo KV62 foi terminado à pressa e sem muito que de um rei?
cuidado. Ainda hoje se podem observar sobre
as pinturas da câmara vários manchas que SOB A SOMBRA DE AY,
cobrem quase toda a sua superfície. Trata-se O GRÃO-VIZIR
de bolor, mas não daquele que é produzido Após a morte do faraó-menino, sucedeu-lhe
pelas condições climatéricas atuais. Análises como regente o seu tio e avô político, o grão-
recentes mostraram que os micróbios já lá -vizir Ay. Podemos encontrar a sua figura nas

132
Tabernáculo dourado
da terceira capela do
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túmulo de Tutankamon.

133
pinturas da câmara funerária de Tutankamon, pado e modificado o túmulo inacabado de
nomeadamente na cena da “abertura da boca” Tutankamon para enterrar o faraó naquele
do faraó. Não é um pormenor casual, já que que iria ser o seu. Muitos especialistas acre-
normalmente a pessoa retratada neste ritual ditam que foi isso que aconteceu.
era aquela que iria suceder no trono ao rei
falecido. Tutankamon morreu sem deixar des- PORQUE ESTAVA
cendentes, pelo que, se Ay queria legitimar-se EM TÃO BOM ESTADO?
como seu sucessor, não parece estranho que se O túmulo de Tutankamon faz história também
tenha feito representar a realizar a cerimónia. por ser a sepultura real mais bem preservada
Devido à sua idade avançada, Ay apenas de todo o Antigo Egito. O saque generalizado
governou o Egito durante quatro anos. No de quase todos os túmulos tornou a descoberta
entanto, a sua sepultura, apesar de estar ina- do do faraó-menino quase um caso único.
cabada, é muito maior e consideravelmente A que se deve a preservação extraordinária
mais rica do que a de Tutankamon. Não parece do KV62?
um túmulo construído em apenas quatro anos. Cerca de 200 anos após a morte de Tutanka-
Perguntamo-nos, então, se Ay não terá usur- mon, o faraó Ramsés VI começou a construir

134
Segundo
uma teoria,
o grão-vizir Ay,
sucessor
de Tutankamon,
teria trocado
o seu túmulo pelo
do faraó falecido

a sua sepultura também no Vale do Reis,


concretamente sobre a do faraó-menino.
É muito possível que os destroços desse trabalho
tenham ajudado a esconder a entrada do túmulo
KV62. No entanto, alguns especialistas afirmam
que a sepultura de Tutankamon se salvou dos
saques graças a uma inundação. Segundo esta
teoria, a lama arrastada pela água terá coberto
completamente o solo do Vale do Reis, criando
uma camada de terra que, ao secar, se sobrepôs
ao chão original. Como o mausoléu do faraó
estava localizado num dos níveis mais baixos
do vale, acabou por ficar, casualmente, ainda
mais enterrado.
Seja fruto do acaso ou não, a verdade é que
a descoberta do túmulo de Tutankamon fica
na história como um dos grandes marcos da
arqueologia de todos os tempos. A sua inves-
O faraó com o seu tigação e história posterior rodearam-no de
ka perante Osíris um halo de mistério que permanece intacto
e diante da deusa e gera interesse ainda hoje. É que muitos dos
Nut, no fresco segredos do túmulo do faraó-menino, longe
pintado na parede de estarem decifrados, continuam à espera de
norte do sepulcro. novas respostas.
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A.F.O.T

A suposta câmara secreta


Em 2015, o egiptólogo as duas divisões. Pouco indicava a existência de
inglês Nicholas Reeves tempo depois, uma equipa uma câmara que ainda não
sugeriu que, por detrás de arqueólogos japoneses, tinha sido explorada. Con­
das paredes norte e oeste que usaram técnicas de tudo, um estudo realizado
da câmara funerária de radar e termografia de infra­ em 2018 por cientistas da
Tutankamon, poderia estar vermelhos, afirmou haver Universidade Politécnica de
escondida uma sala secreta uma elevada probabilidade Turim (Itália), com radares
com os restos mortais de existir ali um espaço de maior precisão, excluiu
da mulher de Akhenaton, vazio. O Ministério das Anti­ essa hipótese. Aparente­
Nefertiti. Segundo a teoria, guidades egípcio garantiu, mente, atrás das paredes
uma parede falsa poderia “com 90 por cento de cer­ do túmulo de Tutankamon
ter servido de ligação entre teza”, que essa cavidade há apenas pedra.

135
A deusa Nephtys
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protege o defunto
com as suas asas
abertas (pormenor
da decoração em
relevo do sarcófago
de quartzite do túmulo
de Tutankamon).

136
O poder
da
palavra

137
Sacerdote do culto ao deus Amon,
desenhado num sarcófago.

Nele, encontramos sobretudo inscrições nos


objetos que faziam parte do seu impressio-
nante enxoval funerário, as registadas sobre
a sua múmia e as gravadas nas paredes da
câmara sepulcral. Outro dado a considerar é
a natureza dos textos. Tendo em conta o con-
texto em que se encontram, trata-se basica-
mente de textos de índole religiosa, fórmulas
mágicas associadas ao âmbito funerário que
exaltam a figura do rei e oferecem uma longa
lista de títulos e epítetos que o caracterizavam.

INSCRIÇÕES NA MÁSCARA
Falando em caracterização, vale a pena men-
cionar a famosíssima máscara dourada que
cobria a múmia do rei e tinha muitas inscri-
ções na parte traseira. Trata-se do capítulo 151
(Parte B) do Livro de Sair para a Luz, popu-
larmente conhecido como Livro dos Mortos.
É bem possível que este capítulo em particular
tenha origem nos rituais de embalsamamento
nos quais o sacerdote-leitor recitava uma série
de fórmulas mágicas, entre as quais estariam
aquelas que relatavam a colocação de obje-
tos para garantir a preservação do corpo do
defunto, como era o caso da máscara fune-
rária.
A religião egípcia possuía um vasto corpo
sacerdotal que se encarregava de diferentes
áreas de atuação. Os sacerdotes-leitores
(literalmente, “portadores do livro ritual”),
ASC

eram um corpo especializado da casta sacer-


dotal que estava orientado para o âmbito

E
assim temos aqui os primeiros fun- funerário. Eram os encarregados da leitura
damentos do que pode chamar-se das fórmulas mágicas necessárias nos rituais,
‘gramática’ e ‘dicionário’ destas nos quais o principal momento de atuação
duas escritas usadas num grande era o processo da mumificação.
número de monumentos, cuja interpretação No que diz respeito ao texto da máscara de
vai lançar uma luz imensa sobre a história Tutankamon, as doze colunas de hierógli-
geral do Egito.” (Carta a M. Dacier, J.F. fos fazem uma comparação contínua do rei
Champollion, Paris, 22 de setembro de 1822) com as principais divindades egípcias, o que
Como a citação anterior indica, a compreensão lhe dava poder e proteção suficientes para
da escrita hieroglífica representou um pas- enfrentar os seus inimigos e adversidades
so em frente na interpretação dos costumes no Além e voltar a ser coroado rei vitorioso
e rituais religiosos e fúnebres dos antigos perante os restantes deuses, como se pode
habitantes do país do Nilo. A sua crença de ler: “Saúdo-vos, rosto bonito, senhor do
que a palavra escrita tinha um poder mágico esplendor, ligado [ao seu destino] por Ptah-
fazia os túmulos estarem cheios de textos -Sokar, a quem Anúbis fez ascender e a
escritos em inúmeros suportes que se adequa- quem Thoth apoiou. Belo de rosto, que está
vam ao espaço disponível. Assim, e embora entre os deuses: o teu olho direito é a barca
com certos limites, há muitos associados ao noturna e o teu esquerdo a barca diurna; as
túmulo de Tutankamon. tuas sobrancelhas são a Enéade e a tua testa

138
Os sacerdotes-leitores eram um corpo
especializado da casta sacerdotal,
orientado para proceder
aos ritos funerários

Anúbis; o teu pescoço é Hórus e a tua trança A cabeça era considerada um membro impor-
Ptah-Sokar; estás à frente de Osíris, que pode tante do corpo, pelo que se tinha especial
ver através de ti. Podes guiá-lo pelos caminhos cuidado com a sua preservação: daí a colocação
certos para que possa aniquilar a confedera- de máscaras e apoios de cabeça, já para não
ção de Seth e derrotar os inimigos perante a mencionar os amuletos em forma desta
Enéade na Grande Casa do Oficial, em Helió- colocados entre as ligaduras da múmia. Parece
polis! Tomaste posse da coroa na presença de que todas as precauções eram poucas quando
Hórus, senhor dos nobres. Osíris, rei Khepe- se tratava de proteger o corpo do defunto.
runebra, diz que tu podes viver como Rá!” Quanto ao texto, trata-se de uma pequena
inscrição hieroglífica escrita sobre a parte
ORIGEM DESTE COSTUME traseira da coluna do apoio de cabeça, que
Curiosamente, este texto tem o seu antece- basicamente enaltecia a figura do monarca:
dente nas máscaras cartonadas de Meir do “O bom Deus, filho de Amon, rei do Alto
Império Médio (cerca de 1820 a.C.), em que e do Baixo Egito, Senhor das Duas Terras,
o texto se colocava numa extensão na parte Kheperunebra, que tenha vida como Rá para
da frente da máscara, logo abaixo do colar. sempre!”
Tratava-se do Salmo 531 dos Textos dos Com este texto, não só se reconhecem os
Sarcófagos, embora paradoxalmente nunca títulos e os epítetos mais significativos de um
tenha sido encontrado num sarcófago, só rei egípcio, como também se está a realizar
em máscaras. Mais tarde, foi incorporado uma filiação direta com o deus Amon, já que é
na composição do Livro de Sair para a Luz. ele mencionado como seu próprio filho. Esta
Embora não seja possível dizer que estas pequena referência é, na verdade, uma forma
máscaras eram um retrato fiel do defunto, o
material com que eram feitas, uma mistura
de gesso endurecido e ligaduras, permitia
que fossem realizadas com certas parecenças, Escriba sentado,
realçando as feições mais representativas do estatueta esculpida
entre 2480 e 2350
falecido. De facto, a máscara de Tutankamon
a.C. e encontrada
apresenta sem dúvida feições especialmente
na necrópole
juvenis, assim como lábios carnudos e olhos
de Saqqara.
estreitos, características partilhadas com a
múmia do rei.
Na zona da cabeça, é também digno de menção
o apoio de marfim encontrado na câmara
anexa. Trata-se de um belo exemplo de como
a iconografia acrescenta ainda mais magia e
caráter protetor (apotropaico) ao objeto.
O deus Shu aparece a apoiar a abóbada celeste
com a ajuda de dois símbolos em cada um
dos ombros, e sobre as extremidades da base
estão dois leões deitados. Ambos os elementos
acrescentam valor mágico. O leão como sen-
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tinela protetora fazia deste animal um pode-


roso símbolo de defesa (devido à sua carga
simbólica, cadeiras, tronos e camas
tinham forma de leão). Era assim
que se conferia uma clara função
protetora ao objeto, que se tornava
um amuleto.

139
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Pormenor dos macacos
na Primeira Hora
de quebrar e se afastar do do Livro de Amduat, as paredes dos túmulos reais
período vivido pelo seu pai e nos frescos da câmara com fragmentos do Livro de
antecessor, Akhenaton. Esta funerária de Tutankamon. Amduat. Ao contrário do Livro
filiação é uma clara tentati- de Sair para a Luz, composto
va de reforçar o regresso aos por salmos individuais sem
cânones tradicionais, aspeto muito presente e sequência fixa, estava estruturado em doze
recorrente durante o curto reinado do jovem secções correspondentes às doze horas da
Tutankamon. noite, e texto e imagem andavam de mãos
dadas. Em concreto, o extrato da parede
NA CÂMARA DO SARCÓFAGO ocidental do túmulo de Tutankamon contém
Se entrássemos agora na pequena sala que um fragmento da Primeira Hora, em que
alojava os sarcófagos dourados do jovem basicamente se enumeram alguns dos seres
soberano, veríamos que as quatro paredes que habitam no Além.
foram decoradas com diferentes cenas de Na parte superior, está representada uma
temática fúnebre. Trata-se da câmara fune- barca que leva a Khepri, a forma noturna de
rária, a única sala decorada no túmulo de Rá, emoldurada por duas divindades ajoe-
Tutankamon. A parede ocidental está total- lhadas, ambas identificadas como Osíris.
mente pintada com um excerto do Livro de À sua direita, há uma cena em que aparecem
Amduat (“O que está no Além”), uma com- representadas mais cinco divindades: Maat,
posição literária egípcia que descreve as a Senhora da Barca, Hórus, o Touro de Maat
diferentes regiões do submundo e os seus e o Vigilante, cada uma devidamente identi-
habitantes à medida que o deus Rá faz a sua ficada pelo seu nome em hieróglifos. Sobre
viagem noturna na barca, antes de renascer ambas as cenas, uma linha de hieróglifos
na manhã seguinte. diz: “As duas deusas Maat levam este deus
A partir do reinado de Hatshepsut (cerca de na barca noturna, passando através da porta
1470 a.C.) e durante todo o Império Novo desta região pela qual este deus passa como
(cerca de 1470–1077 a.C.), era moda decorar um carneiro.”

Os doze macacos louvam a chegada


do deus (faraó) ao submundo

140
Corrigir hieróglifos
A escrita hieroglífica do Antigo Egito Império Novo (c. 1539–1077 a.C.) e espe-
seguia preceitos quanto à forma, como a cialmente em textos como o Livro de Sair
orientação. Em geral, os sinais animados para a Luz e o Livro de Amduat, compo-
(figuras humanas ou animais), estavam sições religiosas que costumavam ser
orientados de modo a olharem para o escritas em hieróglifos cursivos sobre
início da frase. Assim, quando se quer papiro. Parece que a escrita retrógrada
identificar o sentido da escrita de um surgiu da necessidade de assinalar a
texto hieroglífico, basta procurar um pás- natureza arcana e especializada do texto.
saro. A frase começa no lugar para onde É o caso do texto gravado na parede
o pássaro estiver a olhar. No entanto, ocidental do túmulo de Tutankamon.
há textos escritos de forma retrógrada, Trata-se de um fragmento do Livro
numa antítese da norma. A escrita retró- de Amduat em escrita retrógrada, em
grada tornou-se muito comum durante o hieróglifos monumentais e não cursivos.

Em baixo, o texto tal como aparece no túmulo de Tutankamon:

A ordem
de leitura
“As duas deusas Maat levam este deus na barca
é de cima
noturna, passando através da porta desta região”.
para baixo
e da esquerda No entanto, apesar da forma retrógrada em que o texto foi escrito,
para a direita. observa-se que contém erros na posição de alguns sinais: alguns
determinantes (sinais que davam semântica à palavra) aparecem
separados da palavra a que dão significado e também as duas
preposições (as corujas) não estão no lugar que lhes corresponde, O lado para onde
o que realmente muda o sentido gramatical da oração. olha o pássaro
indica o sentido
da leitura.
Eis o texto corrigido com os sinais orientados no sentido correto
da escrita, mas mantendo os erros de colocação dos sinais:

Vê-se que há um movimento de sinais importante: as corujas


não estão na posição correta no texto de Tutankamon
e no final da frase há uma mistura significativa de sinais.

Este é o texto completamente corrigido:

141
As impressões do túmulo
Um tipo de escrita que não coberta com uma
podemos ignorar é a gravada camada de adobe
nos selos. Muito provavel- sobre a qual os
mente feitos de madeira ou vários oficiais que
de pedra, estes eram conce- prestavam assis-
didos pelo rei aos oficiais; daí tência ao enterro
o título de “portador do selo deixavam a impres-
real”. O selo estampava-se são dos seus selos
em superfícies de adobe enquanto a massa
fresco, ficando o texto aí ainda estava fresca,
gravado. No túmulo de como uma espécie
Tutankamon, encontraram-se de carimbo. Estes
vários selos impressos e em “carimbos”
dois tipos de suportes: nos no túmulo
fechamentos das diferentes do jovem rei
salas e em alguns objetos mediam apro-
do enxoval funerário. Alan ximadamente
H. Gardiner e James Henry 15 centímetros

METROPOLITAN MUSEUM OF ART


Breasted, filólogos da equipa de altura por seis
de Howard Carter, encarrega- de largura e ocupa-
ram-se da sua identificação vam praticamente
e tradução. No túmulo do rei, toda a superfície do
foram encontrados quatro: o adobe. Os textos
primeiro no início do corre- neles impressos
dor, mais precisamente no tinham uma dupla
final das escadas de acesso; funcionalidade. Por
o segundo no umbral da um lado, identificavam
entrada para a antecâmara; o proprietário (neste caso, isso, é amado em “toda a
o terceiro selava o acesso à o rei Tutankamon); por terra”. Provavelmente, todas
câmara ocidental; o quarto, outro, estavam carregados estas menções foram estra-
talvez o mais identitário, de simbolismo e magia. Se tegicamente escolhidas para
selava a própria câmara fune- analisarmos o conteúdo reforçar a ideia de regresso
rária. As câmaras podiam ser destes textos, basicamente à ordem e aos cânones
seladas de diferentes manei- identificam o rei mencio- tradicionais após o período
ras: com grandes lousas à nando o seu nome de trono do rei Akhenaton. Por outro
medida da abertura, colo- ou prenomen, Kheperunebra, lado, destaca-se um tema
cando pedras de diferentes e os seus títulos e epítetos muito recorrente e com muita
tamanhos encaixadas entre que o caracterizam como o carga simbólica. Trata-se
si ou através de uma parede rei do Alto e Baixo Egito, um dos Nove Arcos, isto é, a
de tijolos de adobe ou argila. soberano que é piedoso com representação dos inimigos
Ocasionalmente, a parte os deuses e se encontra em tradicionais do Egito como
exterior destas “paredes” era harmonia com eles e, por prisioneiros. No caso das
impressões do túmulo
de Tutankamon, Anúbis
aparece sobre nove presos
ajoelhados e com as mãos
atadas nas costas, dispostos
em três filas sobrepostas.
Vislumbram-se neles traços
típicos dos tradicionais
povos inimigos do Egito:
asiáticos, núbios e líbios.
A representação simbólica
destes prisioneiros assegu-
rava a vitória do Egito sobre
o caos do “estrangeiro”.

142
AGE
Pormenor do túmulo de Tutmés III (Vale dos Reis), no qual se observa parte do Livro de Amduat.

Sob as duas cenas, aparecem doze macacos transfiguração no Além, razão de ser dos
sentados, cada um com a sua etiqueta em rituais. Por exemplo, Ay é representado como
hieróglifos: o Devoto, o que Guincha, o Fla­ um sacerdote que, enquanto sucessor de
mejante, o que Louva Com a Sua Chama, o Tutankamon, realiza o ritual da “abertura
Bailarino, o Anónimo (macaco que normal­ da boca” ao rei mumificado. Os sacerdotes
mente não aparece identificado na compo­ desempenhavam funções no campo funerário
sição literária), o Macaco, o Aclamador, o e uma delas era a realização deste ritual. São
Macaco da Barriga Mole, o Coração da Terra, facilmente reconhecíveis porque usam uma
o Favorito da Terra e o Adorador. Estes nomes pele de leopardo sobre as suas vestes.
fazem referência à atitude e à função dos seres Este ato marcava um ponto de viragem no
na Primeira Hora da viagem de Rá, isto é, estado vital do indivíduo. A morte significava
louvam a chegada do deus ao submundo. uma rutura momentânea entre a realidade
material (o corpo) e as suas entidades espi­
SERES DO SUBMUNDO rituais. Graças aos rituais, conseguia­se
Outra cena com forte componente religiosa é restabelecer o equilíbrio. Com a “abertura da
aquela que se encontra na parede norte e que boca”, restauravam­se os sentidos do defunto
está estruturada em três partes bem diferen­ depois de ser mumificado. Desta forma, podia
ciadas, nas quais, basicamente, se representa chegar a transformar­se numa alma transfi­
a preparação e a chegada de Tutankamon ao gurada (entidade intangível do indivíduo), e
Além. Ali, a deusa Nut recebe o rei falecido, a sua vida continuaria plena no Além.
que mais tarde é também recebido pelo sobe­ A palavra escrita, a palavra recitada e a imagem
rano do submundo, o deus Osíris, com quem conjugavam­se no Antigo Egito como parte
se funde num terno abraço. Esta união sim­ fundamental do mundo funerário, chegando
boliza a assimilação e a conversão final do inclusivamentee a garantir a existência eterna
falecido no próprio Osíris. com a ajuda da magia.
Os antigos egípcios não acreditavam no
desaparecimento total do homem, mas na sua L.M.G.G.

O túmulo de Tutankamon ostenta


vários selos, alguns dos quais se destinam
a identificá-lo na viagem pelo Além

143
144
Recriação

SHUTTERSTOCK
do interior
do túmulo
de um faraó.

Túmulos
intactos 145
E
ncontrar uma sepultura intacta grandes personagens da Antiguidade. No
onde alguém foi enterrado é entanto, para o bem e para o mal, os meios
relativamente comum em todas as de comunicação, desde a descoberta de
missões que fazem escavações no Tutankamon, destacam sempre o descobri-
Egito. Isto acontece porque a grande maioria mento de sepulturas de faraós ou daqueles que
pertence a grupos sociais que não tinham se evidenciam pela riqueza do seu enxoval.
muitos recursos para enterrarem os seus Com os meios e os especialistas que temos
mortos com um grande enxoval em túmulo hoje, as possibilidades de obter informação
próprio, ou porque foram enterrados em valas multiplicam-se.
escavadas na areia do deserto. Essas sepulturas
não chamam a atenção do grande público, CAÇA AO TESOURO
dado não possuírem mobiliário funerário A história das grandes descobertas de túmulos
de grande qualidade e beleza, porque a sua intactos remonta ao século XIX, quando o
conservação é deficiente ou porque, sim- mercado europeu de antiguidades e, mais
plesmente, estão apenas acompanhados de tarde, o norte-americano, começaram a
algumas oferendas guardadas em cerâmicas procurar objetos egípcios. Nas primeiras
de uso quotidiano. décadas daquele século, a caça ao tesouro
No entanto, para os diferentes especialistas multiplicou-se, mas tratava-se sobretudo
que compõem as atuais equipas de investiga- de saques perpetrados por populações locais,
ção, podem ser uma fonte muito importante que esperavam encontrar tesouros, ou por
para reconstruir as condições de vida dos europeus residentes no Egito, que transfor-
antigos egípcios. Por exemplo, os antropólogos mavam as antiguidades egípcias num negócio
físicos determinam a idade, o sexo, o grupo
étnico, as doenças de que padeciam
e, em alguns casos, até a causa
da morte. Especialistas paleo-
ambientais determinam quais
as madeiras usadas nos caixões,
que podiam ser locais ou im-
portadas, e as sementes de
plantas e flores das oferendas
e dos ramos que acompanha-
vam o falecido aquando do
enterro, o que, em alguns
casos, permite identificar a
altura do ano em que acon-
teceu o funeral. Os peritos
em cerâmica determinam
a origem das peças, etc.
Tudo isto, em conjunto,
a lé m dos te x t o s e d a
comparação com outros
túmulos e cemitérios
contemporâneos, per-
m i t e a o e g i p t ól o g o
ava l i a r c o m o e r a m
as condições de vida
daqueles egípcios que
não aparecem retra-
tados nos templos das

O caixão de
madeira do faraó
Nubkheperre Intef,
da XVII Dinastia,
datado de por volta
do ano 1600 a.C.
ASC

146
O egiptólogo
francês Auguste
Mariette ajudou
a mudar a forma
como se procedia
à escavação
dos achados.

ASC

muito rentável. Na década de 1820, começa- Auguste Mariette (1821–1881), que lutou para
-se a ouvir falar de alguns túmulos de grandes que as autoridades locais regulamentassem
personagens do Antigo Egito, como o faraó as escavações. Por fim, em 1858, foi criada
Nubkheperre Intef, da XVII Dinastia, enter- uma instituição que zelaria pelo património
rado na margem ocidental de Luxor. Infeliz- egípcio: o Serviço de Antiguidades (hoje deno-
mente, os objetos nele encontrados, bem minado Ministério das Antiguidades). Graças
como outras descobertas semelhantes desen- a esta instituição e aos regulamentos, que se
terradas naqueles anos, estão espalhados por foram tornando cada vez mais restritivos,
diferentes museus arqueológicos europeus, podemos hoje apreciar, nos museus egípcios,
em alguns casos sem os enxovais encon-
se ter podido estabe- trados em túmulos
lecer claramente a Mais do que as joias intactos, como o do
sua proveniência.
Esta falta de proteção
e máscaras de ouro, enterro sumptuoso
de um boi sagrado,
dos monumentos aos egiptólogos Ápis XIV (do reina-
egípcios começou a do de Ramsés II) que
mudar na década de interessa compreender Mariette descobriu
1850, após a chegada
ao Egito do jovem
e definir como era em 1852 no Sera-
peum de Saqqara.
egiptólogo francês a vida quotidiana Em 1859, funcioná-

147
Sucessivos CHEGA GASTON MASPERO
A Mariette sucedeu Gaston Maspero (1846–1916),
arqueólogos outro arqueólogo francês que, com as suas
desenvolveram descobertas, deu grande impulso à egipto-
logia, tendo ainda desenvolvido e profissio-
e profissionalizaram nalizado o Serviço de Antiguidades. Em 1881,
um assistente alemão de Maspero, Émile Bru-
a egiptologia gsch (1842–1930), ouviu dizer que uma família
de Luxor, os Abd el-Rassul, tinha descoberto
rios de Mariette descobriram o túmulo intacto um túmulo intacto, possivelmente da realeza,
da rainha Ahhotep. O egiptólogo não chegou a e que, esporadicamente, vendia a antiquários
tempo de evitar que as principais peças, como os objetos nele encontrados.
o caixão dourado, os diademas, os colares, as Depois de obter a localização do túmulo através
pulseiras e os peitorais, fossem enviadas ao de métodos pouco ortodoxos, Brugsch desceu a
governante do Egito, Said Pachá. No entanto, um sepulcro situado perto de Deir el-Bahari,
acabou por conseguir resgatá-las a caminho do onde descobriu algo excecional: numa sepul-
Cairo, onde iriam ser repartidas pelas favo- tura de grandes dimensões, mas desprovida
ritas do harém de Pachá. Este acontecimento de qualquer decoração, estavam depositados
motivou o egiptólogo francês a convencer os os corpos de vários reis e membros da família
políticos egípcios a criarem uma instituição real do Império Novo, além de diversas per-
que exibisse as melhores peças descobertas sonagens importantes da XXI Dinastia. As
até ao momento, que estavam guardadas múmias jaziam dentro de caixões, rodeadas
num armazém. Em 1863, o Museu de Boulaq de oferendas e alguns objetos do enxoval ori-
abriu as suas portas no Cairo, tendo perma- ginal. Tinham sido escondidas durante a XXI
necido em funcionamento até 1891. e a XII Dinastias para evitar os saques que

ASC

Representação
da colheita
no túmulo
de Sennedjem
(Deir el-Medina).

148
Aldeia dos
GETTY
trabalhadores
da antiga Tebas,
em Deir el-Medina.

tinham como alvo o Vale dos Reis e as necró- reuniram as peças de metais nobres, até porque
poles próximas desde o final da XX Dinastia. naquela época o Egito não tinha capacidade
para produzir esse tipo de metais como nos
TROCA DE CAIXÕES séculos anteriores.
Infelizmente, quase todas as personagens Além disso, este achado composto por mais
importantes do Império Novo não repousavam de 6000 peças obrigou Brugsch a esvaziar o
nos seus caixões e sarcófagos originais, pois túmulo em dois dias, pois havia a ameaça de
estes tinham sido trocados por outros de que a população local queria fazer valer os
madeiras nobres. Dos enxovais, pouco restava, seus “direitos” sobre o “saque”. Ao retirar
embora fosse o suficiente para imaginar as peças tão rapidamente, perdeu-se grande
como teriam sido quando foram enterrados quantidade de informação, como a locali-
nos vales dos Reis ou das Rainhas. Este achado zação dos corpos e dos objetos associados a
facilitou o trabalho dos responsáveis que eles.

149
Um dos CONCORRENTES
quatro vasos
DE TUTANKAMON
canópicos
Só em 1894 voltaram a desco-
de prata de
brir-se túmulos de personagens
Sheshonq I.
Sheshonq II da realeza, pela mão do diretor
teve um do Serviço de Antiguidades,
caixão Jacques de Morgan (1857–1924),
de prata. que durante um par de anos
escavou em torno das pirâmides
dos reis Amenemés II, Sesós-
tris III e Amenemés III (XII Dinastia), em
Dahshur. Junto à pirâmide de Sesóstris,
encontrou duas câmaras funerárias saqueadas
na Antiguidade. Felizmente, os ladrões
tinham-se esquecido de verificar uns poços
próximos dali, onde se encontravam as joias
de ouro e as pedras preciosas que pertenciam
originalmente à princesa Sit-Hathor e à rai-
nha Meret.
De Morgan continuou as escavações em
Dahshur durante mais um ano e teve ainda
mais sorte. Perto da pirâmide de Amenemés,
descobriu quatro túmulos intactos, três dos
quais (das princesas It e Itweret e da rainha
Khnemet) continham grandes quantidades
AGE

de joias, amuletos, punhais e diademas que


rivalizavam os com que viriam, mais tarde, a
AS AUTORIDADES GANHAM PESO ser encontrados no túmulo de Tutankamon.
Com o passar dos anos, a situação foi-se nor- Por fim, De Morgan descobriu ainda o túmulo
malizando. A autoridade do Serviço de Anti- de um rei quase desconhecido da XIII Dinastia,
guidades consolidou-se, de tal forma que, na Hor. O caixão tinha sido igualmente saqueado
viagem de inspeção ao Alto Egito que Gaston na Antiguidade, mas o sepulcro continha
Maspero realizou em 1886 juntamente com ainda inúmeros objetos, entre os quais uma
vários egiptólogos e o cônsul espanhol Eduard estátua do ka do rei que chama a atenção
Toda i Güell, se descobriu o túmulo intacto pela sua vivacidade, graças aos olhos de vidro
de um artesão chamado Senedjem, oriundo com que foi decorada.
de Deir el-Medina, a aldeia onde residiam
os operários e artistas que construíram os TESOUROS IMPENSÁVEIS
túmulos reais no Vale dos Reis. O início do século XX significou a gene-
Eduard Toda, que ficou encarregado de ralização das escavações por todo o Egito,
documentar e esvaziar a sepultura, deparou-se principalmente na necrópole de Mênfis e na
com cerca de vinte sarcófagos e múmias antiga Tebas. Em 1905, o milionário norte-
(algumas ainda com máscaras e peitorais), -americano Theodore Davis (1837–1915),
cerâmicas, cofres, caixas, camas, cadeiras e sob a supervisão dos arqueólogos ingleses
bancos. Havia também shabtis, ferramentas James Quibell (1867–1935) e Arthur Weigall
de arquitetura e até mesmo um fragmento de (1880–1934), descobriu um túmulo no Vale
calcário com uma parte do texto em hierático dos Reis (KV46) onde repousavam os corpos
do Conto de Sinué, obra cimeira da literatura de Yuya e Tuya, os pais da rainha Tiy, mulher
egípcia, escrita 600 anos antes. de Amenófis III e mãe de Akhenaton.
O conteúdo do sepulcro era uma verdadeira A sepultura tinha sido aberta por saqueadores
joia para os egiptólogos. Se compararmos antigos, mas apenas roubaram as joias dos
com descobertas posteriores, essa vintena corpos e os perfumes. O resto estava intacto
de múmias indicava que aquele túmulo tinha e havia um enxoval que, pela sua variedade
sido aberto e fechado em várias ocasiões, e riqueza, só foi ultrapassado pelo de Tutan-
durante as quais parte do enxoval foi prova- kamon. Continha sarcófagos, caixões e más-
velmente usado de novo pelos familiares dos caras douradas, mobiliário folheado a ouro
defuntos no mundo dos vivos. e diversas incrustações, shabtis, vasos canó-

150
picos, cerâmicas com o natrão de embalsa­ derado, com toda a justiça, o maior achado
mamento, etc. arqueológico da história.
Um ano depois, o egiptólogo italiano Ernesto Documentar o túmulo não foi tarefa fácil
Schiaparelli (1856–1928) encontrou, não para Carter: houve uma interrupção por
muito longe da sepultura na qual Eduard motivos políticos (o Egito estava a tornar­
Toda tinha trabalhado, a de um arquiteto de ­se independente do Reino Unido), tinha de
túmulos reais de meados da XVIII Dinastia, trabalhar em condições difíceis por falta de
Kha, acompanhado da sua mulher, Meryet. espaço, o ambiente à volta do túmulo começou
O seu enxoval é um dos melhores entre os
encontrados no Egito, não só pelo seu exce­

AGE
lente estado de conservação, mas porque
era composto por inúmeros objetos da vida
quotidiana. A variedade é imensa: mobiliário,
perucas, cosméticos, roupa guardada em
baús, ferramentas, etc. Um dos aspetos que
mais informação pode oferecer é a análise
das oferendas, compostas por verduras, car­
nes, pão, ervas aromáticas, farinha, frutas,
flores. Estas e outras descobertas foram a base
do Museu Egípcio de Turim.

IDADE DE OURO DA EGIPTOLOGIA


Os tempos que se seguiram à descoberta de O ka do faraó Hor I, simbolizado
Kha podem considerar­se os anos dourados pelos braços levantados,
da egiptologia. Realizaram­se grandes esca­ é uma estátua de madeira
vações em importantes e numerosas jazidas, com 1,70 metros de altura.
e foi com elas que se estabeleceram as bases
de grande parte do nosso conhecimento
atual.
No Vale dos Reis, em Luxor, depois de se terem
desenterrado as sepulturas dos grandes
faraós do Império Novo, parecia que as jazidas
estavam esgotadas. No entanto, o inglês
Howard Carter (1874–1939) acreditava que
havia túmulos por encontrar, nomeada­
mente o de Tutankamon. Assim foi. Embora
tenha afirmado que “os selos estavam intactos”
(os egípcios cerravam os túmulos com barro,
por exemplo), a sepultura tinha sofrido um
pequeno saque após a morte do rei e um
segundo que foi descoberto a tempo: Carter
encontrou algumas peças envolvidas em
tecido prontas a serem levadas. Apesar disso,
o túmulo de Tutankamon pode ser consi­

Apesar de
Saqueados, muitos
túmulos continham
belíssimos tesouros
que não tinham
interessado
aos ladrões

151
Mapa do sítio
de Karnak,
com os diferentes
domínios

Domínio de Montu

A Segunda Domínio de Amon


Guerra Mundial
obrigou
a suspender
as escavações

a estar pejado de turistas e Carter recebia e os armários, tudo revestido a ouro com
constantemente visitas de políticos impor- incrustações, ferramentas de cobre e vasos de
tantes ou de membros da realeza. Como se pedra e cerâmica, além dos vasos canópicos
não bastasse, tinha a responsabilidade de com as vísceras. Havia também um sarcófago
documentar cada uma das peças e garantir a de calcite (alabastro egípcio) que, contra todas
sua preservação. No entanto, tudo foi realizado as probabilidades, estava vazio.
com grande sucesso. Vários egiptólogos tentaram explicar este
facto. Recentemente, Francisco Borrego
NOVO ACHADO EM GIZÉ Gallardo, professor da Universidade Autó-
Em plena ressaca da descoberta de Tutanka- noma de Madrid, propôs a teoria de que a
mon, em 1925, a equipa do arqueólogo norte- rainha terá sido originalmente enterrada em
-americano George Reisner (1867–1942) Dahshur, perto do marido, e que o seu filho,
encontrou em Gizé outra sepultura real. No que Kéops, decidiu trasladar uma parte do corpo
terá sido uma pirâmide que acabou por nunca (as vísceras e os órgãos mumificados) para
ter sido erguida, foi construído um poço de perto do lugar escolhido para o seu próprio
27,5 metros de profundidade que conduzia descanso eterno, para que ela pudesse ajudá-
a uma câmara sepulcral. Ainda intacta, -lo a renascer no Além.
escondia o luxuoso enxoval da mãe do rei
que construiu a maior pirâmide alguma vez ACHADO EM TÂNIS
erguida: Kéops. Na primavera de 1939, o mundo começava
A rainha, mulher do rei Sneferu, chamava-se a conter a respiração devido aos problemas
Hetepheres. Dentro da câmara, foi encon- políticos que se viviam na Europa e conduzi-
trada uma grande quantidade de peças de riam à Segunda Guerra Mundial, desencadeada
excelente manufatura, embora muitas tenham pela invasão nazi da Polónia, em 1 de setembro.
sofrido os estragos próprios do tempo. Entretanto, no delta do Nilo, concretamente
Destacam-se as camas de madeira, os cofres na cidade de Tânis, iria ocorrer um dos acon-

152
Domínio de Mut

1 Embarcadouro 13 Osireion 23 Primeiro pilone 33 Templo


2 Dromos de Montu 14 Oratórios de Osíris 24 Décimo pilone de Khonsu-Menino
3 Templo de Montu 15 Dromos de Karnak 25 Edifício 34 Avenida
4 Templo de Harpra 16 Capela de Hakor de Amenhotep II das Esfinges
5 Templo de Maat 17 Parede 26 Templo de Khonsu 35 Lago sagrado
6 Tesouro de Tutmés I de Nectanebo I 27 Templo de Opet 36 Dromos de Khonsu
7 Setor de Osíris 18 Habitações 28 Porta de Ptolomeu 37 Dromos para Luxor
8 Porta do Leste dos sacerdotes 29 Dromos de Mut 38 Oratório branco
9 Templo de Amon 19 Lago sagrado 30 Templo de Mut 39 Oratório vermelho
10 Tesouro de Shabako 20 Armazém 31 Templo 40 Pátio
11 Capela Alta de Amon de oferendas de Amon-Kamutef de Tutmés IV
12 Grande Templo 21 Sétimo pilone 32 Monumento 41 Oratório
de Amon 22 Oitavo pilone da Barca Sagrada de Tutmés III

tecimentos mais marcantes da egiptologia. originalmente preparado para o rei Merneptah,


O francês Pierre Montet (1885–1966) descobriu da XIX Dinastia. Lá dentro, a missão francesa
a necrópole do Terceiro Período Intermédio, encontrou um belíssimo caixão de prata com
numa extremidade do recinto de Mut. apliques de ouro e a máscara de ouro do rei,
As primeiras câmaras, às quais se acedia atra- juntamente com outras peças e joias que
vés de um poço com cerca de quatro metros, decoravam a múmia real.
tinham sido saqueadas, embora ainda hou- A segunda câmara, originalmente preparada
vesse restos do enxoval original, bem como para a mulher de Psusennes II, Mutnedjmet,
vários sarcófagos nos quais repousavam reis acabou por ser ocupada pelo faraó Amene-
da XXII Dinastia e um príncipe. As escavações mope, filho de ambos. Numa das restantes
continuaram e, em 17 de março de 1939, câmaras, abertas já após a Segunda Guerra
foi encontrada outra estrutura subterrânea Mundial, encontrava-se o general Wend-
que continha cinco câmaras. Na primeira, jebauendjedet; a outra, também preparada
saqueada, repousavam os restos mortais de para um militar, estava vazia. O enxoval
Sheshonq II (um rei até então desconhecido), funerário de Wendjebauendjedet era quase
Siamun e Psusennes II. No entanto, ainda tão espetacular como o de Psusennes I.
havia o caixão de prata do rei Sheshonq II, Embora os objetos orgânicos estivessem
cujo rosto representava o deus Hórus. mais deteriorados do que os que foram
recuperados no túmulo de Tutankamon, o
SOFISTICAÇÃO REAL achado de Tânis permitiu aproximar-nos da
Mais à frente, havia duas câmaras atrás de sofisticação da corte real egípcia, desta vez
uma parede decorada e de enormes blocos numa época em que a realeza do país do Nilo
de granito. Numa, estava o sepulcro intacto ocupava um lugar secundário no palco inter-
de Psusennes I, acompanhado dos seus vasos nacional.
canópicos, shabtis e recipientes de prata.
A múmia do rei estava dentro de um sarcófago A.J.S.

153
Navegar
para
o Além

154
Uma das barcas

AGE
miniatura
encontradas
no túmulo
de Tutankamon.
Baixo-relevo que mostra
uma barca solar a transportar
Rá (como Nefertum, o Sol
Poente), do templo mortuário
de Ramsés III, em Luxor.
Data, provavelmente,
do século XII a.C.

F
oram 36 as miniaturas de barcas No início, eram colocadas grandes embarca­
de madeira, douradas e pintadas, ções em tamanho real, como as do rei Kéops,
encontradas no túmulo de Tutan­ datadas da IV Dinastia (2630–2510 a.C.) e que
kamon. Decoradas com figuras foram descobertas perto da grande pirâmide
zoomorfas ou divindades, destinavam­se a do rei no planalto de Gizé. A partir do final
proteger o rei Sol durante a sua peregrinação do Império Antigo, passou­se a depositar
à cidade sagrada de Abidos, que alberga o nos túmulos reais e privados modelos de
túmulo do deus dos mortos, Osíris. Algumas barcas de madeira em miniatura, perpetuando
carregam um trono, outras uma cabina de assim, simbolicamente, a peregrinação a
viagem ou vários toldos dourados no convés. Abidos.
Estas embarcações têm uma função clara­
mente funerária e simbólica: permitir que o TALHOS, PADARIAS E OFERENDAS
rei renasça no Além como Osíris. As maquetas de barcas funerárias não são os
A prática de colocar maquetas de barcos nas únicos objetos que acompanham o defunto.
sepulturas não é uma inovação de Tutanka­ Há também modelos e miniaturas de padarias,
mon; na verdade, as barcas acompanham cervejarias, ganadarias, talhos, hortas e por­
o falecido desde a primeira dinastia do Egito. tadores de oferendas, entre muitos outros,

156
GETTY
Em cima, miniatura de barca solar para o transporte
de uma múmia, em madeira pintada (X Dinastia).
Em baixo, barca esculpida em alabastro com
pormenores dourados, do túmulo de Tutankamon.

GETTY
AGE

As barcas tinham uma função


prática, funerária e simbólica (permitir
que o rei renasça no Além como Osíris)
e surgiram na I Dinastia

garantindo assim ao falecido o fornecimento evoluíram em relação à literatura fúnebre


daquilo que mais aprecia e um renascimento da época. É surpreendente, portanto, que as
eterno com tudo o que deseja e necessita à miniaturas de barcas do túmulo de Tutanka-
sua disposição. mon perpetuem, quase mil anos depois, uma
Esta prática continuou até ao reinado de Se- prática funerária herdada do Império Antigo.
sóstris III, faraó da XII Dinastia do Império A razão é desconhecida.
Médio (2025–1872 a.C.), e mais tarde desapa-
receu a favor de outros objetos cujas funções G.E.D.T

157
Colar floral encontrado
no túmulo de Tutankamon,
feito com papiro, linho,
folhas de oliveira, persea,
centáurea-azul, pétalas
de lótus-azul e contas
de faiança. Está hoje
no Museu Metropolitano
de Arte de Nova Iorque.
ASC

158
Ofertas
de vida
Q
uando Howard Carter escavou o
túmulo de Tutankamon, descobriu
outros tesouros que, sem tanto
valor material como o ouro e as joias,
eram igualmente valiosos pelo conhecimento
que se podia extrair deles. Consistiam num grande
número de elementos vegetais que tinham
sido preservados desidratados graças à falta de
humidade dentro da sepultura.
Por este motivo, o egiptólogo, convencido de
que as plantas eram uma ferramenta muito útil
para a reconstrução dos costumes funerários e
da vida quotidiana dos antigos egípcios, incor-
porou na sua equipa de escavação o botânico
inglês Percy Newberry (1869–1949), professor
da Universidade de Liverpool.

159
PLANTAS QUE
CONTAM HISTÓRIAS
Desde ramos de flores e grinaldas
até alimentos, medicamentos
e óleos, as espécies botânicas
identificadas nos túmulos
egípcios faziam parte
das oferendas que ali
se depositavam para
fornecer ao falecido
tudo o que poderia ser
necessário na outra
vida, partindo do prin-
cípio de que era reflexo
da terrena.
No túmulo de Tutanka-
mon, foram encontrados
116 cestos com sementes
e comida e vários colares
de flores que indicavam
que o faraó teria morrido
entre meados de março e
o final de abril: frutos como
melancia, figos-sicômoros,
amêndoas, tâmaras, romãs e
uvas; espécies aromáticas como
coentros, cominho-preto, tomi-
lho e açafrão; plantas medicinais
como feno-grego, alho e zimbro;
fogaças de trigo envolvidas em jun-
cos e jarros de vinho etiquetados
com a data da colheita.
Tudo isto mostra-nos que o túmulo
de um faraó estava bem abastecido e
continha no seu interior não só uma boa
despensa como também uma farmácia
bem abastecida.
Atualmente, estes materiais fazem parte
da Coleção Económica Botânica dos Reais
Jardins Botânicos de Kew, em Londres, e
do Museu do Cairo.

E.M.M.M.

O túmulo de um faraó continha


uma boa despensa e uma farmácia
bem abastecida

160
ASC

Também
encontrado
no túmulo
de Tutankamon
e igualmente
exposto no Museu
Metropolitano de Arte
de Nova Iorque, colar
floral realizado sobre uma
rede de papiro em que foram
inseridas folhas de oliveira, pétalas
de centáurea-azul, bagas, etc.
O colar segurava-se ao pescoço
com fios de linho.

161
Tesouros
fascinantes
162
Imagem da exposição
sobre Tutankamon,
o seu túmulo e o seu
fabuloso tesouro, na
África do Sul, 2014/15.

GETTY

163
B
astou uma frase para começar o túmulos do vale, era constituído por várias
mito de um faraó pouco conhecido dependências. Destas, destaca-se a antecâ-
até àquele momento: Tutankamon. mara, que continha um trono dourado com
Era uma manhã de novembro de 1922 incrustações de ébano e marfim, cadeiras,
e uma das últimas oportunidades de que Howard divãs funerários dourados com cabeças de leão
Carter dispunha para descobrir o túmulo deste e da deusa Hathor, baús, vasos de alabastro,
rei da XVIII Dinastia (1539–1292 a.C.). O seu estojos, tamboretes e numerosos acessórios
mecenas, lord Carnarvon, estava a perder a pertencentes a carros dourados. Também
esperança de o encontrar, tantas tinham sido foram encontradas aqui as duas famosas
as tentativas frustradas de Carter. Este, por sua estátuas de Tutankamon, que ladeavam a porta
vez, já tinha começado a duvidar da sua própria de acesso à câmara funerária, elaboradas em
sanidade mental. madeira e bronze e cobertas por resina negra.
“Consegue ver alguma coisa?”, perguntou Cada uma tinha 1,90 metros de altura, ou seja,
Carnarvon quando Carter introduziu uma vela estavam representadas em tamanho real (mas
através do buraco que escavara na parede. o faraó teria só 1,67 m).
“Sim, coisas maravilhosas”,
respondeu o arqueólogo. De Os objetos MÚLTIPLOS
SEPULCROS
facto, a descoberta de um
degrau escavado na rocha
achados O espaço da última depen-
mudou o curso da história da no túmulo de dência, a câmara funerária,
egiptologia e o conhecimento encontrava-se ocupado quase
sobre aquele período histórico. Tutankamon na sua totalidade pelo grande
O túmulo de Tutankamon
(KV62), embora modesto
ajudam a sepulcro feito de madeira
dourada com incrustações de
em dimensões, tendo em compreender faiança a formar um padrão
conta a sumptuosidade e de pilares djed (símbolos de
a magnificência de outros a sua época Osíris, senhor do submundo)

164
Recriação esquemática
de alguns túmulos
encontrados no Vale
dos Reis (Ramsés III e IV).

GETTY
GETTY

Encontrado quase intacto, o túmulo de Tutankamon fascinou os leigos


e forneceu informação preciosa e inédita aos especialistas.

165
Réplica de alguns dos objetos
encontrados na antecâmara
do túmulo de Tutankamon.

GETTY
e de nós tjet (emblemas Encontraram-se decorados. O féretro
de Ísis, mulher de Osíris, mais interno de todo
a quem ressuscitou). seis carros o conjunto era feito de
Depois de remover o pri-
meiro, surgia um segundo
de combate; ouro maciço. Todos
estes caixões represen-
sepulcro, igualmente antes, apenas tavam o faraó de uma
dourado e com desenhos maneira osírica, ou
pr-wr, que significam se conheciam seja, tratava-se da inte-
“casa grande”. Acredi-
ta-se que este desenho
dois exemplares gração do defunto no
próprio Osíris, senhor
represente o santuário da deusa guardiã do do submundo. Por sua vez, Tutankamon tinha
Alto Egito, Nekhbet. colocada a sua máscara funerária de ouro, para
A decoração deste sepulcro integra textos além de inúmeras peças de joalharia (colares,
mágicos provenientes do Livro dos Mortos pulseiras, anéis e dedais) nas mãos e nos pés,
(ou, mais corretamente, o Livro de Sair para a na sua maioria de ouro.
Luz), bem como representações de divindades No chamado “anexo”, foi encontrada uma
protetoras de cada um dos lados, incluindo mistura de objetos que variavam desde jarros
a tampa. Estas divindades eram Ísis e Osíris, de vinho a provisões funerárias (mantimentos)
Maat e Rá-Horakhty (divindade solar) e Nut para alimentar o defunto na sua outra vida:
(a deusa do céu, que abria as suas asas protetoras óleos, pomadas, caixas, cadeiras, bancos e
sobre o defunto na tampa). cabeceiras de cama, bem como muitos outros
artigos destinados ao uso por parte do falecido
TRÊS CAIXÕES no Além.
Para chegar finalmente à múmia do rei, tinha
de se passar por um sarcófago de quartzite e PRONTO PARA UMA LONGA VIAGEM
granito vermelho pintado que continha três No Antigo Egito, a maior aspiração do indivíduo
caixões antropomorfos, dourados e ricamente era renascer no Além. Para consegui-lo, não só

166
GETTY

GETTY

Não há tesouro do Antigo Egito comparável, em beleza


e carga mística, à máscara funerária do faraó-menino.

se preocupavam com a preservação do corpo no Império Novo, precisamente a época em


através do processo de mumificação, como que Tutankamon viveu e morreu, que surgiu
também faziam um enxoval que supunham lhe a maior quantidade e variedade deste tipo de
iria ser útil na outra vida. Por isso lhe levavam enxovais.
os seus objetos favoritos ou, em alguns casos, O enxoval funerário de Tutankamon era
réplicas encomendadas. A prática de incluir composto por mais de 5000 objetos de todo o
um enxoval no local do enterro terá estado tipo, que podem ser divididos em três grupos
presente durante toda a era faraónica, mas foi bem definidos:

167
Dois dos seis carros encontrados
poderiam ter sido de uso cerimonial,
mas os outros eram destinados
a atividades recreativas

• Elementos pertencentes ao âmbito da vida estão abrangidos todos os recipientes cerâmicos


quotidiana. Aqui incluiríamos todos os objetos ou de cestaria com fruta, pão, cevada, cerveja,
comuns do túmulo de Tutankamon, como ânforas de vinho e tudo o que era necessário
roupas, artefactos de toucador, de escrita, para abastecer o falecido na outra vida.
jogos, bengalas, cetros, joias, carros, tronos, Apesar de se terem encontrado mais de 5000
encostos, cadeiras, bancos, mesas, camas, objetos na sepultura de Tutankamon, quase
baús, grinaldas, coroas... todos ficam eclipsados pela impressionante
• Elementos relacionados com a passagem do máscara funerária de onze quilos de peso. Feita
defunto para o Além. Esta secção inclui os sar- com ouro, lápis-lazúli, cornalina, amazonite,
cófagos, a máscara funerária, amuletos prote- quartzo, obsidiana, faiança e vidro, cobria a
tores, estátuas de divindades, shabtis e vasos cabeça do defunto até aos ombros.
canópicos. Todos estes elementos estavam
dotados de uma característica mágica cujo PARA O LAZER E PARA A GUERRA
propósito era proteger o falecido dos perigos Os elementos mais marcantes (máscara e sar-
que iria enfrentar na viagem até ao Além, para cófagos) que compunham o enxoval funerário
assim poder viver para toda a eternidade. de Tutankamon chamaram sempre a atenção,
• Alimentos e seus recipientes. Neste grupo, pelo que dos outros não se fala tanto. No

AGE

Uma das pinturas murais do túmulo de Tutankamon.

168
AGE

Carros como esta réplica foram encontrados na antecâmara.

entanto, pertenciam ao quotidiano do faraó.


Quais eram?
Entre os objetos da vida quotidiana, foram
encontrados elementos relacionados com
diferentes atividades de lazer, como a caça, e
outras ocupações, como a guerra. Ligados a
estas atividades, foram documentados seis
carros desmontados no túmulo: quatro na
parte sueste do antecâmara e dois na parte
norte da sala do tesouro. O carro foi um ele-
mento introduzido no Egito pelos hicsos no
século XVI a.C., e só se conheciam dois até à
descoberta deste túmulo: um deles encontra-
va-se no túmulo de Yuya e Tuya e o outro está
exposto no Museu Egípcio de Florença, desco-
nhecendo-se a quem pertenceu.
A decoração da grande maioria inclui cenas
de prisioneiros asiáticos, além do emblema da
união das duas terras, conhecido pelo nome
de sma-tawy, representações de divindades
e motivos protetores, como o sinal ankh, o
pilar djed ou o olho wdjat. A decoração incluía
o nome de Tutankamon gravado num serekh
(uma representação da fachada do palácio). O Além
AGE

Segundo Carter, dois dos seis carros encontra- não foi dotado
dos poderiam ser considerados de uso formal, apenas de carros,
ou seja, eram usados em desfiles e cerimónias. mas também
Os restantes, de estrutura mais leve, seriam de defesa com
usados para atividades de tipo recreativo, armas brancas,
como a caça. como estas adagas.

169
Representação
Os mais de 5000
de um escravo, objetos descobertos
provavelmente
núbio, num foram eclipsados
dos cabos
das bengalas pela beleza
pessoais do faraó. da impressionante
máscara funerária:
onze quilos de ouro
sentações em túmulos em que o falecido apa-
rece a caçar com este objeto, como nos frescos
do túmulo de Nebamun, hoje no Museu Britâ-
nico (Londres). No caso de Tutankamon, con-
sidera-se igualmente que os terá usado para a
caça, embora não haja representações do rei a
caçar com eles.
Por outro lado, na antecâmara, no anexo e na
AGE

própria câmara funerária também se encon-


traram bastões e bengalas, paus para a luta e
leques. Devido à grande quantidade de bastões
e bengalas que foram encontrados no túmulo
de Tutankamon, Carter concluiu que se tratava
de uma coleção, uma vez que eram cerca de
130 exemplares completos e mais uns quantos
BENGALAS, ESPADAS, fragmentos. Alguns conservam evidências de
BOOMERANGS terem sido usados, enquanto outros eram para
Outros objetos descobertos na sepultura do
faraó-menino eram armas e bengalas. Segundo
Carter, provavelmente algumas delas terão
sido usadas por Tutankamon em vida. A lista
de armamento encontrado na antecâmara e no
anexo inclui armaduras, adagas, espadas,
arcos e flechas, martelos, paus e fundas,
além de exemplares daquilo a que hoje
chamamos boomerang. Curiosamen-
te, não se encontraram machados de
guerra entre todos estes objetos.
Destaca-se a presença de duas
espadas khepesh, cuja introdução
também foi feita pelos hicsos
no final do Segundo Período
Intermédio (c. 1530 a.C.). Estas
espadas caracterizam-se pela
sua lâmina curva e acredita-se
que seriam usadas mais para esma-
gar do que para cortar, dado que o fio
da lâmina não estava totalmente desenvol-
Leque real entre
vido. Uma das espadas contrasta com a outra os vários encontrados
pelo seu tamanho menor. Acredita-se que foi nos objetos do monarca,
feita para Tutankamon quando era criança. com as plumas
Quanto aos boomerangs, é possível ver repre- em muito bom estado.
AGE

170
Lazer faraónico
Os jogos de mesa eram comum nos enterros, pois a decoração com a flor de
muito populares no Antigo utilizava-se em cerimónias. lótus, que continha cenas
Egito. Temos testemunho Acredita-se que aqueles das divindades Amon-Rá e
deste facto nos enxovais que foram encontrados no Rá-Horakhty perante Ptah,
descobertos nas sepultu- túmulo devem ter sido ali como uma representação
ras. Na de Tutankamon, abandonados depois de de todo o panteão egíp-
foram encontrados quatro usados durante o enterro cio. A segunda trombeta é
tabuleiros de Senet, um do monarca. A prova da sua composta por uma chapa
dos jogos mais conhecidos utilização são as marcas de liga de cobre ou bronze e
da sua época, e possíveis de desgaste verificadas no ouro (electro) e revestida de
fragmentos de outros dois. interior do arco de metal. O folha dourada em algumas
Também havia seis conjun- caso das duas trombetas é partes. Tem a mesma forma
tos das peças para o jogo. especial. Foram descober- de campânula da anterior e
Os tabuleiros de Senet tas na antecâmara, envolvi- um desenho simples que re-
eram feitos com ébano e das em juncos. A primeira presenta Tutankamon com a
marfim. Um deles tinha uma era de prata, com o bordo coroa azul a receber o ankh,
pequena mesa com pés de em forma de campânula símbolo da vida, da mão de
leão sobre uma espécie de e a boquilha envolvida em Amon-Rá, com Rá-Horakhty
trenó, para se jogar mais ouro. A decoração lotiforme atrás dele. Nas costas de
confortavelmente. O jogo apresenta dois cartuchos Tutankamon, encontra-se
Senet desenrolava-se sobre verticais com o nomen e o deus Ptah. Esta trombeta
um tabuleiro retangular o prenomen de Tutanka- é menor do que a anterior.
com 30 quadrados. Alguns mon. Depois, tinha uma Um dado interessante? Em
destes quadrados tinham moldura retangular sobre 1939, num evento transmiti-
muito significado, porque do pela BBC, foram tocadas
o jogo em si estava rela- pelo trompetista James
cionado com a viagem ao Tappern, após o que a trom-
submundo. Por exemplo, beta de prata se partiu em
nele podemos encontrar a pedaços.
casa que representava as
águas do caos ou a casa de
rejuvenescimento, a das três
verdades, ou, inclusivamen-
te, algumas relacionados
com divindades funerárias
tão importantes como
Amon-Rá e Rá-Horakhty.
Outros objetos de lazer en-
contrados no túmulo foram
instrumentos musicais: um
par de sistros, dois aplaudi-
dores e duas trombetas. Os
aplaudidores apresentavam
a forma de uma mão com
antebraço. Quando se en-
trechocavam, produziam um
som. Eram feitos de marfim. A música
Segundo Carter, tratava-se
AGE

era algo
mais de um objeto do tipo quotidiano
ritual do que de um instru- e, como tal,
mento musical destinado levavam-na
ao ócio. O sistro é, tal como para o Além.
o anterior, um instrumento
musical para rituais. Este
tipo de elementos não era

171
AGE

Mesa e peças
do jogo Senet,
em madeira de ébano,
com patas de leão.

rituais. O seu material era variado (do ébano


ao marfim, alguns com incrustações de ouro
ou prata) e as suas formas diversas. Entre eles, O jogo Senet
destaca-se uma bengala com o cabo encurvado
e em que se veem representações dos inimigos estava
do Egito: líbios, asiáticos e núbios.
Outro elemento da vida quotidiana muito
relacionado
apreciado no Egito, devido ao calor, era o com a viagem
leque. Destes, conservam-se, pelo menos, oito
exemplares. Entre todos, destaca-se o encon- ao submundo
trado na câmara do tesouro. Este belo exemplar
é um leque de mão, giratório, feito de marfim O que se pode dizer sobre a escrita? Sabe-
com plumas brancas que ainda estavam intactas -se que apenas uma percentagem ínfima da
no momento da sua descoberta. população, circunscrita a escribas, sacerdotes
e, possivelmente, à família real, sabia escrever
JOGOS, MÚSICA E ESCRITA e ler. No entanto, no túmulo de Tutankamon,
O túmulo guardava igualmente objetos des- foram encontrados vários elementos de
tinados ao lazer, à música e à escrita, muito escrita, concretamente paletas, um apoio de
importantes no Antigo Egito. Neste âmbito, pincéis e um brunidor de papiro, todos de
foram encontrados vários jogos destinados excelente qualidade.
ao prazer lúdico do faraó no Além, tal como Entre as paletas de escrita, uma apresentava,
acontecia na sua vida terrena. Por exemplo, em vez de pigmentos naturais, incrustações de
jogos como o Senet (encontraram-se quatro), vidro e calcite, o que indica o seu caráter emi-
o Mehen ou jogo da serpente, ou o dos sabujos nentemente funerário (elaborada de propósito
e chacais que tanto davam para crianças como para fazer parte do enxoval); as outras eram
para adultos. Havia instrumentos musicais, de uso quotidiano, ou seja, elementos da vida
como o sistro, e também duas trombetas, uma diária que alguém decidiu incluir no enterro.
de prata, e aplaudidores, uma espécie de
castanholas. Y.T.R.

172
Carter
a trabalhar
no túmulo
do faraó
Horemheb.

GETTY
Escrita para a eternidade
Segundo os Textos das as plumas. Ainda na parte possuem evidências de
Pirâmides, o rei, ao morrer, superior, havia dois peque- terem sido utilizadas. O
tornava-se o escriba do nos recipientes circulares conjunto de escrita incluía
deus-Sol. Daí a grande destinados aos pigmentos. um estojo de madeira
quantidade de elementos Embora algumas das pale- dourada com incrustações,
relacionados com a escrita tas do enxoval funerário de um brunidor de papiro de
que foram encontrados no Tutankamon sejam clara- marfim e ouro, e um prato
túmulo: paletas, uma caixa mente objetos simbólicos, de marfim destinado à
para “lápis” (na verdade, e não para serem usados, água para a elaboração
canas e juncos eram os outras fariam parte dos dos pigmentos. Tudo isto
instrumentos usados para pertences mais pessoais acompanhado de um belo
escrever), dois chifres, do jovem rei. Estas peças baú ou caixa retangular
um brunidor de papiro e foram encontradas na de papiros, decorado com
pigmentos em recipientes câmara do tesouro e cenas já conhecidas por
de concha, bem como um incluíam uma pequena aparecerem em outros
fragmento de pedra are- paleta com o nome de objetos funerários: o rei
nosa que provavelmente Tutankaton, designação na presença de Amon-Rá
serviria como borracha usada durante o seu e Rá-Horakhty, e também
para apagar. As paletas período de Amarna, bem perante Ptah e Sekhmet.
estavam emolduradas por como outra de dimensões Presumivelmente, esta
um retângulo de madeira semelhantes, de marfim, já caixa estaria destinada
com um espaço na parte com o nome de Tutanka- a conter rolos de papiro,
superior para os pincéis e mon. Ambas as paletas mas foi encontrada vazia.

173
Desenhos
e hieróglifos
numa caixa
de madeira
dourada
SHUTTERSTOCK

encontrada
no sarcófago
de Tutankamon.
Madeira,
o luxo
dos faraós
175
Pormenor
do túmulo
de Tutankamon,
feito com
talha dourada
e colorida.
ASC

176
Os objetos de uso quotidiano
ajudam a estabelecer como se vivia
na época de Tutankamon

N
ão são só os objetos preciosos que ESTUDOS DE PRECISÃO
importam. Devido à sua diver- O botânico inglês Percy Newberry (1869–1949),
sidade e amplitude, a coleção de contratado por Howard Carter, enviou
madeiras descoberta no túmulo algumas amostras para o Laboratório Jodrell
de Tutankamon em 1922 é a mais importante dos Reais Jardins Botânicos de Kew, em
coleção arqueobotânica encontrada em todo Londres, para serem estudadas, tendo sido o
o Egito. Este tesouro botânico, composto botânico Leonard Alfred Boodle (1865–1941)
por colares de grinaldas vegetais e peças de quem analisou primeiro ao microscópio esses
mobiliário funerário feitas com madeira local e fragmentos de madeira. Após a sua morte, os
importada, foi um dos primeiros a submeter- botânicos Charles Russell Metcalfe (1904–1991)
-se a análises anatómicas para identificação e L. Chalk continuaram os seus trabalhos
de espécies vegetais do Antigo Egito. na Universidade de Oxford, e depois foi
O túmulo real, cujo mobiliário foi preservado A. Lucas, um químico londrino que havia
do ar e da luz durante milhares de anos, colaborado com Carter durante nove mis-
destaca-se pela variedade e pela qualidade sões arqueológicas, quem analisou diferentes
dos produtos locais e importados a que o rei pedaços de madeira do túmulo real, em parti-
tinha acesso. No entanto, embora a coleção cular cavilhas e tacos usados para a montagem
de plantas e leguminosas descoberta tenha de vários objetos.
sido alvo de múltiplos estudos, a maioria das Carter usou um código de cores para descre-
madeiras do mobiliário funerário ainda está ver a madeira do túmulo (objeto de “madeira
por identificar. branca”, de “madeira vermelha”), que ainda

ASC

Uma das cadeiras


de rodas que o faraó
costumava utilizar,
devido aos seus
graves problemas
nos pés.

177
Entre o seu mobiliário,
destaca-se este baú,
no qual se pode
observar madeira
vermelha,

ASC
que provavelmente
serviu para armazenar
as roupas que o faraó
usava ou queria
levar para o Além.

As diferentes peças de madeira do enxoval


mostram a riqueza das redes comerciais
e a destreza técnica e artística dos artesãos

hoje é usado nas investigações. Estas defi-


nições de cor, como o vermelho, podem
corresponder a várias espécies de conífe-
ras, como o cipreste (Cupressus
sempervirens) ou o zimbro
(Juniperus sp.), o que dificul-
ta que se conheça verdadei-
ramente os tipos de madeira
usados no fabrico de objetos.
Porque é que a madeira é tão
importante? O Egito, um país
desértico, era desprovido de florestas
e, portanto, de madeira, pelo que
esta era uma mercadoria preciosa,
um objeto de luxo que chegou ao vale
do Nilo ao longo da história do Egito
graças às diferentes rotas comerciais.
ASC

CORRENTES E PRECIOSOS
O que podemos observar? As prin-
cipais madeiras locais usadas são a

178
figueira-sicômoro (Ficus sycomorus L.), a do rei, e casca de bétula (Betula pendula)
acácia (Acacia sp.), o tamarindo (Tamarix e madeira de amendoeira (Prunus dulcis),
aphylla, T. nilotica) e o azufaifo (Ziziphus estas últimas utilizadas para o fabrico dos
spina christi), principalmente utilizado no cetros do faraó.
fabrico de cavilhas e mobiliário secundário. As espécies locais e importadas localizadas no
As madeiras preciosas, como o zimbro (Dal- túmulo de Tutankamon ilustram a variedade
bergia melanoxylon) e o cedro do Líbano de rotas económicas criadas pelos artesãos
(Cedrus libani), estavam reservadas para da madeira. O estudo do mobiliário funerário
o fabrico de artigos de luxo: cofres, tronos, devolve-nos uma imagem fantástica das
camas, apoios para a cabeça, cetros, sarcó- diferentes redes económicas e comerciais
fagos, etc. durante a XVIII Dinastia. Quando se exa-
A madeira de ébano, também chamada minam estes objetos, fica-se absolutamente
“ébano dos faraós”, proveniente do Corno espantado com o incrível conhecimento dos
de África, e o cedro do Líbano foram identi- artesãos, a sua destreza técnica e estética.
ficados em vários cofres e móveis do túmulo Este foi o requinte artístico colocado ao serviço
de Tutankamon. Da mesma forma, as madei- do jovem rei para a sua viagem ao Além.
ras do Médio Oriente foram identificadas
como olmo (Ulmus minor), usado nos carros G.E.D.

Na página
oposta e aqui,
exemplos
de camas
luxuosas
decoradas
com formas
de animais
ASC

e talhas
douradas
de diferentes
madeiras.

179
Glossário
CARTONAGEM: material
composto por várias camadas
de linho (estucado) ou papiro
endurecido com gesso, e que
se decorava com tinta ou ouro.
AARU: o paraíso onde Osíris APOTROPAICO: quando algo tem Empregava-se para fazer
governava e onde jaziam um caráter mágico para afastar máscaras funerárias que se
os defuntos. É descrito como ou prevenir o mal e propiciar o colocavam sobre a múmia
uma região muito luminosa bem. do defunto, mas também para
que poderia ser o destino caixões e carcaças de múmia.
da “alma” do falecido depois ATON: deus egípcio que Começou a utilizar-se
de passadas todas as provas representava o deus-Sol no Primeiro Período Intermédio,
e o julgamento de Osíris. no firmamento, sendo tendo-se generalizado
também conhecido por deus Rá. durante a XXII Dinastia.
ALABASTRO OU CALCITE: tipo Tomou a forma do disco solar,
de rocha amarelada translúcida personificação simbólica CARTUCHO: provém do francês
ou castanha-clara que se do deus imperial e fonte cartouche. Representa-se
extraía de diferentes minas, de toda a vida durante esquematicamente como o laço
como Hatnub, no Médio Egito, o período de Amarna. de corda do hieróglifo shen
no deserto ocidental. Usava-se mas de forma alongada.
para fabricar elementos BAIXO EGITO: era o território Usava-se para escrever
de enxoval, como vasos, compreendido entre o sul de dentro dele o nome dos faraós.
esculturas e até elementos Mênfis, perto da atual cidade
decorativos arquitetónicos. do Cairo, até ao delta do Nilo. COPTA: egípcio que professa
Denominava-se TA-mehu, o cristianismo. Usa-se também
ALTO EGITO: território literalmente, “terra do papiro”. para designar uma fase da
compreendido entre Chamava-se Baixo Egito história do Egito que vai desde
a primeira catarata do Nilo, porque era onde desembocava o fim do período romano até
atual Assuão, até à região e corria o Nilo. à conquista islâmica (ano 641)
de El-Ayait, atual Cairo. e para se referir à língua copta,
CAIXÃO: devido à necessidade descendente direta do demótico
AMDUAT: texto que descreve de proteger o corpo do defunto, que era falado no Egito
as 12 horas da passagem do Sol os egípcios colocavam da Antiguidade Tardia.
através da noite no submundo. os restos mortais mumificados
em caixões, que eram COROA BRANCA: simbolizava
AMULETOS: acreditava-se que considerados a habitação eterna o controlo do faraó sobre
tinham propriedades mágicas, do falecido. Tinham funções o Alto Egito. Era usada
protetoras e regenerativas. religiosas e simbólicas, nas ocasiões que envolviam
Usavam-se tanto no dia-a-dia além de serem um elemento apenas este território.
como nos rituais fúnebres. essencial do enxoval funerário.
Dependendo do tipo (forma, Usaram-se a partir do período COROA VERMELHA: simbolizava
decoração, cor e material), pré-dinástico até ao greco- o controlo do faraó sobre
cada um tinha uma finalidade. -romano. Inicialmente, eram o Baixo Egito. Era usada
Muitos eram perfurados retangulares, mas, no final nas ocasiões que envolviam
e usavam-se como pendentes, do Império Médio, começaram apenas este território.
mas também podiam a ser substituídos por caixões
fazer parte de anéis ou, antropomórficos, ou seja, COROA DUPLA: era a usada
simplesmente, transportar-se. com forma humana. pelos faraós. Trata-se de uma
Durante a mumificação, combinação da Coroa Vermelha
colocavam-se sobre a múmia DUAT: o reino dos mortos ou o do Baixo Egito e da Coroa
ou entre as ligaduras para submundo na mitologia egípcia, Branca do Alto Egito. A união
proteger o falecido. para onde a alma dos defuntos de ambas representava o poder
viajava para ser julgada e o controlo do faraó sobre
ANHK: termo egípcio para no tribunal de Osíris, além todo o Egito unificado, além
designar “vida”. O hieróglifo de ser a morada deste e de da união das Duas Terras.
é o laço de uma sandália com outros deuses. Nesta região,
forma de T encabeçada por Rá viajava de oeste para leste DELTA: Baixo Egito, o norte do
um círculo. Era um símbolo todas as noites e durante país. Nesta zona, havia cinco
importante entre os egípcios e a sua jornada lutava contra ramais do Nilo na Antiguidade;
aparece muito frequentemente Apófis, que encarnava o caos atualmente, só restam dois.
representado na iconografia. primordial que tinha de superar
Os coptas adotaram-no para se levantar todas as manhãs DEMÓTICO: escrita cursiva;
como a cruz ansata. e devolver a ordem à Terra. é também uma etapa

180
da linguagem egípcia escrita. lodo e cinzas vegetais ou natrão. unir-se ao ba, formando o akh.
Foi inicialmente adotado em Era introduzida numa panela É retratado como um par
documentos administrativos e cozida a alta temperatura, de mãos levantadas. Podia
e comerciais. Substituiu dando origem a uma pasta vítrea. sobreviver após a morte do
a escrita hierática e, durante sujeito; para isso, era necessária
o período ptolemaico, também FILHOS DE HÓRUS: grupo de a realização de cultos funerários
foi usado para textos religiosos, quatro deuses, Imsety, Hapy, e oferendas de alimentos.
científicos e literários. Qebeshnuef e Duamutef. A sepultura era a sua casa.
Eram os filhos de Hórus e Ísis
DYED: sinal de escrita e protegiam os órgãos do KEMET: antigo termo egípcio
hieroglífica que simboliza falecido no embalsamamento. para o país. A tradução literal
estabilidade. Embora Cada um deles está associado é “terra negra” e refere-se
o seu significado exato seja a um vaso canópico com o seu aos solos férteis compostos
controverso, pensa-se que conteúdo e um ponto cardeal. pelos lodos depositados após
representa um pilar de plantas as inundações anuais do Nilo
entrelaçadas ou um conjunto HICSOS: pessoas de origem no vale e no delta. O termo
de caules. Está associado sírio-palestiniana que emigraram oposto a kemet era deshret
à coluna vertebral de Osíris, para o Egito no fim do Império (literalmente, “terra vermelha”),
deus do submundo. Médio e se instalaram no delta. que denominava o deserto
Controlaram a metade norte e as terras áridas fora do vale do
ÉPOCA BAIXA: período histórico do Egito no Segundo Período Nilo. Na Antiguidade, o Egito
que abrange várias dinastias: Intermédio. Literalmente, estava dividido em Alto e Baixo
a XXVI ou Saíta (664 a.C.) e as poderia traduzir-se o termo Egito, e estes, por sua vez,
dinastias XXVII a XXI. Perdura como “soberanos de países em 22 distritos, os nomos.
até à conquista de Alexandre, estrangeiros” ou “governantes
o Grande, em 332 a.C. de países montanhosos”. KOHL: cosmético usado tanto
por homens como mulheres.
ESCARAVELHO: amuleto HIERÁTICO: tipo de escrita Era composto por estibina
muito popular, frequentemente cursiva usado pelos antigos moída e usava-se para delinear
com inscrições. Usou-se egípcios no início do período os olhos; protegia de doenças
principalmente como dinástico. Escrevia-se da direita oculares e dos raios solares.
pequeno amuleto de pedra, para esquerda e era uma forma
mas também para a criação simplificada de hieróglifos LÁPIS-LAZÚLI: rocha
de grandes esculturas que permitia que os escribas azul-escura muito importante
de pedra para os templos. escrevessem mais depressa e apreciada, importada
O comportamento do em papiro ou óstracos. do norte do Afeganistão
escaravelho que rola bolas e usada para decorar
de estrume estava associado HIPOGEU: túmulo subterrâneo máscaras funerárias
a Rá e à sua viagem pelo céu. e escavado na rocha. e em joias e amuletos.

ESFINGE: a palavra provém HIERÓGLIFOS: sistema LIVRO DOS MORTOS: coleção


do grego antigo. É uma besta de escrita usado para transmitir de feitiços mágicos, alguns
mítica normalmente retratada a língua do Antigo Egito. novos e outros retirados dos
como um leão deitado com uma Trata-se de pictogramas usados Textos dos Caixões. Data do
cabeça humana e que, muitas desde a era pré-dinástica Segundo Período Intermédio.
vezes, usa o toucado real nemes. até ao século IV. Representam Era colocado no caixão ou na
Era um símbolo da realeza, seres vivos, animais, plantas, câmara funerária do falecido
já que representava a força pessoas e objetos. Havia três para ajudá-lo na sua viagem
e o poder do faraó, além tipos de sinais: fonogramas, através do submundo.
de servir de guardiã logogramas e determinantes. Inicialmente, foi usado
às entradas dos templos. nos enterros reais e privados.
JULGAMENTO OU TRIBUNAL
ESTELA: lousa de pedra ou DE OSÍRIS: todos os defuntos MAAT: deusa que personificava
madeira, inscrita, talhada tinham de submeter-se a verdade, a justiça, a harmonia,
ou pintada. Era construída a um juízo perante Osíris, a ordem natural e o equilíbrio.
como um monumento para no qual o coração daqueles Representava-se sentada
fins funerários, de marcação era pesado numa balança com uma pena de avestruz.
territorial ou comemorativos. contra uma pena da deusa Maat.
MASTABA: túmulo retangular,
FAIANÇA: material com o qual KA: a força vital do indivíduo, de paredes baixas em altura
se faziam tanto amuletos como isto é, o seu caráter particular, e inclinadas. O nome vem
joias, shabtis e recipientes. Era natureza e temperamento. do árabe e significa “banco,
composta por quartzo moído, Nascia com cada pessoa e podia assento”, devido à semelhança

181
com estes elementos de adobe vários objetos do quotidiano,
das casas árabes. As pirâmides como sandálias, ramos, etc.
substituíram-nos na III Dinastia
e deixaram de ser utilizados PORTA FALSA: elemento
no final do Império Médio. arquitetónico de pedra ou
madeira que imitava uma porta
MÉDIO EGITO: compreende orientada a oeste. Encontra-se Diretor
a área entre Sohag e El-Ayait. em muitos túmulos egípcios Carlos Madeira
e templos mortuários, sobretudo
NATRÃO: mineral composto por do Império Antigo. As oferendas Coordenadora da edição
carbonato de sódio e bicarbonato funerárias eram colocadas Carmen Sabalete
de sódio. Usava-se em rituais à frente destas portas que
de purificação, especialmente serviam de ligação entre o mundo Colaboraram nesta edição
para embalsamar e mumificar. dos mortos e o dos vivos. Alberto Porlan, Alejandro
Jiménez Serrano, Alfredo
NECRÓPOLE: palavra do grego RITUAL DA ABERTURA DA Redinha, Ángel Fuentes Ortiz,
antigo que significa “cidade BOCA: cerimónia através da Cristina Enríquez, Cristina
dos mortos”. Usava-se qual a múmia do defunto Segura, Eva María Montes
com referência a cemitério ou a sua estátua funerária eram Moya, Gersande Eschenbrenner
ou lugar destinado a enterros. trazidas de novo à vida (de forma Diemer, José Manuel Alba
simbólica), devolvendo-lhe Gómez, Juan Antonio Martínez
NEMES: toucado plissado usado o uso da boca e dos olhos. Hermoso, Laura Manzanera,
Luisa M. García González,
pelos faraós. Era um pedaço O ritual encontra-se descrito
María José López Grande,
de pano que tapava a testa e se no Livro dos Mortos e em
Nacho Otero, Palmira Simões,
apertava numa espécie de cauda algumas pinturas dos túmulos.
Sergio Ramiro Ramírez,
atrás, enquanto de cada lado do No Império Novo, tinha 75 passos.
Vicente Barba e Yolanda
rosto pendiam dois triângulos. de la Torre Robles.
Simbolizava o poder do faraó. SARCÓFAGO: trata-se
de um caixão comummente
NÓ DE ÍSIS: amuleto de esculpido em pedra. Redação e Administração
significado desconhecido.
red@superinteressante.pt
Zinet Media Global, S.L.
No Império Novo, foi associado SHABTI OU USHEBTI:
C/Alcalá 79 1ºA - 28009 Madrid
à deusa Ísis e ao seu sangue. literalmente, “aqueles que
respondem”; no entanto,
Publicidade
OBELISCO: monumento de pedra, desconhece-se a sua etimologia.
pub@superinteressante.pt
em forma de pilar muito alto, Eram servos em forma de
com quatro lados ligeiramente pequenas figuras, equipadas com Assinaturas
convergentes mas iguais enxadas e outras ferramentas. e edições atrasadas
e cuja ponta era esculpida Encarregavam-se de servir sub@superinteressante.pt
em forma de pirâmide. os defuntos no aaru, através Tel.: 21 716 72 50
Era um símbolo solar. de atividades agrícolas
para produzir os alimentos, Distribuição aos assinantes
OLHO DE HÓRUS OU UDJAT: libertando assim os mortos EMD Sociedade Limitada
um dos amuletos mais da realização de tais tarefas.
comuns do Antigo Egito. A Super Interessante é uma
Tinha poderes curativos, TEXTOS DAS PIRÂMIDES: publicação mensal registada
regenerativos e protetores. os primeiros textos funerários na Entidade Reguladora
egípcios. Sequência de para a Comunicação Social
com o n.º 118 348.
ÓSTRACO: fragmento de “feitiços” esculpidos ou
cerâmica ou pedra utilizado escritos em colunas nas paredes Todos os direitos reservados
como suporte para a escrita. dos corredores e das câmaras © Zinet Media Global, S.L.
O custo do papiro fez com que funerárias de algumas pirâmides Esta publicação é propriedade exclusiva
fosse muito usado, especialmente do Império Antigo. da Zinet Media Global, S.L., e a sua re-
produção total ou parcial, não autorizada,
para assuntos não oficiais. é totalmente proibida, de acordo com os
TEXTOS DOS CAIXÕES: conjunto termos da legislação em vigor. Os contra-
PAPIRO: era obtido a partir de “feitiços” escritos nos caixões ventores serão perseguidos legalmente,
da planta Cyperus papyrus. do Império Médio. Ajudavam tanto a nível nacional como internacio-
nal. O uso, cópia, reprodução ou venda
Assemelhava-se a um papel o defunto na sua viagem
desta revista só poderá realizar-se com
grosso que se fazia com tiras para o submundo e garantiam autorização expressa e por escrito da
unidas do caule daquela planta. a sobrevivência no Além. Muitos Zinet Media Global, S.L.
Também foi usado para fabricar derivam dos Textos das Pirâmides.

182
INTERESSANTE HISTÓRIA

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