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N AT I O N A L G E O G R A P H I C .

P T | JA N E I RO 2020

A
dor A ciência
investiga os
N.º 226 MENSAL €4,95 (CONT.)
00226

mistérios da dor
603965 000006

e explora novas
formas de tratá-la.
5
N AT I O N A L G E O G R A P H I C JANEIRO 2020

S U M Á R I O

D O S S I E R E S P E C I A L S A Ú D E E B E M - E S TA R

2A ciência procura novas


formas de combater a dor
32
Em dívida com a saúde
das mulheres
42
A dieta como chave
para a longevidade
Evoluímos de forma a sentir dor, A médica Zoanne Clack, Há quase 15 anos, Dan
um sistema de alarme que nos produtora da série “Anatomia Buettner percorreu as regiões
protege dos danos. No entanto, de Grey”, reflecte sobre a falta do mundo onde os habitantes
quando a dor se torna crónica, de cuidados que as mulheres vivem mais tempo e com mais
é difícil de tratar. A ciência recebem nas unidades saúde. Agora, regressou aos
estuda a forma como esta se de saúde. A sua receita: mesmos locais para recolher
transmite e como se pode aliviar. erguer a voz para exigir informação sobre as dietas e
TEXTO DE YUDHIJIT BHATTACHARJEE
igualdade também hábitos alimentares dessas
FOTOGRAFIAS DE DAVID
nesse domínio. comunidades. Até que ponto
GUTTENFELDER, ROBERT CLARK, T E X TO D E ZOA N N E C L AC K
a alimentação afecta a
ROBIN HAMMOND, CRAIG CUTLER E I LU ST R AÇ Õ E S D E B I A N C A
longevidade?
MARK THIESSEN B AG N A R E L L I T E X TO D E DA N B U E T T N E R

ILUSTRAÇÃO: SINELAB
R E P O R TA G E N S S E C Ç Õ E S

60
A S UA F OTO

VISÕES

O ioga e a serenidade EXPLORE


O ioga, uma prática espiritual
com origem na Índia, ganha A era das bicicletas
adeptos no Ocidente, onde
em muitos casos é usado como E D I TO R I A L
antídoto para o stress do
dia-a-dia. Será mesmo
benéfico para a saúde? N A T E L E V I SÃO
A ciência tenta averiguar.
T E XTO D E F RA N SM I T H P RÓX I M O N ÚM E RO
F OTO G R A F I A S D E A N DY R I C H T E R

74
Arte de ensinar medicina
Na Universidade de Coimbra,
guarda-se um acervo único.
A Colecção de Medicina
Patológica é um repositório
de velhas formas e dispositivos
para ensinar medicina.
T E XTO D E G O N Ç A LO P E R E I RA RO SA
F OTO G RA F I A S D E A N TÓ N I O LU Í S
CAMPOS

82
Ameaçados pelas marés
Sunderbans, a maior floresta
Na capa
A dor serve de sistema de
alerta para o nosso cérebro.
Os cientistas investigam novas
formas de a controlar e
reduzir, sem necessidade de
recorrer a opióides.
contínua de mangues, protege ILUSTRAÇÃO DE MAGIC TORCH
o litoral entre o Bangladesh e a
Índia dos efeitos das cheias e dos
ciclones. O abate ilegal e a subida
Envie-nos comentários
do nível do mar estão a ameaçar para nationalgeographic
esta barreira natural. @ rbarevistas.pt
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As raras araras do México portugal
Uma enorme dolina no México é
um santuário para espécies de aves
perturbadas pela caça furtiva e pela
desflorestação. As araras deste Assinaturas e
refúgio contêm, no seu DNA, atendimento
pistas sobre a sobrevivência ao cliente
em ambientes isolados. Telefone 21 433 70 36
T E XTO D E E R I C K P I N E D O (de 2.ª a 6.ª feira)
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DE CIMA PARA BAIXO: ANDY RICHTER; ANTÓNIO LUÍS CAMPOS; ARKO DATTO; RIKKY AZARCOYA
PAPEL PORQUE
É MAIS SUSTENTÁVEL?

O FUTURO
ESCRITO
EM PAPEL
Numa altura em que a Europa e
o Mundo começam a acordar para
a importância da floresta e dos
recursos sustentáveis na luta contra
as alterações climáticas, o papel
está a conquistar um novo protago-
nismo. Presente no quotidiano da
Humanidade há mais de 2000 anos,
é nele que se escreve agora uma
nova história de sustentabilidade,
assente em produtos com origem em
matérias-primas renováveis, capazes
de substituir os de proveniência
fóssil, como o plástico. Para além da
sua reciclagem e biodegradabilidade
enquanto produto, o papel está
também no centro de uma atividade
produtiva que contribui para a flores-
tação e que não vive sem a gestão
sustentável deste recurso natural,
que é fundamental na retenção de
carbono feita pelas árvores e na
mitigação das emissões poluentes.

As florestas sustentáveis da The Navigator Company apoiam a


National Geographic Portugal a diminuir a sua pegada ecológica.

Fontes: European Paper Recycling Council (EPRC) | Confederation of European Paper Industries (CEPI)
https://earthrespect.wordpress.com/2015/09/17/how-long-until-its-gone/ | https://www.twosides.info/european-forests/
publirreportagem
UM RECURSO
NATURAL E RENOVÁVEL
As florestas são um importantíssimo sumidouro de CO2, mitigando as emissões deste
gás de efeito estufa. A madeira utilizada para fabrico de papel é proveniente de
florestas renováveis e plantadas para esse fim, com sistemas de gestão certificados.
Na verdade, quanto mais papel for utilizado no mundo, mais área de floresta haverá.

ESTA CADEIA NÃO PODE PARAR


Como acontece com qualquer fibra, também o papel não
Papel Branco se pode reciclar eternamente. É indispensável a utilização
de madeira no início do ciclo.
A fibra de madeira utilizada para fazer papel desgasta-se com o
uso e, por isso, só é reciclada em média 3,6 vezes. Cada fibra
pode repetir-se por 4 ou 5 produtos, numa cadeia em cascata
que começa no papel feito de fibra virgem – por exemplo, o
papel de escritório – e termina em produtos de fibra reciclada,
como é o caso do cartão de embalagem. Na falta de fibra virgem
fica irremediavelmente comprometido todo o ciclo.
Papel para revista

72,5%
TAXA DE RECICLAGEM
Na Europa, em 2018, 72,5% do papel e
cartão consumido e usado foi coletado
para reciclagem, sendo o objetivo
atingir a taxa de 74% em 2020. Como
Cartolina para embalagem
cerca de 20% do papel não é reciclável
(livros ou documentos arquivados,
papéis sanitários, papel moeda, etc.),
a Europa está já a 90% da taxa
máxima teórica de reciclagem.

30 DIAS
Cartão ou papel de jornal É O TEMPO DE VIDA
DE UM SACO DE PAPEL
NO AMBIENTE
Um saco de papel pode levar até um
mês a biodegradar-se, enquanto um
saco de plástico pode levar 20 anos a
degradar-se no oceano (o plástico não
desaparece do ambiente pois
Papelão fraciona-se em pequenas partículas).
V I S Õ E S | A SUA FOTO

C A R L O S A N T U N E S Na ilha de Siargao, nas Filipinas, o autor encontrou uma extensão de mangal ao longo da estrada costeira.
“Apressei-me a colocar o drone no ar e deparei com um sistema de canais que só pode ser verdadeiramente apreciado do céu”, diz.

V Í T O R M U R TA O Siq é o nome do majestoso desfiladeiro entre montanhas que conduz ao coração de Petra. A caminhada
pelo Siq é uma experiência única. Um dos meios de transporte utilizados neste percurso é a charrete puxada a cavalo.
A R M I N D O F E R R E I R A O peneireiro-cinzento é uma das aves de rapina preferidas do autor. “Adoro o seu voo e como parece
levitar quando procura presas. Tive a felicidade de um encontro com este ‘menino’ enquanto ele fazia a ‘ginástica’ matinal”, brinca.
V I S Õ E S

Portugal
Uma superlua faz a sua aparição
por detrás da Torre-Paço de
Evoramonte. Aqui foi assinada, em
26 de Maio de 1834, a convenção
que encerrou a única guerra civil
portuguesa. Devido a este
importante património histórico,
Evoramonte é também o berço da
Rede Europeia de Sítios de Paz.
MIGUEL CLARO
Portugal
De hábitos crepusculares e
nocturnos, a tarântula do Porto
Santo (Hogna schmitzi) é uma
aranha endémica desta ilha e
do ilhéu do Ferro, na Região
Autónoma da Madeira.
Esta fêmea pode resistir quatro
anos… se a vida lhe for generosa.
LUÍS QUINTA
Portugal
Os caretos de Grijó de Parada,
em Trás-os-Montes, exibem
orgulhosamente esta máscara
com mais de cem anos de
existência. Ela tem passado
de geração em geração e
continua a retratar a história
desta tradição pagã.
LUÍS FERREIRA
E X P L O R E

I L U M I N A N D O O S M I S T É R I O S E M A R AV I L H A S Q U E N O S R O D E I A M T O D O S O S D I A S

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

A ERA DAS BICICLETAS


mas entranharam-se na cidade de Lisboa. As
C O M E Ç A R A M P O R S E R E XÓ T I C A S , As bicicletas em Lisboa torna-
ram-se parte da paisagem. Este
bicicletas da rede GIRA são uma aposta da Empresa Municipal de Mobilidade e
primeiro estudo documenta o
Estacionamento (EMEL) para reduzir o recurso a transportes privados e as emissões impacte do projecto de bicicle-
de gases com efeito de estufa, aproveitando o uso crescente de bicicletas na cidade. tas partilhadas na cidade.
A EMEL encomendou um estudo aprofundado das externalidades do projecto. De
acordo com a investigação de Filipe Moura e Rosa Félix, do Centro de Investigação e
Inovação em Engenharia Civil para a Sustentabilidade do Instituto Superior Técnico,
entre tempo e dinheiro poupado, as vantagens superam claramente as desvantagens.
A maioria dos utilizadores prefere bicicletas eléctricas a convencionais sempre que
estas estão disponíveis. Quase um terço abdica de levar o carro para a cidade quando
pode recorrer às GIRA e, em média, as bicicletas da rede são utilizadas por cerca de
11 minutos. Utilizando a rede convencional de transportes (automóvel, comboio,
autocarro, metropolitano ou moto), o mesmo universo de pessoas gastaria mais 215
mil horas nos percursos pendulares para o trabalho, com um custo de cerca de dois
milhões de euros. Com mais de 1,65 milhões de viagens realizadas na rede, poupa-
ram-se 61 mil horas de viagem e evitou-se a emissão de 102 toneladas de C02eq.

HORACIO VILLALOBOS/GETTY IMAGES. ILUSTRAÇÃO: ANYFORMS. FONTE: EXTERNALIDADES SOCIOECONÓMICAS


DO SISTEMA DE BICICLETAS PÚBLICAS PARTILHADAS (GIRA) NA CIDADE DE LISBOA (2019)
E X P L O R E | MOBILIDADE

OEFEITO-GIRAEMLISBOA
APESAR DA DIMENSÃO LÚDICA, a maioria dos utilizadores recorre às bicicletas municipais
para as deslocações entre casa e o trabalho, poupando tempo e reduzindo o stress associado
ao trânsito e à necessidade de encontrar estacionamento. Lisboa tem um problema estrutural:
dispõe de 400 mil lugares de estacionamento para um universo de 570 mil veículos a circular.
O reverso da moeda pode ser medido no número de acidentes: em 2018, registaram-se
155 acidentes com bicicletas GIRA, causando 49 feridos.

VIAGENS GIRA POR TIPO


DE BICICLETA E UTILIZADOR
Bicicletas eléctricas Bicicletas convencionais
64,23% Viagens frequentes 17,20%

Tempo de viagem total Valor em tempo total


154.078h 1.315.094€
13,07% Viagens ocasionais 5,49%

2EQ
GIRA 0,044%

0,245
DISTÂNCIA ESTIMADA DE VIAGENS
GIRA

As viagens geradas são as que não geram


poupanças, pois não substituem outras deslocações;
as viagens substituídas resultam da transferência
das viagens de modos motorizados.
VIAGENS GERADAS
Comboio 13.249 E SUBSTITUÍDAS E POR
Motociclo 33.891 Automóvel 29,0%
TIPO DE VIAGEM
Autocarro 149.125
Automóvel 365.703 25,2% Viagem
A pé, bicicleta 368.021 49 gerada
Viagem gerada 422.082 Feridos
Metro 517.195

11,7% A pé,
ACIDENTES COM BICICLETAS 11,2% bicicleta
Autocarro
1,3% Motociclo
Acidentes 155 0,3%
Comboio 21,3% Metro

EVOLUÇÃO DO NÚMERO DE VIAGENS GIRA


Viagens
120.000

100.000
VIAGENS GIRA HORAS DE UTILIZAÇÃO GIRA
80.000
POR DIA DA SEMANA Viagens numa semana de Setembro de 2018
20% 3.000

60.000 16%
2.000
12%
40.000
8%
1.000
20.000
4%

Jun. Jan. Jul. Jan. Jul. Nov. 2.ª 4.ª 6.ª Dom. 0 2 4 6 8 10 12 14 16 18 20 22
2017 2018 2019 horas
A metodologia do estudo implicou a consulta da base de dados
de utilização das bicicletas e cerca de cinco mil inquéritos
aos utilizadores. Foi assim possível medir as taxas de substituição A UTILIZAÇÃO
da rede de transportes convencionais, estimando poupanças
em dinheiro, em tempo e em reduções de emissões de gases poluentes DAS GIRAS GEROU
e com efeito de estufa. A substituição do comboio ou do metropolitano
pela bicicleta ou pela caminhada gera poupanças menores, UMA POUPANÇA DE
mas o impacte mais significativo resulta da redução
de automóveis e autocarros na cidade. Tempo de Viagem
61.516h
Valor em tempo
711.240€

GASES COM EFEITO


2EQ

Tempo de viagem total Valor em tempo total As percentagens correspondem

215.623h 2.026.334€ às emissões poupadas


79%

Automóvel

5% Motociclo

26%

20%
Metropolitano
Autocarro
2,357
1% Comboio
1,580 1,511

0,276
Automóvel 0,448 Comboio
Motociclo Metropolitano POUPANÇA CO2EQ
Autocarro

CONSUMO MÉDIO DE ENERGIA


-100,816
Este indicador mede-se em Megajoules
consumidos por cada quilómetro percorrido. TON CO 2eq

Viagens
Distância média 2,22 km
140.000

120.000

100.000
DURAÇÃO DAS VIAGENS GIRA DISTÂNCIA DAS VIAGENS GIRA
80.000
Viagens Duração média 11 min.
60.000 60.000

40.000 40.000

20.000 20.000

0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50 55 min. 0 3000 6000 9000 metros


«Acreditamos no poder da ciência, da exploração
e da divulgação para mudar o mundo.»

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membro da
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CONTROLO DE TIRAGEM

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DE MIKE ULICA | J A N E I R O

À ENTRADA DE Os Nossos Objectivos:


Iluminar e Proteger
UM NOVO ANO

A N AT I O N A L G E O G R A P H I C S O C I E T Y
(NGS) usa o poder da ciência, da explo-
ração, da educação e da capacidade de
contar histórias para iluminar e pro-
teger as maravilhas do nosso mundo.
É essa a nossa missão e honramos esse
legado como organização não lucrativa
que completa agora 132 anos, mantendo
os mesmos princípios de sempre para
os desafios que se avizinham.
Neste início de 2020, gostaria de par-
tilhar o que deverá ser um ano extraor-
dinário. Vamos comemorar efemérides
como o 50.º aniversário do Dia da Terra
e o 60.º aniversário da chegada de Jane
Goodall ao que é hoje o Parque Nacio-
nal de Gombe, com uma exposição na
nossa sede, na cidade de Washington.
E a National Geographic vai juntar-se a
vários líderes mundiais na Convenção
da Biodiversidade agendada para Kun-
ming, na China, procurando influenciar
os decisores no cenário pós-2020 e no
que será necessário fazer para apoiar a
biodiversidade global.
Os contributos da NGS são sempre
guiados pela nossa abordagem única.
Iluminamos as maravilhas do mundo, com o tempo. A expedição instalou duas
exploramos os nossos objectos de repor- estações meteorológicas automáticas
tagem e damos-lhes vida com narrativas nas cotas mais elevadas do planeta.
poderosas e ressonantes. Protegemos Trabalhamos a pensar na próxima
o que é excepional através de acções geração de curadores do planeta.
para salvaguardar os recursos críticos Os jovens identificam-se cada vez mais
do planeta e os seus habitantes. A nossa como cidadãos globais e juntam-se
missão pode assumir formas como a para lutar por temas que os motivam.
Arca Fotográfica de Joel Sartore, criando A NGS compromete-se a melhorar o seu
uma carga emocional nos retratos de conhecimento do mundo e a apoiar o seu
espécies ameaçadas que, por sua vez, interesse pela geografia.
geram empatia. Espero que saiba que o seu apoio
A nossa missão pode igualmente ser torna viável o trabalho da NGS. Obrigado
exemplificada pelo trabalho recente rea- por nos ajudar a iluminar e proteger as
lizado no Evereste, em associação com maravilhas do nosso mundo.
os nossos parceiros da Rolex. Aprovei-
tando o compromisso das duas institui-
ções com a exploração, usámos ciência
de ponta para revelar como funcionam Michael L. Ulica, Presidente e director-geral
os sistemas da Terra e como se alteram National Geographic Society

MARK THIESSEN
O neurocientista Vitaly
Napadow, da Faculdade
de Medicina de Harvard
e do Hospital Geral
de Massachusetts, estuda
a forma como o cérebro
concretiza a percepção
da dor. Para tal, recorre
à electroencefalografia
para monitorizar os
padrões das ondas
cerebrais dos pacientes
com dor crónica na
região lombar.
ROBERT CLARK

2
Os cientistas
estão a desvendar
os mistérios da dor

UM JA N E I RO 2 0 2 0

ESPECIAL SAUDE
E BEM-ESTAR

DE
T E X TO D E

YUDHIJIT
BHATTACHARJEE
F OTO G R A F I A S D E
DAV I D G U T T E N F E L D E R ,
RO B E RT C L A R K ,
RO B I N H A M MO N D,
CRAIG CUTLER
E MARK THIESSEN

DOR
e a explorar novas formas
de tratamento.
Durante uma cirurgia,
Brent Bauer vê aliviada a
sua dor jogando um jogo
de realidade virtual (RV)
chamado SnowWorld.
O cirurgião Reza
Firoozabadi, do Centro
Médico UW Medicine’s
Harborview, especiali-
zado em ortopedia e
traumatologia, testou a
eficácia do jogo,
desenvolvido por Hunter
Hoffman, um pioneiro
em realidade virtual
no alívio da dor. Brent
caiu de uma altura de
três andares e partiu
vários ossos, incluindo a
pélvis. Foi submetido à
remoção de um pino de
fixação da bacia sem RV.
“Foi intenso”, descreveu.
O outro foi removido
com RV. “Foi uma
distracção muito
agradável e tive muito
menos dores”, disse.
Brent participou num
estudo que sugere que
a RV poderá diminuir
a necessidade de
anestesia geral, redu-
zindo riscos e custos.
CRAIG CUTLER

5
No Parque Nacional de
Chu Yang Sin, no
Vietname, Zoltan Takacs,
explorador da National
Geographic, encontra
um escorpião venenoso,
que fica azul quando
exposto a luz ultravioleta.
Recolhendo veneno em
todo o mundo, Zoltan
espera identificar novos
fármacos para a dor
porque actualmente
existem poucas alternati-
vas eficazes aos opióides.
O veneno já produziu um
sucesso notável.
Cientistas criaram um
fármaco para dor crónica
derivado de um dos
animais mais mortíferos
do mundo: o caracol
marinho da espécie
Conus magus.
DAVID GUTTENFELDER

6
Á M A I S D E T R Ê S D É C A D A S , enquanto
lutava

H
contra o cancro, Tom Norris fez radioterapia
na virilha e perna esquerdas. O seu cancro
desapareceu e não voltou. Contudo, ficou com
uma dor penetrante, que lhe subia, ao longo
da coluna, desde a anca até ao pescoço.
Desde então, Tom, agora com 70 anos,
nunca viveu um dia sem dores. Isso en-
curtou a sua carreira como funcionário de
manutenção de aeronaves na Força Aérea.
A dor tem sido uma companheira constan-
te, bem como a bengala que usa para andar.
Nos dias maus, a dor é tão insuportável que ele permanece na
cama. Mesmo nos dias melhores, a dor limita seriamente a
sua capacidade de locomoção, impedindo-o de desempenhar Quando Jo Cameron foi
tarefas simples como levar o lixo à rua. Por vezes, a dor é tão operada à artrite da
mão, o seu anestesista
avassaladora que ele sente dificuldade em respirar. “É como se descobriu que ela não
estivesse a afogar-me”, conta. sentia dor e recomen-
Morador num subúrbio de Los Angeles, Tom Norris conver- dou-lhe que consul-
tasse um geneticista.
sa comigo sentado num banco comprido e almofadado que lhe Este descobriu que a
permite trocar de posição. Homem alto e cordial, tornou-se es- escocesa tinha duas
pecialista em usar uma máscara de serenidade para ocultar a mutações raras.
Os investigadores estão
dor. Nunca o vi retrair-se. Quando o sofrimento é mais intenso, a procurar mutações
Marianne, a mulher com quem está casado há 31 anos, diz que que adormeçam ou
se apercebe de uma certa imobilidade no seu olhar. ampliem a sensação de
dor para descobrirem
Quando a dor começou a apoderar-se da sua vida, Tom pro- como é transmitida.
curou consolo. Tornou-se defensor das pessoas com dor cróni- Os resultados da
ca e fundou um grupo de apoio. E há 30 anos que procura al- eletroforese apresenta-
dos em baixo mostram
gum alívio. Durante muitos desses anos, tomou fentanil, um a mutação da insensibili-
poderoso opióide que envolveu a sua dor “como um cobertor dade à dor no DNA de
grosso”, mas que o manteve “na horizontal e desligado, no es- Jo (1) e do seu filho (3),
mas não da sua mãe (2)
sencial”. Experimentou a acupunctura, que foi útil em certa nem da sua filha (4).
medida, assim como picadas de abelha, terapia magnética e À DIREITA: ROBIN HAMMOND
EM BAIXO: JAMES COX, UNIVERSITY
cura pela fé, que não o foram. Agora, gere a dor com fisiotera- COLLEGE DE LONDRES

pia, que lhe melhora a mobilidade, e injecções de esteróides na


coluna, que acalmam os seus nervos inflamados.
À semelhança de Tom Norris, muitos milhões de pessoas em
todo o mundo vivem com dor crónica, provocada por causas
múltiplas – do cancro à diabetes, passando por patologias neu-
rológicas, entre outras. Partilham uma fonte idêntica de sofri-
mento: a agonia física que lhes perturba a vida, de forma inter-
mitente ou constante. Não é invulgar os doentes com cancro,
que padecem de dores graves e implacáveis após quimiotera-
pia, decidirem abandonar os tratamentos para se entregarem
ao derradeiro alívio da morte.

8 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
No fim da década de 1990, quando os médicos O neurobiólogo Clifford Woolf, do Hospital
começaram a prescrever opióides como a oxi- Infantil de Boston, um especialista da dor, subli-
codona para alívio da dor crónica, centenas de nha o lado trágico de ter sido necessária uma “ca-
milhares de americanos ficaram viciados nestes tástrofe social” para a dor receber a atenção que
fármacos, que por vezes provocam sensações de merece por parte de cientistas e médicos, mas o
prazer e mitigam a dor. Mesmo depois de os riscos ímpeto que isso conferiu à investigação é positi-
se tornarem evidentes, a dependência de opióides vo. “Acho que podemos ter um impacte enorme
persistiu, em parte por existirem poucas alterna- no nosso conhecimento da dor ao longo dos pró-
tivas. Nenhum analgésico novo foi desenvolvido ximos anos e isso contribuirá, definitivamente,
nas duas últimas décadas. para novas opções de tratamento”, diz.
Ao mesmo tempo, o consumo indevido de anal-
gésicos (idealmente concebidos para gerir a dor é uma das dádivas
A C A PAC I DA D E D E S E N T I R A D O R
aguda a curto prazo) aumentou desenfreadamen- da natureza à humanidade e ao resto do reino ani-
te nos EUA. Em 2017, cerca de 1,7 milhões de nor- mal. Sem ela, não retrairíamos reflexamente a mão
te-americanos abusavam do consumo de substân- quando tocamos num fogão quente, nem sabería-
cias como resultado de lhes terem sido prescritos mos que devemos evitar caminhar descalços sobre
opióides, segundo o Censo Nacional de Saúde e vidro partido: estes gestos, motivados por uma
Uso de Fármacos. Nos EUA, todos os dias morrem experiência imediata ou recordada da dor, ajudam-
cerca de 130 pessoas por sobredosagem de opiói- -nos a minimizar os riscos de lesões físicas. Evoluí-
des, uma estatística sombria na qual se incluem as mos de modo a sentir dor porque os nervos
mortes tanto por analgésicos de prescrição médi- sensoriais funcionam como um sistema de alarme
ca como por narcóticos, incluindo a heroína. essencial à autopreservação.
Tornou-se urgente compreender a biologia da As sentinelas deste sistema são um grupo es-
dor e descobrir formas mais eficazes de gerir a pecial de neurónios sensoriais conhecidos por
dor crónica. Os investigadores estão a conseguir nociceptores, localizados junto da coluna verte-
progressos significativos, descrevendo pormeno- bral, com fibras sensitivas que se estendem pela
rizadamente a maneira como os sinais da dor são pele, pulmões, intestinos e outras partes do cor-
comunicados ao cérebro pelos nervos sensoriais po. Estão equipados para sentir diferentes tipos
e como o cérebro interpreta a sensação de dor. Os de estímulos nocivos como o corte de uma faca ou
cientistas também estão a descobrir os papéis re- a queimadura do ácido. Quando detectam uma
presentados por genes específicos na regulação destas ameaças, os nociceptores transmitem si-
da dor, o que ajuda a explicar por que razão a per- nais eléctricos para a medula espinal, que os re-
cepção e a tolerância à dor são tão variáveis. transmite ao cérebro através de outros neurónios.
Estes progressos estão a mudar, radicalmente, Neurónios de nível superior no córtex (o destino
a forma como médicos e cientistas encaram a dor final desta via ascendente da dor) traduzem estes
e, mais especificamente, a dor crónica, definida dados, transformando-os em percepção da dor.
como dor que dura mais de três meses. Tradicional- Ao reconhecer a dor, o cérebro tenta contrariá-
mente, a ciência médica considerava a dor como a -la. As redes neuronais do cérebro enviam sinais
consequência de uma lesão ou doença. Em muitos eléctricos pela medula espinal abaixo, naquela
doentes, porém, a dor gerada pela lesão ou maleita que é conhecida como a via descendente da dor,
persiste muito depois da resolução da causa subja- desencadeando a libertação de endorfinas e ou-
cente. Nestes casos, a dor torna-se a doença. tros opióides naturais. Estas substâncias inibem
Há esperança de que este conhecimento, asso- os sinais ascendentes da dor, reduzindo efectiva-
ciado à crescente compreensão da dor, conduza a mente a quantidade de dor sentida.
novas terapias para a dor crónica, incluindo alter- Os cientistas já tinham reconstituído o perfil
nativas aos opióides que não sejam viciantes. Tom de base das vias ascendentes e descendentes da
Norris e outros pacientes ficam entusiasmados dor quando Clifford Woolf iniciou o seu trabalho
com estes avanços. Os investigadores, por outro na área, na década de 1980. Homem de voz suave
lado, estão a testar estratégias alternativas, como com olhos que parecem transbordar bondade, o
a estimulação do cérebro com impulsos eléctricos especialista ficou impressionado pelas dificulda-
de baixa intensidade para alterar a percepção da des sofridas pelos doentes observados no bloco
dor e utilizar a capacidade intrínseca do organis- operatório enquanto estudava medicina. “Era
mo para aliviar a sua própria dor. evidente que todos tinham dores graves”, diz.

10 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Clifford lembra que o utente sénior parecia permanecendo num estado sensibilizado depois
quase ofendido quando se queixavam. “Eu disse de uma lesão estar curada. É isto que se observa em
ao cirurgião: ‘Por que não faz nada?’”, recorda. doentes com dor neuropática, fibromialgia, síndro-
“E ele disse: ‘Estava à espera de quê? Acabam de me do intestino irritável e outras patologias. A dor
fazer uma operação. Hão-de ficar melhores.” não é um sintoma: é uma doença, causada por um
“A dor era um problema subestimado pela pro- sistema nervoso em mau funcionamento.
fissão médica e de forma substancial, pois não Graças aos avanços da cultura de células estami-
existiam intervenções seguras e eficazes”, diz. nais humanas em laboratório, Clifford Woolf e os
Esta tomada de consciência deu origem ao desejo colegas estão a criar diferentes tipos de neurónios
de compreender a natureza da dor. humanos, incluindo nociceptores. Esta inovação
Utilizando ratos como cobaias, Clifford Woolf permite estudar os neurónios com maior porme-
tentou aprender mais sobre a transmissão da dor. nor, de modo a determinar em que circunstâncias
Nas suas experiências, registou a actividade dos eles se tornam “patologicamente excitáveis” e dis-
neurónios da medula espinal dos animais, após param de forma espontânea, diz Clifford Woolf.
uma breve aplicação de calor sobre a sua pele. Este médico e os seus colegas utilizaram noci-
Como esperava, via aqueles neurónios dispararem ceptores cultivados em laboratório para investiga-
rapidamente quando os sinais lhes eram transmi- rem o modo como os fármacos da quimioterapia
tidos pelos neurónios nociceptivos. No entanto, causam dor neuropática. Quando os nociceptores
chegou a uma conclusão inesperada. Quando um são expostos aos fármacos, tornam-se mais fa-
pedaço de pele submetido várias vezes a calor ficou cilmente excitáveis e começam a degenerar. Isto
inflamado, os neurónios na medula espinal alcan- contribui provavelmente para as neuropatias so-
çaram um elevado estado de sensibilidade. Bastava fridas por 40% dos pacientes de quimioterapia.

“A dor era um problema menosprezado pela profissão médica,


pois não existiam intervenções seguras e eficazes.”
Neurobiologista Clifford Woolf, Hospital Infantil de Boston

tocar na área em redor do pedaço de pele previa- Enquanto se progride no conhecimento da


mente ferido para fazer os neurónios disparar. forma como a dor é transmitida, outros investi-
Isto demonstrava que a lesão da pele sensibili- gadores descobriram que estes sinais são apenas
zara o sistema nervoso central, levando a que os um factor da forma de percepção da dor pelo
neurónios da medula espinal transmitissem si- cérebro. Na verdade, a dor é um fenómeno com-
nais de dor ao cérebro mesmo quando a informa- plexo e subjectivo, moldada pelo cérebro que a
ção vinda dos nervos periféricos era inócua. Des- sente. O modo como os sinais de dor são traduzi-
de então, outros investigadores demonstraram dos em sensações dolorosas pode ser influencia-
este fenómeno nos seres humanos, provando que do pelo estado emocional do indivíduo. O con-
desencadeia vários tipos de dor, como quando a texto em que ocorre a percepção da dor também
área em redor de um corte ou de uma queimadura pode alterar a forma como o organismo a sente,
arde ao mais ligeiro toque. como se demonstra pela natureza agradável das
Uma conclusão notável do trabalho de Clifford dores que se sentem após um treino físico exi-
Woolf e da investigação subsequente foi a desco- gente ou o desejo de uma segunda dose de um
berta de que pode existir dor sem uma lesão que prato picante, apesar do ardor gerado na língua.
a origine. Isto desafiou o ponto de vista de alguns “Temos uma capacidade incrível de alterar a for-
médicos, segundo os quais os doentes com quei- ma como esses sinais são processados quando
xas de uma dor sem explicação óbvia, relacionada os recebemos”, diz Irene Tracey, neurocientista
com alguma patologia, estariam provavelmente da Universidade de Oxford.
a mentir por alguma razão – talvez para obterem Comunicadora hábil, esta investigadora tem
analgésicos de que não teriam necessidade ou para passado grande parte da carreira a tentar desco-
conquistarem solidariedade. Os sistemas de trans- brir a misteriosa ligação entre as lesões e a dor.
missão da dor podem tornar-se hipersensíveis após “É uma relação não-linear e há imensos estímulos
uma lesão (como aconteceu aos ratos), mas tam- que podem piorá-la, melhorá-la ou torná-la muito
bém podem ficar descontrolados isoladamente, diferente”, comenta. (Continua na pg. 18)

UM MUNDO DE DOR 11
COMO O CEREBRO COMBATE A DOR?
A dor tem uma finalidade: a autopreservação. Avisa o cérebro de que o corpo está em perigo e
precisa de reagir. Os fármacos podem suprimir esses sinais e aliviar a dor, mas novas investiga-
ções oferecem a esperança de os próprios sistemas do organismo (compostos por uma via
ascendente e uma descendente) poderem ser ampliados para reduzir a dor de forma orgânica e
com um mínimo de efeitos secundários.

MENSAGEM PARA O CÉREBRO Anatomia de um nervo


A dor aguda chama a atenção para uma lesão real Os nervos incluem feixes de axónios. Estas fibras, que
ou potencial. Os sinais enviados para o cérebro se estendem a partir de células nervosas denominadas
percorrem uma via ascendente para encorajar o neurónios, conduzem a actividade eléctrica. Sensações
organismo a reagir rapidamente. diferentes percorrem fibras de axónios diferentes.

1 2
Feixe de
Sentir a dor Transmitir a dor nervos Fibras “A beta”
Com bainhas de mielina espessas,
Os nociceptores reagem a Os sinais eléctricos são enviados
transmitem o toque, a pressão
estímulos externos, como dos nociceptores para os
e as vibrações.
objectos afiados, fogo ou axónios, que transmitem Axónios
Fibras “A delta”
reacções químicas. o sinal à medula espinal. Com bainhas de mielina finas,
são as primeiras a sentir sinais
de dor rápidos e agudos.
Fibras “C”
Desprovidas de bainha de
mielina, sentem a dor lenta:
Nociceptores calor, queimaduras e moinhas.

Neurónios sensoriais
periféricos

Quando um neurónio dispara impulsos eléctricos, poros sensíveis à electricidade situados


junto da superfície das fibras nervosas passam por três estados: inactivos, abertos e fechados.

A PROMESSA DOS INACTIVO ABERTO FECHADO INACTIVO ABERTO


PORTÕES DA DOR
Vários “portões da dor”, Poro Iões de sódio Pequenas moléculas
incluindo o canal de sódio
Nav1.7, regulam a passagem de
iões de sódio para os axónios,
que podem causar dor. A obs-
trução dos portões com
Uma partícula
moléculas através de drogas, bloqueia
ou terapia genética, poderá o poro no No estado aberto, os
ajudar os médicos a concebe- estado inactivo. iões de sódio podem
rem tratamentos para a dor entrar através do canal Algumas moléculas
adaptados a cada paciente. desbloqueado. (naturais ou sintéticas)
podem bloquear o
A
Memb xónio topo do canal.
rana a
xon al
5
O CÉREBRO REAGE Reacção emocional
Quando o cérebro recebe os sinais, Os sinais de dor são registados
a via descendente é activada e todo no córtex anterior, podendo
Córtex
o sistema nervoso central recebe somatossensorial desencadear ansiedade,
aviso para modular e reagir aos medo e depressão.
estímulos dolorosos.

Córtex
cingulado
Córtex insular

6 4
anterior
anterior
Reagindo à dor Percepção da dor
Estas áreas enviam Córtex Os sinais viajam até ao córtex
sinais neuroquímicos pré-frontal somatossensorial e outras
para começar a zonas que localizam e medem
atenuar a dor. Núcleo Tálamo a intensidade da dor.
accumbens/
Corpo estriado

Substância cinzenta
periaquedutal

7 3
Redução da dor Dor ascendente
Os neuroquímicos actuam como A medula espinal
travão do sinal ascendente no recebe os sinais
corno dorsal e na substância e fá-los subir até
cinzenta periaquedutal. Corno dorsal ao cérebro.

Medual
ventromedial

O PROBLEMA A DOR AGUDA


DOS OPIÓIDES E A DOR CRÓNICA
Os opióides reduzem a dor através de Enquanto os sinais da dor aguda
insensibilização indiscriminada, abafando seguem vias ascendentes até ao
os sinais da via ascendente da dor, bem cérebro, a dor crónica, como a dor
como a reacção benéfica da via descendente. persistente nas costas, deve-se a
Os fármacos aliviam, efectivamente, a dor, mas neurónios ou axónios lesionados.
também podem causar uma sensação de euforia As suas vias não são bem
potencialmente causadora de dependência. conhecidas.

JASON TREAT; MEG ROOSEVELT. ARTE: SINELAB


FONTE: LUANA COLLOCA, UNIVERSIDADE DE MARYLAND
A relação entre o doente
e o médico pode afectar
a quantidade de dor
sentida pelo paciente,
“mas não sabemos
porquê”, diz Vitaly
Napadow. Para explorar
o fenómeno, o investiga-
dor regista simultanea-
mente a actividade
cerebral de um acupunc-
tor e de um paciente em
dois equipamentos
individuais de ressonân-
cia magnética. A comu-
nicação entre os dois é
feita através de um vídeo
(monitor esquerdo)
enquanto o doente
recebe um tratamento
contra a dor induzida
experimentalmente. Para
aliviar a dor, o médico
activa um dispositivo de
electro-acupunctura
ligado à perna do
paciente. O moni-
tor da direita mostra uma
imagem por ressonância
magnética funcional
(fMRI) que cartografa
a actividade no
cérebro do paciente.
ROBERT CLARK

14
Hanna LeBuhn, que sofre
de dores nas articulações
do maxilar, observa os
hipnotizantes movimentos
das alforrecas através de
óculos de realidade virtual
no laboratório de Luana
Colloca. A cena, integrada
numa série de imagens
marinhas relaxantes,
é projectada na parede.
Luana estuda neurobiolo-
gia da dor na Universidade
de Maryland. Já demons-
trou que a RV distrai os
pacientes e alivia-lhes a
dor. “A RV tem a capaci-
dade singular de regular
as reacções do corpo
à dor, melhorando
a disposição e diminuindo
a ansiedade”, diz.
MARK THIESSEN
Em experiências já realizadas, Irene Tracey e os “Não”, respondeu a doente jovialmente. “Eu
seus colegas recolheram imagens do cérebro em disse-lhe que não ia tomar.”
voluntários humanos, enquanto submetiam a sua Durante o seu crescimento, Jo sentia-se fre-
pele a picadas de agulhas, estímulos de calor ou quentemente surpreendida por descobrir nódoas
aplicações de cremes contendo capsaicina, o com- negras de origem misteriosa. Quando tinha 9
posto químico que torna as malaguetas picantes. anos, partiu o braço num acidente e passaram-se
As conclusões dos investigadores levaram-nos três dias até reparar que estava inchado e descolo-
a compor um quadro da percepção da dor mais rado. Anos mais tarde, teve os seus dois filhos sem
complexo. Não existe um centro de dor exclusivo sentir quaisquer dores durante os partos.
no cérebro. Em vez disso, várias regiões são activa- “Eu não sei o que é dor”, diz. “Vejo pessoas com
das em reacção aos estímulos dolorosos, incluin- dores, vejo os seus esgares, a tensão nos seus ros-
do redes neuronais que são usadas nas emoções, tos e o stress e eu não sei o que é isso.”
cognição, memória e tomada de decisões. A incapacidade de Jo Cameron para experi-
Também aprenderam que os mesmos estímu- mentar a dor física pode não ser extraordinária
los nem sempre geram o mesmo padrão de activa- para ela, mas insere-a num grupo raro de indi-
ção, o que indica que a dor sentida por um indiví- víduos que estão a ajudar os cientistas a desven-
duo pode variar, mesmo em lesões semelhantes. darem a genética subjacente à capacidade para
Irene e os colegas demonstraram que o medo, a sentir dor. O seu anestesista espantado pô-la em
ansiedade e a tristeza podem agravar a dor. Numa contacto com James Cox, um especialista do Uni-
das suas experiências, alunos saudáveis volunta- versity College de Londres. James e os colegas es-
riaram-se para ouvir a composição melancólica tudaram o DNA de Jo Cameron e descobriram que
“A Rússia sob o Jugo Mongol”, de Prokofiev, a me- ela tinha duas mutações em dois genes vizinhos,
tade da velocidade, e ler frases negativas como “a denominados FAAH e FAAH-OUT, determinan-
minha vida é um fracasso”. Em simultâneo, era- do que essas mutações reduziam a decomposição
-lhes aplicado um estímulo de calor numa secção de um neurotransmissor chamado anandamida,
do antebraço esquerdo, previamente esfregada que ajuda a aliviar a dor. Jo possui este bioquími-
com capsaicina. Mais tarde, foi administrado aos co em excesso, o que a inibe de ter dor.
alunos o mesmo estímulo, enquanto escutavam James Cox estuda pessoas como Jo Cameron
música mais alegre e liam declarações neutras desde que foi aluno de pós-doutoramento em
como “as cerejas são frutos”. Na condição triste, Cambridge, em meados da década de 2000. O seu
disseram que a dor pareceu “mais desagradável”. supervisor, Geoffrey Woods, tomou então conhe-
Comparando os exames feitos aos cérebros dos cimento de um artista de rua paquistanês com 10
alunos nos dois estados de espírito, os investiga- anos capaz de andar descalço sobre carvão em
dores concluíram que a influência da tristeza ul- brasa e de espetar punhais nos braços sem chorar.
trapassava os circuitos da regulação de emoções: O rapaz ganhava dinheiro com estas peripécias e
provocava maior activação de outras regiões do depois ia ao hospital tratar dos ferimentos. Nunca
cérebro, indicando que a tristeza estava a aumen- foi submetido a um estudo, pois morreu depois de
tar, fisiologicamente, a dor. “Levámos as pessoas cair de um telhado enquanto brincava com ami-
a sentirem-se ansiosas, ameaçadas e temerosas”, gos. Mesmo assim, James Cox e os colegas conse-
diz a investigadora. “E demonstrámos que isso guiram analisar o DNA de seis crianças do mesmo
amplifica o processamento desses sinais.” clã, que demonstraram uma insensibilidade se-
melhante à dor. As crianças tinham uma mutação
forte para atenuar
S E R I A N E C E S S Á R I A M E D I C AÇ ÃO num gene denominado SCN9A, que se sabe estar
a dor após uma cirurgia à mão para tratar a artrite, envolvido na sinalização da dor.
disse o anestesista a Jo Cameron. No entanto, esta O gene produz uma proteína essencial à trans-
escocesa de 66 anos tinha dúvidas. missão das mensagens de dor entre neurónios
O anestesista olhou para ela como se ela não esti- nociceptivos e a medula espinal. A proteína, bap-
vesse bem da cabeça. Ele sabia, por experiência, que tizada Nav1.7, encontra-se na superfície dos neu-
a dor do pós-operatório era insuportável. Quando rónios e serve de canal de passagem dos iões de
foi visitá-la após a cirurgia, ficou admirado por saber sódio para o interior da célula, permitindo que os
que Jo nem sequer pedira o analgésico fraco que ele impulsos eléctricos que constituem o sinal da dor
prescrevera. “Nem sequer tomou paracetamol, pois se propaguem ao longo do axónio, que o conduz a
não?”, perguntou-lhe. outro neurónio da medula espinal.

18 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
As mutações descobertas pelos investigadores permitindo o afluxo de iões de sódio quando tal
no gene SCN9A geram versões malformadas da não deveria acontecer.
proteína Nav1.7 que não permitem aos iões de Através de experiências laboratoriais reali-
sódio a passagem para os neurónios nocicepti- zadas em placas de Petri, Stephen Waxman e
vos. Com os nociceptores incapazes de conduzi- os colegas provaram que este era o mecanismo
rem sinais de dor, as crianças não se apercebiam através do qual as mutações no SCN9A causavam
de quando mordiam a língua, nem de quando se a síndrome em pacientes como Pamela Costa.
queimavam. “O aspecto maravilhoso de trabalhar “Conseguimos introduzir o canal em neurónios
com estas famílias extremamente raras é que po- de sinalização da dor e eles ficaram “bzzz!” quan-
demos identificar genes simples com a mutação, do deveriam estar “bip-bip”, resume Stephen
que são, essencialmente, alvos de analgésicos va- Waxman, referindo-se à hiperactividade resul-
lidados por humanos”, diz James Cox. tante do influxo incessante de iões de sódio. Em
As mutações no gene SCN9A estão também pacientes com esta síndrome, o defeito leva a que
associadas a uma doença rara chamada eritro- os nociceptores bombardeiem constantemente o
melalgia hereditária, conhecida em inglês como cérebro com mensagens de dor.
síndrome do homem em chamas. Os doentes que A descoberta de que a Nav1.7 pode abrir ou
padecem desta condição enfrentam o oposto da fechar os portões dos sinais nociceptivos de dor
insensibilidade à dor: uma sensação de ardor nas transformou o canal num alvo atraente para os
mãos, pés e rosto. Em ambientes quentes ou após investigadores que tentam desenvolver novos fár-
esforços ligeiros, a sensação torna-se insuporta- macos para a dor, não indutores do risco de adic-
velmente intensa, como se a pessoa tivesse a mão ção dos opióides. Os opióides ligam-se a uma pro-
sobre uma chama. teína presente na superfície das células nervosas

“Vejo pessoas com dores, vejo os seus esgares, a tensão


nos rostos e o stress e eu não sei o que é isso.”
Jo Cameron, uma mulher com insensibilidade genética à dor

A psicóloga clínica Pamela Costa, de 53 anos, chamada receptor opióide µ, levando o receptor
natural de Tacoma (EUA), que padece desta sín- a comunicar com proteínas no interior da célula.
drome, descreve a dor como “inevitável”. Para Embora a acção de algumas destas proteínas ali-
lidar com a situação, Pamela tem de baixar a tem- vie a dor, a comunicação do receptor com outras
peratura do escritório para 16ºC. Só consegue dor- proteínas gera sensações de prazer. O organismo
mir com quatro ventoinhas em volta da cama e o desenvolve tolerância a estes fármacos, o que sig-
ar condicionado no máximo. Numa semelhança nifica que são necessárias doses cada vez maiores
irónica com os indivíduos insensíveis à dor, a sen- para desencadear a sensação de euforia, capaz de
sação de queimadura constante leva a que Pamela provocar dependência.
tenha, por vezes, dificuldade em distinguir super- Uma vez que a Nav1.7 só está presente em neuró-
fícies quentes, razão pela qual queimou o braço nios que sentem lesões, um fármaco que desligue
há um ano, enquanto passava roupa a ferro. selectivamente o canal promete ser um analgési-
“Só me apercebi quando ouvi o ruído da pele a co eficaz. O único efeito secundário conhecido é a
tostar”, diz. “A sensação era igual à que eu já tinha.” perda do sentido do olfacto. Curiosamente, os in-
O neurologista Stephen Waxman, da Faculda- divíduos com a mutação também não conseguem
de de Medicina da Universidade de Yale, estu- cheirar. Os anestésicos locais existentes, como a
dou Pamela Costa e outras pessoas como ela no lidocaína, bloqueiam indiscriminadamente nove
seu laboratório no Centro Médico de Assistência canais de sódio no organismo, incluindo os que
a Veteranos de New Haven. Stephen e os cole- são essenciais para uma variedade de funções ce-
gas descobriram, tal como outro grupo de estu- rebrais, razão pela qual os médicos devem limitar
do, que os pacientes com eritromelalgia tinham o seu uso a um entorpecimento temporário dos
mutações no gene SCN9A. Essas mutações têm pacientes. As empresas farmacêuticas procuram
um efeito oposto ao daquelas crianças imunes compostos capazes de bloquear a Nav1.7, sem de-
à dor no Paquistão, levando a que os canais da sactivarem os outros canais de sódio, mas ainda
Nav1.7 se abram com demasiada facilidade, não foram bem-sucedidas.

UM MUNDO DE DOR 19
Apesar disso, Stephen Waxman mostra-se Pesach Feldman, de
optimista e espera que a investigação venha a 76 anos, interrompe
produzir melhores fármacos. “Estou seguro de a natação em Telavive
(Israel). Um bypass e 15
que surgirá uma nova categoria, mais eficaz, de stents não aliviaram a dor
fármacos para a dor que não sejam viciantes”, que o antigo pára-que-
afirma, com os olhos a brilhar. Faz uma pausa dista sente no peito
devido a uma angina
momentânea e refreia o entusiasmo. “Mas não refractária, causada por
posso apontar uma data.” má circulação no
coração. Submeteu-se a
uma cirurgia simples,
por novos fármacos continue,
E M B O R A A D E M A N DA aperfeiçoada pelo
médicos e investigadores estão a estudar formas de cardiologista Shmuel
usar as capacidades intrínsecas do cérebro para Banai, na qual lhe foi
inserido um cateter com
ajustar a dor e diminuir o sofrimento associado. um balão insuflável e um
E essas capacidades são impressionantes. Afinal, reducer de malha de aço
as nossas mentes e corpos já lidavam com a dor inoxidável (à direita)
através da veia jugular.
muito antes de começarmos a estudá-la. O balão foi posterior-
Veja-se, por exemplo, um estudo britânico re- mente insuflado na veia
cente com mais de trezentos doentes com um tipo principal do coração,
chamada seio coronário.
de dor no ombro provocada por uma excrescência O reducer restringe o
óssea ou osteofito. Para aliviar a dor, o osteofito cos- fluxo sanguíneo que sai
tuma ser cirurgicamente removido. Os investiga- do coração, obrigando-o
a deslocar-se para zonas
dores dividiram aleatoriamente os participantes do músculo cardíaco
em três grupos. Um grupo foi submetido a cirurgia. que não estão
O segundo grupo foi levado a crer que fora ope- suficientemente
irrigadas. “Recuperei
rado, mas não fora. O terceiro grupo foi instruído a minha vida”, disse.
a regressar três meses mais tarde para consultar NA PÁGINA SEGUINTE: DAVID
GUTTENFELDER
um especialista em ombros. O grupo submetido à À DIREITA, EM CIMA: LIOR ZUR, CENTRO
MÉDICO SOURASKY DE TELAVIVE
cirurgia e aquele que pensou que o fora relataram À DIREITA, EM BAIXO: SHMUEL
BANAI, CENTRO MÉDICO SOURASKY
um alívio semelhante na dor do ombro. DE TELAVIVE

“Isto demonstra que se trata apenas de um pla-


cebo. A cirurgia não faz nada pela dor, em termos
mecânicos”, diz Irene Tracey, uma das autoras do
estudo. “O alívio da dor sentido pelos pacientes é Clínica Cleveland, investigadores liderados pelo
gerado por um efeito placebo.” neurocirurgião André Machado recorreram a es-
Segundo Irene Tracey, porém, o resultado não timulação cerebral profunda (DBS) para visar este
é menos importante só por ter demonstrado que componente emocional da dor em dez pacientes
o efeito placebo funcionou. O estudo revela tam- que padeciam de dor neuropática crónica como
bém a força da crença de um paciente no trata- sequela de um AVC. Os investigadores implanta-
mento. “Aquilo que nos diz de importante é que ram eléctrodos minúsculos numa zona do cérebro
as expectativas moldam a dor”, diz. envolvida no processamento das emoções. Liga-
Outros estudos desvendaram a maneira como dos a um dispositivo electrónico inserido no peito,
a expectativa de diminuição da dor num pacien- os eléctrodos administravam estímulos eléctricos
te pode traduzir-se num alívio real, pois activa a de baixa intensidade no local de implantação, a
via descendente da dor, desencadeando a liber- um ritmo de quase duzentas vezes por segundo.
tação de opióides sintetizados no cérebro e tra- “Vários pacientes registaram melhorias na sua
vando, deste modo, a recepção dos sinais da dor. qualidade de vida, na sensação de bem-estar, na
“Não é a fingir”, diz Irene Tracey. “O mecanismo sua independência sem melhorar a quantidade
placebo contorna o poderosíssimo sistema da de dor”, diz André Machado.
dor no cérebro.” Doentes que anteriormente classificavam a
A percepção da dor não se limita à região senso- sua dor com um nove, numa escala de 0 a 10, por
rial. As sensações de desagrado, medo e ansiedade exemplo, continuaram a atribuir-lhe a mesma
que acompanham a sensação são uma parte inte- classificação, mas disseram que conseguiam fun-
gral da experiência da dor. Num teste realizado na cionar melhor. Um dos sujeitos do estudo, Linda

20 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Grubb, descreve o tratamento como transforma- Os investigadores compararam a actividade ce-
dor. “Fez toda a diferença do mundo, no que diz rebral dos participantes enquanto recebiam calor,
respeito a conseguir deslocar-me”, diz, acrescen- zumbidos ou nada. Concluíram que os cérebros
tando que a dor pós-AVC a compelira a passar os dos pacientes com dor crónica reagiam de forma
dias no sofá. “Tenho muito mais energia. O meu semelhante ao preverem um estímulo doloroso
marido diz que pareço muito mais feliz. Mudou e um inofensivo, enquanto os cérebros dos vo-
completamente a minha vida.” luntários saudáveis mostraram mais actividade
Uma parte subsequente do estudo, envolvendo em determinadas zonas quando previam o calor.
sujeitos saudáveis e doentes com dor crónica, pro- Quando os pacientes com dor crónica repetiram a
porcionou a André Machado e aos seus colegas al- experiência recebendo DBS, a actividade cerebral
gum conhecimento sobre a forma como a estimu- foi mais semelhante à dos participantes saudáveis.
lação profunda do cérebro parecia ter beneficiado Para este grupo de investigação, as conclusões
pacientes como Linda. Os investigadores regista- sugerem que a exposição constante à dor condi-
ram a actividade eléctrica proveniente dos cére- ciona os cérebros dos pacientes com dor crónica
bros dos participantes enquanto observavam um a reagir como se todos os estímulos fossem poten-
ecrã com dois dispositivos ligados aos braços. Um cialmente dolorosos, levando os doentes a viver
dos dispositivos aplicava calor repentino na pele em sofrimento. O tratamento com DBS parece
e o outro emitia um zumbido inofensivo. A partir restaurar um grau de normalidade, permitindo ao
da pista visual mostrada no ecrã, os participantes cérebro “voltar a distinguir o doloroso do não-do-
conseguiam saber qual dos dois estímulos iriam loroso, que é aquilo de que precisa para conseguir
receber ou se não iriam receber nenhum. funcionar”, diz André Machado.

UM MUNDO DE DOR 21
Linda Grubb, que
padece de dor crónica
desde que sofreu um
AVC, comemora a
conclusão de uma
corrida denominada
Zero K, com cerca de
15 metros, no pátio da
Buckeye Lake Brewery,
no Ohio. Linda foi
tratada com estimulação
cerebral profunda na
Clínica Cleveland pelo
neurocirurgião André
Machado e diz que o
tratamento não lhe curou
a dor, mas ajudou-a a
levantar-se do sofá e a
retomar muitas activida-
des. “Não recomecei a
saltar à corda, mas vou a
muito mais sítios”, diz.
André Machado explica
que outros pacientes
submetidos ao trata-
mento relataram
melhorias semelhantes
de bem-estar. Durante
a operação, foram
implantados dois
microeléctrodos
no cérebro de Linda
(em cima) para enviar
impulsos eléctricos
para zonas que proces-
sam a componente
emocional da dor.
À DIREITA: DAVID GUTTENFELDER
EM CIMA: STEPHEN JONES, CLÍNICA
CLEVELAND, COMPOSIÇÃO COM
EXAMES DE TAC E RM

22 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
UM MUNDO DE DOR 23
Talvez a realidade virtual (RV) venha a ser ou-
tra maneira de diminuir a dor. Experimentei em
primeira mão o poder desta técnica no laborató-
rio da neurocientista Luana Colloca, da Univer-
sidade de Maryland. Um dos assistentes da es-
pecialista atou uma caixinha ao meu antebraço
esquerdo enquanto eu me instalava confortavel-
mente numa poltrona reclinável. O dispositivo Daniel Boltz beija a filha
era semelhante ao utilizado pelo grupo de André Peyton, de 8 meses,
antes de lhe dar banho.
Machado: ligado ao computador através de um Daniel nasceu com
cabo, conseguia aquecer e arrefecer rapidamente. síndrome de abstinência
Na mão direita, eu tinha um comando com um neonatal porque a mãe
consumiu heroína
botão: este, ao ser premido, interrompia o calor durante a gravidez.
que eu sentia no braço. “Não se preocupe. Não vai Peyton passou dois
queimar-se”, assegurou um assistente. meses na unidade de
cuidados intensivos
Nos primeiros testes, Luana pediu-me para neonatais no Hospital
premir o botão assim que sentisse o dispositivo a Infantil de Penn State,
aquecer. Na ronda seguinte, eu tinha de esperar para fazer o desmame
dos opióides. Os estudos
um pouco mais até o calor se tornar desconfortá- sobre os efeitos a longo
vel. Na última série de testes, deveria pressioná-lo prazo ainda são
apenas quando o calor se tornasse insuportável. limitados, mas os
investigadores descobri-
Na experiência seguinte, fui acompanhada pela ram que os bebés que
própria Luana Colloca. Desta vez, puseram-me nascem com esta
óculos de RV que me levavam a mergulhar num condição são mais
sensíveis à dor do que os
ambiente marinho e escutei música relaxante, bebés saudáveis e
enquanto observava peixes de cores espectacu- também podem ter
lares esvoaçando pela água, iluminada por raios problemas cognitivos,
comportamentais e de
descendentes de luz solar. Alforrecas enormes e desenvolvimento.
iridescentes flutuavam à minha frente. De vez em DAVID GUTTENFELDER

quando, sentia o dispositivo a aquecer a pele do


meu antebraço, recordando-me que não estava
numa sessão de mergulho.
Quando a experiência terminou, Luana mos- entretenimento, que ajuda os pacientes a reduzir a
trou-me as temperaturas que eu deixara o dispo- ansiedade. Sejam quais forem os mecanismos sub-
sitivo atingir durante os testes. As leituras daquilo jacentes à sua eficácia, os médicos já estão a usar a
que eu considerara “morno”, “quente” e “insu- RV para ajudar pacientes com dores agudas, como
portavelmente quente” foram todas mais altas é o caso das queimaduras graves. Luana Colloca
durante a experiência imersiva. Mais especifica- considera, aliás, que esta estratégia também pode
mente, a temperatura mais elevada que suportei ser útil no tratamento da dor crónica.
sem pestanejar aumentara 1,5ºC, para 47,7ºC, o
que, na opinião de Luana Colloca, era “incrível”. Tom Norris preside ao encontro
TO D O S O S M E S E S ,
“Isto significa que você tolerou um nível de dor de um grupo de apoio que ajudou a fundar há
muitíssimo mais elevado enquanto estava imerso alguns anos, através da Associação Americana da
neste ambiente, a ouvir música relaxante”, disse. Dor Crónica. O objectivo do grupo é proporcionar
Os cientistas ainda não entendem a maneira terapia de grupo, aplicando os novos conhecimen-
como, ao certo, a RV exerce este efeito positivo sobre tos científicos, segundo os quais os nossos
a tolerância à dor. Segundo algumas hipóteses, ela pensamentos e sensações podem alterar a expe-
actua por meio da distracção: ou seja, mobilizando riência de dor.
redes neuronais que, de outro modo, estariam en- Juntei-me a ele num encontro recentemente
volvidas na sinalização e percepção da dor. Outros realizado numa igreja de Los Angeles. Tom apre-
especulam que funciona regulando as emoções e sentou-se aos membros enquanto eles iam che-
alterando o estado de espírito. Luana Colloca de- gando. (Para respeitar a sua privacidade, decidi
monstrou que o factor essencial da experiência é o não lhes perguntar os apelidos.) Um deles, um

24 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
jovem magro chamado Brian, apertou-me a mão. outros com toda a sua atenção, mesmo que já te-
Quando lhe expliquei, tal como fiz aos restantes, nham ouvido as mesmas palavras antes. “Hoje te-
que viera para ouvir e não para participar, ele lefonei para uma linha de socorro para suicidas”,
brincou: “Se calhar, podíamos dar-lhe um murro disse uma mulher chamada Jane. Ela padece de
na cara para conseguir perceber o que sentimos.” fibromialgia e de síndrome da dor regional com-
Éramos dez pessoas no total: cinco homens e plexa, entre outras maleitas. “Queixei-me tanto
cinco mulheres. Dispusemos as cadeiras em cír- aos meus amigos que já não quero telefonar-lhes.”
culo e sentámo-nos. Encostando a bengala a uma Tom Norris disse que está apenas a um telefo-
mesa, Tom sentou-se e pediu aos membros para nema de distância. “Às vezes, só precisamos de
partilharem como corria a sua vida. gritar”, disse. Dirigindo-se a outra mulher do gru-
Brian, que sofre de dores abdominais graves po que admitira sentir relutância quanto a procu-
que os médicos ainda não conseguiram diagnos- rar ajuda, recomendou: “Por isso, por favor, grite.”
ticar, foi o primeiro a falar. Contou que fora a uma Quando a reunião terminou, Tom esperou que
aula de jujitsu, que o ajudou temporariamente a todos saíssem da sala antes de desligar as luzes.
esquecer a dor. “É triste que eu tenha de sofrer ou- Perguntei-lhe o que o inspirara a organizar o en-
tra dor para esquecer esta”, disse, rindo-se. “Pen- contro mensal. “Acho que as minhas experiências
sei em vocês ao longo da semana. Isso permitiu ajudam frequentemente as pessoas”, disse. No en-
que me sentisse melhor.” tanto, isto também o ajudava a ele, acrescentou.
Os membros conhecem as histórias uns dos ou- “Estes encontros fazem-me sentir que ainda con-
tros, mas parecem ter-se comprometido, por meio tribuo para a sociedade e que não sou o único que
de um contrato não verbal, a escutar-se uns aos lida com a dor crónica.” j

UM MUNDO DE DOR 25
Num esforço
para aliviar as
dores, muitos
norte-americanos
ficam viciados
em opióides de
prescrição médica,
passando
de seguida a
consumir heroína,
fentanil ou
outros fármacos.
É uma crise que
abrange todo
o país.
Na Kensington
Avenue, em
Filadélfia, o
sofrimento das
vidas destroçadas
pela droga
é visível a
olho nu.

R E P O R T A G E M E F O T O G R A F I A S D E D AV I D G U T T E N F E L D E R

H
á algo que devia saber”, aconselhou-me um homem. “Ninguém nesta rua
imaginou que acabaria assim. Todos pensavam que tinham tudo sob con-
trolo.” Esta rua podia existir em qualquer região onde reine a toxicodepen-
dência. Mas esta chama-se Kensington Avenue, um troço deprimente que se
estende por Filadélfia. Fui até lá para testemunhar a crise dos opióides, para
perceber como as pessoas que procuraram alívio da dor acabaram nas ruas.
Já presenciei cenas de miséria extrema em guerras e desastres naturais,
mas fiquei espantado com o que encontrei no meu próprio país. As regras
da sociedade pareciam ter desaparecido. Aquilo que restava era uma luta
brutal por um objectivo: a sensação de bem-estar proporcionada pelo alívio da dor.
Em 2018, 1.116 pessoas morreram devido a sobredosagem de droga em Filadélfia:
um valor mais de duas vezes superior ao registado cinco anos antes. Oito dessas dez
mortes deveram-se a opióides.
Centenas de pessoas vivem na rua. Com os sentidos alterados ou em busca dessa
sensação, vagueiam sem rumo. Muitas estão magras, fracas, têm cicatrizes por se in-
jectarem. Desesperadas, perfuram braços, pescoços e tornozelos com agulhas.
Fernando Irizarry vive nesta rua. Tem 33 anos, é alto e tem barba escura. Caminha
com dificuldade, trocando as pernas. É divertido, atencioso e simpático, embora dis-
traído, sempre de olhos no chão em busca de tampas de garrafa, usadas para misturar
droga. Quando consegue recolher suficientes, raspa os restos para a dose seguinte.
No dia 11 de Setembro de 2005, bateu contra a traseira de um automóvel com a sua
moto. Quando era miúdo, adorava a escola. A substância mais forte que provara fora
tabaco de mascar. Após meses passados numa clínica de reabilitação, recebeu alta e
uma prescrição de Percocet. Quando o seu médico de família morreu, o novo médico
recusou-se a renovar-lhe a prescrição. Na rua podia pagar dez dólares por dois compri-
midos ou cinco por uma dose de heroína. “Foi assim que fiz a minha escolha.”
A princípio, senti-me intimidado. Não sabia como deveria abordar as pessoas. Quan-
do o fiz, porém, as suas histórias eram familiares. Histórias sobre dor, mas também
sobre tempos felizes. Vi as provas das suas vidas anteriores em ecrãs de telemóvel par-
tidos. Recordando os seus tempos como bailarina, uma jovem escanzelada descalçou
uma bota e fez uma pirueta en demi-pointe.
Os viciados em opióides que conheci são familiares. Estejam a suportar uma doença
crónica ou a tentar recuperar de um acidente, poderiam ser qualquer um de nós.
À ESQUERDA
O vício de Fernando
Irizarry começou com os
analgésicos receitados
após um acidente.
Convidou-me a observar
a sua vida em Kensing-
ton Avenue e passei dois
dias com ele. Incapaz de
encontrar uma veia boa
no braço e coberto de
hematomas, pediu a um
conhecido que lhe
injectasse restos de
droga no pescoço. Nas
ruas, os viciados
costumam tomar conta
uns dos outros,
administrando narcóti-
cos, mas também
salvando vidas com
Narcan, um vaporizador
nasal para reverter a
sobredosagem.

PÁ G I N A A N T E R I O R
As pessoas que conheci
conseguiam dizer-me
exactamente quantas
vidas tinham salvo com
Narcan. Assistiam a
overdoses e tratavam da
situação. Encontrei uma
mulher desmaiada e sem
sentidos. Um agente de
segurança ligou para o
112 e profissionais de
emergência médica
ressuscitaram-na.
As regras da sociedade parecem ter desaparecido.
Só restava uma luta brutal por um objectivo: a sensação
de bem-estar proporcionada pelo alívio da dor.
EM SENTIDO HORÁRIO
A PA RT I R D O T O P O
ESQUERDO
Falei com esta mulher
sobre a sua vida na
rua e vi fotografias dela
dos velhos tempos.
Depois de acordar
da sesta que estava
a dormir encostada
à parede, vi-a espreitar
para um fragmento
de espelho para
aplicar rímel. Tive
um vislumbre
da mulher naquelas
fotografias antigas.

Este jovem disse-me


que começou a
consumir Percocet
quando tinha cerca
de 18 anos, mudando
depois para heroína.
Foi preso por roubar
para sustentar o seu
vício. A mãe vive ali
perto, mas ele disse-me
que não poderia voltar
para casa enquanto
ainda consumisse
drogas. “Não quero que
ela me veja assim.”

Kensington Avenue
estende-se por muitos
quarteirões sombrios,
debaixo dos viadutos
das vias rápidas.
As ruas transversais
como esta atravessam
um dos bairros mais
pobres da cidade.

Voluntários de diversas
organizações tentam
ajudar os viciados.
Neste dia, membros da
The Table Philadelphia,
uma comunidade cristã,
rezam depois de darem
comida e bebida a um
sem-abrigo.
Segundo a
autora, que
também é
médica, a saúde
das mulheres e as
preocupações
pelo seu
bem-estar são
menosprezadas
e mais politizadas
do que as dos
homens. Eis uma
radiografia
para a mudança
da situação:
as mulheres
precisam de se
fazer ouvir.

T E X TO D E

ZOANNE CLACK
I LU ST R AÇ Õ E S
DE BIANCA
BAG N A R E L L I MENOSPREZO PELA
JA N E I RO 2 0 2 0

ESPECIAL SAUDE
E BEM-ESTAR

SAUDE DAS MULHERES 33


Mulheres: desde meados
RAT I C O M E D I C I N A D E E M E RG Ê N C I A

P
Um Século da década de 1990 e já tratei todo o tipo de doen-
de Mudança tes: novos e velhos, ricos e pobres, homens e
UMA SÉRIE mulheres. Também observei os acompanhantes
DE UM ANO
destes doentes, nos seus esforços para lidarem
com essas crises de saúde enquanto tratam dos
seus compromissos laborais, familiares e finan-
ceiros. Esse fardo recai frequentemente sobre as
mulheres, que fazem o trabalho de duas, três ou
quatro pessoas para tratarem dos filhos, dos com-
panheiros, dos pais e de outros entes queridos.
É um fenómeno global: segundo a Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento Econó-
mico, as mulheres de todo o mundo passam mais de 1,1 biliões de
horas por ano a prestar cuidados gratuitos a crianças e idosos. Os
homens despendem um terço desse tempo.
Na qualidade de produtora executiva do drama televisivo “Ana-
tomia de Grey”, procuro introduzir o contributo destas mulheres
nos guiões. Elas são mães, companheiras, esposas, irmãs, filhas,
directoras executivas e secretárias. A mulher que acaba de ter um
bebé acha que tem um ducto entupido e descobre, demasiado tar-
de, que tem cancro na mama.1 A mulher que não quer admitir que
foi violada por achar que vão considerá-la culpada por causa do
sítio onde estava ou da roupa que trazia vestida.
São mulheres que têm uma doença terminal ou que precisam de
um transplante de órgãos e que têm de revelar tudo às filhas. Mu-
lheres que enfrentam a sua sexualidade sem rodeios, que engravi-
dam em idades avançadas, que escolhem vias alternativas para a
maternidade ou que decidem não ter filhos. Mulheres com tumo-
res cerebrais, doenças mentais e depressão. Mulheres sem seguro
de saúde e mulheres que poderiam comprar o mundo.
Escrevo sobre estas mulheres porque vejo estas mulheres. Por-
que eu sou estas mulheres. Estou firmemente presa na “geração
1. CANCRO DA MAMA sanduíche”: tomo conta da minha mãe, que está a envelhecer, e
Conversão de células de três filhos pequenos. Trabalho a tempo inteiro. Tenho de gerir
cancerígenas escolas, horários, actividades extracurriculares, baby-sitters, pra-
Por vezes, as células do cancro zos, prestadores de cuidados e objectivos profissionais, enquanto
da mama evitam os
tratamentos médicos, tento ter uma vida social. Sou todas as mulheres. Somos multidões
afastando-se dos tumores
densos e alterando a sua
e encontramo-nos, frequentemente, assoberbadas e em silêncio.
maquinaria interna. Tornam-se Se este é o guião da vida de muitas mulheres, como consegui-
então semelhantes a células
estaminais adultas e mos tratar da nossa saúde e bem-estar?
conseguem viajar pelo Há muitas falhas a apontar aos cuidados médicos, aos trata-
organismo, dando origem a
novos tumores noutros locais. mentos, à investigação e ao apoio disponibilizados às mulheres
Utilizando em ratos fármacos
já existentes que atacam
que compõem metade da humanidade. No entanto, há também
estes tumores transformados motivos para me sentir optimista, pois há descobertas e avanços
em células estaminais, uma
equipa de investigadores que prometem mudanças sérias para as raparigas e as mulheres.
de biomedicina redireccionou Sinto-me frequentemente esperançosa quando nos vejo a falar
o seu desenvolvimento,
de modo a transformá-los em abertamente do assunto, pois acredito que é esse o melhor passo
células adiposas inofensivas.
O tratamento mostrou ter
para promover o bem-estar.
potencial “para travar a invasão Precisamos que mais mulheres falem. Sobre os seus abortos es-
tumoral e a sua progressão
maligna”, escreveram cientistas pontâneos, sobre a infertilidade ou sobre os sustos de contracep-
da Universidade de Basileia na ção. Sobre cancros ou doença cardíaca. Sobre depressão. Ansieda-
revista “Cancer Cell”.
— T H E R E SA M AC H E M E R de. O peso. Distúrbios alimentares. O consumo abusivo de álcool.

34 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
O consumo abusivo de fármacos prescritos. Violência doméstica.
O estigma associado a estas situações mantém muitas de nós em
silêncio. No entanto, sem activismo, não haverá financiamento à
investigação nem revisão das políticas públicas. Só se descobrir-
mos as nossas vozes é que poderemos fortalecer-nos e crescer jun-
tas, para conseguirmos concretizar uma mudança saudável.

N O M E U PA P E L D E E S C R I TO R A , sou naturalmente uma contadora de


histórias. Adapto as histórias de mulheres reais de modo a criar
histórias para as personagens. Acredito que os bons médicos tam-
2. ATAQUE CARDÍACO
bém precisam de ser bons contadores de histórias. Pratico aquilo a
que se chama medicina narrativa, o que significa, essencialmente, Género e reanimação
Quando as mulheres sofrem
o seguinte: ouvindo atentamente a história do doente, lendo a his- uma paragem cardíaca em
tória contada pelo organismo do doente, uso ambas para compor lugares públicos, é menos
provável que as pessoas à sua
uma narrativa para o diagnóstico e tratamento. voltam tentem reanimá-las e é
Vejamos a história de Meredith, por exemplo. A cirurgiã é uma mais provável que morram,
segundo um estudo realizado
viúva com três filhos pequenos que não só consegue conquistar na Holanda e publicado
no “European Heart Journal”.
prémios profissionais como passa tempo com os filhos. Frequen- Uma das prováveis razões:
tou a faculdade de medicina no início da década de 2000, quan- quando vêem uma mulher
desmaiar, as pessoas não
do nem sequer metade dos alunos que entravam para medicina percebem que ela está com
eram mulheres. Em 2018, 52% dos inscritos eram mulheres – um uma paragem cardíaca (os
batimentos cardíacos tornam-se
progresso! Numa leitura mais vasta, em 2017, as mulheres con- rápidos e irregulares e depois
param) e, por isso, não pedem
cluíram 57% das licenciaturas, 59% dos mestrados e 53% dos dou- ajuda nem usam o desfibrilha-
toramentos nos Estados Unidos, segundo relatórios do Centro dor para restaurar o ritmo
normal. O resultado?
Nacional para as Estatísticas de Educação. Trata-se de um pro- Os homens têm o dobro das
gresso significativo, uma vez que o elemento mais importante na probabilidades das mulheres
de viverem durante tempo
melhoria dos cuidados de saúde é a formação de mulheres. suficiente para conseguirem sair
do hospital. — PATRICIA EDMONDS
Apesar da formação avançada de Meredith (e de se apresentar
com o título de doutora, vestir bata e usar visivelmente um este- 3. MEDICAÇÃO
PARA A DOR
toscópio), ela é regularmente tratada como enfermeira enquanto
Dor das mulheres
trata dos seus afazeres no hospital. E se houver um aluno de me- menosprezada
dicina na sala quando ela está a fazer as rondas, os pacientes cos- Durante décadas, os estudos
tumam contar-lhes as histórias a ele e não a ela. Os estereótipos e concluíam que as mulheres
tinham mais probabilidades do
os preconceitos são uma componente real da vida das mulheres e que os homens de não
receberem tratamento
o preconceito de género é um problema sério na medicina. adequado para a dor.
Miranda é outro exemplo. É chefe de cirurgia no seu hospital. 1989: Investigação centrada num
grupo dividido uniformemente
Vai no segundo casamento, porque o primeiro marido não com- entre homens e mulheres
preendia as exigências do seu trabalho, problema comum entre concluiu que nos três dias após
serem submetidos a uma cirurgia
as mulheres profissionais. Dirige-se a um hospital, queixando-se de bypass coronário, os homens
tinham o dobro das probabilida-
de sintomas não específicos, que costumam ser sinal de ataque des de serem medicados com
cardíaco nas mulheres,2 sintomas mais subtis do que os sentidos narcóticos para as dores.
1996: Um estudo de 20 meses
pelos homens, como dores na zona abdominal superior, tontu- realizado numa urgência
ras ou cansaço invulgar. Miranda tem a certeza de que está a ter hospitalar concluiu que, entre as
pessoas que se queixavam de
um ataque cardíaco. (Spoiler: está mesmo.) No entanto, quando dores agudas no peito, as
mulheres tinham menos
as mulheres (sobretudo de cor) manifestam preocupações com probabilidades de serem
a sua saúde e exigem que estas sejam investigadas, têm mais admitidas do que os homens e
de serem submetidas a um teste
probabilidades de serem ignoradas, de não acreditarem nelas, de esforço numa consulta de
ou até de serem silenciosamente troçadas pelos profissionais de acompanhamento. 2008: Uma
investigação realizada num
saúde. Segundo a autora Leslie Jamison, cuja obra inclui o ensaio serviço de urgência concluiu que
quando os doentes se queixavam
“Grand Unified Theory of Female Pain”, a dor feminina3 costuma de dor abdominal aguda, os
ser “interpretada como inventada ou exagerada” e os sintomas homens esperavam uma média
de 49 minutos até serem
femininos podem ser ignorados ou tratados de forma mais agres- medicados com um analgésico e
siva do que seriam num paciente masculino. as mulheres 65 minutos. — PE

A S A Ú́ D E D A S M U L H E R E S 35
ESTAVA NO TRABALHO, A REGRESSAR DE SÚBITO, SENTI-ME MUITO CANSADA. SEM QUALQUER MOTIVO.
AO ESCRITÓRIO DEPOIS DO ALMOÇO.

FIQUEI SENTADA NAS ESCADAS, MAS NÃO CONSEGUIA. ERA COMO


SENTI TONTURAS
A TENTAR RECUPERAR O FÔLEGO. SE NÃO HOUVESSE AR.

É UMA PRESSÃO HORRÍVEL.

COMO SE
UMA CORDA…

ESTIVESSE A
SER ATADA À
MINHA VOLTA

A ESMAGAR-ME.

DEVE ESTAR A PRECISAR


HUM-HUM…OK, NÃO SE
POR ISSO, LIGUEI PARA DE DESCANSAR
PREOCUPE MUITO COM ISSO.
O 112 E AQUI ESTOU.
Esta atitude de menosprezo tem consequências não só para o
tratamento das mulheres, mas também para a investigação médi-
ca que dará origem às curas do futuro. Em termos históricos, na ´
4. SAUDE E SEGURANÇA
profissão médica, os testes clínicos foram realizados com sujeitos Os efeitos dos
masculinos. Estes eram considerados a “norma” e as suas reacções fármacos diferem
a um novo fármaco eram interpretadas como representativas das Alguns fármacos mais comuns
reacções de ambos os sexos. Mulheres em idade reprodutiva eram da actualidade produzem
diferentes efeitos, principais e
excluídas “por motivos de saúde”. O mesmo se aplicava às mulhe- secundários, nas mulheres e
nos homens, uma variabilidade
res em geral para eliminar a possibilidade de as diferenças hormo- nem sempre levada em
nais serem um factor na investigação. Em 2016, uma análise publi- consideração por quem os
prescreve nem comunicada
cada numa revista de medicina concluiu que os ensaios clínicos aos doentes. Os norte-ameri-
estavam efectivamente a incluir mais mulheres, mas nem sempre canos utilizavam um fármaco
popular para dormir
em números representativos da população feminina. Também denominado zolpidem há mais
de 20 anos quando a Agência
concluiu que a investigação nem sempre envolve “análises à segu- Norte-Americana para os
rança e eficácia específicas para cada género” de um produto. Fármacos e Alimentação
anunciou, em 2013, que a dose
Precisamos de investigação especificamente orientada para a recomendada para ambos os
saúde feminina, capaz de abordar diferenças biológicas e discre- sexos era o dobro daquela que
as mulheres deveriam tomar.
pâncias4 nos resultados entre mulheres e homens. As mulheres Do mesmo modo, investiga-
ções revelaram que as
têm mais probabilidades de serem diagnosticadas com doenças mulheres correm 1,5 a 1,7 mais
crónicas e/ou doenças auto-imunes. A doença arterial coronária riscos de sofrer reacções
adversas do que os homens.
causa deficiências mais graves e mais mortes nas mulheres do que Por exemplo, a insuficiência
nos homens. Aparentemente, chegam mais fármacos e produtos hepática causada por
acetaminofeno (a substância
novos para beneficiar as mulheres, mas alguns prejudicam-nas.5 activa do analgésico de venda
livre Tylenol) é mais frequente
Isto sugere que é necessário fazer muito mais investigação e en- e mais grave nas mulheres do
saios, com as mulheres no papel de sujeitos e também participan- que nos homens, porque o
fígado do homem tem maior
do no processo de tomada de decisão. capacidade para metabolizar o
acetaminofeno em segu-
rança. — P E , T M
que se apresentam
N O C A S O D E A L G U M A S R A PA R I G A S E M U L H E R E S
na urgência hospitalar, os médicos encontram problemas de saúde ´
5. SAUDE E SEGURANÇA

tratáveis, mas as crises sociais e culturais que complicam as vidas Método de controlo
destas pacientes parecem desafiar a resolução dos seus problemas. de natalidade
proibido
Jo tem tanto medo do seu passado que fugiu dele, mudou de
Quase 47 milhões de mulheres
nome e disfarçou a sua identidade. Ela era vítima de violência pelo norte-americanas, de idade
compreendida entre os 15 e
seu parceiro íntimo e o caso era tão grave que levou à sua hospitali- os 49 anos, usam métodos
zação regular. Nas urgências, vêem-se bastantes vítimas de violên- contraceptivos, mas nem todos
os que têm à sua disposição são
cia doméstica, algumas com hematomas e ossos partidos, outras fiáveis ou seguros. Em 2002, a
com cicatrizes invisíveis. Mas Jo não é uma paciente: é uma médica FDA aprovou um produto
permanente para o controlo da
do quadro do hospital. Ela desmente o equívoco comum de que a natalidade chamado Essure, um
dispositivo metálico que é
violência doméstica ocorre sobretudo em lares pobres e entre pes- inserido nas trompas de
soas com baixas habilitações literárias. Na verdade, em todo o mun- Falópio, onde o corpo o cobre
com tecido cicatrizado.
do, a violência doméstica é a principal causa das lesões sofridas por Passados cerca de três meses,
mulheres, mais do que acidentes, assaltos ou ataques por estranhos. isto cria um bloqueio
permanente, impedindo a
Nadia é uma menina de 10 anos que aparece à porta das urgên- passagem do óvulo do ovário
para o útero. A FDA recebeu
cias de um hospital, sozinha e aparentemente com dores, quando mais de 26 mil relatórios sobre
uma estranha avisa os médicos. Um exame revela que ela tem um efeitos secundários atribuídos
ao Essure, incluindo dor pélvica,
tumor abdominal de grandes dimensões que precisa de uma ci- reacções alérgicas ao níquel,
rurgia de urgência. O pessoal hospitalar está prestes a chamar os quebra do dispositivo e
gravidez. No final de 2018, a
serviços de protecção de menores quando a “estranha” confessa: utilização do Essure foi
considerada um factor possível
é a mãe de Nadia e tem medo de se apresentar porque não tem na morte de 15 mulheres.
documentos. Foi também por medo de ser deportada que espe- O produto deixou de ser
comercializado nos EUA
rou tanto para levar Nadia a ser examinada. Devido a esse atraso, em Dezembro de 2018.
a cirurgia é muito mais exigente do que teriam sido os cuidados Está a ser realizado um
estudo sobre os seus efeitos
médicos preventivos. a longo prazo. —T M

A S A Ú́ D E D A S M U L H E R E S 37
Não há soluções simples para as actuais crises de imigração.
Sem acesso a cuidados de medicina preventiva, os residentes ile-
gais nos EUA apresentam todas as suas necessidades aos serviços
de urgência, onde os doentes sem seguro de saúde custam cerca
de 34 mil milhões de euros por ano mais do que custariam caso
fossem acompanhados fora do contexto da urgência.
Os doentes sem seguro de saúde não têm acesso a cuidados de
saúde e o risco de uma mulher não ter seguro aumenta se ela tiver
um rendimento baixo ou for de origem hispânica/latina. As mu-
lheres que vivem em comunidades rurais têm mais probabilidades
de sofrer problemas de saúde do que mulheres de outros enqua-
dramentos geográficos. Têm acesso limitado a mamografias, entre
outros exames, e cuidados maternos porque apenas 6% dos gine-
cologistas e obstetras trabalham em zonas rurais.
Nos Estados Unidos, também é mais provável que uma mulher
tenha seguro de saúde como dependente do que um homem, cor-
rendo por conseguinte maior risco de perder a cobertura caso fique
viúva ou se divorcie, ou o titular do seguro, o seu esposo ou com-
panheiro, fique desempregado. Por estas e outras razões, cerca de
uma em cada quatro mulheres norte-americanas teve de adiar ou
prescindir de cuidados de saúde no ano passado devido aos custos,
segundo as conclusões do Censo Kaiser de Saúde Feminina.

as mulheres debatem-se com uma


E M M AT É R I A D E B E M - E S TA R ,
variável que não afecta os homens: um sistema reprodutivo conce-
bido para gerar descendência. Quer tenham ou não filhos, a maioria
das mulheres está equipada para fazê-lo durante uma parte da sua
vida. Isso pode transformar-se numa bênção, num fardo, num tema
político ou numa questão social, dependendo das circunstâncias.
Em última análise, é a mais pessoal de todas as questões da saúde.
Arizona é uma cirurgiã pediátrica que adora crianças e quer ter
6. INFERTILIDADE filhos com a sua esposa do mesmo género. Felizmente para elas e
Factores que para pessoas solteiras ou casais que precisam de ajuda para con-
afectam a fertilidade ceber, existem opções, incluindo barrigas de aluguer, doação de
masculina
embriões, doação de óvulos e doação de esperma. Arizona e a sua
Se uma mulher não conseguir
engravidar após um ano de companheira optam pela doação de esperma. Ela é submetida a
tentativas, ela e o parceiro
poderão ter problemas de
uma IIU (inseminação intra-uterina) e fica extasiada quando o tes-
fertilidade. Nos EUA, cerca de te de gravidez é positivo. Infelizmente, quando faz a primeira eco-
8% dos casos de infertilidade
são causados apenas pelo factor grafia, não há batimento cardíaco.
masculino. Os factores de risco A infertilidade6 afecta cerca de 10% das mulheres norte-ame-
da infertilidade masculina
incluem obesidade e abuso de ricanas entre os 15 e os 44 anos (cerca de 6,1 milhões de mulhe-
substâncias, mas alguns riscos
não dependem do controlo do
res), segundo os Centros de Controlo e Prevenção de Doenças
indivíduo. Um estudo realizado (CDC). Mas há boas notícias: a maioria dos casos de infertilidade
na Suécia concluiu que homens
com pais fumadores tinham pode ser tratada com terapias convencionais, como cirurgia ou
uma contagem de esperma 50% medicação (e apenas 3% obrigam a recorrer a fertilização in vi-
inferior à dos homens com pais
não-fumadores. E embora os tro, ou FIV). Comparados com os valores de décadas passadas,
homens possam evitar as
temperaturas elevadas das
há agora mais esperança.
banheiras cheias de água E as mulheres que ainda não querem ter filhos? Ou que nunca
quente, as alterações climáticas
também comportam riscos. Um vão querer? Cristina é o tipo de pessoa implacável que proclama
estudo com escaravelhos, “não ter filhos por opção. Mesmo quando estava casada com um
realizado em 2018, concluiu que
uma única vaga de calor diminuí- homem que a amava e queria um filho, ela manteve-se fiel a si pró-
ra a produção de esperma em
cerca de 75%, mas as fêmeas não
pria. Representa a vaga crescente de mulheres que, por vários moti-
foram afectadas. — TM vos, escolhem não ter filhos, uma decisão tão válida como a oposta.

38 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Depois, há as mulheres que adiam porque querem ter uma car-
reira antes dos filhos ou por outras razões. O meu conselho para
elas: olhem para aquilo que a actual geração de mulheres profis-
sionais mais velhas passou. As mulheres que esperam demasiado
tempo têm muito mais dificuldades em engravidar (e custa-lhes
muito mais caro – o custo médio de um único tratamento de FIV
ronda 10.800 euros). Mesmo com a minha formação médica, olhei
para as estatísticas da concepção e pensei que, num certo sentido,
não se aplicavam a mim. Eu seria, certamente, como as pessoas
da comunicação social ou as personagens televisivas para as quais
escrevo, que engravidam quando querem, independentemente da
sua idade. Sabem que mais? Opinião errada!
A verdade é a seguinte: os melhores anos reprodutivos são entre
os 20 e os 29. A fertilidade diminui gradualmente a partir dos 30,
bem como a qualidade e quantidade dos óvulos. Em cada mês que
tenta engravidar, uma mulher saudável e fértil com 30 anos tem
20% de possibilidades de consegui-lo. Aos 40 anos, as probabilida-
des são inferiores a 5%.
É por esta razão que defendo tão ferozmente a preservação da
fertilidade7 através do congelamento de óvulos ou embriões, para
evitar gestos de “maternidade de pânico” como alimentar relações
insensatas só para ter um filho. Izzie, uma residente de cirurgia que
luta contra um melanoma na fase 4, procede à recolha de óvulos
para preservar a sua fertilidade no futuro, caso sobreviva aos tra-
tamentos. Outras pessoas usam esta tecnologia em circunstâncias
menos terríveis. Sim, os congelamentos de óvulos e embriões são
processos caros e não garantem nada, mas oferecem uma escolha.
7. TECNOLOGIA
Pense neles como investimentos no seu futuro!
Ferramentas da
Para quem tem vontade e programou tudo bem, há a alegria da “femtech” e escolhas
gravidez e do nascimento. No entanto, até esses tempos felizes relacionadas com
podem ser assustadores. Karen é uma mulher excêntrica, casada a gravidez
Para mulheres que se debatam
com o amor da sua vida, um paramédico que corre para o seu lado com problemas de infertili-
quando ela entra em trabalho de parto. Ele chega a tempo de as- dade, ou de maternidade, uma
incipiente indústria “femtech”
sistir ao nascimento da filha e é um dia feliz para todos até Karen está a desenvolver novos
sentir uma dor que indica algo de errado. Começa a sangrar pro- dispositivos e serviços.
Aplicações informáticas e
fusamente e é levada para o bloco operatório, onde os médicos fa- monitores portáteis vigiam o
período fértil da mulher ou,
zem uma histerectomia. Após a cirurgia, sofre falência múltipla de
quando está grávida, o
órgãos e tem uma paragem cardíaca, da qual não recupera. Karen desenvolvimento do feto.
Uma empresa oferece planos
morre devido a pré-eclâmpsia, uma condição causada por tensão clínicos e financeiros a
arterial alta que pode ser tratada caso seja diagnosticada a tempo. pacientes que escolhem fazer
FIV ou congelar óvulos. Cada
As estatísticas da mortalidade materna mostram a fracção das vez mais, os futuros
progenitores pedem para os
mortes de mulheres entre os 15 e os 49 anos, uma faixa etária
embriões, ou gâmetas, serem
relacionada com a maternidade. Entre 2000 e 2017, a mortali- testados a fim de detectar
anomalias cromossomáticas,
dade materna diminuiu significativamente em todo o mundo, antes de decidirem se querem
mas aumentou nos Estados Unidos. Muitos elementos contri- utilizá-los. Num estudo
britânico publicado no ano
buem para este aumento, entre os quais a obesidade, as doen- passado na revista “Human
Reproduction”, cerca de um
ças crónicas, os factores socioeconómicos, o acesso a cuidados
terço dos pacientes que
de saúde e os partos em idades mais avançadas. Mesmo assim, quiseram fazer os testes
mostraram-se arrependidos
os CDC estimam que cerca de 60% das mortes maternas podem por os terem feito, sobretudo
ser prevenidas. E entre mulheres brancas e mulheres de cor há quando foram descobertas
anomalias. Os autores do
uma discrepância enorme: a probabilidade de as mulheres ne- estudo sugeriram que fosse
fornecido “aconselhamento
gras morrerem de complicações relacionadas com a gravidez ou
e apoio adicional” juntamente
o parto é três a quatro vezes superior. com os testes. — P E

A S A Ú́ D E D A S M U L H E R E S 39
8. DOENÇA
O nosso sistema de saúde fez um trabalho magnífico na pro- DE ALZHEIMER

tecção e melhoria dos resultados de recém-nascidos e bebés pre- Diferenças da


maturos, mas conseguiu-o à custa de ignorar as mães. Em 2018, demência
Há quase duas vezes mais
o Congresso deu um passo na direcção certa, aprovando legisla- mulheres do que homens com
ção para financiar e apoiar os esforços do Estado para diminuir a doença de Alzheimer nos EUA e
os cientistas estão a desvendar
mortalidade materna. os factores subjacentes a esta
disparidade. O estilo de vida
poderá ser relevante. As
quando há vidas
D A M E S M A M A N E I R A Q U E S Ã O F U N D A M E N TA I S mulheres que tiveram trabalhos
remunerados exibem menos
novas a chegar ao mundo, as mulheres são guardiãs e âncoras quando declínio da memória do que as
há vidas longas a chegar ao fim. As mulheres tendem a viver mais do que não tiveram, mas também
há diferenças a nível fisiológico.
que os homens (há duas vezes mais mulheres acima dos 85 anos do Os testes cognitivos utilizados
para detectar a doença numa
que homens). Muitas estão duplamente expostas a problemas de fase inicial são menos eficazes
saúde porque tomam conta dos mais novos e dos mais velhos, além em mulheres porque elas
tendem a ter melhor memória
de si próprias. Ellis é uma cirurgiã galardoada, inteligente e motivada verbal do que os homens e a
no auge da sua carreira quando lhe é diagnosticada uma demência detecção tardia da doença
pode resultar num declínio
inicial derivada da doença de Alzheimer8 Isto arruína-lhe a carreira cognitivo mais rápido. Também
existem diferentes factores de
e acaba por conduzir ao fim da sua vida. A doença de Alzheimer afecta risco genéticos em homens e
as mulheres de forma desproporcional, a dois níveis. Quase dois ter- mulheres. Além disso, se
compararmos os cérebros de
ços dos adultos diagnosticados com mais de 65 anos são mulheres; mulheres e homens, as ligações
e dos mais de 16 milhões de norte-americanos que prestam cuidados dos cérebros das mulheres
podem oferecer vias para uma
de saúde não remunerados a um paciente com doença de Alzheimer, disseminação mais rápida das
placas de proteína. —T M
ou outras formas de demência, 66% são mulheres.
À medida que a proporção de norte-americanos de idade supe-
rior a 65 anos aumenta, isso significa, quase seguramente, que ha-
verá mais mulheres com Alzheimer e menos mulheres a prestarem
cuidados. Isto é mais uma razão para examinarmos, com seriedade
e de imediato, as nossas abordagens à saúde e ao bem-estar, inves-
tindo nas melhorias necessárias.
Em 2015, os estados-membros das Nações Unidas concordaram
em fazer uma tentativa no sentido de prestar cuidados de saúde
essenciais a todas as crianças homens e mulheres até 2030. Actual-
mente, ainda estamos longe da meta, pois há centenas de milhões
de pessoas que não têm cuidados de saúde disponíveis ou dinheiro
para pagá-los. Cada um de nós pode começar por defender aquilo
de que precisa, a nível pessoal, e aquilo de que a sua família, comu-
nidade ou país precisam para viver com saúde e bem-estar.
Em “Anatomia de Grey”, há algumas temporadas, Meredith Grey
– a Meredith que mencionei anteriormente – escapa por pouco a
um ataque brutal. Quando recupera, dá conselhos valiosos sobre a
importância de nos fazermos ouvir. Serão suas as últimas palavras
deste artigo:
“Não deixes que o medo te mantenha em silêncio. Tens uma
voz, por isso usa-a. Fala. Ergue as mãos. Grita as tuas respostas.
Faz-te ouvir.” j

A médica Zoanne Clack é produtora-executiva da série da ABC Ana-


tomia de Grey e uma das suas guionistas desde a temporada de estreia
em 2005. É também consultora de todos os médicos da série. Zoanne
Clack especializou-se em medicina de urgência e concluiu um mes-
trado em Saúde Pública. Passou um ano nos Centros para o Controlo
e Prevenção de Doenças dos EUA, trabalhando com situações de emer-
gência internacional. Tem um filho e duas filhas gémeas.
A National Geographic Partners e a ABC Television Network são propriedade
de The Walt Disney Company.

A S A Ú́ D E D A S M U L H E R E S 41
OKINAWA
Yoshiko Shimabukuro,
de 91 anos, fundadora
do Okinawa
Daiichi Hotel, bebe
sopa de miso ao
pequeno-almoço. Ela e
A
a filha Katsue Watanabe
especializaram-se em
inventar requintadas
refeições vegetarianas
com cerca de cinquenta
ingredientes locais.
DAVID MCLAIN

DA
JA N E I RO 2 0 2 0

ESPECIAL SAUDE E BEM-ESTAR


RECEITA
Os regimes
alimentares
tradicionais,
constituídos por
cereais integrais,
legumes, frutos
secos e leguminosas
parecem evitar
doenças e manter-
-nos saudáveis.

T E X TO D E

DAN BUETTNER

LONGEVIDADE 43
J desde que Dan Buettner
JÁ PA S S A R A M M A I S D E 1 4 A N O S
publicou nesta revista a sua primeira reportagem sobre
os habitantes mais longevos do planeta. Dan continua a
desvendar os segredos dos anciãos com mais de 100 anos
nas regiões que classificou como “zonas azuis”. Regressou recentemente a
quatro delas para aprender mais sobre os alimentos que contribuem para
essa longevidade, recolhendo receitas testadas pelo tempo e investigando
como géneros alimentares parecem proporcionar uma vida mais longa.

REGIÃO DA MAIS ELEVADA


CONCENTRAÇÃO DE INDIVÍDUOS DO SEXO
MASCULINO COM MAIS DE 100 ANOS SARDENHA, ITALIA
Os hidratos de carbono do pão da Sardenha entram na corrente sanguínea
a um ritmo mais lento do que os hidratos provenientes do pão branco simples.

ITÁLIA
mexe vigorosamente uma panela
A S S U N TA P O D DA , D E 9 9 A N O S ,
de barro e mostra os dentes num sorriso aberto. “Minestrone”,
explica, fazendo um gesto amplo com a mão.
Sardenha Espreito a mistura que se encontra sob uma película dourada
de azeite. É composta por feijão, cenoura, cebola, tomate, fun-
cho, rutabaga e ervas. Atrás dela, a mesa posta à moda medie-
val: pães de levedura natural, legumes colhidos na horta, um
jarro de vinho tinto cor de granada.
“Sente-se”, insiste. Junto-me à sua família e ao epidemiolo-
gista Gianni Pes, que estuda esta região.
Com a mão firme de uma mulher mais nova, serve o vinho
em copos grossos e deita a sopa a ferver nos pratos.
“Agora, coma.”
Encontramo-nos na vertente oriental das montanhas sardas
de Gennargentu, em Arzana, uma aldeia localizada na região
com o maior número de homens com mais de 100 anos de idade
de todo o mundo. Nos anos que se seguiram à Segunda Guerra
Mundial, 38 pessoas desta aldeia (1 em cada 100) viveram pelo
menos um século de idade.

44 N AT I O N A L G E O G R A P H I C TODOS OS MAPAS: NGM MAPS. TODAS AS ILUSTRAÇÕES: MANUEL CANALES


Gianni Pes descobriu este fenómeno no fim da década de Uma dieta
1990. Desde então, entrevistou meticulosamente mais de saudável
trezentas pessoas centenárias, fazendo-lhes questionários é um factor
exaustivos. No seu entender, grande parte desta longevidade importante
explica-se em função das ruas íngremes, do zelo pela famí- da receita para
lia, do respeito pelos anciãos, da cultura matriarcal em que as a longevidade,
mulheres carregam sobre os ombros a maior parte do stress que também
familiar e de um regime alimentar simples. Gianni afirma ter inclui um círculo
descoberto que os cônjuges das centenárias vivem mais tem- de amigos
po do que os irmãos dos centenários, sugerindo que o regime duradouros,
alimentar e o estilo de vida são mais importantes do que o motivações
factor genético. para viver,
O especialista sorve uma colher cheia de sopa. “Delizioso!” um ambiente
exclama, olhando com admiração para Assunta Podda, que que promova
semicerra os olhos e encolhe os ombros. o dinamismo
A sopa minestrone disponibiliza os aminoácidos essenciais, e rituais diários
uma mistura rica de vitaminas e grande variedade de fibra. que mitiguem
Gianni descobriu que os centenários possuem estirpes espe- o stress.
cíficas de bactérias nos seus aparelhos digestivos que trans-
formam a fibra em níveis invulgarmente elevados de ácidos
gordos com um número ímpar de átomos de carbono. Estas
gorduras saturadas estão associadas a um risco mais baixo de
doença cardíaca e talvez previnam o cancro.
Em Seulo, outra aldeia abençoada com uma elevada per-
centagem de centenários, eu e Gianni visitamos uma padaria
comunitária secular. Uma dezena de mulheres prepara o pão
especial que é comido em quase todas as refeições. Observa-
mo-las enquanto ateiam um lume potente no interior de um
forno de tijolo e amassam o pão com braços fortes e de rostos
corados. A padeira mais velha, uma octogenária vigorosa, de
baixa estatura, chamada Regina Boi, supervisiona todas as
etapas do processo, com o seu vestido negro e lenço na cabeça,
dando conselhos e avisando que a massa está pronta e o forno
suficientemente quente para cozer.
Regina fornecera a massa-mãe, uma espuma pastosa se-
melhante a leite coalhado que a sua família produz há muitas
gerações. A massa-mãe contém levedura e uma bactéria de
Lactobacillus autóctone. A levedura e os lactobacilos geram
o dióxido de carbono que faz levedar o pão e os lactobacilos
também decompõem os hidratos de carbono de maneira a
produzir ácido láctico.

A R E C E I TA DA LO N G E V I DA D E 45
SARDENHA, ITALIA
46
Franca Piras (à direita), com a ajuda das vizinhas Angela Loi e Marisa Stochino, da filha, Michela Demuro, e
da neta, Nina, prepara culurgiones, um prato tradicional da região de Ogliastra. A massa fresca é moldada
com a forma de bolsas e recheada com batata, queijo pecorino e hortelã.
ANDREA FRAZZETTA
O ácido dá um sabor azedo ao pão, mas, mais importante
ainda, diz Gianni Pes, leva a que os hidratos de carbono en-
trem na corrente sanguínea a um ritmo 25% inferior ao do
pão branco simples.
No momento em que o jantar da família Podda se transforma
numa troca bem-humorada de coscuvilhices de aldeia, Gianni
Pes, animado pelo ambiente de festa, levanta o copo e grita a
saudação habitual da ilha, proferida no dialecto local: “A kent’
annos!” [“Que vivam até aos 100!”]
“E que estejas cá para contar os anos!”, berra a família em res-
posta. Um segundo mais tarde, Assunta repete a frase suavemente.
A verdade é que, desde o dia do nosso jantar, ela entretanto cele-
brou o centésimo aniversário.

OS ADULTOS QUE AQUI VIVEM TÊM


A ESPERANÇA DE VIDA MAIS ALTA
DO CONTINENTE AMERICANO. NICOYA, COSTA RICA
O acesso fácil a fruta como o abacaxi e a papaia, colhidos nos pomares de casa,
permite manter um regime alimentar à base de vegetais durante todo o ano.

Península COSTA
Nicoya RICA

as populações cente-
Q UA N D O G I A N N I P E S C OM E Ç O U A E S T U DA R
nárias, assinalou num mapa as regiões com moradores mais lon-
gevos, marcando-as com pontos azuis. Ao reparar numa grande
profusão desses pontos na província sarda de Nuoro, começou
a referir-se a ela como “zona azul”. Travei conhecimento com o
especialista quando andava a percorrer o mundo em busca dos
pontos quentes da longevidade e adoptei a sua classificação para
zonas semelhantes que descobri: Nicoya (Costa Rica), a ilha grega
de Ikaria, a ilha de Okinawa, no Japão, e uma comunidade de
adventistas do sétimo dia no Sul da Califórnia.
Analisei dados recolhidos sobre os regimes de cada região
e inventariei os seus alimentos ao longo do último século. Até
finais do século XX, esses regimes eram quase exclusivamente
constituídos por géneros alimentares minimamente transfor-
mados de base vegetal. Em média, as pessoas só consumiam
carne cinco vezes por mês. Bebiam essencialmente água,
tisanas de ervas, café e algum vinho. Curiosamente, bebiam
pouco leite de vaca: praticamente desconheciam os refrigeran-
tes. Devido ao aumento da globalização, os alimentos transfor-
mados, os produtos de origem animal e a comida rápida estão a
suplantar os regimes tradicionais. Não é de admirar, portanto,
que as doenças crónicas estejam a aumentar nas zonas azuis.
Um regime alimentar saudável é apenas um dos factores que
promovem a longevidade, mas há factores culturais importan-
tes, como um círculo de amigos duradouros, motivações para
viver, um ambiente que promova o dinamismo e rituais diários
que mitiguem o stress.

48 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Encontrei todos os factores na região de Nicoya, na Costa A zona azul
Rica, juntamente com aquele que talvez seja o pequeno-almoço da Costa Rica
mais saudável do mundo. é uma faixa
Todas as manhãs, ao romper do dia, na cidade de Santa Cruz, com cerca de
María Elena Jiménez Rojas e uma dezena de mulheres de Coo- cinquenta
petortilla acendem o fogo em longos fornos de barro e remexem quilómetros de
caldeirões de feijões picantes. María Elena retira, com a ponta extensão que
dos dedos, um pedaço de massa de milho do tamanho de uma corre ao longo
bola de golfe, deixa-a cair sobre papel-manteiga e roda-a com da península
precisão mecânica até a transformar numa forma redonda e es- de Nicoya:
palmada. Coloca-a então num prato de barro quente, chamado não abrange
comal, sobre o qual a massa torra brevemente antes de crescer, os complexos
tornando-se uma panqueca insuflada. Depois desincha e assu- turísticos
me a forma perfeita de uma tortilha. situados
Três mulheres misturam feijão preto com cebolas, pimentos na costa.
vermelhos e ervas. Os feijões cozerão até ficarem perfeitamente
tenros, sendo depois misturados com arroz, pimento salteado,
cebola e alho para criar a versão costa-riquenha do gallo pinto.
Há quase 30 anos, conta María Elena, a cooperativa era apenas
uma loja de tortilhas. Depois, jovens mães dirigiam-se a ela para
lhe pedirem trabalho e ela ajudou dezenas a saírem da pobreza.
Poucos minutos antes das seis horas da manhã, começam a
chegar os primeiros clientes. As empregadas servem gallo pin-
to e tortilhas quentes. Os clientes recheiam as tortilhas com
feijões, cobrem-nas com um molho picante chamado chilero,
e empurram-nas goela abaixo com café simples, saboreando
uma receita propícia à longevidade que reflecte milhares de
anos de génio culinário.
A zona azul da Costa Rica é uma faixa com aproximadamente
50 quilómetros de extensão que corre ao longo da península de
Nicoya: não abrange os complexos turísticos situados na cos-
ta. A região é essencialmente composta por pastagens secas e
florestas. Até há cerca de 50 anos, os habitantes eram, na sua
maioria, agricultores de subsistência ou trabalhadores em fa-
zendas ganadeiras, suplementando o regime alimentar de mi-
lho e feijão com frutos tropicais, produtos hortícolas e, espora-
dicamente, carne de caça e peixe.
O povo choroteca, que habita na região e aprimorou este regi-
me, consome essencialmente os mesmos géneros alimentares
há milénios. Isso talvez ajude a perceber a razão pela qual os
adultos que aqui vivem têm a esperança de vida mais alta das
Américas e os homens com mais de 60 anos apresentem a mais
baixa taxa de mortalidade, fiavelmente medida, dentro do seu
grupo etário em todo o mundo.
As tortilhas de milho talvez contribuam para essa longe-
vidade. São uma excelente fonte de cereais, com hidratos de
carbono complexos, ricos em vitaminas, minerais e fibra.
A cinza de madeira que as mulheres adicionam ao humede-
cerem o milho decompõe a parede celular dos grãos e liberta
niacina que, por sua vez, ajuda a controlar o colesterol. O fei-
jão preto contém os mesmos antioxidantes de base pigmen-
tar que existem nos mirtilos. Também é rico em fibra depu-
radora do cólon. (Continua na pg. 54)

A R E C E I TA DA LO N G E V I DA D E 49
NICOYA, COSTA RICA
50
Paulina Villegas serve um pequeno-almoço rico, típico da região de Nicoya, ao pai de 102 anos,
Pachito, e ao sobrinho Sixto. A refeição é composta por café, ovos, arroz e feijão, além de tortilhas
cozinhadas num forno tradicional a lenha.
NICOLE FRANCO
UMA DIETA O MUNDO NUM PRATO
Os cientistas conceberam o regime depois de analisarem os dados
nutricionais de géneros alimentares e o respectivo impacte ambien-
tal. Neste artigo, esse regime é decomposto por tipo de alimento e

PARA O PLANETA comparado com o consumo nas diversas regiões do mundo.

27% da meta
Conseguiremos alimentar os dez mil
milhões de habitantes do planeta em 2050
e, simultaneamente, proteger o ambiente?
Segundo um grupo de cientistas de 16
países, a resposta pode ser afirmativa.
Delinearam metas para uma alimentação 8%
adequada e produzida de maneira sustentá-
vel para o planeta: o consumo mundial de
alimentos como a fruta e os frutos secos
36%
duplicará e o consumo de carne vermelha e
de açúcar deverá ser reduzido para metade.

Decomposição regional, segundo a EAT-Comissão Lancet

América do Norte Europa e Ásia Central


14%

A mandioca e a batata são produtos


Médio básicos baratos, mas não são
Oriente e suficientes em termos nutritivos.
Norte de
África
Ásia
Austral
Estas fontes valiosas de gordura saudável
Ásia Oriental não são tão consumidas como deveriam
e o Pacífico
ser em todo o mundo.
América Latina África
e Caraíbas Subsaariana

A meta do regime alimentar (13 gramas)


representa apenas um ovo e meio
VEGETAL CONTRA ANIMAL por semana.

Nem todos os alimentos nascem iguais. O regime


alimentar global valoriza os alimentos vegetais e
restringe os produtos de origem animal, que estão
associados a doenças crónicas e envolvem, frequentemen- As regiões do hemisfério ocidental ingerem
te, práticas de produção prejudiciais ao ambiente. maiores quantidades de carne de aves,
consideradas opcionais pelo regime alimentar.
Proteína de Açúcares
base animal saturados
(incluindo 2,6%
lacticínios)
6,6% O regime alimentar valoriza o peixe obtido
de forma sustentável, como fonte concentra-
da de vitaminas, sais minerais e proteína.

17%

Regimes maioritariamente
vegetarianos
90,8%
*O REGIME ALIMENTAR GLOBAL RECOMENDADO BASEIA-SE NUM A carne é nutritiva, mas prejudicial para a saúde se o
CONSUMO DE 2.500 CALORIAS POR DIA. consumo for excessivo. As explorações de gado são
OS FACTORES DE SUSTENTABILIDADE SÃO, ENTRE OUTROS, AS EMISSÕES DE uma das principais fontes de emissões de metano.
GASES COM EFEITO DE ESTUFA, O USO DO SOLO E RECURSOS ENERGÉTICOS.

MANUEL CANALES; ALEXANDER STEGMAIER


FONTES: BRENT LOKEN, EAT; THE EAT-COMISSÃO LANCET
PARA A ALIMENTAÇÃO, A SAÚDE E O PLANETA CONSUMO INSUFICIENTE
As regiões mais próximas das metas, apresentadas
em semicírculos a tracejado, são as que se encontram
mais alinhadas com o consumo diário* recomendado
para esse tipo de alimento.

300
gramas
V E G E TA I S

Com poucas calorias e fornecendo os


macronutrientes essenciais, os legumes são
também uma fonte de alimento barata.

232
CEREAIS INTEGRAIS
Hoje em dia, é cultivado cereal suficiente
para alimentar a população em 2050, mas
grande parte é usada para alimentar gado.

200 F R U TA

No mundo, a população não come fruta em quan-


tidade suficiente. A fruta e os legumes deveriam
compor metade da nossa alimentação diária.

LEGUME S
75 Os feijões e os amendoins contêm
proteína. A soja é altamente
consumida na Ásia Oriental.

V E G E TA I S R I C O S
729% EM AMIDO
50 acima da
meta

FRUTOS SECOS
50

2%

OVO S
268%
41% 13

234% AV E S

29
14%

152% PEIXE
48% 28

250 LACTI-
145% Os lacticínios são uma fonte CÍNIOS
acima da
meta
renovável de proteína, cálcio
e outros nutrientes.

638% CARNE VERMELHA

46% 14

P R OX I M I D A D E D A M E TA C O N S UMO E XC E S S I VO
A magia resulta da combinação entre milho e feijão. O nosso
organismo necessita de nove aminoácidos para fabricar mús-
culo. Produtos de origem animal como a carne, o peixe e os ovos
fornecem esses nove aminoácidos, mas também contêm coles-
terol e gorduras saturadas. Juntos, o feijão e o milho fornecem
os nove aminoácidos sem nenhum dos elementos nocivos.
Há investigadores a pesquisar se esta combinação também
preserva a saúde celular humana. David Rehkopf, especialista
em epidemiologia social da Universidade de Stanford, junta-
mente com o perito costa-riquenho em demografia Luis Rose-
ro-Bixby, descobriram que os habitantes de Nicoya parecem ser
dez anos mais novos em termos biológicos do que cronológicos.
Tomo o pequeno-almoço em Coopetortilla, comendo feijões
enrolados em tortilhas condimentadas com chilero e acom-
panhadas por goles de café. Gotas de suor formam-se na mi-
nha testa e lágrimas correm-me pelo rosto abaixo. “Sente-se
bem?”, pergunta María Elena Rojas, com um olhar preocupado.
“Não se preocupe”, respondo. “São lágrimas de felicidade.”

HABITANTES COM PROBABILIDADE TRÊS


VEZES SUPERIOR À DOS NORTE-AMERI-
CANOS DE ALCANÇAREM OS 100 ANOS. OKINAWA, JAPAO
Carregado de vitaminas, o goya é um dos alimentos pref
por proteger as células e baixar o nível de açúcar no san

preparo-me para
E M O K I N AWA , A M E I O M U N D O D E D I S TÂ N C I A ,
JAPÃO degustar mais um candidato ao pequeno-almoço mais saudável
do mundo no Hotel Okinawa, em Naha, na companhia de Craig
Willcox, outro investigador em busca de pistas nos regimes ali-
mentares para a longevidade.
Em comparação com os EUA, os moradores de Okinawa têm
três vezes mais probabilidade de atingir os 100 anos. As mulhe-
res apresentam uma taxa de cancro da mama cerca de 50% infe-
rior, ambos os sexos são afectados por um terço a um quarto da
Ilhas
Okinawa taxa de doenças cardíacas e os idosos que morrem da demência
de Alzheimer representam uma percentagem de 1/10 a 1/12.
Todas as manhãs, a fundadora do hotel, Yoshiko Shimabuku-
ro, uma mulher de 91 anos baixa e enérgica, e a sua filha Katsue
Watanabe, provadora certificada de vegetais, preparam pratos
vegetarianos a partir de cerca de 50 ingredientes, metade dos
quais só existem em Okinawa. Diante de nós, encontra-se uma
explosão de alimentos coloridos, muitos dos quais ajudaram a
criar aquela que é a população mais idosa do mundo, embora a
saúde das gerações mais novas tenha diminuído.
Craig, antropólogo e gerontologista, salienta que todos os
20 pratos desta refeição (incluindo sopa de tofu, salada de ce-
noura, um feto cozido chamado otani-watar e papaia salteada)

54 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
têm poucas calorias. A comida de Okinawa é densa em valor Um composto
nutricional e tem baixo teor calórico. presente
Juntamente com o seu irmão gémeo, Bradley, e o mentor nas algas foi
de ambos, Makoto Suzuki, Craig tem escrito livros onde do- associado
cumenta quase tudo o que sabemos sobre o regime alimentar a um gene
tradicional desta ilha. Os irmãos chegaram a Okinawa em 1994, que, quando
interessados em estudar a população centenária e associaram- activado, parece
-se a Makoto Suzuki. Durante um quarto de século, este trio dar instruções
documentou o que os habitantes locais comem e investigou as às células para
razões pelas quais essa alimentação os ajuda a evitar doenças. limparem os
Craig aponta um pauzinho na direcção de um prato de goya resíduos e
champuru, um clássico de Okinawa à base de tofu salteado com reduzirem a
fatias verdes-marinhas de goya, ou melão amargo – um ingre- inflamação,
diente decisivo na sua confecção. O goya é rico em vitaminas factores que
A e C, folato e potentes compostos antioxidantes que ajudam a estão na origem
proteger as nossas células contra lesões, diz Craig. É anticance- da maior parte
rígeno, protege as membranas do fígado e das células, ataca os das doenças
radicais livres, inibe bactérias como a E. coli, e tem a capacidade relacionadas
de baixar o açúcar no sangue. com a idade.
Craig prova o tofu. Peça proteica central da alimentação diá-
ria de Okinawa, substitui muitas vezes outras proteínas menos
saudáveis, como a carne ou os ovos. Tradicionalmente pro-
duzido com água do mar, o tofu de Okinawa é rico em cálcio,
magnésio, zinco e outros sais minerais inexistentes no regime
alimentar da maioria dos norte-americanos. Também possui
um teor elevado de genisteína e daidzeína, que se metabolizam
em equol. A genisteína e o equol são isoflavonas que, segundo
as notas de Craig Willcox, estão associadas à redução do risco de
cancro e de doença cardiovascular.
Craig pega numa chávena de porcelana que contém uma bebi-
da garrida. “Chá de curcuma”, informa. A substância activa pre-
sente na curcuma pode ajudar o organismo a proteger-se contra
doenças, incluindo o cancro, a doença cardíaca e a demência.
Os ilhéus adoptaram o truque japonês de utilizar sabores fortes
como a curcuma para reforçar o sabor dos legumes saudáveis.
A maioria das receitas utiliza daxi, um caldo rico, habitual-
mente preparado com pedaços de serrajão seco ou laminárias.
O daxi consegue transformar uma pilha de legumes numa ex-
plosão deliciosa, dando origem a um prato com menos calorias
que um hambúrguer, mas com cinco vezes mais nutrientes.
Enquanto encho o meu prato com mais iguarias, Craig opta
por uma massa glutinosa de algas que se parece com esparguete
verde. Os ilhéus consomem mais de uma dezena de variedades
de algas, aos quais ele chama “legumes do mar”. Esta alga, cha-
mada mozuku, contém uma enorme quantidade de fucoidano,
um composto anticancerígeno e antiviral que, segundo Craig
Willcox, poderá ser capaz de reduzir a inflamação, controlar o
nível de açúcar no sangue e criar vasos sanguíneos.
Ainda mais misterioso, outro componente das algas, chama-
do astaxantina, foi associado a um gene que, quando activado,
parece dar instruções às células para limparem os resíduos e
reduzirem a inflamação, factores que estão na origem da maior
parte das doenças relacionadas com a idade.

A R E C E I TA DA LO N G E V I DA D E 55
LOMA LINDA, CALIFORNIA
56
Krystal Gheen e o filho de 3 anos, Austin, apanham beterrabas na horta para o jantar, refeição que ela planeia em
função do que está maduro. À semelhança de muitos moradores desta cidade no interior do Sul da Califórnia, os
membros da família Gheen são adventistas do sétimo dia e seguem um regime alimentar inspirado pela Bíblia.
NICOLE FRANCO
Depois de passar duas horas a aprender e a comer, contem-
plo o mar de pratos vazios. “Sinto-me um perfeito glutão”, digo.
“Não se sinta culpado”, responde Craig. A nossa refeição con-
tinha menos de seiscentas calorias, aproximadamente as mes-
mas de uma bolacha grande.

OS ADVENTISTAS COM UMA ALIMEN-


TAÇÃO VEGETARIANA TENDEM A VIVER
MAIS TEMPO DO QUE AQUELES QUE INGE-
REM CARNE.
LOMA LINDA, CALIFORNIA
A alimentação à base de vegetais dos adventistas fundamenta-se em passagens
da Bíblia e reflecte as recomendações contemporâneas relativas aos regimes alimentares.
Ca
lif
ór

da minha viagem é Loma Linda, na Califórnia,


A Ú LT I M A E S C A L A
ni

onde uma comunidade de adventistas do sétimo dia há muito


a

Loma
Linda segue uma alimentação inspirada na Bíblia. As suas directrizes
têm origem em excertos como Génesis, 1:29: “Deus disse: ‘Também
vos dou todas as ervas com semente que existem à superfície da
terra, assim como todas as árvores de fruto com semente, para
que vos sirvam de alimento’.”
Os adventistas cumpridores deste regime alimentar tendem
a viver mais tempo. Segundo um estudo, a esperança de vida
dos adventistas na Califórnia é 7,3 anos superior nos homens e
4,4 anos nas mulheres, em comparação com os homólogos cali-
fornianos. Ser simultaneamente vegetariano e adventista acres-
centa ainda mais dois anos à esperança de vida.
Quando pedi aos investigadores que estudam este regime
alimentar para me indicarem alguém que o praticasse, man-
daram-me falar com Dorothy Nelson, de 90 anos. Ela dá-me as
boas-vindas e conduz-me à sua cozinha bem iluminada.
Dorothy começa a cozinhar um almoço saboroso. Quando a
cumprimento pelos dotes culinários, ela revela-me o seu segre-
do: “Esta cozinha é temperada com amor.”
Durante o almoço, a minha interlocutora conta a sua vida.
Quando era mais nova, teve uma vida aventureira como enfer-
meira-piloto em missões da igreja. Certa vez, andava com o seu
co-piloto a fazer pequenos voos com várias escalas através do
Árctico quando o motor do avião começou a soluçar e o aparelho
caiu a pique. No último minuto, avistaram uma zona plana num
banco de gelo entre o Canadá e a Gronelândia. Achou que fica-
riam bem “enquanto o bom Deus quiser que eu ande por aqui”,
recorda. Quando aterrou, o avião escorregou, mas ficou direito.
A dupla foi descoberta cinco dias mais tarde. Os membros
da equipa de resgate ofereceram-lhes café quente. “Nunca ti-
nha provado café”, diz. A cafeína e o álcool são desaconselha-
dos aos adventistas.
Enquanto defensora dos hábitos vegetarianos, Dorothy é uma
descendente culinária directa de Ellen G. White, que ajudou a

58 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
fundar aquilo que hoje é a Igreja Adventista do Sétimo Dia, uma “Nunca provei
congregação protestante. Na transição para o século XX, Ellen carne.” Dorothy
White redigiu pela primeira vez as prescrições alimentares que, Nelson, de 90
desde então, orientam esta subcultura de norte-americanos. anos, tem uma
Elogiou o consumo de cereais integrais, fruta, frutos secos e le- tensão arterial
gumes, os quais “nos proporcionam uma força, capacidade de perfeita e uma
resistência e vigor de intelecto que um regime alimentar mais frequência
complexo e mais estimulante não nos dá”. Desaconselhou o uso cardíaca em
de gordura, especiarias e sal e o uso de açúcar, que “causa fer- repouso de 60.
mentação, obnubila o cérebro e torna o temperamento irritadi- Caminha cinco
ço”. As recomendações parecem admiravelmente prescientes, quilómetros
reflectindo as directrizes da Sociedade Americana para o Can- por dia.
cro e da Associação Americana do Coração.
A maioria das novidades sobre o regime alimentar dos adven-
tistas são-nos dadas por Gary Fraser, adventista e investigador.
Com formação médica, apercebeu-se de que os adventistas
tinham corações mais saudáveis do que os não-adventistas e
começou a interrogar-se se a ciência poderia validar os atribu-
tos saudáveis da sua alimentação. Dirige agora a organização
Adventist Health Studies, responsável pela monitorização da
saúde de dezenas de milhares de adventistas norte-americanos.
Segundo a sua investigação, os adventistas vegetarianos têm
cerca de 12% menos probabilidade de morrer do que não-vegeta-
rianos que só consomem pequenas porções de carne. Por outro
lado, entre os adventistas mais jovens, os que comem mais carne
apresentam uma taxa 46% mais elevada de morte prematura do
que aqueles que obtêm a sua proteína ingerindo frutos secos, se-
mentes e leguminosas. “Não há dúvidas de que a alimentação à
base de vegetais é o caminho a seguir”, afirma Gary Fraser.
Quando cheiro os cozinhados de Dorothy Nelson, sinto-me
inclinado a concordar. Depois de combinar feijão preto com
couve e couve-flor cozidas ao vapor, ela acrescenta fatias de tofu
tostado, sementes de sésamo e borrifos de molho de soja. Eis
uma mistura de hidratos de carbono complexos, proteínas, vi-
taminas, sais minerais e antioxidantes, com menos calorias do
que um pacote de batatas fritas. Dorothy conta que a sua tensão
arterial é perfeita e que a frequência cardíaca em repouso é 60.
Caminha cinco quilómetros por dia.
Tudo indica que a maior parte das calorias ingeridas na ali-
mentação tradicional das zonas azuis provém de alimentos
integrais de base vegetal. Cereais, hortaliça, frutos secos e legu-
minosas são os quatro pilares de todos os regimes alimentares
de longevidade da Terra. Quase metade das pessoas que morre-
rem este ano nos EUA serão provavelmente vítimas de doenças
cardiovasculares, cancro ou diabetes. Nas zonas azuis, há me-
nos vítimas destas doenças porque, durante a maior parte das
suas vidas, limitaram-se a comer aquilo que estava disponível
e, felizmente para elas, foi uma alimentação à base de vegetais
e produtos integrais. O método da tentativa e erro criou receitas
que tornam estes alimentos deliciosos e nutritivos. Talvez seja
esse o segredo para sermos mais saudáveis. Se quiser uma boa
receita para começar, conheço uma centenária bem-disposta
que faz uma sopa de legumes do arco-da-velha! j

A R E C E I TA DA LO N G E V I DA D E 59
JA N E I RO 2 0 2 0

ESPECIAL SAUDE
E BEM-ESTAR

T E X TO D E FRAN SMITH
F OTO G R A F I A S D E A N D Y R I C H T E R

A PROCURA DE CALMA
A prática ancestral do ioga é um antídoto
para o stress da vida contemporânea.
PÁ G I N A S A N T E R I O R E S
O Ioga on the Rocks atrai
multidões de 2.100
praticantes, esgotando os
eventos que organiza no
Red Rocks Amphitheatre,
nos arredores de Denver.
Nos EUA, o ioga é uma
maneira cada vez mais
popular de reduzir o stress
e de melhorar a saúde.

À ESQUERDA
No Ocidente, o ioga
centra-se frequentemente
nos asanas, ou posturas,
do hatha ioga, um dos seus
múltiplos ramos. Na Índia,
onde a disciplina nasceu
há mais de quatro mil anos,
os seguidores de Krishna
praticam o ioga bhakti,
ou devocional, deslocando
108 pedras ao longo do
comprimento do seu
corpo em prostrações
repetidas num circuito
de 21 quilómetros no
monte Govardhan.
Seguidores do falecido
Ioguis Bhajan, um líder
espiritual que trouxe o
kundalini ioga da Índia
para o Ocidente, cantam
e caminham de olhos
fechados numa
comemoração anual
do solstício de Verão nas
montanhas Jemez, junto a
Española, no Novo México.
LENI DERKEé juíza e tem uma figura imponente,

E
envolta na sua toga preta e sentada atrás do pódio
do tribunal da comarca de Jacksonville, na Florida
(EUA). Das cadeiras do júri e das mesas dos advo-
gados, não é possível ver o que traz vestido: são
calças de ioga com um padrão vistoso.
Há mais de 25 anos, Eleni Derke descobriu o
ioga. Sofria com dores abdominais lancinantes
provocadas pela doença de Crohn. O seu médi-
co recomendou-lhe uma intervenção cirúrgica.
Na esperança de evitá-la, falou com um primo,
mestre de ioga, que lhe ensinou as posturas de pernas para o
ar conhecidas como invertidas. Supostamente, eliminam as
toxinas do organismo, embora não existam provas científicas
que sustentem esta afirmação. Os sintomas da juíza diminuí-
ram rapidamente. “O ioga salvou-me a vida.”
Formou-se como instrutora de ioga e dá aulas gratuitas no
relvado do tribunal. Quando os advogados começam a diva-
gar em tribunal, ela interrompe a sessão e orienta os jurados
em alongamentos e exercícios respiratórios. No entanto, ela é
mais conhecida nos círculos judiciais como a juíza que con-
dena os infractores a praticarem ioga atrás das grades.
Eleni Derke julga pequenos delitos, como furto, posse de
droga em quantidades reduzidas e condução sob o efeito de
álcool ou drogas, puníveis com penas até um ano de prisão.
Os delinquentes podem reduzir a sua sentença em 40%, ou
mais, se frequentarem um programa semanal chamado Ioga Numa prisão estadual
4 Change. Na opinião de Eleni Derke, o ioga é uma forma de nos arredores de
San Diego, Patrick
acalmar a mente e reprimir a raiva, o medo, a angústia e as Acuña repousa em
compulsões que desencadeiam maus comportamentos. Savasana, uma postura
“Quando nos descontraímos, começamos a arranjar es- de relaxamento
profundo, com Zeus,
paço para as coisas positivas”, diz. Os seus colegas, porém, um cão-guia que está
mostraram uma certa hesitação no início. “A sério? Ioga?” a treinar, durante uma
Aliás, muitos delinquentes tiveram uma reacção semelhan- aula patrocinada pela
organização sem fins
te. “Achei aquilo muito estranho”, disse Cecil Reddick, um re- lucrativos Prison Ioga
cluso do Centro de Correcção Montgomery, em Jacksonville. Project. Patrick faz
Após avaliação do programa em três instalações de Jack- ioga atrás das grades
há mais de vinte anos.
sonville, concluiu-se que, passadas seis semanas, os partici-
pantes mostravam melhorias significativas na qualidade do
sono, da saúde em geral e na capacidade de gerir a raiva e a
ansiedade. Agora, há pelo menos mais dois juízes da comarca
a proporem o ioga como opção.
Cecil Reddick aceitou a oferta de um dos colegas de Derke
com o intuito de sair mais depressa da prisão. Ficou admirado
ao perceber até que ponto as aulas o descontraíam, aliviando-

66 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
-lhe as dores nas costas e despertando uma sensa- capacidade de pressão, como as empresas farma-
ção nunca antes experimentada: “A serenidade.” cêuticas, para financiar a sua investigação.
O instrutor de ioga Bir Singh Khalsa, neuro-
nascida na
O I O G A , U M A P R ÁT I C A E S P I R I T U A L cientista de Harvard, reconhece que a investi-
Índia, expandiu muito o seu alcance. Nos Estados gação ainda tem um longo caminho a percorrer.
Unidos, é considerado uma modalidade de exercí- “Eu diria que demonstrámos a nossa credibili-
cio, um caminho para a transformação ou o conhe- dade”, diz. Singh Khalsa investiga os efeitos do
cimento e um tratamento para muitos dos males ioga na insónia, perturbação de stress pós-trau-
que nos atormentam: desde a dependência às dores mático, ansiedade e stress crónico, tendo sido
de cabeça, da perda de audição à perturbação de neste último que constatou provas mais convin-
stress pós-traumático, passando pela doença car- centes dos benefícios do ioga.
díaca e pela doença de Crohn. O stress desempenha um papel importante
É difícil validar os méritos do ioga na área da em várias doenças que nos matam. Também nos
saúde. A maioria dos estudos envolve demasia- leva a comer mal, dormir mal, consumir álcool e
dos participantes para serem conclusivos, em drogas, entre outros maus hábitos. “A medicina
grande parte porque o ioga não costuma atrair moderna é um desastre na prevenção de doenças
subsídios estatais significativos nem dispõe de crónicas”, afirmou. (Continua na pg. 72)

IOGA 67
Sri Dharma Mittra
pratica asanas com
aspirantes a professores
no seu estúdio em Nova
Iorque. Nascido no
Brasil, prestou serviço
militar na força aérea
do seu país e teve um
ginásio de culturismo
antes de emigrar e
estudar ioga nos EUA há
mais de cinquenta anos.
Concebeu a sua própria
abordagem ao ioga.
EM SENTIDO
H O R Á R I O, A PA RT I R
D O T O P O, À E S Q U E R D A
Uma mulher repousa em O ashtanga ioga valoriza
Savasana, num estúdio uma sequência vigorosa
de Pequim da cadeia de posturas. Esta aula na
Yogi Yoga. O ioga Índia foi dada por
demorou tempo a Saraswathi Jois, que
implantar-se na China, aprendeu com o seu pai.
pois a sua vertente Ela foi a primeira mulher
espiritual era temida, em Mysore a ensinar
mas agora está a homens e mulheres no
ganhar popularidade. mesmo espaço.

Ashley Craven (em Bob Gregory, que sofre


primeiro plano) e Carla de paralisia cerebral,
Torres numa aula com com a ajuda de Paris
componentes pré-natal Kaye, faz um movimen-
e pós-parto no Centro to numa aula de ioga
Médico Naval de San adaptado para adultos
Diego para mulheres com deficiência, num
militares, ou casadas centro de reabilitação
com militares. no Minnesota.
Singh Khalsa começou a praticar kundalini Cientistas dos Institutos Nacionais de Saúde
ioga em 1971. Contou-me com entusiasmo que dos EUA descobriram que os praticantes dura-
a epigenética e a imagiologia neurológica estão douros de ioga não mostram os habituais de-
a revelar as formas como o corpo e o cérebro in- clínios de matéria cinzenta relacionados com a
teragem e a desvendar os mistérios do poder do idade. Os instrutores também exibiram maiores
ioga. Por outras palavras, os benefícios não estão volumes em várias regiões do cérebro, incluin-
apenas na mente do devoto. do o hipocampo (essencial para a memória e a
Na Noruega, os investigadores analisaram san- regulação das emoções) e do precuneus e do cór-
gue de dez voluntários antes e depois de sessões tex cingulado posterior, envolvido na atenção e
de duas horas de uma aula de ioga com respira- autoconsciência.
ção ritmada, documentando um aumento signi- Estudos como estes conferem legitimidade
ficativo na actividade dos genes nas células imu- científica, mas não explicam a razão pela qual
nes circulantes. Cientistas da UCLA que estudam esta disciplina ancestral cativou uma sociedade
sobreviventes de cancro da mama descobriram cansada e acelerada. “O ioga é, essencialmente,
que o ioga diminuía a expressão dos genes rela- uma estratégia para tornar as pessoas felizes e
cionados com a inflamação, que se pensa estar na capazes de lidar com a vida contemporânea”,
origem de muitas doenças complexas. diz Singh Khalsa.

72 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Não sou a única pessoa com dificuldades em
conciliar a prática do ioga com o potencial de uma
modalidade desportiva. “Disseram-me que a mi-
nha playlist não era suficientemente apelativa”,
disse-me a professora Olivia Mead. “Já não aturo
isso. Não me tornei instrutora de ioga para usar
calções giros. Queria mesmo fazer a diferença.”
Olivia fundou a organização Ioga for First Res-
ponders. A organização sem fins lucrativos levou
o ioga a esquadras de polícia, quartéis de bom-
beiros e ginásios. As aulas combinam elementos
tradicionais do ioga (posturas físicas, regulação da
respiração, relaxamento profundo e meditação) de
forma a ajudar os praticantes a enfrentar os desa-
fios, mantendo as respectivas vidas sob controlo.
“O objectivo passa por dominar a mente e não
por tocar nos dedos dos pés”, diz .

com T-shirts e calças de


D E Z A N OV E MU L H E R E S
reclusas ocuparam as suas posições nos tapetes de
Numa torre sobre o ioga dispostos em ziguezague, formando um U,
sagrado rio Yamuna, em numa sala atravancada do Centro de Correcção
Vrindavan, um homem Montgomery, em Jacksonville. Duas agentes vesti-
medita em Keshi Ghat,
um lugar santo do das com uniformes acompanhavam-me. Uma delas,
hinduísmo. Na Índia, o a sargento Rhonda Warren, segurava um iPad e fil-
ioga conserva as suas mava as minhas entrevistas.
origens como uma
forma de harmonia Parecia um sítio improvável para aliviar o stress
entre o corpo e a ou para dominar a mente. Kathryn Thomas, an-
mente. Crê-se que a tiga aviadora da Marinha que fundou a organiza-
prática espiritual e física
ajuda os praticantes a ção sem fins lucrativos Ioga 4 Change, orientou as
superarem o sofrimento mulheres, primeiro em inspirações e expirações
mundano e a profundas e, depois, na sequência fluida de pos-
alcançarem um estado
de libertação. turas conhecida como Saudação ao Sol. Uma sen-
sação de calma tornou-se gradualmente palpável.
A maioria das reclusas não era obrigada a fre-
quentar a aula. Algumas inscreveram-se, como
certo para confes-
TA LV E Z S E JA E S T E O M O M E N T O me disse Melissa Bruce, “basicamente, para terem
sar que o ioga me deixou completamente stressada. algo para fazer”. Muitas queriam uma pausa da
Frequentei uma aula por recomendação de um tensão e do clamor que é viver entre reclusas, uma
fisioterapeuta que conseguiu curar o meu ombro hora para mergulharem dentro de si próprias.
lesionado, depois de outros falharem. Enquanto ele Se nem todas alcançaram o conhecimento ou a
falava, eu ouvia-o diligentemente. No subúrbio transformação, pelo menos uma dezena assumiu
nova-iorquino onde vivo, o ioga abunda em salões que aprendera técnicas úteis para a sobrevivência.
recreativos comunitários, em programas de forma- Ao observar cada uma daquelas mulheres a
ção e em modernas cadeias de ginásios. Comecei alongar, a dobrar-se e a expirar, em suspiros audí-
nestes últimos. As aulas estavam cheias. As pessoas veis e desprovidos de vergonha, ocorreu-me que
acotovelavam-se. Corpos ágeis envoltos em licra eu poderia ter obtido melhores resultados com o
dobravam-se, encaracolavam-se e retorciam-se de ioga se estivesse menos concentrada nos outros e
formas que me desafiavam. Pareceu-me uma arena mais em mim, sem juízos de valor. Quando as mu-
de competição na qual eu não me integrava. Refu- lheres saíram da sala, disse a Rhonda Warren que
giei-me no ioga restaurativo, onde parecia tão capaz gostaria de experimentar o ioga outra vez.
de me esparramar sobre almofadas confortáveis e “Eu sei”, disse, anuindo lentamente com a ca-
tentar não ressonar como os outros. beça. “Eu também.” j

IOGA 73
TEXTO: GONÇALO PEREIRA ROSA

FOTOGRAFIAS: ANTÓNIO LUÍS CAMPOS

ARTE DE ENSINAR MEDICINA


N A FA C U L D A D E D E M E D I C I N A D A U N I V E R S I D A D E D E C O I M B R A , U M A
C O L E C Ç Ã O I N C R Í V E L C O N TA A H I S T Ó R I A D A S A Ú D E P Ú B L I C A N O PA Í S .

“O Sr. Daniel de Mattos, habilíssimo lente de de referência usada no ensino da Medicina. Mais
medicina da Universidade, presenteou o gabinete tarde, quando as autópsias se generalizaram no
de anatomia patológica com uma peça rara, ‘chis- Serviço de Anatomia Patológica (excluindo, natu-
tos hidaticos do pericárdio’ que encontrou num ralmente, as autópsias de Medicina Legal), muitos
caso na sua clínica.” Inserido na primeira edição órgãos com formação irregular foram igualmente
do ano de 1892 do jornal “Diário Ilustrado”, entre encaminhados para a colecção, ordenados com
notícias sobre montarias a lobos e contratações de método e paixão por Renato Trincão, que conferiu
professores primários, este curto texto dá conta de ordem e uniformidade ao acervo, ampliando-o.
um processo em curso na Faculdade de Medicina Estávamos longe da era do consentimento infor-
da Universidade de Coimbra (FMUC). mado e das considerações éticas sobre os direitos
Desde o último quartel do século XIX que dos pacientes. De alguma forma, a colecção “cons-
alguns dos mais prestigiados médicos da região tituiu o ensino primário da medicina criado por
muniam o gabinete de estudos patológicos com um primeiro impulso de doações de cirurgiões
peças anatómicas provenientes dos casos que que enviavam para aqui materiais numa fase em
encontravam na prática médica quotidiana. Quis- que o microscópio ainda não chegara à prática
tos, deformações, tecidos inflamados, manifes- da anatomia patológica”, explica Lina Carvalho,
tações cutâneas extremas ou fetos malformados directora do Serviço de Anatomia Patológica da
durante as diversas fases da gestação foram sendo FMUC. “Aquilo era o ensino. Os estudantes viam
doados à Universidade para enriquecer a colecção as peças e entendiam o quadro sintomatológico.”

Na página anterior,
enormes cálculos
biliares, as populares
pedras no rim, extraí-
das de doentes. Os
métodos de prevenção
e diagnóstico precoce
já não permitem a pro-
gressão tão avançada
da doença. À esquerda,
um escarrador de Bor-
dallo Pinheiro, resquício
do longo combate con-
tra a tuberculose.

C O L E C Ç ÃO D E A N ATO M I A PATO LÓ G I C A 75
Avançando de estante em estante, progredindo
de manifestação de doença em doença, os novos
estudantes de Medicina continuam a cumprir
esse ritual todos os anos. Contactam com velhos
espécimes preservados, familiarizando-se com
sintomas de doenças correntes e de doenças já
extintas em boa parte do hemisfério norte, mas
sobretudo percebendo que estes materiais – por
vezes chocantes – serviram de modelos para mui-
tos médicos que os precederam.
“Ainda servem para os médicos que vão traba-
lhar para a América Latina ou para África e que
precisam de conhecer como se manifesta a lepra,
a sífilis ou a tuberculose. Infelizmente, a colecção
tem utilidade nesse sentido porque essas doenças
ainda existem no planeta”, diz Lina Carvalho. No
início de cada visita ao acervo, a médica costuma
dizer: “Vamos entrar no templo da dignidade
humana. Cada peça foi uma pessoa que já não
está entre nós, mas cujo contributo nos permite
conhecer a medicina da época e prevenir hoje para
que nunca mais se repita.”
Carlos Robalo Cordeiro é director da FMUC
e um defensor entusiasta da valorização deste
espólio, que será integrado até final de 2020
como pólo de Medicina no futuro Museu de
Ciência da Universidade de Coimbra. Como
aluno da Universidade, contactou com muitas
destas peças. “Perguntávamo-nos como fora pos-
sível deixar chegar aqueles tumores a fases tão
avançadas”, lembra. “Na verdade, muitas peças
contam a história da saúde pública em Portugal
e da ausência do acesso a cuidados de saúde.
As pessoas escondiam doenças por vergonha,
por desconhecimento, por superstições culturais.
Não havia acesso a cuidados materno-infantis ou
a cuidados de saúde primários. A saúde pública
era exercida à base do esforço de alguns pionei-
ros, mas não chegava.”
A figura quase grotesca de um feto de oito
meses surpreende-nos num dos mostradores.
A legenda, redigida no final do século XIX, dá
conta da história terrível de uma mãe enforcada
e de um feto assim perdido. Outras legendas
referem-se a monstros ou monstruosidades, tra-
duzindo numa linguagem crua o conhecimento
de uma época. Lina Carvalho relativiza: “Muita
linguagem que ainda usamos provém dessa
época. Outra foi actualizada. Talvez os ‘mons-
tros’ reflictam uma realidade que assustava,
mas que hoje, com o conhecimento da genética,
percebemos e identificamos os motivos para a
sua ocorrência.”
“Vamos entrar no templo da dignidade humana.
Cada peça foi uma pessoa que já não está entre
nós, mas cujo contributo nos permite conhecer
a medicina da época.”

Sem cuidados de saúde materno-infantis, muitas mães prolongavam a


gestação em situações extremas. Carinhosamente preservada, esta
colecção é também o espelho do que foi a saúde pública no país.

M U S E U D E A N ATO M I A PATO LÓ G I C A 77
Esta colecção pode assustar alguns, mas ela Lina Carvalho segura um coração desidratado e prepa-
rado por técnicos após uma autópsia. “Estas peças
celebra a história do combate à doença em Por-
falam”, diz a directora do Serviço de Anatomia Patológi-
tugal e comprova que hoje já não se pode chegar ca. À direita, Rosa Gouveia na Sala de Autópsias do
àqueles pontos. Com os meios complementares Serviço, junta os fios do passado com a investigação
de ponta que hoje tem lugar neste Serviço.
de diagnóstico e terapêuticas – as análises, a
radiologia, a radioterapia – progredimos muito
na prevenção e no diagnóstico precoce.”
Talvez a lição mais exemplar preservada nesta “Isso diz bem de como a sociedade entendia essa
colecção provenha de um conjunto de artefactos praga e o risco que esses doentes acarretavam
preservados por Salvador Massano Cardoso e para os outros. Só compreendemos os méritos
outros pioneiros da prática da medicina em Coim- do presente aceitando que foi daí que viemos – é
bra. Como homem de saúde pública e de epide- fundamental não perder a identidade e a memó-
miologia, este médico dedicou-se à conservação ria na Medicina, sobretudo nesta Universidade,
de outro tipo de materiais – cartazes públicos, onde só as Humanidades, a Teologia e o Direito
letreiros pedagógicos, instrumentos médicos e… têm um passado tão longevo.” Um curioso levan-
escarradores. Alguns, executados por Rafael Bor- tamento de Rosa Gouveia, curadora da Colecção
dallo Pinheiro, são absolutamente notáveis para de Estudos Patológicos, foi agora publicado, com
lá da repugnância inicial que a sua função poderá todos os exemplares de escarradores conheci-
desencadear. “Parecem objectos muito longín- dos no acervo. Página atrás de página, ali figura
quos no tempo, mas, em 1986, no meu internato a história do combate à doença mais terrível dos
de pneumologia, ainda havia escarradores ao lado séculos XIX e XX.
da cama dos doentes”, diz Carlos Robalo Cordeiro. As doenças infecciosas produzem estigmas.
“Era assim que se fazia a recolha das secrecções.” Sempre foi assim desde os surtos medievais de
A pneumologia é a única especialidade médica peste. Parte do acervo da Colecção de Estudos
que não vem da medicina interna. “Provém da Patológicos é constituída por obras de arte –
tisiologia, do estudo dos tísicos, dos tubercu- representações em cera, da elegante casa fran-
losos”, diz este especialista em pneumologia. cesa de Monsieur Vasseur, que representam

78 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
sintomas de doenças mais ou menos comuns. desta colecção é um dos tijolos num projecto mais
Tinham a função de um livro de anatomia a três ambicioso de criação de um grande museu da Uni-
dimensões, mostrando manifestações cutâneas, versidade, com múltiplos pólos especializados.
abcessos e outros sintomas. “Doenças como a “Praticava-se Medicina em Coimbra antes da fun-
febre tifóide, a tuberculose ou a lepra eram for- dação da Universidade e antes até da fundação do
temente estigmatizadas porque eram infecciosas país”, lembra. “Temos uma obrigação histórica de
e não existia terapêutica para elas. Acarretavam respeitar o legado contido entre estas velhas pare-
uma sentença de morte para os doentes que, des”, diz. Classificada como Património Mundial
ainda por cima, eram considerados a partir de pela UNESCO, a Universidade comprometeu-se a
então um manancial de infecção para a comu- preservar a dupla e rara condição que a torna única.
nidade”, diz Lina Carvalho. Aquelas doenças É um museu, mas é também um espaço vivo, onde
ficaram para trás, mas os estigmas persistem. se ensina e onde se investiga. “Temos de conviver
“Será assim tão diferente do modo como a socie- com essa dupla valência, preservando a memória
dade viu os doentes de Sida quando a doença da Universidade e respeitando o que a torna única.
foi identificada, mas ainda não existia qualquer Até final de 2020, queremos ter aberto o pólo de
terapêutica válida?” Medicina do Museu de Ciência. Outros se seguirão.”
No antigo Paço Real de Coimbra, a Reitoria Os edifícios mais antigos da Universidade, como
produz no visitante o respeito que só as velhas a Biblioteca Joanina e o Paço das Escolas, são visi-
paredes, repletas de história, conseguem incutir. tados por mais turistas do que nunca. Em mui-
Amílcar Falcão é desde Março de 2019 o reitor tos dias, ambos superam a capacidade de carga,
e, por coincidência, é professor catedrático de prejudicando a experiência e colocando em risco
Farmácia. Poucos poderiam assimilar com tanto o futuro dessas jóias históricas. Parte do impulso
conhecimento de causa a importância da preser- para o Museu da Ciência resulta da necessidade
vação da maior colecção da Europa de peças de de diversificar os fluxos para outros espaços.
anatomia patológica em volume e diversidade. “Lembre-se que temos uma longa história para
A Universidade prepara-se para comemorar, a par- contar. Quase todos os colégios de Coimbra têm
tir de Março, o 730.º aniversário e a requalificação um património incrível”, diz o reitor. j

C O L E C Ç ÃO D E A N ATO M I A PATO LÓ G I C A 79
80 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Verdadeiras obras de arte, as peças de cera encomendadas numa casa francesa
ajudavam (e ainda ajudam) os estudantes de Medicina a identificar os sintomas
de doenças, algumas já extintas em Portugal, outras que ainda persistem.

C O L E C Ç ÃO D E A N ATO M I A PATO LÓ G I C A 81
T E X T O D E P E T E R S C H WA R T Z S T E I N
F O T O G R A F I A S D E A R KO DAT TO

Uma grande floresta


encolhe e vidas são
levadas pela água
A S U B I DA D O N Í V E L DA S ÁG U A S E O A B AT E I L E G A L
E S TÃO A M ATA R A S Á RVO R E S Q U E P R OT E G E M A O R L A
COSTEIRA ENTRE A ÍNDIA E O BANGLADESH.

82 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
O RECUO DOS SUNDARBANS 83
Quando o cadáver de
um amigo há muito
falecido foi deixado
pelas águas à sua
porta, Bulu Haldar
percebeu que a sua
casa iria desaparecer.
Há várias semanas que o dique de protecção da
aldeia de East Dhangmari, no distrito de Khulna,
no Sudoeste do Bangladesh, ameaçava ser engo-
lido pelas águas do rio Pusur. Primeiro, uma tem-
pestade violenta arrancara a camada externa de
betão. Depois, em finais de 2017, o rio começara
a devorar a terra porosa do próprio aterro. Os ha-
bitantes locais correram a reforçá-lo com sacos
de areia, mas só conseguiram umas tréguas de
poucos dias. Quando, por fim, o rio galgou o di-
que e irrompeu pelo cemitério vizinho do jardim
de Haldar, desenterrando cadáveres e poluindo
os aquíferos da aldeia, a sua cabana, com apenas
uma divisão, foi inundada por águas castanhas
lamacentas até à altura da cintura. “Sentimo-nos
impotentes, como se fôssemos crianças”, disse.
Bulu é uma viúva meticulosamente vestida,
com cerca de 50 anos. No passado, tivera in-
dícios do que iria suceder. Observara a forma
como a vizinha Sundarbans, uma vasta floresta
de mangues ao lado da sua aldeia, tinha vindo a
regredir: as árvores pareciam cada vez mais re-
cuadas. Reparara na maneira como a água pare-
cia alimentar-se da fraqueza da floresta. A única
surpresa, sublinhou, foi o facto de os diques da
aldeia terem aguentado tanto tempo. “As árvo-
res defenderam-nos, mas nós tratámo-las muito
mal”, afirmou. “Por isso, agora estamos a sofrer
as consequências.”

84 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
A ilha de Ghoramara, na
extremidade ocidental da
floresta de mangues de
Sundarbans, perdeu os
mangues protectores
devido ao abate de
árvores e à subida do nível
do mar, estando a ser
rapidamente destruída
pela erosão. Nitya Gopal
perdeu a sua casa.

PÁ G I N A S A N T E R I O R E S

Surtos de marés isolam


agora partes da ilha de
Sagar, a sul da ilha de
Ghoramara, no rio Hugli.

O RECUO DOS SUNDARBANS 85


NO BANGLADESH e no vizinho estado indiano de “A linha da frente da salinidade não pára de
Bengala Ocidental, há milhares de aldeias como avançar, subindo constantemente”, afirmou Mash-
East Dhangmari, lugares que estão a perder as suas fiqus Salehin, professor no Instituto de Gestão dos
defesas naturais contra as alterações climáticas, no Recursos Hídricos e das Cheias da Universidade
preciso momento em que estas se intensificam. de Engenharia e Tecnologia do Bangladesh. “A sa-
A terra apresenta-se lisa como papel, sendo atra- linização avançará para novas áreas e as áreas mo-
vessada em todas as direcções por rios de caudal deradamente salinizadas poderão tornar-se ina-
aumentado pelas águas do degelo provenientes bitáveis. A salinidade está a transformar-se num
dos Himalaia. Os ciclones rugem ao largo do golfo grande problema.” No cenário mais pessimista,
de Bengala, por vezes ceifando milhares de vidas. no qual o nível da água do mar subirá cerca de 1,8
As cheias são omnipresentes. metros durante o século XXI, o Bangladesh corre o
Alguns agricultores do Bangladesh referem-se risco de perder mais de 2.000 quilómetros quadra-
à sua pátria como uma partida pregada pelos deu- dos de mangues em Sundarbans. No cenário mais
ses: o solo é incrivelmente fértil, mas os habitantes optimista, essa perda cifrar-se-á em cerca de 200
correm o perigo permanente de serem arrastados quilómetros quadrados. Os cientistas temem que
pelas águas. Em 1998, uma cheia particularmente até este valor venha a revelar-se catastrófico para
monstruosa inundou cerca de 70% do país. um país tão pobre, onde a floresta se encontra sob
As comunidades costeiras da região pensavam pressão pelas necessidades humanas.
que podiam confiar em Sundarbans, a maior flo- A própria terra está a desaparecer. Sem as
resta contínua de mangues do mundo. Abran- raízes entrelaçadas dos mangues a estabilizar o
gendo uma área superior a 10.000 quilómetros solo, a erosão arrasta a terra para o mar e, com as
quadrados de ambos os lados da fronteira da Ín- barragens a montante a reterem os sedimentos
dia com o Bangladesh, este pântano denso, cons- fluviais, esta já não é reposta como antigamente.
tituído por árvores resistentes às cheias, ergue-se As ilhas localizadas no rio Hugli, na Índia, no
como uma muralha verde, absorvendo as inun- estuário do Ganges, na fronteira ocidental da re-
dações causadas pelas tempestades e amortecen- gião de Sundarbans, são exemplos de fases adian-
do até os mais violentos ciclones. Para os aldeãos, tadas de degradação. Pelo menos três ilhas que há
a floresta é também uma fonte abundante de mel um século se encontravam cobertas por mangues
e há peixe nas suas águas. “Sundarbans é a nossa (Lohachahara, Suparibhanga e Bedford) desapa-
mãe”, disse Joydev Sardar, secretário da associa- receram. Noutras, a erosão progride velozmente:
ção de pescadores em Harinagar, no Bangladesh. a ilha de Sagar perdeu cerca de 50 quilómetros
“Ela dá-nos protecção, alimento e emprego.” quadrados desde meados do século XX, apesar
No entanto, após anos de maus-tratos infligi- de a sua população ter crescido explosivamente
dos pelo homem e pela natureza, os mangues devido aos habitantes recém-chegados de ilhas
parecem ter atingido o limite. A extracção ilegal vizinhas, entretanto desaparecidas. As culturas
de madeira, usada sobretudo para construir re- agrícolas em Sagar degradaram-se de tal maneira
sidências para a população local (cada vez mais que os seus moradores sobrevivem essencialmen-
numerosa) reduziu a zona periférica da floresta. te graças a trabalhos sazonais noutros locais.
Ao mesmo tempo, os níveis crescentes de salini- Em determinadas zonas da floresta de Sun-
dade da água estão a exterminar muitas espécies darbans, o mar avança muitos metros por ano.
de árvores de maior valor, com capacidade para “As comunidades que vivem em redor de Sundar-
travar as tempestades, como a sundari, que dá o bans vão perder muito”, afirmou Tuhin Ghosh,
nome à floresta. O aumento da salinidade pro- professor associado na Universidade de Jada-
vém tanto de terra como do mar: as barragens vpur, em Calcutá. “Tudo isto está a acontecer
localizadas a montante, nos rios que correm agora.” No entanto, até cidades como Calcutá e
vindos da Índia, têm reduzido o caudal de água Dacca, situadas a alguma distância dos mangues
doce que aflui à floresta de Sundarbans, enquan- em decadência, ficarão “extremamente expostas
to a subida do nível do mar provocada pelas al- a ciclones e surtos de tempestade”, acrescentou.
terações climáticas vai introduzindo cada vez
mais água do mar nos mangues. E M F E V E R E I R O D E 2 0 1 8 , parte do aterro que trava o
rio Chunar a oeste de East Dhangmari, no Bangla-
Esta reportagem foi financiada pela rede desh, desmoronou-se pela terceira vez no mesmo
Internews’ Earth Journalism. ano. Dezasseis casas foram arrastadas por aquilo

86 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Khulna

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Rampal

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Calcutá
East

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Dhangmari

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Ilha
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Ghoramara
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Bidyadh

Floresta
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Sagar
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Protecção perdida
A floresta de Sundarbans estende-se por mais de dez
Nova Deli
mil quilómetros quadrados da Índia e do Bangladesh, ÍNDIA
Dacca
ao longo da orla costeira do golfo de Bengala. É a ÁREA EM
maior floresta contínua de mangues do mundo e é o DESTAQUE
habitat de uma grande diversidade de espécies. Para BANGLADESH
7,5 milhões de pessoas que vivem na região, a floresta
é uma barreira natural contra as marés e os ciclones.
À medida que se abatem árvores e a subida do nível
dos mares traz mais salinidade, a floresta e o próprio
solo estão a diminuir. Mais de um milhão de antigos
moradores da orla costeira já migraram para norte.

que, para os habitantes locais, se transformou Na Primavera de 2018, uma doença que prolife-
numa tragédia quase rotineira. À medida que o rara em parte da região meridional do Bangladesh
catálogo de infortúnios foi aumentando, ao longo abateu-se sobre o país. A cólera, que prospera nas
dos meses seguintes, os moradores mais antigos e temperaturas cada vez mais altas e nas águas cada
judiciosos perceberam que não eram crises nor- vez mais salobras de Sundarbans, regressou em
mais. Em 2018, as colheitas de arroz durante a força. Aquando da minha visita, o médico local
safra da estação seca desceram acentuadamente encontrava-se assoberbado de trabalho.
– muitas vezes para menos de uma tonelada por “Quase todos os meus doentes se encontram
hectare, o que fez disparar o preço dos alimentos. aqui devido a doenças relacionadas com a água”,
Em muitos terrenos, os legumes não chegaram a afirmou Shivapada Mondol. “As circunstâncias
crescer devido à salinidade dos solos. “Com os pre- estão a tornar-se perigosas.” Deitado numa maca,
juízos causados pela água, por vezes até parece que fora do consultório, um velho esquelético regurgi-
só há trabalho para os carpinteiros”, afirmou o tava ruidosamente, enquanto a filha tentava que
agricultor Bimol Sardar. ele ingerisse mais líquidos.

CLARE TRAINOR. FONTE: NASA O RECUO DOS SUNDARBANS 87


Trabalhadores à
jorna reparam os
aterros contra cheias
construídos ao longo
das margens da ilha
de Sagar. Embora
os ciclones estejam
a intensificar-se, o
número de mortos vai
diminuindo à medida
que os procedimentos
de combate à catástrofe
e os abrigos melhoram.

88 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
O RECUO DOS SUNDARBANS 89
No topo, à esquerda: peregrinos hindus se
Kishari Mandal leva banham no Ganges.
o gado a pastar na ilha Em baixo, à esquerda:
de Ghoramara, após No Bangladesh,
o fim de uma tempestade. Mohammad Giasuddin
No topo, à direita: Hawladar (à esquerda)
Em Sagar, Bijoy e Sona Bag e Mohammad Shobuj
deixam-se fotografar com Hawladar permanecem
os filhos sobre as ruínas nas margens da
de uma escola destruída minúscula ilha de
pelas marés em 2017. Chalitabunia. Muitos têm
Em baixo, à direita: Um na- fugido da floresta de
dador-salvador patrulha a Sundarbans, cada vez
zona onde multidões de mais propensa a cheias.

Por fim, várias dezenas de famílias abando-


naram as suas casas em Abril, mudando-se para
Dacca, capital do Bangladesh. Segundo o Banco
Mundial, mais de 13 milhões de cidadãos do Ban-
gladesh – incluindo a maioria dos que vivem nas
margens de Sundarbans – poderão migrar devido
a crises associadas ao clima até 2050. A previsão
para Bengala Ocidental é igualmente assustadora.
Apesar dos desafios, algumas pessoas conser-
vam um certo optimismo em relação ao futuro.
De ambos os lados da fronteira, os governos to-
maram medidas duras contra os piores casos de
abate dos mangues e parecem ter aprendido com
as catástrofes do passado. Ao construírem mais
abrigos contra ciclones e posicionarem 150 mil
voluntários antes da chegada de grandes tempes-
tades, as autoridades do Bangladesh reduziram
drasticamente o número de mortos. Mesmo nas
regiões mais pobres de Sundarbans, os aldeãos
deram provas de uma impressionante capacidade
de adaptação. Com a salinidade a crescer, troca-
ram a orizicultura pela aquicultura do camarão.
No entanto, na batalha em prol da preservação
dos mangues, as dificuldades estão a aumentar.
Com apoio financeiro da Índia, Dacca deu luz ver-
de à construção de uma central electroprodutora
alimentada a carvão em Rampal, mesmo ao lado
de Sundarbans: uma decisão que pode abrir cami-
nho a outras indústrias poluentes. A China propôs
a construção de mais barragens na bacia do rio
Bramaputra, pondo potencialmente em perigo o
que resta das fontes de água doce dos mangues.
E o clima continua a alterar-se, trazendo chuvas,
tempestades e oscilações de temperatura.
Com os problemas a aumentarem, alguns habi-
tantes locais interrogam-se: irão as alterações cli-
máticas reinar na terra construída pelos mangues?
“A floresta de Sundarbans construiu este país”,
disse Bulu Haldar. “Talvez Sundarbans (ou a perda
desta região florestada) venha a destruí-lo.” j

90 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
O RECUO DOS SUNDARBANS 91
TEXTO DE ERICK PINEDO

F O T O G R A F I A S D E R I K K Y A Z A R C OYA

FORTALEZA
NATURAL
DEFENDE
AS ARARAS
MILITARES
UMA ENORME DOLINA NO MÉXICO É UM
SA N T UÁ R I O PA RA E S P ÉC I E S A M E AÇ A DA S
P E L A C A Ç A F U R T I VA E P E L A D E S F L O R E S TA Ç Ã O.
PÁ G I N A S A N T E R I O R E S
Devido à fragmentação
de habitat, estas araras
de Sótano del Barro
(conhecidas localmente
como guacamayos
militares) têm de supe-
rar a fadiga imposta por
deslocações cada vez
mais longas em busca
de alimento.

À ESQUERDA
A arara-militar
é uma das mais
procuradas pelos
caçadores furtivos
para venda no mercado
negro de animais
de estimação.
Dos papagaios
traficados do México,
oito em cada dez aves
morrem durante a
viagem até aos
compradores.
FOTOGRAFIA: JOEL SARTORE
JARDIM ZOOLÓGICO DE DENVER, EUA
Em Santa María
de los Cocos, a
comunidade residente
nas imediações da dolina
beneficia das receitas
do ecotorismo que as
araras proporcionam.
Os serviços de guia
e hotelaria para
observadores de
aves geram receitas.
Despojadas dos ninhos
pela desflorestação
e pelo avanço
urbanístico, enxotadas
para não danificarem
culturas agrícolas Com um volume

e capturadas
de 15 milhões de metros
cúbicos, Sótano
del Barro (em cima)
disponibiliza espaço
de nidificação para as
ilegalmente para servirem de aves ornamentais, os araras-militares em
membros da família dos psitacídeos (os papagaios, falésias quase intactas
que delimitam a enorme
os periquitos, as catatuas e as araras) são o grupo de dolina. Financiada
aves mais ameaçado do planeta, com 111 das suas pela National
398 espécies na Lista Vermelha da União Interna- Geographic Society,
uma equipa de
cional para a Conservação da Natureza. investigadores
O tráfico de animais selvagens é a segun- (à direita) prepara-se
da maior causa de perda de biodiversidade e a para explorar o local.
quinta actividade ilegal mais lucrativa do mun-
do, segundo o World Wide Fund for Nature.
O Fórum Económico Mundial calcula que o valor
anual do mercado negro possa ascender a nove
mil milhões de euros. No que diz respeito aos pa-
pagaios traficados do México, oito em cada dez
aves morrem durante a viagem até aos compra-
dores, segundo apreensões efectuadas por auto-
ridades federais. (Continua na pg.104) NO TOPO: ALEJANDRO GUTIÉRREZ

98 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
A R A R A S M I L I TA R E S 99
A equipa recebeu
autorização do governo
mexicano para explorar
este sítio protegido.
O espeleólogo Edmundo
Cortés Zorrilla (na ima-
gem) dirige a descida
ao interior da dolina,
que atinge 455 metros
de profundidade.
Foram recolhidas
penas no fundo e nas
zonas adjacentes à
dolina para realizar
testes de DNA e
determinar os
antepassados das
araras que ali vivem.
Documentadas em 26 dos 32 estados do Méxi- Descendo até 455 metros de profundidade, a
co, as apreensões indiciam uma captura média dolina está delimitada por falésias quase intactas,
anual de cerca de 65 mil aves, um volume insus- com espaço para ninhos em fendas na rocha. As
tentável que ameaça a sobrevivência das 23 espé- araras são monógamas e acasalam para a vida,
cies de papagaios do país. A proibição da sua cap- alimentando-se principalmente de frutos secos.
tura e comercialização implementada em 2008 A expansão urbana e a agricultura fizeram recuar
reduziu o tráfico ilegal em mais de 30%, mas as a floresta nas imediações, obrigando as aves a
aves têm um ritmo de reprodução lento e as po- voarem cada vez mais longe em busca de alimen-
pulações ainda não recuperaram. to. Os seus únicos predadores naturais são os bú-
Uma das espécies mais procuradas pelos caça- teos-de-cauda-vermelha e alguns mamíferos ca-
dores furtivos é a arara-militar, dividida em duas pazes de aceder aos seus ninhos.
linhagens que habitam territórios ao longo do Nos últimos dez anos, o biólogo Juan Carlos
oceano Pacífico e do golfo do México em manchas Orraca, da Organization for Conservation, Study
florestais que outrora atravessavam o país de cos- and Analysis of Nature (OCEAN) tem monitoriza-
ta a costa. Uma população isolada conseguiu so- do as araras da dolina. Entre 70 e 80 aves vivem no
breviver na região central do México, uma forta- interior, um número que se mantém estável des-
leza geológica que a ajudou a resistir aos ataques. de 1998. Para aprender mais sobre esta espécie, a
Em Sierra Gorda, no estado de Queretaro, situa-se National Geographic Society financiou a primeira
Sótano del Barro, uma dolina calcária formada exploração científica abrangente da dolina, lide-
por movimentos tectónicos, explosões vulcânicas
e erosão pela chuva ao longo de séculos. O sítio
A National Geographic Society, uma organização não
recebeu protecção federal em 1997, integrando as- lucrativa que promove a conservação dos recursos da
sim a Reserva da Biosfera de Sierra Gorda. Terra, ajudou a financiar esta expedição.

104 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
eram da linhagem do Pacífico. A população da
dolina descendia da linhagem do golfo e o seu ma-
terial genético ainda não fora conservado no país.
Os estudos também mostraram que estas ara-
ras tinham evoluído de modo a formar uma su-
bespécie singular devido ao isolamento na dolina.
“Uma das hipóteses é esta população ser uma das
que surgiram originalmente no país e as linha-
gens se terem separado em duas (populações cos-
teiras). É por isso que o estudo da história genética
da espécie é essencial para a sua conservação”, diz
Diana Cortés Tenorio. Com a ajuda do arqueólogo
Fabio Esteban Amador, o projecto recebeu uma
licença do governo que permitiu criar o primeiro
mapa 3D da dolina, através de fotogrametria, um
trabalho que dará acesso virtual à dolina à comu-
nidade científica, ajudando-a a estudar as aves.
Com uma população tão escassa, as araras cor-
Estudos genéticos rem riscos de consanguinidade, aumentando a pro-
mostraram que
estas araras tinham babilidade de mortes prematuras e malformações.
evoluído de modo a
formar uma subespécie uma comunidade
E M SA N TA M A R Í A D E LO S C O C O S ,
singular devido ao
seu isolamento na a poucos quilómetros da dolina, os moradores mais
dolina. O risco de velhos lembram-se de deixarem cair pedras no
consanguinidade é enorme buraco, quando eram novos, e verem “cen-
elevado porque
existem apenas cerca tenas e até milhares” de araras voando pelo céu.
de oitenta aves no local. Algumas pessoas também atiravam pedras para
afastar as aves das suas culturas.
Actualmente, a maior parte dos moradores nu-
tre um sentimento de protecção face às araras,
rada pelo fotógrafo e explorador Rikky Azarcoya. considerando-as um símbolo valioso da região e
“Não havia dados sobre esta população que con- reconhecendo o seu potencial para o ecoturismo.
tribuíssem para a sua conservação. Os biólogos Os visitantes podem agora contratar guias comu-
estavam convencidos de que a genética era o úni- nitários formados pela OCEAN para os conduzi-
co método capaz de apurar a razão pela qual esta rem pela floresta antes da alvorada para assistir
população não crescera nos últimos 20 anos”, diz. à largada diária das araras, ao saírem da dolina.
Rikky reuniu uma equipa de cientistas da Uni- Os guias também receberam formação como mo-
versidade Autónoma Nacional do México (UNAM) nitores de conservação. No México, a organização
e membros de uma associação não-governamen- Defenders of Wildlife estima que a observação de
tal chamada Ancient Forest, que promove a con- aves seja 54 vezes mais lucrativa do que o comér-
servação de ecossistemas autóctones. “A intenção cio de animais de estimação.
era descer ao interior da dolina e procurar penas “A conservação é um motor económico ímpar e
e, por isso, fomos obrigados a treinar rappel”, diz. um alívio para a flora e a fauna, desde que andem
“Quatro especialistas em escalada desceram 400 a par das comunidades e os benefícios sejam mú-
metros em hora e meia para chegarem a um mi- tuos. Em Santa María de los Cocos, por exemplo,
croclima repleto de fósseis e vegetação.” esta fonte de rendimento impede a migração dos
As penas recolhidas no fundo e nas zonas adja- jovens para cidades maiores”, diz Rikky Azarcoya.
centes à dolina, juntamente com penas de outras Se se plantassem árvores para restaurar a floresta,
aves de jardins zoológicos de todo o país, foram isso ajudaria as araras, proporcionando mais ali-
submetidas a testes de DNA no laboratório da mento e encurtando a migração diária para se ali-
UNAM. Os resultados provaram que as popula- mentarem. Alguns moradores gostariam de testar
ções do golfo e do Pacífico são geneticamente di- essa solução de longo prazo para ajudarem a res-
ferentes. Todas as amostras dos jardins zoológicos tabelecer o lar dos seus vizinhos tão especiais. j

A R A R A S M I L I TA R E S 105
A análise genética das
penas recolhidas na dolina
foi comparada com as
penas de aves de jardins
zoológicos de todo o país.
Os resultados poderão
ajudar a elaborar um
plano para aumentar a
população através de
reprodução em cativeiro
e posterior reintrodução.
N AT I O N A L G E O G R A P H I C | NA TELEVISÃO

Famosos
em Perigo
com Bear Grylls
E S T R E I A : 1 9 D E J A N E I R O, À S 2 2 H 3 0.
TO D O S O S D O M I N G O S

O aventureiro britânico Bear Grylls regressa ao


Mayday, temporada 19 ecrã com uma nova série, desta vez acompanhado
de celebridades de vários ramos. Esta temporada
E S T R E I A : 9 D E J A N E I R O, À S 2 2 H 1 0 conta com a participação dos actores Brie Larson,
Channing Tatum, Armie Hammer e Zachary
Sempre que um avião se despenha, o mundo sabe. Quinto, da modelo Cara Delevingne e do alpinista
E nessa altura começa mais um desafio para os
Alex Honnold. Nas ilhas Pérola, no golfo do
especialistas cujo trabalho é descobrir o que
aconteceu. A nova temporada de “Mayday” Panamá, e nas montanhas da Noruega, Bear testa
recorre a testemunhas oculares, encenações os limites da sobrevivência em desafios que ape-
cativantes e entrevistas com os investigadores que lam aos instintos mais básicos de resistência
descobrem as causas para os desastres de aviação. à adversidade.

Drenar os Aventura subaquática e ilustração científica


juntam-se na nova temporada de “Drenar os
Oceanos 2 Oceanos”. Na nova temporada, serão explorados
os enigmas subaquáticos do recente resgate
E S T R E I A : 5 D E J A N E I R O, na gruta tailandesa, da Invencível Armada,
ÀS 23H20 do Loch Ness e do Império Romano.

NATIONAL GEOGRAPHIC (EM CIMA E EM BAIXO)


E CINEFLIX 2019 (AO CENTRO)
The Hidden
Kingdom of China
E ST R E I A : 5 D E JA N E I RO, À S 1 7 H

Dos criadores do mais recente filme da Disneyna-


ture, “Born in China” e dos produtores da série
“Wild China” da BBC/CCTV, o Nat Geo Wild exibe
em Janeiro uma série muito especial. As vastas

Africa’s Deadliest paisagens e os animais secretos da China raramente


foram vistos… até agora. A China desperta actual-
TO DA S A S Q U A RTA S - F E I R A S , À S 1 7 H mente para os valores da conservação e exibe a
beleza natural requintada de algumas das suas
O continente africano é o lar de alguns dos paisagens e criaturas remotas. Das montanhas mais
predadores mais eficientes e perigosos do altas às densas selvas e florestas de bambu, esta
mundo. Nada é seguro na água, nas planícies ou
nas árvores. Os predadores mais letais de África
série vai revelar a beleza natural escondida na China.
estão em movimento e têm fome. Para os Todos os domingos, partiremos à descoberta de
predadores africanos, o topo da cadeia um mundo exótico e vibrante, onde tradição e
alimentar é uma batalha diária. natureza se fundem.

Thailand’s No jogo da caça, os animais enfrentam desafios


constantes para encontrar comida. Estão presos
Wild Side numa batalha para procurar presas ou evitar as
garras de um predador. No jogo de acasalamento,
ESTREIA: 18 DE as criaturas são levadas ao limite na busca do parceiro
JA N E I RO, À S 1 7 H perfeito. Esta série é constituída por dois episódios.

NATIONAL GEOGRAPHIC (NO TOPO); LION MOUNTAIN MEDIA (AO CENTRO);


TV BURABHA (EM BAIXO)
P R Ó X I M O N Ú M E R O | FEVEREIRO 2020

O último
navio esclavagista
Clotilda foi o último
navio de escravos a
chegar aos Estados
Unidos. Esta é a
história desses cativos
e dos seus descendentes.

Tempo de
redefinir a beleza
Começa a surgir um novo
modelo de beleza
feminina mais inclusivo,
estimulado pelas redes
sociais e pelas alterações
na indústria da moda.

Arquitectos
na natureza
A habilidade de
alguns animais para
construir os seus
habitats na natureza
serve de inspiração aos
arquitectos humanos.

A procura de
cardamomo
Percurso a pé pela floresta
prístina do Sudeste
Asiático em busca desta
apreciada especiaria,
muito procurada pela
medicina tradicional
chinesa.

N AT I O N A L G E O G R A P H I C ELIAS WILLIAMS
História Juvenil


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