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p;ra smarqtJooe e eslabllidade
Nota A na classificação
geral
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HONDA
1 SUMAR O
/

NOVEMBRO 2017 • ANO 18 • NQ. 212 • REVISTA OFICIAL DA NATIONAL GEOGRAPHIC SOCIETY

SEÇÕES REPORTAGENS

1 VOANDO COM PTEROSSAUROS


Novas descobertas fósseis e estudos científicos estão mudando o modo como
entendemos as maiores e mais ferozes criaturas que já cruzaram os céus do planeta
Por Richard Conniff Fotos de Robert Clark

NATURAL HISTORY FILM UNIT

NA TELA

VISÕES

SUA FOTO

INSTINTO SELVAGEM

EXPLORE
Sustentabilidade:
kelp; Paris; Nigéria;
morangos; flores

MUITO ALÉM

CENPALEO, UNIVERSIDADE 00 CONTESTADO, BRASIL

Capa Ao pÔI' do sol, um garoto


exercita a liberdade e a alegria
OS PAÍSES MAIS FELIZES MISSÃO NA ÁFRICA
ao pedalar em uma praia da
O que Dinamarca. Cingapura e Costa Rica Uma expedição ao belo Delta do
Costa Rica O país é um modelo têm em comum? Um povo que se sente Okavango, em Botsuana, revela
de felicidade na América Latina seguro, vê sentido no que faz e se diverte. a abundância da vida selvagem local
9 Commercíal Megapress Collection/ Por Dan Buettner - assim como as ameaças ao ambiente.
Alamy Stock Photo Fotos de Cory Richards e Matthieu Paley Por David Quammen Fotos de Cory Richards

1 NA CORDA BAMBA 1 DUBAI RUMO AO VERDE


Quando os equilibristas do Daguestão O petróleo e a falta de critérios ecológicos
se apresentam, é sempre sem rede moldaram uma metrópole improvável na
de segurança. A acrobacia é uma Arábia O governo quer agora fazer de
tradição dessa isolada república russa Dubai um exemplo de cidade sustentável.
Por Jeffrey Tayler Fotos de Jérémie Jung Por Robert Kunzig Fotos de Luca Locatelli
coixo.gov.br

RECISOU
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POUSADA?
POUPEI

Na hora de realizar,
fale a língua do
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NATIONAL
GEOGRAPHIC
Acreditamos no poder da ciência, da exploração e da reportagem para mudar o mundo.
NATIOIUI. GIOM.APHIC aoanv

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TNAIUNO! l<owíl Phadungruangkij. ""°"EY: Nesibe Bat @natgeobraslt
1 DO EDITOR DUBAI

1 AS CIDADES O escritor Robert Kunzig e o fotógrafo


Luca Locatelli nos levam nesta edição a
O empreendimento
de 46 hectares em
E O FUTURO Dubai, uma "floração de concreto, vidro
Dubai chamado Cidade
Sustentável: cada casa
e aço que brotou nas últimas três déca­ é equipada com painéis
Em 1950, menos de um terço das pessoas das nas areias ardentes da Arábia". Ina­ solares. Os edifícios
estão orientados
do mundo vivia em cidades. Hoje, já é creditavelmente, seus administradores de modo a fazerem
mais da metade. Em 2050, espera-se que almejam transformá-la agora em uma sombra uns nos outros
dois terços da humanidade residam em cidade verde. Construída para os carros, durante parte do dia; a
áreas urbanas. Muitas áreas extensas e Dubai agora desenvolve distritos mais limitação da exposição
direta ao sol permite
populosas sofrem com a falta de plane­ caminháveis e transportes públicos. que as moradias
jamento, de salubridade, de sustentabili­ Está em transição para a energia solar usem unidades de ar­
dade. Eu me lembrei disso quando o meu e encontrando maneiras de reduzir o condicionado menores.
marido e eu estivemos em Nova Délhi, consumo de água e de energia-chegan­
em novembro de 2016: na capital da se­ do ao ponto de equipar mesquitas com
gunda nação mais populosa da Terra, torneiras de baixo fluxo para economizar
a poluição era tão grave que as escolas água durante as purificações religiosas
tiveram de fechar porque não era seguro realizadas antes das orações.
para as crianças ficarem ao ar livre. Quando vemos cidades desafiando os
O crescimento das cidades produziu limites naturais da maneira que Dubai
algumas das questões mais complexas faz de forma tão dramática, é tentador
do nosso tempo. É um fenómeno que questionar: antes de tudo, essa cidade
cria perturbação - mas também espe­ deveria estar ali? Kunzig fez essa pergun­
rança. Cada vez mais, a revista deseja ta ao ambientalista Tanzeed Alam. "Essa
documentar o crescimento das cidades é a pergunta errada", respondeu Alam.
do mundo para explorar como essa ten­ "Trata-se, antes, de aceitar onde estamos
dência está nos transformando. É por hoje. Como melhorar as cidades?"
isso que lançamos Expedições Urbanas
-uma série de estudos de casos sobre ci­
dades inovadoras-, com o apoio da em­
����
presa americana United Technologies. Susan Goldberg, Editora-chefe

LUCA LOCATELU
fa� Multiplan

Foto tirada na cobertura verde do VillageMall

O cuidado de hoie
é a diferenca no amanhã.
A cada oportunidade buscamos uma nova chance de cuidar dos detalhes, usando tecnologia em
benefício a natureza: cobertura verde, sistema de reúso de água da chuva, escadas rolantes com
sistema de redução de velocidade, valorização da luz natural através de vidros low-e, economia de
água e energia e muito mais. Afinal, o amanhã se faz agora.

VillageMall �
@)
@ villagemall 11 villagemalloficial
Av. das Américas, 3.900 • Borro do Tijuco • Rio de Janeiro • shoppingvillogemoll.com.br • +55 21 3003 4177
1 NA TELA
OS PROGRAMAS MAIS QUENTES DOS CANAIS NATIONAL GEOGRAPHIC

DESTAQUE DO M�S: NAT GEO WILD "'�


"� � �º


CANAIS �(J 4'" � <, Õ'
IMPÉRIO SELVAGEM - 2A TEMPORADA 80 78 98 62 80
A disputa dos leões por território e controle sobre os outros felinos
do grupo gera conflitos espetaculares. E Sekekama, o rei da alcateia =.e. 580 478 598 92
Marsh, precisa lidar com rivais que agora querem o seu trono. Os três
91
Ml�Q

príncipes da alcateia, por exemplo, sentem fome de poder. E mais: WILD


banidas do grupo, três vingativas leoas estão construindo um novo "*'f
..
591 479 599
.,

império e planejando vingança. Ao mesmo tempo, a leoa Saba enfrenta WILD. 67 93


uma tragédia à medida que ela trabalha para garantir que o seu único
612 449 124
filho a siga nos seus passos mortais pela vasta savana africana
Estreia em 15 de novembro, às 22 horas. Reprise no dia seguinte, Ou assista aos programas no aplicativo
às 21 horas, no canal National Geographíc
� Nat Geo Play. Disponível para iOS e Android.

NATURAL HISTORY FILM UNIT


NA TELA

NATIONAL GEOGRAPHIC NAT GEO WILD

AEROPORTO: MADRI PRONTO-SOCORRO ANIMAL - 2t. TEMPORADA


Aeroporto mais vertiginoso da Europa, Madri-Barajas Um dos maiores hospitais vetennanos dos Estados
tem 40 voos por hora e 129 mil passageiros por dia. Como Unidos, no Texas, oferece tratamentos médicos de ponta
protegê-lo da im1graçao ilegal e do tráfico de drogas? para uma fauna diversa - de tigres a animais domésticos.
Estreia em 20 de novembro, às 21h45 Estreia em 14 de novembro, às 21h15

NAT GEO WILD NAT GEO KIDS

SIBELLA, UM MILAGRE DE SOBREVIVÊNCIA ACREDITE, É VERDADE!


Uma fêmea de guepardo nascida na África do Sul, Sibella Irmãos e amantes da ciência, Charlie e Kirby exploram,
quase terminou nas mãos de caçadores. Perto da morte, de maneira divertida. os estranhos e surpreendentes
ela foi resgatada - e a sua vida tomou um novo rumo. fenõmenos que explicam como o nosso mundo funciona
Estreia em 25 de novembro, às 20h15 Estreia em 10 de novembro, às 20 horas

FOTOS (NO SENTIDO HORARIO, A PARTIR 00 ALTO, A ESQUERDA) OE OIVULGAÇAO: NATIONAL GEOGRAP HIC/BRANOON
CHESSHER, STEVE ROTFELD PRODUCTIONS/JILL LITTMAN, SAMARNCHRIS CALOICOTT
..
1 , DISPONÍVEL EM .,o��op�. ; .



, •
... I ..
"•
PROMOCIONAL

O COMEÇO
DO BRASIL
Fotógrafo da National
Geographic vai a
Minas Gerais para
explorar as terras
onde foi encontrado
o mais antigo fóssil
humano do país

O homem pré-histórico preparava tintas com cinzas, de uma picape forte e tecnológica capaz de suportar
terra e argila. Passava a noite ao redor da fogueira de­ os desafios do caminho. Assim, a Nissan Frontier que o
senhando figuras emblemáticas da natureza e fatos conduziu "foi uma ferramenta de trabalho importante",
impactantes do seu cotidiano, uma luta constante pela conta Edson, experiente guia de montanha que superou
sobrevivência. Não é diferente do que nós fazemos hoje terrenos acidentados rumo a cenários para trilhas e
por meio de smartphones que captam instantes mágicos escaladas, por exemplo, no Parque Nacional da Serra
de nossas vidas - e que compartilhamos em redes sociais do Cipó. Sua viagem começou na Gruta da Lapinha, em
como o Facebook ou o lnstagram. Lagoa Santa, onde foi descoberto o crânio de Luzia, nome
Registrar a passagem da vida é uma característica dado ao fóssil humano mais antigo já encontrado no país.
humana ancestral. O homem precisa e gosta de contar A jornada de Edson Vandeira está no documentário
histórias. Com a ideia de buscar um novo olhar sobre l=ronteiras do Olhar, que estreia em novembro no canal
o passado, o fotógrafo Edson Vandeira, da National National Geographic. Com espírito de aventura, Edson
Geographic, partiu rumo a uma das mais ricas áreas resgata o homem pré-histórico do Brasil, conectando pas­
arqueológicas do Brasil, no coração de Minas Gerais. sado e presente através da mesma busca pelo momento
Para alcançar trechos remotos, ele sabia da necessidade perfeito - seja em pinturas na pedra, seja em fotos digitais.

EM BUSCA DA FOTO PERFEITA


Edson Vandeira busca novos ângulos do
alto da Nisun J:rontier. Seu objetivo,
em cada foto, é criar reflexões sobre a
relaçio entre o homem e o meio ambiente.
RUMO AO TOPO
A expedição de Edson Vandeira registrou
alpinistas em ação nos paredões radicais da
Serra do Cipó. Outro ponto alto do percurso
de quatro diaa pela pela região foi a visita
ao sitio Lapinha da Serra, onde despontam
diversas pinturas rupestres (à esquerda).
VISÕES SUA FOTO

1 PARTICIPE
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Então envie para nós em suafoto.
nationalgeographicbrasil.com. As
melhores imagens serão postadas
no site da revista. E, no final de cada
mês, duas fotos escolhidas pelos
editores serão publicadas nesta página.

Marcel Lopes Salvador, BA


Janeiro, pleno verão, quarta-feira, o leitor
decidiu desfrutar um fim de tarde glorioso
no Farol do Humaitá, na capital baiana.
"Ao chegar, deparei com estes garotos na
árdua missão de subir no farol por cordas
improvisadas", conta Marcel. "Preparei
a minha cãmera e esperei este instante
mágico em que os dois jovens saltam
de uma altura de uns 6 metros."

Sidney Cardoso Sorocaba, SP


Biólogo de formação, Sidney gosta de
registrar o que chama de "encantado
mundo das abelhas". Nesse dia, um amigo
apicultor o convidou para alimentá-las. "No
instante em que ele abriu a colmeia, havia
muitas abelhas juntas, ligando um favo
a outro, em uma corrente", diz. Segundo
pesquisadores, esse é um processo ainda
pouco entendido para a produção de cera.
Tudo o que você
não deveria perder
PREMIUM APP&TV
POR JEFFREY TAYLER FOTOS DE JÉRÉMIE JUNG

�.... om o som das flautas de madeira e as de turquesa do Mar Cáspio, em Makhachkala, a


batidas dos tambores de uma músi­ agitada mas decrépita capital da República do
ca popular do Daguestão retumban­ Daguestão, parte da Federação Russa. Gasanov
do, um jovem esbelto vestindo cole­ supervisiona hoje um ensaio geral do grupo
..�.. te bordado, camisa branca e calça Águias, que, com frequência, viaja pela Rússia
justa agarra uma vara de titânio de 6 metros para e compete em Moscou. (Ele já tiveram, porém, de
se equilibrar e deixa para trás a pequena platafor­ recusar convites para se apresentarem em outros
ma situada 3,5 metros acima do palco de madeira. lugares por falta de recursos para viajar.) Para al­
Olhando fixamente para frente, inicia uma dança cançar o nível de habilidade da trupe, é preciso
folclórica sobre o cabo. Os seus chutes e dobras um treinamento quase diário e mais que um bo-
de joelho culminam em movimen­ cado de aprumo inato - e equilíbrio.
tos semelhantes - e são realizados, Dizem que o funambulismo come­
espantosamente, em posição supina. çou por aqui como uma maneira de
Sobre urna só perna, ele soergue-se entrar num acordo com o terreno aci-
para acentuar os seus saltos carpa­ 111-oAGuesTÃo dentado da remota região (Daguestão
dos em estilo cossaco sobre a corda significa "terra de montanhas".) "Um
bamba. Depois, retorna à plataforma. dia", explica Gasanov, "Ali gritou para
O rapaz passa a vara a uma jovem o vizinho do outro lado do desfiladei­
vestindo roupas floridas tradicionais ro: 'Ei, Ahmed, venha me visitar. Bas-
e um turbante branco. Ela deixa a plataforma, ta jogar uma corda e atravessar!"'
assim como a sua parceira feminina sai da torre É verdade, atesta Sergey Manyshev, um histo­
oposta, saltitando uma em direção a outra, ja­ riador local. "O costume começou, no século 19,
mais olhando para baixo, fazendo a sua própria como uma forma de os guerreiros atravessarem
dança. Elas não usam cordas de segurança, e não os penhascos." Então, em 1935, artesãos do po­
há rede. Dançando de ré, elas retornam às suas voado de Tsovkra Pervaya transformaram a prá­
torres, acenando para a multidão imaginária. tica em espetáculo, e ela se converteu depois na
A admiração pelas suas habilidades, misturada grande coisa a se fazer em casamentos e feriados.
ao medo de uma queda, acelerou o meu pulso de "Estou nisso há 13 anos. E nunca caí", diz Ibra­
tal maneira que desandei a suar. "O medo nunca gim, filho de Gasanov, um rapaz de 24 anos que
pode acompanhar um equiliblista do Daguestão", acaba de dançar o jig na corda bamba. "Você não
diz Askhabali Gasanov, o treinador bigodudo e tem medo de cair?", pergunto. "Eu nunca tenho
gerente da trupe chamada Águias do Daguestão. medo!" Gasanov então interrompe: "Até agora,
"Jamais." Ele desliga o laptop que está tocando louvado seja Deus, nenhum dos meus alunos
música popular. "Por hoje chega!", grita. caiu! E confiamos em Deus que nenhum cairá!"
Estamos na Filarmônica Estadual de Tatam Outros, porém, já falharam, admite: "Um sujei­
Muradov, a poucos quarteirões das águas cor to desabou de um fio de 7 metros de altura, mas
ele girou em pleno ar e aterrissou em pé. E até
Entre as sessões de treinamento, os "águias" acenou para a plateia!" Essa serenidade carac­
lbragim Khalil Gasanov e Gasan Gitinomagomedov teriza as apresentações de Gasanov, que sempre
posam para um retrato em um corredor abandonado
da filarmônica - o centro de treinamento deles
terminam com as Águias dando um salto mortal
em Makhachkala, capital do Daguestão. Eles ou avançando em largas passadas para ir saudar o
se apresentam em trajes inspirados na tradição. público - tudo, sempre, no limite e com graça. O

NClMMAPS DAGUESTÃO
EXPLORE I SUSTENTABILIDADE

XIXI COM
MAIS GLAMOUR
Por Daniel Stone

Além da culinária requintada e da moda


elegante, há outro aspecto tradicional
de Paris que é bem menos agradável
para moradores e turistas. Desde antes
da época de Napoleão, no princípio do
século 19, a Cidade Luz vem combatendo
a mal cheirosa praga dos pipis sauvages,
a prática de urinar em locais públicos.
Embora muito difundida, trata-se de
algo ilegal. Mas isso não parece ter evi­
tado os jorres de urina que escorrem por
ruas e postes e regam vasos de plantas.
O que a prefeitura pode fazer? Bem,
tentar transformar esses delitos meno­
res em algo similar a um serviço público.
No início deste ano, com a ajuda da
agência de design Faltazi, as autoridades
parisienses resolveram testar a instala­
ção de mictórios públicos. Batizado de
Uritrottoir ("mictório de calçada"), o
receptáculo é preenchido com palha ou
serragem tratadas a fim de neutralizar
o odor. Quando chega ao seu limite,
depois de cerca de 200 xixis, um sen­
sor alerta para que se esvazie o conteú­
do, que é então levado a um ponto de
compostagem, tornando-se insumo de
plantas. "Apenas de flores", diz Laurent
Lebot, um dos criadores do Uritrottoir.
"Nunca de frutos ou hortaliças."
A Faltazi está testando dois mode­
los numa das estações ferroviárias de
Paris, a Gare de Lyon. Restam dúvidas:
as pessoas vão de fato usar o mictório? Se
funcionar para os homens, seria possível
projetar um modelo feminino discreto?
Não são equipamentos baratos: cada
um custa uns s ooo dólares, fora a ma­
nutenção. E podem estimular mais pipis
públicos, e não menos. Mas, e se o resul­
tado for espargir pelas ruas parisienses
um aroma apenas de pão fresco, e não
o odor acre de urina? Mais oui. Aí sim.

Projetado para ser facilmente localizável


mas sem se destacar, o mictório público
pode acabar com um costume secular.

FALTAZI
PLANTANDO A PAZ americano de origem nigeriana. Masha Lavradores nigerianos
dirige o projeto Babban Gona ("Grande colhem tomates cultivados
com a ajuda da iniciativa
Por Nina Strochlic Fazenda"), cuja missão é possibilitar que Babban Gona A maioria
pequenos agricultores jovens deixem dos nigerianos tem menos
O país mais populoso da África não tem o nível de subsistência com a ajuda de de 24 anos, ao passo
como alimentar os seus habitantes. Em­ métodos para aumentar a produtivi­ que a idade médía dos
agricultores é superior
bora com mais de 35 milhões de hectares dade e o acesso a mercados que pagam a 50. O objetivo de Kola
de terras cultiváveis, a Nigéria depende melhor. O investimento na agricultura Masha, o criador do
da importação de comida. Enquanto isso, é a forma de ajuda externa mais eficaz projeto, é alcançar 1 milhão
de pequenos produtores
mais de 2 milhões de nigerianos chegam para a redução de conflitos armados. rurais até 2025 - e, com
ao mercado de trabalho a cada ano, tendo Iniciativas similares estão surgindo isso, reduzir os conflitos
de enfrentar uma taxa de desemprego de em todo o continente. "A Nigéria é pio­ armados e o desemprego.
25% entre os jovens. É em meio a essa neira", diz Evelyn Ohanwusi, que dirige JASON ANDRêW

insatisfação que grupos extremistas, um programa de empreendedorismo


como o Boko Haram, recrutam adeptos. mantido pelo Instituto Internacional
Estimular a juventude a empunhar de Agricultura Tropical. Tendo esse
enxadas em vez de armas não seria a programa como modelo, o Banco de
solução do problema? "O oxigênio está Desenvolvimento Africano pretende
para o fogo assim como os jovens de­ criar 15 milhões de empregos para os
sempregados para os movimentos extre­ jovens no setor do agronegócio, no prazo
mistas", diz Kola Masha, um empresário de cinco anos e em cerca de 30 países.
EXPLORE SUSTENTABILIDADE

MORANGOS
LONGA VIDA
Por Daniel Stone

Toda a fruta e toda a hortaliça respira.


Mesmo depois de colhidas de uma árvo­
re ou de um arbusto, elas continuam a
respirar, amadurecendo aos poucos, até
que começam a se desintegrar. Só então
se instalam os micro-organismos que
causam o seu apodrecimento. A refrige­
ração pode apenas atrasar esse processo.
Agora, cientistas estão convencidos de
que encontraram uma maneira de fazer
com que banana, abacate e outros frutos
frescos durem até o dobro do tempo nor­
mal, exatamente por meio do adiamento
desse processo de maturação. A Apeei,
uma empresa da Califórnia, aperfeiçoou
um método para extrair os lipídios de
vários produtos agrícolas populares e
transformá-los em pó. Dissolvidos na
água e aplicados a frutos ou hortaliças,
eles formam uma camada protetora co­
mestível, que retém a urnidade do fruto e
impede a entrada de micro-organismos.
Os agricultores têm a opção de usar
uma versão da fórmula nas plantações ou
os distribuidores podem enxaguar com
ela os produtos no momento da emba­
lagem, ampliando o prazo de validade
da fruta em dias ou até mesmo semanas.
Dar aos consumidores mais tempo
para desfrutar dos produtos frescos
é um dos objetivos. Mas a grande meta da
Apeei é combater o desperdício e dimi­

•.,,,-
nuir a quantidade de caminhões e navios
refrigerados que se deslocam entre as
áreas de produção e as de consumo para
entregar alimentos em boas condições .
"Dá para imaginar um mundo em que os
produtos frescos vão estar sempre dispo­
TRATADO níveis, independentemente da estação", NÃO TRATADO
diz James Rogers, presidente da Apeei.

A diferença de frutas como pêssego ou


banana, o morango começa a estragar
assim que é colhido. Os cientistas criaram
uma barreira invisível e comestível para
atrasar a deterioração graças à redução
da perda de umidade e da oxidação.

APEEL SCIENCES
. .
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POR DAN BUETTNER / FOTOS DE CORY RICHARDS E MATTHIEU PALEY

uem é a pessoa mais feliz do mundo?


Poderia ser Alejandro Zúfíiga, um pai sadio que desfruta
de, no mínimo, seis horas diárias de vida social e tem bons
amigos com quem pode contar. Ele dorme, no mínimo, sete
horas na maioria das noites, vai a pé ao trabalho e come seis
porções de frutas e hortaliças quase todo dia. Trabalha não mais de 40 horas
por semana em um emprego que ele ama e com colegas que estima. Ele usa
algumas horas semanais em trabalho voluntário. No fim de semana, faz as suas
devoções a Deus e se entrega à paixão pelo futebol. Em resumo: ele faz escolhas
diárias que promovem a felicidade e são facilitadas porque ele vive em meio
a pessoas de mentalidade semelhante no viçoso Vale Central da Costa Rica.

Sidse Clemmensen é outra candidata. Ela vive com um companheiro


carinhoso e três filhos pequenos em uma comunidade onde as famílias
dividem as tarefas domésticas, os cuidados com as crianças e as refei­
ções em uma cozinha comum - uma forma de morar consagrada com o
nome de "cohousing". Sidse é socióloga, e faz diariamente um trabalho
instigante e envolvente. Ela e a sua família vão de bicicleta ao trabalho,
às compras e à escola, o que os ajuda a se manter em boa forma. Paga
impostos altos com o seu salário modesto, mas recebe assistência médi­ Dan Buettner, aclamado
ca e educação para os filhos, além da garantia de uma renda quando se autor do New York
Times, há 15 anos
aposentar. Em Aalborg, Dinamarca, onde ela vive, as pessoas confiam investiga o que nos torna
que o governo irá garantir que nada de muito ruim lhes aconteça. saudáveis e felizes. O
Há também Douglas Foo. Empresário bem-sucedido, ele dirige um seu quarto livro, The Blue
BMW de 750 ooo dólares e mora numa casa de 10 milhões. É casado, Zones of Happiness,
tem quatro filhos bem-comportados que se destacam na escola. Ele foi publicado há pouco
pela National Geographic
próprio sustentou-se trabalhando em quatro empregos enquanto estu­ (apenas em inglês).
dava, depois abriu uma empresa, que cresceu e, por fim, se tornou uma
companhia multinacional de 59 milhões de dólares. Contando os seus
negócios e as suas atividades filantrópicas, ele trabalha cerca de 60 horas
por semana. Conquistou o respeito dos seus funcionários, dos colegas e
da comunidade. Tamanho sucesso foi fruto de esforço árduo, mas, como
Foo admite sem hesitar, ele provavelmente não teria conseguido cons­
truir essa vida em nenhum outro lugar além de Cingapura.
Zúfiiga, Sidse e Foo ilustram três linhas distintas que se entrelaçam
e criam uma felicidade duradoura. Eu as chamo de prazer, propósito e
orgulho. Além disso, eles vivem em países que estimulam essas linhas.
Vejamos Zúfiiga, que, como muitos costa-riquenhos, usufrui ao má­ AS PESSOAS QUE
ximo o seu cotidiano em um lugar que ameniza o estresse e maximiza a
VIVEM NOS
alegria. Cientistas chamam esse tipo de contentamento de "felicidade
experimentada" ou "afeto positivo". Nos levantamentos, isso é medido LUGARES FELIZES
com perguntas que visam saber com que frequência a pessoa sorriu ou DEDICAM-SE
sentiu alegria nas últimas 24 horas. O país de Zúfiiga não é apenas o mais COM FERVOR
feliz da América Latina mas também, no mundo, está entre aqueles em AOS SEUS
que as pessoas dizem sentir mais emoções positivas no dia a dia. OBJETIVOS. SEM
Sidse Clemmensen representa a mentalidade dinamarquesa que pre­
NUNCA DEIXAR
za a vida em função de um propósito, ou seja, pressupõe que as neces­
sidades básicas são atendidas para que as pessoas possam se dedicar DE LADO A
ao que gostam no trabalho e no lazer. Os acadêmicos referem-se a isso ALEGRIA E O RISO
como "felicidade eudemônica", um termo derivado de uma palavra gre­
ga. O conceito provém da noção, difundida por Aristóteles, de que a ver­
dadeira felicidade só pode existir em uma vida com sentido - fazer o que
vale a pena fazer. O Instituto Gallup mede essa condição perguntando às
pessoas se "aprenderam ou fizeram algo interessante ontem". Na Dina­
marca, a sociedade evoluiu voltada para ensejar uma vida estimulante.
E, para não desmentir a reputação cingapurense de fanatismo pelo
sucesso, Foo, por toda a sua ambição e realizações, representa a linha da
felicidade que vem da "satisfação com a vida". Muitos cientistas sociais
pedem que as pessoas deem uma nota de o a 10 para a sua vida. Os espe­
cialistas também usam o termo "felicidade avaliativa". Esse é o critério
internacionalmente aceito de mensuração do bem-estar. Cingapura tem
sido a campeã asiática mais frequente em satisfação com a vida.
Os pesquisadores que publicam todo ano o Relatório Mundial da Fe­
licidade, da ONU, concluíram que, aproximadamente, três quartos da
felicidade humana se baseiam em seis fatores: forte crescimento eco­
nômico, expectativa de vida saudável, relacionamentos sociais de boa
qualidade, generosidade, confiança e liberdade de escolha na vida. Tais
fatores não se materializam ao acaso: são, intimamente, ligados aos
valores culturais do país e ao modo como ele é governado. Em outras
palavras: os lugares mais felizes incubam a felicidade para o seu povo.
Para ilustrar o poder do local em que se vive, John Helliwell, um dos
editores do relatório, analisou soo mil questionários respondidos por
pessoas de 100 países que haviam imigrado para o Canadá nos 40 anos
anteriores, muitas provenientes de nações bem menos felizes. Helliwell
e os seus colegas observaram que, dentro de poucos anos após a imigra­
ção, as pessoas que tinham vindo de locais tristes começavam a infor­
mar um nível maior de felicidade no país adotivo. Pelo visto, o próprio
ambiente foi o responsável pelo aumento de felicidade dessas pessoas.
Alejandro Zúfüga, Sidse Clemmensen e Douglas Foo dedicam-se com
fervor aos seus objetivos, mas não deixam de lado a alegria e o riso, e
sentem orgulho pelo que fazem. Em muitos casos, tudo isso é possível
porque o lugar em que vivem - o seu país, a sua comunidade e a sua
família - dá a eles um respaldo invisível constante e os impele delicada­
mente para comportamentos que favorecem o bem-estar no longo prazo.

FELICIDADE
OCEANIA
COSTA RICA ALEGRIA TODO DIA:
SAÚDE, FÉ, FAMÍLIA
Maria dei Carmem Yoursrecha Paterson, à direita, tira uma folga no meio do dia no seu restaurante
em Limón e procura os embalas da música em um bar da vizinhança. Para os costa-riquenhos, é natural
viver cada momento e reservar tempo para conviver com a família e os amigos. MATTH1Eu PALEY
oltemos a Alejandro Zúfüga, que é vendedor de frutas Só três alunos vão às
e verduras no mercado central de Cartago, uma cidade aulas em La Central, uma
a leste de San José, a capital da Costa Rica. Por décadas, povoação rural a cerca
de uma hora de Cartago.
esse robusto feirante de 57 anos tem sido presença as­ Aqui, eles almoçam
sídua no mercado, onde ele vende abacates, socializa e com o professor em um
conta novas piadas. Todo mundo o conhece. Quando algum dos outros restaurante. O crucifixo
60 e tantos feirantes adoece ou tem alguma emergência familiar, é Zúfi.iga foi removido da igreja
quem providencia uma vaquinha para ajudar. Ele organiza excursões por segurança quando
o Vulcão Turrialba
para torcer pelo amado, mas não muito afortunado, time de futebol da entrou em erupção nas
cidade, o C.S. Cartaginés. É um amigo carismático e um líder nato. imediações. O ensino
Uma noite, alguns anos atrás, Zúfüga recebeu um telefonema de um fundamental e médio
amigo, com uma notícia sensacional: "Você ganhou na loteria!" Ele tinha é gratuito e obrigatório,
comprado o bilhete premiado e estava prestes a receber so milhões de e a taxa de alfabetiza ção
no pais alcança 97,8%.
colones (na época, uns 93 ooo dólares). Mas ele não acreditou no amigo, MATTHIEU PALEY
um notório pregador de peças. E não estava com ânimo: o dia fora longo,
e ele não tinha vendido todos os seus abacates. "Pensei que fosse uma O FATOR FELICIDADE

piada", recorda ele. "Eu só tinha no bolso os meus últimos 8 dólares." COSTA RICA
Zúfüga desligou o telefone. O Gallup divide os seus
estudos em cinco categorias
Quando foi trabalhar no dia seguinte, os feirantes o receberam com para o bem-estar. Os costa­
aplausos. A notícia da premiação tinha se espalhado. Toda semana, ele riquenhos sempre lideram
nos quesitos relacionamento
jogava no mesmo número, enfim sorteado. Aturdido, Zúfüga percorreu social, sentimento de
as bancas dos amigos e colegas com o braço erguido de um campeão propósito e saúde física
olímpico, batendo na mão espalmada de um por um. Eles sabiam que PERCENTUALº" t'OPULAÇAO
Zúiíiga nunca tivera uma vida fácil. Crescera em favelas, largara os ME:LHORANDO lM CADA ASPfCTO

estudos aos 12 anos para se sustentar, tivera problemas de alcoolismo Social


e perdera o amor da sua vida aos 20 anos, quando ela o deixou. 57
Agora que tinha ficado rico, os seus colegas feirantes supunham que Financeiro Propósito
25 46
ele os trocaria por uma vida nova, mais abastada. Só que, nas semanas
seguintes, Zúfüga surpreendeu: lá estava ele de volta ao mercado, apre­
goando a sua mercadoria e pregando peças. Discretamente, porém, ele
andava distribuindo a sua fortuna: 1 milhão de
colones para o amigo que lhe vendera o bilhete de
loteria, 1 milhão para um feirante que o alimen­ Comunitário Físico
44 45
tara em tempos difíceis, outro milhão para um
mendigo do mercado. O resto ele deu à sua mãe e
CENSO EMOCIONAL
às quatro mães dos seus sete filhos. Em um ano, Cinco questões, respectivamente,
ele já estava de novo na pindaíba. Mesmo assim, para experiências positivas
e negativas geram a pontuação
ele garante: "Eu não poderia estar mais feliz". de O a 100 em cada país.
Para entender essa flexibilidade de Zúfüga,
NÍVEL DE SENTIMENTO
você precisa saber mais a respeito de Costa Rica, POSITIVO
onde uma combinação alquímica da geografia Média
Costa Rica norte­
com políticas sociais criou uma liga poderosa de 83 americana
laços familiares, assistência médica universal, fé, 77

paz duradoura, igualdade e - uma qualidade que


Zúfüga tem de sobra - generosidade. Tudo isso
culmina em uma receita especialmente rica para
se aproveitar a vida: a linha da felicidade que
emana do prazer. Aqui, essa combinação resulta
em mais felicidade por dólar per capita que na
imensa maioria dos outros lugares do planeta.
Analisemos a situação de Zúfüga. Ele não
tem carro nem joias caras nem roupas elegan­
tes nem aparelhos eletrônicos sofisticados, mas 33 33
não precisa de nada disso para se sentir feliz.
Ele vive em um país onde, durante grande parte NÍVEL DE SENTIMENTO
NEGATIVO
do século passado, foi enfatizado o apoio a cada
GALLUP WORLO P0LL 201!>-16
cidadão. Diferentemente da maioria dos países
centro-americanos, em que os latifundiários e os
presidentes apoiados pelas Forças Armadas que
promoviam os interesses dos fazendeiros domi­
naram após a independência, a Costa Rica seguiu
por outro caminho. Com cordilheiras escarpadas

FELICIDADE
e cortadas por ravinas e pouca mão de obra barata, as condições ali não lleana Álvarez Chaves,
eram favoráveis ao surgimento de grandes haciendas. Em vez disso, pe­ técnica de saúde que
quenos proprietários de mentalidade independente prosperaram no Vale trabalha no programa de
assistência médica do
Central, depois que descobriram um mercado internacional para o café. governo da Costa Rica,
Os costa-riquenhos elegeram professores para a Presidência do país, e, verifica os sinais vitais de
sem ter de arcar com o fardo de instituições coloniais corrosivas, imple­ Mayela Orozco, uma viúva
mentaram políticas que iniciaram uma espiral ascendente de bem-estar. de 68 anos que mora
Em 1869, o ensino primário tomou-se obrigatório para todas as crian­ sozinha No decorrer de
um ano, lleana visitará
ças - inclusive para as meninas, uma iniciativa notável. Em 1930, a taxa todas as casas de
de alfabetização já estava entre as mais altas da América Latina. Ao mes­ Paraíso. O enfoque
mo tempo, o país investiu no fornecimento de água potável para as po­ em saúde preventiva
voações rurais e na redução de doenças infantis, como cólera e diarreia. reduziu a mortalidade
Nos anos 1940, vieram a previdência social e o fim do Exército. Em 1961, infantil e aumentou
a expectativa de vida.
foi aprovada a legislação sobre a assistência médica universal, trazendo MATTHIEU PALEY
clínicas de atendimento primário à maioria dos vilarejos.
Esse comprometimento continua até hoje. Em uma manhã de inver­ NA COSTA RICA
no, acompanhei uma técnica de saúde chamada Ileana Alvarez Chavez
UMA ALQUIMIA
nas suas rondas, de mochila e geladeira portátil com vacinas, pela arbo­
rizada cidade de Paraíso, no Vale Central. Ela trabalha nos Equipos Bási­ DA GEOGRAFIA
cos de Atención Integral em Salud (Ebais), o sistema nacional criado em COM POLÍTICAS
meados dos anos 1990. Saúde e felicidade são inextricavelmente ligadas. SOCIAIS
Pequenas equipes compostas de médico, enfermeiro, escriturário INTELIGENTES
e vários técnicos são designadas para dar assistência a 3 soo pessoas. CRIOU UMA
A quota de Ileana requer que ela visite até 12 casas por dia. Em cada
COMBINAÇÃO
uma, ela gasta 30 minutos para atualizar os prontuários médicos, medir
a pressão arterial, aplicar vacinas, dar orientações e procurar água para­ DE LAÇOS
da, onde se reproduzem os mosquitos portadores do vírus zika. FAMILIARES.
Na casa de Hemández Torres, Ileana dá orientações a uma jovem mãe ASSISTÊNCIA
sobre uma dieta saudável para o seu filho de 2 anos e deixa vitaminas e MÉDICA. FÉ. PAZ.
comprimidos vermífugos. Ela nota pão branco e leite na mesa da cozi­ IGUALDADE E
nha. "Procurem comer mais feijão, frutas e hor­
GENEROSIDADE.
taliças", aconselha. Na casa de Aurora Brenes, de
89 anos, Ileana faz um inventário dos remédios,
mede a pressão arterial e marca uma consulta
para a octogenária com o médico da sua equipe.
"Muitas vezes detecto doenças antes que apare­
ça uma crise de diabetes ou um ataque cardíaco",
diz ela. "Muitos dos meus clientes são solitários,
gostam quando alguém lhes dá atenção."
Desde 1970, a expectativa de vida na Costa Rica
deu um salto de 66 para 80 anos, e a mortalidade
infantil decresceu sete vezes. A taxa de óbitos por
doença cardíaca em homens é cerca de um terço
menor que nos Estados Unidos, embora, na Costa
Rica, o gasto per capita com assistência médica
seja um décimo do americano. O ex-presidente
José María Figueres, que implementou o progra­
ma Ebais, disse-me que o sistema de saúde do
país funciona tão bem porque procura, antes de
tudo, manter as pessoas sadias. "Aqui, já há anos
que a ênfase é na saúde preventiva, porque, afi­
nal de contas, o objetivo de uma boa política de
saúde é evitar que as pessoas adoeçam", diz ele.
Em resumo, o sistema social da Costa Rica
cuida da maioria das necessidades do povo, diz
o costa-riquenho Mariano Rojas, economista da
Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais
na Cidade do México. "O sistema proporciona ao
povo a sensação de segurança e uma boa saúde.
E elimina a maioria das grandes preocupações da
vida enquanto oferece um ambiente onde a maio­
ria das pessoas ainda é capaz de se sustentar."

FELICIDADE
DINAMARCA NECESSIDADES BÁSICAS
GARANTIDAS E TEM�O LIYRE
No norte de Copenhague, estudantes colhem legumes que eles mesmos plantaram e que irão comer como
parte de um programa voltado para maior valorização do meio ambiente. Atividades comunitárias desse tipo
são típicas entre os dinamarqueses. O estilo de morar conhecido como "cohousing" é comum conrn1ctiARDS
u conheço Sidse Clemmensen na terceira viagem que faço ao Um imigrante cubano
país escandinavo para investigar o tipo único de felicidade assimila a paixão da
local - que parece capacitar as pessoas a viver uma vida com Dinamarca pela
socialização e dança
propósito. Sentada na cozinha tomando chá, essa mãe de com a filha, de mãe
35 anos usa cabelo curtinho, blusa sem mangas, pantufas de dinamarquesa, em um
couro e um diamante no nariz. "O Estado fornece tudo de que preciso", gramado próximo a uma
diz Sidse. "Meus filhos são felizes. Tenho um marido maravilhoso. E amo área de natação em
o meu trabalho. Sei que nada de muito ruim pode me acontecer." Copenhague que é um
ponto muito procurado
Sidse e os seus formam uma das 22 famílias em uma comunidade de pelos moradores. Os
moradia compartilhada, chamada de bofcellesskab, na cidade de Aalborg. locais costumam receber
Cada família possui uma casa pequena que lembra um bloco de Lego, bem os imigrantes,
mas, juntas, dividem um jardim enorme, lavanderia, oficina, depósito, embora a recente crise
estacionamento e sala de jantar, onde podem optar por refeições comu­ dos refugiados arrefeça
um pouco o entusiasmo.
nitárias. Cada família fornece uma ou duas refeições mensais para toda a CORV RICHARD$
comunidade, e faz as demais gratuitamente. A localização do complexo,
construído em um morro baixo com vista para pastagens ondulantes, O FATOR FELICIDADE

permite ir de bicicleta à escola fundamental da área e à universidade. DINAMARCA


Bem ao estilo escandinavo, o complexo oferece uma elegante com­ No mínimo, metade dos
dinamarqueses tem alta
binação de privado e público, uma boa metáfora para a sociedade di­ pontuação nas categorias
namarquesa como um todo, que valoriza a confiança e a comunidade. de bem-estar financeiro e
participação na comunidade.
A evolução da sociedade remonta à Segunda Guerra do Schleswig, em Também vão bem em gerar
1864, diz Peter Gundelach, sociólogo da Universidade de Copenhague propósito na vida cotidiana.
- quando a Dinamarca perdeu um quarto do seu território para a Prússia. PERCENTUAL OA POPUlAÇAO
"Com essa derrota, deixamos de lado nossa ambição de ser uma super­ MELHORANDO EM CADA ASPECTO

potência mundial", conta ele. "Perdemos a presunção. Nosso governo Social


começou a fortalecer a identidade nacional e a construir para dentro." 27
Os dinamarqueses crescem acreditando que têm direito a assistên­ Financeiro Propósito
58 43
cia médica, educação e uma rede de segurança financeira. Os univer­
sitários têm ensino gratuito. Os pais de um recém-nascido podem tirar
licença de um ano paga pelo governo, inclusive se forem homossexuais.
As pessoas trabalham duro na Dinamarca, porém
menos de 40 horas semanais em média, com no
mínimo cinco semanas de férias por ano. O preço Comunitário Físico
50 33
desses benefícios é um imposto sobre a renda que
está entre os mais altos do mundo, cuja alíquota
vai de 41% até 56% - um nivelador que permite EMOÇÃO EUROPEIA
A Dinamarca ê líder na Europa
a um coletor de lixo ganhar mais que um médico. em experiências positivas.
"A felicidade dos dinamarqueses é estreita­ Belarus está em último lugar.
mente ligada à sensação de proteção e conforto NÍVEL DE SENTIMENTO
que começa com o amor materno e prossegue POSITIVO

na relação com o seu governo", diz Jonathan Dinamarca


Schwartz, um antropólogo americano que mora 80 Média
europeia
em Copenhague. "Não é que o sistema garante 69
a felicidade, e sim que ele impede as pessoas de
fazerem coisas que as tornem infelizes."
Reservar um tempo para a realização pessoal
é outro ingrediente essencial da felicidade dina­
marquesa. Mais de 90% da população frequenta
um clube ou é filiada a alguma associação - en­
tre outras, a dos nadadores de águas frias e a dos
criadores de coelho. E mais de 40% faz trabalho
voluntário em grupos cívicos. A sociedade incen­ 21
27
tiva o tipo de equilfürio entre trabalho interessan­
te e lazer gratificante, que resulta em uma noção NÍVEL DE SENTIMENTO
de tempo conhecida como "fluxo". "Os dinamar­ NEGATIVO

queses parecem ter mais consciência das neces­ GALLUP WORLO P0U.. 2015-16
sidades globais de um ser humano do que povos
de outros lugares", explica o psicólogo Mihaly
Csikszentmihalyi. "As pessoas precisam enfren­
tar desafios. Está nos nossos genes. Adquirimos
autoconfiança por meio da adversidade. Cada re­
vés é um tijolo do edifício da felicidade."
FELICIDADE
CIMGAPURA UM CAMINHO Ll!lRE E
SEGURO LEVA AO SUCESSO
Para comemorar a formatura, recrutas varam a noite em uma marcha de oito horas até o maior palco flutuante
do mundo. O serviço militar, obrigatório para homens, engendra orgulho e união, além de criar laços entre
os grupos étnicos do pais. O Exército é um símbolo de segurança, prezado pelos cingapurenses. MATIH eu PAtev
ingapura criou o seu próprio estilo de felicidade, personi­ Três pessoas oram
ficado por Douglas Foo. Ele é dono da Sakae Sushi, a maior diante da urna com as
cadeia de restaurantes japoneses quick service, mas ain­ cinzas de uma pessoa
da sua família durante
da encontra tempo para trabalhar como voluntário para uma feérica cerimônia
22 organizações. Nas suas 14 horas diárias de trabalho, ele com direito a show
veste terno azul e preside uma dezena de reuniões com um misto de for­ de laser em um retiro
malidade séria, deliberação minuciosa, firmeza no vozeirão de barítono de luxo. Para muitos
e humor pandêmico. O seu dom para dissipar a tensão diária com uma cingapurenses,
a riqueza amplamente
risada espontânea, combinado a uma capacidade de trabalho hercúlea, ostentada é um aspecto
facultou-lhe o conjunto completo dos símbolos de sucesso cingapuren­ essencial da sua
ses. E, apesar de Foo se declarar feliz, ele ainda sente que não conseguiu fórmula de felicidade.
tudo. "No cenário geral, sou apenas um inseto", diz ele, com um ar grave CORY RICHARDS

no rosto redondo. Depois percebe a hipérbole, e cai na risada


Foo, de 48 anos, é de uma geração intermediária entre aquela dos de­
sesperados por sobreviver que fundou Cingapura nos anos 1960 e a dos
jovens hoje na casa dos 20 que construirá um novo futuro. Em pouco O FAlOR FELICIDADE
mais de meio século, esse país minúsculo transformou-se de uma vasta CINGAPURA
povoação de pescadores em uma nação de S,8 milhões de habitantes, A estabilidade econômica
ajuda o pais a ocupar
vivendo em meio a milhares de arranha-céus e mais de 150 shopping os primeiros lugares em
centers. Uma metrópole ornada por ruas limpíssimas e arborizadas. bem-estar financeiro. Mas
o enorme esforço para
Para os cingapurenses, o sucesso está no final de um caminho bem enriquecer prejudica
definido: siga as regras, entre na escola certa, consiga o emprego certo outros fatores da felicidade.
e você encontrará a felicidade (resumida como "os cinco cês": carro, ...!éRCtc ru�L DA POPULAÇ o
MELHORANDO EM CADA ASPECTO
casa, capital, cartão - de crédito - e clube). Em um sistema que aspira
a ser uma meritocracia, o talento e o desempenho são recompensados. Social
Alguns até reclamam que os preços sobem, que trabalham demais; po­ 24
Financeiro Propósito
rém, quase todos dizem que se sentem seguros e confiam uns nos outros. 56 17
O arquiteto desse experimento social foi Lee Kuan Yew, já falecido,
que liderou o movimento pela independência de Cingapura em 1965.
Amado de paixão pelos cingapurenses, ele endossou leis rigorosas e pu­
nição corporal para crimes violentos. Lee prezava
muito os valores asiáticos tradicionais, e se em­
penhou em construir uma sociedade baseada em Comunitário
27
Físico
21
harmonia, respeito e trabalho árduo. Qualquer
um que procurasse trabalhar, por mais humilde
BONS DIAS
que fosse a sua ocupação, tinha um salário garan­ Cingapura é um dos cinco
tido para se sustentar. O programa de workfare países com o menor número
de experiências negativas.
- assistência governamental aos cidadãos em
troca de trabalho - suplementava salários baixos NÍVEL DE SENTIMENTO
POSITIVO
com subsídios para moradia e saúde.
Embora a maioria da população seja compos­ Cingapura
ta de chineses (74.3%), malaios (13.4%) e indianos 79 Média
asiática
(9,1%), o governo de Yew manteve o inglês como 67
língua franca para que nenhuma etnia acabasse
prevalecendo sobre as demais. Ele garantiu liber­
dade religiosa e educação igual a todos, e subsi­
diou a aquisição de casa própria. A maioria dos
cingapurenses possui um apartamento em con­
juntos habitacionais construídos pelo governo,
geralmente em prédios altos. Por lei, a compo­
sição dos ocupantes de cada prédio deve refletir 15
a diversidade étnica do país; por isso, Cingapura 29
não tem guetos raciais ou étnicos.
Hoje o povo de Cingapura é um exemplo da NÍVEL DE SENTIMENTO
terceira linha de felicidade, que os especialistas NEGATIVO

chamam de "satisfação com a vida". Nela, a nota é GALLUP WORLD POLL. 2015-16

alta quando as pessoas vivem segundo os seus va­


lores e se orgulham do que realizam. Elas tendem
a gozar de segurança financeira, ter status elevado
e sentir-se integradas. Alcançar esse tipo de felici­
dade pode levar anos, e muitas vezes requer abrir
mão de prazeres momentâneos do cotidiano.

FELICIDADE
POR WILLIANS BARROS / FOTOS DE MARCELO CURIA

ONDE FICA O LUGAR


MAIS FELIZ DO BRASIL?
osta Rica, Dinamarca e Cingapura têm uma linha comum Meninos do time até
para determinar um "regime da felicidade". Os três casos re­ 9 anos divertem-se
velam como um país pequeno (todos com cerca de 6 milhões no intervalo de um
treino no ginásio da
de habitantes) e próspero pode alcançar o bem-estar quando Associação Carlos
tem líderes esclarecidos e bem-intencionados no comando Barbosa de Futsal,
de políticas que atendam ao interesse de todos. O problema é: o que fun­ a ACBF. Tricampeã
ciona para essas sociedades pode não se traduzir facilmente em soluções mundial de clubes e
para um país enorme, diverso e com uma história de desigualdades - pentacampeã da Liga
Nacional em 2015, a
assim como de recentes e graves problemas políticos - como o Brasil. equipe é um orgulho
Na contramão de muitas tendências negativas atuais, contudo, des­ de todos, e fez a fama
pontam alguns exemplos de comunidades brasileiras que apresentam da cidade mundo afora
equilíbrio social e prosperidade, muitas delas no interior do Rio Grande O FATOR FELICIDADE

do Sul. Carlos Barbosa, em plena Serra Gaúcha, a pouco mais de 100 qui­ BRASIL
lômetros de Porto Alegre, por exemplo, ostenta indicadores surpreen­ A pesquisa do Instituto Gallup
dentes de qualidade de vida. O Índice de Desenvolvimento Humano mostra a influência negativa
do aspecto financeiro na
(IDH) do município, medido com base em indicadores de educação, ren­ vida dos brasileiros em
da e expectativa de vida, é considerado alto, embora não ocupe o topo do anos recentes, gerando um
desequilíbrio no conjunto de
ranking brasileiro. E a cidade é também pentacampeã gaúcha no Índice outros fatores do bem-estar.
de Desenvolvimento Socioeconômico (Idese), um indicador-síntese para
PERCENTUAL DA POPULAÇÃO
mensurar o nível de desenvolvimento dos municípios do estado. MELHORANDO EM CADA ASPECTO

Um recente estudo feito pelo Centro de Políticas Sociais da Fundação


Social
Getúlio Vargas destacou Carlos Barbosa no pódio nacional da distribui­ 47
ção de renda. A pesquisa avaliou todos os S 568 municípios do Brasil, Financeiro Propósito
16 36
e a liderança coube a Westfália, outra cidade do Rio Grande do Sul, com
2 700 habitantes, e onde 94,16% das famílias pertencem às classes A, .. ·
.1
B e C. Carlos Barbosa, com os seus 27 835 habitantes, aparece logo em
seguida, com percentual de 93,69% das famílias
nas classes mais altas, e a segunda menor taxa
da população nas camadas D e E. De acordo Comunltârio Físico
com o coordenador da pesquisa, Marcelo Neri, 40 38

economista-chefe da FGV Social, os dados refle­


tem um nível de organização social muito acima TEMPO DE CRISE
O mau momento nos últimos
da média brasileira. "O resultado é um maior per­ anos se reflete nas emoções
centual da população participando do mercado positivas dos brasileiros, hoje
abaixo da média do continente.
de consumo. É uma região bem desenvolvida NÍVEL DE SENTIMENTO
em todos os sentidos. Há menos desigualdade,
melhor nível educacional, mercado de trabalho '
POSITIVO
Média
sul-americana
organizado. Até mesmo a distribuição das pro­ Brasil
78
75
priedades é mais equânime", analisa.
Para um observador comum, nem é preciso
quebrar a cabeça com as equações complexas dos
economistas para perceber o grau de felicidade
reinante em Carlos Barbosa. Basta sair às ruas ou
percorrer a zona rural para dar de cara com gente
de bem com a vida Motivos não faltam. Situada
numa região de natureza exuberante, a cidade
orgulha-se de abrigar a sede da centenária em­
presa Tramontina, potência nacional nas áreas
de cutelaria, ferramentas, utensílios para culiná­
ria, mobília e até de eletrodomésticos. Com mais
' 31 33

NÍVEL DE SENTIMENTO
de 7 soo funcionários, em dez unidades fabris, a NEGATIVO
rotatividade do seu quadro funcional é conside­
GALLUP WORLO POLL. 2015-16
rada baixíssima, fruto de intensivos programas
de treinamento e arraigada relação comunitária.
Os habitantes de Carlos Barbosa também in­
flam o peito na hora de falar dos seus queijos e
embutidos, herança dos imigrantes italianos que
colonizaram a serra a partir da década de 1870.

FELICIDADE
Com o FestiQueijo, realizado todo ano desde
1987, o município celebra a riqueza produtiva das
empresas da região. Mas a menina dos olhos da
cidade é, hoje, o seu "esporte nacional", o futebol
de salão. Fundada em 1976, a Associação Carlos
Barbosa de Futsal, ou ACBF, como é popular­
mente conhecida, é tricampeã mundial de clubes
pela Fifa. O caneco máximo do futebol de salão
foi erguido pelos barbosenses em 2001, 2004
e 2012 - é o segundo clube do mundo com mais
títulos mundiais, superado apenas pela equipe
espanhola Inter Movistar. A sala de troféus do
time está abarrotada de taças regionais, nacio­
nais e continentais. Não por acaso, quase todas
as crianças da cidade querem participar das cate­
gorias de base do clube e vestir a camisa alaranja­
da do time, criada em homenagem ao "carrossel
holandês", a famosa equipe da Holanda que fez
história na Copa do Mundo de 1974.
É no dia a dia, nas coisas rotineiras, que
Carlos Barbosa revela o motivo da satisfação dos
seus habitantes. Um dos efeitos mais visíveis da
redução da desigualdade está na diminuição ex­
pressiva nos indicadores de violência urbana.
"A maior parte das ocorrências é de pequenos de­
litos e desavenças", diz Leônidas Reis, delegado
titular de polícia. "Há anos não temos registro de
crimes violentos por aqui." Afora isso, mesmo a
parcela economicamente menos favorecida da
população - uma minoria - está amparada por
programas bem-sucedidos de assistência e inclu­
são social. Na área da saúde, uma farmácia muni-
cipal abre as suas portas todos os dias, inclusive
nos feriados. A cidade conta com um centro ra-
diológico, custeado com recursos públicos, que realiza exames de raio X Em sua propriedade na
e mamografia com imagem digital. Há ainda o Centro Municipal de Fi­ zona rural do município,
sioterapia e Tratamento da Dor, a Clínica do Homem, o Centro de Aten­ Comercindo Zarpelon
não passa nenhum
dimento Psicossocial e o Centro Municipal de Saúde, com atendimento dia sem tocar gaita
24 horas. No campo da educação, Carlos Barbosa já fez o seu dever de na antiga casa em que
casa, mantendo todas as crianças e os jovens na escola, além de, pratica­ nasceu e ainda mora
mente, ter erradicado o analfabetismo. E, com 80% da população viven­ com a esposa, Inês,
do na zona urbana, quase todos os domicílios possuem água encanada. e a filha, Roselaine.
Para ele, não há lugar
A expectativa de vida é de 78,8 anos, maior que a média brasileira, melhor no mundo para
hoje de 75,5 anos. Não à toa, as políticas públicas de atenção aos idosos se viver. "Daqui ninguém
são exemplares. Um centro de convivência oferece aos mais vividos pro­ me tira", garante.
gramas que incluem aulas de ginástica, dança, teatro, canto e informáti­
ca. Idosos acamados ou dependentes recebem atendimento domiciliar.

NATIONAL GEOGRAPHIC • NOVEMBRO 2017


A ideia é promover a integração e motivar a participação de todos nas
atividades de lazer, evitando a solidão, a depressão e a ociosidade.
Desses males, o agricultor Comercindo Zarpelon jamais padecerá. Aos
70 anos, todos os dias, com um sorriso no rosto, ele cuida de sua proprie­
dade de 24 hectares, onde planta milho e cria três vaquinhas leiteiras.
"Eu me divirto com o trabalho", diz ele. Acordeonista, Zarpelon também
costuma animar os bailões promovidos pelo centro de convivência nos
fins de semana. Sua filha, a costureira Roselaine, de 41 anos, é outra que
não economiza loas à sua querência. "Somos apegados à família. A pró­
pria cidade é uma grande família, e isso é muito acolhedor", comenta.
Tamanho ufanismo entre os moradores se explica: a felicidade é con­
tagiosa quando as pessoas relatam prazer e alegria. É um bem que se
multiplica ao ser dividido - eis aqui um belo gol de Carlos Barbosa. O

FELICIDADE
PTEROSSAUROS

Incríveis
• •
an1ma1s
alados
Novos achados e estudos
estão mudando o modo como
entendemos as maiores, mais
ferozes e estranhas criaturas
que cruzaram os céus da Terra.

Alto como uma girafa e com a envergadura


de um caça F-16, o Quetzalcoatlus northropi
foi um dos maiores animais voadores do
planeta. Este modelo, em tamanho real,
sendo pintado em um ateliê em Minnesota,
vai ser levado a um centro cultural no Kuwait.
A ousadia verde de
Dubai
Uma década atrás, a cidade movida a combustíveis
fósseis tinha uma das maiores pegadas ambientais do
planeta. Até 2050, pretende ter a menor. Vai conseguir?
POR ROBERT KUNZIG
FOTOS DE LUCA LOCATELLI

ara mergulhar de cabeça na audácia


de Dubai - um jardim de concreto,
vidro e aço que. nas últimas três
décadas, brotou e se alastrou pelas
areias escaldantes da Arábia -, você
pode começar esquiando. Vista pelo lado de fora
do Shopping dos Emirados, a rampa lembra uma
nave espacial prateada, empalada no piso térreo.
Entre e veja as vitrinas de Prada, Dior e Alexander
McQueen, antes de passar pelas portas de vidro
do Ski Dubai. Depois de um mural dos Alpes, fe­
che a sua parca, ponha as luvas e se deslumbre
com os prodígios do ar-condicionado.
Como suvenir, compre uma camiseta estam­
pada com um termômetro em graus Celsius e os
dizeres "Fui de +50 a -8". Na rampa, não parece
estar tão frio, mas lá fora a temperatura pode bei­
rar os soºC no verão. A umidade sufoca, devido à
proximidade do mar. Chuva é coisa rara: Dubai
recebe menos de 100 milímetros por ano. E quase

1
não existe solo apropriado à agricultura.
Que tipo de povoação humana é viável num lu­
gar desses? Por séculos, Dubai foi um vilarejo de
pescadores e um porto pequeno. Então o petróleo
e um crescimento imobiliário fenomenal trans­
formaram o lugar em uma cidade de prodígios
t
arquitetônicos, com o terceiro aeroporto mais
movimentado do mundo. "Do ponto de vista
da sustentabilidade, nenhuma cidade teria sido
construída aqui", diz Janus Rostock, arquiteto de
renome transplantado de Copenhague. queima bem mais combustível fóssil para clima­
Mas é justamente uma cidade sustentável que tizar as suas torres de vidro. Para manter a água
o governo de Dubai agora promete criar. saindo nas torneiras em todos esses prédios, a
Sustentável? Dubai? Só quando um camelo cidade basicamente ferve centenas de piscinas
voar, você poderia dizer. Os anos de crescimento olímpicas de água do mar por dia. E criou mais
febril fizeram da cidade um clichê para os exces­ praias para mais hotéis e vilas de luxo soterrando
sos resultantes do encontro da energia barata recifes de coral sob imensas ilhas artificiais.
com a indiferença ao meio ambiente. O esqui em Em 2006, o grupo WWF (Fundo Mundial para
recinto fechado é apenas um símbolo - Dubai a Natureza) declarou: os Emirados Árabes Unidos
eram o país com a maior pegada ecológica per ca­
Esta reportagem é parte da série Expedições pita do mundo, principalmente pelas suas emis­
Urbanas, uma iniciativa da National Geographic sões de carbono. A carapuça serve bem em Dubai,
Society financiada pela United Technologies. a consumista mais ostensiva dos sete emirados
NATIONAL GEOGRAPHIC • NOVEMBRO 2017

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Um prodígio da climatização, o Ski Dubai é o primeiro parque de esqui em recinto fechado do Oriente Médio,
com cinco rampas. Uma nova rampa está em projeto para quebrar recordes, como parte de um surto de
construções impulsionado pela Expo 2020, uma exposição de seis meses com público previsto de 25 milhões.

que formam o país. Desde então, em uma década, produzirá a eletricidade mais barata e mais limpa
a população da cidade duplicou para mais de do planeta. "A liderança reconhece que o cresci­
2,8 milhões de pessoas. Mas algo mais aconteceu mento da economia não será sustentável se não
a partir de 2006: Dubai começou a mudar. tomarem providências sobre as emissões", diz
Reluzentes trens de metrô sem condutor ago­ Tanzeed Alam, diretor de clima e energia da
ra correm em paralelo à Sheikh Zayed, levando Emirates Wildlife Society, parceira local da WWF.
mais ou menos o mesmo número de pessoas que Em Dubai, a "liderança" é a sua alteza, o xeque
os carros na engarrafada avenida de 12 pistas - e, Mohammed bin Rashid al Maktoum, de 68 anos,
geralmente, mais rápido. Um novo conjunto re­ o emir hereditário também conhecido como "o
sidencial chamado Cidade Sustentável recicla a Governante". O xeque Mohammed assumiu o
sua água e o seu esgoto e produz mais energia do governo em 2006. Decretou que, até 2050, a sua
que consome. No deserto, Dubai está construin­ cidade extrairá 75% da sua energia de fontes lim­
do uma usina de energia solar que, em breve, pas. Ele quer deixar a menor pegada de carbono

DUBAI
Areias mutantes
Em uma geração, Dubai passou de uma pequena povoação
a uma metrópole dependente do automóvel, impulsionada
pelo turismo, negócios imobiliários e aviação - a cidade
tem o terceiro aeroporto mais movimentado do mundo, e
está construindo outro. Para um futuro mais seguro, investe
em energia solar, edifícios verdes e transporte coletivo.
Palm Ilhas
Jebel The World
Ali

(�t�) Jumeirah

/
+ Aeroporto
Internacional
AI Maktoum

0km 4

EUROPA ÁS/A
EAU
ÁFRICA
Para o Parque Solar
QC.EANO Mohammed bin
INDIC:O
Rash1d AI Maktoum,
31km /

COMO IDEALIZAR 1787 1979 1997 1999


UM PERFIL ICÔNICO Forte AI Fahidi Sheikh Rashid Tower Hotel Jumeirah Beach BurjAIArab
Núcleo de arrojo arquitetõnlco, A construção O primeiro O seu design famoso O hotel em forma de
Dubai sediarâ a Expo 2020, mais antiga. arranha-céu. retrata uma onda veleiro é um marco.
um evento internacional que prestes a quebrar.
impulsiona a mais recente
arrancada imobiliâria na cidade.

CD ®
EXPANSÃO URBANA
Antes de 1985 -1985-1999 2000-2016
O petróleo começa Dubai ergue o seu Apesar da crise de
a jorrar nos anos 1960 primeiro edifício icónico, 2008-09, a explosão
e, com ele, vêm e sua pegada ecológica imobiliária prossegue
eletricidade, ruas vai às alturas com o com a permissão para
asfaltadas, edifícios avanço do território, da a posse de imóveis
e um aeroporto. população e do tráfego. por estrangeiros.

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• PRO nos fM ANDAMfNTO E FUTUROS COM DATAS DE
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2000 2010 2013 2017' 2020'

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EmiratesTowers Burj Khalifa CayanTower DubaiFrame Dynamic Tower
A torre maior Estrutura mais
- O edifício tem uma Estrutura Cada andar
era a mais alta alta do mundo, torção de 90 graus. que emoldura irá girar,
do Oriente 1 828 vistas da separadamente,
Médio m velha e da nesta torre que
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... e cultiva alimentos em 11 estufas abobadadas.
• •
• •
do mundo. Muitos que encontrei em uma visita a sua casa. Mas, no início dos anos 2000, quando
recente, inclusive Rostock e Alam, acreditam que Dubai começou a permitir a posse de imóveis por
a cidade poderá atingir esse objetivo. "E, se pode estrangeiros- já atraídos pela ausência de tribu­
ser feito aqui, pode ser feito em qualquer lugar." tação sobre a renda-, o dinheiro afluiu. Quatro
grandes construtoras esculpiram a terra. Chega­
o XEQUE MOHAMMED CRESCEU em uma casa ram em massa trabalhadores do sul da Ásia para
iluminada por lamparinas a óleo, em que a água construir vilas e arranha-céus vestidos de vidro
do poço da cidade era trazida em carroça. A casa - um material nada aconselhável em uma terra
era do seu avô, o emir - a família AI Maktoum de sol implacável, mas era o que o mercado de­
governa Dubai desde 1833. A casa ainda existe, mandava. Os operários viviam em acampamen­
perto da foz do estuário de Dubai, uma enseada tos, muitos deles miseráveis, em condições que
natural que é a razão do surgimento da cidade. alguns comparavam à servidão por contrato.
O pai do xeque Mohammed, o xeque Rashid bin A cidade alastrou-se pela costa. Adentrou o
Saeed AI Maktoum, cresceu nessa mesma casa e, Golfo Pérsico, empoleirou-se em penínsulas arti­
na juventude, viu gente passar fome em Dubai. ficiais construídas com quantidades titânicas de
A Grande Depressão e a invenção da pérola cul­ areia dragada, brotou no Deserto da Arábia. "Se
tivada destruíram o mercado para a principal ati­ você analisar como Dubai cresceu, foi tudo uma
vidade econômica da cidade, a pesca de pérolas. obsessão por avançar pelo deserto, construindo",
Foi Rashid quem decidiu modernizar Dubai, diz Yasser Elsheshtawy, um arquiteto que lecio­
após assumir o governo, em 1958, sobretudo de­ nou por 20 anos na Universidade dos EAU em AI
pois que o petróleo começou a jorrar, no fim dos Ain. "Não havia limitações. A energia era barata.
anos 1960. O xeque providenciou rapidamente As pessoas tinham carros. Então, por que não?"
eletricidade, água encanada e ruas asfaltadas. O objetivo de Mohammed é como o do seu pai,
Construiu escolas, um aeroporto e, em 1979, o só que maior: ele quer que Dubai vença o resto do
World Trade Centre (hoje, Sheik Rashid Tower), mundo para mostrar que os árabes podem ser pio­
na época o edifício mais alto do Oriente Médio, neiros novamente, como foram na Idade Média. A
com 39 andares. "Foi feito no meio do nada, na sua estratégia é atrair o mundo para Dubai. Cerca
periferia, e a cidade respondeu crescendo na di­ de 90% dos 2,8 milhões de habitantes são estran­
reção dele" e muito além, diz o britânico residente geiros que vivem em um lugar em que, não muito
em Dubai Neil Walmsley, engenheiro e planejador tempo atrás, milhares de árabes lutavam para so­
urbano da empresa de consultoria Arup. breviver. A população de Dubai, o seu maior re­
O comércio de pérolas não durou para sempre, curso, é jovem e diversificada- as escolas ensinam
e o xeque Rashid sabia que o petróleo também não crianças de dezenas de nacionalidades. Só que é
duraria. Dubai controla apenas uma fração do solo preciso manter toda essa gente viva no deserto.
dos EAU- a parte do leão é de Abu Dhabi. Por isso, Hoje, Dubai tem eletricidade e água em abun­
embora Dubai não fosse centro do comércio mun­ dância, vindas quase totalmente de uma usina de
dial em 1979, na abertura do Trade Centre, o xeque 4 quilômetros de extensão em Jebel Ali. É nesse
Rashid começou a planejar o emirado para avan­ conjunto de chaminés e tanques de evaporação
çar nessa direção. Naquele mesmo ano, inaugurou que a Autoridade de Eletricidade e Água de Dubai
um porto maior em Jebel Ali, a 40 quilômetros do (Aead) queima gás natural para gerar 10 gigawatts
estuário, ou Creek, como é conhecido. de energia. O calor residual é usado para dessali­
O seu filho Mohammed preencheu o espaço nizar a água do mar- mais de 2 bilhões de litros
vazio entre os dois lugares, e transformou Dubai por dia. O gás vem por <lutos do Catar, com quem
não só em um eixo comercial e financeiro mas os EAU cortaram relações diplomáticas em junho,
também, surpreendentemente, em um centro e é trazido em petroleiros até dos Estados Unidos.
turístico e imobiliário. Cada cidadão dos EAU há Dubai, um minúsculo emirado que nos faz
tempos tem direito a um terreno para construir pensar em riqueza petrolífera, depende de

NATIONAL GEOGRAPHIC • NOVEMBRO 2017


combustível fóssil importado para sustentar a Depois dos esbanjadores anos do boom, Dubai
vida. Tentando comunicar a sensação trazida por também está tentando conter a demanda por ele­
essa situação, um funcionário da Aead faz o ges­ tricidade e água. Os preços tiveram uma alta subs­
to de apertar a garganta com as mãos. Mas esse tancial (embora continuem subsidiados), e "agora
sufoco tem o seu lado positivo: pode motivar as não se constroem mais prédios como se energia e
pessoas a mudarem as suas circunstâncias. água fossem ilimitadas", diz Saeed AI Abbar, che­
A crise financeira global de 2008 e 2009 pôs fe da ONG Green Building Council nos Emirados.
fim ao crescimento explosivo de Dubai. O turis­ Eles ainda podem ter fachada de vidro, mas pre­
mo despencou, junto com os preços dos imóveis. cisam possuir aquecedores solares de água, por
Dubai precisou de socorro de Abu Dhabi para exemplo, e sistemas que reduzem automatica­
honrar as suas dívidas. "A crise econômica, pro­ mente a iluminação e o ar-condicionado quando
vavelmente, foi a melhor coisa que nos aconteceu. não há pessoas presentes. "Tenho visto uma mu­
Há males que vêm para o bem", analisa Habiba AI dança enorme", diz AI Abbar. Ele está ajudando

"A crise econômica foi a melhor coisa que nos aconteceu."


Habiba Al Marashi, ativista ambiental

Marashi, cofundadora da ONG para reciclagem e a projetar um dos primeiros prédios de escritório
educação Emirates Environmental Group. "A crise de "energia líquida zero", ou seja, que produzirá a
freou o ritmo alucinado das construções." mesma quantidade de energia que consome.
Enquanto recuperava o fôlego, a cidade teve O primeiro conjunto habitacional com energia
várias razões para repensar o seu rumo. Na cons­ líquida zero foi inaugurado no sul de Dubai. O se­
trutora do xeque Mohammed, a Dubai Holding, gredo da Cidade Sustentável, diz o seu construtor,
"uma das questões era como Dubai iria obter Faris Saeed, não são apenas os painéis solares que
energia para atender a todos os empreendimen­ sombreiam cada vaga de estacionamento e cada
tos imobiliários", conta o consultor Robin Mills, terraço nem o aquecedor solar de água em cada
que trabalhava ali na época. Alternativas verdes casa. São as escolhas simples: por exemplo, cons­
estavam surgindo: a cidade de Masdar, projetada truir soo casas em feitio de L em ruas estreitas
pela firma do célebre arquiteto Norman Foster e e próximas entre si o suficiente para que façam
saudada como a primeira cidade "zero carbono" sombra umas nas outras, como são as velhas ca­
do mundo, sem carros e movida a energia solar, sas no estuário. Isso permitiu que os aparelhos de
começava a ser erguida nas areias de Abu Dhabi. ar-condicionado fossem menores e mais baratos.
O mais importante: o preço da energia solar Isolamento adicional e janelas e tintas refletoras
está em queda livre, e já é, de longe, a forma mais reduzem ainda mais o uso de energia. "O mito de
barata de eletricidade em Dubai. Em fevereiro, que o sustentável é mais caro é falso", diz Saeed.
quando visitei o Parque Solar Mohammed bin Todos esses esforços começam a compensar.
Rashid AI Maktoum, so quilômetros ao sul da O consumo per capita de água e eletricidade está
cidade, a Aead estava concluindo a instalação de declinando e, segundo o governo, o mesmo vale
painéis solares para gerar 200 megawatts, e as­ para as emissões per capita de carbono, o prin­
sinara um contrato para os próximos 800 mega­ cipal fator da enorme pegada de Dubai. Hoje, o
watts, a 2,99 centavos de dólar o quilowatt-hora. residente médio "emite" menos de 18 toneladas
A Aead planeja gerar s mil megawatts até 2030. métricas por ano, só um pouquinho a mais que o
"Milhões de hectares de deserto e área de telha­ americano médio. Mas o consumo e as emissões
do de sobra. Geração de eletricidade, para mim, é totais continuam em alta, pois a população está
quase um problema resolvido por aqui", diz Mills. crescendo. E um morador de Dubai ainda emite
DUBAI
.[

Com energiq,,solar, uma "Palmeira Inteligente",


de 6 metros, em Jumeirah Beach, perto do
'".hotel aurt AJ Arab, fornece sombra e muito mais:
. sirtal de wi-fi, carregador de celular, iluminação, �
· qtJadro de avisos, câm.era de segurança.
· 'Mals de 100.delas serão instaladas na cid_?de. I
Aberto em 2016, o Canal Hídrico de Dubai, com 3 quilõmetros de extensão, liga o Golfo Pérsico à enseada
natural da cidade, cenário da primeira povoação. O projeto aumenta a valiosa área para construções à
beira-mar, destinada a comércio varejista, moradias, parques públicos, trilhas, marinas e um serviço de balsa.

três vezes mais que um nova-iorquino, em parte do Burj Khalifa, o prédio mais alto do mundo, em
porque a cidade se transformou numa vastidão um bairro de lojas e restaurantes térreos, convida­
dependente de automóveis. Os moradores do tivo para passeios a pé. Próximo ao Shopping dos
conjunto habitacional que Saeed projetou podem Emirados, a Dubai Holding está projetando um
ir a pé a restaurantes e à mesquita, mas ainda têm condomínio de 1,5 quilômetro de extensão cha­
de rodar de 16 a 25 quilômetros de carro até al­ mado Jumeirah Central, onde centenas de prédios
cançarem um dos múltiplos centros urbanos de se distribuirão por quarteirões pequenos. Haverá
Dubai. O metrô não chega à Cidade Sustentável. uma ligação por bondes até o shopping e o metrô.
Urbanistas estão reformulando a mobilidade Todas as discussões sobre o futuro remontam
local. Janus Rostock, arquiteto-chefe da Atkins ao Governante, à liderança decisiva do xeque
- a firma que projetou o metrô, o hotel com con­ Mohammed. "Não temos muitas formalidades",
tornos de veleiro Burj Al Arab e a Ópera de Dubai diz Hussain Lootah, do governo municipal. "Aqui,
-, lidera a iniciativa para transformar o entorno os projetos ficam prontos em dias; em outros

NATIONAL GEOGRAPHIC • NOVEMBRO 2017


em sustentabilidade. "Este país se desenvolveu
depressa, e assim também pode mudar, porque
conta com o apoio dos dirigentes", diz Tanzeed
Alam, da ONG Emirates Wildlife Society.
Talvez a maior razão para a esperança seja
que os imperativos ambientais condizem agora
com as premências econômicas de Dubai. Não
é apenas porque a energia solar é barata. Dubai
está dando uma guinada porque precisa, explica
Janus Rostock: ela enfrenta a concorrência de
outras cidades pelos negócios e pelas pessoas,
e a sustentabilidade está na moda. "A vontade
é aliada da necessidade de mudar Dubai", diz.
Mas desacelerar não está nos planos da cida­
de. Em uma parede no escritório de Lootah, fotos
aéreas emolduradas mostram como Dubai evo­
luiu desde 1935, quando era um vilarejo pobre de
pescadores. No centro está uma visualização do
futuro: a imagem de um litoral ainda mais atu­
lhado de ilhas artificiais do que é hoje. Projeções
dizem que a população de Dubai irá dobrar para
mais de s milhões até 2030. A cidade ganha a vida
com a expansão da sua pegada: quase um quarto
da população trabalha no ramo da construção.
O ponto de estrangulamento, se vier, será com
a água, não com a energia. O Golfo Pérsico, com
o seu mar raso, já é quase 20% mais salgado que
o oceano, e a salinidade está aumentando: repre­
sas na Turquia e no Iraque desviam água doce, a
mudança climática aumenta a evaporação e as
usinas de dessalinização despejam no mar água
salgada quente. Com o tempo, será ainda mais di­
fícil dessalinizar a água, que, de tão saturada, não
poderá mais nutrir a vida marinha que outrora
lugares, levam anos." Isso não acontece só pela sustentava Dubai. "Ainda podemos conseguir",
ausência de burocracia: sem liberdade de impren­ diz Lootah. Com tecnologia, "tudo é possível".
sa, partidos políticos e eleições livres, não há opo­ Com energia solar suficiente, é possível até
sição aos projetos endossados pelo Governante. esquiar em recinto fechado sem culpa na Dubai
Nos anos de crescimento meteórico, esse siste­ cada vez mais quente por causa das mudanças cli­
ma gerou a impetuosa expansão de Dubai e proje­ máticas. No verão, as ruas ficam vazias. Até 2100,
tos desatinados como o The World, o arquipélago talvez haja dias tão quentes e úmidos que sair ao
de 300 ilhas artificiais (moldadas com contornos ar livre seja mortal. Pergunto a Tanzeed Alam: tem
de países) que permanece pouco habitado. Mas cabimento existir uma cidade num lugar desses?
também produziu o metrô de Dubai, um tremen­ "A pergunta é errada", diz ele. ''A questão é aceitar
do sucesso construído em menos de uma década o lugar em que estamos e fazê-lo melhor. É o di­
e inaugurado no auge da crise financeira. Proje­ reito dos seres humanos ao desenvolvimento e a
tos como esse trazem esperança aos especialistas um futuro. Como tornar as cidades melhores?" O

DUBAI
Por Richard Conniff
Fotos de Robert Clark

Ao ouvir o tertno "pterossauros", a


maioria das pessoas estranha. Até que
você acrescenta "como os pterodátilos".
Esse é o nome comum atribuído ao primeiro pte­ versões enormes que pairavam no ar, sobrevoan­
rossauro, descoberto ainda no século 18. Desde do os oceanos por dias, como os albatrozes; assim
então, os cientistas descreveram mais de 200 es­ como os que permaneciam em baixios salobros,
pécies de pterossauro, mas as ideias correntes a comendo por filtração, como os flamingos.
respeito desses animais - os dragões alados que Entre os achados mais excitantes está um sor­
dominavam os céus na era Mesozoica, há 162 mi­ timento de ovos fossilizados. O escaneamento de
lhões de anos - estão longe de se atualizar. Nós ovos intactos permitiu o exame de embriões sob
ainda os imaginamos como répteis de cabeça a casca, e ajudou a explicar o desenvolvimento
pontuda, asas coriáceas e voo desajeitado - além, dos filhotes recém-eclodidos. Um dos ovos estava
é claro, de exibirem propensões assassinas. num pterossauro Darwinopterus encontrado na
Basta ver, por exemplo, o filme Mil Séculos China, juntamente com outro ovo, aparentemen­
Antes de Cristo, de 1966, no qual um pterossauro te expulso durante o impacto que matou a fêmea.
guinchante arrebata Raquel Welch para alimen­ A "Sra. T" tornou-se assim o primeiro espécime
tar a sua ninhada. (Alerta: ela sobrevive.) Para sobre o qual não resta dúvida quanto ao sexo. E,
uma versão mais atualizada, há o Jurassic World como não exibia crista na cabeça, também ofe­
- OMundo dos Dinossauros, de 2015, no qual essas rece o primeiro indício de que, pelo menos no
criaturas continuam a carregar os seres humanos caso de alguns machos, assim como se dá entre
pelo céu, cumprindo o triste destino de perso­ as aves modernas. as cristas avantajadas e colo­
nagens sempre estereotipados. (É bom lembrar ridas desempenhavam uma função em exibições
que os derradeiros pterossauros se extinguiram de natureza sexual. Tais descobertas conferem
há 66 milhões de anos, muito antes de os primei­ aos pterossauros um aspecto mais vivido como
ros seres humanos aparecerem no planeta.) animais de verdade. E também despertam nos
Um surto de descobertas de fósseis trouxe à pesquisadores um apetite por mais detalhes.
luz uma nova variedade de formatos, tamanhos
e comportamentos dos pterossauros. Alguns CAMINHO DO BOLO em camadas geoló­
paleontólogos estão seguros de que centenas de gicas do Parque Nacional Big Bend, no
espécies podem ter convivido nas mesmas épo­ udoeste do estado americano do Texas,
cas, compartilhando os hábitats tal como o fazem o paleobiólogo britânico Dave Martill menciona
as aves modernas. Deste mundo faziam parte uma lista de tarefas a executar nessa breve mis­
monstros como o Quetzalcoatlus northropi, um são de reconhecimento: primeiro, topar com uma
dos maiores animais voadores que se conhece, cascavel interessante; segundo. achar no terreno
quase tão alto quanto uma girafa, com asas cuja um crânio completo de Quetzalcoatlus. Claro que
envergadura chegava a 10,5 metros e que prova­ a probabilidade de ticar o primeiro item da lista
velmente exibia uma tendência a agarrar bebês é infinitamente maior. Mas ele e o paleontólogo
dinossauros. Mas também havia pterossauros tão Nizar Ibrahim logo mergulham numa discussão
pequenos quanto pardais, adejando pelas matas sobre o melhor meio de obter uma permissão de
e talvez se alimentando de insetos; ou, ainda, pesquisa caso encontrem o segundo item.
NATIONAL GEOGRAPHIC • NOVEMBRO 2017
Os ossos do Caiuajara dobruskii estão prontos para serem estudados em um museu em Santa Catarina.
A multiplicação de achados fósseis obrigou os cientistas a reverem a sua concepção dos pterossauros.

Aí está, portanto, a primeira regra de quem deixam o parque, os dois paleontólogos já pla­
pesquisa os pterossauros: é preciso ser otimista. nejam a retomada da busca pelo Quetzalcoatlus,
O fato inegável é que os fósseis são muito raros. impelidos pelo fascínio da intrigante diversidade
Todo o deslumbrante mundo deles, delineado de formatos, tamanhos e comportamentos dos
apenas com base em ossos ocos e de paredes finas pterossauros, uma variedade que apenas se vis­
como folhas de papel, há muito virou pó. Tal es­ lumbra nos mais raros indícios fósseis.
cassez vale sobretudo para o Quetzalcoatlus, que As concepções científicas a respeito dos pte­
se tornou conhecido graças apenas a uns raros rossauros também se mostram diversas - mesmo
fragmentos achados no Big Bend nos anos 1970. no que se refere a questões básicas do tipo: qual
Martill e Ibrahim dedicam três dias à busca de a aparência que eles tinham e como se compor­
ossos nas encostas gretadas. Passam e repassam tavam. Isso se deve, em parte, ao fato de que os
por um local de nome promissor, a Crista dos Pte­ pesquisadores tiveram de elaborar as suas hipó­
rodátilos, consultando com frequência as anota­ teses a partir de um mero punhado de espécimes,
ções feitas nos mapas usados pelo descobridor do muitas vezes desprovidos de detalhes cruciais.
Quetzalcoatlus. Atentos às sutilezas dos estratos Outro motivo é a óbvia estranheza na anatomia
geológicos, eles vão evocando mundos perdidos. dos pterossauros, aparentemente mal adaptada
No final, os pesquisadores não topam com o para a vida na terra ou no ar. Alguns cientistas
mais débil resquício de pterossauro. Como prê­ sugeriram que os pterossauros se arrastavam
mio de consolação, o fêmur de um dinossauro sobre o próprio ventre. Outros os imaginaram
gigante, talvez um Alamosaurus. Mas dinossau­ andando eretos sobre as pernas traseiras, feito
ros não são pterossauros e vice-versa. Enquanto zumbis. E ainda há os que os retrataram como

CENPALEO. UNIVERSIDADE DO CONTESTADO, BRASIL PTEROSSAUROS


+
Primeiros morcegos
FERNANDO G. BAPTISTA, DAISY CHUNG
E EVE CONANT, NGM STAFF; ADRIENNE
TONG; MESA SCHUMACHER
FONTES, DAVE MARTIL� E MARK
WITTON. UNIVERSIDADE DE
PORTSMOUTH, REINO UNIDO: NIZAR
IBRAHIM. EXPLORADOR DA NATIONA�
GEOGRAPHIC; MICHAEL HABIT,
UNIVERSIDADE DO SUL DA CALIFÔRNIA
E MUSEU DE HISTORIA NATURAl
DO CONDADO DE LOS ANGELES
Pterossauros
em perfil Nyctosaurus graci/is
Envergadura: 2 m
A variação do formato
do bico pode ter
ocorrido por razões
alimentares. Ainda não
sabemos nada sobre a
função e as cores das
Sdhuetasem
cristas, mas é possível
comparação
que fossem úteis para com a escala
atrair parceiros sexuais. humana

quadrúpedes, com as asas dobradas nas laterais, biológico, Habib e os seus colegas descartaram a
mas avançando desajeitadamente, corno se es­ hipótese de que dependessem de penhascos para
tivessem se acostumando ao uso dos membros alçar voo. Também demonstraram que a hipóte­
dianteiros. Para alguns pesquisadores, os pteros­ se de que decotavam do solo com urna postura bi­
sauros eram de tal modo deficientes em termos pedal e ereta, como foi proposto por outros cien­
aeronáuticos que apenas conseguiam alçar voo tistas, teria destroçado os fêmures das espécies
depois de se pendurar de cabeça para baixo e se maiores. "Levantar voo a partir de urna postura
lançar da borda de penhascos íngremes. quadrupedal fazia bem mais sentido", diz Habib.
"Não é incomum que a cabeça e o pescoço As asas dos pterossauros consistem de uma
tenham um comprimento de três a quatro ve­ membrana presa em cada lado do corpo, do
zes maior que o do tronco", ombro até o tornozelo, e es­
comenta Michael Habib, um tendida por um quarto dedo
estudioso da anatomia desses alongado no bordo de ataque.
animais. Até mesmo os ilus­ Eles parecem Espécimes bem preservados,
tradores científicos muitas agora menos do Brasil e da Alemanha, re­
vezes se equivocam ao repre­ velaram que a membrana da
sentá-los. "Eles basicamen­
desajeitados no asa era entremeada de mús­
te usam o modelo das aves e céu. E se revelam culos e vasos sanguíneos, e re­
acrescentam urna asa com sofisticados forçada com cordões fibrosos.
membrana e uma crista, mas Na concepção atual dos
a verdade é que as proporções
seres voadores. pesquisadores, os pterossau­
dos pterossauros nada têm a ros eram capazes de fa zer
ver com as dos pássaros." ajustes sutis no formato das
Funcionário do Museu de História Natural do asas, de acordo com as condições de voo, por
Condado de Los Angeles, Habib está empenhado meio dos músculos nas asas ou pelo desloca­
em reconstituir a biomecânica dos pterossauros, mento para dentro ou para fora dos tornozelos.
combinando uma abordagem matemática com A alteração no ângulo de um osso carpal deno­
o conhecimento anatôrnico prático. Tal como minado "pteroide" pode ter proporcionado a eles
quase todos os pesquisadores, Habib estima que um equivalente das aletas no bordo de ataque na
os pterossauros surgiram cerca de 230 milhões asa de um jato comercial, resultando em maior
de anos atrás a partir de répteis ligeiros e fortes, força de sustentação em baixa velocidade. Os pte­
adaptados para correr e saltar sobre as presas. rossauros também mobilizavam mais músculos
E esses saltos - para capturar um inseto ou se es­ para a atividade do voo, e uma maior proporção
quivar de um predador - evoluíram aos poucos do peso corporal, do que ocorre com as aves. Até
para "saltos cada vez maiores", sugere. No início, mesmo o seu cérebro parece ter se especializa­
eles provavelmente planavam, mas, depois, deze­ do em voar, com lóbulos maiores dedicados ao
nas de milhões de anos antes das aves e dos mor­ processamento dos complexos dados sensoriais
cegos, eles se tornaram os primeiros vertebrados transmitidos pela membrana das asas.
a conseguir se manter no ar por força própria. Em consequência, os pterossauros hoje pare­
Com a ajuda de equações aeronáuticas que cem bem menos desajeitados no céu e, em vez
foram aplicadas pela primeira vez no contexto disso, se mostram corno requintados aviadores.

ILUSTRAÇOES OE RAÚL MARTIN. PESQUISA OE MESA SCHUMACHER. FONTES: OAVE MARTILL E MARK WITTON. UNIVERSIOAOE OE PORTSMOUTH, REINO UNIDO; NIZAR IBRAHIM,
EXPLORADOR OA NATIONAL GEOGRAPHIC. MICHAEL HABIT, UNIVERSIDADE DO SUL OA CALIFÓRNIA E MUSEU OE HISTORIA NATURAL DO CONDADO OE LOS ANGELES
Pterodaustro guinazuí Ornithocheírus mesembrinus Thalassodromeus sethi
Envergadura: 3 m Envergadura: 8 m Envergadura: 4 m

É provável que muitas espécies tenham evoluí­ uma espécie de hipótese, a do "grande lobo mau":
do de modo a voar devagar, mas com grande efi­ "Com uma cabeça enorme, você tem uma boca
ciência por longas distâncias, ganhando maiores também enorme, o que é bom para devorar coi­
altitudes graças às térmicas mais fracas sobre os sas", diz. "Além disso, tal cabeça é boa para a exi­
oceanos. Algumas podem até mesmo ter se torna­ bição sexual." Os pterossauros, respondeu ele à
do "hiperaéreas", para usar o termo de Habib. Por paleontóloga que o questionou na palestra, "eram
exemplo, o Nyctosaurus, um pterossauro mari­ gigantescas cabeças voadoras assassinas".

E
nho semelhante a um albatroz, com envergadura
de quase 3 metros, tinha uma "taxa de planagem", M UMA MOVIMENTADA RUA do Centro de
a distância que se percorre no ar a cada metro de Jinzhou, uma importante cidade comer­
perda de altitude - "bem dentro do limite de um cial no nordeste da China, Junchang Lü,
atual planador de competição", diz Habib. um dos mais renomados paleontólogos do país,
"Tudo bem, os parâmetros da asa parecem conduz os visitantes por um corredor mal ilu­
bons", comentou recentemente uma paleon­ minado de um prédio de aparência comum que
tóloga ao conversar com Habib. "Mas e quanto abriga o Museu de Paleontologia de Jinzhou.
à cabeça?" Estima-se que o Quetzalcoatlus, por Ali, no gabinete do diretor, Lü abre a porta de
exemplo, tivesse um crânio medindo até 6 me­ um aposento pequeno e sem janelas para mos­
tros, fixado a um tronco com apenas um quarto trar algo que certamente estaria entre as princi­
desse comprimento. Também o Nyctosaurus ti­ pais atrações de qualquer outro museu: lajotas
nha uma cabeça desproporcional, para não falar de pedra contendo fósseis repletos de detalhes
de um enorme mastro que se projetava do seu de dinossauros emplumados, aves primitivas e,
topo, possivelmente dotado de crista. sobretudo, pterossauros, preenchendo todas as
A resposta de Habib tem a ver, em parte, com prateleiras e grande parte do chão.
o cérebro dos pterossauros, que acrescentava um Apoiada na parede do fundo, uma lajota que
peso mínimo à cabeça imensa. E também com os chega quase até o ombro de Lü exibe um pte­
ossos desses animais, que eram ocos, ainda mais rossauro enorme - um Zhenyuanopterus, com
ocos que os ossos das aves. Em alguns casos, as envergadura de 4 metros e minúsculos pés de
paredes dos ossos tinham menos de 1 milímetro galinha nos membros traseiros. Comprida e es­
de espessura, formadas por camadas laminadas treita, a cabeça, voltada para o lado, é toda uma
e entrecruzadas a fim de resistirem às torções e boca-armadilha, formada pelo entrecruzamento
aos rompimentos - alguns pesquisadores os cha­ de dentes finos, como agulhas, que crescem e se
mam de "ossos de compensado" - e ainda conta­ sobrepõem na extremidade letal. "Era para cap­
vam com escoras no interior oco para impedir o turarem peixes enquanto nadavam na superfí­
colapso dos ossos. Devido a essa característica, os cie", diz Lü. Essa é uma das quase 30 espécies de
pterossauros puderam ir aumentando o esquele­ pterossauro que ele descreveu desde 2001 - e há
to ósseo, expandindo certos elementos anatômi­ outras esperando nas prateleiras pelo reconheci­
cos sem acrescentar peso em demasia. mento da comunidade científica.
Os crânios, ornados de cristas e quilhas, e as O museu de Jinzhou é apenas uma entre dez
bocarras imensas adquiriram proporções tão des­ instituições similares com fósseis existentes na
proporcionais que Habib as considera "ridículas" província de Liaoning, o principal filão que via­
e até "obtusas". E foi isso o que o levou a propor bilizou a descoberta moderna dos pterossauros

ILUSTRAÇÕES DE RAÚL MARTIN. PESQUISA DE MESA SCHUMACHER. FONTES: DAVE MARTILL E MARK WITION, UNIVERSIDADE DE PORTSMOUTH, REINO UNIDO; NIZAR IBRAHIM,
EXPLORADOR DA NATIONAL GEOGRAPHIC; MICHAEL HABIT. UNIVERSIDADE DO SUL DA CALIFÔRNIA E MUSEU DE HISTÓRIA NATURAL DO CONDADO DE LOS ANGELES
e promoveu a recente ascensão da China à li­ certos que com que alguma competitividade.
nha de frente da busca aos fósseis. Mas outros A China é um dos cinco locais no mundo - ao
paleontólogos comentam, à boca pequena, que lado de Alemanha, Brasil, Inglaterra e Estados
ali é uma terra sem lei, onde vale tudo, com os Unidos - nos quais foram achados 90% de to­
mais empreendedores realizando a maior parte dos os fósseis de pterossauros. Isso não se deve
da coleta, em detrimento dos critérios científicos. ao fato de que esses cinco países terem sido as
Negociantes, muitas vezes, adquirem os melho­ únicas regiões em que existiram pterossauros em
res espécimes para vendê-los no mercado negro. abundância. Fragmentos de fósseis foram coleta­
Além disso, Liaoning vem a ser a principal re­ dos por todo o planeta, até mesmo na Antártida.
gião de coleta, em meio a uma disputa que é com­ O motivo é que, na opinião dos paleontólogos,
parada por forasteiros, de forma um tanto injus­ a diversidade que havia por toda parte acabou
ta, às infames "guerras dos ossos", que opuseram, simplesmente mais bem preservada nesses locais
no século 19, dois pioneiros paleontólogos ameri­ em função de peculiaridades geológicas.
canos, Othniel Charles Marsh e Edward Drinker Em nenhum outro lugar, isso se comprova de
Cope. Agora, a rivalidade se dá entre Lü, membro forma tão bela quanto na província de Liaoning.
da Academia de Ciências Geológicas da China, No início do período Cretáceo, explica Lü, as flo­
e Xiaolin Wang, cujo gabinete, restas temperadas e os rasos
atulhado de espécimes, fica lagos em Liaoning viabiliza­
no Instituto de Paleontologia ram uma complexa comuni-
de Vertebrados e Paleoantro­ Existe algo de dade ecológica, que incluía
pologia (IVPP, na sigla em in­ comovente em dinossauros, aves primitivas
glês}, em Pequim. Tal como
Marsh e Cope, os dois, inicial­
ver essa máquina e grande variedade de pte­
rossauros. Tempestades vio­
mente, trabalhavam juntos, de matar lentas e erupções de cinza
mas, depois, tomaram cami­ paralisada em vulcânica vez por outra dizi­
nhos distintos, guardando
uma hostilidade muda. "Não
forma de fóssil. mavam grande quantidade
de animais de modo repenti-
há lugar para dois tigres numa no, talvez até derrubando-os
montanha", interpreta o pa- em pleno voo sobre planícies
leontólogo Shunxing Jiang, do IVPP. lamacentas. Esses eventos catastróficos enterra­
Nos 16 anos que dura essa disputa, cada um ram rapidamente as vítimas, por vezes em con­
dos cientistas repetidas vezes conquistou vanta­ dições anaeróbicas, com sedimentos que pre­
gens em relação ao outro e, no total, os dois reve­ servaram os espécimes intactos e com todos os
laram mais de meia centena de novas espécies de detalhes por mais de 100 milhões de anos. Atual­
pterossauro - e quase um quarto de todos os que mente os fósseis surgem em áreas montanho­
conhecemos. Algumas dessas espécies talvez se sas e penhascos erodidos por toda a província.
mostrem inválidas, como costuma ocorrer depois A princípio, não parecem muito promissores:
de todo grande surto de descobertas paleontoló­ apenas uma lajota de pedra com uma ou outra
gicas. No entanto, cada qual ainda tem muitos débil sugestão de osso. Mas, depois que um pre­
achados a fazer. "Vão ter de se empenhar, com parador, usando um microscópio, remove meti­
dedicação integral, por uma década" para des­ culosamente milênios de sedimentos acumula­
crever tudo o que dispõem, comenta, com inve­ dos, os fósseis começam a recobrar a nitidez.
ja, um pesquisador de fora. Ao ouvir isso, Jiang E, quando se examina um fóssil após outro
ergue as sobrancelhas, com certa preocupação, - por exemplo, no Museu do Pterossauro em
e diz: "Acho que dez anos é pouco". Beipiao ou na recente exposição no Museu de
Seja como for, o êxito de ambos provavelmente História Natural de Pequim-, eles começam a
tem mais a ver com estar no local e no momento fazer sentido como uma espécie individual em
NATIONAL GEOGRAPHIC • NOVEMBRO 2017
Um sujeito comum com olho aguçado para encontrar fósseis, Ray Stanford descobriu centenas de lajotas
de pedra com resquícios de pterossauros e outros animais na região em que vive, perto de Washington, DC.

toda a sua diversidade original. Há o pterossau­ Cretáceo. há 66 milhões de anos. Ou talvez o fato
ro de boca larga e cara de sapo, o Jeholopterus de terem evoluído de modo a ficar cada vez maio­
(também conhecido por come-come), que su­ res, alcançando dimensões gigantescas no caso
postamente agarrava libélulas e outros insetos do Quetzalcoatlus e de outros, tenha causado
nas florestas primitivas. Ou o Ikrandraco, assim essa vulnerabilidade, ao passo que espécies me­
batizado por causa dos dragões do povo Na'vi, no nores de ave conseguiram escapar da catástrofe.
filme Avatar. e que deviam voar a baixa altitude Já os pterossauros foram extintos para sempre.
sobre a água, usando uma espécie de quilha na No entanto, à medida que esquadrinhamos
mandíbula inferior para capturar peixes próxi­ os belos resquícios guardados em museus, algo
mos à superfície. Tem ainda o Dsungaripterus, estranho passa a acontecer: começamos a nos
do noroeste da China, com bico comprido. fino e perguntar se o Nemicolopterus não estaria escor­
virado para cima, adaptado para sondar mariscos regando para fora da pedra em busca das partes
e outros invertebrados, cujas conchas eram então que faltam no seu corpo. Ficamos em dúvida se
esmagadas pelos seus dentes nodosos. não acabamos de surpreender um movimento
Não há como negar que existe algo comove­ nos dedos do pé do Kunpengopterus, saltando da
dor na visão de tantos instrumentos de destrui­ superfície rochosa como letras escuras e pardas
ção preservados em lajes de pedra. No final, por em relevo. Por um efeito óptico ou mental, pode­
algum motivo, os pterossauros nos dão uma im­ mos ficar com a impressão de que os pterossau­
pressão de vulnerabilidade. Talvez as fontes de ros, essa expressão bizarra e excessiva da força
nutrientes das quais dependiam tenham acaba­ vital da Terra, talvez estivessem prestes a ressur­
do durante a grande extinção no fim do período gir da pedra e se alçar de novo ao céu. O

PTEROSSAUROS
Por David Quammen
Fotos de Cory Richards

Visto do alto, o Delta do Okavango parece uma


gigantesca flor estrelada e prensada na paisagem
do norte de Botsuana, com o caule inclinando-se
para o sul após a divisa com a Nannbia, e as pétalas
de água prateada espraiando-se por 150 quilômetros
na Bacia do Kalahari. Essa área é uma das grandes
planícies úmidas do planeta, uma enorme extensão
de vivificantes canais, lagunas e lagoas sazonais, no
meio de uma das regiões mais secas do continente.

O Delta do Okavango não desemboca no mar. Essa água vem quase toda de Angola, o com­
Todo contido no interior da bacia hidrográfica, plicado vizinho de Botsuana, do qual é separado
ele acaba num perímetro a sudeste, com a sua apenas por uma estreita faixa de território na­
água sendo absorvida pelos espessos areais do mibiano. A origem da água está nas terras altas
Kalahari. É possível considerá-lo o maior oásis úmidas e chuvosas, no centro de Angola, e de lá
do mundo, um refúgio úmido que assegura a so­ ela corre para a região sudeste do país, passando
brevivência de uma miríade de vida selvagem: por importante área de drenagem, a bacia do Rio
elefantes, hipopótamos, mabecos, antílopes, ja­ Cubango, e em seguida, mais lentamente, por ou­
valis, búfalos, leões e zebras, assim como de uma tra, a do Rio Cuito, em que forma lagos; depois,
deslumbrante diversidade de aves - sem mencio­ infiltra-se pouco a pouco através de relvadas
nar um setor turístico que movimenta centenas planícies aluviais, turfeiras e camadas arenosas
de milhões de dólares por ano. No entanto, dos subjacentes, até que acaba, afinal, engrossan­
céus, não dá para a gente avistar os crocodilos do afluentes. O Cuito e o Cubango se juntam na
e os hipopótamos descansando. Tampouco os fronteira meridional de Angola, formando um rio
cães-selvagens acocorados à sombra dos arbus­ mais caudaloso, o Okavango, que atravessa a fai­
tos espinhosos ou as expressões de contenta­ xa de Caprivi, um estreito território da Natn1bia,
mento estampadas no rosto dos visitantes e dos e entra, por fim, em Botsuana. Em média, 9,4 tri­
empreendedores locais. Outra coisa que também lhões de litros de água afluem a cada ano à região
não dá para ver do alto é a origem de tanta água. do delta. Se não houvesse essa dádiva líquida,
o Delta do Okavango deixaria de existir.
Apoio à pesquisa NGS O desenvolvimento O pior é que mudanças no sudeste de Angola,
deste projeto foi possível graças à sua assinatura já em andamento ou previsíveis - no uso das
terras, na captação de água, na densidade demo­ Steve Boyes, à direita, faz uma pausa ao lado do
gráfica e no comércio-. tornam essa perspecti­ cineasta Neil Gelinas, da National Geographic. Entre
va sombria cada vez mais provável. É por esse todos os desafios que enfrentou nos mais de dez
anos de estudo no Okavango- burocracia, canoas
motivo que o Cuito e o Cubango, dois rios numa reviradas, minas terrestres-, um ataque de abelhas
remota região do continente, vêm despertando Halictidae é apenas mais um obstáculo a superar.
interesse crescente em determinados círculos. É
por isso que um grupo internacional de cientis­ preparava o doutorado, teve diversos empregos
tas, autoridades públicas, planejadores e explo­ - foi atendente em vinícolas, guia turístico, ge­
radores - reunidos por um entusiástico conser­ rente um camping no Okavango. Por volta de
vacionista sul-africano, o biólogo Steve Boyes, 2007, a questão do suprimento de água tornou-se
com apoio da National Geographic Society - deu cada vez mais óbvia para ele. Mas, sempre que
início a um amplo projeto de coleta de dados e quis soar o alerta em Botsuana, topou com uma
defesa ambiental batizado Okavango Wilderness. reação marcada pelo fatalismo. "As pessoas não
Entre os participantes há um consenso de que demonstravam interesse", diz. Instigado, Boyes
correm risco a saúde e o futuro do Okavango, e o passou a prestar mais atenção no norte, nas cabe­
mesmo ocorre no agreste sudeste de Angola. ceiras dos rios. Ele esperava não só entender mas
"Já deveríamos estar fazendo algo", me diz contribuir para a preservação do sistema fluvial.
Boyes, no início de 2017, em um acampamento à
margem do Rio Cubango, depois de uma jornada EM 2017, ANGOLA talvez pareça um local impro­
remando as canoas típicas locais, os mokoros, rio vável para levar adiante projetos visionários de
abaixo. Boyes cresceu em Johannesburgo. mas conservação - por outro lado, ele oferece oportu­
sempre foi apaixonado pela natureza. Enquanto nidades incomuns. Embora tenha sido devastado

DELTA DO OKAVANGO
pela guerra, o país está pacificado. Desde o iní­ Há muito tempo, a pesca é crucial para
cio da década de 1960 até o começo do milênio, os ribeirinhos das bacias do Cuito e
Angola permaneceu no topo da lista de nações do Cubango. Graças a redes melhores,
eles agora apanham mais peixes,
que ninguém gostaria de visitar - a não ser que os quais são defumados e levados,
você fosse um combatente mercenário ou um em motos ou canoas, aos mercados.
negociante de diamantes. Uma das colônias afri­ Boyes e outros temem que essa
canas de Portugal, o país tomou-se independente pesca ampliada não seja sustentável.
em 1975, depois de uma brutal guerra de liberta­
ção, e em seguida foi palco de uma guerra civil
que se prolongou por 27 anos, durante os quais
serviu de campo de enfrentamento das superpo­
tências, tendo o seu território recheado de minas
terrestres - um cenário de sofrimento e violência.
Mas a situação mudou de maneira drástica
desde 2002, quando o grupo rebelde Unita foi
definitivamente derrotado, ao mesmo tempo que
começou a extração e exportação em grande es­
cala de petróleo, gerando um surto de crescimen­
to econômico. "O mais importante que temos a
dizer ao mundo é que Angola hoje desfruta de
estabilidade", me disse recentemente a minis­
tra do meio ambiente Maria de Fátima Monteiro
Jardim. "Estamos empenhados na preservação
da natureza", insistiu. O que esse compromisso
significa na prática, porém, é algo difícil de dizer.
A equipe de Boyles conta com a beneplácito dia, depois de remarem por toda a extensão do
das autoridades angolanas, assim como o apoio lago, eles descobrem que, no seu início, o Cuito
internacional, a fim de realizar um levantamento não passa de um pequeno córrego, com 1 metro
ambicioso dos rios Cuito e Cubango e também e pouco de profundidade e a mesma distância
alguns afluentes. Os exploradores vão identificar de largura, e não poderia ser percorrido pelas ca­
a fauna silvestre, coletar amostras de água, regis­ noas de 6 metros de comprimento. Por isso, têm
trar a presença e os impactos humanos nas mar­ de transportar as canoas até um ponto mais abai­
gens, compilar um enorme e acessível banco de xo do rio, arrastando-as pela relva alta, ao mesmo
dados e tentar entender exatamente de que modo tempo que coletavam dados. Esses mokoros são
as águas limpas do sudeste angolano asseguram feitos de fibra de vidro e madeira, e não escavados
a vivificação do Delta do Okavango em Botsuana. em troncos de ébano ou de outras árvores como
Essas expedições exploratórias - das quais já os modelos originais do Okavango, mas ainda
foram realizadas oito - revelam-se, ao mesmo assim estão muito pesados, pois levam todo o
tempo, árduas e minuciosas. A primeira tem iní­ equipamento. O pessoal precisa arrastá-los por
cio em 21 de maio de 2015, quando Boyles e os mais de uma semana até alcançarem um trecho
seus colaboradores, viajando com uma escolta navegável do Cuito. Só então podem embarcar
de Land Rovers do Halo Trust, uma ONG volta­ e usar os remos e as varas, mas aí enfrentando uma
da para a desativação de minas terrestres, e um nova ameaça: os crocodilos e os hipopótamos.
enorme caminhão russo, chegam até um lago que Nos trechos iniciais, o Cuito é um rio intocado
é a nascente do Rio Cuito. Eles haviam levado vá­ - água límpida, poucos sinais da presença hu­
rias toneladas de equipamentos e sete mokoros, mana. Na manhã de 11 de julho de 2015, em uma
que lhes serviriam para descer o rio. No primeiro curva larga, algo mergulha na água por entre os

NATIONAL GEOGRAPHIC • NOVEMBRO 2017


juncos mais à frente. Boyes. que orienta a navega­ para confundir o animal. Chris, o irmão mais
ção da canoa mais avançada, grita: "Crocodilo!", novo de Boyes e chefe da expedição, grita de ou­
em um alerta rotineiro. Então desvia a canoa para tra canoa: "Corram!" Boyes e Trevethick saem na­
o meio do rio, proporcionando ao animal espaço dando até a margem, aonde chegam ilesos. ainda
para se mover próximo à margem. que abalados. Duas horas depois. o mokoro está
De repente, no entanto, um volume de água consertado e o grupo retoma a viagem.
ergue-se ao lado do barco de Boyes: um hipopóta­ O mais notável nesse episódio, além da rápida
mo distraído. um macho jovem. opina o biólogo. recuperação. é o quanto revela sobre a coleta de
Ou seja. a rota para evitar os crocodilos conduz à dados no projeto. Com base nas observações fei­
zona dos hipopótamos, que preferem maior pro­ tas naquele momento. por meio de equipamen­
fundidade. Tal como os crocodilos, eles matam tos eletrônicos e do olhar humano, registrados
centenas de pessoas todos os anos. "Foi um erro na hora. em um complexo sistema de processa­
tosco", diz Boyes mais tarde. "Culpa nossa. Fo­ mento de dados. ficamos sabendo que, naquele
mos direto pra cima do bicho, que se defendeu." trecho do Cuito, há correnteza forte, leito arenoso
O hipopótamo finca os caninos inferiores (que e pouca vegetação aquática - mas abriga peixes
medem até meio metro e são bem aguçados) no e aves diversos. Também conhecemos a longitu­
fundo da canoa. Como o maxilar superior não de e a latitude do entrevera com o hipopótamo.
consegue prender a lateral. em vez de romper ao E sabemos que a pulsação de Steve Boyes saltou
meio o mokoro, o hipopótamo vira a canoa. jogan­ de repente de 81 para 208 batidas por minuto às
do na água Boyes e Giles Trevethick, que remava 10h57. E podemos supor que 208 é uma pulsação
na proa. Os dois se agarram ao casco, enquanto normal para um jovem saudável tentando abrir
outro membro do grupo dispara um sinalizador distância entre ele e um hipopótamo na água.

DELTA DO OKAVANGO
!- Um hipopótamo emborca
•1:• uma das canoas - chamada
Os planaltos flocestados de mokoro - e fura o seu casco.
Angola-são a orfgem da "à.gua
que engrossa os rios Cuito e •
1 A expedição dura seis

Cubango e,élepois, irriga o delta

meses e percorre
O período das chuvas fortes
2 420 quilómetros, do planalto
esten�-se de outubro a abril,
até os areais além do delta
1Savate
e as ágefas levam meses para

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chegar aos pântanos sazonais. · ••:
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Um delta
no deserto
As águas da bacia hídrica do Okavango correm das terras altas
) ÁFRICA

de Angola, passam pela árida faixa de Caprivi. na Nanubia,

l
BACIA DO
e se distribuem pelos sinuosos cursos d'água de um raro delta OKAVANGO

interno em Botsuana, assegurando a existência de ecossistemas ANGQJ.A

únicos e a sobrevivência de 1 milhão de pessoas. Todavia,


com o aumento da pressão para o desenvolvimento econômico
em Angola, crescem as ameaças à sustentabilidade desse oásis.
EXPEDIÇÕES NO OKAVANGO
Com patrocínio da National Geographic, o grupo de cientistas
já efetuou oito levantamentos, cobrindo 6 500 quilômetros
a pé, de canoa, helicóptero e bicicleta, usando drones, sensores
aquáticos, câmeras automáticas e o conhecimento local. Tudo isso
com o objetivo de realizar os primeiros levantamentos sistemáticos
das nascentes até o delta, e contribuir para a sua conservação.

Megatransecção da Transecção
nascente ao areal Outras expedições do Cubango
2 420 km 030 · Mt..J.i•M · 6 540 quilômetros no total
340

Chegada às corredeiras e ilhas


de Andara, locais sagrados
de sepultamento dos chefes
do povo Hambukushu.
Cutarata.s
Popa
1

Delta do

Dun,n
deª"'ª\
Cerca de 100 mil turistas
visitam, por ano, campings e
pousadas no delta, fazendo
a m
do turismo um dos setores
mais rentáveis de Botsuana

Protegido mas vulnerável


Com as águas cristalinas filtradas
pelos solos arenosos, o delta está
entre os pantanais mais produtivos
e intocados do mundo. Iniciativas
de conservação ajudam a manter • ':$/
saudável o delta, cuja existência
depende da água que vem de Angola. A equipe segue adiante---• � ,,-;-:• • • • ,
•• • ••
até as salinas, distantes
190 quilômetros.
• • • Trajeto da Represa de Campo minado Sistema de irrigação
expedição hidrelétrica
� Atívo (' Instalado
Alojamento Projetada Projetado
turístico Desativado

ESCALA VARIÁVEL NESTA PERSPECTIVA / Para o Lago Ngami


NGM MAPS. FONTES, JOHN MENDELSOHN. SERVIÇOS DE INFORMAÇÃO E PESOUISAS DA NAMIBIA; NASA. USGS. UNIVERSIDADE DE MARYlAND.
EUA. INSTITUTO OE PESQUISA OKAVANGO GIS lAB. UNIVERSIDADE OE BOTSUANA. PROJETO OKAVANGO WILDERNESS; PIOTR WOLSKI.
UNIVERSIDADE DA CIDADE DO CABO. AFRICA DO SUL; THE HALO TRUST; EIS NAMIBIA. HYDROSHEDS; MARTIN GAMACHE. ART OF THE MAPPABLE
QUANDO ME JUNTO ao grupo de Boyes no Rio morcegos, uma caixinha amarela que capta os
Cubango, quase dois anos depois, o sistema de guinchos em alta frequência, os quais, mais tar­
coleta de dados havia sido aperfeiçoado. Certa de, serviriam para identificar as espécies de qui­
manhã, fico a observar um jovem namibiano, róptero. Outros membros da expedição recolhem
Gõtz Neef, que examina os peixes capturados dados sobre aves e répteis, assim como sobre as
numa armadilha. Tais amostras e coletas, ana­ atividades humanas. Na jornada pelos rios, Boyes
lisadas por ictiologistas do projeto, vão ajudar a atua como o ornitologista-chefe, alertando para
mostrar em que a fauna de peixes do Cubango a presença de aves, que eram registradas por um
difere da fauna do Cuito, e como ambos os rios jovem biólogo angolano, Kerllen Costa. A irmã
podem conter espécies ou subespécies únicas. de Kerllen, Adjany, é ictiologista e exploradora
No Rio Cuito, por exemplo, os pesquisadores emergente da National Geographic; na função
toparam com o que talvez seja uma nova espécie de diretora assistente do projeto, faz o contato

ESPÉCIES IDENTIFICADAS

Cerca de 353 plantas, 115 peixes, 407 aves, 68 mamíferos,


de Clariallabes, um peixe-gato com forma de en­ com as autoridades angolanas quando não está
guia que parece adaptado para se esgueirar em a bordo de um dos barcos da expedição. A equipe
turfeiras saturadas de água. Outros ajudaram o de Boyes também inclui pessoas de Zimbábue,
projeto na organização de coleções e prosseguem África do Sul, Namíbia, Estados Unidos e, claro,
com o trabalho de análise. As rãs e as libélulas, Botsuana, a terra natal dos seus mais habilidosos
nas suas etapas imaturas, são sensíveis à polui­ barqueiros, recrutados no próprio Okavango.
ção e podem se mostrar muito acuradas para in­ O condutor do mokoro em que eu viajo é
dicar a qualidade da água. Um grupo específico Tumeletso Setlabosha, conhecido como "Água",
de roedores conhecidos como vlei no jargão afri­ um wayeyi atarracado que se criou no centro do
cânder (indicando que frequentam lagoas sazo­ delta. Foi a mãe que lhe deu o apelido, pois veio
nais, os vleis) parece ter se diversificado em mais ao mundo em uma poça d'água, quando ela es­
de uma espécie correlata nas terras altas. tava cruzando as lagoas. Quando lhe pergunto a
"Angola é o elo que falta", comenta o biólogo idade, Água responde que, em terra, já comple­
Peter Taylor, um especialista em pequenos ma­ tara os 54 anos, mas, na canoa, "ainda tenho 25".
míferos, "para a gente entender o padrão segun­
do o qual esses animais se diversificam." O objeti­ A PRESENÇA HUMANA no trecho superior do
vo de Boyes é reunir todas essas informações em Cubango é rala, mesmo depois que o fim da guer­
um grande mosaico sobre o sistema dos dois rios, ra permitiu que as pessoas voltassem às suas al­
com todos os detalhes biológicos e hidrológicos, deias nesses sertões, antes controlados pelos re­
para assegurar a proteção das bacias e do delta. beldes da Unita. Vez por outra a gente avista um
Neef, além de apanhar peixes, cuida da coleta solitário rancho de pesca, uma vaca, mulheres
de dados relativos à qualidade da água, captados lavando roupa ou destilando bebidas a partir de
por dois sensores delicados à medida que avança­ frutos silvestres em um alambique tosco, roças de
mos rio abaixo. E também supervisiona a contí­ milho, um campo de futebol. À noite, para além
nua produção de imagens fotográficas - a câmera do trinado dos grilos, ouvíamos o ruído de cami­
de 360 graus num tripé, e duas outras câmeras nhões enfrentando os buracos na precária mas
digitais fixadas em ângulos distintos na proa do crucial estrada de terra que acompanha o rio.
mokoro, disparando de cinco em cinco minutos. Esse caminho vai dar em um posto na fronteira
Ao cair da noite, Neef instala um detector de com a Nanubia, pelo qual saem os carregamentos

NATIONAL GEOGRAPHIC • NOVEMBRO 2017


de madeira angolana e entram no país suprimen­ esverdeadas e pardacentas. Da janela do avião
tos de todo tipo. Além de madeira, de carne de a água das lagoas parece quase negra; os canais
caça ilegal e de água, a Bacia do Cubango pouco e os meandros reluzem prateados ao refletirem
tem a oferecer ao resto do mundo. Ninguém, ao os raios baixos do sol da tarde. No centro das
que se sabe, achou diamantes ou petróleo nesse ilhotas, em meio às árvores, ressalta a brancura
canto de Angola. Água: esse é o tesouro da região. do sal precipitado. A bordo do pequeno avião, a
Certa vez, por volta do meio-dia, atracamos sensação que se tem é de uma heterogeneida­
na margem esquerda mais acima de uma pe­ de dinâmica lá embaixo, de um processo pelo
quena corredeira, e saímos em uma exploração qual a águ a vai empurrando, esculpindo e mo­
a pé para identificar a melhor rota para os bar­ delando a terra no transcurso do tempo, abrin­
cos. Enquanto caminhamos, Boyes avista uma do novos canais, fechando outros mais antigos,
armadilha de hipopótamo, de arame resistente, preenchendo as depressões e depois deixando-as

64 répteis, 35 anfíbios e 40 prováveis espécies novas.


camuflada com talos de junco e colocada na trilha secar, circundando as ilhas, modificando os seus
usada pelos animais quando saem da água. Não imperativos e benefícios de um ano para outro, e
há nada mais lastimável que o uivo de um hipo­ com isso moldando um ecossistema extraordiná­
pótamo preso numa armadilha, comenta Boyes, rio. Depois da minha estada em Angola, foi assim
cortando o arame com um alicate. O biólogo tem que vislumbrei o Delta do Okavango, graças ao
muita simpatia pelas necessidades das popula­ americano John McNutt, o "Tico", um veterano
ções ribeirinhas no Cubango, e reconhece que a biólogo especializado em conservação.
melhoria das condições de vida deve fazer par­ Amigo de um amigo, McNutt vai me encontrar
te de qualquer arranjo para a proteção dos dois no pequeno aeroporto de Maun. usado pelos tu­
rios. Mas a carne de hipopótamo para consumo ristas que visitam Okavango, e de lá voamos até
e a venda dos seus dentes como marfim são itens a estação de pesquisa que lhe serve de base há
de contrabando que a Bacia do Cubango não tem quase três décadas para o estudo dos mabecos,
condições de fornecer de modo sustentável. os cães-selvagens-africanos que estão ameaçados
Em outra ocasião, saímos da água mais cedo de extinção. Devido à amplitude da sua curiosi­
a fim de evitar a montagem do acampamento dade e do seu empenho, ele é provavelmente uma
perto do vilarejo de Savate, um local conhecido das pessoas que melhor entendem a dinâmica
pelas minas ainda enterradas. Sob o olhar atento ecológica e política do Delta do Okavango. Além
das crianças locais, desembarcamos toneladas de de me apresentar as matilhas dos mabecos, ele
material. As mulheres se aproximam, pois aquele me proporciona quatro dias de sobrevoos e co­
é o local em que costumam lavar roupas e uten­ mentários ininterruptos - mesmo quando pilota
sílios. Depois do crepúsculo, na hora em que fica o avião e acompanha por telemetria os cães equi­
pronto o jantar de arroz e feijão preparado na fo­ pados com coleiras transmissoras.
gueira, não se veem mais as crianças. Fico curio­ À esquerda fica a Ilha Chief. À direita, a anti­
so de saber que impressão causamos nas pessoas. ga planície aluvial de Mogogelo, cuja água antes
chegava quase até a sua estação de pesquisa.
VISTO DE UM CESSNA, sobrevoando o norte de Contemplamos do alto as grandes manadas de
Botsuana a uma altitude de 150 metros, o delta antílopes cobo-leches, assim como cupinzeiros
lembra um tapete estampado com uma com­ erguendo-se no meio das ilhotas, rastros de hipo­
plexa padronagem de texturas de tonalidades pótamos como marcas de garras através da relva

DELTA DO OKAVANGO
nas várzeas, elefantes lançando longas sombras Para além dela, estende-se urna depressão pla­
no final da tarde. "Não há nenhum abutre", co­ na, preenchida, em parte, por sedimentos, mas
menta ele. "Deveriam estar concentrados nesses ainda assim é a área mais baixa da Bacia do
palmeirais - deveria ter abutre por todo lado." Kalahari, pela qual se espalham as águas do Delta
Mas os abutres são odiados pelos caçadores ile­ do Okavango, assumindo o formato de uma flor.
gais, pois alertam para a presença de carcaças de As pétalas da flor, contudo, alcançam o seu limite
elefantes recém-abatidos; por isso, são mortos em outras duas falhas diagonais, assinalando o
por meio da colocação de veneno na carne des­ perímetro sudeste do delta. Topando com esses
prezada dos animais. O Delta do Okavango, mes­ limites naturais, a água restante se desvia na di­
mo quando recebe toda a água de que precisa, reção oeste, formando um reservatório linear, o
também tem os seus problemas. Lago Ngami, ou acaba por desaparecer nos areais.
Seguimos para o norte, sobrevoando planícies Ao sul de tudo isso, estão as salinas e o deserto.
de junco e papiro, com ilhas de todos os tamanhos, Em meio à complexidade do suprimento de
até que McNutt diz: "Em algum ponto por aqui água e da proliferação biológica, desde as cabe­
deve estar a falha tectônica. A partir dela é que ceiras até o delta, vários fatores são particular­
tudo começa a se difundir. A partir do saliente". mente decisivos. O próprio delta recebe chuva,
O "saliente" é uma larga extensão de água que mas não muita, sobretudo durante os meses es­
se move aos poucos, contida pelas cristas que se tivais, de dezembro a março. Já no planalto cen­
erguem nas várzeas alagadiças, começando logo tral de Angola, as precipitações são bem mais
ao sul da fronteira com a Nanubia e escorrendo abundantes, cerca de 130 centímetros anuais,
até aquela linha mencionada por McNutt e co­ que saturam as turfeiras e os areais das planícies
nhecida pelos geólogos como a Falha de Gumare. aluviais na região das cabeceiras do Cuito e, em

NATIONAL GEOGRAPHIC • NOVEMBRO 2017


As salinas de Makgadikgadi são o autoridades angolanas, e da população, no sen­
resquício de um lago, repleto de vida, tido de preservar os rios Cuito e Cubango mais
que recobria parte de Botsuana antes ou menos tal como estão hoje, fluindo desimpe­
de falhas tectônicas desviarem os rios
que o alimentavam. Os bosquímanos
didos e límpidos, sem muita poluição ou desvios,
khoisans mostram aos turistas esta através de paisagens, em grande parte, não pre­
paisagem de desolação - um alerta judicadas por retirada de madeira, produção de
para o que pode se tornar o Delta do carvão vegetal, queimada de floresta, comércio
Okavango, caso deixe de receber água. de carne de animais silvestres, projetos agrícolas
que requerem uso intensivo de fertilizantes, ex­
tração de minérios ou outras atividades destruti­
vas. Essa é uma tarefa urgente e nada fácil.
Alguns mais otimistas propõem que as bacias
dos rios Cuito e Cubango também sejam transfor­
madas em áreas atraentes para turistas interna­
cionais, com a construção de cabanas de luxo que
abrigariam visitantes interessados em conhecer
as populações recuperadas da magnífica fauna
silvestre, como a palanca-negra-gigante, uma
subespécie de antílope que quase desapareceu
durante as décadas de conflito armado. Talvez
essas atrações possam formar um circuito regio­
nal, sugerem eles, juntamente com os locais mais
conhecidos no Delta do Okavango. Outra espe­
rança é a de que o governo de Botsuana e o se­
tor de turismo do país reconheçam os riscos que
seguida, pouco a pouco, após um tempo, vão ali­ ameaçam a sua região encantada - ou seja, que
mentar o Rio Cuüo e os seus muitos afluentes. percebam que, sem o Cuito e o Cubango, não há
As mesmas chuvas engrossam também o Rio futuro para o Delta do Okavango -, e tomem ini­
Cubango, mas, como a sua bacia é mais íngreme ciativas previdentes, por exemplo firmando um
e rochosa, as precipitações sazonais acabam por acordo com Angola, no qual o fornecimento de
escoar com mais rapidez e força. água seria garantido por compensações financei­
Em consequência dessas assincronias, o del­ ras. Pouco importa o nome que se dê a essa solu­
ta recebe água em três momentos distintos ao ção, pagamento de resgate ou de "títulos de água"
longo do ano, o que lhe confere um suprimento (como propõe Steve Boyes), trata-se de uma solu­
de umidade mais variado do que normalmente ção que parece eminentemente racional. Ainda
ocorre na maioria dos pantanais de água doce. que racionalidade e precaução pareçam expecta­
Essa água vem em ciclos, em surtos regulares tivas improváveis quando se trata de acordos in­
durante o ano, e é distribuída por um conjunto ternacionais a respeito de recursos naturais, cabe
mutável de canais, várzeas e lagoas, alimentando lembrar que o próprio Delta do Okavango é um
uma vegetação diversificada, fertilizada pelos ex­ fenômeno muito improvável e merece ser alvo
crementos de elefantes, hipopótamos e impalas: de cuidado, imaginação e esforço excepcionais.
tudo isso compõe uma receita perfeita para uma Porém, nota-se que as mudanças em Angola,
explosão de fecundidade biológica. me conta Boyes, estão ocorrendo num ritmo cada
O maior desafio enfrentado hoje pelo proje­ vez mais rápido. "Se começarmos a agir só daqui
to Okavango Wilderness não é o entendimento a três anos, não haverá mais nada a ser protegi­
desse sistema complexo - ainda que isso já seja do." O futuro vem se aproximando como um rio,
algo bem difícil -, e sim o convencimento das que passa ligeiro pela vida de outros. O

DELTA DO OKAVANGO

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