Você está na página 1de 100

NÚMERO 298

MENSAL ○ FEVEREIRO 2023

SEXUALIDADE ENTREVISTA
PORQUE É QUE O SEXO JOÃO C. TEIXEIRA
PERVERTIDO É TÃO POPULAR? PODERÁ A GENÉTICA DAR NOVAS
PÁG. 74 RESPOSTAS SOBRE AS NOSSAS ORIGENS?
PÁG. 52

FÍSICA
HISTÓRIA
OCTONIÕES, A
VIAS ROMANAS MATEMÁTICA ESTRANHA
EM PORTUGAL QUE PODE UNIR AS LEIS
PÁG. 22
DA NATUREZA
PÁG. 35

PSICOLOGIA
A EXPERIÊNCIA DA
PRISÃO DE STANFORD
PÁG. 62

ABORRECE-TE!
SERÁS MAIS CRIATIVO
VIVER A HISTÓRIA
COM PAIXÃO

AGORA À VENDA!
SE DE I CT OC RI IÓA NL

A mente criativa das GABINETE EDITORIAL


Direção: Carmen Sabalete

pessoas entediadas
(csabalete@zinetmedia.es).

Editora-chefe: Cristina Enríquez


(cenriquez @zinetmedia.es).

Edição gráfica: Manuela Arias


(marias@zinetmedia.es).

N
a verdade, o tema da capa (Aborrece-te! Serás mais
Coordenação de design: María Somonte
criativo), põe-me de bom humor. Quase parece um elogio
(msomonte@zinetmedia.es).
confiante de que esta vida pesada pela inércia, que por
vezes levamos no século XXI, pode ajudar-nos quando se trata de Colaboram neste número:
Carmen Castellanos, Laura G. de Rivera,
apresentar boas ideias, pode ativar certas áreas do cérebro que de Jorge de los Santos, Javier Granda,
outra forma estariam no «lado oculto da lua». Apenas uma nuance: Manuel Ruiz, Eduardo Mesa, Michael Brooks, Daniel
Méndez, Ainara Ortiz, David Cuadrado, Valèrie Tasso,
há que diferenciar entre ser um abúlico, um chato, e ser alguém que Alberto de Frutos, Virginia Mendoza, Asier Mensuro,
se aborrece. E é aí que volto a sorrir: imaginando de que lado estou Sonia Vielman.

ou de que lado os outros me vêem. Para dar apenas um exemplo: os Conselho Editorial:
psicólogos Sandi Mann e Rebekah Cadman da University of Central José Pardina, Angela Posada-Swarford, Ramón Núñez,
Miguel Á. Sabadell, Elena Sanz, Pampa García,
Lancashire, no Reino Unido, pediram a parte dos participantes no
Manu Montero, Mario García Bartual,
seu estudo, que copiassem números de uma lista telefónica antes José Á. Martos, Fernando Cohnen.
de lhes pedir que pensassem em todas as utilizações possíveis para
EN D EREÇO E T ELE FONE
um copo de plástico. Aqueles a quem anteriormente foi dada esta
C/ Alcalá 79 1.º A - 28009 Madrid - España;
tediosa tarefa acabaram sendo mais criativos. O estado de tédio Tel. +34 810 583 412
estimula-nos a explorar a nossa criatividade, porque o cérebro Email: minteresante@zinetmedia.es

está a indicar que a situação atual é deficiente e que é preciso Subscrições: tel. 910 604 482.
Email: suscripciones@zinetmedia.es
motivar-se para avançar. Então o cérebro, quando se aborrece, salta
como uma lebre e obriga-nos a fazer coisas de formas inabituais
para fugir daquela zona plana. Como sempre,
este não é o único artigo na sua revista
que o estimulará: o que pensaria se eu lhe
dissesse que o calor “derrete” certos tipos de Chefe do Executivo: Marta Ariño
cancros? E como responderíamos à legalização Responsável financeiro: Carlos Franco

da canábis terapêutica ou se teremos um Diretor Comercial: Alfonso Juliá


(ajulia@zinetmedia.es)
oceano saudável e bem cuidado até 2030, Diretor de Desenvolvimento Empresarial:
como reclama a ONU? Tenho a certeza que Óscar Pérez-Solero (operez@zinetmedia.es)

Carmen Sabalete, gostará de ler SUPER INTERESSANTE.


diretora Editada por Zinet Media Global, S.L.
csabalete@zinetmedia.es
DISTRIBUIÇÃO:
V.A.S.P. Distribuidora de Publicaçöes, S.A.

Mais SUPER no seu quiosque: A Super Interessante é uma publicação mensal


registada na Entidade Reguladora para a Comunicação
Social com o n.º 118 348. Depósito legal: 122 152/98.
INTERESSANTE

INTERESSANTE Esta publicação é membro da Associação


A DIVISÃO AZUL

75
EDIÇÃO

de Jornais de Informação (ARI).


BIBLIOTECA Participação espanhola

O CERCO DE
CANIBAIS
O CERCO DE LENINEGRADO. A LUTA PELA VIDA

Desespero e horror

LENINEGRADO © Zinet Media Global, S.L. Todos os direitos reservados. Esta


OPERAÇÃO
75 MISTÉRIOS DA CIÊNCIA

BARBAROSSA
O plano mestre

MISTÉRIOS
de Hitler
A LUTA PELA VIDA
COMANDANTES
publicação é propriedade exclusiva da Zinet Media Global, S.L.,
DA
FRENTE A FRENTE
A suástica contra a
e a sua reprodução total ou parcial, não autorizada, é
CIÊNCIA
estrela vermelha

totalmente proibida, de acordo com os termos da legislação


em vigor. Os contraventores serão perseguidos legalmente,
tanto a nível nacional como internacional. O uso, cópia,
Da Matéria Negra e a existência de E.T.
reprodução ou venda desta revista só poderá realizar-se com
ao Manuscrito Voynich e ao móvel perpétuo
autorização expressa e por escrito da Zinet Media Global, S.L.
Sumário

82

40
46 90

6 DISCOVERY
CAPA Novidades.

8 Aborreça-se! REPORTAGENS
E torne a sua mente mais criativa.

35 Octoniões 16 Canábis
Já é uma nova opção farmacológica?
A revolução no mundo da física.

22 Vias Romanas em 28 O impacto ambiental do


Portugal que comemos
Um mundo por descobrir. Uma dieta planetária justa e saudável para
evitar o colapso ambiental. 90 Corpos tatuados,
EN T R E V ISTA mulheres maltratadas
52 João C. Teixeira 40 Oncotermia Tatuagem punitiva e patrimonial.
Ou como o calor ajuda contra o cancro.
Poderá a genética dar novas respostas
sobre as nossas origens?
46 O seu cão ama-o? RÚBRICAS
62 A Experiência da A «hormona do amor» nos cães. 98 História de ficção
Prisão de Stanford científica
Será que o grupo modifica o 56 Teremos um oceano Uma ficção da escritora Sonia Vielman.
comportamento? saudável até 2030?
74 Sexo kinky Medidas tecnológicas para o proteger. EN T R E V ISTA
A atracção da variedade. 68 James Green
82 Anticitera O conhecimento do Universo através do
FOTO DE PORTADA: SHUTTERSTOCK
O precursor grego dos computadores. ex-diretor científico da NASA.

4 SUPER
62

22

16
56

SUPER 5
DISCOVERY NOVIDADES

OS URSOS POLARES ALIMENTAM-SE DE LIXO!

SHUTTERSTOCK
om o aquecimento do Árti- já representa uma ameaça emergente como perto de Kaktovik, Alasca, onde

C co quatro vezes mais rápido


do que o resto do mundo, o
gelo marinho derrete mais
para eles. À medida que o seu habitat
gelado desaparece, os ursos esfomea-
dos voltam-se para os aterros para se
há pilhas de ossos de baleia provenien-
tes de caçadas dos esquimós.
A realidade é que, para além de con-
cedo no verão e congela mais tarde no alimentarem. Os invólucros frequente- sumir lixo, os ursos podem adoecer, e
outono. Isto obriga os ursos a passar mente congelam-se entre os restos de a prática está a causar conflitos com
mais tempo em terra, longe das suas comida, pelo que os animais acabam a população local, uma vez que se tor-
presas naturais, as focas, e obriga-os a por ingerir plástico e outros materiais na uma questão de segurança pública.
comer literalmente tudo o que podem. não comestíveis. Andrew Derocher, biólogo da Univer-
Em julho passado, uma equipa de Segundo uma reportagem publicada sidade de Alberta, adverte que isto já
cientistas canadianos e americanos na revista Oryx, os ursos polares reú- aconteceu com outros ursos: «Já o ex-
alertou que os ursos polares estão ca- nem-se em massa em torno de lixeiras perimentámos com o urso pardo e o urso
da vez mais dependentes dos aterros abertas em locais do Ártico e sub-ártico, negro, e agora é um problema em de-
para a sua subsistência e que o lixo tais como Belushya Guba na Rússia, bem senvolvimento com os ursos polares» e

INTOLERÂNCIA À LACTOSE E EVOLUÇÃO HUMANA


O leite — um alimento nutritivo e armazenável — foi um recurso importante
O estudo recolheu dados de 7000 resíduos de gordura para as comunidades agrícolas primitivas. As populações da Europa, África,
animal orgânica de fragmentos de cerâmica de mais de
500 sítios arqueológicos, a fim de descobrir quando e
Ásia do Sul e Médio Oriente adquiriram separadamente uma mudança gené-
onde as pessoas consumiam leite. tica fundamental: a capacidade de digerir a lactose do açúcar do leite na ida-
de adulta. Até agora, acreditava-se que esta tolerância surgia porque permitia
que se consumisse mais leite. Os indivíduos que tinham esta capacidade e
viviam em culturas leiteiras receberam um impulso nutricional e tiveram mais
filhos, o que propagou as mudanças genéticas. Mas uma nova investigação
conjunta da Universidade de Bristol e University College de Londres (UK),
publicada na Nature, apoia a ideia de que a produção de leite não foi a força-
-chave para a propagação da persistência da lactase. Mapeando os padrões
pré-históricos de consumo de leite nos últimos nove mil anos, a conclusão é
que «à medida que começaram a viver em povoações maiores, a sua saúde
foi sendo cada vez mais afetada por um saneamento deficiente e pelo au-
mento das cargas de agentes patogénicos. Em tais condições, mais ainda
em tempos de fome, o consumo de leite teria aumentado a mortalidade,
SHUTTERSTOCK

especialmente entre aqueles que não conseguiam digerir a lactose. Aqueles


que conseguiam, tinham mais probabilidades de transmitir os seus genes
que lhes permitiam beber leite em segurança.

6 SUPER
ATENTOS À COR DA LUZ PARA RELAXAR
Investigadores da Universi- Professor Francisco Pelayo, branca convencional) acelera o ou branca (grupo 2). Durante a
dade de Granada (UGR), em demonstraram, através de uma processo de relaxamento após sessão, foram medidos diferen-
colaboração com a Escola de avaliação objetiva com medi- um processo de stress psicos- tes bio sinais com eletrocardio-
Educação Especial de San Ra- ções eletrofisiológicas, que social agudo (um tipo de stress gramas (atividade cardíaca) e
fael em Granada, liderada pelo a luz azul (em oposição à luz de curto prazo). Por exemplo, eletroencefalogramas (ativida-
quando temos uma discussão de cerebral).
O azul é uma cor não esti- tensa com um amigo, ou quan- De acordo com os resulta-
mulante com a qual o hi- do estamos a fazer uma tarefa dos, a luz azul acelera o pro-
potálamo produz mais
e alguém nos pressiona para a cesso de relaxamento mais do
hormona do sono.
terminarmos rapidamente. que a luz branca convencional.
Para realizar este estudo, pu- A explicação reside no facto
blicado na revista PlosOne, os de o azul ser uma cor não esti-
investigadores submeteram 12 mulante em que o hipotálamo
voluntários a um processo de produz mais melatonina (uma
relaxamento (após um proces- hormona do sono que influen-
so stressante) numa sala onde cia o ciclo sono-vigília) e me-
se deitavam sem qualquer nos cortisol (uma hormona do
SHUTTERSTOCK

outro estímulo que não fosse stress que nos mantém alerta
a luz ambiente azul (grupo 1) durante o dia).
SHUTTERSTOCK

A forma mais

O PRIMEIRO ROBÔ «ARTISTA»


eficaz de tomar
um comprimido
é deitar-se so-
bre o lado direi-
Chamada Ai-da (em homenagem a Ada Lovelace),
to do corpo.
é a primeira artista robô ultra-realista do mundo.
Desenha e pinta usando as suas câmaras oculares,
os seus algoritmos de IA e o seu braço robótico
que lhe permite segurar um lápis. Ai-da (na ima-
gem) é capaz de tomar as suas próprias decisões
ao criar arte e, sem imaginação, utiliza a aprendiza-
gem computacional para criar as suas pinturas. Por
outras palavras, ela pinta o que vê.
Criada em fevereiro de 2019, a Universidade de
Oxford acolheu a sua primeira exposição individual,
Unsecured Futures, e foi objeto de uma exposição

A MELHOR POSTURA PARA TOMAR UM COMPRIMIDO


virtual nas Nações Unidas, mas a sua primeira gran-
de exposição foi em 2021 no Design Museum em
Londres. Este ano, em abril, as suas obras foram uma
surpresa no Concilio Europeo Dell’Arte, em Giardini,
(ORIGINANDO UM EFEITO MAIS RÁPIDO)
realizado no âmbito da 59ª Bienal de Veneza. Ai-da, A revista Physics of Fluids publicou quatro posições em que um compri-
que para além de criar obras artísticas (do retrato à recentemente um novo estudo da mido podia ser engolido e descobriu
natureza-morta) pode escrever poesia, mostra-nos Universidade Johns Hopkins que que tomar medicamentos deitado
como poderia ser a criatividade numa era pós-hu- revela que a nossa postura corpo- sobre o lado direito é o melhor, pois
manista. A intenção de Aidan Meller, o seu criador, é ral ao tomar um comprimido pode atinge a parte mais profunda do estô-
fazer-nos pensar se as obras de arte produzidas por influenciar a velocidade a que o me- mago, conseguindo uma taxa de dis-
máquinas podem realmente ser chamadas de «arte». dicamento é absorvido pelo corpo. solução 2,3 vezes mais rápida do que
Os investigadores explicam como quando de pé. Descobriram também
a assimetria do estômago faz com que, se um comprimido demora dez
que a postura influencie o tempo de minutos a dissolver-se quando está
absorção e, portanto, que existe uma deitado sobre o lado direito, pode de-
postura ideal quando se toma uma morar até 23 minutos estando em pé
pastilha para que esta tenha um efei- ou de costas, e mais de 100 minutos
to mais rápido. deitado sobre o lado esquerdo. Esta
O estudo foi possível graças à era, de longe, a pior alternativa.
criação do StomachSim, um sistema Segundo o líder do estudo Rajat
que combina física com biomecâni- Mittal: «Ficámos muito surpreendidos
ca e mecânica de fluidos para fazer por a postura ter um efeito tão signi-
uma simulação realista do estômago ficativo na velocidade de dissolução
ASC

humano enquanto digere alimentos de um comprimido. Nunca pensei se


ou medicamentos, e a equipa testou o estava a fazer bem ou mal».

SUPER 7
M E N T E E C É R E B R O

Aprendermos a
conviver connosco
próprios e tolerar-
-nos é o melhor
instrumento contra
o tédio. Este senti-
mento resulta do
«desejo contínuo
de ser e de ter»
que nos causa in-
satisfação.
SHUTTERSTOCK
ABORRECE-TE
E SERÁS
MAIS CRIATIVO
O tédio pode ser uma fonte inesgotável de criatividade. Embora produza
melancolia, apatia e indiferença, por vezes, este estado de inatividade
silenciosa pode ser a semente de uma nova inquietação na vida. Vamos
dar a volta ao nosso tédio!

Texto de CARMEN CASTELLANOS,


jornalista

SUPER 9
O tédio é normal, é um
estado habitual que, se
bem explorado, pode
fazer-nos crescer. Em
qualquer caso, algumas
pessoas são mais pro-
pensas a isso e podem
sofrer mais em certas
fases da vida.

SHUTTERSTOCK

F
reddie Mercury disse que «a O INDIVÍDUO E O AMBIENTE. Para Erasmo de Roterdão,
pior doença é o tédio». No «aquele que conhece a arte de viver consigo mesmo
entanto, tal como a febre que não conhece o tédio». Como explica o livro de Josefa
faz crescer as crianças, o tédio Ros Velasco La enfermedad del aburrimiento (A Doen-
pode ser uma fonte de estímu- ça do Tédio), «os seres humanos são os únicos seres
lo. Para Miguel de Unamuno na Terra que mantêm um diálogo ativo consigo pró-
«há algo doce e calmante, prios e que, como disse o poeta latino Lucrécio (99 a
e sobretudo sábio, naquilo 55 a.C.), devem coexistir com as profundezas escuras
a que os homens do mundo que os habitam». O homem deve aprender a suportar
chamam aborrecimento». Os na solidão, sem a distração de múltiplas atividades que
momentos de inatividade entretêm o pensamento. O filósofo alemão Schope-
podem ser santuários de re- nhauer encontrou a resposta: a ser algo, o ser humano
flexão, para a geração de novas ideias e propósitos. O é desejo: «O desejo contínuo e insidioso de ser, de ter,
tédio, em suma, pode ser um motor de mudança. de se representar aos outros... Saber o que somos é
Para Marina Fernández Barragán, do Colégio Oficial o início da tolerância, de nos suportarmos e de viver
de Psicologia de Madrid, «o tédio é um estado nor- uma “sociável insociabilidade” com os outros». E co-
mal na vida, não é uma coisa má, é uma emoção que, mo a natureza do desejo nunca descansa, o tédio está à
como todas as emoções, é útil apesar do facto de ge- espreita, pronto para nos atacar enquanto não encon-
rar sensações desagradáveis. É importante aprender tramos um estímulo que nos interesse.
a viver com o aborrecimento e crescer através dele. Embora o aborrecimento seja algo circunstancial,
É uma emoção útil que, quando experimentada, se pode tornar-se crónico e converter-se em algo ha-
soubermos aproveitá-la ao máximo, nos incitará a bitual e contínuo em certas fases da vida. «Quando
tomar medidas para procurar alternativas para nos nos encontramos num estado de insatisfação, onde
entretermos». a capacidade de motivação e satisfação com as ativi-

O estado de tédio é natural nos seres humanos e pode


ser útil se for aproveitado, desde que não se torne crónico
10 SUPER
O spleen romântico ou o tédio de viver
«S e o tédio está relacionado com
a melancolia, é porque o sen-
timento subjetivo de estar aborrecido
mos e percebemos que em nós há um
desprezo pelo presente».
Em A Paixão do Jovem Werther, de Goe-
(ou melancólico) está intimamente li- the, um romance quase autobiográfico,
gado à ‘‘queda no tempo’’, nas palavras a personagem principal comete sui-
de Charles Baudelaire: o relógio está cídio por amor e tédio. O livro, que
tão encarnado nas nossas vidas que a Napoleão Bonaparte levou consigo
sua passagem mecânica e regular nos durante as campanhas egípcias, foi
sufoca, pesando-nos num presente ina- banido em Leipzig por incitar ao sui-
cessível e asfixiante», afirma-se em La cídio. De facto, após a publicação do
enfermedad del aburrimiento (A Doença romance, registou-se uma epidemia de
do Tédio). Este mal-estar insuportável suicídios em toda a Europa.
sobre viver denominava-se spleen ou Baudelaire inventou o termo para de-
melancolia sem uma causa definida e era nominar a melancolia moderna, que
a marca de uma geração de artistas do representava o fastio e a insatisfação
período romântico que morreriam por com a vida, especialmente desde que o
ansiar viver intensamente e que transfor- homem trocou o campo pela cidade. Ele
mariam este sentimento em magníficas recorreu à palavra spleen, que em inglês
obras de literatura e arte universal. significa o baço, o órgão que produz as
O maior exemplo é Charles Baude- secreções que geram a melancolia e
larie e a sua coleção transgressiva estados de espírito semelhantes. Leo-
de poemas As Flores do Mal. Para o pardi chamou-lhe noia, tédio, que sentiu
poeta francês, a modernidade levava quando passou cerca de vinte anos em
ao tédio, pelo que quanto mais civili- reclusão, não ousando sair de casa por
zados somos, mais ociosos somos, medo do ridículo: «O tédio, de certa for-
e quanto mais ociosos somos, mais ma, é o mais sublime dos sentimentos».
vazios. A vida moderna produz desilu- Para Walter Benjamin «... estamos abor-
Baudelaire chamou à
são e leva à insatisfação. Quando nos recidos quando não sabemos do que
melancolia moderna
aborrecemos, como se explica em La estamos à espera. O tédio é o limiar dos spleen, o tédio de viver.

GETTY
enfermedad del aburrimiento, «reagi- grandes feitos».

dades se vê diminuída», explica María Marcos, de El tiva. Estamos a criar uma sociedade em que as crianças
Prado Psicólogos. «Este tédio patológico está intima- esperam ser entretidas ao ponto de serem incapazes
mente relacionado com a apatia, na qual existe um de lidar com os níveis mais baixos de estimulação». As
sentimento de vazio e temos dificuldade em encon- crianças, devido à tecnologia cada vez mais participativa
trar algo que nos excite, que gere interesse, e estamos e instantânea, crescem com menor capacidade de aten-
menos orientados para a realização de atividades. Está ção e limiares de tédio mais baixos.
também relacionada com a abulia, com essa incapaci- E assim começa uma cadeia: quanto maior o té-
dade de tomar decisões». Explicam os especialistas de dio, menor a capacidade de estimulação; com menos
El Prado Psicólogos que o termo cunhado para se refe- estimulação, maior o tédio. Além disso, nos últimos
rir ao tédio crónico, mais relacionado com o ambiente cinquenta anos o tempo dedicado ao ócio aumentou.
de trabalho, é boreout (Rothlin e Werder em 2007) em
que o sentimento de vazio e insatisfação interfere na
vida quotidiana. Caracteriza-se pela incapacidade de
ver o seu trabalho ou atividades como um repto, co-
mo algo desafiante, em resultado da infraexigência, do
desinteresse e da realização de atividades monótonas.

A SOCIEDADE QUE TEME O TÉDIO. Em The Art of Knowing How


to Be Bored (A Arte de Saber Estar Aborrecido), de Sandi
Mann, a autora reflete sobre a razão pela qual crianças e
adultos precisam de mais aborrecimento nas suas vidas.
Numa sociedade carregada de tecnologia interativa que
nos convida a estar sempre ligados, a própria ideia de
não ter nada para fazer é horrível. A tecnologia que nos
capacita para tudo torna-nos incapazes de nos suportar-
mos sem distrações. Isto, como explica a autora, já está
a acontecer na educação: «O tédio no sistema educativo
apresenta-se como uma exposição sobre como as escolas
Ter um cérebro continua-
estão a criar uma sociedade propensa ao tédio, devido à
SHUTTERSTOCK

mente sobreestimulado
sua ênfase crescente num ensino que tende a tornar-se gera dependência.
cada vez mais sofisticado através da tecnologia intera-

SUPER 11
O tempo ocioso tem vindo a aumentar na sociedade moderna, tanto para
homens como para mulheres, mas nem sempre é bem considerado

Entre 1965 e 2003 o ócio para os homens aumentou de po e mente permanentemente ocupados é uma grande
seis para oito horas, impulsionado por uma diminui- fonte de infelicidade. Estar continuamente ligados e
ção das horas de trabalho, e de quatro para oito horas estimulados acabará por levar à insatisfação: «O que
por semana para as mulheres, impulsionado por uma acontece com a estimulação excessiva é que o nosso
diminuição do tempo gasto nas tarefas domésticas, e cérebro está num estado constante de ativação, não
este aumento do ócio é um desafio numa sociedade descansa, e isto cria dependência. O que irá acontecer
onde o tempo ocioso não é bem considerado. E ape- é que toleraremos cada vez menos o tédio, o nosso cé-
sar do aumento das formas de preencher os tempos rebro irá exigir cada vez mais estímulos, com os danos
livres – jogos de vídeo, desporto, socialização, leitu- resultantes, tais como uma diminuição da criativida-
ra, conversação, etc. –, um estudo realizado em trinta de, uma falta de desenvolvimento do pensamento ou
e seis países sugere que cerca de um terço da popu- uma redução da capacidade de processar informação
lação fica aborrecida durante os tempos livres. O seu e compreensão da leitura. No final, estamos a habi-
maior problema seria a falta de capacidades de lazer, tuar o nosso cérebro à gratificação imediata, a ser
ou seja, a capacidade de gerir o seu tempo livre. «Estas mais impaciente e mais preguiçoso ao enfrentar tare-
competências incluem a definição de objetivos, a ava- fas complexas, pelo que a presença desse sentimento
liação de prioridades, a organização de atividades com de “estou aborrecido” se deve ao nosso cérebro exigir
antecedência e a flexibilidade se as atividades planea- passivamente estímulos», advertem os especialistas
das precisarem de ser alteradas no último minuto». de El Prado Psicólogos.
O filósofo e poeta dinamarquês Soren Kierkegaard já
sinalizou o poder criativo do tédio, afirmando que o UMA EMOÇÃO ESTIMULANTE. Muitos investigadores con-
desejo de escapar do presente mantendo o nosso cor- cluíram que o aborrecimento é uma emoção. Uma
SHUTTERSTOCK

Para evitar o aborrecimento é


necessário desenvolver as
capacidades de lazer.

12 SUPER
investigadora ocupacional americana, Cinthia Fisher, De facto, um estudo realizado na Universidade da
chegou a defini-lo como «um estado afetivo desagra- Pensilvânia mostrou que os participantes que estavam
dável e transitório em que o indivíduo sente uma falta aborrecidos tiveram melhor desempenho num teste de
de interesse generalizada e dificuldade em concen- criatividade do que os que estavam relaxados ou se sen-
trar-se na atividade atual, de modo que necessita de tiam eufóricos e entretidos.
um esforço consciente para manter ou dirigir a aten-
ção para essa atividade». A ESTRATÉGIA DO RABISCO. A Dra. Sandi Mann diz que,
Mas o tédio pode ter uma consequência benéfica. «O segundo a sua pesquisa, um quarto da população rabis-
tédio, como qualquer sentimento, tem uma intenção
positiva, um ganho secundário», explicam os El Prado
Psicólogos. «Ajuda a gerar alternativas, redireciona-
mos a nossa atenção para a procura de objetivos que
contribuem para atividades com maior significado, dis-
tanciando-nos assim da monotonia que sentimos».
Uma emoção
Quando Isaac Newton foi colocado em quarentena
em 1665 devido à peste bubónica, confinado a uma al-
moderna?
deia durante 18 meses, desenvolveu as suas teorias da
gravidade e do movimento e desenvolveu o que agora é
considerado cálculo moderno. Este tempo de descober-
O s homens das cavernas entediavam-se ou o tédio nasceu
com a modernidade? Para Josefa Ros Velasco, autora de La
enfermedad del aburrimiento (A Doença do Tédio), esta é uma
ta no meio do infortúnio ou da incerteza foi chamado questão cuja resposta provoca muitas divisões: há aqueles que
annus mirabilis, «ano maravilhoso» ou «ano do mi- afirmam que os humanos e muitos animais «sempre tiveram a
lagre», um período de excecional engenho e criação no capacidade de se aborrecerem, e aqueles que argumentam
meio do caos produzido pela peste. A conclusão seria que o tédio só pode ocorrer em estruturas sociais que geram
que não estar ocioso em nenhum momento do dia inibe grandes quantidades de tempo livre, e que para antes destas,
a nossa criatividade e imaginação, e sentir-se abor- os povos, as tribos e até mesmo os clãs sempre estiveram de-
recido pode ser uma semente incrível de atividade e masiado ocupados com a sua própria sobrevivência para o
inovação. experimentarem». Alguns autores negam que o Homo sapiens
pudesse estar aborrecido, pois os caçadores-recoletores não
tinham tempo para isso. Outros autores, como o antropólogo
canadiano Richard Lee, afirmam que tinham tempo livre, uma
vez que passavam menos tempo em atividades de trabalho e
de subsistência do que nós hoje. Autores como Alan Barnard
explicam que «as necessidades dos caçadores-recoletores
eram facilmente satisfeitas e valorizavam o tempo de lazer em
detrimento da acumulação de propriedade». Conseguiam o que
precisavam no momento e desfrutaram do tempo que podiam
dispensar em recreação, descanso ou aborrecimento.
Se seguirmos a linha de que o homem pré-histórico foi capaz de
se aborrecer, também podemos deduzir que, dada a sua função
adaptativa, pode ter sido isso o responsável pela abertura dos
caminhos que levaram à evolução: assim, não só os humanos
seriam capazes de se aborrecerem, mas também os animais
mais inteligentes.
A autora argumenta que quando os nossos antepassados
procuraram o abrigo de uma caverna para se protegerem dos
predadores, «com a vantagem inestimável da reprodução sem
moléstias, e do alojamento seguro para dormir», deixaram
entrar o tédio. Demasiado conforto e adaptabilidade signifi-
cava que o homem tinha de encontrar outras ocupações para
continuar a evoluir: contemplar a paisagem, recoletar, fazer
ferramentas, nadar, explorar, brincar, pintar, fazer colares e con-
versar, contar histórias sobre o que estava a acontecer, sobre
aqueles que não estavam ali e sobre o que iria acontecer no
futuro. «Aquele que não está aborrecido não sabe como nar-
rar», diria Walter Benjamin. Também podia tocar música. Assim,
a cultura teria surgido para combater o tédio, e o tédio pode-
ria ter estado presente desde as origens da nossa espécie e
poderia ter sido uma condição para o desenvolvimento de al-
guns dos aspetos que nos caracterizam, como a linguagem e o
pensamento abstrato. Esta é a teoria de Blumenberg: «O tédio
nasceu do excesso de conforto trazido pelas grutas em que
os recoletores se encontravam e isto levou a uma mudança in-
dividual e social radical a partir de uma resposta que resultou
numa explosão cultural». O tédio, conclui a autora, «é o que
mantém o mundo em movimento».

SUPER 13
ca quando está aborrecida, citando pessoas como Bill é uma interação entre uma ação, o ambiente e o in-
Gates, um rabiscador prolífico, como comprovam as divíduo».
páginas cheias de rabiscos que deixou na mesa do Fó- Mas, existe um perfil de uma pessoa aborrecida?
rum Económico Mundial. «Para compreender por que Como explica María Marcos, de El Prado Psicólogos,
razão Bill Gates e 26% da população mundial rabiscam «existem certos traços que tornam uma pessoa mais
quando estão aborrecidos, temos de olhar para o que suscetível de experimentar o tédio e a psicologia elu-
acontece no nosso cérebro quando estamos aborreci- cidou as características das pessoas “aborrecidas”.
dos. Um cérebro entediado não está em repouso, mas Segundo o estudo de Wijnand, Igou e Panjwani (2022),
em constante procura de estímulos». O autor explica esta atribuição estereotipada é feita a pessoas que não
que o rabisco é uma estratégia inteligente do cérebro têm interesses, não têm sentido de humor, não têm
para nos permitir alcançar o nível certo de estímulo opiniões ou estas são banais, falam pouco ou quei-
extra que procuramos, «mas não tanto que sejamos xam-se constantemente, correlacionando-se com
incapazes de manter um ouvido atento para o que se uma maior rigidez cognitiva». María Marcos esclare-
está a passar à nossa volta». Essa seria uma estratégia ce que seriam aquelas pessoas que apresentariam um
para controlar a situação numa reunião que não é su- egocentrismo negativo nas relações interpessoais,
ficientemente excitante para nos estimular totalmente. sendo mais superficiais e concentrando-se no lado
«A ação de rabiscar não ocupa tantos recursos cogniti- negativo das coisas, pois há sempre uma queixa cons-
vos como o devaneio, e portanto permite-nos estar no tante para elas.
“presente” sem nos deixarmos dominar pelo tédio». Estar aborrecido também parece implicar uma ati-
O rabisco ajuda-nos numa situação aborrecida a con- tude física e corporal: o professor de psicologia da
centrarmo-nos, reduzindo a necessidade de sonhar Universidade de Salzburgo Haradl G. Wallbott, no
acordado, uma ação totalmente absorvente. Outras coi- seu estudo de 1988, mostrou que as pessoas com o
sas que fazemos quando estamos aborrecidos incluem, tronco descaído, inclinando a cabeça para trás e par-
por ordem de preferência, ver televisão, dormir, tomar tilhando uma série de movimentos corporais eram
banho — alguns investigadores afirmam que o banho reconhecidas pelos participantes como estando
regular leva a uma queda significativa dos sentimentos aborrecidas.
de pessimismo sobre o futuro — e contar coisas, discutir Há também a teoria de que as pessoas extroverti-
ou fazer exercício. Outra consequência da tentativa de das com necessidades de excitação elevada podem
obter estímulos quando o nível é baixo é o envolvimento ter mais probabilidades de experimentar tédio: o cé-
em atividades de risco ou de emoções extremas, anu- rebro tenta equilibrar a sua necessidade de excitação
lando a preocupação com a segurança pessoal. através de um sistema conhecido como «sistema de
ativação reticular ascendente» ou SARA. Os intro-
ESTAR E SER: ABORRECIMENTO MOMENTÂNEO E CRÓNICO. vertidos teriam um SARA mais sensível aos estímulos
Algumas pessoas são mais suscetíveis ao aborreci- sensoriais e níveis relativamente baixos de estimula-
mento. Nas palavras da Dra. Mann «o aborrecimento ção proporcionam-lhes altos níveis de excitação. Pelo

Quando estamos aborrecidos, o rabisco funciona


como um mecanismo para nos concentrarmos no
presente, impedindo-nos de sonhar acordados

Bocejar e estar morto de tédio

S erá que bocejamos mais quando estamos aborrecidos? Esta é uma crença comum, mas que
corresponde de facto à verdade. Como se conta no livro The Art of Knowing How to Be Bo-
red, parece ser verdade que bocejamos mais quando nos sentimos aborrecidos, e estudos
provam-no. Robert Provine, professor de psicologia na Universidade de Maryland, pediu
voluntários para realizarem um teste que consistia em ver a mira técnica de um canal de te-
levisão durante trinta minutos. Provine comparou os resultados com os de outro grupo de
voluntários que assistiram a vídeos musicais. O estudo concluiu que os participantes que
assistiram à mira técnica bocejaram 70 % mais do que aqueles que apreciaram os vídeos
musicais da MTV.
Outros estudos ligam as doenças cardíacas ao tédio. Portanto, «morrer de tédio» faria
todo o sentido. Parece que as pessoas que se queixam de estarem aborrecidas são, de
facto, mais suscetíveis de morrer jovens e que aqueles que experimentam um grande
SHUTTERSTOCK

tédio têm mais do dobro da probabilidade de morrer (de doenças cardíacas) do que
aqueles que não se aborrecem.

14 SUPER
Os especialistas
dizem que é
necessário deixar as
crianças iniciar por si
próprias o processo
criativo que supõe o
tédio. Isto servirá
como aprendizagem
para a idade adulta.
SHUTTERSTOCK

contrário, explica Mann, os extrovertidos teriam uma mento do seu tempo com atividades significativas e
SARA menos sensível, o que faz com que não tenham úteis, que nos esquecemos de como o tempo de pa-
excitação suficiente para se sentirem satisfeitos. ragem pode ser benéfico», reconhece Sandi Mann.
Outros investigadores também sugerem que o narci- Julie Robinson, diretora de educação e formação da
sismo conduz ao tédio, uma vez que os traços narcisistas Independent Association of Prep Schools, declarou
inspiram certos objetivos e a pessoa pode não ter a ca- que «o tédio prepara as crianças para a realidade na
pacidade de os alcançar. A propensão para o tédio pode idade adulta, quando a vida nem sempre é excitan-
também estar relacionada com a procura da novidade te e divertida. Silêncio, calma e reflexão devem ser
ou «neofilia», uma necessidade crescente de coisas considerados tão importantes como qualquer aula es-
novas e diferentes, uma característica genética que nos timulante ou atividade estruturada».
teria dado uma vantagem evolutiva no passado. Além disso, como explica a psicóloga Marina
Além disso, foram encontradas várias coincidências Fernández Barragán, «quando estamos aborrecidos co-
em pessoas propensas ao tédio: desempenho inferior meçamos a pensar no que podemos fazer, de uma forma
na escola e no trabalho, depressão, ansiedade, solidão diferente do que temos ou do que já tentámos para nos
ou falta de objetivos ou ambição. Também problemas entreter, e este começar a pensar é um escape criativo.
de saúde física, embora outros estudos sugiram que É uma porta que, se a abrirmos, inicia o processo cria-
não é que as pessoas aborrecidas adoeçam mais do tivo. Começamos a procurar alternativas, para variar
que aquelas que não são propensas ao tédio, mas que ou afinar o que já sabemos, para acrescentar ideias em
as primeiras notariam mais os sintomas. busca de uma ideia viável. Este processo em si mesmo
mantém-nos afastados do tédio, entretém-nos, quer
DEIXEM QUE SE ABORREÇAM! «O tédio encoraja uma mu- encontremos ou não uma alternativa atrativa. É por isso
dança de posição, saindo da nossa zona de conforto que as crianças devem ser ensinadas a seguir este ca-
em direção a novas experiências», diz a psicóloga minho criativo por si próprias: «Só o podem aprender
María Marcos. O tédio pode favorecer a criatividade, praticando, ou seja, aborrecendo-se e pondo as suas ca-
«tendo em conta a intenção positiva, ou seja, fazer becinhas a trabalhar para terem ideias».
uma atividade aborrecida favorece esta mudança Assim, o tédio apresenta-nos um cenário vazio para
de enfoque. Por um lado, para os aspetos internos cada um preencher com as suas próprias inquieta-
(pensamentos e sentimentos) e por outro lado para ções. Um estado de inspiração e reflexão que Miguel
os aspetos externos, realizando assim uma procu- de Unamuno definiu muito bem: «Sim, sim, há um
ra atenta em busca de atividades que nos estimulem tédio inconsciente. Quase todos nós nos entediamos
e gerem motivação». Os pais percebem o tédio dos inconscientemente. O tédio é o fundo da vida e foi o
seus filhos como algo negativo e fazem tudo para o tédio que inventou os jogos, as distrações, os romances
evitar, talvez por um sentimento de culpa. «Ficamos e o amor. O nevoeiro da vida exala um tédio doce, um
tão envolvidos na procura de estímulos, no preenchi- licor agridoce». e

SUPER 15
IA NR VT EÍ CS UT IL GO A Ç Ã O

16 SUPER
CANÁBISUMA NOVA OPÇÃO
FARMACOLÓGICA?
Embora não haja provas científicas da sua utilidade no tratamento de certas
patologias, para muitos é o fármaco milagroso. Conhecida desde a antiguidade,
a sua utilização é agora legal em quarenta países do mundo. Em Portugal existe,
desde 2018 um quadro legal para o seu cultivo e utilização para fins medicinais.

Texto de JAVIER GRANDA REVILLA,


jornalista especializado em saúde

A popularidade
SHUTTERSTOCK

da canábis não
corresponde à
opinião dos peri-
tos. A sua eficá-
cia é, para a co-
munidade
médica, «real mas
pobre».

SUPER 17
ASC

O psiquiatra
Jacques Joseph
Moreau foi o
primeiro médico a
estudar o efeito
O USO DA CANÁBIS É
das drogas
psicoativas no
CONHECIDO DESDE O
sistema nervoso
central, incluindo
a canábis.
NEOLÍTICO E FORAM OS
ÁRABES QUE A
INTRODUZIRAM NA
PENÍNSULA IBÉRICA

transportou as primeiras sementes para o México em


1530 e a Real Audiencia autorizou o seu cultivo para
impulsionar a economia. Quinze anos mais tarde, uma
ordem de Carlos I apelava aos vice-reis para que apoias-
sem novas plantações .
Embora já tivesse sido utilizada séculos antes como
panaceia, no século XVIII a sua utilização como medica-
mento vê-se potenciada pela ausência de fármacos. Em
diferentes apresentações, começou então a ser utilizada
para tratar várias doenças tais como disenteria, lepra,
doenças venéreas, tosse convulsa, tuberculose, malária,
gota, etc. Mas só nos anos sessenta do século XX é que se
tornou conhecida em todo o mundo, por ser consumida
em grande escala por uma geração hippie aberta a novas
experiências recreativas. De acordo com dados da OMS,
147 milhões de pessoas consomem-na atualmente (apro-
ximadamente 2,5% da população mundial).

MAIS DE 100 SUBSTÂNCIAS ATIVAS. Pioneiros como Jacques

O
Joseph Moreau descreveram no século XIX os possíveis
efeitos terapêuticos da substância. Mas foi há meio sécu-
s povos neolíticos da Ásia Cen- lo atrás que a investigação farmacológica descobriu que
tral descobriram, há milénios, a canábis contém mais de 100 substâncias ativas, conhe-
as numerosas propriedades cidas como canabinóides. Os dois principais são o THC
da canábis, um arbusto que (tetrahidrocanabinol) e o CBD (canabidiol): o primeiro,
pode crescer até aos três me- que tem um efeito psicoativo, está ligado pelos recetores
tros de altura. As suas fibras, CB-1 e CB-2 do cérebro, que modulam aspetos tão diver-
secas, eram utilizadas para sos como o prazer, a fadiga, o apetite e a sensação de dor.
trançar fios que convertiam Os efeitos secundários incluem taquicardia e ansiedade.
em vestuário, calçado ou cor- O CBD, por outro lado, não tem efeitos psicoativos ou
das. Mais tarde, descobriu-se secundários e está a ser estudado em doenças como Par-
que também serviam para fa- kinson, diabetes e ansiedade.
bricar pasta de papel. As suas Todas estas propriedades impulsionaram o uso medi-
pequenas sementes, conhecidas como sementes de câ- cinal por diferentes vias: pode ser fumado, vaporizado,
nhamo, serviam para alimentar pintos e outros animais comido e consumido como um extrato líquido. A sua
domésticos. O óleo obtido das sementes trituradas era utilização é legal em quarenta países, dez na União Eu-
útil para cozinhar e os restos das sementes eram mesmo ropeia, e tem uma longa experiência em lugares como
utilizados como alimento para o gado. Israel e Canadá. Em dezembro de 2020, a ONU reconhe-
Estas múltiplas propriedades fizeram com que a plan- ceu oficialmente que a canábis pode ter propriedades
ta começasse a ser cultivada na Índia e na China e, há medicinais, o que se espera venha a impulsionar a in-
cerca de dois mil anos, chegou ao Mediterrâneo e foi vestigação.
uma das responsáveis pela guerra comercial entre os Em Portugal, a lei 33/2018, de 18 de julho, estabele-
Romanos e os Cartagineses. Pensa-se que chegou à Pe- ceu o quadro legal para a utilização de medicamentos,
nínsula Ibérica com a invasão árabe, por volta do século preparações e substâncias à base da planta da canábis
XI , e terão sido os navios espanhóis que a levaram pa- para fins medicinais. O quadro legal existente abranje
ra a América: muitas das cordas e outro equipamento a sua prescrição e a sua dispensa em farmácia, e tem
náutico de Colombo eram feitos de cânhamo (como como objetivo controlar e acompanhar toda a cadeia de
nos lembra o monumento ao descobridor nas Ramblas produção, desde o cultivo até à distribuição. Deste mo-
de Barcelona, desenhado por Gaietá Buigas em 1888). do garante-se que os doentes tenham acesso a produtos
Pedro Cuadrado, um membro do exército de Cortés, sob avaliação e receita médica e sem riscos.

18 SUPER
Em Espanha, a aprovação da canábis medicinal está
Tipos de cannabis
eminente. O projeto indica que será dispensado sob a
forma de um medicamento industrial nas farmácias
hospitalares.
E xistem três tipos principais de canábis:

○ Cannabis Sativa: originária da Ásia, África e América. É a mais


Um dos aspetos mais discutidos é a falta de provas comummente utilizada para fins recreativos devido ao seu
científicas que demonstrem a sua utilidade em cer- elevado teor de THC. Provoca efeitos ativadores, eufóricos,
tas patologias. Há um certo consenso em afirmar que energizantes e estimulantes do apetite.
existem estudos sobre a sua utilidade na eliminação de ○ Cannabis Indica: Originária do Paquistão e da Índia. Tem um
náuseas e vómitos da quimioterapia, para abrir o apetite teor de THC inferior ao da Canábis Sativa, com efeitos mais rela-
em doentes com SIDA e cancro, para combater a dor, xantes e indutores de sono. Pode produzir paranóia.
para evitar a rigidez muscular em doentes com esclero- ○ Cannabis Ruderalis: Originária do Canadá, Norte dos EUA,
se múltipla e para evitar convulsões em epilepsias que Sibéria e Cazaquistão. Baixa percentagem de THC. Usada princi-
não respondem a outros tratamentos. palmente para a cruzar com as variedades anteriores devido à sua
capacidade de florescer, mesmo em condições de luz adversas.
TERCEIRA OPÇÃO. Em Espanha o regulamento em estudo Existem também diferentes cruzamentos híbridos entre elas.
não contempla a canábis medicinal como uma primeira
opção. A posição da Sociedade Espanhola da Dor (SED)
é que deve ser usada como uma terceira alternativa,
quando os medicamentos habituais falharam: primeiro,
analgésicos e anti-inflamatórios, e segundo, opiáceos. qualquer tipo de sentido. Por conseguinte,é importan-
Neste momento, a sua utilização em Espanha só está te distinguir o uso recreativo de canábis fumada sem
autorizada para tratar a espasticidade na esclerose múl- controlo médico do uso de um medicamento, que será
tipla, em alguns casos de epilepsia e na dor crónica, mas regulamentado, que será formulado por um laborató-
não na dor oncológica. rio, e que é o CBD.
Para o Dr. Luis Miguel Torres, presidente da Socie- Outro aspeto que considera que deve ser tido em
dade Multidisciplinar Espanhola da Dor (SEMDOR), é conta é a falta de provas clínicas. «Estamos num cená-
importante esclarecer que a canábis «não é o mesmo rio em que vamos conviver com um novo analgésico. A
que o CBD, que é a molécula eficaz da canábis como sua potência e indicações têm ainda de ser definidas.
medicamento. Pode existir a confusão de que fumar um Não há provas clínicas suficientes para saber que lugar
cigarro de marijuana é um medicamento, e isto não faz o CBD, ou os canabinóides que temos agora em geral,

SHUTTERSTOCK
A canábis tem mais
de 100 substâncias
ativas chamadas ca-
nabinóides. As duas
principais modulam
aspetos como o pra-
zer, a fadiga e a dor.

SUPER 19
SHUTTERSTOCK

A canábis é eficaz
no controlo de
náuseas e vómitos
em doentes com
cancro e parece
funcionar para al-
guns tipos de do-
res crónicas, mas é
necessária mais in-
vestigação.

AINDA NÃO HÁ
e aqueles que teremos no futuro,
ocuparão no tratamento da dor.
Sabemos, a partir de publicações,
PROVAS CIENTÍFICAS custam muito dinheiro», pelo que
recomenda que haja financiamento
sem interesse comercial, que per-
que o CBD é eficaz no controlo de
náuseas e vómitos em doentes com
DE EFEITOS mita obter dados reais.
Outro aspeto a ter em conta é
cancro, e também na melhoria do
humor de alguns destes doentes, e ANALGÉSICOS que, tal como acontece com as
substâncias com propriedades
com algumas propriedades anal-
gésicas que ainda estão por definir. SIGNIFICATIVOS DA farmacológicas, a par dos efeitos
benéficos existem também os in-
Mas reitero que não há provas desejáveis. O mais importante é
científicas sólidas de que os cana-
binóides em qualquer dose e por
CANÁBIS o de produzir patologia psicótica
em indivíduos predispostos. Além
qualquer via forneçam analgesia disso, os seus princípios ativos po-
significativa». deriam interferir com a ação dos medicamentos que os
Na sua opinião, alguns artigos e relatórios noticiosos pacientes estão a tomar. «É mais um fármaco. Não se
mostram conflitos de interesse e falhas metodológi- trata de fumar um charro. Administra-se por via oral,
cas. «O que sabemos neste momento é que a eficácia em alguns casos, por inalação com um dispositivo do-
do uso de canabinóides, canábis ou CBD como anal- seador», resume Madariaga.
gésico potente é baixa ou muito baixa. Muitos artigos Quanto às náuseas, o Dr. Ricardo Cubedo, chefe do
demonstram mesmo um efeito negativo. De momento Serviço de Oncologia Médica do MD Anderson Cancer
não temos dados que nos permitam dizer que o CBD é Center Madrid, salienta que a eficácia da canábis médica
um analgésico potente, e muito menos que a canábis «é real, mas pobre». Em ensaios comparativos mostrou
natural é um analgésico e pode ser recomendada aos maior eficácia do que antieméticos mais suaves, como a
pacientes com dores. Ainda menos quando comparada metoclopramida (primperan). Contudo, são muito me-
com outros analgésicos como o paracetamol, anti-in- nos potentes do que os medicamentos de nova geração
flamatórios não esteróides ou opiáceos, que têm um utilizados para prevenir e tratar náuseas e vómitos rela-
efeito analgésico adequado e indicações e dosagens cionados com quimioterapia e radioterapia, tais como
precisas». os antagonistas dos recetores de serotonina. Por outro
lado, os canabinóides, utilizados de forma sustentada
MAIS INVESTIGAÇÃO. A Dra. María Madariaga, Presidente como antieméticos, causam frequentes efeitos adver-
da SED, salienta que a canábis médica «parece funcionar sos, tais como tonturas, alterações de ânimo e humor,
em alguns tipos de dor crónica, embora seja necessá- alucinações e efeitos de ricochete com aumento das
ria mais investigação com estudos observacionais que náuseas».

20 SUPER
Os assassinos que
emergiram do cânhamo
A palavra «assassino» tem origem no hassasin árabe, que significa fu-
madores de haxixe, a droga obtida a partir da resina de cânhamo. Mas
a origem do termo é duvidosa: deriva de O Velho da Montanha, um líder
muçulmano ismaili que fundou uma seita xiita, inimiga tanto dos Cruzados
como dos muçulmanos sunitas. Espalharam o terror cometendo assassi-
natos seletivos, drogando os carrascos com haxixe. Contudo, esta droga
causa relaxamento, por isso é improvável que tenha sido administrada para
provocar homicídio.
A seita foi exterminada no seu refúgio em Alamut (Irão) em 1256 e, como
de costume, foram os vencedores Cruzados e sunitas que desenvolveram a
história de assassinos cruéis, seletivos e drogados. Alguns anos depois, em
1273, Marco Polo foi a Alamut e ajudou a difundir a lenda. Atualmente, pen-
sa-se que o significado de hassasin significa «inimigo» ou «pessoa de má

GETTY
reputação». A sua ligação com as drogas foi muito posterior.

«A iniciativa é boa, aproxima a Espanha do nível uma redução no consumo de opiáceos. Há provas,
dos países avançados do mundo. Segundo o CIS, 90 há estudos observacionais com dez mil pacientes
por cento da população é a favor da regulação da caná- que mostram melhorias na qualidade de vida em 75
bis medicinal. O uso da terapia permitirá aos médicos por cento dos utilizadores. Mas temos de continuar a
aprenderem como funciona e, pouco a pouco, estará em gerar provas e descobrir como melhorar a dosagem,
pé de igualdade com outros países, como o Canadá ou a entre outros aspetos». Agirregoitia tinha uma colite
Alemanha», prevê Ekaitz Agirregoitia, membro do Ob- ulcerosa que melhorou após o uso de canábis. «Isso
servatório Médico Espanhol da Canábis. levou-me a investigar e a trabalhar com os doentes.
Quanto à falta de provas científicas em certas A regulamentação em Espanha deveria ter ido mais
doenças, assinala que em países como o Canadá e longe, tal como não limitar as doenças específicas
os Países Baixos tem sido considerado válida, «es- para as quais pode ser utilizada. Mas é um passo que
pecialmente nas dores neuropáticas, o que levou a era muito necessário», diz ele. e
SHUTTERSTOCK

Para os peritos,
é necessária in-
vestigação so-
bre os seus
efeitos e, entre
outras coisas,
sobre a dosa-
gem. Trata-se
apenas de mais
um fármaco,
concluem.

SUPER 21
H I S T Ó R I A

VIAS ROMANAS
EM PORTUGAL
UM MUNDO POR DESCOBRIR
Há todo um Portugal antigo, de maravilhosas paisagens, por (re)descobrir quando
imergimos na história, percorrendo as velhas vias romanas que atravessam o país,
mas há também muitos equívocos, incertezas e distorções, que o rigor histórico nos
desafia a enfrentar e esclarecer.

Texto de JOSÉ PEDRO SOUTINHO

Miliário de Augusto convertido em sarcófago no adro da Igreja de Nos documentos medievais há di-
versas referências à via romana
Rubiães, assinalando a via de Braga a Tui.
como «via antiqua», «strada mouris-
ca» ou «karraria antiqua»
22 SUPER
Grupo de miliários
na Via Nova na Serra
do Gerês assinalan-
do a milha XVII.

Troço lajeado da via Viseu


a Centum Cellas no lugar
da Roda (Mangualde). Vestígios de Talábriga, estação viária da
via de Porto-Coimbra no chamado Cabeço
do Vouga (Águeda). Na sua base a estrada
romana cruzava o Rio Vouga.

Miliário da via de Braga a Chaves reutilizado como pilar de varanda na


aldeia do Cortiço (Montalegre).

SUPER 23
N
as últimas décadas tem-se
assistido a um interesse cres-
cente nos caminhos antigos,
procurando a preservação e
valorização deste importante
património. Por exemplo, o
«Caminho de Santiago» atrai
atualmente acima de 300 mil
visitantes por ano, eviden-
ciando todo o seu potencial
económico, em particular
para os territórios menos desenvolvidos do interior do
país. No entanto, a proliferação de itinerários rumo a
Compostela tem criado uma visão distorcida da rede
viária medieval que na verdade assentava largamente
nos antigos trajetos do período romano. Desde logo, a A rede viária antiga foi reparada ao longos dos séculos. Gravura do séc.
XVI da cidade de Coimbra representando a ponte manuelina construída
incerteza sobre os verdadeiros trajetos destas vias tem
em 1513 sobre as ruínas de uma ponte anterior iniciada em 1132 por
levado à criação de percursos ditos «históricos» que na ordem de D. Afonso Henriques (in Georgius Braunius «llustris ciuitatis
verdade são bem mais recentes. Conumbriae in Lusitania»).
Estes equívocos devem-se à ausência de um estu-
do alargado sobre a rede viária antiga, falha essa que
o projeto viasromanas.pt tenta colmatar. De facto, o EVIDÊNCIAS DA VIA. Até muito recentemente supunha-se
levantamento destes trajetos tem sido muito dificul- que as estradas romanas teriam desaparecido, com a
tado pela escassez de vestígios viários e pelas enormes exceção de alguns troços lajeados que habitualmente
transformações operadas na paisagem. No entanto, a não excedem as centenas de metros. Esta visão restri-
utilização de ferramentas GIS no estudo da rede viária ta da rede viária resulta de um equívoco nos critérios
permite ter hoje uma visão muito mais detalhada destes para a sua identificação, supondo que todas as vias ro-
percursos e veio esclarecer muitas das dúvidas e incer- manas eram pavimentadas com grandes lajes de pedra,
tezas que povoavam o seu estudo. A criação de um mapa emulando o modelo construtivo da famosa Via Ápia. No
de vias cobrindo todo o território nacional vai permitir entanto, hoje sabemos que este pavimento era mais ca-
melhorar a sua preservação e valorização para que to- racterístico das vias urbanas, sendo esse famoso trecho
dos possam desfrutar destas vias antigas. da via Ápia apenas o prolongamento do lajeado urbano
que saía de Roma, servindo a grande necrópole que se
estendia por vários quilómetros à margem da via. Em
consequência deste equívoco, toma-se como romano

Métodos construtivos qualquer troço lajeado, enquanto grandes trechos da


via em terra batida permanecem ignorados e sem qual-
quer proteção.

A prospeção arqueológica tem revelado um processo construtivo


bem simples, cortando o substrato rochoso ou cavando uma vala
sobre o qual era depositada uma camada de calhau grosso misturado
RESILIÊNCIA DO TRAJETO. É esta rede viária antiga que pre-
tendemos dar a conhecer. Esta designação de «antiga»
com terra, sobre o qual assentava um piso em gravilha e areia. Deste (e não «romana» ou «medieval») pretende reforçar
modo, a sua manutenção era simplificada, bastando para isso deposi- o facto de estes trajetos não serem propriamente uma
tar uma nova camada sobre o leito da via para refazer o piso. construção romana de raiz como se tem dito, mas de
uma rede de caminhos milenares que podem ser recua-
dos a períodos muito anteriores. Naturalmente que a
rede teve enormes melhoramentos durante o período
romano, mas é esta rede primordial de trajetos calce-
tados que iria assegurar os grandes trajetos do período
romano e medieval, permanecendo em utilização sem
alterações de monta até às primeiras décadas do século
XX (!) O advento do automóvel obrigaria à construção
de uma nova rede de estradas mais adaptadas ao tráfego
automóvel, acabando por ditar o abandono ou trans-
formação destes trajetos milenares. Apesar disso, ainda

A rede viária medieval na


verdade assentava largamente
© JOSÉ PEDRO SOUTINHO

nos antigos trajetos do


Troço da via em Cervães
(Mangualde) integrando a
via de Vissaium (Viseu) a
Torre de Centum Celas.
período romano
24 SUPER
SUPER
© JOSÉ PEDRO SOUTINHO
hoje é possível percorrer grande parte destes trajetos
antigos, embora muitas vezes já com adaptações para
tráfego moderno, dado que alguns troços continuam a
servir as populações.

TIPOLOGIAS DOS PERCURSOS. Estes percursos terão sido


percorridos inicialmente a pé e só mais tarde foram
adaptados a carros, de modo que por regra corresponde
ao percurso mais facilitado e mais curto entre dois pon-
tos. Por outro lado, estes trajetos procuram o caminho
mais a seco possível, evitando, sempre que possível, a
difícil travessia de linhas de água. Para isso, a via apre-
senta em geral trajetos em altura, seguindo pelo viso do Em zonas de montanha, as vias seguem o viso do monte ou a meia-encosta,
minimizando as variações de cota e a travessia de linhas de água. Imagens da
monte ou a meia-encosta, procurando as portelas das
via romana pela Serra do Gerês (Via Nova).
serras para transpor zonas montanhosas. Nas áreas de

© JOSÉ PEDRO SOUTINHO


planície, como no território do Alentejo, as vias seguem
tendencialmente longas retas, terminando numa súbita
mudança de direção a que se segue novo troço retilíneo,
a fim de contornar linhas de água ou outros obstáculos
à sua passagem.

ESTAÇÕES. Ao longo das vias existiam estações para apoio


aos viandantes. A maioria tem origem em castros pré-
-romanos localizados próximo da via, na base dos quais
se vêm a instalar pequenos estabelecimentos viários
romanos (mutationes), estações de muda que habitual-
mente estavam intervaladas por 8 ou 12 milhas. No fim de
uma jornada de caminho (cerca de 20 milhas) haveria es-
truturas de maior dimensão (mansiones), por vezes com
banhos e outras comodidades, tal como as escavadas na
Quinta da Raposeira em Mangualde. Aliás, alguns dos
vestígios romanos classificados atualmente como villa, Por exemplo, em todo o Algarve e Baixo-Alentejo (área
dada a sua proximidade da via, poderão afinal corres- muito «romanizada») não se conhecem mais de se-
ponder aos restos dessas antigas estações. te miliários, em claro contraste com as mais de duas
centenas contados a norte do Douro. Esta enorme dis-
MILIÁRIOS. Além destes vestígios, algumas das vias con- crepância deve-se ao facto das vias a sul não exigirem
tam com a presença de miliários assinalando o percurso, grandes obras de manutenção enquanto a norte, as
atestando as obras levadas a cabo na via pelos sucessivos condições climatéricas bem mais agrestes obrigam a
imperadores, facto evidenciado pelo uso da expressão reparações bem mais frequentes, testemunhadas por
«refecit» (refeita) em muitos desses miliários. Na sua esses miliários.
maioria foram mutilados e deslocados para outros fins,
acabando muitos por desaparecer, dificultando a iden- PONTES. Naturalmente que a existência de pontes com
tificação do traçado da via. Em contraste com o elevado origem romana é outro importante indicador para va-
número de miliários nas vias que partiam de Braga, a lidação do trajeto. No entanto, o número de pontes
maioria das vias não contavam com miliários de milha romanas é bem mais reduzido do que se pensa, rondan-
em milha (c. 1500 m), mas apenas com alguns exem- do atualmente não mais que uma vintena de exemplares
plares assinalando as principais estações ou nós viários. em todo o país. De facto, a maioria das pontes ditas
«romanas» são na verdade construções medievais. Es-
ta classificação ad-hoc levou à proliferação de supostas
«pontes romanas» sem que haja qualquer evidência
material, sendo evidente nos guias turísticos, na si-
nalética viária e até mesmo na literatura científica, Ao
contrário das medievais, as pontes romanas são carac-
terizadas pela horizontalidade do tabuleiro, por vezes
suportando duas faixas de rodagem. Este assentava so-
bre uma estrutura formada por arcos de volta perfeita
apoiados em fortes pegões. Mas uma das características
mais relevantes para atestar a sua origem romana é a
utilização de pedras almofadas, em particular quando
estas ostentam a marca de fórfex que serviam para a
© JOSÉ PEDRO SOUTINHO

sua elevação e posicionamento. Trata-se de pequenas


cavidades em lados opostos do silhar onde encaixam
as pontas da tenaz da grua mecânica que permitia ele-
var e posicionar os silhares durante a construção. A
Miliário de Nero reutilizado como peso de lagar, hoje na exterior força-motriz que fazia mover essas máquinas era obti-
da Sé de Braga. da a partir do rio adjacente construindo para isso um
SHUTTERSTOCK

Torre de Centum Cellas


(Belmonte), povoado romano
junto da via para Mérida, onde
haveria uma mansio (albergaria
para descanso dos viajantes).

moinho de água, permitindo uma grande rapidez de

Ponte Romana de Vila construção com um número relativamente limitado de


mão de obra.

Formosa (Alter-do-Chão) Efetivamente, o que mais surpreende na tecnologia


romana é a eficácia e eficiência dos processos constru-
tivos adotados, aplicando conceitos atualmente muito

S obre a Ribeira da Seda na via de Santarém a Mérida. Com seis


arcos de volta perfeita suportando um tabuleiro com cerca de
7 metros de largura e 117 metros de comprimento, trata-se de uma
em voga como seja a modularidade e utilização de re-
cursos locais. Com efeito, partindo de um único módulo
base, um arco de volta perfeita assente em robustos pi-
das pontes romanas melhor conservadas em Portugal. Até muito re- lares, era possível repetir este módulo até atingir o
centemente suportava o moderno trânsito pesado da estrada N369 comprimento necessário, e variando a dimensão dos
para Alter do Chão. Notar o almofadado dos silhares ostentando pegões obtinha-se a altura desejada. A proporciona-
ainda as marcas de fórfex. lidade da obra seguia a chamada «divina proporção»
ISTOCK

26 SUPER
© JOSÉ PEDRO SOUTINHO
Existe uma infinidade
de vias romanas cobrindo
praticamente todo o território
português
ou «número de ouro», ou seja, a razão utilizada pela
natureza e por toda a arquitetura da antiguidade clássi-
ca, garantindo a sua estabilidade estrutural segundo os
princípios enunciados por Vitrúvio no século I.

PRINCIPAIS ITINERÁRIOS. Existe uma infinidade de vias


cobrindo praticamente todo o território português. No
entanto, a rede viária romana pode ser descrita em tra-
ços gerais nos seguintes eixos principais. Tal como nos
dias de hoje, o tronco estruturante corresponde à ligação
de Olisipo (Lisboa) a Bracara Augusta (Braga), passando
por Scallabis (Santarém), (Seilium) (Tomar), Conímbri-
ga, Coimbra (Aeminium) e Cale (Porto), estações de onde
partiam ligações ao interior. Bracara era o principal foco
viário a norte do Douro, com três importantes itinerá-
rios partindo desta cidade: o primeiro seguia para norte
rumo a Lucus Augusti (Lugo) passando em Ponte de Li-
ma e Tui, via que cruzava o Rio Lima numa imponente
ponte romana da qual resta apenas os primeiros arcos da
margem direita após a sua reconstrução na Idade Média.
Outro itinerário seguia para Asturica Augusta (Astorga)
passando em Chaves e Bragança, cruzando o Rio Tuela
numa ponte romana bem conservada. Um terceiro itine-
rário seguia também para Asturica mas cruzando a Serra
do Gerês pela Portela do Homem (via também conhecida
por «Geira» ou «Via Nova»). Existem também miliá-
rios que indiciam uma via de Braga rumo ao rio Douro,
cruzando o rio Tâmega próximo da cidade romana de
Tongóbriga (c. Marco de Canaveses). Um ramal desta
estrada cruzava a Serra do Marão em direção a Peso da Mapa dos principais eixos viários romanos e as respetivas estações viárias
Régua onde atravessava o Douro. (elaborado pelo autor).
A sul deste rio, a rede viária é muito condicionada pe-
la Serra da Estrela, sendo as vias articuladas em torno de partiam também ligações aos portos de Onuba (Huelva)
quatro grandes nós viários designadamente, Vissaium e Hispalis (Sevilha). Este breve panorama da rede viária
(Viseu) e Bobadela na vertente poente, Guarda e Bel- romana é ilustrado no mapa que apresentamos.
monte na vertente nascente, que articulavam o trânsito
para Emerita Augusta (capital da Lusitânia, atual Mé- UM MUNDO POR DESCOBRIR. Percorrer estes caminhos é
rida), com estações viárias nos povoados romanos de fazer uma viagem no tempo e sentir in loco uma ex-
Torre de Centum Cellas e Igaeditana (Idanha-a-Velha). periência imersiva nas várias camadas da história. Há
A via continuava para Mérida, cruzando a atual fron- de facto, todo um Portugal antigo por (re)descobrir
teira na Ponte Romana de Segura, estrutura romana quando percorrermos estes trajetos, ligando velhos
em bom estado de conservação e que ainda hoje serve o povoados, e descobrindo algumas das paisagens natu-
trânsito moderno. rais mais remotas e emblemáticas do nosso território.
Mais a sul existiam dois grandes eixos ligando Lis- Venha descobri-los!
boa a Mérida. O primeiro destes cruzava o Tejo junto
a Santarém e seguia por Ponte de Sor e Alter do Chão, NOTA FINAL. Pedro Soutinho conduz um projeto de in-
cruzando a Ribeira da Seda na magnífica ponte romana vestigação pioneiro em Portugal que visa identificar,
de Vila Formosa. O segundo itinerário de Lisboa a Mé- preservar, divulgar e valorizar o património viário roma-
rida seguia por Alcácer do Sal, Évora, Estremoz e Elvas. no, e que tem vindo a ser publicado em viasromanas.pt.
Deste último partiam diversas ligações a sul. A primeira Lançado em 2004, o site acabou por se tornar numa re-
deriva em Alcácer e segue por Alvalade e Arannis (Cas- ferência obrigatória sobre o tema, contando atualmente
tro Cola), rumo ao porto de Ossonoba (Faro). Um ramal com mais de 70 referências em artigos científicos e teses
desta estrada seguia por Pax Iulia (Beja) rumo ao porto de mestrado e doutoramento. Em paralelo, o projeto
de Myrtilis (Mértola), seguindo depois por via fluvial até tem colaborado com outras iniciativas com o intuito de
à Foz do Guadiana, junto da qual assentava o povoado promover esforços na preservação destes trajetos que
de Baesuris (Castro Marim). Finalmente, de Pax Iulia urge salvar da destruição. e
M U D A N Ç A C L I M Á T I C A

O IMPACTO
AMBIENTAL
DA NOSSA
DIETA
Os cientistas apelam a uma dieta planetária justa e saudável para evitar
o colapso ambiental. Um quarto das emissões de gases com efeito de
estufa provém da produção alimentar.

Texto de EDUARDO MESA, jornalista

28 SUPER
Consumir demasiado,
demasiado depressa e
ao menor custo causa
grandes danos ao
equilíbrio ecológico do
planeta. A alimentação é
SHUTTERSTOCK

um dos fatores mais


prejudiciais.

SUPER 29
O
problema começou quando com um estudo publicado nesta universidade, a car-
deixámos de comer coisas ne e os subprodutos animais são os mais responsáveis
com carne e começámos a pela emissão destes gases durante todo o seu ciclo de
comer carne com coisas. A produção, desde a criação de gado até aos derivados e
declaração de Luis Ferreirim, ao seu transporte.
chefe da campanha agríco- O relatório especial do IPCC (Painel Intergover-
la da Greenpeace Espanha, namental sobre Alterações Climáticas), publicado
explica perfeitamente a si- em 2021, aborda especificamente as emissões de ga-
tuação atual. O abandono da ses com efeito de estufa do setor agro-alimentar. As
dieta mediterrânica, «um conclusões não poderiam ser mais desencorajadoras:
padrão sustentável e mui- as emissões associadas às atividades a montante e a
to saudável», para cair nas jusante no sistema alimentar mundial representam
redes de um sistema onde a industrialização, o con- entre 21% e 37% do total das emissões líquidas antro-
sumo elevado, o consumo rápido e o menor custo pogénicas de gases com efeito de estufa.
possível, está a causar sérios danos não só à saúde dos
seres humanos, mas também ao equilíbrio ecológico A CARNE É DUAS VEZES MAIS POLUENTE QUE OS VEGETAIS.
do planeta. Pesquisas recentes publicadas na prestigiada revista
Pensamos frequentemente que o maior impac- Nature indicam que a produção global de alimen-
to ambiental gerado na nossa sociedade advém das tos é responsável por um terço de todos os gases de
grandes indústrias, da revolução tecnológica ou do aquecimento global emitidos pela atividade humana.
crescimento exorbitante da frota automóvel, mas A utilização de animais para carne causa o dobro da
diferentes estudos publicados nos últimos anos con- poluição que a produção de alimentos de origem ve-
centram-se nos padrões de consumo alimentar. getal, conclui o estudo.
A Universidade de Oxford adverte que a produção Os números realçam a magnitude do problema.
alimentar é responsável por mais de um quarto das Todo o sistema de produção alimentar, incluindo a
emissões de gases com efeito de estufa, com as te- utilização de maquinaria agrícola, a pulverização de
míveis consequências do aquecimento global e das fertilizantes ou o transporte destes produtos, gera
alterações climáticas. Mas nem todos os alimentos 17,3 mil milhões de toneladas métricas de gases com
prejudicam o ambiente da mesma forma. De acordo efeito de estufa por ano, de acordo com esta investi-

Todos os anos, 17% dos


alimentos disponíveis para os
consumidores acabam no
caixote do lixo.
SHUTTERSTOCK

30 SUPER
As atividades associadas à
produção do sistema alimen-
tar global são responsáveis
por um terço dos gases de
aquecimento global.
SHUTTERSTOCK

gação. Esta enorme emissão é mais do dobro do total 80 % DAS TERRAS AGRÍCOLAS DO MUNDO SÃO UTILIZADAS PARA A
das emissões dos EUA e representa 35% das emissões ALIMENTAÇÃO ANIMAL. A criação de animais requer a utili-
globais. Como reconhece este estudo, realizado pela zação de uma grande quantidade de terra obtida através
Universidade de Illinois, o volume de emissões sur- do abate de florestas. Por outro lado, uma grande área
preendeu os próprios cientistas, que alertam para de terra precisa de ser cultivada para produzir ração ani-
danos ambientais sem precedentes, com consequên- mal. «Oitenta por cento das terras agrícolas do mundo
cias dramáticas para o futuro da Terra. são utilizadas para produzir alimentos para animais, não
Criar e abater animais para consumo humano é para pessoas», diz Luis Ferreirim, que acredita que es-
muito pior para o clima e o planeta do que cultivar ta exploração desenfreada da terra é responsável pelos
ou processar fruta ou vegetais. A utilização de vacas, graves problemas de desflorestação na Amazónia e de es-
porcos e outros animais para alimentação, bem como cassez de água em muitas partes do mundo.
os processos realizados na terra para alimentar estes Com base em dados de mais de 200 países, os inves-
animais, causam 57% de todas as emissões de gases tigadores compararam as emissões de mais de 170 tipos
com efeito de estufa, em comparação com 29% pro- diferentes de culturas e 16 produtos animais. Os dados
cedentes do cultivo de alimentos à base de plantas. concluíram que a América do Sul é a região com o maior
A produção de carne de bovino é responsável por volume de emissões derivadas da produção de alimentos
um quarto das emissões provenientes da criação e para animais, seguida pelo Sul e Sudeste Asiático e pela
cultivo de culturas alimentares. Se compararmos a China. A China e a Índia registaram o maior aumento de
quantidade de gases emitidos nos processos de pro- emissões, impulsionado pelo aumento da riqueza nestas
dução de carne e vegetais, a diferença entre os dois sociedades e por mudanças culturais que encorajam o
é notória: enquanto a produção de um quilo de trigo consumo de carne entre os jovens. A Organização das
produz 2,5 quilos de gases com efeito de estufa, um Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura adverte
único quilo de carne de vaca produz até setenta quilos que 14% das emissões globais de gases provêm da pro-
de emissões. dução de carne e laticínios.

A criação e abate de animais para consumo humano é mais


prejudicial para o clima do que o cultivo de fruta e vegetais
SUPER 31
Em Portugal o setor agrícola aumentou
o seu peso relativo nas emissões
SHUTTERSTOCK

nacionais, para mais de 12% do total


em 2020.

EM PORTUGAL AS EMISSÕES NO SETOR AGRÍCOLA con- um estudo realizado em 2018 e baseado em dados
tinuam em tendência crescente, como salienta a de 2011 a 2016.
associação ambientalista Zero, não obstante «terem O consumo de produtos alimentares é responsá-
sido disponibilizados apoios públicos com objetivos vel pela maior fatia de Pegada Ecológica, superior
climáticos na última década». mesmo ao setor dos transportes, que aparece em se-
A meta climática para 2020 (meta de redução de gundo lugar.
emissões face a 2005) não foi cumprida, e corre-se Um estudo da Global Footprint Network mostra
sério risco de falhar também a meta para 2030. Se- que Portugal é, entre os países da região mediterrâ-
gundo o último Inventário Nacional de Emissões por nica, o país com maior pegada ecológica per capita
Fontes e Remoção por Sumidouros e Poluentes At- ao nível da alimentação.
mosféricos (INERPA), o setor agrícola português viu O consumo de proteína animal (carne e de peixe) é
aumentado o seu peso relativo nas emissões nacio- o principal responsável, correspondendo a mais de
nais para mais de 12% em 2020. metade, pela elevada Pegada Ecológica da alimen-
51% das emissões de Gases com Efeitos de Estu- tação. Refira-se que Portugal é o país europeu com
fa da agricultura resulta do processo digestivo dos maior consumo de peixe, sobretudo de bacalhau,
ruminantes. 32% das emissões advêm dos solos atum e salmão. Estamos claramente a afastar-nos
agrícolas e o restante dos efluentes pecuários. do modelo equilibrado da dieta mediterrânica.
Os números indicam que o setor pecuário é o prin- Globalmente Portugal está a consumir para além
cipal contribuinte de GEE na agricultura, setor que da sua biocapacidade. A pegada ecológica portu-
aumentou significativamente nos últimos 10 anos o guesa é de 4,5 hectares por pessoa, tendo apenas 1,3
número de bovinos (em 11%) e de suínos (em 17%). hectares produtivos per capita.
No seu conjunto a agricultura portuguesa libertou Mas esta situação global não ocorre só em Por-
para a atmosfera quase sete milhões de toneladas de tugal. Na União Europeia, a pecuária é responsável
dióxido de carbono. O setor alimentar é, nalguns por 70 % das emissões da agricultura europeia, ul-
municípios portugueses o principal agente causador trapassando os 80% se contabilizarmos as emissões
de pegadas ecológicas excessivas, de acordo com importadas (produção de rações fora da União Eu-

Na União Europeia, a pecuária é responsável por 70 % das


emissões da agricultura europeia
32 SUPER
O buraco negro dos alimentos desperdiçados
O s números são espantosos.
Estima-se que até 1300
toneladas de alimentos, o equivalente
do Índice de Resíduos Alimentares
2021 do Programa das Nações
Unidas para o Ambiente (PNUA) e da
gigantescas. Entre 8 e 10 % das
emissões globais de gases com
efeito de estufa têm origem em
a 17% dos alimentos disponíveis para organização parceira WRAP analisa alimentos que não são consumidos,
os consumidores, acabam todos os a quantidade de resíduos não só dos tendo em conta as perdas antes
anos no buraco negro do caixote do próprios alimentos, mas também de do consumo. O objetivo 12.3 dos
lixo. Nos lares, nos pontos de venda outros materiais não comestíveis, tais Objetivos de Desenvolvimento
a retalho, nos restaurantes ou outros como ossos e cascas. Sustentável (ODS) visa reduzir para
serviços alimentares. A imagem Considerações morais à parte, com metade o desperdício alimentar
de 23 milhões de camiões de 40 mais de 700 milhões de pessoas per capita a nível mundial, tanto a
toneladas totalmente carregados, um famintas no planeta e 3 mil milhões nível do retalho como do consumo,
após o outro, que circundariam a terra incapazes de pagar uma dieta e reduzir as perdas alimentares ao
sete vezes, ilustra perfeitamente a saudável, a pegada ambiental longo das cadeias de produção e
escala deste desperdício. O relatório destes resíduos atinge proporções abastecimento.
SHUTTERSTOCK

ropeia). Um relatório de maio do Tribunal de Contas consequências do aumento das emissões para a
Europeu demonstra o fracasso a nível europeu no subsistência, biodiversidade, saúde humana e dos
controlo das emissões agrícolas, ao revelar que 100 ecossistemas, infra-estruturas e sistemas alimenta-
mil milhões de euros da PAC (Política Agrícola Co- res. E embora haja diferenças regionais, a ameaça é
mum) gastos em «ação climática» não obtiveram global. O aumento do aquecimento global irá aumen-
resultados suficientemente relevantes. tar a frequência, intensidade e duração das ondas de
No relatório «Avaliando os Impactos Ambientais calor, que continuarão a crescer ao longo do século
de Consumo e Produção» as Nações Unidas encora- XXI. A África Austral e a região mediterrânica serão
jam «uma mudança substancial da dieta mundial, as áreas mais afetadas por secas prolongadas. Por ou-
no sentido de abandonar progressivamente pro- tro lado, as frequências e intensidade de precipitação
dutos de origem animal e reforçar o consumo de extrema atingirão muitas outras regiões. À medida
alimentos de origem vegetal». que a temperatura global aumenta, os riscos de es-
cassez de água nas zonas áridas, os danos causados
AMEAÇA GLOBAL À SUBSISTÊNCIA. No relatório Alterações por incêndios florestais, a degradação do perma-
Climáticas e a Terra, o Painel Intergovernamen- frost ou a instabilidade do abastecimento alimentar
tal sobre Alterações Climáticas alerta para as graves aumentarão dramaticamente. Nas zonas mais secas,

SUPER 33
O aumento dos incêndios florestais é
simultaneamente uma causa e uma
consequência das alterações climáticas
e conduzirá ao stress hídrico,
intensidade da seca e desertificação
em algumas partes do mundo.

SHUTTERSTOCK

as alterações climáticas e a desertificação reduzirão to e sustentável para uma população mais saudável
a produtividade das culturas e do gado e condenarão e um planeta mais saudável. No seu relatório Food,
178 milhões de pessoas ao stress hídrico, à intensida- Planet, Health, salienta a necessidade de transfor-
de da seca e à degradação do habitat até 2050. A Ásia e mar radicalmente as nossas dietas a fim de alcançar
África terão o maior número de pessoas vulneráveis à uma dieta saudável até 2050. «O consumo global
desertificação crescente. Na América do Norte, Amé- de frutas, legumes, frutos secos e sementes, e legu-
rica do Sul, região mediterrânica, África do Sul e Ásia minosas deve duplicar, e o consumo de alimentos
Central, os incêndios florestais tornar-se-ão uma como carne vermelha e açúcar deve ser reduzido em
praga. A crise climática é também ela própria uma mais de 50%. Uma dieta rica em alimentos à base de
causa de fome. Estima-se que um terço da produção plantas e menos à base de animais confere bons be-
alimentar mundial estará em risco até ao final do sé- nefícios para a saúde e o ambiente», diz o Professor
culo se a escalada das emissões de gases com efeito Walter Willett no estudo. Esta revolução nos nossos
de estufa não for travada. Estas alterações climáticas hábitos alimentares permitir-nos-á alcançar o obje-
também influenciam os fenómenos migratórios, tan- tivo de uma dieta planetária saudável para mais de
to dentro dos países como além fronteiras. Mulheres, 10 mil milhões de pessoas até meados do século XXI.
jovens, idosos e crianças serão os mais vulneráveis Caso contrário, alertam os cientistas, o mundo corre
num cenário de alterações climáticas extremas. o risco de não cumprir os Objetivos de Desenvolvi-
mento Sustentável (ODS) e o Acordo de Paris (2015),
DIETA DE SAÚDE PLANETÁRIA. A abordagem da questão a resposta global histórica do mundo à ameaça das
crucial do aquecimento global exige, de acordo com alterações climáticas, com base em políticas e inves-
uma grande número de trabalhos científicos, um timentos destinados a moldar um futuro sustentável
repensar decisivo dos hábitos alimentares e das prá- e com baixo teor de carbono. Sem ação imediata, as
ticas agrícolas. EAT, uma fundação global sem fins crianças do futuro herdarão um planeta gravemente
lucrativos, defende uma transformação do sistema degradado e onde grande parte da população sofrerá
atual no sentido de um modelo alimentar mais jus- cada vez mais de subnutrição e doenças evitáveis. e

Uma dieta saudável é um dos Objetivos do Desenvolvimento


Sustentável e ajudará a travar as alterações climáticas
34 SUPER
F Í S I C A

AS ESTRANHAS MATEMÁTICAS QUE


PODERIAM UNIR AS LEIS DA NATUREZA
Os matemáticos estão entusiasmados — traduzir as nossas teorias da realidade
para a linguagem dos octoniões poderia resolver alguns dos maiores problemas da
física e abrir o caminho para uma «grande teoria unificada».

Texto de MICHAEL BROOKS

Muitos físicos so-


GETTY

nham em
encontrar um
quadro matemáti-
co único que
revele de onde
vêm as forças da
natureza e como
actuam sobre a
matéria.

SUPER 35
A
s palavras podem ser enga- las e forças fundamentais do universo: eletrões, quarks,
nadoras. Talvez a física seja fotões e assim por diante. O problema é que o modelo
mais verdadeira do que outras padrão tem as suas limitações. Para que funcione, temos
áreas. Por exemplo, quando de introduzir uma pontuação de números medidos, tais
pensamos numa «partícula», como as massas das partículas. Não sabemos porque é
vem-nos à mente a imagem de que estes números são o que são. Pior, o modelo pa-
uma pequena esfera. Na rea- drão tem pouco a dizer sobre o espaço-tempo, a arena
lidade, «partícula» é apenas em que as partículas vivem. Parece que vivemos num
um termo poético para algo espaço-tempo tetradimensional, mas o modelo padrão
muito distante da nossa expe- não especifica que este deva ser assim. «Porque não,
riência quotidiana, razão pela por exemplo, um espaço-tempo de sete dimensões?»,
qual as melhores descrições da realidade dependem da pergunta Boyle.
precisão fria das matemáticas.
Mas tal como existem numerosas línguas para os hu- NÚMEROS IMAGINÁRIOS. Muitos acreditam que a solução
manos, também existe mais do que um tipo de sistema para estes problemas virá quando as experiências en-
numérico. A maioria de nós utiliza apenas a familiar li- contrarem a peça em falta no modelo padrão. Mas após
nha numérica que começa com «1, 2, 3...». No entanto, anos de esforço, isto não aconteceu, e alguns interro-
existem outros sistemas mais complexos. Recentemen- gam-se se o problema é a própria matemática.
te, os físicos têm feito uma profunda pergunta: e se Os matemáticos sabem há séculos que existem outros
estivermos a tentar descrever a realidade com os núme- números para além daqueles com que podemos contar
ros errados? com os nossos dedos. Tomemos a raiz quadrada de -1,
Cada sistema matemático tem a sua própria compo- conhecida como «i». Não há resposta válida para esta
sição, tal como as línguas. Os poemas de amor soam expressão, uma vez que tanto 1×1 como -1×-1 são iguais
melhor em francês. O alemão tem a capacidade de a 1, pelo que «i» é um «número imaginário». Descobri-
expressar conceitos sofisticados, tais como schaden- ram que ao combinar o «i» com os números reais, que
freude, em algumas sílabas. Hoje, na sequência de um englobam todos os números que podem ser colocados
novo avanço que revela ligações interessantes entre numa linha numérica, incluindo números negativos e
modelos de como a matéria funciona a diferentes esca- decimais, poderiam criar um novo sistema chamado
las de energia, parece cada vez mais provável que um números complexos.
conjunto complexo de números conhecido como «oc- Consideremos que os números complexos são bi-
toniões» possa fornecer a verdade sobre a realidade. dimensionais, as duas partes de cada número podem
Os matemáticos estão entusiasmados porque acre- representar propriedades não relacionadas do mesmo
ditam que a tradução das nossas teorias da realidade objeto, o que é muito útil. Toda a nossa infra-estrutura
para a linguagem dos octoniões poderia resolver alguns eletrónica é baseada em números complexos. E a teoria
dos maiores problemas da física e abrir caminho para quântica, a nossa descrição bem sucedida do mundo em
uma «grande teoria unificada» que descreva o univer- pequena escala, não funciona sem eles.
so numa única afirmação. «Parece uma direção muito Em 1843, o matemático irlandês William Rowan Ha-
promissora», diz Latham Boyle do Instituto Perimeter milton deu um passo em frente. Ao complementar os
em Waterloo, Canadá. «Acho irresistível pensar nisso». números reais e imaginários com mais dois conjuntos
Muitos físicos sonham em encontrar uma grande teo- de números imaginários chamados «j» e «k», deu-nos
ria unificada, um único quadro matemático que revele quaterniões, um conjunto de números tetradimen-
de onde vêm as forças da natureza e como agem sobre a sionais. Em poucos meses, o amigo de Hamilton John
matéria. Uma tal teoria explicaria também como e por- Graves encontrou outro sistema de oito dimensões cha-
quê estas propriedades mudaram ao longo da vida do mado octoniões.
universo, como sabemos que ocorreu. Os números reais, os números complexos, os qua-
Até agora, o mais próximo que chegamos é o modelo terniões e os octoniões são coletivamente conhecidos
padrão da física de partículas, que detalha as partícu- como as álgebras de divisão normal. São os únicos con-

Muitos tentaram, sem suces-


so, descobrir o papel das
octoniões na realidade.
SHUTTERSTOCK

36 SUPER
«Boyle interroga-se: Porque
não um espaço-tempo de sete
dimensões?».
SHUTTERSTOCK

juntos de números com que se podem realizar a adição, gosta de analisar as questões da física sem pressupor na-
subtração, multiplicação e divisão. É possível encontrar da. «Tento resolver problemas desde o início», diz. «Ao
sistemas maiores, tais como os de dezasseis dimensões, fazê-lo, é frequente encontrar caminhos alternativos que
mas nestes casos não se cumprem as regras normais. autores anteriores podem ter negligenciado». Parece que
Hoje em dia, a física faz uso prolífico de três destes ela e outros investigadores estão agora a dar os primeiros
sistemas. Os números reais estão omnipresentes. Os passos para o desenvolvimento dos octoniões.
números complexos são essenciais tanto na física das
partículas como na física quântica. A estrutura mate- BONECAS RUSSAS. Para compreender o trabalho de Fu-
mática da relatividade geral, a teoria da gravidade de rey, é necessário compreender um conceito em física
Albert Einstein, pode ser elegantemente expressa usan- chamado «simetria interna». Isto não é o mesmo que
do os quaterniões. a simetria rotacional ou de reflexão de um floco de
Os octoniões são o único sistema que não tem qual- neve. Refere-se antes a um conjunto mais abstrato de
quer relação com uma lei física central. Mas porque propriedades, tais como o caráter de certas forças e as
é que a natureza só está em conformidade com três relações entre as partículas fundamentais. Todas es-
destes quatro sistemas de números? Esta situação le- tas partículas são definidas por uma série de números
va-nos a suspeitar que o maior e menos conhecido quânticos: a sua massa, a sua carga e uma propriedade
dos quatro, os octoniões, também deveria ser impor- quântica chamada spin, por exemplo. Se uma partí-
tante», diz Boyle. cula se transformar noutra, como um eletrão que se
A verdade é que os físicos pensam assim desde os transforma num neutrino, alguns destes números irão
anos 70, mas os octoniões ainda não cumpriram a sua mudar e outros não. Estas simetrias definem a estrutu-
promessa. Michael Duff do Imperial College de Lon- ra do modelo padrão.
dres foi, e continua a estar, fascinado pelos octoniões, As simetrias internas são fundamentais para a pro-
mas ele sabe que muitos tentaram e não conseguiram cura de uma grande teoria unificada. Os físicos já
decifrar o seu papel na descrição da realidade. «Os oc- encontraram vários modelos matemáticos que pode-
toniões ficaram conhecidos como o cemitério da física riam explicar como a realidade funcionava na altura
teórica», diz ele. em que o universo tinha uma energia muito mais ele-
No entanto, uma nova geração de especialistas em vada. A estas energias superiores, pensa-se que haveria
octoniões, incluindo Nichol Furey da Universidade de mais simetrias, o que significa que algumas forças
Humboldt em Berlim, não perdeu a esperança. Nichol que agora percebemos como distintas teriam sido a

Michael Duff salienta que os octoniões ficaram


conhecidos como o cemitério da física teórica
SUPER 37
mesma. Nenhum destes modelos conseguiu incluir E muito poderosa, também. A nova formulação expôs
a gravidade — exigiria uma «teoria do todo» ainda uma característica fascinante das camadas de bonecas
maior. Mas mostram, por exemplo, que a força eletro- russas. Quando alguns dos números envolvidos nas
magnética e a força nuclear fraca teriam sido uma só formulações de complexos, quaterniões e octoniões
força «eletro-fraca» até uma fração de segundo após mudam de positivos para negativos, ou vice-versa, al-
o Big Bang. Com o arrefecimento do universo, algumas gumas das simetrias mudam e outras não. Apenas as
das simetrias quebraram-se, pelo que este modelo em que não figuram na camada seguinte. «Permitiu-nos
particular deixaria de ser aplicável. Cada época requer ver ligações entre estes modelos de partículas tão bem
um modelo matemático diferente com um número de estudados que não tinham sido detetadas antes», ex-
simetrias gradualmente reduzido. Em certo sentido, plica Furey. Este «reflexo algébrico da divisão», como
todos estes modelos incluem-se uns aos outros, como Furey lhe chama, poderia indicar o que encontramos
bonecas russas. no universo físico real e, talvez, mostrar-nos o caminho
Um dos candidatos mais populares para a primeira que quebra a simetria para a grande teoria unificada há
boneca, a grande teoria unificada que contém todas muito procurada.
as outras, é conhecida como o modelo de spin(10). O resultado é novo, e Furey e Hughes ainda não des-
Tem uma impressionante simetria de quarenta e cinco cobriram onde poderá levar. «Insinua que pode haver
simetrias. Em uma formulação, dentro desta está o mo- algum processo físico de quebra de simetria que de al-
delo Pati-Salam, com vinte e uma simetrias. A seguir, guma forma depende de reflexos de divisão algébrica,
o modelo de simetria esquerda-direita, com quinze mas até agora a natureza desse processo é bastante mis-
simetrias, incluindo a conhecida como paridade, o ti- teriosa», diz Hughes.
po de simetria esquerda-direita que aparece quando
nos olhamos num espelho. Finalmente, chegamos ao FUREY DIZ QUE O RESULTADO PODE TER IMPLICAÇÕES PARA
modelo padrão, com doze simetrias. Estudamos es- AS EXPERIÊNCIAS. «Estamos atualmente a investigar se
tes modelos porque funcionam, as suas simetrias são as álgebras de divisão nos dizem o que pode ou não ser
consistentes com as provas experimentais. Mas nunca medido diretamente em diferentes escalas de energia»,
compreendemos o que determina quais as simetrias que explica. Este é um trabalho em curso, mas a análise das
desaparecem em cada fase. reflexões parece apontar para o facto de que existem
Em agosto de 2022, Furey, juntamente com Mia certos conjuntos de medições que os físicos deveriam
Hughes do Imperial College de Londres, mostrou pela ser capazes de fazer em partículas com baixas energias,
primeira vez que as álgebras de divisão, incluindo os tais como a medição do spin de um eletrão, e certos as-
octoniões, poderiam proporcionar tal relação. Para is- petos que não seriam mensuráveis, tais como a carga de
so, basearam-se em ideias que Furey teve há anos atrás cor dos quarks.
para traduzir todas as simetrias matemáticas e descri- Entre os que trabalham com octoniões, a investiga-
ções de partículas de vários modelos para a linguagem ção está a causar agitação. Duff diz que tentar adaptar o
das álgebras de divisão. «Levou-nos muito tempo», modelo padrão à linguagem dos octoniões é uma abor-
diz Furey. dagem relativamente nova: «Se funcionar, seria muito
O trabalho requeria utilizar a álgebra de Dixon, um importante, por isso vale a pena tentar». Corinne Ma-
conjunto de números que permite combinar as mate- nogue da Universidade Estatal do Oregon trabalha com
máticas reais, complexas, de quaternões e de octoniões. octoniões há décadas e sabe que o interesse varia. «Nes-
O resultado foi um sistema que descreve um conjunto te momento parece haver um boom relativo, penso que
de octoniões especificados por quaterniões, que por sua principalmente devido à grande reputação e dedicação
vez são especificados por números complexos que são de Furey.
especificados por um conjunto de números reais. «É O conhecimento dos octoniões não se detém aí. Boyle
uma besta incrível», diz Hughes. jogou com outra matemática estranha chamada «álge-
bra excecional de Jordan», inventada pelo físico alemão
Pascual Jordan na década de 1930. Trabalhando com
dois outros génios da teoria quântica, Eugene Wigner
e John von Neumann, Jordan encontrou um conjunto
As «matemáticas
estranhas» podem ser de propriedades matemáticas da teoria quântica que
a melhor forma de dar resistiam à classificação e estavam intimamente rela-
sentido às leis da cionadas com os octoniões.
natureza. Se examinarmos a álgebra de Jordan em profundida-
de, descobrimos que ela contém a estrutura matemática
que utilizamos para descrever o espaço-tempo tetradi-
mensional de Einstein. Além disso, sabemos há décadas
que a álgebra de Jordan tem uma estrutura matemática
peculiar, que derivámos por uma via e processo total-
mente diferentes no início dos anos 70 para descrever
as partículas e forças do modelo padrão. Por outras pa-
lavras, é uma ligação octoniónica entre as nossas teorias
do espaço, tempo, gravidade e teoria quântica. «Penso
que esta é uma observação muito marcante, intrigante e
reveladora», diz Boyle.
Em resposta, Boyle cavou mais fundo e descobriu algo
fascinante sobre como uma classe de partículas chama-
NLAB

das fermiões, que inclui partículas comuns tais como

38 SUPER
O «reflexo algébrico da divisão» pode indicar o que
encontramos no universo físico real

eletrões e quarks, se encaixam na linguagem baseada de uma teoria coerente para este universo. «Suspeito
em octoniões. Os fermiões são «quirais», o que signi- que combinar a imagem octoniónica com a imagem
fica que os seus reflexos especulares, a simetria que os de duas folhas do cosmos é um passo mais próximo de
físicos chamam paridade, parecem diferentes. Isto ti- encontrar o quadro matemático adequado para des-
nha criado um problema na incorporação dos fermiões crever a natureza», diz Boyle.
nas versões do modelo padrão baseado em octoniões. Como todas as descobertas que relacionam os octo-
Mas Boyle encontrou agora uma forma de o contornar, niões com as teorias da física até agora, o trabalho de
com uma reviravolta fascinante. O restabelecimento da Boyle é apenas indicativo. Ainda ninguém apresentou
simetria especular que é quebrada no modelo padrão uma teoria física completa baseada em octoniões que
permite também que os fermiões octoniónicos se situem forneça novas previsões que possamos testar usando
comodamente no modelo simétrico esquerda-direita, colisores de partículas, por exemplo. «Ainda não há
um nível mais próximo da grande teoria unificada. nada de concreto: não podemos dizer aos investiga-
dores o que procurar», diz Duff. Furey concorda: «É
PARA ALÉM DO BIG BANG. Esta linha de pensamento po- importante ser claro que ainda há um longo caminho
deria mesmo levar-nos para além da grande teoria a percorrer».
unificada, no sentido de uma explicação da origem do Mas Boyle, Furey, Hughes e muitos outros estão cada
universo. Boyle investigou com Neil Turok, seu colega vez mais interessados na possibilidade de esta «mate-
no Instituto Perimeter, o que eles chamam um «uni- mática estranha» ser na realidade a nossa melhor via
verso de duas lâminas» envolvendo um conjunto de para compreender de onde vêm as leis da natureza. De
simetrias conhecido como carga, paridade e tempo facto, Boyle acredita que a abordagem dos octoniões
(CPT). «Nesta hipótese, o Big Bang é uma espécie de poderia ser tão frutuosa como realizar experiências pa-
espelho que separa a nossa metade do universo da sua ra encontrar novas partículas. «A maioria das pessoas
imagem especular CPT do outro lado do mesmo», diz imagina que o próximo avanço virá de novas peças a se-
Boyle. Parece que as propriedades octoniónicas dos rem colocadas na mesa», explica ele. «Isso seria ótimo,
fermiões que se encontram no modelo de simetria es- mas talvez ainda não tenhamos terminado de encaixar
querda-direita são relevantes para o desenvolvimento as peças atuais. e

A simetria interna refere-se


ao caráter de certas forças
e às relações entre as par-
tículas fundamentais.
ASC

SUPER 39
A RE TD ÍI CC UI NL OA
M

CALOR
CONTRA O
CANCRO
A oncotermia ou a nanotermia é uma terapia inovadora
e promissora contra o grande inimigo que é o cancro.
Não tem efeitos secundários e potencia o efeito de
terapias como a quimioterapia ou a radioterapia.

Texto de DANIEL MÉNDEZ, jornalista

40 SUPER
A aplicação de
técnicas como a
hipertermia e a
oncotermia au-
gura mudanças
promissoras no
tratamento do
SHUTTERSTOCK

cancro e na qua-
lidade de vida
dos pacientes.

SUPER 41
A
os setenta e seis anos de ida- Espanha e que, embora ainda relativamente desconhe-
de, Luisa teve de ouvir um cido, tem provas científicas que o sustentam. Chama-se
diagnóstico terrível: cancro oncotermia, ou hipertermia oncológica. Consiste em
da bexiga infiltrante. Este úl- expor as células cancerosas a temperaturas elevadas a
timo termo significa que o fim de danificar o tumor. O calor desestabiliza as suas
tumor atingiu as camadas membranas celulares, causando a morte celular, ou
mais profundas do órgão. So- apoptose. Em suma, isto é o mesmo que a radioterapia e
lução? «Todos os médicos com a quimioterapia procuram alcançar. Esta última admi-
quem falei, e consultei vá- nistrando drogas; radioterapia, utilizando partículas ou
rios especialistas, deram-me ondas de alta energia, tais como raios X; e oncotermia,
apenas uma opção: cortá-la. servindo-se do calor. Métodos diferentes com o mes-
A chamada cistectomia radi- mo objetivo: matar o maior número possível de células
cal consiste em remover completamente a bexiga. Se malignas. E, de facto, todos os três são muito mais efi-
for homem, a próstata e as vesículas seminais também cientes se «andarem de mãos dadas».
são removidas. Se for mulher, o útero e os ovários. «Eu «Não é um tratamento alternativo, é complementar.
não queria passar por isso! O meu filho descobriu que Uma das coisas que a oncotermia consegue é aumen-
havia outra opção: oncotermia». A 11 de janeiro deste tar a eficácia da quimioterapia e da radioterapia»,
ano iniciou o tratamento: quimioterapia uma vez por explica a Dra. Elisabeth Arrojo, oncologista e médica
semana, radioterapia diária durante trinta e três dias assistente de radioterapia no único hospital da rede
e oncotermia três vezes por semana. «Dois meses após pública espanhola que atualmente aplica este trata-
o tratamento tive os meus exames de controlo: uro- mento, o Hospital Universitário Marqués de Valdecilla
TAC [urografia de tomografia computorizada], análises em Santander. «Embora eu saiba que há outros centros
de sangue... Não tenho nada. Agora tenho de fazer um interessados», explica a partir do seu gabinete no Insti-
exame geral de três em três meses, mas de momento tuto Médico de Oncologia Avanzada (INMOA), a clínica
desapareceu», diz o doente. que fundou há três anos, e um dos centros privados
Com a sua história, Luísa não está a tentar «vender» onde o tratamento está disponível em Espanha. É em
nenhum milagre. Ela fala de um tratamento que é per- Madrid, mas existem outros centros em cidades como
feitamente reconhecido pelo Ministério da Saúde de Barcelona e Málaga.
SHUTTERSTOCK

A oncotermia ou
hipertermia não é
uma alternativa,
mas um tratamento
complementar.
Trata-se de sub-
meter as células a
temperaturas ele-
vadas para
eliminar o tumor.

42 SUPER
ASC Para sessões de
hipertermia pro-
funda, um
elétrodo é coloca-
do debaixo do
colchão do pa-
ciente e por cima
dele outro elétro-
do, inserido num
disco. Com eles
consegue-se atin-
gir os quarenta e
dois graus centí-
grados.

A hipertermia convencional não era seletiva e aquecia o tecido


doente como o saudável. Agora só aquece o interior do tumor

SEM EFEITOS SECUNDÁRIOS. «Aplicamos hipertermia eletro-


modulada, que tem a vantagem de atacar apenas células
malignas, o tecido saudável não é afetado», explica a Dra.
Um pioneiro:
Arrojo, que ganhou o Prémio Nacional de Medicina em ra-
dioterapia oncológica em 2020, entre outros prémios. O
William Coley
uso do calor para combater o cancro não é novidade. De
facto, podemos recuar muito mais: Hipócrates, o putativo
pai da ciência e da prática médica, já estava consciente da
N ascido em Connecticut, EUA, em 1862, William Bradley
Coley foi um cirurgião e oncologista, amplamente consi-
derado como pioneiro no tratamento não invasivo do cancro e
capacidade do calor para reduzir os tumores. E no final do na terapia imunológica. Coley observou que muitos dos seus
século XIX, o cirurgião e oncologista americano William pacientes mostravam uma melhoria significativa após infeções
Coley observou que a febre causava uma redução no tama- bacterianas agudas: o tumor perdia volume. Ao detetar uma
nho do tumor. Há já algumas décadas que se tem vindo a ligação entre a febre e esta cura espontânea, Coley decidiu inje-
investigar e aplicar a hipertermia em terapias oncológicas. tar bactérias vivas num paciente que sofria de um tumor maligno
Mas a técnica (e a tecnologia que a torna possível) evoluiu inoperável. O doente recuperou e viveu mais 26 anos. A febre
muito nos últimos anos e a sua aplicação está a difundir-se com que o corpo reagia a esta invasão bacteriana teve (e tem)
em países como a Alemanha, Itália, Estados Unidos e Ja- muito a ver com a mesma. A técnica é conhecida como «toxinas
pão. Os resultados são mais do que promissores. bacterianas mistas de Coley», e o médico aplicou-a em nume-
«A hipertermia convencional não era seletiva, aquecia rosas ocasiões. Quando morreu, a sua filha Helen Coley Nauts
tanto tecidos doentes como saudáveis. E quando se apli- encontrou nos papéis de William oitocentos e noventa e seis
cavam temperaturas superiores a 40 graus, os pacientes cancros que o seu pai tinha tratado com esta técnica. Helen
eram queimados, o que dificultava muito o uso desta téc- não tinha formação médica formal, mas tal era a sua determina-
nica». Na hipertermia profunda, tal como a descreve a ção em continuar o legado do seu pai que acabou por fundar o
Dra. Arrojo, isto não acontece: aquece apenas o interior Cancer Research Institute em 1953, graças a uma subvenção de
do tumor, superando os quarenta e dois graus centígra- 2000 dólares de Nelson Rockefeller. Era, à sua maneira, uma for-
dos, em sessões de cerca de sessenta a noventa minutos. ma rudimentar de hipertermia definida como uma temperatura
Durante este tempo, o paciente deita-se numa maca. Um anormalmente elevada induzida intencionalmente num ser vivo,
elétrodo é colocado debaixo do «colchão» e um segundo quer regionalmente quer em todo o corpo. Coley fez a mesma
elétrodo é colocado sobre o tumor, inserido num disco coisa, mas utilizando bactérias em vez de métodos tecnológicos
que pode variar em tamanho para se adaptar às necessi- contemporâneos.
dades de cada paciente. A profundidade do efeito desta

SUPER 43
ASC

A oncotermia
inibe a angiogé-
nese, ou seja, a
terapia (também conhecida como hipertermia local pro-
formação de va-
sos sanguíneos funda) bem como a intensidade da energia térmica
necessários pa- podem ser ajustadas. A energia viaja entre os dois elé-
ra o tumor, o trodos em ondas curtas de radiofrequência (a 13,56 MHz,
que limita o seu mais precisamente) aquecendo assim o tumor (apenas o
crescimento. tumor, devido às diferenças metabólicas entre as células
cancerosas e as saudáveis).
Para compreender como isto funciona, é útil olhar
primeiro para a estratégia do cancro para se multiplicar
descontroladamente. As células cancerígenas crescem
e multiplicam-se muito rapidamente num ciclo cons-
tante e voraz de conquista. Quando os sintomas se
manifestam, o tumor estará composto por biliões de có-
pias da célula cancerígena original. O ritmo a que cresce
é variável. Mas um tumor mamário, por exemplo, du-
plica em cerca de uma centena de dias.

AS SUAS NECESSIDADES SÃO AS MESMAS QUE AS DO RESTO DAS


CÉLULAS QUE COMPÕEM O NOSSO CORPO: um bom fornecimen-
to de sangue que fornece oxigénio e nutrientes. Quando
o tumor é pequeno, os vasos sanguíneos que o rodeiam
são suficientes. Mas à medida que cresce, precisa cada vez
mais... E as células enviam ao tumor o sinal para a cons-
trução de novos vasos. Este processo é conhecido como
angiogénese e é uma das razões pelas quais o tumor cresce.
Também facilita a «infiltração» das células cancerosas no
nosso sistema sanguíneo e a sua deslocação a outras partes
do corpo. Isto é conhecido como metástase.
A oncotermia, também chamada nanotermia, está
envolvida neste processo de várias formas. Demons-
trou-se que inibe a angiogénese (a formação de vasos
sanguíneos) in vitro e in vivo, limitando o crescimento
de tumores. Consegue mesmo diminui-lo ao destruir

Inmoa

INMOA
A Dra. Elisabeth Arrojo interessou-se pela hipertermia logo nos seus dias de
universidade. «Fiquei impressionada com o facto de não a termos estudado
como estudantes universitários, com todas as provas que existiam na altura», re-
corda-se ela hoje. E dedicou uma grande parte da sua carreira à sua investigação
a nível teórico e prático. Asturiana de nascimento, estudou em Navarra e traba-
lhou nas Astúrias e Cantábria antes de viajar para os Estados Unidos, onde foi
nomeada «Extraordinary Person in Science» (Pessoa Extraordinária em Ciência)
depois de ter concebido uma técnica que tornava possível encurtar o tratamento
do cancro da mama para uma única sessão de radioterapia.
«As opções de investigação nos Estados Unidos são impressionantes, foi
uma experiência única», recorda-se ela hoje. Mas chegou a um fim abrupto.
Em 2015 recebeu uma terrível notícia: «A minha mãe foi diagnosticada com
melanoma, um tumor muito agressivo. E eu repensei a minha vida. Não tinha
ideia de deixar os Estados Unidos, mas em 2017 estava de volta a Espanha.
Para ela, que dedicou a sua vida à luta contra o cancro, a batalha estava mais
próxima do que nunca. «Em 2018 a minha mãe foi diagnosticada com metás-
tase cerebral. Ela não podia tolerar qualquer imunoterapia e o tratamento tinha
sido dispensado. Decidimos aplicar o que tinha estado a pesquisar nos Esta-
dos Unidos com radioterapia, cirurgia, hipertermia...». E assim nasceu Inmoa,
a clínica de Madrid onde aplica as suas técnicas inovadoras. «A minha mãe
está a evoluir muito bem hoje. Já passámos por muito, mas isso dá-nos a força
para continuar a lutar». E ela não é, na opinião da médica, um caso excecional.
«Penso que vai haver uma mudança radical no prognóstico dos doentes com
cancro. Estamos a assistir a mudanças não só a nível oncológico, mas também
a nível da qualidade de vida. Palavras de alívio para uma doença que, só em Es-
panha, causa mais de 270.000 novos casos todos os anos.

44 SUPER
Outra vantagem da onco-
termia é que atua como um
ativador do sistema imuni-
tário, atraindo a sua
atenção e ajudando-nos a
combater a doença.
SHUTTERSTOCK

A oncotermia aumenta a eficácia de processos como a


quimioterapia ou a radioterapia. Ao aquecer o tumor, dilata os
vasos sanguíneos, aumentando a eficácia dos tratamentos

células cancerígenas, que são suscetíveis a temperaturas tromodulada (mEHT) em 110 pacientes com tumores em
elevadas. Em alguns casos específicos, especialmente diferentes órgãos (cólon, ovário, pulmão, mama, prósta-
em tumores cerebrais, a oncotermia por si só pode cau- ta, etc.); metade delas apresentava metástases e 70% fez
sar a regressão da doença. Mas, acima de tudo, tem uma tratamento hipertérmico em simultâneo com radioterapia
grande vantagem: aumenta a eficácia de tratamentos ou quimioterapia. Aos três meses, 3% dos paciente mos-
como a quimioterapia ou radioterapia. traram remissão completa do tumor e 41% mostraram
«Para serem eficazes, precisam de alcançar o tumor remissão parcial. A intensidade média da dor e a qualidade
através dos vasos sanguíneos que este tem vindo a produ- de vida melhoraram em 85% da amostra.
zir», explica a Dra. Arrojo. Mas o seu pequeno tamanho e
baixa resistência tornam esta «viagem curativa» difícil. ENVIO DE SINAIS DE ALARME. Mas há mais um aspeto a desta-
«Aquecendo o tumor, fazemos estes vasos dilatarem-se. car a respeito da oncotermia: esta técnica ativa o sistema
Abrimo-los, por assim dizer, aumentando a eficácia dos imunitário para atacar o tumor. Uma das características
tratamentos sem acrescentar efeitos secundários. Pode que permitem que as células cancerosas corram de forma
mesmo reduzir a quantidade de radiação necessária para galopante no nosso corpo é que passam despercebidas
combater a doença: importante, dados os efeitos secun- pelo nosso sistema imunitário. A aplicação de calor pro-
dários que cada sessão de radioterapia implica. voca o desdobramento de proteínas danificadas na sua
Mas esta dilatação tem um efeito adicional: aumenta a superfície, tornando estas células altamente diferencia-
oxigenação do tumor. Um dos efeitos destes vasos san- das das células saudáveis — tornando-as, por assim dizer,
guíneos «fabricados» precipitadamente é que a sua má reconhecíveis ao sistema imunitário. «Desta forma,
qualidade causa hipoxia, ou falta de oxigénio no interior estamos a enviar um alarme ao nosso sistema imunitá-
do tumor. «Quando há uma indicação de radioterapia, rio e a conseguir que nos ajude a combater a doença»,
é muito importante que o tumor tenha oxigénio, porque explica a Dra. Arrojo. De certa forma, é como criar uma
é o oxigénio que fixa os danos no ADN das células malig- vacina personalizada para cada paciente. «Estamos a
nas», continua o especialista. «E a dilatação dos vasos ver aqui um campo de investigação muito interessan-
também aumenta a oxigenação, aumentando a eficácia do te», continua a oncologista. «Por exemplo, vemos que a
tratamento. A Organização Médica Colegial em Espanha oncotermia também ajuda em caso de metástase. Vamos
considera a nanotermia ou oncotermia um tratamento supor que o calor é aplicado, por exemplo, a um pulmão
indicado para o cancro do colo do útero, cancro da ma- doente. Mas se o cancro se espalhou para, digamos, um
ma, cancro da bexiga, sarcoma das partes moles, tumores pé, a terapia também o fará desaparecer nesse caso». O
coloretal e pancreático, cancros da cabeça e do pescoço... sistema imunitário aprendeu a identificar células ma-
Um estudo científico publicado em 2018 por um grupo de lignas que anteriormente se encontravam escondidas. E
cientistas italianos analisou a eficácia da hipertermia ele- ataca-os onde quer que estejam. e

SUPER 45
M U N D O A N I M A L

Foi demonstrado
que os cães sa-
bem distinguir as
emoções, lam-
bem-nos como
sinal de afeto
quando estamos
SHUTTERSTOCK

tristes e para sa-


ber como nos
sentimos.

46 SUPER
46 - Muy Interesante
É amor o que
o seu cão
sente por si?
Já alguma vez se perguntou se o seu cão o ama só por
interesse? Os peritos dizem que o cérebro dos nossos amigos
peludos segrega oxitocina quando olham para nós, a chamada
«hormona do amor».

Texto de AINARA ORTIZ, jornalista

SUPER 47
Muy Interesante - 47
Quando os cães estão
connosco e olham para
nós, eles segregam oxi-
tocina, a substância
conhecida como a «hor-
mona do amor». Os
níveis de oxitocina du-
plicam em apenas meia
hora a observar-nos.
SHUTTERSTOCK

T
odos os dias acordo com os bi- Outra pesquisa realizada no Japão descobriu que os níveis
godes do meu cão a fazer-me de oxitocina dos cães e dos seus donos eram mais elevados
cócegas na cara. Levanto-me depois de terem passado algum tempo a olharem-se nos
e ele acompanha-me alegre- olhos. Por outras palavras, quando os nossos cães estão
mente até à cozinha. Quando connosco e olham para nós, eles segregam essa substância
faço o meu pequeno-almoço que tem sido chamada a hormona do amor. A oxitocina é
ele observa-me e se eu dis- particularmente importante na relação entre os seres hu-
ser «vem» ele aproxima-se manos. É segregada, por exemplo, durante a amamentação
a abanar a cauda. Eu dou-lhe ou nas relações sexuais. Atua como uma droga natural que
um mimo e ele olha-me com promove a ligação social e ajuda a assegurar a sobrevivên-
gratidão. Tanto como eu, por cia. Este estudo comprovou que os níveis de oxitocina dos
ter a sua companhia e o seu cães aumentavam drasticamente — o dobro! — com apenas
amor — o meu cão ama-me, ou ele só está comigo por meia hora de intercâmbio de olhares com os seus donos.
interesse?
«Os cães expressam o amor de forma diferente dos hu- DESDE QUANDO EXISTE ESTE VÍNCULO? Os cães foram os
manos. Nós precisamos do contacto, mas eles não terão, primeiros animais domesticados pelo homem e os
necessariamente, a mesma efusividade. Por exemplo, se investigadores estão a tentar estabelecer uma data
observarmos o comportamento de um grupo de cães, ve- aproximada do momento em que se produziu esta re-
remos que todos eles seguem aquele que consideram ser o lação de companhia, que ainda perdura, e o lugar onde
seu modelo, que os ensina pelo exemplo, e os outros ficam começou, embora não seja muito claro neste momento.
calmos e relaxados. Eles mostram o seu respeito, mas não Por exemplo, quanto ao local onde o processo de do-
ficam tão excitados como nós quando estamos com a nos- mesticação começou, durante muito tempo pensou-se
sa família ou amigos», diz Carlos Carrasco, treinador de que tinha ocorrido na Europa. Embora também tenha
cães e autor do livro Haz equipo con tu perro ( Plataforma ocorrido em outras áreas do planeta, tais como a Ásia
Editorial). Só porque o fazem de uma forma menos efu- Central ou a China. Entre os mais recentes, em 2016,
siva, não significa que não nos mostrem constantemente um estudo realizado pela Universidade de Oxford, no
o seu amor incondicional. Na verdade, estudos científicos Reino Unido, e publicado na revista Science, salientou
concluíram que os cães nos adoram. que o melhor amigo do homem poderia ter sido domes-
É o caso, por exemplo, de um estudo realizado por ticado duas vezes, a partir de duas populações de lobos
investigadores da Universidade Emory, nos EUA. No estu- separadas, e que viviam em lados opostos do continen-
do, observaram por ressonância magnética como os cães te euroasiático. A investigação chegou a esta conclusão
reagiam quando detetavam objetos com o cheiro dos seus depois de reconstruir a história evolutiva dos cães, se-
amigos humanos. Descobriram que o núcleo caudado, quenciando o genoma dos restos de ossos de um cão de
uma área do cérebro relacionada com a motivação, as ex- quase 5000 anos encontrados em Newgrange, Irlanda.
pectativas positivas e a emoção, evidenciava um aumento No entanto, esta hipótese foi rapidamente contrariada
de atividade. por um novo estudo.

48 SUPER
A análise do ADN de um lobo siberiano de há 32
000 anos revelou que os cães primitivos e os
atuais são geneticamente semelhantes aos lo-
bos asiáticos. Os cães provavelmente herdaram
ADN de duas populações de lobos.
ASC

Alguns estudos científicos situam a domesticação de cães


entre 20 000 e 40 000 anos atrás

A conclusão de outro estudo, publicado na Nature A sua origem ainda está a ser debatida .Um estudo
Communication e realizado por uma equipa internacio- internacional recente realizado por geneticistas e arqueó-
nal de cientistas liderada pelo Dr. Krishna Veeramah da logos, liderado pelo Instituto Francis Crick e envolvendo
Universidade de Stony Brook nos Estados Unidos, situou a investigadora Jennifer Leonard da Estação Biológica de
a domesticação dos cães entre vinte e quarenta mil anos Doñana, utilizou restos de lobos de escavações anterio-
atrás. Também sugere que os nossos cães são descenden- res. Entre eles, uma cabeça muito bem conservada de
tes de uma única localização geográfica. um lobo siberiano que viveu há trinta e dois mil anos.
Esta investigação realizou-se estudando o ADN de Ao analisar o ADN destes restos mortais, descobriram
restos de animais de sítios arqueológicos na Alemanha, que os cães primitivos e os atuais eram geneticamente
que tinham entre 7000 e 4700 anos, e do mesmo cão de semelhantes aos lobos da Ásia. No entanto, descobriram
Newgrange que tinha sido estudado em trabalhos ante- também que foram duas as populações de lobos que con-
riores. O estudo concluiu que os cães europeus antigos e tribuíram com ADN para os cães. No entanto, ainda não
os atuais têm raízes genéticas comuns e que existe uma é claro se têm realmente uma dupla ascendência, ou se
continuidade genética dos cães domesticados nos últi- os primeiros cães se misturaram com os lobos selvagens.
mos sete mil anos. No entanto, segundo o autor principal
deste trabalho, seria necessário analisar o ADN de mais PORQUE É QUE OS LOBOS SE APROXIMARAM DOS HUMANOS? Há
cães antigos provenientes de todo o mundo. também um debate sobre a razão pela qual os lobos se

É amor ou é obsessão?
É AMOR PODE SER DEPENDÊNCIA
Segue-o com os olhos ou acompanha-o, Fica nervoso, quer sair pela porta consigo, fica atrás a
Você sai de casa
mas regressa ao seu lugar farejar

Fica de olho em si mas brinca com outros


No parque com outros cães Só olha para si e fica agitado se outros cães aparecerem
animais

Fareja debaixo da porta de vez em


Fica em casa sozinho Ladra, rói os móveis, uiva, urina em casa
quando mas volta a dormir

Quando você regressa a Acolhe-o abanando a cauda de Cumprimenta-o de uma forma exageradamente efusiva, quei-
casa contentamento xa-se, salta para si, segue-o para onde quer que vá

SUPER 49
O hiper-apego do cão
ao seu dono pode levar
a problemas de compor-
tamento, fazendo com
que o animal sofra se
SHUTTERSTOCK

não estiver com o seu


companheiro.

Os descendentes dos lobos que comiam a carne que lhes era dada
pelo homem podem ter sido os primeiros lobos domesticados

deixaram domesticar. Os alimentos foram provavel- segrega a oxitocina quando vê o seu dono», diz Carlos Car-
mente a razão. rasco. A mesma substância que nós produzimos quando
Um estudo realizado pela Universidade de Helsínquia estamos com alguém muito próximo de nós. «Podemos
e publicado na revista Scientific Reports, pressupõe que dizer que o cão nos ama e que a ciência o provou».
a ligação entre o homem e os cães começou no norte da Contudo, como este perito nos lembra, não devemos
Eurásia entre catorze e vinte e nove mil anos atrás, quan- perder de vista o facto de que as necessidades amo-
do grande parte da Terra estava coberta de gelo. Teoriza rosas dos cães são diferentes das dos humanos e que
que, devido à escassez de plantas durante os invernos se mostrarmos o nosso afeto da mesma forma que o
rigorosos, os nossos antepassados caçadores-recoletores fazemos entre nós, corremos o risco de criar um pro-
tiveram de depender exclusivamente da caça e que co- blema de dependência. Como o podemos saber? Há
miam principalmente a parte gorda da presa. várias maneiras. Por exemplo, podemos pensar que
A carne magra excedentária poderia ter sido utilizada pa- se o nosso cão nos segue para onde quer que vamos,
ra alimentar os lobos, o que significava que eles não tinham ele adora-nos. Contudo, os especialistas em compor-
de competir com os humanos. Os descendentes dos lobos tamento animal salientam que isto também pode ser
que comiam os restos dados pelos nossos antepassados um sintoma de dependência, o que pode levar a pro-
podem ter-se tornado os primeiros lobos domesticados. E blemas de comportamento.» A principal nuance é que
estes animais começaram a coexistir com os humanos a fim o animal tem dificuldades se não estiver com o seu
de obter alimentos. Assim, a relação foi estabelecida com companheiro. Aparecem sinais de ansiedade tais como
um interesse: a alimentação. Mas voltemos ao amor que os choro, ofegar ou ladrar. Outro ponto mais subtil se-
nossos cães expressam. E vamos tentar compreender ou- ria não querer fazer nada com outros cães ou pessoas,
tro aspeto fundamental da sua saúde: quando deixa de ser sempre que estar com o seu companheiro seja uma
amor saudável e se torna dependência. . opção», diz Sergio Martínez, do Hospital Veterinário
AniCura Constitución.
A LINHA TÉNUE ENTRE O AMOR E A DEPENDÊNCIA. Como vimos, «Devemos ajudar o nosso cão a ser autónomo e is-
«estudos científicos mostraram como o cérebro do cão to significa não lhe prestar atenção constante, não o

50 SUPER
Os sinais indicadores de que o seu cão o ama
Contacto visual. Os cães não costumam Lamber. O seu cão aproveita todas as oportu- a casa é também um sinal de amor, embora
manter o olhar. De facto, na sua linguagem «ca- nidades para lamber a sua cara e até as suas neste caso seja «normal», pois não gos-
nina», consideram-no uma ameaça. Mas se orelhas ou mãos se lhe fizer festas? Esta é mais tam de estar sozinhos. Eles querem passar
o seu cão o ama e se sente bem consigo, ele uma demonstração de amor. Mas é também a tempo connosco, por isso não estão feli-
procurará o contacto visual. E será um olhar sua forma de saber como se sente. Assim diz zes quando partimos sem eles, diz Sergio
terno, do tipo que derrete corações! um estudo da Escola de Psicologia da Univer- Martínez.
Movimento da cauda. Quando um cão está sidade de Londres, que descobriu que estes Querem estar consigo. O desejo de pas-
feliz por o ver, abanará a cauda. Por vezes até animais lambem o rosto dos seus proprietários sar tempo connosco é, segundo Martínez,
o seu corpo inteiro. Mas se o seu cão o ado- quando estão tristes, como sinal de apoio, por- o maior sinal de afeto do nosso animal de
rar, a abanadela será muito mais acentuada. que, segundo os investigadores, são capazes estimação. E não só quando estão aborre-
Os especialistas chamam-lhe «cauda de heli- de distinguir as emoções. cidos em casa, também o seguem na rua,
cóptero», porque abana como se estivesse a Enlouquecem por brincarem consigo. Este onde há muitos estímulos que atraem a sua
preparar-se para voar . é outro sinal de que eles o adoram. Desde ca- atenção.
Dorme perto de si. Os lobos e também os chorrinho, a brincadeira é o sistema que eles Bocejam quando você o faz. Este é outro
cães, dormem juntos uns aos outos para se utilizam para criar laços. Assim, se o seu animal sinal de que o seu cão tem uma ligação tão es-
sentirem protegidos para que possam ter uma de estimação procura qualquer oportunidade treita consigo que é capaz de bocejar se o fizer.
boa noite de descanso. Portanto, se o seu cão para brincar consigo, é porque se sente com- Um estudo da Universidade Duke descobriu
se deita perto de si ou mesmo sobe para a ca- pletamente apegado a si. que os cães podem bocejar se os seus donos
ma consigo para se aconchegar ao seu corpo, Fica feliz quando você regressa a casa. bocejam, mas não quando se pede a um estra-
é porque se sente muito próximo de si. A alegria que refletem quando chegamos nho para bocejar.

mimar o tempo todo, e não lhe dar festas em exces- brir as suas necessidades, ser «a sua fonte de alimento,
so quando voltamos para casa», acrescenta Carlos exercício, recompensas, jogos e carícias», diz Sergio
Carrasco. Caso contrário, podemos criar-lhe um Martínez. Carlos Carrasco lembra-nos que deve haver
problema grave, por exemplo, gerando ansiedade um equilíbrio e associar parte destas carícias a bons
de separação, uma desordem que não só afeta o seu comportamentos para estabelecer um vínculo saudá-
bem-estar, como também pode alterar a convivên- vel para o animal de estimação e o resto da família e
cia, causar desconforto e até encorajar o abandono.Os assim poder desfrutar do seu amor que, como Sergio
especialistas lembram-nos que não é porque os mima- Martínez conclui, «não é por conveniência». Portan-
mos muito que eles nos vão amar mais .O fundamental to, sim: o seu cão adora-o. Mas não transforme essa
é alimentar o afeto mútuo de uma forma saudável, co- adoração em dependência. e

A relação com o nosso animal de esti-


mação deve ser de afeto mútuo, mas
baseada em laços estáveis e saudáveis
para evitar gerar dependência.
SHUTTERSTOCK

SUPER 51
ENTREVISTA

JOÃO C.
TEIXEIRA
Poderá a genética dar novas
respostas sobre as nossas origens?
É apaixonado pela forma como
a genética poderá trazer novas
pistas às origens da humanidade.
Essa paixão conduziu-o até à Aus-
trália, depois de ter vivido noutros
países, onde complementou a sua
formação, fez investigação asso-
ciada às suas áreas de interesse e
construiu as bases de um percurso
profissional em ascensão.

Entrevista de ELSA REGADAS


© ANTÓNIO TEIXEIRA

52 SUPER
D
Porquê nas ilhas do
outorou-se em Genética
Sudeste Asiático?
Evolutiva no conceitua-
do Instituto Max Planck
de Antropologia Evolu-
É nesta região do Mundo que se encontram as populações humanas
com maior proporção de ancestralidade genética herdada dos Deni-
sovanos, entre 4-6% do genoma. Os Denisovanos foram descritos através
tiva, na Alemanha, no da análise de ADN de um fragmento fóssil de um dedo com 50 000 anos,
seguimento da licen- encontrado numa gruta da Sibéria. Contudo, a genética diz-nos que os De-
ciatura em Biologia e nisovanos da Sibéria contribuíram mais para as populações das ilhas do
mestrado em Genética Sudeste Asiático do que para populações da Ásia Central. Isto levanta ime-
Forense na U. Porto. De- diatamente a possibilidade dos Denisovanos terem sido uma população
senvolveu investigação com uma distribuição geográfica muito alargada, desde a Sibéria até à In-
em algumas das mais donésia, Filipinas e Nova Guiné, a milhares de quilómetros a sudeste. Mas
prestigiadas instituições também sugere que terá havido cruzamentos adicionais nessa região, ten-
científicas internacionais e fez pós-doutoramento no do em conta a maior proporção de ancestralidade encontrada.
Instituto Pasteur (França), antes de integrar o Cen-
tro Australiano de ADN Antigo, na Universidade de
Adelaide, Austrália. Aqui, focou a sua pesquisa na evo- ram da África e passaram pela Eurásia. Que grupos eram
lução humana no Pleistoceno e na história genética da esses?
Europa e das Américas, usando ADN antigo. Gosto que me coloque a pergunta dessa forma: grupos
Em 2020, foi-lhe atribuída uma das mais prestigiadas bol- humanos e não espécies distintas. Tendemos a olhar pa-
sas pelo Australian Research Council (ARC) — Discovery ra o registo fóssil e a debruçarmo-nos sobre as diferenças,
Early Career Researcher Award (DECRA), com o objetivo de quando as semelhanças são muito mais óbvias. Também
desenvolver um estudo pioneiro em Genética Humana. In- costumo dizer que o termo ‘arcaico’ é ele próprio arcaico,
tegra, assim, o grupo multidisciplinar Evolution of Cultural reflete a forma enviesada como sempre nos vimos acima
Diversity Initiative, na Universidade Nacional da Austrália. de outras espécies no mundo natural.
Do ponto de vista genético, estamos a falar de grupos
A paixão pela origem e evolução da espécie humana foi cuja diversidade era distinta do que é hoje observável na
sempre algo que o fascinou ou em algum momento sentiu espécie humana, grupos com variantes genéticas únicas.
interesse por outra área? Sabemo-lo porque dois desses grupos estão descritos
A minha primeira paixão foi a Astronomia e ainda hoje so- geneticamente através da análise de ADN antigo obtido
nho em realizar formação científica na área. A Biologia, e diretamente de fósseis: os Neandertais da Europa e Mé-
em particular a Evolução, foi algo que surgiu mais tarde e dio Oriente; e os Denisovanos da Ásia/Sibéria. Ao analisar
por influência de uma professora do Ensino Secundário, geneticamente populações humanas atuais, verificamos
que me incentivou a seguir a disciplina. Creio que o meu que são nossos ancestrais diretos. Mas uma análise mais
interesse principal se prende com a questão das origens. É cuidada revela que existem regiões do nosso genoma
talvez por isso que me debruço sobre o estudo da evolução que poderão resultar de cruzamentos com outros grupos
da nossa espécie, mas ao mesmo tempo sou também apai- também eles relacionados com os Neandertais e os Deniso-
xonado pela origem e evolução do Universo. Na verdade, vanos, mas que ainda não estão descritos no registo fóssil
o primeiro é um processo que faz parte do segundo. Todos nem caracterizados geneticamente. Estes cruzamentos
os cientistas são, em primeiro lugar, altamente curiosos poderão ter ocorrido com populações extintas na Ásia, no
sobre o mundo natural, e depois debruçam-se sobre as subcontinente Indiano, e na Oceania.
questões que mais os fascinam. No meu caso, a grande
questão é: como chegamos aqui? Poderá haver indícios de que as espécies que atualmente
conhecemos com designações diferentes são, eventual-
Mas para tentar descobrir «como chegamos aqui», a ge- mente, uma só espécie?
nética tem que ser articulada com outras áreas... Sem dúvida. Na minha opinião, o grande contributo da
Sim, a genética de populações engloba um conjunto de genética tem sido desmontar as teorias que colocam o
leis formais que nos permite inferir o passado das popu- Homo sapiens num lugar de exceção sob o ponto de vista
lações naturais e resulta de um encontro entre a Biologia, evolutivo. Por tradição, cada vez que se descobre um no-
a Matemática e, com o crescimento exponencial dos vo fóssil humano, classifica-se uma nova espécie, através
dados genéticos nos últimos anos, da computação. Um da descrição minuciosa das diferenças morfológicas. Cla-
conjunto de leis naturais bem definidas sobre a here- ro que, se o objetivo é encontrar diferenças, será sempre
ditariedade e as forças por trás do processo evolutivo possível fazê-lo, pois todas as populações naturais contêm
(mutação, recombinação, seleção, deriva genética e mi- diversidade genética. Para mim, essa abordagem complica
gração) permitem-nos desenvolver modelos teóricos em vez de simplificar. O Prof. António Amorim, que foi
sobre a evolução das espécies com base na diversidade meu orientador na Faculdade de Ciências da U.P. e alguém
genética atual. No caso da evolução humana, existe uma que admiro e respeito muito, refere que «os biólogos têm
ligação muito forte à arqueologia, que nos fornece ob- ternura pela complicação». Não podia estar mais de acor-
servações diretas de fósseis que documentam (ainda que do! O maior indício é o facto destas designadas espécies
parcialmente) o nosso passado. serem ancestrais diretos de cada um de nós. É como dizer
que 2% da minha família pertence a uma família diferente
É coautor do estudo «Using hominin introgression to tra- – isto faz algum sentido?
ce modern human dispersals», publicado em 2019, que
revela que os nossos antepassados miscigenaram com pelo Que outras conclusões poderá permitir esta investigação?
menos 5 grupos de humanos arcaicos, quando se muda- Creio que o nosso trabalho tem sobretudo demonstrado

SUPER 53
João Teixeira coordenou
uma equipa de que é necessário cuidado quando tiramos conclusões de
forma absoluta. Sem querer sobrevalorizar a sua impor-
investigação internacional tância, penso que as nossas descobertas têm levantado
dúvidas sobre dogmas instalados há algumas décadas no
que identificou um caso seio da comunidade científica e revelado que a genética
oferece informação vital para a caracterização da nossa
de síndrome Klinefelter, história e do que significa ser humano do ponto de vista
biológico. Até onde isto nos poderá levar, e quais as con-
datado do séc. XI sequências para a forma como olhamos para a evolução da
nossa espécie, ainda não sei! Mas não devemos ficar presos
a narrativas que os dados empíricos não suportam...

N este caso, foi possível perceber que este indivíduo possuía uma
cópia extra do cromossoma X, tendo um cariótipo XXY, que re-
sulta na síndrome de Klinefelter, uma trissomia dos cromossomas
Em 2020, foi-lhe atribuída uma das mais prestigiadas bol-
sas do Australian Research Council (ARC), destinada a um
sexuais que afeta cerca de 1 em cada 500 homens, e que se ca- estudo pioneiro em Genética Humana. Em que consiste
racteriza por alterações hormonais, reduzida fertilidade e potencial esse estudo?
desenvolvimento de osteoporose, obesidade, e outras caracterís- Em 2019, quando propusemos um modelo que defende a
ticas físicas, como um maior diâmetro da anca ou ginecomastia. existência de vários cruzamentos in situ com Denisovanos
Indivíduos com esta síndrome podem também apresentar uma esta- nas ilhas do Sudeste Asiático, o trabalho foi recebido com
tura acima da média. algum ceticismo. Contudo, desde então, já foi sugerido
Tratou-se de um estudo em articulação com especialistas da arqueo- que tal aconteceu também nas Filipinas e na Papua Nova
logia e da antropologia da Universidade de Coimbra, nomeadamente Guiné. Creio que haverá pelo menos mais um evento por
do Centro de Estudos Interdisciplinares (CEIS.20), — do qual João confirmar, provavelmente na Indonésia, e é nisso que se
Teixeira também faz parte —, e do Centro de Investigação em Antro- foca o meu trabalho atual: tentar perceber exatamente
pologia e Saúde (CIAS). A intervenção arqueológica, que decorreu o número e local de cruzamentos entre populações hu-
em Bragança, foi liderada pela equipa do Prof. Pedro Carvalho e per- manas e Denisovanos no Sudeste Asiático, combinando
mitiu descobrir uma importante necrópole medieval e proceder à novos dados genéticos com o registo fóssil e arqueológico.
datação por radiocarbono deste indivíduo. Depois do diagnóstico É um trabalho interdisciplinar que visa fornecer uma ideia
genético, iniciou-se um trabalho conjunto com colegas da antropolo- mais completa sobre a chegada de populações humanas
gia, nomeadamente com Sofia Tereso, para identificar características vindas de África até à Austrália há mais de 60 mil anos.
morfológicas compatíveis com Klinefelter. Assim, foi possível confir-
mar que este indivíduo era bastante alto para a época, com cerca de Apesar da suspeita de cruzamentos entre o homem
1.80 m, e apresentava um diâmetro alargado da anca. Determinou-se moderno e os Denisovianos nas atuais populações da Aus-
também que não apresentava ainda um quadro de osteoporose na trália, Filipinas, Indonésia e Papua Nova Guiné, não há
altura da morte. evidências de fosseis de Denisovanos nesta área geográfi-
«Este foi um dos trabalhos que mais prazer me deu até hoje, por ser ca. Como se explica este facto?
made in Portugal e representar um marco importante na utilização de Se os Denisovanos (ou uma população geneticamente
ADN antigo para perceber a incidência de síndromes genéticas no muito relacionada) viveram nesta região, como temos
passado.», sublinha João Teixeira – «Este trabalho vem demonstrar o proposto, então onde estão os fósseis? Esta é uma das re-
poder de abordagens interdisciplinares no estudo do nosso passado, giões do Mundo com o registo fóssil mais rico, com três
e abre portas importantes para perceber a incidência de determi- grupos descritos: H. floresiensis na ilha de Flores, H. lu-
nadas síndromes ou doenças genéticas em diferentes períodos do zonensis nas Filipinas e H. erectus em Java. A maioria dos
passado, como por exemplo a síndrome de Down». colegas da paleoantropologia acredita que estes grupos
não representam os Denisovanos com quem os nossos
ancestrais se cruzaram e que são ainda menos relaciona-
dos com a nossa espécie. Estas inferências têm apenas por
base comparações morfológicas, porque não foi até hoje
possível obter ADN destes fósseis, dado que a preservação
do material osteológico em ambientes tropicais é muito
problemática. Tendo em conta esta limitação, em 2021
fizemos um levantamento genético de populações que vi-
vem atualmente no Sudeste Asiático e utilizamos modelos
computacionais para perceber se algum grupo mais diver-
gente do que os Denisovanos teria também contribuído
para o repertório genético destas populações.

Que respostas obtiveram?


O resultado foi negativo. Assumindo que estes grupos fós-
seis são de facto mais divergentes e representam outras
espécies, então é possível concluir também pelo nosso
trabalho que não contribuíram geneticamente. Mas será
mesmo assim? E se repensarmos o registo fóssil? Os únicos
SHUTTERSTOCK

fósseis incontestáveis de Denisovanos de que dispomos


são o fragmento de um dedo da mão encontrado na Sibé-
ria, e uma mandíbula no Tibete. Sabemos isso pela análise

54 SUPER
A identificação de grupos
humanos arcaicos e seus
cruzamentos
H erdamos metade do nosso património genético de cada um
dos nossos pais, que por sua vez o herdaram dos nossos
avós. Este património está organizado em cromossomas, que po-
dem ser entendidos como pacotes de ADN. A forma como esta
informação é transmitida é verdadeiramente fascinante: na forma-
ção dos gâmetas (espermatozoide ou óvulo) os cromossomas dos
nossos pais emparelham e trocam informação entre si, formando
cromossomas totalmente diferentes, com novas combinações,
como se fosse um mosaico. E são essas combinações que nós

ASC
herdamos e transmitimos. Essa é uma das razões pela qual os fi-
lhos não são idênticos aos pais nem os irmãos idênticos entre si (com exceção de gémeos monozigóticos). A repetição deste processo de
copy-paste ao longo do tempo faz com que os nossos cromossomas sejam mosaicos onde cada peça pode ter uma história evolutiva distin-
ta, ou seja, pode ser herdada de ancestrais diferentes. A existência de regiões do genoma humano (as tais peças do mosaico) idênticas às
observadas nos Neandertais, por exemplo, permite-nos saber que somos descendentes diretos dessas populações. Adicionalmente, a per-
centagem e o tamanho dessas regiões genómicas permitem-nos inferir quando ocorreram esses cruzamentos.

de ADN e proteínas – ninguém sabe ao certo quem foram instituições científicas com grande reconhecimento inter-
os Denisovanos, ou qual a sua morfologia. Assume-se que nacional. Mas trocava tudo pela oportunidade de voltar a
poderão ser semelhantes aos Neandertais, dada a proxi- Portugal e liderar um programa pioneiro, estabelecendo o
midade genética. primeiro laboratório de ADN antigo no país e abrindo a pos-
sibilidade para que novas gerações de cientistas não tenham
Que incógnita mais o fascina neste estudo? de emigrar, tal como eu fui obrigado a fazer. Esse é o sonho
Não parece estranho que tenhamos evidência fóssil abun- que ainda não concretizei. Portugal financiou o meu dou-
dante, mas que, ao mesmo tempo, a evidência genética toramento e, desde os 12 anos, estudei sempre em escolas e
seja considerada como tendo sido proveniente de contri- universidades públicas. Sinto que a única forma de retribuir
buições de outro grupo? A evidência genética diz que estes é regressar e que a minha experiência no estrangeiro pode
fósseis estão no sítio certo à hora certa para serem os mis- trazer benefícios à ciência e às novas gerações de cientistas
teriosos Denisovanos, se estivermos dispostos a repensar em Portugal. Mas, neste momento, não existem apoios nem
muita coisa, nomeadamente a classificação dos fósseis condições financeiras para que o possa fazer. Os cientistas
atualmente conhecidos na região e a sua relação com a têm família e precisam de estabilidade. Não pretendo re-
nossa espécie. Na minha opinião, e isto é quase uma here- gressar a Portugal por 3 ou 4 anos e depois ser obrigado a
sia em relação à visão canónica sobre a evolução humana, emigrar novamente... a refazer constantemente a minha
pelo que é a primeira vez que o afirmo publicamente, os vida. Vamos ver o que o futuro me reserva. e
Denisovanos do Sudeste Asiático são neste momento clas-
sificados como H. erectus, e foram descritos pela primeira
vez por Eugene Dubois. Para a confirmar, é necessário
obter ADN destes fósseis. O tempo dirá se estamos certos,
mas esta é uma possibilidade entusiasmante! Representação 3D
de Neandertal,
Relativamente ao projeto coordenado por si em Portugal, no uma das popula-
caso de um indivíduo que terá vivido no século XI, ao qual se ções das quais
associa a síndrome Klinefelter, a genética evolutiva está mais somos descen-
dentes, com
próxima do campo da Biologia, da Medicina ou de ambos? afinidades aos
Na verdade, este tipo de aplicações constitui a base para Denisovanos.
uma área emergente conhecida como Medicina Evolutiva,
que pretende usar abordagens evolutivas para aumentar
o conhecimento sobre a saúde de populações passadas e
potencialmente informar práticas médicas atuais. São
abordagens interdisciplinares, com alcance potencial em
áreas como a medicina, a arqueologia e a antropologia.
Casos como este permitem fazer uma análise morfológi-
ASC

ca renovada do esqueleto à luz do diagnóstico genético, e


tentar perceber se existem características morfológicas
que passaram despercebidas inicialmente mas que es-
tão associadas a síndromes genéticas.

Depois da Austrália, que outras geografias gostaria


de explorar?
Sinto-me um privilegiado por poder trabalhar em

SUPER 55
A RE T I Í OC U LA OM B I E N T E
M

Teremos um
oceano saudável
até 2030?
É uma fonte de biodiversidade e de energia. Embora o panorama seja
preocupante, os peritos estão a investigar medidas tecnológicas, a curto e longo
prazo, que podemos tomar para proteger as nossas águas.

Texto de LAURA G. DE RIVERA, jornalista científico

A proteção dos
oceanos diz res-
peito a todos nós,
Estados e indiví-
duos. Precisamos
de repensar a
nossa utilização
SHUTTERSTOCK

dos oceanos e
mudar o nosso
comportamento.

56 SUPER
A
água que bebemos ou o oxigé- «Houve uma mudança muito grande e muito rápida em
nio que respiramos são apenas apenas alguns anos. Isto é o que mais chama a atenção nas
duas das coisas que nos dá. A últimas investigações sobre a saúde dos nossos mares.
chuva, a mesma chuva que Estamos a assistir a uma grande perda de habitats», diz
faz fluir os rios, enche os re- a bióloga Elva Escobar, investigadora na área de Ecolo-
servatórios e rega os campos, gia e Oceanografia do Instituto de Ciências Marinhas da
provém da evaporação da água Universidade Nacional Autónoma do México (UNAM), à
do mar. Além disso, o oceano Super Interessante. Os problemas estão a acumular-se,
absorve cerca de 30 por cento como observa Brandt: «Para além das alterações climá-
do dióxido de carbono gerado ticas, a contaminação, a poluição química proveniente
pela nossa civilização. Tam- de rios, o ruído proveniente de navios, microplásti-
bém fornece alimentos para 3,2 mil milhões de pessoas cos que estão presentes mesmo a 400 000 metros nas
em todo o mundo, de acordo com as Nações Unidas. E zonas mais profundas... Ainda estamos a começar a
é o lar de 60-80% de todos os seres vivos do planeta. compreender como todos estes problemas nos afetam.
«Todas as espécies marinhas desempenham um papel Ainda estamos a começar a compreender como todas
especial nos ciclos da água e do carbono. É por isso que estas agressões afetam os organismos marinhos». Jun-
é considerado o maior ecossistema do planeta», lem- tos, Brandt e Escobar, uma especializada em mares frios
bra a bióloga Angelika Brandt, uma autoridade mundial e a outra em mares quentes, lideram um grupo de nove
em biodiversidade oceânica profunda na Antártida e no peritos internacionais escolhidos pelo programa da Dé-
Atlântico, chefe do departamento de Zoologia Marinha cada do Oceano da ONU para enfrentar o desafio de um
do Instituto de Investigação Senckenberg (Alemanha) Oceano Limpo até 2030, com missões como a redução
e organizadora de várias expedições científicas para as do lixo marinho entre 50-90%.
águas do Pólo Sul. Soa melhor do que bem, mas será realista? «É impos-
No entanto, aqueles que vivem na azáfama da vida sível alcançar um oceano limpo até 2030. É um desafio
quotidiana esquecem-se que a chave da vida está no que não conseguiremos realizar numa única geração»,
oceano. Se é tão importante, porque não o cuidamos? admite Brandt. «Muito provavelmente, pelo contrá-

SUPER 57
rio, os resíduos humanos irão duplicar até essa data, Há uma grande preocupação sobre esta questão»,
especialmente dos países industrializados, que são os confessa Escobar. Todo este cocktail de poluentes
maiores poluidores», admite ela. Mas a ciência não está deixa a biota com apenas duas opções: «ou vai mais
a desistir. longe ou mais fundo, ou morre».
Sabemos também que as zonas mortas, aque-
COMO PODE TODA A SUA INVESTIGAÇÃO AJUDAR A PROTEGER las grandes áreas marinhas onde a falta de oxigénio
OS OCEANOS? É muito importante documentar o que provoca a morte ou migração de peixes, têm vindo a
está a acontecer porque, caso contrário, não sabemos. crescer desde os anos 90. «Perceba que tudo o que vai
Por exemplo, pode-se medir a água para ver se está para o rio (de cidades, quintas, colheitas, fábricas...)
poluída, porque muitos tóxicos, como o DDT, não são chega ao mar», diz Escobar. Esta é precisamente a raiz
visíveis porque são translúcidos, não têm cor, e estão do problema: a matéria orgânica que flui para o mar,
a fazer desaparecer algumas espécies», diz Escobar. composta por resíduos de pesticidas, fertilizantes e
Nas últimas décadas, aprendemos que os poluentes resíduos gerais da atividade industrial, acelera um
mais nocivos são os metais pesados e os plásticos, processo de decomposição (conhecido como eutro-
que afetam o desenvolvimento e a reprodução nor- fização) que consome o oxigénio na água. E sem ele,
mais dos organismos marinhos. Mas isso não é tudo: os peixes afogam-se. A solução, para este perito, «es-
o ruído é outro dos seus maiores inimigos, especial- tá nas mãos de todos e envolve um diálogo com todos
mente se tivermos em conta que 95% da biota vive aqueles que utilizam um rio».
abaixo da zona iluminada. «Eles não têm luz para ver, Uma das prioridades definidas no Manifesto para
a sua única forma de se orientarem e comunicarem um Oceano Limpo (documento publicado em Novem-
é através do som», aponta Escobar. Para além dos bro passado pelo grupo liderado por Brandt e Escobar,
motores de navios, que estão a ficar maiores e mais que estabelece as medidas a tomar para o conseguir) é a
ruidosos, todas as ações em zonas urbanas, portuá- criação de áreas marinhas protegidas para salvaguardar
rias, industriais e turísticas produzem ruído. Mesmo a biodiversidade dos ecossistemas. É aqui que entram
uma energia que era originalmente imaginada como em jogo os avanços tecnológicos e científicos, tais como
sustentável, os parques eólicos, «geram muito ruído observatórios de alto mar, sistemas de monitorização
à superfície, onde está a lâmina. Além disso, existem por satélite, genómica e bioengenharia. «Todas estas
estruturas subaquáticas que estão a vibrar e a causar ferramentas vão permitir-nos descobrir muitas coisas
interferências no sistema de orientação dos animais. e responder a muitas perguntas que temos sobre a vi-

SHUTTERSTOCK

Tudo o que um rio transporta acaba


no mar e no oceano. A decomposição
da matéria orgânica, juntamente com
todo o lixo, acelera a eutrofização, que
consome o oxigénio na água.
A poluição sonora é muito
prejudicial para muitas espé-
cies marinhas que vivem
abaixo da área iluminada.
SHUTTERSTOCK

Sabe-se agora que os poluentes mais nocivos são os metais


pesados e os plásticos, mas também o ruído
da. Estas respostas podem ter muitas aplicações, não
apenas científicas, desde a medicina à indústria ou ex-
ploração comercial», diz Escobar. Ele dá o exemplo do
sargaço, uma alga castanha que frequentemente cau-
Vigilância
sa estragos nas Caraíbas quando se acumula nas suas a partir do espaço
praias em grandes quantidades e se decompõe, com um
cheiro malcheiroso que assusta os turistas. «Hoje, com
a ajuda da monitorização por satélite e da modelização
matemática, podemos aprender a prever a sua trajetó-
P ode parecer incongruente quando o progresso tecnoló-
gico (nos métodos de pesca exaustivos, embarcações
cada vez mais pesadas, industrialização, extração de minerais
ria. Sabendo isto, ainda podemos apanhá-lo antes de e combustíveis fósseis...) é em grande parte responsável pe-
chegar à praia e transformá-lo em alimento para o ga- la forma como a saúde do oceano tem sido prejudicada nas
do», aventura. últimas décadas. No entanto, também tem muito a contribuir,
como dizem os peritos do grupo de trabalho da Década dos
POR OUTRO LADO, NOVAS DISCIPLINAS ESTÃO A ENTRAR EM Oceanos da ONU.
CENA, TAIS COMO A BIOINFORMÁTICA, o que «nos permite Pedimos alguns exemplos ao cientista ambiental Jesse Ausubel,
explorar o genoma oceânico muito facilmente e nos que faz parte da equipa como especialista em tecnologias de
trouxe grandes descobertas», salienta Escobar. Para observação oceânica e, em 1979, ajudou a organizar a primei-
começar, ajuda-nos a classificar e estudar a evolução ra Conferência das Nações Unidas sobre o Clima. «As redes de
das espécies, revelando os genes que compõem ca- microfones submarinos podem identificar fontes de ruído preju-
da organismo, as suas características distintivas que dicial causado por atividades humanas, a tecnologia genómica
o tornam único. Mas, talvez ainda mais interessante, pode monitorizar o declínio e a recuperação da biodiversidade
torna possível saber que instruções genéticas fazem marinha», diz ele. Por outro lado, «os satélites podem detetar
com que certos seres vivos façam certas coisas. «Al- com grande precisão de onde provêm muitas formas de polui-
guns são capazes de degradar o petróleo, outros de ção, tais como derrames químicos ou de petróleo, o que nos
limpar a água ou extrair minerais, outros são utiliza- permitirá monitorizá-los e antecipar os seus movimentos. Iden-
dos para regenerar tecidos ou combater doenças... É tificar de onde vem ajudar-nos-á a consertá-lo, evitar que volte
um conhecimento muito interessante para resolver os a acontecer e punir os culpados», acrescenta Ausubel, que
problemas que temos hoje», diz Escobar com entusias- também dirige o Programa Ambiental Humano na Universidade
mo. Como esta amante do oceano profundo aponta, há Rockefeller (EUA). Neste campo, GOOS (Global Ocean Ob-
um tubarão na Gronelândia que vive há 500 anos e fo- serving System) será a grande estrela da nossa década, «para
ram encontrados vermes marinhos com até 500.000 mapear os movimentos da vida marinha e da poluição», diz ele.
anos. O que é que tem o seu ADN que lhes permite Podemos imaginar estas atividades científicas, mas como irão
restabelecer-se desta forma? Como conseguem obter ajudar as pessoas comuns? Ele não duvida: «a comida que ob-
oxigénio? Como conseguem viver com muito pouca temos do oceano será mais saudável, mais abundante e menos
comida ou em muito más condições? O futuro vai re- poluída, e poderemos desfrutar melhor da beleza e dos prazeres
servar grandes surpresas para a humanidade. Temos recreativos das nossas costas».
muito a aprender com o mar», acrescenta.

SUPER 59
SHUTTERSTOCK
CREDITO
Na imagem, uma plata-
forma de processamento
de petróleo e gás offsho-
re. Outra urgência é a

Navios e outros procura de fontes de


energia alternativas me-

monstros nos poluentes e mais


sustentáveis que redu-
zam a necessidade de
minerais como lítio, co-
O transporte de mercadorias nos nossos mares emite tanto
dióxido de carbono para a atmosfera como a Alemanha,
3% da pegada global de carbono. Juntamente com a avia-
balto e cádmio.
SHUTTERSTOCK

ção, é um dos setores mais difíceis de fazer passar os arcos


de sustentabilidade. Especialmente quando se considera que
80-90% de todos os bens que utilizamos foram transportados
pelo menos uma vez por navio.
«Já não é possível evitar a urgência da descarbonização. Quem Ao mesmo tempo, outro dos objetivos-chave do
quiser continuar a fazer parte da indústria marítima deve aceitar programa da ONU para os nossos oceanos liga duas
este desafio», diz Sofia Fürstenberg Stott, da Suécia, que faz par- palavras que podem parecer contraditórias: indus-
te do painel de peritos da ONU como especialista em inovação trialização sustentável. Como? A primeira, segundo
industrial. Outra prioridade para reduzir o impacto do transporte Escobar, é substituir gradualmente o petróleo por
marítimo é a digitalização, que ajudará a otimizar os processos. outras fontes de energia. «Devemos fazer um esforço
«Tem a ver com a forma como negociamos, como todos os in- para não introduzir poluentes no ecossistema, inves-
tervenientes envolvidos nos produtos que são transportados tir em combustíveis alternativos e não utilizar diesel
por mar podem melhorar a sua eficiência, segurança e transpa- nos navios ou vigiar o tamanho dos navios, uma vez
rência, graças à utilização de inteligência artificial no tratamento que os maiores utilizam motores mais ruidosos e são
de grandes quantidades de dados», diz ele. mais propensos a fugas de combustível. Outra indús-
Fürstenberg, que também dirige uma consultoria para empre- tria emergente é a extração de metais do fundo do mar,
sas de navegação, membro da Coligação Getting to Zero (uma algo sobre o qual ele apela à prudência. «Precisamos
aliança de mais de 150 empresas nos setores da energia, in- de uma moratória até que haja mais conhecimentos
fra-estruturas e finanças), explica que as empresas do setor e melhores regulamentos», diz ele. «Também, nesse
começam a olhar para dois aspetos fundamentais: «como tempo, outras fontes de energia como a energia solar
construímos e como reciclamos um navio». Assim, «modelos ou a força das marés podem reduzir a necessidade de
comerciais circulares estão a ser explorados, onde embarca- minerais como o cádmio, o lítio ou o cobalto.
ções inteiras, com todo o seu equipamento e componentes, Por outro lado, a tecnologia pode ajudar a reduzir o
podem ser reutilizadas». impacto ambiental de certas explorações com a cria-
O que estes gigantes marinhos pesados que ainda são alimen- ção de gémeos digitais ou réplicas exatas da realidade
tados por combustíveis fósseis transportam é uma questão virtual de um determinado habitat. «Recriam um
à parte. «Este ponto é da responsabilidade de todos nós, os ecossistema marinho, seja uma baía, o mar profundo,
utilizadores finais destes produtos», adverte. O que estamos o alto mar..., o que nos permite analisar como certas
a comprar, como é transportado, e de onde? «Se estivermos ações o afetariam», diz Elva Escobar. Por exemplo,
melhor informados como consumidores, seremos capazes de nos anos 60, todos os resíduos de guerra (armas nu-
fazer escolhas mais sustentáveis», sublinha ele. cleares, resíduos médicos) foram descartados porque
não se sabia quais seriam os efeitos nocivos para os

60 SUPER
Os danos à biodiversidade marinha precisam de ser quantificados
para ver até que ponto os ecossistemas podem resistir aos danos

oceanos. «Hoje poderíamos prevê-lo com maior áreas geográficas de alta prioridade, tais como regiões
certeza e assim tomar decisões mais éticas e funda- polares e linhas costeiras urbanas, e a análise atenta dos
mentadas». requisitos para aqueles que querem fazer negócios — do
turismo às minas offshore e parques eólicos offshore —
COMPREENDER E MONITORIZAR OS CAMINHOS QUE OS PO- para o fazerem sem destruir a vida nos oceanos.
LUENTES PERCORREM E onde vão parar através de um Contudo, na situação atual, não há nada que a ciência
programa de monitorização por satélite é outra das por si só possa fazer para proteger os mares, reconhece
propostas do Manifesto para 2030, bem como estar Brandt: «A sustentabilidade só pode ser alcançada com
atento ao despejo de resíduos como parte do Sistema nova legislação e a colaboração da sociedade. É necessá-
Global de Observação de Detritos Marinhos. A ideia é ria uma mudança no nosso comportamento, diz Brandt,
detetar e agir diretamente sobre as fontes para evitar uma cientista de cabelo branco e rosto de menina, cujos
novas descargas. Ao mesmo tempo, identificam prio- olhos se iluminam quando fala sobre «a beleza das me-
ridades como o desenvolvimento de melhores sistemas dusas, dos peixes e de todas as criaturas do mar».
de limpeza de fugas tóxicas e o mapeamento detalhado «Devemos mudar as nossas vidas, pensar no que
dos fundos marinhos. estamos a fazer. Não é algo que depende apenas dos go-
A curto prazo, até 2025, os cientistas salientam a neces- vernos ou projetos internacionais de conservação, mas
sidade de quantificar os danos que estão a ser causados também dos cidadãos comuns que podem fazer a sua
à biodiversidade pelos vários poluentes no mar. «É ne- parte, por exemplo não usando sacos de plástico, não
cessário determinar que níveis são aceitáveis e definir os desperdiçando água, usando detergentes biodegradá-
limites máximos que os ecossistemas podem suportar, veis...», diz e aconselha Elva Escobar, uma cientista
para compreender qual o seu nível de tolerância antes que ainda não perdeu a esperança na humanidade: «Os
que o seu bom funcionamento seja danificado», escre- cidadãos, quando estão inspirados, participam e podem
vem eles. Para o efeito, propõem também a definição de ajudar muito com pequenas ações». e

SUPER 61
PA RS IT CÍ CO UL LO OG I A
GTRES

NÓS
VERSUS ELES
A EXPERIÊNCIA DE
PRISÃO DE STANFORD
62 SUPER
A fim de investigar até que ponto a adesão a um grupo modifica o
comportamento dos indivíduos, Phillip Zimbardo concebeu uma das mais
famosas experiências de psicologia social de todos os tempos. Zimbardo
conseguiu demonstrar o enorme poder dos grupos e abriu o debate sobre os
comportamentos de grupo que excedem a nossa capacidade de resposta
individual.

Texto de DAVID CUADRADO, psicólogo

SUPER 63
PRISONEXP.ORG
PRISONEXP.ORG

Foram conduzidos a um espaço condicionado na cave da Universidade de Stanford que simulava


uma prisão real, com celas, beliches, banheiros muito simples e áreas de reunião e descanso para
os guardas. Foram divididos aleatoriamente em dois grupos: prisioneiros e guardas.

E
m 1961, M. Sherif, um psicó- – Têm fronteiras: portanto, quem não faz parte do
logo social, juntamente com nosso grupo (endogrupo) está fora dele (exogrupo).
os seus colaboradores, reali- – Possuem existência objetiva, ou seja, geram um
zaram um engenhoso estudo ambiente em que os membros socializam, encontram
de campo que demonstrou a satisfação em pertencer e ajudam a exercer controlo...
importância dos grupos na ou, pelo contrário, libertam restrições à agressividade e
origem dos conflitos e na sua ataques a outros grupos.
resolução. Os investigadores – Finalmente, e como consequência disso, as pessoas
levaram um grupo de jovens que os formam estão conscientes da sua pertença ou fal-
para um campo de férias e ta de pertença a eles.
separaram-nos em duas ca- Mas em que medida pode esta integração num gru-
sernas diferentes. Durante po mudar a forma como nos comportamos, tomamos
a primeira semana viveram juntos apenas com o seu decisões ou fazemos ações que vão contra os nossos
grupo de referência, acampando, comendo e jogan- princípios éticos e morais? Poderá o simples facto de
do juntos. Rapidamente cada grupo desenvolveu a sua fazer parte de um grupo, mesmo aleatória e temporaria-
própria cultura, a sua própria forma de se relacionar, mente, levar-nos a modificar o nosso comportamento
comunicar e de estabelecer as suas próprias regras. para extremos impensáveis de agressão e conflito?
Alguns autodenominavam-se «As Águias». Os outros Esta foi a questão que o governo americano, através
eram «As Víboras». Quando, após uma semana, os do Exército (Marinha) que controlava um sistema pri-
investigadores reuniram os dois grupos para um cam- sional em que os conflitos entre prisioneiros e guardas
peonato de jogos, não demorou muito tempo até que (polícia militar) eram contínuos e muito agressivos,
surgisse um conflito entre eles. Fricções, insultos e até colocou ao professor de psicologia de Stanford, Phillip
mesmo lutas eclodiram com grande facilidade. Nem se- Zimbardo. A fim de investigar até que ponto a filiação
quer encontraram paz quando fizeram atividades mais em grupo modifica o comportamento dos indivíduos,
pacíficas, como comer juntos ou ver um filme no mes- Zimbardo concebeu uma das experiências sociais mais
mo cinema. Finalmente, encontraram uma forma de os famosas de todos os tempos. Tanto que foi além da aca-
reunir novamente, criando objetivos comuns, tais co- demia, produziu livros, filmes e até uma peça de teatro e
mo empurrar o autocarro parado ou quando tiveram de ficou conhecida simplesmente como «A Experiência».
competir contra outras crianças de um campo próximo.

ESTA INVESTIGAÇÃO MOSTROU,SEM LUGAR A DÚVIDAS, A IMPOR-


TÂNCIA DOS GRUPOS como o ambiente em que os seres
humanos se desenvolvem socialmente. Desde o momen-
Como é que o grupo muda
to em que nascemos, fazemos parte de grupos, sejam eles
primários (com pessoas com quem nos relacionamos
a forma como nos
de forma direta, íntima e pessoal: familiares, colegas de
escola ou de trabalho, as amizades mais profundas) ou se-
comportamos, tomamos
cundários (com uma intimidade mais indireta, impessoal
e carente de intimidade, tais como estudantes universi- decisões ou fazemos
tários da mesma faculdade, grandes corporações... ou o
grupo de leitores da Super Interessante). ações que vão contra os
E sabemos que os grupos têm três características fun-
damentais: nossos princípios?
64 SUPER
PRISONEXP.ORG

Tudo começou, como é costume em psicologia social, ros queixaram-se que os guardas foram escolhidos pela
com um anúncio de jornal à procura de candidatos. O sua maior corpulência física), foram divididos em dois
anúncio oferecia 15 $ por dia da época (1971) a quem grupos: prisioneiros e guardas. O próprio Zimbardo
quisesse participar numa experiência de «simulação assumiu o papel de superintendente e outro investi-
de prisão». Candidataram-se setenta candidatos, na gador assumiu o papel de diretor da prisão. Os guardas
sua maioria brancos, jovens, estudantes universitários receberam bastões, uniformes cáqui de aspeto militar
de classe média. Após um exame físico e um teste psi- e até óculos de sol espelhados para evitar o contacto
cológico, foram escolhidos vinte e quatro deles, os mais visual direto com os prisioneiros. Os prisioneiros, por
saudáveis e mentalmente estáveis. seu lado, foram forçados a usar uma bata de musseli-
Foram levados para um espaço condicionado na cave na semelhante às fornecidas nos hospitais, a não usar
da Universidade de Stanford que simulava uma verda- roupa interior, a usar sandálias de borracha, a ter uma
deira prisão, com celas, camas, casas de banho muito meia na cabeça para simular que estavam com a cabeça
simples, e áreas de reunião e descanso para os guardas. rapada, a usar uma corrente nos pés e a serem identifi-
Ao acaso, atirando uma moeda ao ar (isto é muito cados por um número cosido na sua roupa. Não foram
importante porque, mais tarde, alguns dos prisionei- dadas mais instruções para além de que a experiência

Nós e Eles...
GETTY
somos o mesmo?
O caso do Ruanda
N enhum argumento pode justificar a violência entre grupos huma-
nos. Mas o caso do Ruanda faz fronteira com o inexplicável.
O governo colonial belga estabeleceu em meados do século XIX um
sistema social racista na sua colónia africana ao organizar por castas,
o grupo étnico banto (uma grande maioria, com apenas uma pequena
população de pigmeus como caçadores) entre Tutsis (15%) e Hutus
(os restantes 85%), dando prioridade na administração aos primeiros.
Não havia traços étnicos, linguísticos ou culturais que os diferencias-
sem. Talvez os Tutsis fossem mais criadores de gado do que os Hutus... e
mesmo isso não era garantia. Muitas vezes, a inscrição numa casta ou noutra era puramente discricionária. Mesmo antes da descolonização,
o poder dos Hutus teve de ser aumentado, e a «democracia» não ajudou muito a união criando-se partidos políticos apenas pelo simples fac-
to de serem «anti-Tutsi» ou Hutu. Mas o ataque aéreo ao Presidente Juvenal Habyarimana e ao seu colega burundês que viajavam juntos a 6
de abril de 1994, ambos hutus, abriu o apocalipse destruidor. Entre 7 de abril e 15 de julho, hordas de Hutus assassinaram cerca de 70% da
população Tutsi (perto de um milhão de vítimas, incluindo familiares, vizinhos e amigos) e violaram entre duzentas e cinquenta e quinhentas
mil mulheres. Esta loucura terminou quando a Frente Popular Tutsi Ruandesa ocupou a capital Kigali e provocou o êxodo do governo para o
Zaire... juntamente com mais de dois milhões de refugiados Hutu. Nesse mesmo ano, o sistema de castas foi abolido. Nunca uma divisão tão
arbitrária entre grupos humanos conduziu a tal violência.

SUPER 65
PRISONEXP.ORG

PRISONEXP.ORG
Os guardas geralmente insultavam os presos, gritavam com eles, tratavam-
-nos com desprezo e até os obrigavam a limpar as casas de banho com as
próprias mãos ou a insultarem-se entre eles. Inacreditavelmente, os prisio-
neiros obedeceram e assumiram seu papel, sem sequer protestar contra os consistia em permanecer juntos durante uma quinze-
abusos de que estavam a ser vítimas, embora pudessem ter parado a expe- na na prisão simulada.
riência, queixando-se aos investigadores. Para aumentar a sensação de verosimilhança, os par-
ticipantes que iriam ser os prisioneiros, foram buscados
no dia de abertura nas suas próprias casas pela verdadei-
ra polícia da cidade de Palo Alto, acusados de assalto à
mão armada, lidos os seus direitos e recolhidas as suas
O problema dos impressões digitais antes de serem levados para a prisão.

bandos NINGUÉM PREVIU O QUE ACONTECEU A SEGUIR. No início,


prisioneiros e guardas brincavam uns com os outros.

N ão há dúvida de que os grupos ajudam na socialização


dos seus membros. Muitos deles são mesmo criados e
gerados com a desculpa da falta de um ambiente socializador
Alguns prisioneiros até fingiam atacar os guardas com
bastões, e outros tiravam-lhes os óculos de sol e colo-
cavam-nos em si próprios. Mas, no espaço de algumas
por parte da população de acolhimento. Mas a questão dos horas, os guardas começaram a ajustar o seu com-
gangs latinos escapou ao seu propósito original. Deixando de portamento ao papel de autoridade. Começaram a ser
lado as maras salvadorenhas (cuja origem é muito particular mais duros, a dar ordens e a usar a força para impor as
e ligada à sua guerra civil), hoje em dia em Espanha, existem suas regras.
pelo menos quatro grandes bandos (grupos) organizados. No segundo dia houve uma tentativa de motim dos
Dois deles têm raízes dominicanas (Trinitarios e Dominican prisioneiros, que foi severamente reprimida pelos
Don’t Play) e outros que, a partir da sua origem equatoriana, se guardas que usaram extintores de incêndio contra eles.
abriram a outras nacionalidades (Ñetas e Latin Kings). Mas de Dividiram os prisioneiros em dois grupos, bons e maus,
todos eles, apenas os Trinitarios recusam aceitar membros não e disseram-lhes que havia informadores, o que fez com
dominicanos, o que os levou a serem vistos pelos outros co- que os prisioneiros caíssem num estado de passividade
mo o inimigo comum a combater. Este facto diferencial e todo e desânimo .
o ritual que acompanha a adesão (como o juramento de de- O próprio Zimbardo, confrontado com rumores
clarar que nenhum Trinitário pode dizer a outra pessoa quem de uma fuga no quarto dia, considerou levar todos os
é o líder, ou que cada Trinitário é um guerreiro astuto que não participantes a uma verdadeira prisão para evitar mais
pode mostrar medo em momento algum) significa que fazer motins. Felizmente, um problema com o seguro prisio-
parte deste grupo confere um estatuto elevado a que muitos nal na esquadra da polícia impediu tal disparate.
jovens não conseguem resistir. A partir daí, cometer crimes em Os guardas insultavam frequentemente os prisionei-
nome do bando está apenas a um passo de distância. Mais um ros, gritavam com eles, tratavam-nos com desprezo e
exemplo do poder que os grupos têm sobre os indivíduos. até os forçavam a limpar as casas de banho com as pró-
prias mãos e a insultarem-se uns aos outros. Um dos
ASC

guardas, no final da experiência, disse: «Fiquei sur-


preendido comigo mesmo (...) praticamente considerei
os prisioneiros como gado e pensei que tinha de os ob-
servar a toda a hora no caso de tentarem fazer alguma
coisa». Embora os guardas fossem livres de ir para casa
ou revezar-se, quase todos eles decidiram ficar na pri-
são para vigiar mais de perto os prisioneiros.
O direito de ir à casa de banho, de comer ou mesmo
de dormir no colchão era limitado aos prisioneiros
«bem-comportados». Alguns deles tiveram de dor-
mir nus no chão de betão da prisão forçados pelos
guardas.

66 SUPER
PRISONEXP.ORG
PRISONEXP.ORG

Os prisioneiros, inacreditavelmente, cumpriram e


assumiram o seu papel sem sequer protestarem clara-
mente contra os abusos que estavam a sofrer. Podiam
ter parado a experiência queixando-se aos investiga-
dores que o tratamento era abusivo, injusto e cruel e,
renunciando ao pagamento, pedirem liberdade con-
dicional e saírem. Não só isto não aconteceu, como (cada um de nós é diferente), melhores e mais inteli-
quando um dos prisioneiros teve de ser levado para o gentes (favoritismo grupal).
hospital com uma erupção psicossomática e foi substi- Em contraste, a nossa visão do exogrupo tende sempre
tuído por um novo participante, este ficou horrorizado para um estereótipo mais uniforme (todos os»outros»
com o tratamento cruel dos guardas e entrou em gre- são iguais) e tende para a explicação simplista do suces-
ve de fome. Os guardas obrigaram-no a permanecer so (tiveram sorte) ou fracasso (mereceram-no).
na solitária, de pé e a segurar as salsichas que se tinha Os próprios participantes na prisão de Stanford ex-
recusado a comer. Os prisioneiros foram convidados a perimentaram, desde o primeiro momento em que
escolher entre entregar os seus cobertores nessa noi- começaram a assumir o seu papel, mudar as suas per-
te ou, em troca, acabar com a punição do prisioneiro ceções de si próprios. Os prisioneiros pensavam que os
indisciplinado... e todos escolheram continuar o con- guardas tinham sido escolhidos pela sua robustez física
finamento deste novo prisioneiro que estava»atrazer e natureza agressiva. Por sua vez, estes tinham um pen-
problemas». samento mágico sobre a razão pela qual os prisioneiros
tinham sido escolhidos como tal: «Devem ter feito algo
O CHORO, A DESORIENTAÇÃO E O PENSAMENTO DESORGANIZADO para serem prisioneiros».
CRESCERAM de tal maneira que no sexto dia da experiên- Zimbardo chegou a ser eleito presidente da Acade-
cia, por instigação de um estudante de pós-graduação mia Americana de Psicologia e ajudou na investigação
que visitou a prisão e verificou o estado dos participan- que parou os enormes abusos na prisão de Abu Ghraib.
tes, Zimbardo terminou a experiência — oito dias antes Mas se esta experiência nos mostrou alguma coisa, foi
do previsto. o enorme poder dos grupos. No lado positivo, para nos
Esta ousada experiência, pela qual Zimbardo foi inju- ajudar a socializar, estabelecer limites e encontrar o nos-
riado e admirado em partes quase iguais, mostrou-nos so lugar no ambiente em que vivemos. E, negativamente
o enorme poder dos grupos. e ao extremo, como eles são capazes de nos conduzir ir-
Graças a ela, sabemos que os humanos vêem os mem- remediavelmente aos piores comportamentos possíveis.
bros do nosso endogrupo como mais heterogéneos Somos todos parte de grupos. O nosso partido político, a
nossa equipa desportiva, a nossa família ou etnia... mas
sem pensamento crítico, estamos à mercê de compor-
tamentos de grupo que excedem a nossa capacidade de
Zimbardo, depois de ver resposta individual. Plataformas sociais como o Face-
book sabem-no muito bem. Com cada like, cada página
o estado dos visitada, cada grupo a que nos associamos, o seu conhe-
cimento sobre nós aumenta. E, graças ao preconceito de
participantes, decidiu confirmação, apenas nos envia mensagens e dados que
apoiam as nossas crenças e estereótipos. Eles sabem que
terminar a experiência olhamos de forma diferente para os políticos em quem
votamos, para as equipas desportivas que apoiamos e

oito dias antes do para os grupos que defendemos. Eles sabem que a nossa
necessidade de filiação como seres humanos é enorme.
Eles sabem que sem a nossa pertença a um grupo... dei-
previsto xamos de ser humanos. e

SUPER 67
ENTREVISTA

James Green explica


como o trabalho da
NASA é tão orientado
para a Terra como para
o espaço: foi o estudo
de Vénus que levou à
capacidade de prever
as mudanças no clima
da Terra e de levantar
questões sobre as mu-
GETTY
danças climáticas.

68 SUPER
James Green,
ex-diretor científico
da NASA
«A humanidade terá pessoas a
viver na Lua e em Marte»
Após quarenta e dois anos de carreira na NASA, este cientista conta-nos com entusiasmo a sua
trajetória e reflete sobre os desafios colocados pelo conhecimento do Universo.

Entrevista de MANUEL RUIZ RICO, jornalista

O
penúltimo diretor cien- A 17 de setembro de 2021, a NASA anunciou em comu-
tífico da agência espacial nicado, que se reformaria em janeiro de 2022, pondo
americana reformou-se a fim a uma carreira de 42 anos na agência espacial. Na
1 de janeiro de 2022, após declaração, resumiu o trabalho da NASA: «Estamos
42 anos na NASA, um sempre à procura de formas de fazer o impossível». Po-
período em que viveu e de- deria mencionar algum projeto ao longo dos anos que
sempenhou um papel de lhe pareceu impossível à primeira vista?
liderança numa «segunda Claro! Um dos mais «impossíveis» projetos recentes
revolução da ciência pla- que fizemos foi a aterragem de um rover de uma tone-
netária». SUPER conversa lada métrica em Marte. A entrada do rover no planeta e
com Green via Zoom a par- a aterragem foram incríveis!
tir da sua residência em
Maryland. No seu escritório O rover Curiosity em Marte é a cereja no topo da sua
está rodeado por «brinquedos espaciais»: uma ampulheta carreira na NASA, mas voltemos ao início. Nos anos
dupla com regolito da Lua e de Marte (o primeiro é mais fino 60, quando era um jovem em Burlington, Iowa, foi
e move-se mais rapidamente), ou um pedaço do meteorito uma inspiração ter experimentado os primeiros suces-
Chelyabinsk, que atingiu a Terra em fevereiro de 2013, com sos da NASA, como a corrida espacial ou a chegada à
uma parte preta e uma parte cinzenta, sendo a parte preta lua em 1969?
a chamada «crosta de fusão», a parte onde a rocha der- Absolutamente! Estou na indústria espacial há mais
reteu quando atingiu a atmosfera. «Um bom amigo russo de quarenta e poucos anos... assim, vi na televisão a
enviou-mo», disse. Os seus quarenta e dois anos na NASA alunagem de Apollo! Eu andava no instituto e foi espe-
abrangem grande parte da história da agência espacial. tacular. Mas eu já estava muito interessado na ciência

SUPER 69
O Centro Espacial do Cabo Canaveral
da NASA na Florida foi um projeto
SPAN concebido por Green que reu-
niu todos os centros e investigado-
res da agência espacial americana e
mais tarde também outras agências
SHUTTERSTOCK

espaciais do planeta, como a euro-


peia e a russa.

antes disso porque a minha escola secundária tinha te existia. Não sabíamos muito sobre a Lua. De facto,
um grande telescópio. Chamava-se Observatório Wit- como exemplo, pensava-se que o regolito lunar era
te, por John Witte, uma pessoa muito conhecida em tão espesso que os astronautas ao alunar ficariam
Burlington, de onde venho, aos pés do Mississippi, no presos até ao peito e incapazes de sair. As sondas que
centro dos Estados Unidos. Witte possuía uma farmá- foram enviadas resolveram isso, e foi crucial. É por
cia e tornou-se muito rico. Adorava a astronomia, por isso que, assim que Neil Armstrong saiu do módulo
isso comprava telescópios e quando se fartava de um, espacial e pisou a Lua, a primeira coisa que fez foi vi-
doava-o ao instituto. rar-se e olhar para as pernas do módulo espacial onde
Aldrin estava, para verificar se não estava a afundar!
Era um telescópio muito potente? Verificou-se que as pernas só penetraram o regolito
Tinha um refrator Alvan Clark de doze polegadas [30,50 lunar cerca de uma polegada [2,54 centímetros]. E a
centímetros]. Tinha sido fabricado por volta de 1932 ou partir daí, ele olhou para a escada. Tudo isto aconte-
1934 e foi doado ao instituto nos anos cinquenta. Come- ceu quando eu era adolescente e é por isso que era tão
cei a utilizá-lo um pouco mais tarde, entre 1967 e 1969, fácil para mim ficar viciado em ciência espacial. De-
nos meus anos de instituto em Burlington. Tive a opor- pois terminei o ensino secundário e na Universidade
tunidade não só de observar, mas também de construir de Iowa conheci James Van Allen. Ele era um homem
instrumentos para o telescópio, como um adaptador de e um cientista maravilhoso.
câmara para astrofotografia. Mas, é claro, outra inspira-
ção para mim foi oStar Trek! Graças a Van Allen, já esteve envolvido nas sondas Vo-
yager 1 e Voyager 2, que ainda continuam a funcionar
A ficção científica como fonte de inspiração. e já sairam do Sistema Solar.
A série começou em 1966, vi o primeiro episódio e a É verdade, analisámos algumas informações das
partir daí vi todos os episódios, todos os episódios desde sondas e escrevemos alguns artigos científicos, jun-
o primeiro! Era muito diferente de tudo o que tinha sido tamente com o meu assessor, Don Gurnett. Ele foi
feito anteriormente na televisão. Por isso tive ciência e da primeira geração de estudantes de Van Allen, que
ficção científica, e foi assim que entrei nisto. Eu que- esteve envolvido em todos os projetos do seu depar-
ria fazer o que estava a ver: modelos espaciais, viagens tamento, que era muito pequeno, e falávamos muito
espaciais, astronautas, fazer o trabalho científico para uns com os outros e Van Allen sabia o que eu estava a
tornar possível a exploração humana do espaço. E nisso, fazer e o que cada um de nós estava a fazer. Ele estava
a ciência planetária liderou o caminho. sempre presente para nos ajudar.

Em que sentido? Foi essa a sua via de acesso para a NASA?


Os humanos chegaram à Lua em 1969, mas antes Sim, foi. O meu supervisor de tese de doutoramento
disso houve mais de vinte missões de satélite, e isso disse-me: «Podes ir dar uma palestra onde quise-
porque a NASA teve de descobrir que tipo de ambien- res para contar o que estamos a fazer aqui». Assim,

70 SUPER
enquanto fazia o meu mestrado em três anos e en-
quanto terminava a minha tese de doutoramento em
mais três anos, fui a dezoito conferências e assim que
terminei a minha tese de doutoramento recebi cinco
ofertas de emprego. Isso ajudou-me muito porque eu
tinha várias opções à minha escolha. E foi assim que
escolhi juntar-me ao Marshall Space Flight Center da
NASA em Huntsville, Alabama [este centro foi criado
em 1960 sob o nome do Presidente Dwight Eisenho-
wer, em homenagem ao General da Segunda Guerra
Mundial George C. Marshall, e o seu primeiro diretor
foi, curiosamente, o antigo nazi Werner von Braun,
o engenheiro alemão responsável pelos foguetes V-2
lançados sobre Londres nessa guerra]. Fragmentos do
Chelyabinsk
Isso foi em 1980. Esteve envolvido na criação da primei- Meteorito de Chelya-
ra Internet da NASA e do chamado «tanque simulador binsk encontrado em

SHUTTERSTOCK
2013 perto do Lago
de flutuabilidade neutra», onde os futuros astronautas Chebarkul, Rússia.
ensaiam em condições similares ao espaço. Chegou ao
Centro Marshall com a ideia de se tornar um astronauta?
Em julho de 1979, defendi a minha tese e em feverei-
ro de 1980 juntei-me à NASA. Acabei por fazer cerca
de cento e cinquenta mergulhos no tanque, mas foi Como é que a rede cresceu a partir desse ponto?
quase mais por diversão, isso foi suficiente, nunca Em 1985, milhares de computadores já estavam li-
quis ser astronauta. Estava muito concentrado na gados nos Estados Unidos, e nesse ano ligámo-nos
minha carreira científica, pesquisando, escrevendo à Agência Espacial Europeia, e foi assim que a NASA
artigos, analisando dados... Mas dava-se o caso que se ligou transatlanticamente. Em 1987, chegámos ao
na Universidade de Iowa eu tinha feito mergulho, e Japão, e em 1992 chegámos a Moscovo e iniciámos a
tornei-me presidente do Clube de Mergulho da Uni- ligação com a Agência Espacial Russa. A partir daí, en-
versidade. Organizávamos mergulhos em rios, lagos, treguei o testemunho a outro grupo de trabalho.
mas tudo por diversão. E claro, quando cheguei ao
Marshall Center, onde tinham este enorme tanque, Vejo um elemento de ligação entre essa primeira Inter-
e vi que havia um programa de formação de astro- net, que é uma ferramenta para a ciência aberta entre
nautas, quis envolver-me e tive a oportunidade. Eles cientistas, principalmente, e o podcast que a NASA
tinham um exame, era preciso fazer um mergulho no lançou em Novembro de 2017 quando o senhor era o
tanque e, claro, eu tinha muita experiência de mergu- seu cientista principal, como parte da estratégia para
lho, e tínhamos sessenta pessoas a candidatarem-se e abrir a agência espacial e as suas descobertas ao públi-
eles tinham de selecionar treze, e eu acabei por ser co em geral. Vê isso também?
um deles. Mas nunca me candidatei a astronauta, ha- Sim. Foi engraçado como tudo começou. Em 2015,
via tantas coisas a acontecer cientificamente, que me a equipa de comunicação da NASA veio ter comigo
dava por satisfeito em dedicar-me a elas. e disse-me que queria iniciar um podcast e pergun-
taram-me: «Fá-lo-ias?» Claro, contem comigo! E
Assim surgiu a sua experiência no projeto SPAN. de seguida perguntaram-me: e como o chamarias? E
Foi a primeira Internet da NASA! Fi-lo e foi muito re- eu disse: Gravity Assist. Penso que é um bom nome
volucionário. Uma das coisas de que mais gostei ao por duas razões. Todas as pessoas neste mundo da as-
aderir ao Centro Marshall foi que ali deixavam fazer tronomia se dedicam a isto porque algo aconteceu, a
tudo o que precisasse ou pensasse que podia ajudar certa altura mudaram de direção e foram impelidas
as atividades do centro. Estávamos no Alabama, mas para os seus objetivos. É exatamente isto que uma
havia centros e investigadores em todas as regiões nave espacial faz para ganhar energia e alcançar o
dos Estados Unidos, por isso perguntei-me: como é próximo objeto no espaço, esse efeito chama-se gra-
que todos nos podemos ligar? Tive a ideia de utilizar vity assist [vem de gravity assistance ou assistência
uma rede informática, todos tinham já uma ou outra à gravidade, que entra em ação quando uma nave es-
máquina desse tipo, decidimos por um protocolo, que pacial ou uma sonda espacial chega a um planeta e
não foi originalmente TCP/IP, chamava-se DDCNP, e tira partido da sua órbita para ser impulsionada para
iniciámos a rede. E no final de 1980 já estávamos a a frente e continuar a viajar através do espaço; sem
fazer e-mails, mensagens telefónicas, podíamos ter este impulso, seria impossível ter alcançado todos os
uma conversa com seis pessoas diferentes cada uma planetas do Sistema Solar, como diferentes sondas da
num lugar dos Estados Unidos, como o Messenger faz NASA e de outras agências espaciais têm feito nas úl-
agora, mas em 1980! timas décadas].

«No Centro Marshall deixavam fazer qualquer coisa que


pensasse poder ajudar a atividade do centro»
SUPER 71
Em 1985 entrou para o Goddard Space Center em que está lá são campos magnéticos, campos elétricos,
Washington DC, onde a NASA tem a sua sede. Desde correntes de alta velocidade, ventos solares de baixa
esse ano até 2006, esteve envolvido em projetos tais velocidade. Tudo está interligado.
como IMAGE, WIND e POLAR, centrados em conhe-
cer o nosso planeta. É curioso como a NASA é fre- Foi esta a base para o atual enfoque da NASA especifi-
quentemente considerada como uma agência voltada camente na investigação das alterações climáticas e no
para o espaço, fora do planeta, mas a Terra está no combate às alterações climáticas?
centro de muitos dos projetos e missões da agência. O A mudança climática era uma questão em que a NASA
que aprendemos com missões como estas lançadas e já estava envolvida na altura. De facto, o que sabemos
desenvolvidas no final do século XX e início do século sobre a Terra e o facto de podermos prever mudan-
XXI? ças no clima começou realmente com o trabalho dos
Essas missões foram o início da compreensão daqui- cientistas planetários da NASA nos anos 70 e início dos
lo a que chamamos clima espacial. Na Terra temos anos 80, quando estudavam Vénus.
tempo atmosférico, com vento, chuva, tornados,
furacões... No espaço, o Sol pode tornar muito difí- O que aconteceu?
cil operar devido ao tempo que produz, falamos de Quando cientistas planetários como Jim Hansen e o seu
erupções solares, fluxos de partículas de alta velo- grupo chegaram ao Goddard Institute for Space Stu-
cidade, fenómenos que podem realmente matar os dies, o GISS, olharam para Vénus e perguntaram-se
astronautas. Todas essas missões e essas sondas foram porque estaria tão quente, porque é que a pressão é tão
concebidas para tentar descobrir o que o Sol podia fa- grande. E descobriram que existia um efeito de estufa
zer, a interação entre o Sol, o vento solar e a Terra. O descontrolado. Assim, pegaram na sua pesquisa sobre
campo magnético da Terra fornece um amortecedor a atmosfera de Vénus e aplicaram-na à Terra, criaram
contra o impacto do vento solar e está constante- um modelo da Terra, onde tinham os oceanos, a terra, a
mente a reorganizar-se, tentando capturar o vento atmosfera. Para além disso, começaram a executar o seu
solar. É uma batalha constante, por vezes perde e re- modelo. Foi aí que surgiu a ligação com o CO2 e foi pos-
sulta em fenómenos climáticos espaciais extremos e sível ver o que estava a acontecer na Terra. Assim, todo
é quando temos problemas com satélites, problemas o conceito do que acontece no nosso planeta quando se
de comunicação e até os aviões têm de voar a uma al- adiciona CO2 à atmosfera foi feito por cientistas da NA-
titude diferente para evitar estas zonas de radiação SA e foi feito pela primeira vez por cientistas planetários
e manter os passageiros em segurança. Aprendemos que olharam para o que estava a acontecer em Vénus.
muito com estas missões, mas acima de tudo que a Essas previsões têm sido muito importantes porque sa-
Terra não está isolada no universo, tudo está ligado. bemos agora que temos de nos afastar dos combustíveis
Olhamos para o espaço e vemos tudo preto, mas o que fósseis para energias alternativas e também que temos
não vemos com os nossos olhos é o que está lá, e o de remover CO2 da atmosfera, exatamente o que faze-

O rover Curiosity Mars explorando a


superfície do planeta vermelho.
Green diz que um dos projetos que
parecia impossível era que um tal
veículo, pesando uma tonelada mé-
trica, pudesse entrar e pousar no
planeta Marte.
SHUTTERSTOCK

72 SUPER
mos nas estações espaciais, é o que fazemos todos os Sistema Solar, na segunda região onde se encontram os
dias na NASA ou os astronautas morreriam! chamados gigantes de gás. Há fortes provas que nos le-
vam a essa teoria e não foi refutada, não há observações
Depois desses anos, o seu último período na NASA, an- que eu saiba que contradigam isso, por isso espero que
tes de ser nomeado o cientista chefe da agência espa- esteja lá e que o encontrem e que seja suficientemente
cial, chegou em 2006, quando virou toda a sua atenção grande para o podermos ver com um telescópio.
para a ciência planetária como diretor desse programa
até 2018. Nesses doze anos, consigo ao leme, teve lu- Tal como os sucessos da ciência planetária dos anos
gar uma sucessão de missões: New Horizons sobrevoou 50 e 60 foram a base para levar os humanos à Lua em
Plutão, Messenger chegou a Mercúrio, Juno a Júpiter, 1969, serão estes sucessos o primeiro trampolim para
Graal A e B à Lua, Dawn aos asteróides Vesta e Ceres, e, futuras missões que nos levarão à Lua e a Marte?
como marco final, o desembarque do rover Curiosity É claro! Cada uma das nossas missões leva-nos à missão
em Marte. Estamos a viver uma segunda revolução na seguinte. Cada missão responde a algumas perguntas
ciência planetária? e levanta outras, dizemos a nós próprios: bem, agora
Tive o privilégio de estar na liderança desse programa que precisamos de saber isto e aquilo, coisas novas, e pas-
iniciou a segunda era dourada da exploração planetária. samos à seguinte.
Foi uma tremenda equipa de cientistas e engenheiros,
não só na sede da NASA no Goddard Center em Washing- Falando de Marte, disse recentemente que encontrar
ton, mas também no JPL [o Jet Propulsion Laboratory na micróbios em Marte será tão revolucionário como de-
Califórnia]. Eram tão bons que tudo o que empreendemos cifrar o ADN. Porquê?
foi um sucesso. Um sucesso levou ao seguinte e pudemos Encontrar vida em Marte leva a todo um novo conjun-
continuar a exploração devido a todo o conhecimento to de questões tais como: estamos ou não relacionados
que produzimos. Tudo isso ajudou-me como diretor com com essa vida? Se essa vida é semelhante, então como
o orçamento na Divisão de Ciências Planetárias: quando é que o nosso ADN é diferente ou como é que eles são
comecei era de $1100 milhões e iguais? Será uma oportunidade
quando saí era de 2200 milhões, realmente excitante para deba-
duplicou em doze anos. Estou «Encontrar vida em ter estas questões.
muito orgulhoso disso, de tudo o
que aprendemos sobre o Sistema Marte leva a um novo E o plano agora não é apenas
Solar e o nosso lugar nele. voltar à Lua e chegar a Marte,

Pode mencionar alguns exem-


conjunto de questões: mas estabelecer-se lá, criar até
um habitat, um povoado está-
plos disso?
Concluímos a exploração inicial
estamos ou não vel, uma civilização primordial
fora da Terra, Estamos a falar de
do Sistema Solar. Orbitámos
Mercúrio com Messenger e de-
relacionados com uma aspiração viável e realista?
Sim, penso que sim. O ambiente
pois alcançámos Vénus, Júpiter,
Saturno, Urano, Neptuno e fi-
essa vida?» na Lua é muito severo, o am-
biente em Marte não é tão duro,
nalmente a passagem aérea de embora tenha outros desafios
Plutão em 2015. Temos agora conhecimentos básicos de associados. Mas a humanidade, provavelmente nos
três grandes porções do Sistema Solar: o planeta terres- próximos cem anos, terá um número de pessoas a vi-
tre, os gigantes de gás e, em terceiro lugar, os corpos ver na Lua e mesmo em Marte. Nos últimos vinte anos
gelados, que se estendem para além de Neptuno, dos houve humanos a viver no espaço, orbitando a Terra,
quais Plutão é um deles. Isto é o que chamamos o Cintu- na Estação Espacial Internacional, não há razão para
rão de Kuiper, que é composto por dezenas de milhares pensar que o mesmo não possa acontecer com pessoas
e do que não são senão resquícios da formação da nossa vivendo na Lua e em Marte.
galáxia e da formação dos seus planetas. O Sistema So-
lar tem agora três secções, quando eu estava na escola Para estas missões, será que a descoberta de enormes
só conhecíamos alguns. Dizia-se do cinturão de Kui- quantidades de água nos polos lunares tem sido um fa-
per que eram os restos de um planeta explodido, mas tor chave?
isso não é verdade! Sabemos agora que estes corpos são Sim, nas zonas de sombra permanente da Lua acre-
exatamente o oposto: são as peças primordiais de um ditamos que existem pelo menos várias centenas de
planeta incipiente que tenta formar-se e a razão pela milhões de toneladas de água.
qual não se juntaram para formar um planeta é devi-
do à ação de Júpiter. Este planeta está muito próximo e O que acontecerá à Estação Espacial Internacional, se-
quando os objetos de Kuiper querem juntar-se, a ação rá que ela ainda lá estará?
de Júpiter impede-o. Foi por isto que a missão Dawn foi A atual Estação Espacial Internacional não foi a primeira
lançada. que a humanidade teve, houve uma anterior, a SkyLab
[lançada pela NASA em Maio de 1973], que já fez um ex-
Falando precisamente sobre isto, acha que existe o celente trabalho e fez muitas descobertas. Por isso, não
chamado Planeta 9? creio que a atual esteja para sempre, mas existem novas
Penso que há ali algo, quer seja um objeto em órbita do ideias de empresas privadas como a Axiom ou a Blue
Sol ou não, mas penso que há boas provas de que objetos Origin, que estão a desenvolver conceitos para estações
adicionais, provavelmente objetos do tamanho de um espaciais com fins comerciais, e penso que uma vez ter-
planeta, foram lançados para a parte profunda do nosso minada a atual estação, outra será lançada. e

SUPER 73
SA ER XT UÍ CA UL LI DO A D E

PORQUE É QUE O

74 SUPER
SHUTTERSTOCK
KINKY ESTÁ
TÃO NA MODA?
O que faz o kinky sex estar na moda? Que nos diz isso de nós e do nosso
tempo? Porque é tão bem-sucedido hoje em dia um erotismo que se definiu
a si mesmo como «sinistro» e «retorcido», que persegue esse ponto de
estranha «exclusividade» e se nega a ser normatizado?

Texto de VALÈRIE TASSO, sexóloga

SUPER 75
SHUTTERSTOCK

U
m neologismo para começar, vezes são simplesmente uma ocorrência ridícula, como a
Forges explicava-o desta forma. «portavoza», um neologismo que não parece prosperar
Dois prisioneiros lamentam, por ser ridículo em vez de inclusivo e igualitário. O que
na sua cela, as circunstâncias faz com que hoje em dia nos deparemos com uma suces-
que os levaram para lá. «Estou são esmagadora de neologismos é a ideia, sempre falsa, de
aqui para dizer em linha em que se descobre algo que não existia antes e se apresente
vez de online.» O outro prisio- esse algo como a última novidade a ser filiada ou com-
neiro, com um olhar franzido, prada. Por vezes é verdade que os neologismos técnicos
responde: «Bem, estou aqui são hoje em dia necessários numa tecnologia disruptiva e
para dizer aparelho em vez de acelerada como a nossa, mas geralmente é desnecessário
gadget». «Caramba, és mes- ou tolo utilizá-los no outro campo que, juntamente com
mo um provocador...». De a tecnologia, normalmente os monopoliza: na descrição
facto, esta coisa (esta thing) dos neologismos passa as do ato sexual humano. Por trás de cada novo termo que
raias da anedota (da joke, se é que nos entendemos). Não nos é apresentado nesta área pelas revistas do coração ou
é que um neologismo seja em si algo negativo para a lin- do bem-estar, há quase certamente algo que os gregos já
guagem; pelo contrário, é essencial para a sua evolução fizeram, e se não o fizeram é porque ainda não tinham
natural. Por vezes é absolutamente necessário; quan- inventado as pilhas. Mas a dupla sexo/novidade vende
do designa algo que simplesmente não existia antes; do muito, atrai muita atenção, é irresistível para qualquer
«automóvel» à «tomografia axial computorizada», por canal de comunicação que dependa do público. Isto é o
exemplo, ou a «descarrilar», que apareceu pela primeira que acontece, entre mil outras denominações neolo-
vez num dicionário em 1853, porque sem o aparecimen- gistas (entre elas «poliamor»), com o muito celebrado
to de comboios nada poderia descarrilar. Por vezes, kinky sex, sex kinky ou o sexo kinky; que é algo já mais
também é necessário um neologismo para algo tão velho do que inventado e que não é porque muitos o descobrem
como o pão, mas usa-se para variar, por exemplo, uma e outros o apresentam como um neologismo que não tem
semântica negativa que está implícita pelo uso do termo a sua própria história.
— ver o exemplo de «subnormal» para «pessoa com
deficiência», originalmente, ou «pessoa com diversi- DE QUE ESTAMOS A FALAR QUANDO FALAMOS DE SEXO KINKY? Se
dade funcional» mais recentemente, ou a muito antiga pegarmos no Cambridge Dictionary, a entrada kinky
«frigidez» para se referir a uma mulher que sofre de aparece como um adjetivo informal que designa o invul-
anorgasmia. Mas há outras ocasiões em que os neologis- gar, o estranho, algo que tem componentes excitantes
mos são simplesmente desnecessários e refletem apenas e especialmente aplicado a comportamentos e ideias de
o desejo que as pessoas sentem de se mostrarem atua- natureza sexual. Como adjetivo, aparece também noutros
lizadas, revelando, a maior parte das vezes, uma forma dicionários associados com «encaracolado», «ondula-
de colonização cultural pelo império norte-americano, do» (em referência ao cabelo) mas o seu significado mais
como os anglicismos de que Forges fazia troça e outras frequente é, exclusivamente em relação ao sexo, como

76 SUPER
sinónimo de «perverso», «sujo» ou «picante». A sua do que vai desde os anos cinquenta até, especialmente,
origem com esta última semântica remonta possivelmen- ao final dos anos sessenta do século passado. Duas teorias
te a meados do século XIX e como um adjetivo clínico. que envolvem dois grupos: homossexuais e praticantes de
Já estamos a ter uma ideia. Em França, normalmente BDSM. Os primeiros definir-se-iam orgulhosamente co-
usa-se um adjetivo como sinónimo de kinky: tordue, ou mo «kinksters» (termo não-normativo), aceitando sem
seja, «retorcido». A erótica kinky é, portanto, aquela que qualquer dissimulação o carácter patológico perverso
gosta de romper com o normativo, o convencional, o ba- pelo qual, na altura, foram banidos pela sociedade e pela
nal, e a sua expectativa é sempre de abrir novos territórios clínica, que os considerava, especialmente a psiquiatria
na expressão da sexualidade do praticante. Como o seu no seu DSM (Manual de Diagnóstico e Estatística), como
sustento radical e o seu objetivo são variações, abrange doentes mentais, aceitando-se como orgulhosos «des-
em si um número infinito de eróticas que podem variar viantes» e reivindicando corajosamente a categorização
desde visitas a clubes de casais liberais, voyeurismo/exi- que lhes era feita sem sair do armário (sem normatizar a
bicionismo, posições coitais exóticas, gang bang, sexo sua particularidade). Do segundo grupo, praticantes de
em grupo, BDSM... e qualquer erótica que se afaste do que BDSM, vale a pena dizer algo: o BDSM é um campo muito
pode ser considerado «convencional». Na origem do ter- mais restritivo e purista do que se poderia pensar. Foi e
mo e na sua curiosa inclinação para o proibido, aquilo que em grande medida ainda é hoje, pois não esquece que nas
está normalmente associado ao vício ou diretamente às suas origens modernas (a partir de meados dos anos 40),
peculiaridades eróticas (o que é popularmente conhecido a organização castrense e a disciplina militar fazem parte
como «parafilias»), reside uma reivindicação absoluta- da sua constituição. Conheço muitas pessoas firmemen-
mente legítima com a qual nós, sexólogos, também temos te envolvidas neste erotismo que passam mais tempo a
vindo a lutar desde a origem da nossa disciplina; a des- pensar no que é próprio de cada erótica no espetro muito
patologização de eróticas que não se conformam com o amplo do erotismo BDSM ou sobre quem recebe o rótu-
discurso normativo do sexo e que, portanto, são moral- lo de autêntico praticante do que o tempo que dedicam
mente marginalizados pelo coletivo ou entendidos pela na realização da sua própria erótica. Este carácter, diga-
clínica como uma «alteração» na qual há sempre algum mos exclusivo, significa que o neófito ou a pessoa curiosa
traço de personalidade de natureza patológica subjacen- que se aproxima destes territórios sem o devido respeito
te. Entre as teorias sobre a origem do termo e da cultura por uma longa tradição ou que simplesmente vê o BDSM
kinky, as mais plausíveis são duas que poderiam atuar em como uma forma de praticar sexo e não como uma for-
sinergia num contexto cronológico que cobriria o perío- ma de compreender a existência, é geralmente encarado
com uma certa desconfiança. Assim, encontramo-nos
nesse período inicial dos anos sessenta com um grupo de
pessoas que começam a experimentá-lo em massa, por
O erotismo Kinky deixa o simples curiosidade lúdica de ter uma nova experiência
erótica, que têm dificuldade em compreender a com-
estabelecido, o normativo, plexidade e o formalismo do erotismo mal denominado
sadomasoquista. A comunidade «bedesemera» é um

e abre a quem o pratica coletivo rigoroso que, devido à inclinação para simples-
mente bicar os recém-chegados e à sua falta de protocolos

novos territórios para


expressar a imaginação

SHUTTERSTOCK

SUPER 77
78 SUPER
SHUTTERSTOCK
e formalismos bem definidos, desqualifica-os, diferen- sua sexualidade e assumem práticas eróticas que pode-
ciando-os através da utilização de um termo para eles: ríamos chamar «no limite». Naturalmente, estas fontes
kinky sex. «Não fazes BDSM, apenas fazes kinky sex.» de informação não apresentam o kinky sex como tradi-
Isto não implica que ambas as atitudes não mantenham cionalmente tem sido (nem o fazem, por exemplo, com
um princípio básico: o respeito pelas pessoas envolvidas. o BDSM), mas antes apresentam e, ao fazê-lo, criam uma
As siglas, originárias do BDSM, «SSC» (Safe, Sane and forma de compreender o kinky sex adaptado a todos os
Consensual: «são, seguro e consensual») ou o mais re- públicos, especialmente millennials, que são o seu público
cente, talvez provenientes do sexo kinky, «RACK» (Risk mais ávido por novidades. Neste esforço para branquear o
Aware Consensual Kink) fazem com que sejam, ou de- que gosta de permanecer obscuro, este erotismo é promo-
vam ser, eróticas entre adultos que sabem o que estão a vido como o «supremo» sexo; algo a que todos devemos
fazer, que concordam no que estão a fazer e que sabem aspirar (mesmo aqueles que passaram metade das suas vi-
como estabelecer um limite. Se estas condições rigoro- das sem se cortarem em questões sexuais), desde que não
sas e maduras não forem cumpridas, nem o BDSM nem sejamos preguiçosos e temerosos de uma mudança nas
o sexo kinky são praticados. Continuando com a aproxi- nossas vidas. A segunda razão é que o sexo kinky assim
mação entre ambas as eróticas, devemos salientar de que apresentado explica muito sobre o nosso tempo em ma-
não é claro, entre os estudiosos, se foi o sexo kinky ou o téria sexual, os nossos objetivos, a nossa insegurança, os
BDSM, (embora se inclinem para o primeiro e nos anos nossos medos e sobretudo as nossas submissões ao quadro
setenta), aquele que cunhou a famosa expressão atual de ideológico dominante. Assim, o kinky sex é exatamente
«sexo baunilha», que designa as pessoas de rotina sexual o que se espera de nós em todas as outras áreas da nossa
que nunca se atrevem a experimentar novos sabores no existência, na forma como nos «conectamos» uns com os
vasto espetro das eróticas existentes, porque pedem sem- outros, e na forma como cumprimos os sofismas e conse-
pre «baunilha». Como dizemos, entre as duas teses, a da lhos que explicam o nosso mundo. O kinky sex faz tudo:
reivindicação LGTBIQ+ (que na altura não se chamava seja flexível e adaptável (ao que o quadro ideológico ditar),
LGTBIQ+ porque a sigla data dos anos noventa) e a discri- qualquer compromisso é um fardo, desfrute de tudo ins-
minatória do BDSM pode estar a origem da aplicação do tantaneamente e sem reticências, «porque vale a pena»,
termo na sua semântica atual. seja empreendedor, seja infi-
nitamente criativo, não deixe
COMO É O SEXO KINKY HOJE EM
DIA? Voltando-nos para o sexo
O kinky sex carateriza-se que nada e ninguém o limite ou
seja um obstáculo à sua própria
kinky e para a forma como é
anunciado ou compreendido
sobretudo pela inovação, autorrealização... E em caso de
dúvida, faça-o simplesmente.
hoje em dia, é importante in-
sistir que o que prevalece é a
afastando-se do «sexo ENTRE A REALIDADE, A FAN-
TASIA E O DISPOSITIVO. Mas
falta de rotina, a inovação e a
variedade. A rotina, a «zona baunilha», da rotina, dos chegamos à parte menos be-
de conforto», estabelecer-se la: à realidade, a esse mundo
num determinado lugar e não que não se atrevem a de constrangimentos, muros,
se mover de lá é algo a banir, impedimentos, doutrinações
não apenas no campo sexual. experimentar novos sabores e frustrações que nos causam
Este ódio por tudo o que é problemas. Chegamos, por
estável ou conhecido ou que exemplo, ao consultório de um
exige perseverança é um fenómeno sociológico recente sexólogo. Os sexólogos são fundamentalmente aquelas
de enorme profundidade que explica muito sobre nós pessoas que sabem que uma existência humana não pode
próprios, a nossa relação com o mundo e as relações que ser resolvida com um manual de autoajuda, que nem tu-
estabelecemos (erotismo). O sexo kinky hoje em dia é o do o que se pretende fazer se torna realidade, e que não
sexo daqueles que gostam de mordiscar, daqueles que es- basta desejar muito por algo, como fez Peter Pan, para
tão perpetuamente à procura de novas experiências, se que aquela coisa voadora se torne realidade. E sabemos
puderem ser cada vez mais fortes, melhor, daqueles que isto porque temos de lidar diariamente com os proble-
têm medo de estar «fixos» em nada e manter uma «flui- mas, entre muitos outros, que este pensamento mágico
dez» (um termo explícito do sociólogo Bauman) para que gera. Problemas que, hoje em dia, são gerados mais num
nem os seus atos nem, consequentemente, eles próprios imperativo de alegria e de desempenho crescente (como
possam parar, nem mesmo naquilo que realmente os sa- o PIB) do que num imperativo repressivo e limitador.
tisfaz, porque o que realmente os satisfaz é não ficarem Uma das coisas frequentes que nos acontece, por exem-
parados. Mas porque é que um erotismo que se define plo, quando abordamos uma primeira visita com alguém
como «sinistro», «torcido», sem qualquer vontade de que nos vem consultar é a categorização dessa pessoa na
ser normalizado porque gosta deste ponto de estranha sua apresentação: «Boa tarde, Valérie, olhe, eu sou...»,
«exclusividade», é tão bem sucedido hoje em dia? O que e aqui podemos colocar o adjetivo que quisermos e que o
faz o sexo kinky estar na moda, o que diz isto sobre nós e sujeito entenda como uma substância de si mesmo: «...
os nossos tempos? Vamos dar um passo de cada vez. poliamoroso, bissexual, praticante de sexo kinky…».
A primeira coisa que lhe apetece dizer é: «Não, você é
UM FENÓMENO POPULAR. A sua popularidade crescente de- muito mais do que isso, tal como é muito mais do que
ve-se principalmente ao facto de as revistas de pseudo um arquiteto, um estudante para exames competitivos
divulgação sexual e vários outros disparates que procuram ou um reformado». Mas em matéria sexual compreen-
diariamente algo novo para captar a atenção dos especta- de-se rapidamente algo: para um jovem, fazer de uma
dores, e portanto dos anunciantes, terem encontrado um preferência erótica como o kinky sex uma caraterização
filão no facto de haver pessoas que são muito ousadas na essencialistade si próprio poupa-lhe muitos problemas.

SUPER 79
Levam este cartão de visita nas mãos, têm-no tatuado gem sobre si próprio como ser sexual, é fundamental, e
porque os salva de fazer aquela coisa difícil e pesada que qualquer interrupção ou bloqueio na mesma conduz nor-
aqueles que já têm o cabelo grisalho tiveram de fazer, de malmente a dificuldades mais cedo ou mais tarde. Agora
desvendar e seduzir o outro; de sublinhar o livro e de fantasio, por exemplo, sobre sexo em grupo (ou não),
recuar três páginas porque não compreendemos bem al- talvez amanhã eu o queira (ou não), possivelmente de-
guma coisa, de gerir no terreno lamacento e exigente da pois de amanhã tê-lo-ei (ou não) é o esquema básico que
ambiguidade. Agora, para «conectar» (não para «vin- nos permite crescer, quer digamos sim ou não em cada
cular-se», que é algo que, como qualquer compromisso, fase; isso permite-nos saber do que gostamos, do que não
não é muito bem considerado), é mais simples dizer: gostamos e, consequentemente, com o que nos identi-
«Olá, o meu nome é Antonio e gosto que me metam o ficamos sexualmente em cada momento. O problema
dedo no ânus». Uma tal introdução poupa-lhes mui- começa quando, como o Fausto de Goethe que queria to-
to tempo e mal-entendidos, evita algumas frustrações, do o conhecimento e experiência do mundo e cada vez
evita que tenham de lidar uns com os outros. O outro já mais rápido, não se pode dizer «pare por um momento,
sabe o que se espera dele, já sabe como nos fazer felizes, você é tão bonito...» sem ser levado pelos demónios. Ou
não tem qualquer justificação para nos dar «mas», e se seja, o problema começa quando se tem de passar o dia a
sabe, estamos totalmente autorizados a «devolvê-lo». experimentar coisas sem poder parar em nenhuma delas,
Tendo feito esta reflexão com vista a explicar porque é sem poder comprometer-se, e nunca se pode realmente
que um mero «acidente», tal como gostar de se envolver consolidar a experiência. Você é o bebé perpétuo que está
em práticas sexuais variadas e à margem, tende hoje em sempre a crescer, mas nunca chega à fase de maturidade,
dia a tornar-se uma «substância» que explica sem ambi- que é a que o faz saber do que realmente gosta e assumir
guidade quem se é, concentramo-nos mais no kinky sex
e na sua explosão nos nossos tempos.
Todos os sexólogos sabem que a sexualidade, tal como
a personalidade, é um fenómeno plástico que evolui, que
se deve desdobrar com o passar do tempo e da experiên-
cia. Sabemos que não há problema, pelo contrário,
em explorar a própria sexualidade até aos seus li-
mites axiológicos (os valores que se tem, que
também são dinâmicos). Esta explora-
ção, esta rutura, especialmente
nas fases iniciais de aprendiza-

80 SUPER
a responsabilidade pelo que é
o seu gosto. O kinky sex, co-
O problema é tentar da sua vida, submetendo-se
ao imperativo de desempe-
mo é agora e como algumas
pessoas o entendem, tem algo
tudo sem amadurecer nho exigido pelo patrão ou à
ordem socioeconómica. Um
daquela frase faustiana do nos-
so tempo de «experimentar nada, procurar a último aspeto que gostaria de
salientar nesta estranha as-
tudo mas ficar sem nada», ou sociação entre o kinky sex e
ser o aprendiz perpétuo até sa- novidade continuamente o nosso tempo é o sentido de
ber tudo sobre nada; quando limite. Já dissemos que se al-
numa geladaria se experimen- até se tornar go carateriza este erotismo,
tou uma parte significativa não é apenas a variedade, mas
dos sabores, o lógico e huma-
no é que se sinta preferência
uma rotina que esta variedade se realize
num quadro em que a falta de
por um, dois ou três sabores limites ou autoridade se torna
e se regresse a eles. Não há problema em comer gelado um valor. E aqui encontramos novamente duas caracte-
de baunilha sem experimentar o gelado smurf. Outra rísticas do nosso tempo; quando o «Eu» se torna o único
coisa que é muito típica dos nossos tempos é que quan- guia e os seus desejos a única razão de ser, a autoridade
do se quer novidade a todo o custo para evitar a rotina, e o limite dissolvem-se. «Porque deveria este tipo saber
a novidade acaba por ser rotina. E isso produz cansaço, mais do que eu», «porque deveria uma construção, uma
desespero e melancolia, porque não se sabe realmente convenção ou uma recomendação impedir-me de fazer
o que se quer, talvez porque a verdadeira realização re- o que eu quero fazer?» E, claro, sem regras, sem ordem,
side em cultivar o gosto (saber encontrar cada vez mais no caos, as coisas perdem o sentido. É por isso que tra-
nuances na baunilha) e não tanto em oferecer constantes dicionalmente o BDSM, especialmente, mas também à
novidades a um gosto inexperiente. Outra desvantagem sua maneira o kinky sex, tem sido, dentro do seu carác-
que pode ser associada ao kinky sex é que seja visto como ter extremamente aventureiro e ousado, «disciplinas»
uma manifestação de poder performativo, da capaci- eróticas: ou seja, eróticas «disciplinadas». Altamente
dade de desempenhar, como a confirmação de que, ao regulamentado, normatizado no seu tratamento até dos
praticá-lo, o sucesso é reservado aos «escolhidos». Na mais pequenos detalhes (outra fonte de conflito entre o
realidade, e aqui fala tanto o sexólogo como a pessoa, os BDSM tradicional e as interferências disruptivas que lhe
melhores amantes não são aqueles que fazem mais coi- estão associadas). Relacionada com isto está a irrupção
sas, mas aqueles que fazem uma, duas ou três coisas bem. nas nossas sociedades do idiota como sujeito ativo e bem
Portanto, tenha cuidado em acreditar que ao fazer muitas sucedido, aquele que apenas cuida dos seus próprios in-
voltas uma pessoa torna-se uma espécie de cas- teresses e não tem vergonha de procurar um quadro de
ta superior quando, na realidade, o que se proteção para poder fazer o que lhe convém sem pensar
deve perguntar a si próprio é se no coletivo, nem na sua própria disciplina porque se sen-
não está a repetir o padrão te acima de um ou do outro. Isto leva ao aparecimento de
do que faz noutras áreas verdadeiros canalhas que, declarando-se, por exemplo,
praticantes de kinky sex, estão de facto a tentar legiti-
mar as suas próprias sacanices. Cuidado com eles. A falta
de autoridade (nos nossos dias e nos princípios do kinky
sex tal como o apresentam) implica também uma fal-
ta de iniciação; não há nenhum mestre ou iniciado
experiente que possa transmitir conhecimento ao
iniciado, nem existe um «ritual» que dê o carácter
de regulação e «sacralidade» que o sexo sempre
necessita. É a irrupção de uma vocação que dá prio-
ridade, algo muito do nosso tempo, ao qualitativo
em detrimento do quantitativo; acumular o que quer
que seja necessário é sinónimo de sucesso (e de um
vaguear desnorteado).

ESCLARECIMENTO FINAL. Compreender-se-á que nas li-


nhas anteriores não faço uma análise moral do kinky
sex, que tem, como todas as atividades eróticas, o meu
respeito quando é realizado por sujeitos que, com ele,
ampliam o campo infinito das atividades eróticas huma-
nas e, portanto, as possibilidades de expressão do que é
propriamente humano.Mas não pude resistir a fazer uma
análise crítica do risco que tal erotismo poderia esconder
quando se tornar popular, porque talvez seja um dispo-
sitivo ótimo de conhecimento/poder que perpetua um
modo de vida, uma visão do mundo e, em suma, uma
ideologia que ameaça, mais uma vez na minha opinião,
eliminar qualquer resquício de humanidade. Tenho a cer-
SHUTTERSTOCK

teza de que o bom Forges sabia como marcar o ponto de


vista. E até trazer um sorriso à nossa cara. e

SUPER 81
HA RI ST TÍ CÓ UR LI OA

Os especialistas fi-
GETTY

caram fascinados
com a complexida-
de do mecanismo,
engrenagens dife-
renciais que só
voltaram a ser pro-
duzidas numa fase
adiantada da Idade
Média.

82 SUPER
MECANISMO
DE ANTICITERA
O PRIMEIRO COMPUTADOR DA HISTÓRIA
Não foi feito por extraterrestres, nem caiu nas águas numa época posterior à
do naufrágio de um barco na ilha de Anticitera no século I a.C. Acredite
ou não, o primeiro «computador» da história, um compêndio de antigos
conhecimentos astronómicos e matemáticos, foi uma criação dos gregos,
e embora saibamos cada vez mais sobre ele, há ainda muitos pontos
obscuros a serem esclarecidos.

Texto de ALBERTO DE FRUTOS


Jornalista e escritor

SUPER 83
ASC

E
Encontraram-se
oitenta e dois frag-
mentos do
lias Stadiatis, mergulhador mecanismo, já cor-
de esponjas, depois de descer roídos pelo mar e
quarenta e cinco metros no seu pelo tempo.
escafandro de cobre e no seu
desconfortável fato de lona,
subiu à superfície e descreveu
ao seu capitão, Dimitrios Kon- do seu enigma: «venerável progenitor do hardware
dos, a cena a que acabara de atual», nas palavras do cientista britânico Derek John
assistir. Cadáveres em decom- de Solla Price, que não hesitou em equiparar a sua des-
posição e cavalos putrefactos? coberta à do túmulo de Tutankhamon.
Cético, o seu superior desceu Se quisermos vê-lo por nós próprios, tudo o que te-
às profundezas e, ao regressar à superfície, só pôde con- mos de fazer é ir ao Museu Nacional de Arqueologia em
firmar o seu testemunho. Atenas, onde está listado sob o número de inventário
Uma tempestade tinha detido os mergulhadores na 15.087. Foi isto que o brilhante divulgador e Prémio
ilha grega de Anticitera, a noroeste de Creta, ignorando Nobel da Física, Richard Feynman, fez numa manhã de
que há cerca de 2000 anos, no século I a.C., tinha tido junho de 1980. Tinha acabado de chegar à capital grega
ali lugar um naufrágio. Mas o negócio das esponjas não vindo de Nova Iorque, o voo tinha sido muito cansativo
podia esperar, pelo que os homens continuaram para os e, além disso, os seus pés estavam a doer. Cada sala pa-
bancos de pesca do norte de África e, no regresso, fize- recia amplificar o eco dos seus bocejos (ele tinha visto
ram outro mergulho na zona antes de o comunicarem muitas dessas obras noutros museus), até que se depa-
às autoridades. rou com «uma espécie de máquina com um conjunto
Nos finais do século XIX, o Ministério da Educação e a de engrenagens, muito semelhante ao interior de um
Marinha grega empreenderam uma exploração dos des- moderno despertador». Escreveu à sua família: «Per-
troços e recuperaram esculturas de mármore e bronze, gunto-me se não será uma falsificação».
sondas de chumbo, pedaços de vidro, uma lira e, já em Do tamanho de uma caixa de sapatos (uma de ma-
1901, os primeiros fragmentos do que é hoje conhecido deira, como na altura), a engenhoca chegou até nós
como o mecanismo de Anticitera, ou, por outras pala- em fragmentos dispersos, sob a forma de oitenta e dois
vras, o primeiro «computador analógico» da história. fragmentos (sete relativamente grandes, o resto mui-
to pequenos), incluindo dezenas de rodas dentadas de
COMO A TUMBA DE TUTANKHAMON. É sem dúvida exagerada bronze, corroídas pelo mar e pelo tempo.
a comparação, mas quando vemos a complexidade e os Talvez o navio que o transportava rumasse a Roma
usos que este dispositivo chegou a ter, sentimos o mes- com um saque destinado a um desfile triunfal, mas não
mo espanto que os investigadores que se aproximaram há forma de saber. Mais de cem anos depois, as escava-

84 SUPER
ASC
Este dispositivo
foi utilizado pa-
ra calcular as
fases da lua,
prever os eclip-
ses, determinar
o calendário
dos Jogos Pan-
-Helénicos e
marcar os dias
do calendário
egípcio.
ASC

ções na área continuam: a última, entre maio e junho certamente outros. Além disso, quando se estuda em
de 2022, localizou parte do equipamento do navio, que detalhe o mecanismo de Anticitera, percebe-se que não
será submetido a um exame radiográfico... Até o Co- é a primeira versão, tem mil detalhes que mostram que
mandante Jacques Cousteau explorou o fundo marinho é o fruto maduro de uma longa evolução, não o primei-
com o seu lendário Calypso em 1976. ro que foi experimentado. É mais como o iPhone X do
Acredita-se agora que o mecanismo de Anticitera foi que como aqueles primeiros telemóveis do tamanho de
concebido entre 200 e 100 a.C.. Através de Cícero, sus- um tijolo, e o peso de quatro», brinca o Dr. Christián C.
peitamos que não era o único do seu tipo, embora seja Carman, um especialista em astronomia antiga.
certamente o único que conhecemos. Em De re publica,
o orador refere-se a um engenhoso dispositivo feito por GRÉCIA E ASTRONOMIA. O que tem atraído a atenção dos
Arquimedes que representava os movimentos das cinco especialistas é a complexidade do mecanismo, com
estrelas errantes (os planetas então conhecidos, Mercú- engrenagens diferenciais que só voltarão a ser encon-
rio, Vénus, Marte, Júpiter e Saturno), do Sol e da Lua, tradas já numa fase adiantada da Idade Média. Alguns
e, antes dele, Tales de Mileto e Eudoxo de Cnido teriam sonhadores até o ligaram a civilizações alienígenas (ver o
concebido esferas semelhantes. imaginativo Erich Von Däniken em A Odisseia dos Deu-
«Havia quase certamente mais. Ptolomeu escreveu ses) ou apostaram que foi atirado ao mar numa época
uma obra, Hipótese dos Planetas, no século II d.C., para muito posterior à do naufrágio do navio. Mas não deve-
aqueles que fabricavam tais dispositivos, por isso havia mos recorrer à ficção científica para preencher as lacunas

As universidades de Sonora e Atenas, juntamente com uma empresa


de relógios mexicana, estão a montar um relógio astronómico de
quatro metros de altura baseado no mecanismo de Anticitera
SUPER 85
Consistia em 235
meses lunares
ou 19 anos
solares.

ASC
Media os dias de
acordo com a lu-
nação e os anos
de acordo com o
ciclo solar.
ASC

dos nossos conhecimentos, mas sim rever as convicções do primeiro «computador», composto por duzentos e
que temos sobre a ciência astronómica grega na era pré- trinta e cinco meses lunares ou dezanove anos solares,
-ptolemaica, com gigantes como Gémino de Rodes, autor são baseados nos calendários lunissolares mesopotâ-
de O Isagogo; Hiparco de Niceia, pai do primeiro catálo- micos, que mediam os dias de acordo com a lunação (o
go de estrelas, ou Apolónio de Perga, o grande geómetra. período entre duas luas novas consecutivas), e os anos
O seu conhecimento beneficiou sem dúvida do lega- de acordo com o ciclo solar.
do dos babilónios, reinterpretado por Tales de Mileto Por detrás da vitrina do museu, os principais frag-
entre os séculos VII e VI a.C. Já tinham examinado o mentos são um desafio para nós. O mais importante é A,
movimento dos planetas e baseado as suas previsões que mede 18 x 15 cm, pesa 369 g e tem mais de vinte en-
nos ciclos sinódicos, ou seja, o tempo necessário para grenagens. Tal como os seus irmãos «mais pequenos»,
que um planeta, visto da Terra, reapareça na mesma exibe uma série de inscrições, que têm mantido filólo-
posição em relação ao Sol. No mecanismo de Anticite- gos e paleógrafos entretidos durante décadas, à maneira
ra, a inspiração é óbvia, uma vez que os ciclos mensais de um manual de instruções abstruso.

O mecanismo de
Anticitera exibe
inscrições
abstrusas ao
jeito de um
manual de
instruções.
ASC

86 SUPER
Em 2016, Agamemnon Tselikas, antigo diretor do Ar-
quivo Histórico e Paleográfico da Fundação Educativa
do Banco Nacional, apresentou os resultados de uma
investigação que envolveu a composição de até vin-
te cortes tomográficos para cada uma das letras. A sua
equipa identificou nada menos que 3400 caracteres e
concluiu que o dispositivo, que a princípio se pensou ser
um simples astrolábio, tinha sido feito «para explicar o
universo, de acordo com os conhecimentos astronómi-
cos da época».

UM MODELO DO COSMOS. Coincidindo com esta visão,


membros do University College London (UCL) publica-
ram em 2021 o último grande artigo sobre a peça, «A
Model of the Cosmos in the ancient Greek Antikythera
Mechanism» (Nature), no qual explicaram que o dis-
positivo combinava «ciclos de astronomia babilónica, a
matemática da Academia de Platão e teorias astronómi-
cas gregas antigas».
Mas como fundir tanto conhecimento num espaço tão
pequeno? Aos nossos olhos, o maior desafio reside nas
peças em falta, aproximadamente dois terços do total

REC
O segredo mais bem E se foi obra de
guardado dos gregos já Arquimedes?
não é tão inescrutável, N o Livro I de De re publica, Cícero leva-nos, através da boca
de Públio Fúrio Filo, a uma cena na casa de Marco Mar-
celo, neto do cônsul Marco Cláudio Marcelo, o conquistador
mas continua a ser de Siracusa. Após a captura da cidade, este levou consigo um
planetário feito pelo próprio Arquimedes, um exemplo da inte-
igualmente fascinante ligência inigualável daquele siciliano, que «conseguiu reduzir
a uma única rotação vários percursos que eram desiguais nas
suas próprias trajetórias».
Recordemos que o cerco de Siracusa teve lugar entre 214 a.C.
e 212 a.C. e que algumas fontes sugerem que o mecanismo
de Anticitera data de 200 a.C.. Existe uma ligeira discrepân-
cia, mas podemos excluir a possibilidade de o mecanismo
ter sido construído pelo próprio Arquimedes ou, pelo menos,
por alguém próximo dele? O professor de Filosofia Christián
C. Carman é direto: «Há razões para pensar que é de Arqui-
medes». Sabemos que Arquimedes fez um aparelho muito
semelhante. E também parece ser do seu tempo. Mas, é claro,
o nosso conhecimento do passado é tão fragmentário que po-
demos estar a errar por muito. De qualquer modo, se não é de
Arquimedes, tanto melhor, porque para além daquele que ele
fez, que se perdeu, temos este génio. Havia pelo menos dois
deles! O facto de o nome dos meses do mecanismo coincidir
com o nome utilizado em Corinto e nas suas colónias não refu-
taria de forma alguma a paternidade de Arquimedes, uma vez
que Siracusa foi uma colónia de Corinto durante muito tempo.
No entanto,segundo outros investigadores, o génio não po-
deria ter conhecido a anomalia lunar, calculada mais tarde
por Hiparco de Niceia e contemplada, no entanto, pelo me-
canismo de Anticitera. Assim, talvez o Da Vinci siracusano
tenha posto a máquina em circulação, mas foi posteriormente
aperfeiçoada pelos seus seguidores.
Em todo o caso, o mundo grego fervilhava de talento, e o pró-
prio Cícero acrescentava outro «suspeito» à lista. Em De natura
deorum observou que o seu amigo, Posidónio de Rodes, tinha
concebido um instrumento que «a cada revolução reproduz os
movimentos do Sol, da Lua e dos cinco planetas».

SUPER 87
«O mecanismo convida-nos a reescrever o que pensávamos
saber sobre astronomia na altura», diz Christián C. Carman

(incluindo talvez um planetário completo), por isso é ao ponto de até a agulha da Lua se adaptar ao movimen-
inevitável que nos movamos no terreno sempre escor- to irregular do satélite, que por vezes acelera e por vezes
regadio das hipóteses. Uma manivela seria o botão de desacelera, com uma margem de erro mínima. «O me-
energia do computador, ao qual, como um assisten- canismo convida-nos a reescrever o que pensávamos
te de voz (mas sem voz), pediríamos as posições das saber sobre astronomia na altura», disse Carman à Super
estrelas, futuros eclipses ou a celebração dos Jogos Interessante.
Nemeus ou Ístmicos, no verão e na primavera, respe- Anos após Price, Michael T. Wright reconstruiu o
tivamente. Um pouco como o computador HAL 9000 dispositivo para fixar as suas chaves com maior preci-
em 2001, Uma Odisseia no Espaço, não é? são. Na sua oficina, uma espécie de máquina do tempo
Com base na tese do já mencionado Derek John de Solla Wells, convidava os visitantes a virar a manivela ao lado
Price (Gears from the Greeks. The Antikythera mecha- da caixa, e ficavam a olhar para a revolução completa
nism: a calendar computer from ca. 80 B.C., 1974), foi da Lua e para o avanço do Sol através do mostrador. Na
calculado o período de rotação das engrenagens epicícli- opinião de Wright, o mecanismo seria principalmen-
cas e o seu significado para a astronomia. Por definição, te um planetário refletindo os epiciciclos de Mercúrio,
o epiciclo é o círculo que um planeta descreve em torno Vénus, Marte, Júpiter e Saturno, bem como a velocida-
de um centro que se move num outro círculo à volta da de variável do Sol.
Terra. Sabemos hoje, claro, que este modelo geométri- Outros, por sua vez, aventuraram-se a reviver o dis-
co se baseava numa teoria errada, o geocentrismo, que positivo com meios modernos, tais como o engenheiro
Copérnico deixou para trás no século XVI com a sua «re- de software Andy Carol, que, em 2010, utilizou algumas
volução» heliocêntrica. Bem, mesmo com uma base tão peças de lego para o pôr a funcionar. Atualmente, as
frágil, os cálculos do mecanismo foram quase perfeitos, universidades de Sonora (México) e Atenas, juntamente

PLACA FRONTAL PLACA POSTERIOR PLACA POSTERIOR

Nomes
PLACA FRONTAL Eventos dos meses
astrológicos

Ciclos do
planeta Descrição
do cosmos
Características
dos eclipses Calendário
Ciclos
Lua-Sol
Eventos
astrológicos
Eventos Glifos (símbolos)
astrológicos dos eclipses

Linha numérica Linha numérica


MERCÚRIO

VÉNUS
A equipa de Aga-
memnon Tselikas
identificou 3400 ca- MARTE
racteres e concluiu
que o dispositivo ti-
nha sido feito «para
JÚPITER
explicar o universo,
de acordo com os
conhecimentos as- SATURNO
tronómicos da
época».
ASC

88 SUPER
«O mecanismo
de Anticitera é o
progenitor de toda
a alta tecnologia»

X enophon Moussas, professor aposentado do Depar-


tamento de Astrofísica, Astronomia e Mecânica da
Universidade Nacional e Kapodistriana de Atenas, e um dos
membros mais eminentes do Antikythera Mechanism Re-
search Project, publicou numerosos trabalhos sobre este
engenho, tais como Antikythera Mechanism, The oldest com-
puter and Mechanical Cosmos (2014). Falando com Super
Interessante, pedimos-lhe que resumisse o que está por de-
trás do pai de todos os computadores.

REC
O que significa o mecanismo de Anticitera para a nossa
compreensão da ciência na Grécia antiga?
O nosso estudo do mecanismo de Anticitera mudou a his- se perderam por causa deles) e, possivelmente, as posições
tória. A história da tecnologia, matemática, computadores, de todos os planetas. Portanto, era um planetário, e talvez um
autómatos, física e astronomia, mas também da Grécia. E a relógio astronómico com movimento contínuo.
história mundial. Provámos que os gregos, ao contrário do É também um mecanismo calendárico complexo e um dispo-
que os peritos diziam até há alguns anos atrás, não só tinham sitivo meteorológico-climatológico para prever o estado do
alta tecnologia, mas que esta se baseava na ciência, na ma- tempo, bem como um instrumento educativo a ser utilizado
temática superior e nas leis da física, tal como as percebiam numa escola filosófica e um instrumento de navegação para
naquela época. O mecanismo encarna a filosofia pitagórica, medir a latitude e possivelmente a longitude, utilizando a po-
ou seja, os fenómenos naturais são descritos, interpretados sição da Lua.
e por vezes previstos pela matemática e pelas leis da natu- Vale a pena mencionar que, como descobri, os gregos na an-
reza, que podemos ler nas engrenagens e no seu «manual tiguidade e mais tarde chamaram a estas máquinas «Pinakes»
do utilizador». Por exemplo, a Lua, no mecanismo, move-se ou «Pinakidia», ou seja, tabuletas em grego.
seguindo a segunda lei de Kepler com uma aproximação O que é que ainda precisamos de saber sobre o seu fun-
muito boa. O mecanismo de Anticitera é o progenitor de toda cionamento?
a alta tecnologia. Os bits e bytes do nosso computador ou Temos engrenagens, escalas e apontadores que, juntamente
smartphone têm as suas raízes no mesmo e baseiam-se nos com o manual, nos permitem concluir que este previu as po-
mesmos princípios e práticas. A matemática que nos informa sições do Sol e da Lua e os seus eclipses. Gostaríamos de ter
da posição da Lua, e possivelmente do Sol e dos planetas, é mais engrenagens, possivelmente as dos planetas, pois só
exatamente a mesma matemática através da qual o nosso te- temos um terço ou um quarto do manual.
lefone converte a nossa voz e a envia ao nosso interlocutor, e Estamos agora a aplicar uma análise química, graças a uma
vice-versa. colaboração entre a Universidade de Atenas, à qual per-
Qual foi o objetivo básico deste gadget? tenço, a University College London e o Museu Nacional de
O mecanismo é um computador antigo que mostra as posi- Arqueologia. A análise de todos os fragmentos ajudar-nos-á
ções do Sol e da Lua e as fases da Lua (lua nova, crescente, a compreender a proveniência do cobre, estanho, chumbo,
lua cheia), que prevê eclipses (muito útil para os militares, etc., assim como as engrenagens e eixos, e talvez alguns dos
pois os soldados tinham muito medo deles, e muitas guerras segredos da metalurgia.

com uma empresa de relógios mexicana, estão a mon- mo a fundada por Hiparco de Niceia em Rodes. É mais
tar um relógio astronómico monumental, de quatro do que provável que tenha sido utilizado na cartografia
metros de altura, baseado no mecanismo de Anticitera. e navegação, para localizar as estrelas e determinar a la-
titude dos navios.
UM TESOURO. Em resumo, este intrigante engenho ser- Desde a sua descoberta em 1901, com os estudos pio-
via tanto para calcular as fases da Lua como para prever neiros de Valerios Stais, até ao trabalho conjunto de
eclipses (de acordo com as denominadas séries Saros, várias universidades no âmbito do Antikythera Mecha-
estes teriam lugar durante um período de 223 luas, nism Research Project, o segredo mais bem guardado
dezoito anos), fixando o calendário dos Jogos Pan-Helé- dos gregos já não é tão inescrutável, mas permanece
nicos ou marcando os dias do calendário egípcio, que decerto igualmente fascinante. E o facto é que, exce-
os gregos acharam muito conveniente porque todos os tuando a programação, o primeiro «computador»
seus meses tinham trinta dias. da história podia fazer tudo, ou tudo o que os antigos
Não foi fácil de operar: engrenagens aqui, manive- gregos consideravam importante: interpretar as leis do
las ali, corrediças, guias em espiral, agulhas e pivôs... céu e reunir o universo conhecido naquilo que hoje nos
Quem estava no comando? Um dispositivo tão sofisti- parecem ser rochas sem valor, mas que, na realidade,
cado e de vanguarda poderia ter sido «estripado» por constituía a engenhoca mais desconcertante e comple-
mestres e discípulos de uma escola de astronomia, co- xa gerada pela antiguidade. e

SUPER 89
F E M I N I S M O

A palavra tatuagem
deriva de ta-tatau,
que em polinésio
significa «ferida a
golpes». Ao longo
da história, tem sido
um estigma de
morte social para
algumas mulheres.
AGE

CORPOS
TATUADOS,
MULHERES
MALTRATADAS
90 SUPER
A origem destes estigmas
encontra-se na Grécia Antiga,
eram chamados «dermototiksia».
A tatuagem punitiva e patrimonial
tornou-se a marca dos escravos,
dos criminosos e de todos
aqueles que iriam ser retirados
da sociedade. Até Constantino a
proibir em 330 d.C., era comum
fazer essas tatuagens na testa.

Texto de VIRGINIA MENDOZA, antropóloga

SUPER 91
O século XX, que tem sido
denominado o «século dos
genocídios», trouxe de volta o
costume de tatuar prisioneiros,
escravos e escravas sexuais.
ASC

A
mam sobreviveu ao genocí- DERMOTOTIKSIA: UM ESTIGMA PARA A VIDA. O método não
dio arménio. Durante a maior era novo, embora tivesse caído em desuso. A tatuagem
parte da sua vida e até ao seu de Amam era um estigma como o haviam sido para as
último dia viveu na Arménia mulheres trácias (ménades), acusadas de matar Orfeu e
com um círculo azul na testa e tatuadas como castigo.
números nos dedos. Hasmik, De acordo com a teoria de ego-pele de Didier Anzieu,
a sua bisneta, cresceu intriga- «a pele não é um suporte de inscrição anódino». Nas
da e questionando-se sobre as palavras de Emma Viguier, as tatuagens patrimoniais e
marcas misteriosas. Ao longo punitivas representam um «estigma de morte social»
dos anos, embora a sua avó não que serve para tirar a identidade.
lhe tenha dito, Hasmik dedu- A origem destes estigmas parece encontrar-se na
ziu que eram tatuagens. Amam Grécia Antiga. Ali, inventou-se esta palavra dermo-
tentou sempre esconder especialmente a da sua testa: es- totiksia para nomear estas tatuagens, que tem a sua
tava coberta pelas moedas do traje tradicional arménio e, origem nas palavras pele e estigma. A tatuagem puniti-
quando não tinha moedas, cobriu-a com um lenço. va e patrimonial tornou-se assim a marca dos escravos,
Se alguém da sua família perguntava, ela não respon- dos criminosos e de todos aqueles que iriam ser retira-
dia. Ou respondia que era apenas uma marca e mudava dos da sociedade. Os escravos, em particular, teriam
de assunto. Amam nunca falou sobre essa tatuagem. Nem para sempre na pele a letra delta (Δ), a primeira letra da
sobre a sua vida. Os seus gestos e silêncios deixavam cla- palavra que usavam para «escravo». Esta tatuagem era
ro que a tatuagem na testa não era uma escolha e que frequentemente feita na testa. Em 330 d.C. Constantino
respondia ao que o seu nome indica: a palavra tatuagem I proibiu as tatuagens faciais, mas não as tatuagens nas
deriva de ta-tatau, que em polinésio significa algo como mãos, que só foram proibidas em 787, com o Segundo
«ferida a golpes». Conselho de Niceia.

92 SUPER
Tattooed spruce
woman, de
Theodor de Bry
(1528-1598), edi-
tor de livros de
ocultismo e his-
tória americana.

ASC
Olive Ann Oatman
foi raptada no de-
serto de Mojave por
um povo indígena
americano quando
adolescente e ta-
tuada antes de ser
libertada.

Os nazis começaram a
tatuar prisioneiros em
Auschwitz em 1941.
Marcavam-nos com um
número que os despojava
da sua identidade

Há um episódio em Os Três Mosqueteiros de Alexan-


dre Dumas em que D’Artagnan descobre uma flor-de-lis
tatuada no ombro de Milady e tira as suas próprias con-
clusões depois de se deparar acidentalmente com
«aquela marca indelével impressa pela mão caluniosa do
verdugo». Era a marca dos escravos e das prostitutas.
A tatuagem punitiva e patrimonial parecia ter caído
em desuso após o Antigo Regime. Mas o século XX, que
ASC

SUPER 93
NUBARIAN LIBRARY
ASC

Na coleção de fotografias da dinamarquesa Karen Jeppe, podem


ser vistas tatuagens faciais repetidas em vários rostos de mulhe-
res arménias. Jeppe escondeu muitos refugiados arménios e
ajudou a libertar milhares de escravas arménias.
KAREN JEPPE

tem sido denominado o século dos genocídios, trouxe


de volta a marca dos prisioneiros, escravos e escravos
sexuais. Em 1904, na Namíbia atual, os hereros eram
tatuados nos braços com as letras «GH», de Gefangene
Herero («prisioneiro herero» em alemão), para que não
se esquecessem no que se tinham convertido.

O GENOCÍDIO ARMÉNIO (1915-1918), perpetrado pe-


lo governo dos Jovens Turcos no Império Otomano,
começou pouco depois. Na coleção de fotografias da
dinamarquesa Karen Jeppe, podem ver-se tatuagens
faciais como as de Amam e outras diferentes mas re-
petidas em vários rostos de mulheres arménias. Jeppe
escondeu refugiados arménios, que saíam da sua ca-
sa disfarçados de curdos, com destino à Dinamarca.
Cerca de trezentos, no total. Mas, para além disso,
desde que começou a trabalhar para a Liga das Na-
ções, ajudou a libertar milhares de escravas arménias.
Tanto quanto sabia, apenas uma delas não tinha sido
vítima de abusos sexuais durante o genocídio armé-
nio.
Tal como a sua bisneta Hasmik, as crianças de ascen-
dência arménia cresceram a perguntar-se o que era
essa marca e porque estava envolta em silêncio. Suzanna
Khardalian tinha as mesmas dúvidas quando estava com
a sua avó. Crescendo numa família arménia, tornou-se
cineasta e decidiu investigar e contar o que a sua avó ti-
nha mantido em silêncio, no documentário As Tatuagens
da Avó. A história da sua avó e de Amam foi a história
Putas de campo

ASC
A historiadora Fermi Cañaveras escreveu Putas de campo,
uma história fictícia que se baseia na realidade e que tem
como ponto de partida anos de investigação sobre o trilho de
Isadora Ramírez, nascida a 22 de abril de 1922 em Madrid. No
seu livro, Cañaveras conta como as primeiras Feld-Hure eram
prostitutas alemãs que os nazis convenceram a deixar a rua pa-
ra irem para um campo de concentração que se tornou o centro
nevrálgico de toda uma rede de prostíbulos. Depois vieram as
prisioneiras: alemãs, polacas e espanholas.
Embora fossem injetadas com algo desconhecido para evitar
que engravidassem, Cañaveras descobriu durante a sua inves-
tigação que eram precisamente estas prisioneiras, que eram
violadas até vinte vezes por dia, as que tinham mais filhos. Estes
eram então usados para experiência na «cela das coelhas» ou
utilizados como alimento para os cães.
Quando deixaram Ravensbrück, mulheres como Isadora passaram à história porque já tinham suportado vergonha suficiente.
Tal como as avós arménias, mantiveram-se em silêncio sobre as suas vidas e enterraram a sua história no peito. «Elas podiam
esconder-se do mundo, mas estavam marcadas para se recordarem a cada momento», escreveu a historiadora.
Nos campos de concentração nazis, parecia proliferar uma estranha obsessão com a pele tatuada de outras pessoas. Ilse Ko-
ch recolheu restos de pele humana tatuada para fazer lâmpadas para si própria. Um sobrevivente acusou o médico nazi Erich
Wagner de matar prisioneiros tatuados depois de fotografar as suas tatuagens. Os prisioneiros afirmaram que ele lhes arranca-
va as tatuagens e que ninguém que entrasse no seu gabinete saía. Fazia-o para escrever a sua tese de doutoramento Sobre o
Tema da Tatuagem, considerada como a tese mais macabra da história.

Fermi Cañaveras entrevistou vários sobreviventes de Ravensbrück.


Testemunharam que algumas mulheres não eram rapadas quando
chegavam ao campo de concentração, mas sim tatuadas

GETTY

Por baixo das letras e


do seu número de pri-
sioneiros, eram
tatuadas com um triân-
gulo negro invertido,
que marcava as margi-
nais, lésbicas e
prostitutas.

SUPER 95
Descendentes

A tatuagem que salva de prisioneiros


de Auschwitz
tatuam-se com
os mesmos nú-
E nquanto os beduínos enganavam as mulheres arménias pro-
metendo salvá-las com as suas tatuagens, há um lugar onde
as tatuagens realmente salvaram as mulheres da escravidão se-
meros dos
seus avós para
que não se es-
xual. Aconteceu na ilha de Timor, Indonésia, durante a Segunda queça o
Guerra Mundial. sucedido.
Perante a iminente ocupação japonesa da Indonésia, as mulheres
da remota aldeia de Umatoos em Malaca Ocidental voltaram-se
para uma antiga tradição local que as marcava como mulheres ca-
sadas. Foram de tal forma prevenidas que, quando os japoneses
chegaram à sua ilha em 1942, encontraram-nas já marcadas com
riscas na testa tatuadas por si próprias, tal como as mulheres de
Malaca antes delas o tinham feito quando se iam casar. Mas elas
não tinham casado com ninguém, tinham casado consigo pró-
prias. Pela sua liberdade, suportaram a dor e o derramamento de
sangue de uma tradição que se tinha tornado obsoleta.
Foi assim que escaparam à escravidão sexual que lhes teria sido
imposta pelo exército imperial japonês se não tivessem visto es-
tas tatuagens de casadas, evitaram ser jugun lanfu (mulheres de
consolo) e puderam viver em paz até ao fim da guerra em 1945. A
história do jugun lanfu caiu no esquecimento, tal como a tradição
da tatuagem para casamento.
TKM

GETTY

Estas tatuagens, que tinham dado certo poder às


mulheres que viviam tradicionalmente na região, torna-
ram-se um método de apropriação do corpo da inimiga e
deram início a um processo de assimilação no novo gru-
po (turcos, curdos e beduínos), que por sua vez levava
automaticamente a um processo de exclusão no grupo
de origem. Após serem raptadas, vendidas em mercados
de escravos, forçadas a converterem-se ao Islão e a casa-
rem-se em troca da vida dos seus filhos, era-lhes negada
a sua própria identidade, marcando-as para sempre.
Algumas tentaram libertar-se do estigma porque sa-
biam que a marca as excluiria do seu próprio grupo, o que
as impedia de regressar à sua terra. Após a sua libertação,
muitas delas não se atreveram a regressar à Arménia.
Aquelas que o faziam eram frequentemente rejeitadas
e, com exceções como Amam, que iniciou uma família,
eram descartadas como potenciais esposas devido às
marcas nas suas testas. Algumas destas mulheres armé-
que Aurora Mardigarian escreveu na sua autobiografia nias recorreram mesmo a métodos abrasivos que lhes
Ravished Armenia. Aurora contou como se tornou es- deixaram uma cicatriz para sempre ou, então, à cirur-
crava sexual para salvar a vida da sua família e como era gia. Em 1920, o jornal Stanford-Examiner dedicou uma
fácil comprar uma jovem arménia no Império Otomano. página a uma destas mulheres com a manchete: Como a
«Para se realizar legalmente a venda da rapariga e dar ao Ciência a Limpou da Marca de Vergonha do Turco Cruel.
mustassarif o direito de a fazer sua concubina, este só Os beduínos levaram as mulheres arménias a acredi-
tinha de a persuadir e forçar a renunciar a Cristo e con- tar que tatuar os seus rostos com tinta verde as salvaria
verter-se ao islamismo», escreveu Aurora, que conseguiu dos turcos, impedindo-as de serem raptadas ou com-
fugir para os Estados Unidos, tornar-se atriz e estrela na pradas. O que não correspondia à verdade, e algumas
adaptação cinematográfica da sua própria história. descobriram isto quando foram obrigadas a casar com
Verjine Svazlian recolheu testemunhos de sobrevi- os homens que as tinham marcado como suas, afirman-
ventes do genocídio arménio. Uma das mulheres que do que o faziam para as salvar dos outros.
entrevistou disse: «Os árabes agarraram-me, atira- Houve, contudo, pelo menos um momento na his-
ram-me ao chão e puseram-me um calcanhar no peito. tória recente em que tatuagens deste tipo salvaram as
Dava pontapés enquanto dizia: “Não quero”. Mas eles mulheres da escravatura sexual. Aconteceu em Timor,
queriam tatuar a minha cara para me fazer parecer uma pouco antes da ocupação japonesa durante a Segunda
rapariga árabe». Guerra Mundial.

96 SUPER
Stehnde Zwei
(Duas Mulheres
de Pé) é um me-
morial aos
mortos do cam-
po de
concentração
alemão em Ra-
vensbrück,
Alemanha.

GETTY
Isadora Ramirez, «a espanhola com o nome
de bailarina», deixou a Espanha com um
nome falso. O que ela não podia mudar era a
tatuagem no seu peito: Feld-Hure

ASC
FELD-HURE. APÓS O GENOCÍDIO ARMÉNIO, HITLER DISSE: tido Comunista na clandestinidade em Espanha. Várias
«Quem se lembra hoje dos arménios?». A história que das suas informadoras, sobreviventes de Ravensbrück,
não se conta, não só se repete, como inspira as mentes contaram-lhe como algumas das mulheres que chega-
mais perversas. E a história das mulheres arménias com vam ao campo de concentração não eram rapadas mas
a testa tatuada foi tão silenciada, apesar das provas, co- tatuadas. Feld-Hure era o que estava gravado no seu pei-
mo o foi a sua sucessora. to, ou seja, «puta do campo». Por baixo das letras, eram
Em 1941, os nazis começaram a tatuar os prisioneiros tatuadas com um triângulo negro invertido, que marca-
em Auschwitz. Marcaram-nos com um número que os va antissociais, lésbicas e prostitutas, e o seu número de
despojava da sua identidade. «A pele gravada por uma prisioneira. Não eram judias: eram alemãs, polacas, ro-
tatuagem ou marcada com um ferro quente designa as- menas e espanholas.
sim indivíduos privados dos seus direitos, excluídos da As mulheres que Cañaveras entrevistou, entre elas
sociedade, selvagens no seu interior, abjetos por causa da Neus Català, tinham ouvido falar da «espanhola com no-
sua situação, da sua religião ou das suas ações: escravos, me de bailarina». Chamava-se Isadora Ramírez, embora
prisioneiros, prostitutas, inimigos da fé, criminosos, tenha deixado a Espanha com um nome falso. Há uma
“não arianos” da ideologia nazi na história mais recen- coisa que ela não podia mudar: a tatuagem no seu peito
te», escreve Emma Viguier. que a recordou sempre o que tinha sido.
A dos números dos prisioneiros de Auschwitz é a parte A história das mulheres arménias tatuadas perma-
mais difundida desta história. Tanto que alguns descenden- neceu escondida e, talvez por essa razão, repetiu-se
tes estão a tatuar os números com que os seus avós foram com as inimigas dos nazis. Essa história também ficou
marcados para que o que eles viveram não seja esquecido. esquecida, e talvez por isso ainda hoje nos deparamos
Menos conhecido é o único campo de concentração cons- com casos de proxenetas que tatuam a pele das mulhe-
truído especificamente para mulheres: Ravensbrück, que res para que todo o mundo saiba que são suas. O código
significa «a ponte dos corvos» em alemão. de barras juntamente com o preço que estigmatiza uma
A historiadora manchega Fermi Cañaveras entrevistou adolescente significa o mesmo que um ponto azul na
várias mulheres para a sua tese sobre a fundação do Par- testa de uma mulher ou Feld-Hure no seu peito. e

SUPER 97
HISTÓRIA DE FICÇÃO CIENTÍFICA POR SONIA VIELMAN, ESCRITORA

— Comunicaram ago- —Afinal, o que fizeste com ele», perguntou.


ra mesmo que o carro não —Mandámo-lo para a frente catalogado como
pega, e aqui tudo se está a lubrificante de armas.
avariar. Uma hora depois, o Coronel Ruslan Klohak
Num olhar rápido, Ruslan viu dirigia-se à linha da frente num dos poucos
duas secretárias de pé, reini- veículos que arrancaram. O condutor conduzia
ciando um computador (o que tranquilamente ao longo das estradas onde a
indicava um certo desespero), chuva forte soprava as folhas. Como precaução,
agrafadores e furadores tom- tinha recebido um banho químico. Ele sabia que
bados sobre as mesas e três o que quer que fosse, não era uma arma biológi-
soldados arranjando uma ca dos russos, que se tinham especializado em
porta de chapa. mísseis cada vez maiores, e não em tecnologia
Voltou-se para estes últi- avançada de patogénicos esverdeados, famin-
mos e perguntou-lhes como tos de ferro. Além disso, tinha consigo novas
iriam encaixar uma porta informações das últimas horas e prevalecia uma
sem dobradiças. O mais paz sem precedentes. Sem tiros, sem bombas
pequeno, um nervoso vo- — não estariam os russos contaminados com
luntário filho de um amigo, isso também?
disse-lhe para prestar aten- Abriu as suas mãos e respirou fundo, como
ção. Depois pegou numa folha sempre fazia quando não sabia o que o espera-
de metal esverdeada e corroída do va. No dedo anelar, onde a aliança tinha estado,
chão e colocou-a em contacto com a ainda havia uma mancha de azinhavre. Ao che-
porta que tinham estendido na sala do gar ao seu destino, viu mecânicos perplexos
bunker. «Isto é o aspeto da dobradiça de e desesperados que não conseguiam limitar a
ferro. A chapa da porta é de aço inoxidável propagação do verdete sobre os tanques. Obu-
pelo que vai demorar mais tempo; vou fazer- seiros e morteiros a desfazerem-se na chuva,
-lhe um café, não pare de olhar». regressando à terra que outrora os possuiu. Uma
longa fila de soldados com as suas espingardas
OS RESTOS DE UMA DOBRADIÇA POUSADA NO CEN- enferrujadas esperando substituí-las, entendia
TRO DE UMA PORTA, o que há de tão especial ele que inutilmente, por outras sólidas.
nisto, pensou Ruslan. Estava prestes a ficar
furioso. Conteve-se. Ao seu lado havia mais CHEGANDO AO POSTO DE COMANDO, PERCEBEU
trinta à espera de algo, e as expressões nos PELA PALIDEZ DOS GENERAIS QUE A SITUAÇÃO OS
seus rostos revelavam um choque e pânico ULTRAPASSAVA. Dirigiu, entre a confusão de
que ele não viu nos bombardeamentos rus- vozes e ordens absurdas, de que os ocidentais
sos. Apreciava o agradável amargor do café, enviariam armas revestidas de resina quando
SHUTTERSTOCK

quando a parte da porta que tocava a dobra- ultrapassassem os mesmos problemas que eles
diça se tornou glauca e a mancha se espalhou tinham, que treinariam pombos-correio, o
até aos cantos. Desde o interior, umas fen- seu olhar para uma prateleira de madeira. Ali
das racharam a porta perante exclamações repousava o vaso aberto, com os seus estra-
irracionais. «É uma bactéria possuída», «está nhos símbolos. Se ele tivesse sido mais calmo,

O VERDETE numa linha temporal acelerada», «é a fer-


rugem vertiginosa que derrete os metais».
Assustando toda a gente, como querendo
menos agitado, teria reparado que aquilo não
era daqui, e por aqui ele referia-se a milhões
de quilómetros de distância. Algo lhe dizia
ão era aprimeira vez que o coro- participar, a porta rangia e volatilizava-se que estava para além do humano. Escapou ao

N nel do exército ucraniano Ruslan


Klohak tinha tido um despertar di-
fícil. As madrugadas complicadas
em escamas de esmeralda que cobriam o
chão com um verdete cintilante.
Ruslan olhou para cima e viu os ecrãs a cin-
tumulto e aos gritos, foi ao bengaleiro e, en-
contrando-o desmantelado, levantou do chão
o seu impermeável.
tinham sido a norma, desde o início da invasão. tilar incertamente, um aspirador engasgado, as Caminhou sozinho durante horas no nevoeiro
Naquela manhã, porém, a dureza foi acompa- lâmpadas quebradas nas secretárias, os radia- e num silêncio que não era próprio de nenhuma
nhada por uma série de infortúnios. Ele tinha dores rasgados a pingarem. guerra. Finalmente subiu uma colina em forma
perdido a sua aliança de casamento, o que sig- — Isto começou ontem à tarde com o mal- de corcunda, focou os seus binóculos no hori-
nificaria, quando tudo tivesse terminado, ter de dito recipiente de cerâmica», disse-lhe o seu zonte e lembrou-se de uma viagem a Madrid.
se explicar à sua esposa. A fivela do cinto tinha- segundo. A sua esposa estava grávida de pouco tempo.
-se soltado e, para piorar a situação, o veículo Recordou-se, de imediato, do frasco branco Viram a costa e comeram antes de visitarem a
militar que era suposto vir buscá-lo não tinha sofisticado com letras tão estranhas que não capital. Teria sido há dez anos atrás.
aparecido. Decidiu que não era tão longe para conseguiam distinguir a língua, nem sabiam se Ao longe, ucranianos e russos lutavam na
caminhar para o Centro de Receção e Despacho era uma doação privada ou de um país amigo. lama com tudo o que podiam: pedras, insultos
de Doações Estrangeiras para a Guerra. O riso dos seus subordinados veio-lhe à memó- e paus. Davam e recebiam num mundo que ti-
Apressou o passo debaixo de um céu plúmbeo ria, aquilo parecia o recipiente de um perfume nha mudado da noite para o dia. Foi em Madrid
e ameaçador. No escritório reinava um comple- ou de gin fino. Piadas e jogos, em qualquer onde eu vi isto», disse a si próprio. Comíamos
to alvoroço, apenas contido quando o saudaram caso, tão necessitados estavam de algum re- grão-de-bico, mas antes havia um museu e uma
marcialmente. laxamento. Finalmente conseguiram abri-lo e chocante pintura com personagens enlameados
— Vocês deviam ter-me ido buscar... e o que sentiram o líquido amanteigado que superou até aos joelhos a baterem umas nas outras até
é esta confusão? – perguntou ao seu oficial. todos os scanners, até chegar a eles. à morte». e

98 SUPER
98 - Muy Interesante
VIVER A HISTÓRIA
COM PAIXÃO

Nova
edição
de coleç
ão

AGORA À VENDA!

Você também pode gostar