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NÚMERO 309

MENSAL ○ JANEIRO 2024

SAÚDE MISTÉRIO
O COLESTEROL BOM 13 LOCAIS
PREJUDICA ASSOMBRADOS EM
O CORAÇÃO? PORTUGAL
ASTRONOMIA FÍSICA & QUÍMICA
A PROCURA MATERIAIS ENTRE A
DE SINAIS REALIDADE E A FICÇÃO
EXTRATERRESTRES
HISTÓRIA
ARTE & HISTÓRIA O PIOR DIA DE
FRANCISCO D’HOLANDA, ISAAC ASIMOV
EXPOENTE DO RENASCIMENTO
PORTUGUÊS
ENTREVISTA
JERÓNIMO PIZARRO,
EDITOR E AUTOR
DE FERNANDO PESSOA

NEUROCIÊNCIA
APRENDIZAGEM E SONHO
O PARADOXO DECIFRADO
ND A
A!
VE R
À AGO

VIVER A HISTÓRIA
COM PAIXÃO

EDIÇÃO BIBLIOTECA
EDIÇÃO BIBLIOTECA EDIÇÃO
BIBLIOTECA
PORTUGAL ÉPOCA DE OURO DA EXPANSÃO MARÍTIMA
CELTAS GUERREIROS, ARTISTAS E DRUIDAS

PORTUGAL ORIGENS
PALEOARTE
VALE DO CÔA
Território de

DE UMA NAÇAO
memória
GRUTA DO ESCOURAL
Marco do paleolítico
no Alentejo
MISTÉRIO
Stonehenge e outros

CELTAS
santuários megalíticos

PALEOARTE
PORTUGAL
Onde e quando surgiu
GUERREIROS, ARTISTAS E DRUIDAS o nosso impulso artístico
Mergulhe na Idade do Ferro Conheça a formação de Portugal
e descubra uma das culturas ÉPOCA DE OURO DA EXPANSÃO MARÍTIMA como Nação através de grandes
mais fascinantes da Europa, a historiadores: conhecerá os
Celta, pelas mãos de grandes Descubra, pela pena de alguns dos protagonistas, os momentos
especialistas. mais conhecidos investigadores decisivos, os desafios e as bases
portugueses, a época de Ouro dos do futuro império.
Descobrimentos e da expansão
marítima portuguesa.
NotíciasFlix

EDITORIAL

Grandes paradoxos mentais


C
ertamente que muitos de nós já fantasiámos com a possibilidade de aprender sem
esforço, e aquelas horas de sono, em que descansamos e em que a mente e o corpo
estão relaxados, parecem ser as mais propícias para isso. Será possível? Esta é a grande
questão que nos colocamos nesta edição com que iniciamos o novo ano, cheios de entusiasmo e
energia. Mas, é preciso distinguir entre a importância do sono para a retenção e consolidação da
informação aprendida durante o estado de vigília ou consciente e a possibilidade de
adquirir novos conhecimentos enquanto o inconsciente está ativo. O inconsciente
tem essa capacidade? Por outro lado, a que se deve a extrema lucidez mental de
quem está a morrer? Alguns autores relacionam-na com a falta de oxigénio no
cérebro nesse momento, o que, paradoxalmente, aumenta a atividade das ondas
gama. Não creio que haja qualquer correlação entre uma questão e outra, mas é
certamente muito estimulante ver como ambas as questões são colocadas e as
respostas que a investigação nos dá em cada caso. Tenho a certeza de que vai
gostar tanto destes excelentes artigos como do resto da sua revista. Boa leitura. Carmen Sabalete,
diretora
csabalete@zinetmedia.es

Mais SUPER no seu quiosque:


NÚMERO 1 ○ ABRIL 2023

INTERESSANTE

EDIÇÃO BIBLIOTECA EDIÇÃO BIBLIOTECA EDIÇÃO BIBLIOTECA


PORTUGAL ÉPOCA DE OURO DA EXPANSÃO MARÍTIMA

AFONSO
HENRIQUES
CELTAS GUERREIROS, ARTISTAS E DRUIDAS

e o nascimento de
PORTUGAL ORIGENS DE UMA NAÇAO

Portugal
O MILAGRE DE
OURIQUE
ou o mito nacional
de sobrevivência
D.DINIS, A
JÁ HOUVE UM TSUNAMI
CONSOLIDAÇÃO
DO TERRITÓRIO EM PORTUGAL?
e afirmação
da identidade Que sermão deu
Santo António
EXPANSÃO aos peixes?
PORTUGUESA:
Que países foram fundados

CELTAS
as primeiras décadas por ex-escravos?
É legal que a minha renda
seja revista em concordância

PORTUGAL
com o IPC?

PORTUGAL
ÉPOCA DE OURO DA EXPANSÃO MARÍTIMA GUERREIROS, ARTISTAS E DRUIDAS Origens de uma nação 1
Cor nos animais - para
namoriscar ou para
assustar?
Quando é que ocorre o
crime de peculato?

E mais 150 Perguntas e Respostas


Júlio César
tinha um
piercing?

Chefe do Executivo: Marta Ariño


Responsável financeiro: Carlos Franco
Diretor Comercial: Alfonso Juliá
(ajulia@zinetmedia.es)
GABINETE EDITORIAL Diretor de Desenvolvimento Empresarial:
Direção: Carmen Sabalete Tempus Art, Beatriz Lomana, Abigail Campos, Óscar Pérez-Solero (operez@zinetmedia.es)
(csabalete@zinetmedia.es). Eduardo Mesa, Elena Sanz, Sarai J. Rangel,
Editora-chefe: Cristina Enríquez Juan Ramón Gómez, José M. González, Javier Moreno,
Editada por Zinet Media Global, S.L.
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Miguel Á. Sabadell, Eugenio M. Fernández Aguilar, Email: minteresante@zinetmedia.es
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SUPER 3
Sumário

14
ISTOCK

REPORTAGENS 58 A matemática pode 64 Motor


8 Materiais prever pandemias Notícias do setor automóvel por José
Ao simular possíveis cenários epidémicos. Manuel González.
surpreendentes
Entre a realidade e a ficção.
68 Lucidez terminal 90 Tecnocultura
O mistério dos episódios de lucidez men- Javier Moreno e La edad del prone.
14 O colesterol «bom» tal inesperada que ocorrem antes da
pode ser prejudicial? morte. 98 Alegoria
Descobrimos até que ponto é bom ter História por Óscar Curieses.
níveis elevados deste colesterol. 74 Gorduras boas e más
Estudá-las ajudará a acabar com a
24 Projeto SETI epidemia de obesidade que está a fazer
À procura de sinais extraterrestres. tantas vítimas.

28 A pegada ecológica de 78 Dados indígenas


um hambúrguer vegetariano Luta das comunidades nativas pela
soberania da informação .
Uma dieta à base de vegetais é realmente-
tão boa quanto cremos para o planeta?
84 Com que sonham os
34 Microbiota e animais?
saúde mental O sono REM não é exclusivo dos humanos.
As bactérias que povoam o nosso intestino
influenciam as nossas emoções. 92 O pior dia
de Isaac Asimov
40 Podemos aprender O robot que deixou o escritor perplexo.
enquanto dormimos?
Durante o sono, a mente pode desenvolver
processos de pensamento complexos. ENTREVISTA
20 Jerónimo Pizarro
46 Assombrados ou apenas Editor e autor de Fernando Pessoa.
assustadores?
13 lugares de Portugal que podem fazer ar-
repiar, até os mais céticos. RÚBRICAS
6 Falando de ciência
53 Francisco de Holanda Ciência, sonhos, visões e drogas,
Expoente do renascimento português. por Miguel Ángel Sabadell.

4 SUPER
ISTOCK ROWENA MORRIL HERITAGE AUCTION SHUTTERSTOCK

24

58
92
46

53
ASC ASC

SUPER 5
CURIOSIDADE FALAR DE CIÊNCIA...

CIÊNCIA, SONHOS, VISÕES E DROGAS


O PROCESSO DE CRIAÇÃO CIENTÍFICA TEM UMA PARTE IRRACIONAL QUE NEM SEMPRE É
MENCIONADA. MUITAS DESCOBERTAS FUNDAMENTAIS FORAM PRODUZIDAS POR CAMINHOS
QUE NEM SEMPRE SEGUIRAM UM MÉTODO RACIONAL E PRECISO.

Muitos investigadores e
cientistas utilizaram
regularmente drogas
para inspirar as suas
experiências e
desenvolver o seu
trabalho.
SHUTTERSTOCK

Prémio Nobel da Medicina de Albert Einstein, «o segredo da criati- que fiz». Esta ideia estava bem estabe-

O Peter Medawar afirmou que,


se perguntarmos a um cien-
tista o que é o método cien-
vidade é saber esconder as suas fontes».
É edificante rever algumas dessas fontes
que não gostamos que sejam conhecidas.
lecida entre os pioneiros da computação
gráfica nos anos 1980 e 1990. Na edição
de julho de 1991 da revista GQ, dizia-se
tífico, «ele adotará uma expressão si- Por exemplo, as drogas, que desempe- que o consumo de drogas era generali-
multaneamente solene e evasiva: solene, nharam um papel importante na desco- zado entre eles. O artigo citava o antigo
porque sente que deve exprimir uma opi- berta da reação em cadeia da polimerase, diretor do Programa de Interface Humana
nião; evasiva, porque pensa como poderá conhecida como PCR, por Kary Mullis. da Intel, Chip Krauskorp, que dizia que a
esconder o facto de não ter opinião a ex- Mullis nunca negou que tem consu- empresa tinha todo o gosto em contratar
primir». Segundo o físico Michael Brooks, mido alucinogénios regularmente desde engenheiros toxicodependentes porque
um cientista dirá algo como: «Bem, te- 1966. Acredita que as drogas são uma eram trabalhadores «muito, muito bri-
mos uma ideia e de- ferramenta maravilhosa para abrir a men- lhantes». O artigo também citava Ralph
pois testamo-la com te a conhecimentos que de outra forma Abraham, agora professor emérito de ma-
uma experiência. seriam inacessíveis. Quando lhe pergun- temática na Universidade da Califórnia
Muito simples, mas taram numa entrevista à BBC se teria em Santa Cruz, confessando que tinha
evita responder a descoberto a PCR sem a ajuda do LSD, sido um «fornecedor de psicadélicos»
uma questão funda- Mullis respondeu: «Duvido. Duvido seria- para a comunidade matemática. Não há
mental: de onde vem mente». Para Mullis, tomar LSD foi «uma dúvida», acrescentou Abraham nesse re-
POR MIGUEL ÁNGEL
essa ideia? Como diz experiência que me abriu a mente... mui- latório, «que a revolução psicadélica dos
SABADELL uma citação apócrifa to mais importante do que qualquer curso anos 60 teve um efeito profundo na his-
Físico

6 SUPER
OS CIENTISTAS
PROCURAM
INSPIRAÇÃO ONDE
QUER QUE A POSSAM
ENCONTRAR
AGENCIA SINC

Um dos sonhos científicos mais céle-

ASC
bres é o do químico August Kelulé, que
Kary Mullis reconheceu que as drogas desempe- fez a sua grande descoberta depois de Loewi sonhou com a conceção de uma experiência
nharam um papel importante nas suas descobertas. adormecer num omnibus (autocarro pu- para a sua teoria química da transmissão nervosa.
xado por cavalos) em Londres, em 1855:
«Passei parte da noite a passar para o
tória dos computadores, da computação papel pelo menos esboços destas formas zer girar. Parado na rua, Tesla exclamou:
gráfica e da matemática». Uma tradição de sonho». Todas as empresas farmacêu- «Aqui podem ver o meu motor.... vejam
que se manteve ao longo do século XX. ticas do mundo têm uma grande dívida como o faço funcionar ao contrário». Os
Nos primeiros anos deste século, a revis- para com ele, porque lhes forneceu o seus amigos assustados sacudiram-no
ta Nature publicou uma série de artigos segredo da estrutura molecular, uma ba- até conseguirem trazê-lo de volta a este
que revelavam que o consumo de drogas se que continua sólida após mais de um mundo. Quando Tesla regressou ao seu
não era invulgar entre os cientistas. Num século e meio. laboratório, construiu o seu famoso mo-
inquérito informal aos seus leitores, dos As «visões» desempenharam um papel tor de corrente alterna.
1437 inquiridos, 20% admitiram utilizar importante na obra do cientista renas- Os sonhos, as alucinações induzidas
drogas como o modafinil, que se usa pa- centista Girolamo Cardano, nascido em por drogas, as visões... são essa parte
ra combater a sonolência excessiva, pa- Pavia em 1501. No ano anterior à sua irracional do processo de criação cientí-
ra melhorar o desempenho cerebral. Tal morte, Cardano escreveu a sua autobio- fica que muitas vezes evita-se mencionar
como os artistas, os cientistas procuram grafia (uma das primeiras da história), quando se fala de ciência. Até as pal-
inspiração onde quer que a encontrem: na qual descreve em pormenor as suas pitações têm a sua importância. Basta
o célebre psicólogo e filósofo William deambulações sexuais, as suas doenças, perguntar ao físico italiano Enrico Fermi,
James realizou grande parte das suas os seus maus momentos e, sobretudo, quando tentava compreender as reações
investigações sob a influência de óxido onde se inspirou para a sua obra científi- nucleares. Os resultados que obtinha no
nitroso. ca, que foi verdadeiramente prolífica. Co- laboratório não faziam sentido e Fermi
mo confessou, os seus amigos e colegas pensou que talvez conseguisse perceber
A HISTÓRIA DA CIÊNCIA ENSINA-NOS QUE estavam convencidos de que a sua obra melhor o que se passava se colocasse um
MUITAS DESCOBERTAS FUNDAMENTAIS FORAM era o produto de «ser profundamente de- bloco de chumbo entre a fonte de neu-
FEITAS DE FORMA POUCO RACIONAL. Assim, dicado ao estudo e possuir uma grande trões e o alvo: isso filtraria os neutrões
em 1921, o farmacologista alemão Otto memória, quando nada disso é verdade». mais lentos e tornaria o bombardeamen-
Loewi teve um sonho que lançou as ba- Porque, na verdade, tudo foi possível to mais controlável. Fermi deu instruções
ses da neurociência. O seu trabalho deu graças «aos serviços do meu espírito as- precisas sobre como construir um tal
origem à teoria química da transmissão sistente»: ele era visitado pelos espíritos bloco de chumbo, mas quando chegou
nervosa e à descoberta dos neurotrans- de familiares, anjos e demónios. A sua a altura de o instalar.... Ele não sabia
missores. Loewi contou a sua descoberta: intuição matemática ultrapassava a mera porquê, mas algo dentro dele lhe dizia
«Na noite anterior ao domingo de Páscoa reflexão consciente. que não o devia fazer. «Inventei todas
desse ano, acordei, acendi a luz e fiz al- Algumas das chamadas «visões cien- as desculpas possíveis para adiar a colo-
gumas anotações num pequeno pedaço tíficas» são incrivelmente semelhantes cação do fragmento de chumbo no sítio.
de papel. Depois voltei a dormir. Às seis às dos místicos religiosos. Veja-se, por Quando finalmente o fui colocar, disse
horas da manhã, lembrei-me que tinha exemplo, a que aconteceu ao inclassifi- para comigo: ‘Não! Não quero esse peda-
escrito algo de grande importância, mas cável Nikola Tesla quando tinha 22 anos ço de chumbo, o que quero é um pedaço
não consegui decifrar os rabiscos. Loe- e passeava com alguns amigos nas ruas de parafina’. Peguei no primeiro pedaço
wi tentou durante todo o dia recordar o de Budapeste, em 1881. Encantado com de parafina que encontrei e coloquei-o
sonho... sem sucesso. E às três horas da a visão de um belo pôr do sol, come- no sítio onde o chumbo deveria ter fica-
manhã a ideia voltou: «era a conceção çou a recitar alguns versos de Goethe do. E funcionou».
de uma experiência para determinar se a quando, de repente, parou a meio de A conclusão? Que a ciência nem sem-
hipótese da transmissão química que eu uma estrofe: viu um campo magnético pre é aquele método racional e preciso
tinha proposto há 17 anos era correcta flamejante a rodar devido a um anel de que os cientistas gostam de contar; o
ou não». Uma experiência que realizou eletroímanes. No interior do anel, viu intangível e irracional é também uma
no seu laboratório antes do nascer do sol uma engenhoca de ferro que podia ser fonte de descoberta incrivelmente pode-
e que se tornou um clássico. ligada a esses eletroímanes para a fa- rosa. e

SUPER 7
F Í S I C A & Q U Í M I C A

MATER
SURPREEND
ENTRE A REALIDA
A literatura e o cinema criaram uma multiplicidade de matérias-primas
extraordinárias que conferem poder e força a quem as possui. Na Terra,
alguns minerais, tecidos e fibras sintéticas são semelhantes em dureza
ou resistência, mas nunca chegam a possuir as suas propriedades únicas
e incríveis. Será que alguma vez seremos capazes de os fabricar?

Texto de EUGENIO MANUEL FERNÁNDEZ AGUILAR, físico

8 SUPER
IAIS
EN TES
DE E A FICÇÃO
SHUTTERSTOCK

SUPER 9
As armaduras
Mandaloriana
são feitas de
beskar, que é
altamente
resistente a
ataques e até
aos sabres de
luz.
LUCASFILM LTD

O
s materiais ficcionais são uma mais resistentes da galáxia. É durável, quase indestru-
parte importante da litera- tível e tem a capacidade de suportar até os golpes mais
tura, do cinema e de outros duros. O Beskar é utilizado para fabricar as armaduras
meios de comunicação rela- dos Mandalorianos, que são um grupo de elite de guer-
cionados com a cultura pop. reiros que seguem um código de honra e tradição. A
Desde o mithril de Tolkien armadura de Beskar é extremamente resistente e po-
ao adamantium dos X-Men, de proteger o utilizador de uma variedade de ataques,
estes materiais inventados incluindo blasters e sabres de luz. Para além da sua
captaram a imaginação de capacidade protetora, o beskar é também usado como
milhões de pessoas em todo moeda na cultura mandaloriana.
o mundo. Embora não exis- Na Terra, existem vários materiais e minerais que
tam na vida real, muitas vezes podem ser comparados ao beskar em termos de re-
partilham características com materiais reais que exis-
tem. Neste artigo, vamos explorar alguns dos materiais
fictícios mais populares na ficção e compará-los com
materiais reais que se lhes assemelham.

O FEIXE CORTANTE DE VIDRIAGON. Game of Thrones apre-


senta o famoso vidriagon, um tipo de vidro vulcânico
que é extremamente duro e resistente. O termo vi-
driagon é uma tradução criativa de dragonglass. Por
isso, também lhe podemos chamar «vidro de dragão».
Na Terra, temos uma rocha ígnea vulcânica com a qual
é frequentemente comparada: a obsidiana. É preta
(ou verde-escura) e tem um brilho vítreo. Além disso,
pode ser cortada para formar arestas vivas, tal como
o vidriagon. O que não sabemos é se a obsidiana ma-
taria os Caminhantes Brancos, como acontece com o
material fictício da série. No entanto, tem sido muito
utilizada na joalharia, no artesanato e no fabrico de vá- A fibra de carbono é
rias ferramentas. extremamente
resistente. Esta fibra
O INDESTRUTÍVEL BESKAR. Beskar é um material fictício sintética é muito
utilizada nas indústrias
no universo da Guerra das Estrelas que é usado na
SHUTTERSTOCK

aeronáutica, espacial e
série de televisão The Mandalorian. Este material é automóvel.
altamente valorizado e é considerado um dos metais

10 SUPER
O diamante é um dos

TKM ARCHIVE
materiais mais duros
conhecidos pelo
homem. O
Adamantium é um
metal que reveste os
ossos e as garras do
Wolverine,
personagem criado
pela Marvel. Este
metal é resistente ao
frio, ao calor e à
corrosão. A maioria
dos heróis é incapaz
de o destruir.

sistência e durabilidade. Um deles é o diamante, que


é uma das substâncias mais duras conhecidas pelo ho-
mem e é capaz de resistir a arranhões e cortes muito
duros. No entanto, o diamante não é tão resistente ao
impacto como o beskar. O aço temperado, por outro
lado, é submetido a um processo de arrefecimento
rápido após o aquecimento para melhorar a sua resis-
tência. O aço temperado é muito forte e é utilizado em
aplicações pesadas, como ferramentas e equipamentos
industriais.

MITHRIL: ARMADURA LIGEIRA. O Mithril é um material fictí-


cio que aparece na obra O Senhor dos Anéis , de J.R.R.
Tolkien, passada no universo da Terra Média. O metal
ALBUM

é muito apreciado pela sua resistência e leveza. O Mi-


thril é descrito como um metal brilhante e prateado,
semelhante à platina. É muito escasso e é encontrado
nas minas de Moria. No enredo (aviso de spoiler), o per-
sonagem principal, Frodo Baggins, recebe uma cota de garras do Wolverine, personagem da Marvel Comics. O
malha de mithril como presente do seu amigo Bilbo. Adamantium é um metal extremamente raro e caro de
Esta armadura protege-o de ataques e é de grande va- produzir, criado pelo cientista fictício Myron MacLain,
lor para a história. A cota de malha de mithril também que utilizou um processo secreto para o fabricar. É
desempenha um papel importante na batalha final da um metal indestrutível, resistente ao calor, ao frio e
peça, onde ajuda a proteger o personagem principal de à corrosão. É um metal tão duro que até a maioria dos
um golpe mortal. O mithril é também utilizado no fa- heróis mais poderosos da Marvel têm dificuldade em
brico de armaduras e armas. destruí-lo.
Como noutros casos, temos materiais reais que po- Existe um composto binário real que pode ser compara-
dem assemelhar-se um pouco ao mithril. Um deles é a do ao adamantium, o nitreto de boro cúbico (c-BN). O
fibra de carbono. Trata-se de uma fibra sintética feita de C-BN é um material sintético criado a partir do nitreto
carbono, muito forte e resistente, mas também muito de boro e é frequentemente utilizado em ferramentas de
leve. A fibra de carbono é frequentemente utilizada em corte e polimento, uma vez que é um dos materiais mais
aplicações de alta tecnologia, como a aeronáutica e a in- duros do mundo (risca o diamante). É resistente a altas
dústria automóvel, devido à sua combinação única de temperaturas, quimicamente estável e muito resisten-
resistência e leveza. Mas talvez a mais adaptável a uma te à abrasão. Ao contrário do adamantium, o c-BN não
cota de malha seja o Kevlar, que é muito forte e leve e é indestrutível e pode estilhaçar-se ou partir-se sob
é utilizado numa variedade de aplicações militares e de pressão suficiente. O Dr. Robert Wentorf descobriu este
segurança, bem como nas indústrias aeroespacial, da material em 12 de fevereiro de 1957 nos laboratórios da
construção e do desporto. Também aparece em cintos General Electric. A empresa patenteou-o mais tarde e
de segurança como reforço e em pneus topo de gama. começou a comercializá-lo em 1969.

ADAMANTIUM: O ESQUELETO INDESTRUTÍVEL. O Adaman- VIBRANIUM: O ALIENÍGENA. O vibranium, conhecido pela


tium é um metal fictício que envolve os ossos e as sua capacidade de absorver energia e força extrema,

Um material semelhante ao mithril do Senhor dos Anéis


poderia ser a fibra de carbono, que é muito resistente e leve
SUPER 11
ALBUM
SHUTTERSTOCK

O escudo do Capitão América é outro objeto feito de vibranium. Na imagem, uma cena de Superman Returns, 2006. A kryptonite é
É indestrutível e capaz de absorver golpes e projéteis, o que o um material originário do planeta natal do Super-Homem,
torna uma arma muito poderosa. Krypton, e tem a capacidade de o enfraquecer.

também se encontra no Universo Marvel. Trata-se de também utilizado na indústria militar e de defesa para
um mineral extraterrestre encontrado apenas na re- a produção de armas e armaduras.
gião de Wakanda, em África. O filme Pantera Negra
começa com a história de como um meteorito compos- KRYPTONITE: O PONTO FRACO DO SUPER-HOMEM. A
to por vibranium caiu na região. A partir daí, detalha kryptonite é um mineral fictício na história do Super-
que o material é utilizado em muitos outros aspectos -Homem, originário do seu planeta natal, Krypton.
da tecnologia wakandana, como na criação do traje É uma substância radioativa que afeta negativamente
do personagem Pantera Negra, que lhe dá capacidades os kryptonianos, como o Super-Homem, enfraque-
sobre-humanas como força, velocidade e resistência cendo as suas capacidades e, em casos extremos, até
superiores. Mas o vibranium aparece em outros filmes matando-os. Alguns minerais, como a autunite e a tor-
e banda desenhada, como no filme dos Vingadores. bernite, podem ter um brilho esverdeado semelhante
Neste caso, o personagem Capitão América usa um es- ao da kryptonite na ficção, mas não têm qualquer
cudo feito de vibranium. O escudo do Capitão América efeito radioativo nos seres humanos ou noutros seres
é conhecido pela sua indestrutibilidade e capacidade vivos. Por outro lado, a exposição prolongada a ma-
de absorver golpes e projéteis, o que o torna uma arma teriais radioativos como o urânio, o plutónio e o rádio
extremamente poderosa. pode ser perigosa para a saúde humana e causar doen-
Na vida real, existem alguns materiais que podem ter ças como o cancro e outros problemas médicos. Assim,
propriedades semelhantes ao vibranium em termos de se combinarmos o brilho esverdeado da autunite ou da
resistência e durabilidade, como o titânio ou o aço de torbenite com a radioatividade do urânio, do plutónio
alta qualidade. No entanto, estes materiais não têm a ou do rádio num só material, teremos uma kryptonite
capacidade de absorver energia da mesma forma que humana.
o vibranium tem no universo Marvel. O titânio é uti-
lizado na indústria aeroespacial, devido à sua elevada SABRES DE CRISTAL KYBER. No universo da Guerra das
resistência e baixo peso. É normalmente utilizado na Estrelas, os cristais Kyber são uma espécie de cristal
construção de aviões, foguetões e satélites. Também altamente energético e sensível à Força, utilizado na
é utilizado na produção de implantes médicos, como construção de sabres de luz Jedi e Sith. Estes cristais
substitutos de ossos, devido à sua capacidade de ser são muito raros e encontram-se em locais sagrados,
biocompatível com o corpo humano. Além disso, o como o planeta Ilum. Os Jedi consideram os cristais
titânio é resistente à corrosão e a temperaturas eleva- Kyber sagrados e tratam-nos com grande reverência,
das, o que o torna ideal para utilização em aplicações enquanto os Sith os vêem como uma ferramenta para
que exijam elevada resistência à oxidação e ao calor. É ganhar mais poder e controlo. Para construir um sabre

12 SUPER
O Jedi sintoniza o cristal
Kyber através de meditação
profunda, mas se o cristal
não o aceitar, não
funcionará

de luz, um Jedi tem de encontrar um cristal Kyber e


sintonizá-lo com a Força através de meditação profun-
da. Se o Jedi não tiver a força certa ou se o cristal não o
aceitar, o cristal não funcionará.
Existem materiais reais que têm algumas caracterís- Os cristais Kyber nos
sabres canalizam
ticas em comum com os cristais Kyber. Por exemplo, energia. Os Jedi
há cristais que têm propriedades piezoelétricas, o que consideram-nos
significa que podem gerar uma carga elétrica quando sagrados.

ASC
sujeitos a pressão. Existem também cristais com ele-
vada condutividade térmica e elétrica, o que pode ser
semelhante à capacidade dos cristais Kyber para cana-
lizar energia. A turmalina é um exemplo de um mineral
com propriedades piroelétricas e piezoelétricas. Em
termos da sua semelhança com os cristais Kyber da
Guerra das Estrelas, a turmalina é um material pie-
zoelétrico, o que significa que é capaz de converter
energia mecânica em energia elétrica. Esta proprie-
dade pode ser semelhante à capacidade dos cristais
Kyber de armazenar e libertar energia sob a forma de
um feixe de sabre de luz. No entanto, é importante
notar que a turmalina não tem outras propriedades
exclusivas dos cristais Kyber, como a capacidade de
mudar de cor ou o seu papel na Força no universo da
Guerra das Estrelas. Devido à sua capacidade de gerar
uma carga elétrica a partir da pressão, a turmalina é
utilizada em aplicações como sensores de pressão, mi-
crofones e altifalantes.

UNOBTAINIUM: A PEDRA FILOSOFAL. Existem muitos outros

IVAR LEIDUS
materiais famosos em filmes, livros e banda desenha-
da. Alguns exemplos são o uru, um mineral metálico
da primeira lua existente a partir do qual é feito o mar- A turmalina é o mineral que mais se assemelha aos cristais Kyber. É um
telo de Thor, ou as dezenas de materiais mencionados material piezoelétrico, que converte energia mecânica em energia elétrica.
na saga Star Trek, como o neutrónio. Em todo o caso,
são sempre materiais com capacidades extraordinárias
que combinam as características de vários minerais O martelo de Thor também
tem poderes. É feito de uru,
ou rochas. Embora a pedra filosofal seja um conceito um mineral metálico.
do universo alquimista, podemos dizer — alargando o
termo — que cada universo ficcional tem a sua própria
pedra filosofal. Embora por vezes nem sequer mudem
o nome, como em Harry Potter ou Fullmetal Alche-
mist. Mas há um termo mais moderno que se refere a
este material todo-poderoso: unobtainium. É normal-
mente utilizado como um termo genérico na ficção
científica para se referir a um material ou substância
hipotética que é extremamente rara, valiosa ou difícil
de obter. É impossível de obter no mundo real, daí o
termo «inatingível «. O termo tem sido utilizado des-
de o final dos anos 50 pelos engenheiros aeroespaciais
para se referirem a materiais invulgares ou dispendio-
sos. Será que o futuro da exploração espacial nos trará
diferentes espécies de unobtainium? Iremos descobrir
ALBUM

nas próximas décadas. e

SUPER 13
S A Ú D E

Foi demonstrado
que é benéfico
baixar o LDL
enquanto sobe o
HDL, o que não é o
mesmo que dizer
que é benéfico
ISTOCK

aumentar o HDL.

14 SUPER
QUANDO O EXCESSO DE
colesterol ‘bom’
PREJUDICA O
CORAÇÃO
O colesterol elevado é uma das principais
preocupações dos portugueses, de acordo
com os dados do Inquérito Europeu de Saúde,
realizado pelo Instituto Nacional de Estatística.
Além disso, os níveis elevados favorecem o
aparecimento de doenças cardiovasculares,
a principal causa de morte nos países
ocidentais. As mensagens sobre o «bom» e
o «mau» colesterol podem ser enganadoras.
Até que ponto é importante ter níveis elevados
de colesterol «bom», e pode mesmo ser
prejudicial em vez de saudável?

Texto de JAVIER GRANDA REVILLA,


jornalista especializado em saúde

SUPER 15
O
colesterol é formado no fígado Existem três tipos principais de colesterol,três lipo-
a partir de alimentos gordos proteínas que são formadas por uma combinação de
como a gema de ovo, alguns lípidos — ou seja, gorduras — e proteínas que devem
tipos de carne ou queijo. É estar unidas para se deslocarem no sangue. O primeiro
um componente essencial em tipo de lipoproteínas são as lipoproteínas de alta densi-
muitas partes do corpo, para dade (HDL), que são popularmente conhecidas como o
além de desempenhar um pa- colesterol «bom», transportando o colesterol de outras
pel fundamental no sangue. partes do corpo para o fígado, que o elimina, mantendo
Por exemplo, é essencial nas as artérias limpas.
membranas celulares, para O segundo tipo são as lipoproteínas de baixa den-
produzir hormonas, vitamina sidade (LDL), vulgarmente designada por colesterol
D ou substâncias para digerir «mau», uma vez que níveis elevados acumulam placas
os alimentos. E também na mielina, a substância que nas artérias e podem causar a longo prazo efeitos graves
reveste os nervos, facilitando a condução dos impulsos na saúde.
elétricos. Por último, as lipoproteínas de muito baixa densida-
Foi descrito pela primeira vez em 1769. O crédito foi de (VLDL) transportam triglicéridos, o tipo de gordura
atribuído a François Poulletier de la Salle. Mas só em mais comum no organismo.
1815 é que recebeu o seu primeiro nome: o químico
Michel-Eugéne Chevreul batizou-a de «colesterina». OS NÍVEIS DE COLESTEROL LDL AUMENTAM DEVIDO A UMA COM-
Posteriormente, o neologismo «colesterol» foi cunha- BINAÇÃO DE UMA MÁ ALIMENTAÇÃO — RICA EM GORDURA — E
do pela combinação das palavras gregas chole (bílis, UM ESTILO DE VIDA SEDENTÁRIO. Para além disso, o tabaco
porque se encontrava originalmente neste órgão) e ste- reduz o colesterol HDL (especialmente nas mulheres)
reos, que significa sólido. e aumenta o LDL. O aumento pode também dever-se
Mas a verdade é que o colesterol é mais conhecido a causas genéticas, como nos doentes com hipercoles-
pela sua presença no plasma sanguíneo: o seu excesso terolemia familiar, a outras doenças ou ao consumo de
pode fazer com que se transforme em placa ateromatosa fármacos. Os níveis tendem a aumentar com a idade.
quando combinado com outros produtos. Esta acumula- A obesidade também aumenta os valores. «Quando
ção, conhecida como aterosclerose (ou arteriosclerose), falamos de colesterol, estamos a falar de prevenir as
pode provocar o estreitamento e até a obstrução das doenças cardiovasculares, que são a principal causa de
artérias, o que, por sua vez, pode levar a ataques car- morte no mundo.», adverte o Professor Lluis Masana,
díacos, tromboses, embolias, aneurismas ou acidentes catedrático da Universidade Rovira Virgili e responsável
vasculares cerebrais, entre outras complicações. pela Unidade de Investigação em Lípidos e Arterios-

Intestino Fígado
Tecidos ApoB-100
extra-hepáticos ApoE
colesterol ApoC-II
LDL-R Lipase lipoproteica (LPL)
TG ApoB-100
CE LDL-R

Sangue
VLDL IDL LDL
CE CE
CE
TG TG
TG TG Aterogénese

LPL

LDL-R

EC: COLESTEROL ESTERIFICADO


FA colesterol
TG: TRIGLICERÍDEOS
FA: ÁCIDOS GORDOS
Músculo/coração/
NIH-LIBRARY

tecido adiposo
Via das lipoproteínas endógenas (VLDL e LDL).

16 SUPER
As lipoproteínas de
baixa densidade, LDL
ou colesterol mau,
num nível elevado,
podem acumular-se
nas artérias e causar
graves efeitos na
saúde.

ISTOCK
clerose (URLA) e pela Unidade de Medicina Vascular e baixo possível, porque é muito aterogénico, ou se-
Metabolismo (UVASMET). ja, cria muitas placas ateromatosas. Mas, então, será
O Dr. José Luis Zamorano é outro investigador de saudável ter o colesterol HDL o mais elevado possí-
referência no domínio do colesterol, bem como vi- vel, como já foi referido muitas vezes nos últimos 50
ce-presidente da Sociedade Europeia de Cardiologia anos? Não, de acordo com estudos recentes, como o
(ESC) e diretor do Serviço de Cardiologia do Hospital REGARDS, publicado no início de 2023, que estudou
Universitário Ramón y Cajal de Madrid. Como subli- 23 901 pessoas nos Estados Unidos e concluiu que ter
nha, um aspeto fundamental é começar a ser ativo e demasiado colesterol «bom» pode mesmo ser preju-
a ter uma alimentação saudável desde a infância, por- dicial. A Dr.ª Nathalie Pamir, professora de medicina
que os maus hábitos higiénico-dietéticos provocam o cardiovascular na Faculdade de Medicina da Universi-
aparecimento da chamada «linha gorda» nas artérias,
que é o precursor da placa de ateroma e do aumento do
risco cardiovascular. «A solução não é única: nos anos
50, demonstrou-se que passa por uma dieta mais sau-
dável — como a dieta mediterrânica —, mais exercício e
cuidados médicos. Primeiro surgiram as estatinas, me-
dicamentos que representaram um grande avanço no
controlo dos níveis de colesterol LDL. Embora tenham
salvado milhares de vidas, por vezes não atingem os
objetivos terapêuticos, sobretudo em doentes de risco
muito elevado, sendo necessários outros tratamentos.
Desde então, tivemos avanços como a ezetimiba ou o
ácido bempedóico. Ou, mais recentemente, com mais
fármacos inovadores. Todos eles nos permitem dizer
que é muito difícil não ter um doente sob controlo»,
SHUTTERSTOCK

resume.
É perigoso ter níveis elevados de colesterol «bom»?
Estudos a longo prazo, como o de Framingham (rea- Os médicos insistem que a sociedade deve empenhar-se na
lizado nessa cidade de Massachusetts desde 1948), educação sócio-sanitária e higiénico-dietética desde a infância,
estabeleceram que o colesterol LDL deve ser o mais com ênfase numa alimentação correta.

Estudos demonstraram que também é indesejável ter


muito alto o colesterol bom, ou HDL
SUPER 17
Níveis elevados
de colesterol
HDL aumentam o
risco de ataque
cardíaco ou de
morte por causas
cardiovasculares.
GETTY

O que é realmente importante é reduzir os níveis de LDL,


que é responsável pela doença aterosclerótica

dade de Health & Science de Oregon (EUA) e principal


autora do estudo, disse esperar que estes resultados
levem a uma revisão do algoritmo de previsão do risco
de doença cardiovascular.
A mesma conclusão foi alcançada num estudo com
6000 pacientes apresentado no congresso da Sociedade
Europeia de Cardiologia, em Viena, em agosto de 2018:
os investigadores da Universidade Emory, em Atlanta
(EUA), que o realizaram, sublinharam que níveis eleva-
dos de colesterol HDL aumentam o risco de sofrer um
ataque cardíaco ou de morrer por qualquer causa car-
diovascular. As razões para este facto ainda estão a ser
investigadas.

NÃO EXISTE NENHUM ESTUDO CIENTÍFICO QUE DEMONSTRE


QUE É BENÉFICO AUMENTAR O HDL SEM BAIXAR O LDL. É o
que diz o doutor Zamorano. «De facto, um medi-
camento que apenas aumentava o HDL teve de ser
retirado do mercado. Foi demonstrado que é muito
benéfico baixar o LDL enquanto se aumenta o HDL, o
que não é o mesmo que dizer que é benéfico aumentar
apenas o HDL: isso não é verdade. O objetivo é man-
ter o LDL muito baixo, porque é a principal causa da
doença aterosclerótica».
O doutor Masana, que acaba de apresentar vários
trabalhos no congresso da Sociedade Europeia de Ate-
rosclerose em Mannheim, na Alemanha, salienta que
a redução do colesterol LDL é especialmente benéfica
em doentes com elevado risco de doença cardiovas-

18 SUPER
Novos medicamentos
já demonstraram ser
muito eficazes na
redução da placa de
ateroma e um novo
medicamento pode
reduzir o colesterol
com uma injeção de
seis em seis meses.

SHUTTERSTOCK
cular. «Os valores devem ser especialmente baixos, uma das principais dificuldades é o facto de, nos doen-
sobretudo naqueles que já tiveram um primeiro evento tes de risco elevado e muito elevado, se começar «em
cardiovascular. Ou que, sem o terem tido, têm fatores geral» com tratamentos «que não são adequados para
que aceleram o processo, como a diabetes: se isto for conseguir as reduções que se têm mostrado eficazes:
conseguido, pode reduzir o número de eventos cardio- começa-se com doses baixas de medicamentos e depois
vasculares em 20%», descreve. Do seu ponto de vista, não se muda. Este é um tipo de comportamento que
nós, médicos, temos e que se chama «inércia terapêuti-
ca», o que significa que a dose só é aumentada em 40%
dos casos».
E como é que podemos melhorar o nosso estilo de vida?
O doutor Zamorano aposta na educação nas escolas. «É
muito difícil ver uma pessoa com menos de 20 anos que
recicla mal o lixo ou que deita um pedaço de papel para
a rua ou pela janela do carro. E a chave é a educação que
se aprende na escola, por isso, se queremos ter um ver-
dadeiro impacto na sociedade, temos de nos concentrar
na educação sanitária e higiénico-dietética nos primei-
ros anos de vida», afirma.

EM TERMOS DE LINHAS DE INVESTIGAÇÃO PROMISSORAS, cita,


entre outros, os resultados publicados em março nos
Estados Unidos com o ácido bempedóico, bem como
outros novos medicamentos, como os inibidores da
PCSK9, que conseguiram a remissão da placa de ate-
roma. A este respeito, um outro novo medicamento
que está a ser testado, e que aguarda a publicação dos
resultados, poderia reduzir o colesterol com uma úni-
ca injeção de seis em seis meses. «É um campo que
ainda tem muito para oferecer aos doentes», conclui
Zamorano. Quanto ao futuro, destaca a linha de inves-
tigação que está a estudar que, ao reduzir o colesterol
tão intensamente como está a ser proposto, não só se
A dieta mediterrânica e a está a prevenir a doença, como também a tratá-la. «A
prática de exercício físico
pessoa que teve um enfarte e tem uma lesão coronária
evitariam a formação da
chamada «estria gorda» nas
deve saber que, se baixarmos muito o colesterol, pode-
mos reduzir e estabilizar essa lesão ou qualquer outra
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artérias, um precursor da
placa de ateroma. que tenha, porque quem tem uma, normalmente tem
várias», conclui. e

SUPER 19
ENTREVISTA

Jerónimo Pizarro
«Pessoa escreveu poemas que quase ninguém mais tinha escrito no
mundo, no início do século XX, como «Ode Marítima» (1915), uma das
maiores obras das vanguardas históricas...»

Entrevista de ELSA REGADAS

J
erónimo Pizarro é que revisita certas ruas e os habitantes dessas ruas como
professor, tradu- mais um português «afuerino», como mais um «etrange
tor, crítico e editor, étranger» (e estou a pensar em Lina Meruane e em Fer-
responsável por nando Pessoa).
um grande núme-
ro de edições de Em que momento da sua vida Fernando Pessoa se lhe tor-
e sobre Fernando nou uma revelação? Como é que um colombiano decide
Pessoa. Professor que quer tornar-se especialista num autor português tão
da Universidade «complexo e controverso»? O que o fez tomar a decisão
dos Andes, titular de mergulhar a fundo na sua obra?
da Cátedra de Estu- Digamos que o «desassossego» é o nome de uma depen-
dos Portugueses do dência e que eu caí nela. Caí quando li muito novo o tal
Instituto Camões e Livro, caí quando já em estádio doutorando afundei no ar-
Prémio Eduardo Lourenço (2013), Jerónimo Pizarro fala à quivo, caí quando fui perpassado por certos versos e cer-
Super Interessante de uma das suas grandes paixões, que tas sensações. Ser colombiano é um «acto de fé», como
é também um dos nossos maiores orgulhos nacionais. diria Jorge Luis Borges, mas podemos abdicar desse acto e
com alguma obstinação (estou a pensar em Herman Hes-
Já iremos conversar sobre o tópico principal desta en- se) mergulhar noutros universos, até para respirar com as
trevista, que é a sua relação especial com Fernando divisões impostas por outros compassos. Eu estudei quase
Pessoa como editor, tradutor e crítico. Mas antes, para dois anos antropologia e pensei muito em questões como a
enquadrar os nossos leitores, fale-nos um pouco mais «otredad», a alteridade e a tolerância. De certa forma, es-
globalmente sobre a sua relação com Portugal e dessa tava a «voar outro», como Pessoa, antes de tentar perce-
ponte que o Jerónimo Pizarro faz com a Colômbia, seu ber questões como fingimento, despersonalização e hete-
país de origem. ronimismo. Pessoa é complexo, sim; afinal, é Campos que
Portugal foi o lugar da minha expansão de vida, de es- declara: «O Super-homem será, não o mais duro, mas o
tudos, até, por assim dizer, de respiração. Se eu tinha mais complexo!». E é controverso, sim; afinal, é António
problemas respiratórios, morar em Lisboa por quase Mora que afirma: «Há pontos em que nem é útil, nem pos-
onze anos foi um tratamento feliz. De uma Lisboa que sível ser conciso, como aqueles em que a explanação é de
hoje está a desaparecer (ou já estava, mas não da mesma um assunto complexo, ou a demonstração de um assunto
forma, se pensarmos na obra de Marina Tavares Dias), controverso, onde as objecções hão-de ser previstas e res-
guardo recordações de felicidade, de pondidas, e as diversas formas da in-
harmonia entre o corpo e o espírito. terpretação revistas e classificadas».
Eu nunca precisei de nenhum turis-
ta para reconhecer um tesouro bem
É Campos que E para quem queira iniciar-se na
guardado e sempre soube que Portu-
gal era um «cantinho» em que podia declara: «O primeira leitura do poeta, que obra
ou obras aconselharia, na sua visão
acantonar-me ou abrigar-me com
sossego. Sou dos que sente os olhos Super-homem de especialista em Fernando Pessoa?
Bom, eu sou leitor antes do que es-
vencidos por uma emoção silenciosa
quando vê o Tejo antes de aterrar em será, não o mais pecialista, nem sempre percebo o
lugar de Pessoa em certos planos
Lisboa; quando vê o Douro enquanto curriculares (e os motivos para ex-
entra no Porto. Mas nunca fui de ca- duro, mas o mais cluir obras como o Livro do Desas-
pelas, apenas de freguesias, isto é, de sossego), mas para simplificar, e
uma vida de bairro, e sempre serei o complexo!» responder, talvez sugeria começar

20 SUPER
«Os «estudos

COLECCAO PESSOA PIZARRO


pessoanos» estão
estranhamente limitados
e Pessoa gera muitos
anticorpos. Falta uma
consciência nacional que
ponha em acção uma
série de novos
projectos.»

SUPER 21
por um poema de Álvaro de Campos: «Tabacaria». Es- dos seus escritos, e na qual mergulhou, há alguma
sa «espécie de epopeia do fracasso absoluto», para citar correspondência específica que considere particular-
Robert Bréchon, já operou alguns milagres: tornou-se mente reveladora? E de entre a sua biblioteca, o que
uma revelação para múltiplos tradutores e estudio- destacaria como sendo mais claramente influenciador
sos que acabaram por viajar a Portugal por causa desse da sua obra?
«chamado» negativo ou distópico. Sempre devíamos A meu ver, não deixa de ser paradoxal que já existam
começar por essas obras que nos transformam, das quais pelo menos sete biografias de Pessoa (duas portuguesas,
não saímos do mesmo jeito que entramos. duas espanholas, uma americana, uma francesa e uma
brasileira) e ainda não exista um epistolário completo,
FP é, claramente, o poeta português mais conhecido fora até porque as biografias tendem a depender da corres-
de fronteiras. O que é que o distingue realmente de outros pondência (um caso exemplar é Flaubert, mas também
autores portugueses importantes e o faz ser tão apreciado Joyce), e porque no caso de Pessoa existia uma grande
pelo mundo fora, quase 100 anos passados da sua morte? lacuna: as cartas de e para a família. De certa forma, a
Pessoa escreveu poemas que quase ninguém mais tinha vida literária de Pessoa nasceu de uma troca de cartas
escrito no mundo, no início do século XX, como «Ode (as do Chevalier de Pas, por exemplo) e a vida profissio-
Marítima» (1915), uma das maiores obras das vanguardas nal de Pessoa viveu do «import/export» de missivas,
históricas, publicada numa revista, Orpheu, que procu- sendo ele um «correspondente estrangeiro em casas
rou ser «a soma e a síntese de todos os movimentos li- comerciais». De Pessoa temos muitas cartas, mas esta-
terários modernos». Pessoa aprofundou questões como mos longe de ter todas; e temos ignorado muitos ras-
a existência (Kierkegaard), a mentira artística (Wilde), cunhos. Para mim, por exemplo, foi revelador um ras-
o teatro no teatro (Pirandello), e outras afins, que mar- cunho de carta de Pessoa para Pacheco (cf. «Fernando
caram, no século passado, determinadas obras, nomea- Pessoa e José Pacheco: Entre uma polémica e uma carta
damente algumas existencialistas, ficcionais e absurdas. sem resposta»), publicado no âmbito do centenário da
Pessoa soube criar os seus precursores e canonizar os seus revista Contemporânea, em que Pessoa confronta, no
mestres, entre os quais, Antero de Quental, Cesário Verde papel, o «antigo camarada», acusando-o de se adaptar
e Camilo Pessanha. Pessoa apropriou-se de uma cidade, ao «meio académico e oficial».
Lisboa, através de um livro, o Desassossego, que deixou Já sobre a Biblioteca, e em modo de homenagem, gosta-
órfão de cidade e ciumento a Saramago. Pessoa soube va apenas de citar um texto de José Barreto: «Trata-se
criticar o provincianismo e ser universal, no sentido de de John Mackinnon Robertson, um intelectual que foi
«focar num ponto nítido e universalmente transmissível escritor prolífico, filósofo racionalista, político liberal,
a intelectualização da sensação». Pessoa foi, como Borges crítico literário, etc., morto em 1933, dois anos antes de
disse de Shakespeare, «everything and nothing» e «La Pessoa. Robertson, escritor prolífico, deixou uma obra
identidad fundamental de existir, soñar y representar le impressionante de mais de cem títulos. Figura um pou-
inspiró pasajes famosos». Pessoa sonhou com voltar a ser co esquecida, após a morte, na própria Inglaterra, mas
Camões, Shakespeare, Goethe, Maeterlinck, Whitman, e cuja obra, como pude constatar com surpresa, exerceu
tantos outros. Pessoa teve infindáveis projectos e filoso- notável influência sobre Fernando Pessoa, que tinha nas
fias... Quis ser «plural como o universo». suas estantes nada menos que 23 obras dele [...], muitas
delas anotadas a lápis à margem. Num critério mera-
Relativamente à correspondência de Pessoa, que mente quantitativo, isto faz de Robertson, e de longe,
constitui uma parte significativa para a compreensão o autor melhor representado na biblioteca de Pessoa
(ou no que ela era no momento da morte), entre todos
os géneros literários. Infelizmente, quase só em função
Considerado das datas de edição desses livros é que é possível situar a
por Eduardo data da sua aquisição ou leitura por Pessoa» (A Arca de
Lourenço como Pessoa – Novos Ensaios).
uma espécie
de «último Os heterónimos, que atravessam toda a obra de Pessoa,
heterónimo de
acrescentam várias camadas de complexidade, sobre-
Pessoa», Pizarro
tem sido um dos tudo se sairmos da esfera dos mais célebres. É possível
mais incansáveis virmos a conhecer plenamente a totalidade da sua obra,
editores do ou só no ano de 2198 (!), conforme ele profetizou?
grande poeta Confesso que tenho dúvidas. Os «estudos pessoanos»
português. estão estranhamente limitados e Pessoa gera muitos
anticorpos. Falta uma consciência nacional que ponha
em acção uma série de novos projectos. Mas se Portu-
gal não é ambicioso em termos da promoção da língua
e da cultura portuguesas, porque o seria em termos da
edição e do estudo de Fernando Pessoa? Aliás, na Co-
lômbia acontece algo semelhante com o Gabriel García
Márquez: é declarado o maior escritor do país, mas é
pouco estudado, em 2013 era quase impossível encon-
trar livros de Gabo nas livrarias do país, e depois da sua
morte, em 2014, o espólio foi para os EUA (Harry Ran-
som Center, The University of Texas at Austin) e ainda
não existe um Centro de Estudos dedicado à sua obra.

22 SUPER
E quanto ao «verdadeiro eu» de Pessoa, é possível co-
nhecê-lo? As múltiplas vozes heteronímicas refletem a
identidade e visão que tinha do mundo, ou considera que
são produto de um amplo imaginário criativo que pode
obscurecer a verdadeira intenção do autor?
Essa é uma discussão interminável, que passa por acredi-
tarmos mais na unidade ou na multiplicidade pessoana.
Mas eu tendo a concordar com Onésimo Almeida, quan-
do defende que há um sujeito com umas certas coorde-
nadas mínimas que foi, sempre, consistente e, embora
fosse humano, teve uma curiosidade infinita e mudou
de opinião sobre certos assuntos. «Pessoa era múltiplo,
mas não era tudo, embora às vezes pareça ser tudo para
todos. Longe mesmo disso. Era o que eram as coisas por
que se interessou. [...] Havia muitas realidades que de
modo nenhum cabiam na sua metafísica, por mais vasta e a forma definitiva sejam alcançáveis. Julgo mesmo que
e abrangente, nem tão-pouco foram alguma vez contem- seria empobrecedor caso a componente teórica fosse ra-
pladas. [...] É possível analisar-lhe os temas, as obsessões surada a troco de um consenso utilitário sobre a forma
recorrentes e detectar-lhe as constantes, as insistências, do texto pessoano» (Doença Bibliográfica).
o núcleo duro do seu pensamento, em contacto e con-
tágio com tantos pensadores, mas sempre marcado pelo Em 2017, foi coautor do ensaio Como Fernando Pessoa
golpe genial da sua inteligência, que disseca imediata- Pode Mudar a Sua Vida. Como é que Fernando Pessoa
mente e reduz a cacos tudo o que lê. Mas uma coerên- pode mudar vidas?
cia de fundo acaba por emergir, embora com fronteiras E como é que ainda pode mudar vidas! Pessoa não tem
muito abertas, indefinidas e às vezes incoerentes. [...] é deixado de ser actual nem espero que o deixe de ser tão
possível captar-lhe as linhas fundamentais da sua mun- cedo. Muitas das chamadas «lições» desse livro ainda
dividência» (Pessoa, Portugal e o Futuro). são actuais. Carlos Pittella e eu temos aprendido mui-
to a ler Pessoa, e não apenas em termos factuais ou de
Considerando a natureza enigmática e simbólica da es- conhecimento examinável, mas em termos pessoais,
crita de Pessoa e as múltiplas interpretações da sua obra de «lições de vida». Ambos acreditamos em dimen-
ao longo dos anos, pensa que alguma vez será possível os sões mais lúdicas e espirituais da vida, ambos consi-
especialistas chegarem a um consenso interpretativo? deramos que Pessoa é um conjunto de grandes textos,
Espero que não, e é um não não isento de um sorriso. E mas também uma série de histórias, emoções e curio-
já foram três não! Prefiro o dissenso, sidades. Ambos queríamos um livro
a heterodoxia. Disse Eduardo Lou- que fosse além de Pessoa, o Poeta,
renço: «Escrevendo Heterodoxia,
o meu propósito era em certos ter- Pessoa teve e que o retratasse em mais aspectos
e âmbitos da vida e da obra. Ambos
mos, muito claro, na medida em que
queria demarcar uma atitude. Um infindáveis consideramos necessário um diá-
logo com How Proust Can Change
domínio, um território. Que me pu- Your Life (1997), de Alain de Bot-
sesse fora dos campos delimitados projectos e ton, e com livros em que o rigor e o
por qualquer ortodoxia, de qualquer conhecimento não rivalizam com a
género que fosse. Tinha, pelo me- filosofias... Quis criatividade nem com a divulgação.
nos, esse significado negativo» (Ex-
presso, 16 de Janeiro de 1988). Entre ser «plural como Que conselho deixaria a um estu-
muitos pesadelos possíveis, um seria dante que deseje especializar-se aca-
o sonho lúgubre de uma ortodoxia
pessoana. O que espero não é esse
o universo» demicamente em Fernando Pessoa?
Que mantenha a mente aberta, que
consenso, mas uma maior plurali- não se deixe «sensurar» (com «s»,
dade e expansão. E internacionalização. Faz muita falta de sensibilidade) e não trate Pessoa como uma ilha, mas
sair de corredores estreitos, de gabinetes pouco areja- como parte de um arquipélago, de uma constelação, de
dos. Faz falta alguma coragem e independência crítica. um lugar e de um tempo concretos.
Faz falta ter uma base de dados bibliográfica de referên-
cia. Faz falta criticar a crítica, expandir as discussões. Apresente-nos sumariamente «Ler Pessoa», o seu livro-
Nem sequer em termos da decifração de certas palavras -síntese sobre um dos maiores escritores do século XX.
manuscritas espero um consenso, embora nesse campo Após ter editado e traduzido Pessoa, após ter mantido
as opções sejam maiores. Diz João Dionísio: «No que diz uma revista académica internacional dedicada aos estu-
respeito à dimensão mais técnica da atividade editorial, dos pessoanos, hoje sinto, com gratidão, que ler Pessoa me
a decifração, estou convencido de que este tempo tem levou um dia a descobrir «toda uma literatura», quer a do
vindo a chegar, a velocidades diferentes, para a maior próprio Pessoa, que utilizou essa expressão, quer a escrita
parte dos papéis de Pessoa. No entanto, porque a edição em português. Ler Pessoa costuma levar a ler mais Pessoa,
não se esgota na técnica e tem, pelo menos, uma compo- a percorrer os livros da sua biblioteca particular, a estudar
nente teórica (visível nas diferentes noções de texto que os seus críticos mais alquímicos e os seus diversos biógra-
subjazem a diferentes edições de Pessoa), além de ter fos. Espero que este livro convide a essas leituras e a novas
uma componente comercial, duvido de que o consenso releituras. A entrar e sair desse vasto universo. e

SUPER 23
A S T R O N O M I A

O NOVO PROJETO DO SETI

O projeto SETI procura


sinais tecnológicos de
banda estreita, uma vez
que só a tecnologia pode
produzir este tipo de sinal.
Por outras palavras, teria
de ser um sinal de
GETTY

tecnologia extraterrestre.

24 SUPER
O novo projeto SETI (Search for Extra
Terrestrial Intelligence) tem como objetivo
captar sinais de banda estreita, aqueles
que não podem ser produzidos pela natureza
e que só responderiam à emissão por
extraterrestres. O sonho de encontrar provas
de vida inteligente fora da Terra.

Texto de NANDO CARMONA,


divulgador de ciência, especialista em
observação e fotografia planetária

SUPER 25
A
obsessão pela procura de in- pelo problema dos falsos positivos. Além disso, as assi-
dícios de outras civilizações naturas tecnológicas têm outras vantagens: um custo
na nossa galáxia continua muito mais baixo do que a pesquisa de assinaturas
através do SETI, que há um biológicas; um volume de pesquisa que é um milhão
mês lançou um dos seus mais de vezes maior do que a bolha local relativamente pe-
excitantes projetos financia- quena que leva à pesquisa de assinaturas biológicas;
dos pela NASA, procurando um nível mais elevado de confiança na interpretação
registos tecnológicos de rádio das deteções, porque não pode ser invocado nenhum
com o maior telescópio to- processo natural para explicar as assinaturas; ou o po-
talmente orientável da Terra tencial para avanços profundos no conhecimento se
(Green Bank) de 100 metros, um sinal incluir informação que possa ser descodifi-
na Virgínia Ocidental. Es- cada.
ta pesquisa é sensível a sinais emitidos a milhares de Na tecnologia humana, os sinais de banda estreita
anos-luz de distância e as observações abrangem uma seriam os telemóveis, os satélites ou o wi-fi. O desafio
largura de banda de 800 MHz, permitindo o contacto é encontrar estes sinais, mas a partir do espaço, e po-
com uma grande fração da Via Láctea. Até agora, mais der afirmar com certeza que não provêm de nenhuma
de 42 000 estrelas foram rastreadas e mais de 64 mi- tecnologia terrestre.
lhões de sinais candidatos foram detetados até à data, A minha colaboração neste projeto consiste em
estando previstas mais observações num futuro pró- identificar sinais de interesse provenientes da as-
ximo. tronomia tal como a conhecemos, mas também em
identificar os sinais mais promissores nos dados SE-
QUE TIPO DE SINAIS PROCURAMOS? Este projeto centra-se TI, classificando as interferências de radiofrequência
na procura de marcas tecnológicas de banda estreita (RFI) que serão utilizadas para gerar um conjunto de
em extensão espetral ou frequência, e só a tecnologia treino rotulado para uma aplicação de aprendizagem
pode produzir tais sinais. Ou seja, se nos apercebês- automática que está a ser desenvolvida. Esta aplica-
semos de um sinal de banda estreita vindo de fora do ção melhorará a robustez, a precisão e a velocidade
nosso sistema solar, teria de ser um sinal de tecnologia das futuras pesquisas SETI e estará disponível para a
extraterrestre, uma vez que os processos naturais só comunidade de radioastronomia como software de
produzem sinais de banda larga. Um sinal de banda código aberto. Embora a maior parte das RFI possa
estreita significa que a sua energia está concentrada ser classificada com ferramentas clássicas, os algorit-
numa gama estreita de frequências, e são tão inte- mos mais tradicionais continuam a ser muito bons se
ressantes porque um sinal extraterrestre de banda soubermos o que estamos à procura, como é o caso
estreita forneceria provas inequívocas da existência dos sinais de banda estreita. Mas se o sinal tiver uma
de outra civilização. Este grau de certeza é invulgar na forma ou características diferentes, é possível que
procura de bioassinaturas (substâncias ou fenómenos um algoritmo de inteligência artificial o detete me-
que fornecem provas científicas de vida passada ou lhor do que um algoritmo normal, que o perderia; é
presente), mas que são frequentemente dificultadas aqui que entram as ferramentas de aprendizagem au-
ISTOCK

Encontrar marcas
tecnológicas no espaço tem
múltiplas vantagens: um
custo muito inferior ao da
procura de assinaturas
biológicas, um volume de
pesquisa muito maior e um
nível de confiança mais
elevado na interpretação
das deteções.

26 SUPER
tomática. O treino de um algoritmo para melhorar a

ALBERT CASTÁN
classificação de sinais candidatos, tais como RFI ou
sinais extraterrestres, requer um conjunto de treino
etiquetado.

COMO CLASSIFICAMOS OS SINAIS DE INTERESSE? Todos os


sinais de banda estreita detetados pelo pipeline de
processamento de dados são considerados candi-
datos de "Nível 1". A maioria (99,5%) destes sinais é
automaticamente classificada como RFI (Radio Fre-
quency Interference) e apenas os restantes 0,5% são
considerados candidatos de "Nível 2", que seriam os
sinais mais promissores e que classificamos a partir da
plataforma SETI. Para que um sinal seja a primeira as-
sinatura tecnológica extraterrestre detetada, teria de Os espectrogramas ou espectrogramas dinâmicos são imagens 2D
subir para o Nível 5, o que exigiria um exame offline que revelam a estrutura tempo-frequência de cada sinal classificado.
adicional pela equipa científica, confirmação através
de observações adicionais e revisão por pares. Os da-
dos que classifico aparecem sob a forma de espectros
dinâmicos (por vezes conhecidos como "espectrogra-
mas" ou "gráficos em cascata"), que são imagens 2D em
que as linhas representam tempos consecutivos, as co-

RENE HELLER
lunas representam frequências consecutivas e os pixéis
representam a potência do sinal. Espectros dinâmicos
com dimensões de 500 x 446 pixéis, abrangendo 298
Hz em frequência e 150 sg em tempo, revelam a estru-
tura tempo-frequência de cada sinal candidato.

ONDE É QUE ESTAMOS À PROCURA DE ASSINATURAS TECNO-


LÓGICAS? Os exoplanetas estão a ser observados com a
ideia de que a vida pode ter evoluído noutros planetas
da mesma forma que evoluiu na Terra. Estes poderão
ser os melhores locais para procurar sinais de tecno-
logia extraterrestre, com especial incidência na zona QUAL É O ESTADO ATUAL DO PROJETO? Todos os sinais que
de trânsito terrestre, também designada por ETZ. Su- analisámos até agora parecem ser devidos a RFI, mas
ponhamos que um observador extraterrestre que olha até agora nenhum deles chegou ao nível 5, o que impli-
para a Terra consegue ver o seu trânsito através da fa- caria um sinal extraterrestre. Os sistemas planetários
ce do Sol (isso seria uma região com um par de graus alvo estão no campo observado durante a missão prin-
ou meio grau de largura, aproximadamente a largura cipal do telescópio Kepler da NASA. A partir de 1 de
da Lua no céu). Supondo que possíveis inteligências abril, as classificações de sinais deste projeto já ultra-
extraterrestres nesta parte do céu poderiam ter des- passaram o objetivo inicial de construir um conjunto
coberto a Terra através do método do trânsito, isso de treino rotulado com pelo menos 20 000 entradas.
poderia torná-la um lugar melhor para procurar men- O objetivo mais ambicioso é obter 100 000 entradas, o
sagens. Há dois anos, o telescópio foi apontado para a que é importante porque irá melhorar o desempenho
estrela mais próxima de nós, Proxima Centauri, e ao do classificador RFI.
analisar os dados resultantes descobriram um único si-
nal candidato com uma duração de mais de 5 horas que QUANTAS ESTRELAS DEVEM SER OBSERVADAS PARA GARANTIR A
intrigou toda a gente. Depois, apontaram o telescópio DETEÇÃO? Ninguém sabe. É possível que um sinal esteja
para longe da estrela e olharam para uma parte dife- presente nos dados existentes ou que venha a ser re-
rente do céu durante algumas vezes e viram que o sinal gistado nas próximas sessões de observação. Também é
só aparecia quando o apontavam para a Proxima Cen- possível que um sinal não seja detetado durante a nos-
tauri. Por isso, pensaram que poderia ser localizado, o sa vida. O pioneiro do SETI, Frank Drake (1930-2022),
que seria muito, muito excitante... mas o problema é opinou que poderiam ser necessárias observações de
que existem tecnologias terrestres que também pare- 10 milhões de estrelas para permitir uma deteção bem
cem localizadas, por exemplo, satélites terrestres que sucedida. Com financiamento adequado, poderíamos
podem emitir sinais lá em cima e criar um falso alar- acelerar a nossa pesquisa e observar um milhão de es-
me, como acabou por acontecer neste caso. trelas nos próximos 5 anos. e

A procura de assinaturas tecnológicas está a ser feita


em exoplanetas, onde a vida poderia ter evoluído da
mesma forma que evoluiu na Terra
SUPER 27
A M B I E N T E

APEGADA
ECOLÓGICA DO MEU
HAMBÚRGUER
VEGETARIANO
Dizem-nos constantemente que uma alimentação à
base de plantas é melhor para a nossa saúde e para
o planeta, mas será sempre assim?

Texto de BRENDA CHÁVEZ, jornalista

Os substitutos
vegetais da carne
continuam a ser
produtos complexos
cujos benefícios são
especulativos. Reduzir
SHUTTERSTOCK

o problema a «vegetal-
bom, carne-mau» é
simplificar a situação.

28 SUPER
SUPER 29
Por vezes, as
matérias-primas para
estes substitutos da carne
provêm de monoculturas
que se apoderam da terra,
alteram a sua utilização e
têm impacto nas
comunidades e na
biodiversidade.
SHUTTERSTOCK

O
s cientistas e as organiza- de se poder presumir que resolvem estes desafios: são
ções internacionais — como produtos complexos com diversos fatores de produção,
o Painel de Peritos das Nações longas cadeias de abastecimento e impactos em diferentes
Unidas sobre as Alterações setores. Além disso, não trarão benefícios para a saúde, o
Climáticas, a OMS e a FAO — ambiente ou o bem-estar animal se não compensarem o
recomendam dietas à base de consumo de carne, que cresceu duas vezes mais depressa
plantas para proteger a saúde do que a população no último meio século.
e reduzir os gases com efeito A maioria das alternativas podem ser ambientalmente
de estufa (GEE). Incluem-se melhores do que a carne de bovino, mas as hortícolas ga-
em iniciativas de política ali- nham em quase todas as categorias, os substitutos à base
mentar: EAT-Lancet Planetary de plantas têm mais pegada e a carne de criação mais do
Health Diet, o Pacto Ecológico que estes, também utilizam mais água e energia do que a
Europeu ou a Estratégia do Prado ao Prato, que consi- maioria dos peixes de viveiro, e muitos dos seus supostos
deram a necessidade de capacitar os consumidores para benefícios são especulação: ainda não são comercializa-
facilitar as suas escolhas. «Também promove o respei- dos, as empresas mantêm segredos que dificultam o seu
to pelos animais e evita a sua exploração», afirma Javier escrutínio e financiam (ou encomendam) grande parte da
Moreno, da ONG Animal Equality. sua investigação, como acontece com os substitutos à base
A produção de carne é responsável por 14,5% das emis- de plantas, o que põe em causa a sua objetividade.
sões de gases com efeito de estufa, quase 60% da produção
alimentar, o dobro dos vegetais. Exige mais terra, água, CADEIAS DE ABASTECIMENTO. A pegada de carbono não é o
rações e outros fatores de produção. único indicador da sustentabilidade, que varia consoan-
A revista The Economist batizou 2019 como «O ano do te a sua origem, o local onde vivemos, a sua embalagem e
veganismo», e o vegetarianismo também está no auge. O o seu transporte. Por vezes, os seus materiais provêm de
seu crescimento representa a maior perturbação no se- monoculturas de milho, açúcar, cereais ou soja com ele-
tor alimentar em meio século. O Global Plant-based Food vadas emissões, que monopolizam a terra, alteram a sua
Market Report afirma que o mercado será de cerca de 18 utilização, têm impacto nas comunidades e na biodiversi-
mil milhões de dólares até 2023; a Bloomberg Intelligence dade, percorrem (tal como os produtos) longas distâncias
estima 160 mil milhões de dólares até 2030. O mercado de fora de época, criando mais emissões de GEE do que ou-
carne vegetal cresceu de US $ 3,6 bilhões em 2020 para US tros de origem animal. A Dra. María Dolores Raigón, que
$ 4,2 bilhões em 2021, de acordo com MarketsandMarkets. investiga solos e alimentos produzidos industrialmente e
E o Good Food Institute indica que, em 2030, a carne culti- organicamente, aconselha «a não consumir processados
vada em laboratório será competitiva com a carne real. Um vegetais de materiais que se encontram a milhares de qui-
negócio suculento que atrai multinacionais, milionários lómetros de distância».
e celebridades, mas será sempre melhor para o planeta e Uma análise efetuada pela Our World In Data (Univer-
para a saúde? Reduzir a sustentabilidade a «vegetal = bom, sidade de Oxford) indica que as emissões de gases com
carne = mal» simplifica questões complexas. efeito de estufa provenientes dos sistemas alimentares re-
presentam um quarto a um terço do total. Podem exceder
ALTERNATIVAS À CARNE E HORTÍCULAS. Os supermercados e as 1,5 graus de aquecimento global e ameaçar dois graus, aci-
cadeias de fast food vendem alternativas à base de plantas, ma dos quais se prevêem efeitos catastróficos. Provêm da
mas a procura de carne está a aumentar em todo o mundo, desflorestação, do metano, dos combustíveis fósseis, das
tal como a procura de peixe, laticínios e ovos. Um estudo cadeias de abastecimento, da refrigeração, do transporte e
da Universidade Johns Hopkins compara estes substitutos, do armazenamento. O tomate de estufa pode ter o dobro
a carne criada em laboratório e a carne animal, em termos da pegada de alguns tipos de carne de porco ou de frango. E
económicos, políticos, ambientais, de saúde pública e de alguns queijos, mais do que certos tipos de carne de porco.
bem-estar dos animais. Conclui que são melhores do que O que não é consumido é importante: um quarto das
a carne, mas precisam de ser mais bem analisados antes emissões relacionadas com os alimentos é causado pelo

30 SUPER
A PEGADA DE CARBONO
DOS ALIMENTOS
desperdício individual e de empresas. Com a sua prepara- Libras de CO2 por dose
ção, os agregados familiares perdem um oitavo da energia
utilizada na exploração agrícola, de acordo com a consul-
Vitela
tora McKinsey.
Queijo
SUBSTITUIÇÕES SUSTENTÁVEIS. Um americano médio con- Porco
some 2147 frangos, 71 perus, 31 porcos, 10,8 vacas, 1700 Outros Ovos Legumes
peixes e 17 000 mariscos durante a sua vida. Com o con- Aves de capoeira Leguminosas

sequente gasto de energia, água e emissões. De acordo Leite Peixe Frutos


e marisco
com o Departamento de Agricultura dos EUA, em 2020
Ovos
foram abatidos 10 mil milhões de animais, na sua maio- Laticínios
ria galinhas. A substituição de metade destes animais Arroz Emissões por Bebidas
por alternativas à base de plantas até 2030 poderia evi- Leguminosas
tipo de alimento
tar emissões equivalentes às produzidas por 47,5 milhões
Cenouras
de automóveis. Mas, para além de reduzir o consumo de
carne, fazer escolhas sustentáveis implica saber pelo que Batatas
substituir estes animais. Os gases com Carne
Quando se opta por uma dieta à base de plantas, a carne efeito de estufa
também provêm
e os laticínios devem ser trocados em primeiro lugar. Se
dos alimentos
for menos carnívoro, trocar a carne de vaca por frango ou
porco. A maior parte da sua pegada depende também da Dicas para reduzir a sua pegada
sua produção industrial, extensiva ou biológica. de carbono alimentar
A eliminação de toda a carne exclui a produção eco-
lógica. Em áreas onde as hortícolas e os frutos secos são
escassos, esta pode ser uma opção mais sustentável do
que depender de fontes externas. Os sistemas holísticos
que integram o gado — silvopastorícia ou pecuária exten- A carne e Evitar a Comprar produtos Reduzir Seguir uma dieta à
siva de pequena escala — estão entre as utilizações mais os produtos carne locais e sazonais diariamente base de plantas
lácteos são
eficientes da terra e podem aumentar a biodiversidade responsáveis por
nativa. 75% da
pegada de
ALIMENTOS ULTRA-PROCESSADOS À BASE DE PLANTAS. «Uma

SHUTTERSTOCK
carbono dos
alimentos Reciclar e Poupar água Cozinhar de Rejeitar o
dieta baseada em vegetais pode reduzir o risco de doenças reutilizar forma eficiente plástico de
cardíacas, diabetes e obesidade», afirma Veronica Larco, utilização única

Um quarto das emissões relacionadas com a alimentação


provém de resíduos individuais e de empresas

E se o mundo se tornasse vegan? nutricionais da sua população em cálcio, vita-


minas A, B12 e alguns ácidos gordos, devido
aos nutrientes dos alimentos.

O Sustainable Food Trust acredita que


uma mudança global para uma dieta
baseada em vegetais é perigosamente sim-
Instituto Politécnico da Virgínia e do Depar-
tamento de Agricultura dos EUA, calcularam
em 2017 o que aconteceria se todos os 328
○ A quantidade de alimentos disponíveis
aumentaria 23%, as culturas produzem mais
por hectare do que a maioria das explora-
plista, com muitas partes da Europa (como milhões de pessoas do seu país se tornassem ções pecuárias.
em outros lugares) dependendo de proteí- vegans e as terras utilizadas para a criação de ○ Os animais libertados teriam de ser abati-
nas importadas com custo ambiental. gado fossem convertidas em culturas para dos, ir para santuários ou museus.
As cientistas Robin White e Mary Beth Hall, do consumo humano, concluindo que: A revista Lancet Planetary Health refere que
○ Os resíduos agrícolas aumentariam, uma o consumo diário de carne no Reino Unido
SHUTTERSTOCK

vez que não haveria animais para os comer. A diminuiu 17% na última década. Os vege-
sua queima produziria dois milhões de tone- tarianos e vegans aumentaram de 2% para
ladas de C02 por ano. 5% entre 2008 e 2019. Estas alterações são
○ Quase todos os adubos seriam produzi- equivalentes a uma redução de 35% na uti-
dos pela indústria química, acrescentando lização dos solos, uma redução de 23% na
mais 23 milhões de toneladas de emissões água destinada ao gado e uma redução de
por ano. 28% nas emissões de gases com efeito de
○ Este hipotético país vegan, em compa- estufa provenientes da agricultura. Mas pa-
ração com as emissões atuais (incluindo a ra cumprir os objetivos nacionais — menos
indústria pecuária), reduziria as emissões em 30% de consumo de carne até 2030 — esta
28%, mas sem satisfazer as necessidades redução teria de ser mais do que duplicada.

SUPER 31
A produção de um quilo

SHUTTERSTOCK
de arroz requer um sexto
da quantidade de água
Alterações Aumento da
que um quilo de carne climáticas prevalência de
de vaca. infeções

TRENDS IN ECOLOGY AND EVOLUTION


SHUTTERSTOCK

Aumento A digestão de
das emissões animais
de metano poligástricos,
como vacas e
ovelhas, gera
metano, 30
A produção
vezes pior do
de 1 quilo de
que o CO2.
carne de bovino
consome 15 000
litros de água,
o equivalente a
87 banheiras.
sistemas não são sustentáveis. Se desflorestam ou são
prejudiciais para a saúde, deveriam ter os dias conta-
dos», afirma Florent Marcellesi, antigo deputado europeu
da ProVeg Espanha. Paradoxalmente, hoje em dia, fabri- dos Verdes. Os cereais, a fruta e os legumes têm o menor
ca-se «junk food vegetal», alimentos ultra-processados impacto ambiental, utilizam muito menos terra, pro-
produzidos industrialmente com aditivos. Michael Pollan cessamento e energia e tendem a criar menos gases com
em Saber Comer (Debate) afirma: «Se é uma planta, co- efeito de estufa do que as proteínas animais com menos
me-a. Se é feito numa planta, não comas». emissões. A carne de bovino tem o impacto mais elevado,
O queijo vegan é produzido a partir de gorduras e variando consoante a forma como é criada. Normalmente,
proteínas de soja ou de frutos secos fermentados. Tem es- utiliza 28 vezes mais terra e onze vezes mais água do que as
pessantes e aromatizantes (naturais ou industriais) para aves de capoeira ou a carne de porco. Os ruminantes utili-
dar sabor e textura; proteínas de grão-de-bico, ervilha ou zam 20 vezes mais terra e mais gases com efeito de estufa
batata para estabilizar e texturizar; óleo de canola, coco, do que as hortícolas.
palma, cártamo para dar cremosidade; base de sementes A digestão dos animais poligástricos (vacas, ovelhas, ca-
em muitos cremes para barrar; acidificantes e intensifica- bras) gera metano, 30 vezes pior do que o CO2 — a principal
dores de sabor. A caseína (proteína do leite) é substituída causa do aquecimento global — mas de curta duração. Os
por fungos e micróbios e, por vezes, é adicionado coalho animais monogástricos (galinhas, porcos) emitem menos
microbiano, um coagulante de fungos, leveduras ou bo- metano e utilizam menos terra, mas não são alternativas
lores. É mais sustentável porque a utilização da água e da sustentáveis à carne de ruminantes: a indústria avícola é a
terra é mais produtiva; não confina nem mata os animais, maior utilizadora mundial de forragens. A pegada hídrica
mas «é aconselhável reduzir o consumo de produtos dos frangos é 1,5 vezes superior à das ervilhas e hortícolas.
transformados devido à sua baixa densidade de nutrien- As aves de capoeira têm uma pegada hídrica inferior à dos
tes de elevado valor biológico, à sua elevada concentração suínos. O estrume das galinhas e dos porcos pode preju-
de sal, açúcares refinados, gorduras saturadas ou aditi- dicar os ecossistemas se criar concentrações elevadas de
vos que aumentam a sua carga química, e devido ao seu azoto e fósforo. Este último emite metano e óxido nitroso
acondicionamento excessivo, mesmo nos produtos bioló- que se acumulam na atmosfera durante décadas, contri-
gicos», afirma Raigón. buindo para o aquecimento 300 vezes mais do que o CO2.
O peixe e o marisco selvagens não produzem metano,
NEM TODAS AS PEGADAS SÃO IGUAIS. A produção de um qui- o seu impacto ambiental é menor do que o dos animais
lo de vaca requer cerca de 15 000 litros de água, ou seja, terrestres e utilizam menos água e terra. No entanto, a
87 banheiras. Se for arroz, um sexto desse valor. Maçãs sua sobrepesca afeta o ambiente e as economias locais. Os
e bananas, 20 vezes menos. «Os produtos que utilizam peixes e mariscos da aquicultura emitem GEE quase equi-
os recursos hídricos para além da capacidade dos ecos- valentes à produção de ovinos.

A carne de bovino tem o maior impacto ambiental, embora varie consoante


a forma como é criada. Normalmente, utiliza 28 vezes mais terra e onze
vezes mais água do que as aves de capoeira ou a carne de porco
32 SUPER
Os ovos têm as emissões mais baixas de todos os produ-

SHUTTERSTOCK
tos pecuários, mas exigem uma maior gestão do estrume.
Quanto aos laticínios, em 2017, as treze maiores empresas
do mundo emitiram mais GEE do que a empresa petrolí-
fera ConocoPhillips, colocando estes produtos entre os
vinte maiores emissores. A sua utilização dos solos e as
suas emissões são superiores às das aves de capoeira.

LEGUMES — TODOS SUSTENTÁVEIS? O World Resources Institute


calcula que comer metade da quantidade de carne de vaca Grandes empresas
pode travar a expansão agrícola e sustentar uma população
global de 10 mil milhões de pessoas. «A agricultura deve ser de carne atrás de
orientada por princípios de sustentabilidade e respeito. A
gestão deve incentivar práticas que protejam os ecossiste- produtos veganos?
mas e evitem danos à biodiversidade», diz Lacro.
À medida que a produção se intensifica, os impactos
da agricultura e da pecuária agravam-se, explica Raigón:
«Se estiverem em zonas de elevado valor ecossistémico,
C omo demonstram o Ipes-Food e a plataforma científica
ALEPH2020, muitas grandes multinacionais industriais da
carne estão por detrás de muitos substitutos à base de plantas e
a perda de património natural é grave. São necessárias de carne de laboratório:
abordagens mais sustentáveis, do ponto de vista econó- A JBS, o maior produtor mundial de aves de capoeira e de carne
mico, social e ambiental. No Mar Menor e em Doñana, a de bovino e o segundo de carne de suíno, é acionista maioritário
fauna local deveria ter sido protegida e as práticas agríco- da BioTech Foods (carne de cultura) e da Vivera (com mais de
las, os produtos químicos e a exploração da água deveriam cem referências de salmão e frango veganos na Alemanha, nos
ter sido limitados. O princípio do «poluidor-pagador» Países Baixos e no Reino Unido).
não está a ser respeitado, os danos são pagos pelos cida- A Tyson Foods e a Smithfield, entre as principais empresas de
dãos através de impostos, custos de saúde e subsídios». carne dos EUA, criaram divisões para produzir nuggets e salsi-
Javier Gúzman, da ONG Justicia Alimentaria, acrescen- chas vegetais.
ta: «A Espanha sofre de problemas de disponibilidade de A Impossible Foods está associada à Burger King.
água, de sobre-exploração dos aquíferos e de um mode- Vall Companys, o maior integrador de macro-explorações de
lo de exportação que, nos últimos 20 anos, aumentou os frangos e suínos em Espanha, lançou a Zyrcular Foods em 2019,
hectares de terras irrigadas. Com a crise climática, chegou produzindo substitutos de carne a partir de ervilhas, trigo e soja
a altura de decidir em que utilizar a água: para alimentar importados. Os seus produtos estão disponíveis em vários su-
as pessoas ou para cultivar abacates, mangas e morangos permercados sob a sua marca privada.
para exportar?»
Em comparação com outras culturas, os abacates têm
uma grande pegada hídrica, tal como os frutos secos: uma
única amêndoa na Califórnia requer mais de um litro. Um saudável, sustentável e amigo dos animais», afirma Marcel-
estudo de 2018 calculou que o seu leite tem mais impacto lesi. A FAO propõe-a como um modelo sustentável. Raigón
ambiental do que o leite de soja ou de vaca, devido ao seu explica as suas virtudes: «Não utiliza produtos químicos
menor teor de proteínas. tóxicos, aumenta a diversidade das culturas, reduz a depen-
A escala também é fundamental, os micróbios do arroz dência e as emissões de gases com efeito de estufa, incentiva
emitem uma grande quantidade de metano e óxido nitro- a produção e o consumo locais, favorece a resiliência, a se-
so. Como o arroz alimenta milhões de pessoas em todo o gurança alimentar, a justiça social e o desenvolvimento
mundo, as suas emissões de gases com efeito de estufa re- rural». Moreno aconselha «uma grande variedade de ali-
presentam 50% das emissões de todas as culturas. mentos de origem vegetal (leguminosas, frutas, legumes,
As leguminosas, embora exijam mais terra e água do que cereais integrais, frutos secos, sementes), dando prioridade
outras culturas, convertem o azoto do ar em nutrientes e aos alimentos frescos, minimamente processados e locais,
podem reduzir os fertilizantes. bem como informar-se sobre as suas práticas agrícolas para
«A agroecologia é a melhor alternativa para um futuro escolher as sustentáveis e éticas». e
SHUTTERSTOCK

SHUTTERSTOCK

Escolha comer
uma variedade de
Nos últimos alimentos à base
anos, o número de plantas,
de hectares especialmente
irrigados em alimentos
Espanha frescos, locais e
aumentou. não processados.

SUPER 33
S A Ú D E

Vários estudos
confirmaram que
a microbiota
desempenha um
papel importante
na formação de
novos neurónios e
nos processos de
ISTOCK

memorização.

34 SUPER
MI

E SAÚDE MENTAL
CRO
BIO
TA
Por mais surpreendente que possa parecer, existe uma estreita relação entre a nossa
saúde mental e física e as bactérias que povoam o nosso intestino. Em particular,
as nossas emoções estão ligadas à microbiota, um conjunto de «micróbios bons» do
nosso corpo que se encontra maioritariamente no intestino e que estimula a secreção de
substâncias bioquímicas que promovem o bom humor, como a serotonina ou a dopamina,
bem como a prevenção de doenças e o reforço do sistema imunitário.

Texto de HENAR LÓPEZ SENOVILLA, jornalista

SUPER 35
O
nosso corpo é povoado por mas num intestino saudável também temos fungos,
milhares de milhões de mi- leveduras, vírus, fagos, protozoários, archaea, etc.
crorganismos. São bactérias A atividade e o equilíbrio destas bactérias é impor-
que se encontram em diferen- tante. A atividade e o equilíbrio destas bactérias boas
tes partes do nosso organismo no intestino, que constituem a chamada microbiota
e que desempenham diferentes intestinal, são cruciais para manter a saúde não só di-
funções, todas elas de impor- gestiva mas também neuropsicológica.
tância vital para o equilíbrio do Porquê? Por duas razões: devido à relação entre o cé-
nosso corpo e mente . Um tipo rebro e o intestino, e devido às moléculas geradas pela
de bactérias é particularmente microbiota intestinal, que influenciam diretamente o
relevante: as que compõem a nosso humor.
microbiota intestinal.
«A palavra microbiota refere-se ao conjunto de bac- A MICROBIOTA E O SISTEMA NERVOSO. A ligação entre as
térias que são boas para o nosso corpo e que vivem em nossas bactérias intestinais e o sistema nervoso central
simbiose connosco. Pode dizer-se que o nosso corpo é conhecida como o eixo microbiota-intestino-cére-
é o mundo em que elas vivem e, por sua vez, nós não bro. A doutora De la Puerta explica como funciona:
podemos viver sem elas. As bactérias que compõem a «Em primeiro lugar, pensemos que temos tantos neu-
microbiota humana distribuem-se por locais específi- rónios (as células que constituem o sistema nervoso)
cos, como o trato digestivo, o trato urogenital, a pele no intestino como em toda a espinal medula. Estes
ou a conjuntiva dos olhos. O conjunto de bactérias que neurónios intestinais formam o chamado «sistema
se encontra em cada local é diferente e está relacio- nervoso entérico». E estão em contacto contínuo e
nado com o papel que desempenha», explica Natalia em relação permanente com a microbiota intestinal,
Sánchez, doutorada em Biotecnologia pela Universi- uma vez que coincidem nesta parte do corpo e se afe-
dade Autónoma de Barcelona, que foi premiada pelo tam mutuamente. Por isso, ao nível das sensações e das
programa L’Oréal-Unesco For Women in Science 2022. emoções, podemos dizer que o intestino é outro órgão
«De todas estas populações bacterianas, a que tem da nossa mente», explica.
sido mais estudada é a microbiota intestinal, que é a Em segundo lugar, «as bactérias boas do intestino,
que tem a maior variabilidade e número de espécies a microbiota intestinal, produzem dois grandes ti-
bacterianas e uma das mais importantes para a saúde pos de moléculas: os neurotransmissores e os ácidos
humana», continua. gordos de cadeia curta. Ambos condicionam o nosso
A Dra. María Dolores de la Puerta, uma das maiores humor. Por exemplo, estas moléculas influenciam a
especialistas no assunto e autora do livro Un intestino secreção de serotonina, responsável pelas sensações
feliz. Como a microbiota melhora a sua saúde mental de alegria e felicidade, e que é gerada em 90% no in-
e ajuda-o a gerir as suas emoções: «O intestino é a testino. Ou o ácido gama-aminobutírico (GABA), que
parte do corpo que alberga a maior quantidade e di- está associado à nossa sensação de calma e de paz, é
versidade de «micróbios bons», com os quais vivemos também produzido por moléculas criadas pela micro-
em coexistência saudável. São sobretudo bactérias, biota», continua.

Colon SCFAS Cérebro


Apetite

Fígado
Oxidação de
ácidos gordos

Célula l Célula L
Músculos
Inflamação Oxidação de
ácidos gordos
GLP 1
+ PYY SCFAS Pâncreas
Insulina

Artéria renal Nervo periférico Tecido adiposo Tecido adiposo branco


Lipólise
Acumulação de gordura
Renina Leptina
Recetores SFCA Ativação de macrófagos
FFAR 2 / GPR 43
FFAR 3 / GPR 41 Atividade simpática
Pressão arterial Tecido adiposo castanho
GPR 109 A Circuito neural intestino-cérebro
OLER 78 Termogénese
ASC

Gluconeogénese intestinal
Oxidação de ácidos gordos

36 SUPER
Microbiota e A IgG ou IgA no leite
materno reveste Os metabolitos

nascimento Os metabolitos
bacterianos na interface
potencialmente as
bactérias e pode
bacterianos podem
também passar para o
influenciar a microbiota leite materno a partir

F oi recentemente demons- materno-fetal conduzem


ou a imunidade pós-natal. do intestino materno.
trado que adquirimos a a alterações
nossa microbiota no útero da epigenéticas que
afetam a imunidade fetal
nossa mãe. «No momento do
(por exemplo, SCFA do
nascimento, há variações na intestino materno). Translocação
composição bacteriana, con- bacteriana do
soante se trate de uma cesariana intestino para as
ou de um parto natural, em que glândulas mamárias.
a microbiota vaginal se impreg-
na na pele do recém-nascido.
Desta forma, modificamos a mi-
crobiota durante os primeiros
anos de vida, que serão cruciais
para o estabelecimento das co- A IgG materna está
envolvida na transferência
lónias bacterianas dominantes
transplacentária de
da nossa microbiota pessoal», bactérias que afetam a
explica Natalia Sánchez, dou- imunidade da
torada em Biotecnologia pela descendência.
Universidade Autónoma de Bar-
celona, premiada pelo programa
L’Oréal-Unesco For Women in
Science’2022. A colonização microbiana
do feto pode determinar a
programação imunológica
antes do nascimento.
A microbiota já é adquirida no Translocação
útero da mãe. A microbiota bacteriana do intestino
vaginal penetra na pele do para a placenta.

WILEY LIBRARY
bebé e vai mudando durante
os primeiros anos de vida.

«As substâncias bioquímicas segregadas pelas bac- papel importante na formação de novos neurónios e
térias que compõem a microbiota podem entrar na nos processos de memorização. Diferentes ensaios clí-
corrente sanguínea, atravessar a barreira hemato- nicos analisaram terapias baseadas em alterações da
-encefálica e chegar aos neurónios do cérebro, onde composição da microbiota, transplantando fezes de
desencadeiam a sua função. A isto junta-se o facto de as pessoas saudáveis para pacientes com patologias como
bactérias intestinais estarem em contacto com os neu- a doença de Parkinson e observando uma melhoria em
rónios do sistema nervoso entérico (ou intestinal), pelo diferentes sintomas associados a esta doença.
que a influência da microbiota no sistema nervoso, quer «Isto reflete a influência que a microbiota exerce
diretamente através do cérebro, quer através do intesti- sobre o sistema nervoso num contexto patológico e
no, é direta e rápida», confirma a Dra. Natalia Sánchez. abre caminho a novas linhas terapêuticas. Poderíamos
Em contrapartida, um desequilíbrio na microbiota prevenir ou tratar problemas mentais com probióti-
foi observado numa série de patologias, tais como per- cos ou compostos que melhoram a nossa composição
turbações emocionais como a depressão, perturbações bacteriana? Tudo parece indicar que sim. De facto, já
do espetro do autismo e patologias neurodegenerati- existem terapias à base de probióticos para distúrbios
vas como a doença de Parkinson ou de Alzheimer. Isto mentais como a depressão, e a sua administração re-
relaciona diretamente estes «micróbios bons» do in- duziu a gravidade da patologia que apresentavam»,
testino com as doenças neurodegenerativas. continua Natalia Sánchez.
Poderíamos dizer que a microbiota pode influenciar
MICROBIOTA E DOENÇAS DEGENERATIVAS. Estudos científi- a progressão de uma patologia neurodegenerativa por
cos demonstraram que a microbiota desempenha um ação ou omissão: «Uma microbiota saudável estaria

A influência da microbiota no sistema nervoso, diretamente via


cérebro ou via intestino, é direta e rápida. O seu desequilíbrio
observa-se em patologias como a depressão
SUPER 37
Um desequilíbrio na espaço. A microbiota é capaz de segregar substâncias
microbiota pode influenciar anti-inflamatórias, contribuindo para o equilíbrio do
a progressão da doença sistema imunitário, e deteta e apresenta antigénios de
neurodegenerativa. diferentes agentes patogénicos, estimulando a respos-
ta imunitária.
Em segundo lugar, para além deste «escudo pro-
tetor», é necessário destacar as funções essenciais
desempenhadas pela microbiota na digestão e ab-
sorção de diferentes substâncias e a sua capacidade
de neutralizar os agentes cancerígenos da dieta: «As
bactérias que compõem a microbiota possuem cer-
tas enzimas que lhes permitem digerir substâncias
que as nossas células intestinais não conseguem me-
tabolizar», explica a Dra. Natalia Sánchez. «Podem
converter açúcares complexos em açúcares simples,
que por sua vez fermentam em ácidos gordos de ca-
deia curta que podemos utilizar como combustível
energético para o organismo. Estão também envolvi-
das na síntese de muitas vitaminas, como a vitamina
K, a vitamina B ou a biotina, e ajudam-nos também a
adquirir minerais como o ferro e o cálcio».
ISTOCK

Desta forma, estabelece-se uma ligação direta entre


a microbiota e a alimentação, o que explica como os
maus hábitos alimentares alteram a nossa composição
bacteriana e este desequilíbrio pode acelerar o apareci-
a promover a melhoria sintomatológica do paciente. mento de uma patologia ou aumentar a sua gravidade.
Pelo contrário, uma carência severa de microbiota De facto, a alimentação é um dos quatro pilares
contribuiria para a progressão da patologia e poderia principais em que assenta a estabilidade do nosso mi-
mesmo provocar ou acelerar o aparecimento da doen- crobiota: «A nível externo, a microbiota é afetada por
ça», acrescenta. quatro fatores, que são a alimentação, a atividade física,
Nas patologias neurodegenerativas, além do envolvi- o sono e o controlo do stress», explica a doutora De la
mento neuronal, há também alterações imunológicas, Puerta.
endócrinas e metabólicas, áreas em que a microbiota «Como a microbiota é um órgão vivo e modelável,
também tem uma forte influência. é afetado por fatores externos como a alimentação e o
stress, mas isso também nos permite conceber estraté-
A MICROBIOTA E SISTEMA IMUNITÁRIO. O fortalecimento do gias para alterar a sua composição», acrescenta a Dra.
nosso sistema imunitário pela microbiota também se Natalia Sánchez.
canaliza de duas formas: em primeiro lugar, as bac-
térias boas que compõem a microbiota exercem um MICROBIOTA E ALIMENTAÇÃO. «A alimentação é muito
efeito protetor contra outros microrganismos pato- importante, pois as nossas bactérias alimentam-se do
génicos, combatendo-os e competindo pelo mesmo que comemos e isso favorece o desenvolvimento de

Disbiose
A microbiota afeta a nossa fisiologia geral e, se a sua
composição for alterada, gera a chamada disbiose, que
desencadeia problemas de todo o tipo, sejam eles metabó-
licos, imunológicos, cardíacos, pró-tumorais, emocionais ou
endócrinos. «A perturbação dos micróbios do tubo diges-
tivo e dos intestinos, conhecida como disbiose, contribui
para alterar a saúde digestiva, estando implicada no apa-
recimento de sintomas como digestões pesadas, gases,
inchaço ou alterações do ritmo do trânsito intestinal, diarreia
e/ou obstipação. Ao nível da pele e das mucosas, a disbiose
pode também estar relacionada com eczema, comichão ou
secura excessiva. Está igualmente associada a dores de ca-
beça e enxaquecas, à fadiga física e mental e a numerosas
perturbações psicológicas. Se a microbiota for perturbada,
a sua atividade metabólica altera-se, favorecendo a produ-
ção de substâncias pró-inflamatórias negativas», explica a
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doutora De la Puerta.

38 SUPER
SHUTTERSTOCK
O tipo de alimentos que
ingerimos e o número de
refeições que fazemos
podem alterar a composição
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da microbiota. O exercício
físico também promove uma
microbiota saudável.

alguns microrganismos ou de outros. É por isso que o nosso organismo. Por sua vez, a atividade física e um
devemos encorajar a ingestão de alimentos fermenta- estilo de vida ativo ajudam a manter uma microbiota
dos (iogurte, kefir, kombucha, chucrute, etc.), fibra saudável.
de qualidade e polifenóis, uma substância contida em Neste equilíbrio mente-corpo, é também essencial
muitos frutos (frutos vermelhos, romã, etc.), bem co- destacar a relação entre a microbiota e o sono: «A
mo azeite, chocolate e café», explica De la Puerta. atividade da microbiota permite-nos manter ritmos
«Os probióticos e os prebióticos favorecem o cresci- circadianos estáveis que regulam muitas atividades no
mento de populações bacterianas saudáveis», confirma corpo, incluindo os ciclos de vigília e sono. A ligação
Natalia Sánchez. «E muitos alimentos têm a capacidade entre o sono e a microbiota é bidirecional. Por um lado,
de atuar como tal. Exemplos de probióticos são o kefir, a serotonina, 90% da qual é gerada no intestino, é con-
a kombucha, o chucrute e outros alimentos fermenta- vertida em melatonina, que é a hormona responsável
dos. Mas não é apenas o tipo de alimentos que geramos: pela indução do sono e pela manutenção de um sono
o número de refeições que fazemos por dia também po- de qualidade durante toda a noite. Por conseguinte, a
de alterar a composição da microbiota devido à ativação riqueza e a diversidade da microbiota intestinal estão
mais frequente do sistema gastrointestinal». intimamente ligadas a uma maior eficiência do sono
e a uma duração e qualidade ótimas do mesmo. Além
MICROBIOTA, STRESS E EXERCÍCIO FÍSICO. Outro aspeto a disso, um sono de qualidade contribui também para
considerar é o exercício físico e o stress. Nos últimos manter a estabilidade da nossa microbiota», explica a
anos, foi demonstrado que níveis elevados de stress, doutora De la Puerta.
para além de afectarem diferentes aspetos da nossa Em suma, a saúde é um estado dinâmico influenciado
fisiologia, alteram a composição e o equilíbrio das po- por uma multiplicidade de circunstâncias vitais, entre
pulações microbianas do nosso organismo, facilitando as quais a microbiota intestinal desempenha um papel
a fixação de microrganismos pouco úteis ou mesmo muito importante: «A microbiota intestinal não é um
negativos para a nossa saúde e gerando um ambiente mero espetador do que acontece com a nossa saúde,
de inflamação intestinal que está associado a patolo- mas uma atriz que age e interage connosco a todo o mo-
gias como a síndrome do cólon irritável. mento. Por conseguinte, as nossas bactérias intestinais
Baixos níveis de stress permitirão que a nossa mi- contribuem de muitas formas para a manutenção de um
crobiota se mantenha saudável e, consequentemente, estado saudável», conclui a doutora De la Puerta. e

Níveis elevados de stress, para além de afetarem diferentes


aspetos da nossa fisiologia, alteram a composição e o
equilíbrio das populações microbianas do organismo
SUPER 39
C É R E B R O

A redução das
ISTOCK

horas de sono,
por exemplo em
crianças e
adolescentes,
pode afetar a
memória e o
desenvolvimento
da linguagem.

40 SUPER
PODEMOS
APRENDER
ENQUANTO
DORMIMOS?
Esta é uma das grandes incógnitas sobre o sono e, embora continue
por resolver, os avanços científicos são firmes e indicam que a mente,
enquanto dorme, é capaz de desenvolver processos de pensamento muito
mais complexos do que imaginamos.

Texto de MAURICIO HDEZ CERVANTES, jornalista

SUPER 41
A
pesar de todas as teo- que a aprendizagem, o que se descreve é a forma como
rias que existem sobre o a manipulação do conhecimento era efetuada sobre as
funcionamento do nosso mentes jovens através da utilização de frases curtas e
subconsciente, continuamos opiniões do Estado dominante. E o objetivo era muito
a perguntar-nos se é pos- claro: reforçar o controlo sobre os membros de uma
sível aprender enquanto sociedade completamente condicionada, classificada e
dormimos. Aqueles que predeterminada para fins muito específicos.
afirmam que é possível, tal- No entanto, a complexidade desta questão é muito
vez estejam interessados em maior. A este respeito, a Dra. Ana Fernández Arcos,
aprender línguas, ou, por coordenadora do Grupo de Estudos do Sono da So-
exemplo, em estudar o pro- ciedade Espanhola de Neurologia, explica que, para
grama de uma disciplina para um exame final. Não aprofundar o tema, é fundamental diferenciar entre
deixemos de lado aqueles que meditam e tentam cul- a importância do sono para a retenção da informação
tivar a consciência, bem como os cuidados emocionais aprendida durante o estado consciente e a possibili-
e espirituais, quando se encontram «nos braços de dade de aprender enquanto dormimos. No primeiro
Morfeu». Mas será que o nosso cérebro é realmente caso, sublinha que o sono é fundamental para conso-
capaz de captar, reter e estabelecer relações comple- lidar o que foi aprendido durante o dia, selecionado
xas entre os conhecimentos adquiridos durante um e armazenado como informação relevante. Quanto à
profundo estado de letargia? segunda, porém, e antes de entrar em pormenores,
Para muitas pessoas, a familiaridade com este con- esclarece, em termos gerais, que não está irrefutavel-
ceito deve-se à «hipnopedia», um termo utilizado mente demonstrado que a informação que possa ser
por Aldous Huxley, no seu famoso livro Admirável retida ou memorizada durante o sono esteja disponível
Mundo Novo, para se referir ao processo de apren- à vontade quando acordamos. É por isso que a questão
dizagem que era incutido nas crianças enquanto que dá título a este artigo continua a ser muito discuti-
dormiam. Na realidade, nessa famosa ficção, mais do da e analisada atualmente.

Enquanto dormimos pode


reter-se a informação
aprendida durante o dia.
Coisa diferente é aprender
durante o sono.

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42 SUPER
A informação retida durante
o sono não é considerada Problemas relacionados
como aprendizagem, uma com a COVID-19
vez que não pode ser D esde o final de 2019, quando o coronavírus foi identificado
e desencadeou a maior pandemia conhecida nos últimos
tempos, até 21 de junho de 2023, o número global de pessoas
evocada à vontade, de registadas com a doença foi de 768,3 milhões.
As consequências económicas, sociais e físicas da doença têm sido
forma consciente e de muitas, e cada vez mais são reconhecidas todos os dias. Uma das
descobertas recentes, de acordo com a investigação académica
maneira simples «Problemas de sono durante a COVID-19: uma análise sistemática,
meta-análise e meta-regressão», é que 52% das pessoas que foram
infetadas sofrem hoje de distúrbios significativos do sono.
Estamos basicamente a falar de insónias, bem como de sono
Então, que tipo de informação é registada na mente intermitente ou problemas em adormecer ou permanecer a dormir
de uma pessoa que dorme? Fernández Arcos explica durante a noite. Mas não se fica por aqui. Outro aspeto preocupante
que, enquanto dormimos, temos uma perceção alterada desta sequela é o facto de estes distúrbios do sono não só durarem
do que nos rodeia, embora mantenhamos um certo ní- enquanto durar a infeção, como também se manterem muito tempo
vel de capacidade olfativa, auditiva e tátil, algo que nos depois de a pessoa estar completamente curada.
permite mantermo-nos seguros e evitar, por exemplo, Sem dúvida, o dado mais importante é o facto de mais de metade
lesões na pele devido a uma postura desconfortável. Mas dos infetados terem efeitos secundários centrados na sua
outra coisa é quando se trata de estímulos externos que capacidade de dormir, mas este fenómeno não era totalmente
podem ser aprendidos. E é aqui que começa a profun- desconhecido. Durante os primeiros dois anos da pandemia de
didade do estudo da relação entre a aprendizagem e o COVID-19, os relatórios oficiais do governo chinês já indicavam
inconsciente: é realmente aprendizagem que consegui- que mais de metade dos pacientes que tinham sido hospitalizados
mos reter durante as horas de sono, ou estamos apenas devido ao elevado nível de infeção sofriam de insónias e problemas
a falar de dados desconexos registados nas profundezas de sono, mesmo depois de terem recuperado.
da psique? Vejamos passo a passo.

APRENDIZAGEM, INFORMAÇÃO MEMORIZADA OU RETIDA, ESTÍMU-


LOS SENSORIAIS? A memória — ou o processo de retenção
de informação — não é o mesmo que a aprendizagem ou
o pensamento. E essa diferença substancial leva-nos a
uma segunda questão: é possível desenvolver processos
mentais complexos a partir do que se aprende enquanto
se dorme? A doutora é clara e responde o seguinte: «Em
princípio, não é possível evocar de forma consciente o
que foi aprendido durante o sono, mas os pensamentos
relacionados com isso podem desenvolver-se a partir
de conteúdos oníricos (involuntários)». Por outras pa-
lavras, esta informação não é tão facilmente acessível
como a que foi retida conscientemente, mas isso não in-
valida o facto de ter sido aprendida e de poderem surgir
novos pensamentos a partir dela.
Esta resposta aproxima-nos dos meandros desta
questão: trata-se de aprendizagem ou simplesmente de
informação captada ao acaso? Para Fernández Arcos, é
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muito simples: «não se considera, per si, aprendiza-


gem, uma vez que não pode ser evocada à vontade».
Ora, segundo a Real Academia Espanhola, o pensa-
mento é o conjunto de ideias de um indivíduo ou de
um grupo, mas é também um processo que adquire
sentido crítico, ou seja, a capacidade que se tem de
analisar com profundidade e critério algum tipo de in- res e captados durante a fase consciente. Então, as
formação. Com base no exposto, a doutora não deixa informações aprendidas durante o sono podem evocar
dúvidas de que o que pode ser memorizado ou regis- ou gerar sentimentos?
tado na mente durante o sono deve ser questionado Mais sensações do que sentimentos, concretamente.
exaustivamente para que possa ser assumido como Esses estímulos podem, de facto, modular certos com-
aprendizagem e pensamento complexo. Mas a questão portamentos, como facilitar a identificação de sons. E,
é diferente quando se trata do sensorial. Para ela, em para completar a resposta, Fernández Arcos menciona
todo o caso, pode tratar-se de um condicionamento o caso de um estudo em que se demonstrou a capacida-
que pode ser feito, por exemplo, com um determinado de de gerar uma certa aversão ao tabaco depois de ter
som ou com cheiros associados a referências anterio- exposto uma pessoa a maus cheiros e ao fumo enquan-

SUPER 43
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Durante o
sono
profundo,
as células
cerebrais
estão
normalmente
ativas durante
um curto
período de
tempo antes
de ficarem
inativas.

Os jovens precisam
de dormir mais, pois
O que aprendemos é nesta idade que
enquanto
aprendem mais e
dormimos não é
fácil de recuperar precisam de reter
quando queremos, mais informação.
por isso não se
pode chamar
aprendizagem.

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AGE

to dormia. Em suma, expor uma pessoa a estímulos ver com o processo de aprendizagem através do estado
sensoriais pode, de facto, condicionar o seu compor- inconsciente.
tamento, mas isso é muito diferente do conceito de Embora a especialista acima mencionada fosse cética
aprendizagem. quanto à possibilidade de aprender uma língua duran-
No entanto, estamos ainda a lidar com um assunto te o sono, nunca invalidou essa via e, da sua perspetiva,
altamente complexo, em que ainda há muita investi- deixou algumas portas abertas.
gação a fazer. A mesma médica duvida da possibilidade Na mesma linha, há quem, com base em pesquisas
de, por exemplo, aprendermos uma língua durante o muito mais específicas, tenha conseguido demons-
sono: isso exigiria um processo de pensamento muito trar que, durante o sono, há de facto uma atividade
elaborado e uma elevada capacidade de processamen- cerebral capaz de estabelecer conexões complexas.
to consciente da informação. No entanto, menciona o Em 2019, a revista científica Current Biology publicou
caso de algumas experiências em que as pessoas foram os resultados de uma experiência que confirmou es-
capazes de adivinhar certas relações entre palavras te facto. Esta descoberta revelou que não só é possível
proferidas por outros enquanto dormiam. memorizar palavras, como também reter as relações
E a meditação? Qual é a sua relação entre o sono e a semânticas entre elas. De acordo com um artigo da
suposta aprendizagem que muitos dos seus praticantes BBC News World que também se debruça sobre este
defendem? Sobre esta questão, a especialista é muito tema, a chave da investigação da revista citada é a se-
clara: «A meditação é, por definição, uma prática de guinte: «Quando atingimos a fase de sono profundo,
vigília em que a atenção está focada em algo, pelo que as células cerebrais estão normalmente ativas durante
não é possível meditar durante o sono. É, no entanto, um curto período de tempo antes de entrarem num es-
uma prática que pode ser positiva para facilitar o sono, tado de breve inatividade. Os dois estados alternam-se
uma vez que reduz o estado de hiper-alerta e de stress a cada meio segundo».
que dificulta o adormecimento. A meditação ajuda, de Além disso, o artigo menciona que cientistas da Uni-
facto, a adormecer naturalmente, mas não tem nada a versidade de Berna realizaram outra experiência para

Durante o sono, há uma atividade cerebral capaz de


estabelecer certos tipos de conexões complexas
44 SUPER
O sono durante o desenvolvimento
S egundo a Dra. Gladys Converti-
ni, autora do documento «O sono
na infância: sua implicação no desen-
volvimento», apresentado no Terceiro
Congresso Argentino de Pediatria, o sono
«é um estado ativo no qual têm lugar mu-
danças de funções corporais, bem como
atividades de grande importância para o
equilíbrio psíquico e físico, durante o qual
se produzem modificações hormonais,
bioquímicas e metabólicas, essenciais pa-
ra o bom funcionamento durante o dia».
Mas qual a sua importância para o desen-
volvimento? A especialista considera que,
durante o sono, o cérebro está muito ativo
(apesar da crença popular), para além de
ocorrerem inúmeras alterações hormonais,

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metabólicas, musculares, respiratórias e ge-
nitais. Ou seja, para ela, esse é um momento
essencial para a preservação da saúde.
Além disso, o sono é de extrema importân- a síntese da hormona do crescimento, a lógico é estimulado.
cia para o desenvolvimento, pois durante conservação de energia, a reparação dos Resumindo: a ideia de que enquanto dor-
essa fase o corpo repara-se e regenera -se tecidos, o aumento do RNA e da prolactina mimos o corpo apenas descansa já não é,
fisicamente. Entre o mais destacável, estão e, como se não bastasse, o sistema imuno- de modo nenhum, verdadeira.

mostrar que é possível fazer novas associações através e acessíveis». Mas nada poderia estar mais longe da
da atividade das células cerebrais durante o sono. O que verdade. De acordo com o Gabinete de Prevenção de
fizeram foi submeter diferentes pessoas a ouvir duas Doenças e Promoção da Saúde do Ministério da Saúde
palavras enquanto dormiam, uma delas numa língua dos Estados Unidos, o número ideal de horas de sono
inventada e a outra na sua língua materna, ou seja, em para os adolescentes situa-se entre 8 e 10 horas. Em
alemão: tofer para a palavra chave e «guga» (a que in- suma, os jovens precisam de dormir mais porque estão
ventaram) para se referir a um elefante. O resultado? Ao numa idade em que aprendem mais e precisam de re-
acordarem, os voluntários responderam com «tofer» e ter informação.
«guga» para descrever «algo pequeno» e «algo gran- O professor Jakke Tamminem, da Universidade Ro-
de», respetivamente, como lhes foi pedido. yal Holloway, na Grã-Bretanha, afirma que a atividade
A conclusão de Marc Züst, um dos investigadores, cerebral continua durante o sono. Defende mesmo que
foi que a área da linguagem no cérebro, bem como o é uma altura chave para a aprendizagem, de acordo
hipotálamo, são ativados para recuperar associações com um artigo publicado na BBC News.
feitas durante o período de sono. Em suma, ambos Especialista na forma como o sono afeta a memó-
funcionam e interagem para a formação da memória, ria e o desenvolvimento da linguagem, realizou uma
independentemente do estado de consciência. experiência em que submeteu dois grupos de pessoas
Além disso, Katharina Henke, outra investigadora à aprendizagem de novo vocabulário. Um deles foi
do projeto, diz que ainda há muito a estudar sobre a privado de sono e o outro foi deixado a dormir diaria-
atividade cerebral e a sua capacidade de aprender du- mente. Os resultados? No final, aqueles que tinham
rante o sono. Tanto ela como Züst, segundo o artigo dormido como faziam todos os dias lembravam-se de
da BBC News, consideram obsoleta a ideia de que o mais palavras do que aqueles que não tinham dormido.
cérebro, quando dorme, se concentra apenas em con- Por fim, o artigo «Influencia de los hábitos de sueño
solidar os conhecimentos adquiridos durante o dia. E, en el desarrollo del lenguaje en preescolares», publi-
claro, confirmam o que o seu projeto demonstrou: en- cado na Revista Cubana de Pediatría, defende que a
quanto as pessoas dormem, há «pequenas janelas de diminuição do tempo de sono de uma criança pequena
oportunidade» para a aprendizagem. reduz significativamente as hipóteses de obter me-
lhores notas e, sobretudo, limita muito a capacidade
OUTRO PONTO-CHAVE É A IMPORTÂNCIA DE UM BOM SONO PA- de desenvolver competências linguísticas. E uma das
RA OS ESTUDANTES: quantas vezes acreditámos que se conclusões a que o documento chega é a seguinte:
estudássemos todo o programa na noite anterior a um «Um sono adequado garante a linguagem através de
exame, teríamos excelentes notas? Talvez muitas, e os sucessivas influências genéticas e ambientais, e suge-
resultados provavelmente não foram os desejados. Es- re-se que as crianças utilizam um sistema de memória
ta crença popular baseia-se na ideia de que o estudo duplo para adquirir e integrar novas palavras no seu
exaustivo e intenso, efetuado muito próximo do teste, vocabulário, e o sono desempenha um papel integra-
proporcionará ao aluno conhecimentos «mais frescos dor neste processo». e

SUPER 45
L U G A R E S A S S O M B R A D O S E M P O R T U G A L

ASSOMBRADOS OU APENAS
ASSUSTADORES?
13 lugares de Portugal que podem fazer arrepiar, até os mais céticos.

Texto de ELSA REGADAS, jornalista

46 SUPER
13
parece-nos um bom número
para este artigo. Podiam ser
mais, muitos mais, os locais
supostamente assombrados de
Portugal, enigmáticos lugares
onde ocorrem mistérios som-
brios que não conseguimos
desvendar, mas apenas parti-
lhar e talvez fazer despertar a
sua vontade de os observar (ao
longe) ou até visitá-los.

1. É QUASE IMPOSSÍVEL falar sobre lugares assombrados


sem falar no Palacete Marques Gomes, nas margens do
Douro em Vila Nova de Gaia, outrora pertença de Ma-
nuel Marques Gomes, um empresário e benemérito
natural das redondezas e que fez fortuna no Brasil no
início do século XX.
Eram 13 os seus filhos quando faleceu, filhos esses que
jamais chegariam a consenso relativamente às partilhas
de bens da família. Resultado, o palacete rapidamente
‘Palacete Marques Gomes’,
cedeu ao abandono. Foi pilhado, incendiado e remetido
antes da sua integração num
ao esquecimento até ser ocupado pelo Centro Popular condomínio residencial.
de Canidelo e a Cooperativa para a Educação de Crian-

ASC
ças Inadaptadas (Cercigaia) após o 25 de abril de 1974.
Porém, no início dos anos 1990 voltou a ser abandona-
do, avançando novamente para a degradação. paranormal que assistiu o casal senhorial, sem filhos,
Quem parece nunca o ter abandonado é o seu pro- que habitou a Casa do Diabo, em Felgueiras. Mas se
prietário original, de quem se diz ouvir a voz e alguns isto não convence os mais céticos, acrescente-se que
ruídos inexplicáveis. Foi isso que uma equipa de investi- quando a mulher deixou numa das divisões da casa um
gadores do paranormal registou ao visitar o local, tendo conjunto de panos bordados e engomados, prontos pa-
captado um som metálico que alegam significar: ‘Saiam ra entregar à cliente que os tinha encomendado, no dia
daqui, vão-se embora!’. seguinte encontrou-os todos amarrotados e cobertos de
E hoje? Talvez em plena convivência com o original urina... terá sido o Diabo? Por via das dúvidas, o casal
proprietário, o palacete integra o complexo de habita- acabou por abandonar aquela casa que posteriormente
ção Quinta Marques Gomes, um condomínio residencial deixou de ter soalho e divisões.
de luxo... Há relatos de pessoas que se sentem estranhamente
observadas quando passam pela casa. E como se não
2. SÓ PODE SER OBRA DO DIABO quando os móveis e os ob- bastasse, à dita Casa do Diabo estão também associadas
jetos da casa se movem sozinhos... Foi a este fenómeno as ocorrências de um suicídio, três incêndios e vários
acidentes rodoviários. A Guarda Nacional Republicana
já foi chamada a intervir devido a ruídos e ao avista-
Pormenor da mento de um vulto na varanda.
«Casa do Assombrada ou não, em Felgueiras todos a conhe-
Diabo». A GNR cem, a Casa do Diabo, que é tudo menos acolhedora,
já foi chamada a pelo menos no estado em que se encontra atualmente...
intervir devido
ao «avistamento
de um vulto» na 3. O SANATÓRIO DE MONTALTO (ou Monte Alto) destaca-se
varanda. como local assombrado desde o fecho das suas portas em
1975. Situa-se na antiga freguesia de São Pedro da Cova,
Gondomar, apesar de ser popularmente conhecido co-
mo Sanatório de Valongo. A inauguração aconteceu a 1
de novembro de 1958, numa cerimónia com missa na
Capela de Nossa Senhora dos Enfermos e lápide em ho-
menagem à Liga dos Combatentes da Primeira Grande
Guerra, encontrando-se os veteranos dessa guerra en-
tre os primeiros utentes da instituição.
Apesar da inauguração com pompa, com apenas 50
camas e um número muitas vezes excessivo de doentes
em tratamento simultâneo da tuberculose, o sanatório
parece ter sido palco de vários casos de maus-tratos e
negligência médica que intensificaram o sofrimento
e aceleraram a morte de vários pacientes. Depois de
fechar oficialmente, no pós 25 de abril de 1974, o sana-
tório foi dado ao abandono, saqueado e incendiado por
diversas vezes.
ASC

ISTOCK

SUPER 47
Para a degradação contínua do edifício contribuí- Porém, em 1355, D. Inês é surpreendida pelos pu-
ram alguns tipos de utilizações descuidadas durante os nhais dos três fidalgos aos quais o pai de D. Pedro, o
anos subsequentes, como por exemplo a destruição de Rei Afonso IV, ordenou a sua morte. Terminava assim
estruturas no decorrer de simulacros de catástrofes, o o namoro, mas jamais o amor que prevaleceu nas me-
que agravou o estado de um edifício já fragilizado pelo mórias da História de Portugal e que deu origem a uma
abandono. lenda que tanto tem de trágica como de bela. Conta-se
Mas o que torna o local verdadeiramente sinistro são que foram as lágrimas derramadas de Inês que fizeram
os vestígios de práticas de rituais satânicos em alguns brotar a Fonte das Lágrimas, um dos principais pontos
recantos do desgastado sanatório. Há mesmo quem de atração da Quinta e que o seu sangue terá manchado
afirme que a assistir a tudo isto têm estado os espíritos para sempre de vermelho as pedras dessa mesma fonte
dos doentes tuberculosos que morreram às mãos dos que emergiu da suas lágrimas.
ditos tratamentos e que continuam a vaguear pelos cor- Séculos passados sobre a tragédia, a Quinta das Lá-
redores agora em ruínas... grimas integra um hotel de charme, que não deixa
Em datas mais recentes têm sido feitas várias propos- esquecer esta romântica lenda da nossa história.
tas políticas na tentativa de recuperar o edifício, porém
sem que nenhuma tenha avançado. Em 2019, o Parque 5. ENTREMOS AGORA NUM DOS LOCAIS mais misteriosos de
das Serras do Porto e a Câmara Municipal de Gondomar Portugal, a Serra da Gardunha, onde as associações aos
levaram a cabo a iniciativa de repor as árvores queima- avistamentos de OVNI são assunto de que todos falam,
das circundantes do edifício, que foram substituídas assim como da lenda da Boa-Hora e da Má-Hora, que
por mais de uma centena de novas árvores nativas no atravessa gerações. Dizem os habitantes da região que,
âmbito das comemorações do Dia Internacional das em noites de lua nova, estas duas figuras sobrenaturais,
Florestas. Será que os espírito apreciaram a iniciativa?...

4. AVANÇAMOS PARA O CENTRO DO PAÍS, onde é muito difícil A Boa-Hora,


contornar o caso da Quinta das Lágrimas, em Coim- vestida de branco,
bra, apesar de não o podermos abordar como um caso surge por volta da
de assombração, mas como um lugar que preserva uma meia-noite, atrás
de si vem a Má-
mística especial associada a um episódio de amores Hora, vestida de
proibidos da nossa história monárquica. preto, essa capaz
Decorria o século XIV quando, na paisagem idílica da de amaldiçoar por
Quinta do Pombal (nome original), na altura uma quin- quem ela se
ta agrícola e couto de caça da Família Real Portuguesa, atreva a passar.
se desenrolava uma das histórias de amor mais emble-
máticas de Portugal, a de D. Pedro, herdeiro ao trono e
Inês de Castro, uma bela aia castelhana da Princesa con-
sorte D. Constança.
Numa relação altamente reprovada pela corte e amea-
çadora dos preceitos sociais da época, os dois amantes
escolheram este espaço bucólico para o secretismo dos

ISTOCK
seus encontros apaixonados.

Fonte dos Amores na


Quinta das Lágrimas,
em Coimbra.
ASC

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7. CONTINUAMOS A CAMINHAR EM DIREÇÃO AO SUL e ao Palá-
cio Nacional e Convento de Mafra. Foi o rei D. João V
que, em 1717, deu ordem ao arranque da construção da
opulente empreitada, com uma fachada de mais de 230
metros de comprimento, que levou mais de três déca-
das e envolveu um avultado recurso a mão-de-obra, um
valor próximo dos 50 mil homens! Não é difícil imaginar
a quantidade de acidentes de trabalho que implicava à
época a construção de um edifício com estas caracte-
rísticas de grandiosidade, salientemos, por exemplo, as
4500 portas e janelas, os 880 quartos e salas, as torres
com mais de 60 metros.
Portanto, entre os muitos operários que perderam a
vida neste ofício, há espíritos, diz-se, que nunca aban-
donaram o local... é o que se afirma desde há décadas e
há até quem tenha avistado o fantasma de um capitão
degolado.
E no interior dos túneis do convento, há quem afirme
que circulam ratos mutantes e outros seres do mundo
paranormal.
Ocultismos à parte, uma outra história que elevou
este monumento à consagração é a que escreveu José
Saramago, «Memorial do Convento», depois de visitar
a magnânima obra, numa homenagem ao povo oprimi-
do e explorado que a ergueu.
ASC

Capa do livro «Memorial do Convento», romance do Prémio


Nobel, José Saramago.
8. NO CHALET BIESTER, envolto pelas enigmáticas encostas
da Serra de Sintra, encontra-se uma das três cópias do
livro escrito pelo diabo. Não se sabe onde está escondi-
ambas de tronco e membros extensos e extremamente do, mas estará talvez num dos sete pisos subterrâneos
altas, trilham em silêncio os caminhos entre as aldeias reservados aos encontros de uma sociedade secreta... –
locais. assim dita a lenda desta que é conhecida também como
A Boa-Hora, vestida de branco, surge por volta da a Casa das Bruxas.
meia-noite, como um prenúncio de que atrás de si vem Para acentuar ainda mais o manto de ocultismo que
a Má-Hora, vestida de preto, essa capaz de amaldiçoar paira sobre o local, em 1999, Roman Polanski conside-
por quem ela se atreva a passar.
Além dos muitos testemunhos da sua existência, um
dos habitantes afirma ter mesmo ficado em choque
durante alguns dias, após ter sido perseguido pela Má-
-Hora... Estará esta lenda associada aos vários relatos de
avistamentos de OVNI, serão mesmo assombrações do
nosso ou de outro planeta?

6. FOI EM 1849 que D. Ermelinda Allen de Almeida (Baro-


nesa da Regaleira e posteriormente Viscondessa) adquiriu
a Quinta das Louras ou das Loureiras a João Veríssimo de
Barros Viana e sua mulher. A proprietária batizou o es-
paço situado à estrada de Benfica como «Beau-Séjour»
(bem-estar), onde se evidencia o majestoso Palácio de
Beau-Séjour. Após falecer, a quinta foi vendida ao ba-
rão da Glória António José Leite Guimarães, que realizou
obras de intervenção no lago, esculturas e azulejaria do
palacete. Desde o seu falecimento, em 1876, a proprieda-
de foi herdada pelos seus sobrinhos e alvo de intervenções
artísticas ao longo dos anos. Nos anos 1980, o palacete foi
adquirido pelos Irmãos Maristas que dele fizeram um co-
légio, até ser adquirido pela Câmara Municipal de Lisboa
nos inícios de 1990, para acolher o Gabinete de Estudos
Olisiponenses.
Ora, consta-se que tanto a Viscondessa da Regaleira
como o barão da Glória continuam a partilhar o espaço
com quem lá trabalha ou o visita. Aparentemente, é ele
o responsável por fazer deslizar chávenas, tocar cam-
ASC

painhas (que já não existem no local) e remexer livros e


documentos e ela a responsável pelos ruídos emitidos a Cartaz original do filme de Roman Polanski, «A Nona Porta»,
partir da cave... será? rodado no Chalet Biester, em Sintra.

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rou que esta era a casa ideal para filmar o seu filme de no local do antigo matadouro da vila, para habitação
suspense sobrenatural com Johnny Depp e Frank Lan- sazonal do abastado conde, Luís Leite Pereira Jardim
gella, The Ninth Gate, «A Nona Porta». (1844 - 1910) e sua esposa. Mais tarde, albergou a sede
O Chalet Biester fica situado na estrada da Pena, na an- da Sociedade União Sintrense e foi depois adquirido pe-
tiga propriedade da Quinta Velha, ostentando um traço la Câmara Municipal de Sintra, acolhendo a Biblioteca e
arquitetónico muito distinto dos restantes naquela área Arquivo Municipal até 2003. Terá sido nesta altura que
geográfica. Foi residência de Frederico Biester e Amélia esta história ganhou mais força, quando um funcioná-
de Freitas Chamiço Biester, mandatários desta edifi- rio afirmou ouvir sons estranhos vindos da cave. Apesar
cação dos finais do século XIX. A exuberante obra foi da alegada presença de Palmira, o Palácio de Valenças é
encomendada ao mestre arquiteto José Luís Monteiro, hoje um dos locais mais visitados de Sintra, vila já de si
onde intervieram na extraordinária vertente decorativa com uma mística muito especial, associada ao mistério
outros grandes nomes como o pintor Luigi Manini e o e ao sobrenatural, onde abundam lendas e mitos de es-
mestre entalhador Leandro Braga, Paul Baudry, Rafael píritos que permanecem em casas assombradas.
Bordalo Pinheiro, entre outros. As mãos destes mes-
tres criaram pura arte um pouco por todo o palácio, um 10. JÁ OUVIU FALAR SOBRE A ASSOMBRAÇÃO que paira no Pátio
conjunto decorativo e artístico incrível que evoca, entre do Carrasco em Lisboa? É por entre os becos e vielas de
outras inspirações e temas, Roma e Cristandade e os Ca- Alfama, junto à antiga Cadeia do Limoeiro, que se situa
valeiros Templários, o que contribui para o misticismo este que é um lugar carregado de memórias sombrias,
do local, assim como o detalhe da capela e um compar- dos tempos em que o carrasco desempenhava um papel
timento em pedra destinado à iniciação religiosa, não sinistro na implacável aplicação da justiça.
esquecendo o elevador, um elemento incomum naquela Aqui terá vivido temporariamente Luís António Al-
época, sobretudo numa casa de habitação. Acrescente- ves dos Santos, conhecido como «o Negro», o último
mos que com esta atmosfera de ocultismo e misticismo carrasco de Portugal. Natural de Vila Pouca de Aguiar,
contrasta uma abastada decoração magnífica, repleta sobre a sua vida adulta sabe-se que desencadeou vários
de cores garridas muito opostas a qualquer ideia de obs- ódios e perseguições que acabaram por o conduzir à ca-
curantismo. O Palácio e Parque Biester em Sintra, está deia e a uma vida conturbada. Foi julgado e condenado
atualmente aberto a visitas. Será que alguém vai conse- à morte, momento em que lhe foi proposto o cargo de
guir localizar o tal livro? «executor de alta justiça» (carrasco real), uma função
pouco amistosa, mas a única forma possível de comutar
9. TAMBÉM EM SINTRA, há quem diga que o fantasma de a sua pena de morte.
Palmira vagueia pelo Palácio de Valenças. Será? Nesta Hoje, por entre as paredes seculares do Largo do
antiga residência do conde de Valenças vivia uma criada Carrasco, ecoam histórias de horror. Relata a lenda a
que era profundamente apaixonada pelo proprietário. existência de um túnel subterrâneo por onde o carrasco
Palmira, de seu nome, sabia, porém, que o seu amor ja- seguia até à Prisão do Limoeiro, para fazer justiça com
mais seria viável, pelo que o desgosto a levou a cometer as suas próprias mãos.
suicídio no interior do palácio. E assim nasceu o mito Camilo Castelo Branco celebrizou «o Negro» em
de que Palmira continua a deambular pela dimensão do «Noites de Insónia», onde alega que, possivelmente,
paranormal, à procura de concretizar o seu amor im- este homem nunca chegou a matar ninguém, já que
possível pelo conde. apenas terá sido incumbido de promover uma execução
O Palácio de Valenças foi construído entre 1860 e 1870 em toda a sua vida, a qual delegou ao ajudante do ofício.

Luís António Alves


dos Santos, o último
carrasco de Portugal.
ASC

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Para quem se aventura a explorar o Pátio do Carrasco Por sua vez Lili Caneças, também apaixonada pelo as-
e a sua pedraria desgastada, as histórias de execuções peto e localização do castelinho, decidiu não desafiar o
obscuras podem adicionar uma dimensão intrigante à mito que lhe era associado: de que quem adquirisse a
experiência, misturando o real e o imaginário num ce- casa morreria prematuramente e não teria sucesso na
nário que transcende o tempo. Particularmente à noite, vida...
espelha-se uma aura misteriosa de sombras deambu- Numa outra versão, a menina que caiu ao mar vivia
lantes a percorrer os cantos escuros e murmúrios de numa outra casa e não lá. Sugere-se que a menina era
almas penadas à luz da lua. Há também quem afirme cega, pelo que os seus pais acabaram por o legar à Santa
que é possível ouvir os passos e gritos do próprio car- Casa da Misericórdia, que durante uma década o utilizou
rasco (que morreu em 1873) e que há noites em que a sua na prestação de apoio a invisuais. Há de facto registos da
figura sombria perambula entre as sombras. presença de um centro de apoio da dita instituição na-
Apesar de tudo, o Pátio do Carrasco é um monumento quela região, mas num outro edifício próximo.
à história de Lisboa, evocando um passado sombrio de Quanto aos atuais proprietários, não parecem pro-
punições severas como uma forma de reflexão sobre o priamente importunados com a mística que envolve
caminho percorrido pela sociedade em busca de uma esta peculiar casa luxuosamente situada e sobranceira
justiça mais humana. ao mar de Cascais... até porque há outras habitações vi-
zinhas na zona com histórias semelhantes.
11. TAL COMO SINTRA, CASCAIS ALIMENTA a centelha das as-
sombrações. Mas a que mais se evidencia, até porque 12. «NÓS OSSOS QUE AQUI ESTAMOS PELOS VOSSOS ESPE-
despertou a curiosidade de conhecidas figuras do nosso RAMOS». Haverá melhor forma de dar as boas-vindas
jet set, é o Castelinho Nossa Senhora de Fátima. a quem visita a Capela dos Ossos de Évora? Eféme-
Data a sua construção de 1927. Sobranceiro ao mar, ra, assim é a vida, uma mensagem que os três monges
em São João do Estoril, é um castelinho difícil de pas- franciscanos que mandaram edificar a capela queriam
sar despercebido e, antes de ser vendido ao seu atual transmitir, apelando à introspeção e à reflexão sobre a
proprietário, em 2016, chegou a ser cobiçado por José fugacidade da vida.
Castelo Branco e por Lili Caneças. A mais célebre capela do género em Portugal (há mais
Este edifício é também conhecido como o «chalet do noutras localidades) foi construída no século XVII. Si-
dr. Cebola», pois foi o célebre psiquiatra e escritor por- tua-se em Évora, na Igreja de São Francisco, um edifício
tuguês Luís Cebola (1876-1967), assumido republicano e onde os corredores e as criptas escuras são propícias ao
comparsa de Miguel Bombarda, quem o mandou cons- sobrenatural. Arrepiante (dependendo da sensibilida-
truir e lá viveu durante algumas décadas. de de cada pessoa), a decoração, que vai do exterior ao
Quanto à assombração, há várias versões: diz-se ter interior, abrangendo paredes, tetos e colunas, é inte-
sido outrora habitado por um casal cuja filha terá caído gralmente à base de ossadas humanas. Estima-se que se
pelas arribas, menina essa que continua a vaguear pela encontram no local um total de mais de cinco mil ossos
propriedade na companhia da sua boneca de estima- e crânios. Como complemento, encontram-se expos-
ção. Terá sido esta a menina avistada pelo jet set José tos dois esqueletos completos, pendurados, um de um
Castelo Branco quando visitou o castelo com a intenção adulto e outro de uma criança.
de o comprar? Se foi ou não, a verdade é que o famoso Porquê uma capela decorada com ossos humanos?
marchant desistiu da compra por esse mesmo motivo, Além da evidência da sensibilização para a fragilidade da
decorria a década de 1980, além de declarar que sentiu vida terrena, esta foi também a solução encontrada para
um certo magnetismo que o incitava a saltar da falésia. gerir os espaços disponíveis nos cemitérios à época.

Aspeto da Capelas dos Ossos,


em Évora.
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Porque acreditamos Quanto ao tema, assombração, como se o local já não
em assombrações? fosse suficientemente macabro, assumidamente escuro
e com parca entrada de luz natural, há várias histórias

C omecemos por evidenciar que os edifícios desativados


e onde ocorreram eventos trágicos tendem a cair em
estado de abandono e decadência ao longo do tempo, tor-
que se contam em torno de duas misteriosas múmias
que convivem desde há séculos com as ossadas. As len-
das locais alegam que se trata dos corpos de um homem
nando-se por vezes locais ideais para a realização de rituais, o e um rapaz, pai e filho, amaldiçoados por maus-tratos
que pode intensificar as histórias de atividade paranormal. A à mulher da casa (esposa e mãe, respetivamente), cujos
atmosfera desoladora desses lugares facilmente evoca senti- corpos não se desfizeram como castigo pós-morte.
mentos de desconforto e medo, contribuindo para as histórias Contudo, uma investigação recente da alçada da Uni-
de assombração. versidade de Évora permitiu concluir que os corpos
Se, por um lado, algumas pessoas com elevada perceção mumificados pertencem, afinal, a uma mulher adulta e
extrassensorial conseguem captar e agir sobre fenómenos a uma menina, com cerca de dois anos e meio. Estarão
inexplicáveis do nosso mundo tangível, por outro lado, não há assim desvendados os segredos das múmias e descredi-
evidências científicas sólidas que comprovem a existência de bilizadas as lendas locais?
assombrações. A explicação reside, até à data, numa combina-
ção complexa de fatores psicológicos, culturais e sociais. 13. AINDA MAIS A SUL, uma bailarina desgostosa e um sol-
Sugestão e viés cognitivo: avistamentos, sons estranhos ou dado napoleónico insistem em não abandonar uma das
sensações inexplicáveis poderão encontrar fundamento em mais antigas salas de espetáculos do país, o Teatro Le-
fenómenos psicológicos que levam a acreditar por meio da su- thes, em Faro (um dos vários teatros assombrados do
gestão. A mente humana é muito permeável a ceder a crenças país). Quando esta sala de espetáculos foi inaugurada
sobrenaturais, mediante um evento ambíguo ou lenda, podendo em 1845, por ocasião das comemorações do aniversário
interpretá-los como confirmação das suas crenças e contribuin- da rainha D. Maria II, ninguém imaginava que iria ser
do para a persistência das mesmas. marcada por dois episódios arrepiantes.
Medo do desconhecido: as assombrações estão muito O primeiro envolve o espírito de uma bailarina, cuja
associadas a mistérios e fenómenos que vão para além da com- presença assombra o teatro. Segundo a lenda, ela su-
preensão humana. Podem constituir uma forma de expressão cumbiu à pressão dos ensaios e, desafortunadamente,
simbólica de medos, ansiedades e dar algum sentido ao inexpli- enforcou-se no palco. Alguns alegam que esse trági-
cável, de modo a controlar o medo do desconhecido. co desfecho foi motivado por um desgosto amoroso,
Necessidade de conexão com o sobrenatural: a crença em adicionando uma dimensão sombria à sua história.
assombrações pode surgir da busca por uma conexão com o Acredita-se que, até os dias de hoje, a alma da bailarina
sobrenatural, seja para encontrar conforto espiritual, acreditar que escolheu o palco para o seu próprio desfecho final
na vida após a morte ou sentir-se ligado a algo maior do que a continua a deambular pelo teatro.
existência quotidiana. Além da misteriosa bailarina, o Teatro Lethes é pal-
Influência cultural e social: os relatos de assombrações estão co de outra assombração: um soldado napoleónico cujo
presentes em várias culturas ao longo da história. As histórias esqueleto foi descoberto emparedado no local onde ho-
transmitidas ao longo do tempo em torno de mistérios asso- je se encontra uma cabine elétrica. Alguns testemunhos
ciados a lugares abandonados podem moldar e reforçar as afirmam que, em momentos de silêncio, ecoam passos e
crenças, especialmente se se relacionarem com histórias locais rangidos nos soalhos, sugerindo a presença paranormal
ou familiares. dessas almas.
E quanto às evidências técnicas de atividade paranormal? Não obstante ter acolhido ao longo dos anos nume-
Há quem acredite que dispositivos como medidores de campo rosos artistas e espectadores, a mística deste teatro
magnético ou gravadores de áudio podem capturar evidências continua permeada por estes dois episódios assom-
de atividade paranormal. Estes dispositivos podem, porém, ser brosos, transcendendo o seu propósito original de
sensíveis a interferências eletromagnéticas, ruídos ambientais entretenimento, tornando-se um cenário onde o
ou falhas técnicas, gerando leituras e gravações que podem ser passado e o paranormal se entrelaçam, criando uma at-
interpretadas erroneamente. mosfera única e intrigante. e
Acrescente-se ainda a possibilidade de os locais supostamente
assombrados associados a atividades paranormais poderem
dar aso a ilusões percetivas devido a características naturais co- Tal como o Lethes
mo correntes de ar, cursos de água subterrânea, sons naturais, haverá outros teatros
ou mesmo por sugestão psicológica. assombrados em
Refira-se, por último que, no âmbito da Parapsicologia, é glo- Portugal.
balmente aceite que em caso de perturbação psíquica intensa
ou estados alterados de consciência, os seres vivos têm a
capacidade de produzir inconscientemente uma espécie de
energia que pode induzir a situações estranhas e influenciar
as perceções individuais. Explorar explicações científicas para
fenómenos aparentemente sobrenaturais poderá ajudar a com-
preender melhor este tipo de experiências.
Em última análise, as crenças em assombrações são multiface-
tadas e variam conforme as culturas e de pessoa para pessoa.
São, no fundo, uma forma de resposta para questões não re-
solvidas ou sem explicação, que preenchem lacunas na nossa
compreensão do mundo e das nossas experiências individuais.
ISTOCK

52 SUPER
FIGURAS DA HISTÓRIA DE PORTUGAL

Francisco de Holanda
Exemplo
O Primeiro dia da maior do
Criação: Caos e
criação da Luz. Renascimento
De Aetatibus
Mundi Imagines, Português.
1545-1573.
Biblioteca
Nacional de
Espanha.
Texto de
TEMPUS/ART
ASC

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P
or muitos considerado um
génio esquecido do Renasci-
mento, o português Francisco
d’Holanda relacionou-se com
a elite dos artistas e pensado-
res europeus do século XVI,
conquistando o seu lugar na
História da Arte Universal
com a autoria do tratado Da
Pintura Antiga, que represen-
ta o primeiro texto de estética
neoplatónica da era moderna. Foi também o autor do
primeiro ensaio de urbanismo na Península Ibérica.

OS PRIMEIROS ANOS. Filho de António d’Holanda, um dos


mais renomados iluminadores do seu tempo (de origem
flamenga, daí o apelido invulgar), Francisco obteve a
sua formação inicial na oficina do pai, a quem mais tar-
de se referirá no seu livro Da Pintura Antiga, «E muito
grandes e infinitas graças dou eu primeiro ao Summo

ALAMY
Mestre e imortal, e depois as dou a meu pai […] de me
não desviar minha própria índole natural, e me dei- Francisco d’Holanda. Pintura no teto do Salão Nobre dos Paços
xou seguir a arte da Sabedoria a mi mais segura e do Concelho de Lisboa, séc. XIX. Pintor desconhecido.
excelente de quantas há n’este grão mundo».
Francisco de Holanda terá nascido em Lisboa em 1517,
no reinado de D. Manuel, mas, mais tarde, talvez com paixão dos intelectuais e artistas europeus da época —
17 ou 18 anos, viverá com seu pai em Évora, cidade que leva-o, com apenas 20 anos, como bolseiro do rei D. João
o rei D. João III escolhera para instalar a corte e sede ad- III, numa grande viagem de formação que teve a dura-
ministrativa do reino, após o grande terramoto de 1531, ção de três anos e como pontos de passagem Valladolid,
o segundo maior que assolou a capital portuguesa. Barcelona, Avinhão, e finalmente a Itália (Florença,
Na juventude frequentou o paço real, como moço de Roma...), o centro de um Renascimento já em radical
câmara do infante D. Afonso, tendo recebido uma es- transição para uma nova estética, a Bella Maniera, o
merada educação e o benefício da proteção da rainha chamado «maneirismo», de que Miguel Ângelo foi fi-
D. Catarina. Em Évora, por esta altura a capital cultural gura máxima. Este artista irá marcar profundamente,
do reino, e num reinado claramente favorável à cultura quer a obra pictórica, quer a obra tratadística de Fran-
humanística (facto que só se alterou em 1555, quando o cisco de Holanda.
ensino foi entregue à Companhia de Jesus), Francisco de Esta viagem surge assim, como a oportunidade alme-
Holanda conviveu com os mais destacados intelectuais jada para conhecer, estudar e registar, em desenhos e
humanistas portugueses, entre os quais o seu mestre, o palavras, os novos paradigmas da arte que se fazia nesta
frade dominicano André de Resende, figura de grande época na revigorante Itália, mas também a arte que o
erudição que havia estudado nas melhores universida- Mundo Antigo tinha produzido, e que era, ao tempo, a
des da Europa. fonte de inspiração das vanguardas artísticas e intelec-
tuais europeias.
VIAGEM AO CENTRO DO RENASCIMENTO EUROPEU. Reconhe- Integrado no séquito da embaixada portuguesa em
cendo o imenso talento do seu discípulo e partilhando Roma, Holanda pôde beneficiar do contacto pessoal
com este os ideais da Antiguidade Clássica — a grande com personalidades da estatura de um Palladio ou de
um Lactâncio Tolomei, e aceder ao célebre e restrito
círculo da poeta Vittoria Colonna, no qual participavam
figuras como Miguel Ângelo, Parmigiano ou Giambo-
logna.
Desta viagem — um marco central na sua vida — reali-
zada entre 1537 e 1540, resultou um valioso documento,
que nos ajuda a conhecer e a compreender as suas ideias
e o seu papel na história da arte: o Álbum dos Desenhos
das Antigualhas, que reúne todos os detalhados dese-
nhos que Francisco de Holanda havia feito, de tudo o
que via e considerava importante, desde a arquitetura à
moda, passando pela arqueologia e pela escultura.
A grande importância desta obra resulta, não apenas
do seu inegável valor documental, mas também da cir-
cunstância de Francisco de Holanda estabelecer uma
taxonomia das esculturas antigas, isto é, ter realizado
uma sistematização de normas observadas nas obras
ASC

antigas, que, sendo devidamente aprendidas e apli-


Girândola do Castelo de Sant’Ângelo. Álbum dos Desenhos dasAntigualhas. cadas, garantiriam uma qualidade média permanente
Fols. 10/11 bis. Biblioteca do Mosteiro de San Lorenzo El Escorial. ao trabalho artístico. Encontra-se já aqui, na obra de

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Francisco de Holanda, uma dimensão de construção do
conhecimento, enquanto aprendizagem da norma.
Regressado a Portugal, por volta de 1541-42, impreg-
nado dessa vibrante atmosfera italiana, Francisco de
Holanda inicia, a par da incumbência de algumas obras
arquitetónicas encomendadas por D. João III, a criação
da grande obra teórica tratadística que o tornará cé-
lebre no mundo da arte universal: Da Pintura Antiga,
que concluirá em 1548, e cuja segunda parte se intitula
Diálogos de Roma e na qual apresenta os debates que
tivera no círculo de Vittoria Colonna, e em especial com
Miguel Ângelo, o grande génio do renascimento, que
Holanda considerava ser o pintor perfeito.
Outras obras teóricas importantes sairão da sua pena,
como Do Tirar Pelo Natural, primeiro tratado europeu
sobre o retrato, De quanto serve a Ciência do Desenho,

ASC
censurado nas suas posições mais vanguardistas pela Da Pintura Antiga e Diálogos em Roma, edição Livros Horizonte, 1984.
Inquisição, Da Fábrica que Falece à Cidade de Lisboa,
primeiro tratado ibérico sobre urbanismo, que dedica a
D. Sebastião, neto do seu falecido protetor, D. João III.
Da obra artística, destaque-se o já referido Álbum dos
Desenhos das Antigualhas (1538-1540) e o, por muitos
considerado a sua grande obra-prima, códice de de-
senhos de Madrid, a que deu o título de De Aetatibus
Mundi Imagines (As Imagens das Idades do Mundo) e
que lhe levará 35 anos a concluir.
Com a morte súbita, em 1557, de D. João III, seu grande
protetor, a sua carreira ressente-se, sendo progressiva-
mente afastado da corte e dos trabalhos de arquitetura
que vinha fazendo. Disso mesmo se lamenta, dirigin-
do-se a D. Sebastião, nas obras Da Fábrica que Falece
à Cidade de Lisboa, de 1571, e em De quanto serve a
Ciência do Desenho, do mesmo ano.

A OBRA TEÓRICA E TRATADÍSTICA. Francisco de Holanda


celebrizou-se sobretudo pela sua obra de teoria e crí-
tica de arte. Ele foi o primeiro europeu a introduzir
conceitos filosóficos num tratado de pintura. Recebeu
influências do platonismo de Nicolau de Cusa e de Mar-
sílio Ficino, bem como de Santo Agostinho e sobretudo
do Pseudo-Dionísio Aeropagita. Também relevantes são
as influências esotéricas, místicas e herméticas, muito
do gosto de alguns grandes artistas europeus da época.
Primeiro da Península Ibérica a corresponder ao
ideal de Artista do Renascimento italiano, no seu mais
importante tratado, Da Pintura Antiga, Holanda iden-
tifica as ciências que importa que o pintor conheça.
Eram elas o Latim, o Grego, a Filosofia Natural, a Teolo-
ASC

gia, a História, a Música, a Matemática, a Cosmografia,


a Astrologia, a Geometria, a Perspetiva, a Anatomia, a A Criação do Sol e da Lua, De Aetatibus Mundi Imagines,
Escultura e a Arquitetura. Uma panóplia tão vasta de 1545-1573, Biblioteca Nacional de Espanha.
conhecimento enciclopédico revela bem a importância
superior que Francisco de Holanda reservava ao pintor
e à pintura, a qual considerava a arte das artes. Com os novos paradigmas humanistas, bem distantes do
efeito, para ele a pintura representa a essência da arte, conceito de artistas como artesãos, da época medieval.
possui uma dimensão metafísica, pois fundamenta-se Holanda erige o Artista a um estatuto quase divino,
no metafísico, isto é, tem uma origem divina. «A ar- considera-o um ser superior ao vulgo, capaz de uma ex-
te da pintura é a coisa mais digníssima que só Deus traordinária e singular inspiração (o furor divino) — que
faz por tão investigável sabedoria como Ele sabe.», lhe vem de uma espécie de partilha com o Deus Pintor —
escreve. para materializar a sua ideia.
A originalidade conceptual e precursora deste trata- Para ele, a arte é uma «coisa mental», em que a IDEIA
do é novidade absoluta na Europa da época. Trata-se do — conceito do platonismo — assume, através do desenho,
primeiro texto de estética neoplatónica da era moderna. uma primordial importância, muito superior à execução.
Em todos os seus tratados, Francisco de Holanda cha- E como definia ele o «desenho»? «Principalmente
ma, consistentemente, a atenção para a nova dignidade chamo DESENHO aquela ideia criada no entendimento
da Arte e do Artista, para a importância de se adotarem criado, que imita ou quer imitar as eternas e divinas

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ASC

Desenhos da obra De Aetatibus Mundi Imagines, 1545-1573. Biblioteca Nacional de Espanha.


Da esquerda para a direita: A Criação dos Céus, A Criação do Homem, O Nascimento da Mulher, O Anjo do Apocalipse.

ciências incriadas, com que o muito poderoso Senhor senão este que sou. De que muitas graças dou eu ao
Deus criou todas as obras que vemos; e compreende imortal e soberano Deus por neste grande e confuso
todas as obras que têm invenção, ou forma, ou fermo- mundo dar alguma pequena luz nos desejos da altís-
sura, ou proporção, ou que a esperam de ter, assim sima pintura, pela qual a nenhum outro dote em mais
interiores nas ideias, como exteriores nas obras; e is- honor e reverência tenho, pelo seu grande merecer.»
to baste quanto ao desenho». Mas Francisco de Holanda vai mais longe e apresen-
Deus é, pois, o primeiro Pintor. Para Holanda, con- ta-nos um pintor que deve desenhar de olhos vendados
templar as ideias é um processo de ascensão ao céu, de para conseguir captar com mais intensidade a sua IDEIA
chegar próximo do arquétipo divino. E representá-las interior, conectada ao arquétipo divino.
através do desenho, é missão do artista. Assim o equipa- Em Da Pintura Antiga, Francisco de Holanda também
ra ao filósofo e ao profeta, os únicos a quem é concedida torna bem explícita a sua crítica ao gosto português pe-
a graça de ascender e contemplar a divindade. «Mas la pintura flamenga, que atribui ao desconhecimento e
uma das coisas por que eu mais desejo de amar ao ignorância. No capítulo «Tábuas dos maiores artistas da
meu mestre, o imortal Deus, é porque ele só entende e Renascença», identifica, por ordem cronológica, aque-
conhece a altura, ele só sabe pintar perfeitamente; ele les que considera serem os grandes artistas entre os
inventou a pintura; ele é a fonte e o fim dela» e ainda séculos XIII e XVI. Na primeira destas tábuas, dedicada
«Se me Deus desse a escolher livremente entre todas à pintura, figura apenas um pintor português, que iden-
as graças que repartiu com os mortais, qual queria tifica nestes termos: «O pintor português, ponho entre
ter ou alcançar, nenhuma outra lhe pediria, depois da os famosos, que pintou o altar de S. Vicente de Lisboa»
fé, senão o alto entendimento de pintar ilustremen- e no capítulo XI intitulado «A Diferença da Antiguida-
te. Nem porventura nesta quereria ser outro homem, de» volta a referir-se-lhe «E neste capítulo quero fazer
menção de um pintor português que sinto que merece
memória, pois em tempo mui bárbaro quis imitar nal-
guma maneira o cuidado e a discrição dos antigos e
italianos pintores. E este foi Nuno Gonçalves, pintor
de el-Rei dom Afonso, que pintou na Sé de Lisboa o Al-
tar de S. Vicente; e creio que também é da sua mão um
Senhor atado à coluna, que dois homens estão açoi-
tando, em uma capela do mosteiro da Trindade».
A obra Do Tirar Pelo Natural (1549) é um pequeno
tratado que aborda a arte de retratar ao vivo. A sua im-
portância reside sobretudo na recolha e exposição de
uma série de preceitos práticos que os pintores que se
dedicam ao retrato devem seguir.

A OBRA ARTÍSTICA. No que respeita à obra artística, para


além do Álbum dos Desenhos das Antigualhas (1538-
1540), que contém desenhos de Francisco de Holanda
feitos à pena e a sépia, dos tesouros que viu durante a
referida viagem no início da sua carreira, e de uma tá-
bua pintada nas duas faces que lhe é atribuída («Nossa
Senhora de Belém» e «Descida de Cristo ao limbo», há
ASC

«Nossa Senhora de Belém» e «Descida de Cristo ao Limbo», 1550-1553. a evidenciar sobretudo a obra De Aetatibus Mundi Ima-
Tábua pintada nas duas faces, atribuida a Francisco de Holanda. gines.

56 SUPER
Obras de maturidade
D a Ciência do Desenho e Da Fábrica que Falece à Cidade
de Lisboa, (ambas de 1571) são marcadas pelas transfor-
mações entretanto ocorridas na história e cultura da época e
também por uma mudança de atitude de Holanda, que passa de
um vigoroso entusiasmo classicista da juventude para uma es-
pécie de humor, algo desencantado, melancólico e religioso, na
sua idade madura.
Da Ciência do Desenho serve principalmente como tentativa
(falhada) de sensibilizar o jovem rei D. Sebastião para a impor-
tância e utilidade do desenho para benefício prático do reino e
uma tentativa de ele próprio ser de novo reconhecido e valoriza-
do pela coroa.
Da Fábrica que Falece à Cidade de Lisboa é um tratado urba-
nístico ilustrado, em que Francisco de Holanda procura, com as
suas propostas de obras arquitetónicas, tornar Lisboa mais se-
gura, mais digna e aprimorada arquitetonicamente, como tivera
oportunidade de ver nas cidades italianas. Apresentado ao rei
D. Sebastião, o tratado não recebeu deste qualquer interesse e
nenhuma das suas propostas para Lisboa se concretizou. Não
obstante ser já condicionada pelos novos tempos inquisitoriais
que se viviam, esta obra precursora, apresenta uma visão global e
dinâmica do urbanismo, abrangendo a arquitetura militar, civil, reli-
giosa e aspetos práticos, como a higiene e o tráfego.

ASC
ASC

Autorretrato de Francisco de Holanda no desenho final da sua


obra De Aetatibus Mundi Imagines: o artista apresentando o seu
livro à «malitia temporis», a malícia do tempo.

Obra verdadeiramente admirável, De Aetatibus Mun-


di Imagines (iniciada em 1545-1547 e concluída em
1573), consiste num conjunto de 89 fólios contendo 155
desenhos que representam a sua visão artística do tema,
apresentando uma descrição visual e imagética das seis
idades do mundo. 130 destes desenhos referem-se ao
tema central (Idades das Imagens do Mundo), 21 refe-
rem-se ao Apocalipse, 1 imagem intitula-se «o Anjo do
Apocalipse», 1 outra «Afrodite e Eros», 1 desenho ilus-
tra o título da obra e um autorretrato encerra o conjunto.
São desenhos que transmitem uma visão inspirada
e mística, feitos à pena e tinta e coloridos em aguadas
sépia e aguarela de cores vivas. De uma modernidade
desconcertante e original, alguns destes desenhos re-
fletem uma correlação com a sua perspetiva teórica. Da fabrica que faleçe ha Çidade de Lysboa. Cod. Ms., em papel,
Veja-se, a título de exemplo, a audaciosa represen- [49 fls.], 29 desenhos a sépia. Biblioteca da Ajuda na BNP.
tação da figura divina que, nos primeiros desenhos
representando os primeiros dias da criação, se isentam
totalmente de qualquer antropomorfismo, recorrendo
a uma inusitada figuração geometrizada. desta consciência de génio incompreendido, fazendo-
Só em 1983 esta obra é publicada, por Jorge Segurado, -se representar entre as três virtudes: fé, esperança e
na Imprensa Nacional-Casa da Moeda. caridade e oferecendo a sua obra à ferocidade do tempo,
aqui simbolizado pelo cão que a abocanha.
UM FINAL MELANCÓLICO. Tal como outros grandes autores Francisco de Holanda foi uma personalidade rica e
portugueses do seu tempo, como Gil Vicente, António complexa que viveu a parte final da sua vida, aquela
Ferreira ou Sá de Miranda, Francisco de Holanda aca- em que produziu os textos de maturidade, numa época
bará os seus dias (morre em 1584, com sessenta e sete também ela complexa e marcada por fortes mudanças
anos) num autoexílio melancólico e espiritual, cons- de paradigma, que condicionaram fortemente a liber-
ciente do pouco valor que a sociedade do seu tempo dade e expressão do seu sentir interior e de que resultou
atribui à sua obra. O seu perturbante autorretrato no fi- um conjunto artístico e teórico simultaneamente genial
nal de De Aetatibus Mundi Imagines é bem significativo e paradoxal. e

SUPER 57
A R T Í C U L O
NÚMEROS E BIOLOGIA

Durante a pandemia,
os matemáticos
apresentavam aos
decisores uma série
de cenários possíveis
SHUTTERSTOCK

para que escolhessem


qual seria o mais
provável.

58 SUPER
PODE A
MATEMÁTICA
PREVER
PANDEMIAS?
Já no século XVIII, Daniel Bernoulli desenvolveu o primeiro modelo matemático
de epidemiologia centrado na análise dos efeitos da varíola e da esperança de
vida. A matemática funciona como uma linguagem, como uma ferramenta que
gera simulações que podem prever antecipadamente o número de contágios em
cada local. Tem a capacidade espantosa de modelar processos físicos e isso
transmite-se à biologia. Quer isto dizer que podemos prever a próxima pandemia
através da matemática?

Texto de BEATRIZ LOMBANA, jornalista

SUPER 59
T
odos sabemos que a CO- prever epidemias, ou seja: quero que me digam quan-
VID-19 foi a última pandemia do é que a epidemia vai atingir o pico, quantos casos
que abalou a humanidade, vou ter, etc...», explica o Dr. Jorge Velasco.
teve efeitos catastróficos nos Abba Gumel, investigador em biologia matemá-
sistemas de saúde de todo o tica na Universidade Estatal do Arizona, centra o
mundo e mudou o modo de seu trabalho principalmente na utilização de abor-
vida de muitas pessoas. Todos dagens matemáticas para compreender a dinâmica
os dias vemos governos de de transmissão e controlo de doenças emergentes e
diferentes nações a tomar de- reemergentes de importância para a saúde pública.
cisões com base em diferentes Matemáticos como ele e o Dr. Jorge Velasco são in-
grupos de peritos científicos. dispensáveis para identificar a próxima pandemia
Epidemiologistas, biólogos, e, durante séculos, os matemáticos debruçaram-se
bioquímicos e médicos são alguns dos especialistas sobre uma miríade de epidemias. Por exemplo, no
que deram corpo e alma para combater a pandemia, século XVIII, Daniel Bernoulli desenvolveu o primei-
mas será que os matemáticos também contribuíram? ro modelo matemático de epidemiologia centrado na
Muito, pois tornaram-se uma ferramenta fundamental análise dos efeitos da varíola e a esperança de vida.
que provavelmente desempenhará um papel primor- É graças a casos como este que podemos analisar a
dial na próxima pandemia. forma como a matemática e a biologia trabalharam
De acordo com Jorge Velasco Hernández, investi- em conjunto durante muitos anos, construindo ferra-
gador do Instituto de Matemática da Universidade mentas para prever e compreender doenças.
Nacional Autónoma do México (UNAM), a matemática
funciona como uma linguagem, como uma ferramenta A MATEMÁTICA TEM UMA CAPACIDADE ESPANTOSA DE MODELAR
que gera simulações capazes de prever antecipada- PROCESSOS FÍSICOS E ISSO TRANSMITE-SE À BIOLOGIA. Nas
mente o número de contágios em cada região. Quer palavras do investigador da UNAM, Dr. Jorge Velasco
isto dizer que podemos prever uma pandemia através Hernández, a matemática «é uma ferramenta que nos
da matemática? É o sonho de muitos, «ao longo da ajuda a gerar hipóteses sobre o funcionamento das coi-
história, principalmente a partir de meados do sécu- sas, e essa forma de integrar essas hipóteses faz com
lo passado e deste, os centros de controlo de doenças que tenham um valor explicativo e descritivo muito
dos Estados Unidos, a Organização Mundial de Saú- amplo. A sua utilização inteligente em grupos multi-
de, organizaram concursos anuais precisamente para disciplinares pode dar-nos previsões como na física.

Muitos cientistas, incluindo


matemáticos de todo o
mundo, deram o seu melhor
para combater a pandemia
de COVID-19 e fornecer
orientações de ação que
ajudaram.
ISTOCK

60 SUPER
A matemática
ajuda a lidar com a
incerteza e a gerar
estruturas
numéricas para
explicar, prever e
descrever

SHUTTERSTOCK
fenómenos
biológicos.

Infelizmente, em biologia há menos precisão no to de a matemática poder ser utilizada na medicina e,


registo dos dados, pelo que os modelos matemáticos depois, fiquei a conhecer outras aplicações, como a
epidemiológicos são desafiados não só a construir o cosmologia, as ciências naturais, a biologia, a econo-
modelo certo para o processo, mas também a ser ca- mia e até as ciências sociais. Utilizá-la para responder
pazes de deduzir a informação que é recolhida das a perguntas e resolver alguns dos grandes desafios
hipóteses. «É para isso que serve a matemática, para mais importantes que a humanidade enfrenta é sim-
estudar, manipular, ser capaz de lidar adequadamente plesmente espantoso», afirmou o investigador da
com a incerteza e também para gerar estruturas mate- Universidade Estatal do Arizona.
máticas que nos permitam explicar, prever e descrever
fenómenos biológicos», explica o Dr. Jorge Velasco. OS MODELOS MATEMÁTICOS FORAM DE EXTREMA IMPORTÂNCIA
«A biologia tem uma não linearidade que, em ma- PARA A TOMADA DE DECISÕES DURANTE A ÚLTIMA PANDEMIA
temática, significa algo complexo que não pode ser de COVID-19 que atingiu a humanidade em 2020.
dissecado de uma forma mais clara como na física; não Foram utilizados para compreender a evolução da epi-
é que seja mais complicado, simplesmente a forma co- demia e estabelecer cenários possíveis para medidas
mo estes fenómenos são produzidos integra diferentes de confinamento e distanciamento social.
fatores que tornam muito mais complicado isolar e se- «Os matemáticos geraram índices de risco de contá-
lecionar especificamente para os estudar como se faz gio, ou seja, se sairmos à rua, dada a epidemia atual,
na física», acrescenta o investigador mexicano. qual é a probabilidade de encontrarmos uma pessoa
Durante o seminário de Abba Gumel no Dia das Bio- doente quando formos ao supermercado, à igreja ou
ciências 2022, intitulado « Matemática da pandemia ao parque? Este modelo foi utilizado para abrir e fe-
de COVID-19: lições aprendidas e como evitar a pró- char escolas, para decidir qual a capacidade das salas
xima pandemia», o matemático nigeriano confessou de aula, quem podia sair para o recreio ou a que horas,
que, antes de começar a estudar matemática, nunca por exemplo», diz o Dr. Jorge Velasco.
imaginou que esta pudesse ser útil para responder a «O trabalho dos matemáticos era basicamente for-
questões do mundo real. «Fiquei fascinado com o fac- necer aos decisores um conjunto de cenários possíveis

Durante a pandemia, os matemáticos criaram índices de risco


de contágio com base nos quais foram tomadas medidas
SUPER 61
população fosse educada para isso. Se nos disserem
que hoje vai estar 34°C, sabemos que tipo de roupa
vestir durante o dia; se nos disserem que vai chover
com 40% de hipóteses, sabemos se devemos ou não
levar um guarda-chuva. O que gostaríamos de fazer
é prever qual é o risco de sermos infetados se formos
ao supermercado hoje, e que a sociedade seja educada
para tomar uma decisão com esta informação», ex-
plica o Dr. Jorge Velasco.
Por outro lado, Abba Gumel descreveu para a revis-
ta Scientific American como o seu trabalho conseguiu
mostrar que, com as medidas certas durante a primei-
ra fase da pandemia, os números nos EUA poderiam
ter mudado. «No nosso artigo sobre as medidas de
bloqueio da COVID-19, mostrámos que o núme-
ro de casos, hospitalizações e mortalidade teria sido
drasticamente reduzido se tivéssemos começado os
bloqueios comunitários uma ou duas semanas antes.
Teria alterado drasticamente o curso da pandemia nos

ASC
EUA e talvez salvado centenas de milhares de vidas»,
Mapas que mostram os locais de maior risco de se ser infetado,
desenvolvidos por investigadores portugueses durante a
explica o investigador nigeriano.
pandemia Covid-19 em Portugal.
MAS QUAL É ENTÃO O PAPEL DOS MATEMÁTICOS NA PREVENÇÃO
DA PRÓXIMA PANDEMIA? Se é verdade que a matemática
foi de grande ajuda no decurso de um dos anos mais
estranhos para a humanidade, quando surgiu o vírus
e eles escolhiam o mais provável, com base num mo- SARS-CoV-2, ela mostrou algo muito importante: que
delo matemático que tinha em conta a história das os modelos existentes não refletiam satisfatoriamente
coisas», diz o matemático da UNAM. a evolução da pandemia.
Embora os modelos matemáticos sejam ferramentas «Ao longo da história moderna, houve epidemias
muito valiosas para prever o curso de uma pande- que tiveram um grande impacto na população mas
mia, nunca se deve esquecer que o comportamento que, felizmente, não atingiram tão duramente como o
humano é um fator determinante na transmissão de SARS-CoV-2. Se olharmos para as pandemias ou surtos
doenças. «Uma coisa que nós, epidemiologistas, graves que ocorreram nos últimos 20 anos, podemos
gostaríamos de ter tido durante a pandemia era ín- ver que ocorre uma a cada cinco anos. O problema é
dices de risco como os meteorologistas têm, e que a que as entidades governamentais e os centros de in-

Embora os modelos
matemáticos sejam
inestimáveis para
prever a evolução de
uma pandemia, o
fator humano é
fundamental, e que o
SHUTTERSTOCK

indivíduo atue com


base neles.

62 SUPER
Nos últimos 20 anos,
tem havido uma
pandemia ou contágio
de cinco em cinco anos.
O problema é que os
governos e as
instituições científicas
não estavam
preparados para uma
pandemia desta
magnitude.

SHUTTERSTOCK
Os modelos são agora híbridos para oferecerem o melhor
cenário possível e obter maior certeza

vestigação não estavam preparados para a magnitude Da mesma forma, Abba Gumel explicou à revista
da COVID-19», explica o Dr. Jorge Velasco. Scientific American a importância de não repetir os
De acordo com o investigador mexicano, o proble- erros cometidos durante a COVID-19: «O que nós,
ma que existiu durante a pandemia é que a COVID-19 matemáticos, estamos a fazer para ajudar a prevenir a
foi tratada como um problema de estatística e não próxima é basicamente trabalhar nas lições que apren-
de epidemiologia. Esta situação gerou uma confusão demos. Por exemplo, aprendemos que as máscaras
muito negativa nos governos e na população em ge- funcionam a partir da análise e modelação matemáti-
ral, «ninguém sabia quem estava a dizer a verdade, ca, mas também do que ocorreu na sociedade.
porque havia um grande número de especialistas e De acordo com o Dr. Jorge Velasco, investigador
modelos matemáticos que davam resultados diferen- da UNAM, «muitos dos modelos que estão a ser fei-
tes», acrescenta o matemático da UNAM. tos atualmente não são de um só tipo, são híbridos,
Agora, o principal objetivo dos centros de mate- combinam modelos de equações diferenciais, mode-
mática não é apenas fazer previsões de epidemias ou los estatísticos, inteligência artificial e combinam-nos
gerar cenários, mas também aconselhar aqueles que todos para fazer modelos de montagem, aqueles que
não são especialistas sobre as capacidades, qualida- integram o melhor de cada um com critérios quantita-
des, eficácia e adequação dos modelos matemáticos tivos definidos, para dar o melhor cenário ou previsão
que estão atualmente a ser construídos. «Quando possível e, assim, conseguir muito mais certeza na
chegar a próxima pandemia, já existem instituições utilização destes números para a tomada de decisões
que se encarregam de analisar continuamente a públicas».
situação e de elaborar os modelos matemáticos per- O que é certo é que, graças ao que aconteceu no
tinentes. Todos vão poder colaborar, como se espera mundo com a COVID-19, os modelos utilizados em
que aconteça, é uma tarefa social e tem de ser feita, epidemiologia para prever a evolução do comporta-
quando se sabe alguma coisa tem de se usar para o mento de novos agentes patogénicos foram renovados,
bem comum, mas agora vai haver um guia», diz o in- o que nos dará mais e melhores armas para enfrentar a
vestigador mexicano. próxima pandemia. e

SUPER 63
EXPLORER MOTOR

A PROVA DE FUNCIONALIDADE E
POLIVALÊNCIA DOS MODELOS MAIS
«TODO-O-TERRENO» DA JEEP
Não podíamos deixar passar a oportunidade de pôr à prova o primeiro
veículo 100% elétrico da Jeep, o Avenger. Apesar de este modelo já
oferecer o máximo conforto de condução combinado com uma excelente
manobrabilidade na estrada e ainda mais na cidade, o seu habitat natural.
De facto, graças ao seu tamanho compacto e à sua agilidade, oferece um
raio de viragem de apenas 10,5 metros, ideal tanto nas ruas estreitas de um
centro histórico como nas estradas sinuosas de montanha. É importante
salientar que o Avenger é o primeiro veículo Jeep com tração dianteira a
ser equipado de série com Selec-Terrain e Hill Descent Control, tornando-o
num veículo com uma capacidade todo-o-terreno inesperada para o seu
segmento e assegurando a máxima proteção na cidade, por exemplo, ao
subir uma rampa de estacionamento íngreme.

O mais eficiente Wrangler até à data,


o novo Jeep Wrangler, graças ao seu
grupo motopropulsor híbrido plug-in
4xe, oferece ainda mais da lendária
capacidade 4x4 da Jeep, guincho Warn
disponível de fábrica, nova grelha icónica
de sete ranhuras e airbags laterais de
cortina de série, além de rádio com ecrã
tátil Connect de 12,3 polegadas. Mas
como é o seu desempenho? Oferece uma
capacidade inigualável, ultrapassando
todos os obstáculos, inclinações e deslizes
com suavidade e facilidade, para além
de oferecer uma dinâmica de estrada
refinada. Para isso contribuem, entre muitos
outros elementos, os amortecedores,
afinados para alcançar o equilíbrio ideal
entre o comportamento em estrada e
a lendária capacidade todo-o-terreno,
proporcionando um conforto de condução,
controlo de balanceio da carroçaria e
comportamento dinâmico ideais.

primeiro veículo 4x4 produzido em série, dada pelo Jeep Wrangler, um modelo que evoluiu

O o Jeep Willys, colocou a funcionalidade


e a versatilidade no mercado automóvel
acima de tudo. Este modelo era capaz de
tanto que entrou agora no mundo da eletrificação.
Uma premissa que também foi seguida por todos os
seus irmãos, desde os mais todo-o-terreno até aos
suportar as condições mais extremas: desde as es- que nasceram para a cidade. Para os pôr à prova, a
tepes russas ou as zonas de alta montanha, à areia Jeep Academy. Por outras palavras, um dia inteiro
do deserto ou os terrenos lamacentos e pantanosos. para tirar o máximo partido do Wrangler, do Grand
Uma capacidade incrível que foi rapidamente her- Cherokee e do recém-chegado Avenger. e

64 SUPER
O NOVO KONA, MAIS COMPLETO DO QUE NUNCA
A SEGUNDA GERAÇÃO do Hyundai e design, também cresce em tecnolo-
Kona chega ao mercado automóvel gia. Destaque-se o novo Connected
em 2023 para oferecer uma qualidade Car Navigation Cockpit, que oferece
superior em todos os aspetos. Em uma experiência totalmente digital
primeiro lugar, sendo maior do que o graças à integração de ecrãs de 12,3
seu antecessor, ganha uma capaci- polegadas. O novo Kona está dispo-
dade de bagageira de 466 litros (mais nível com uma vasta gama de opções
30%) e um generoso espaço para as mecânicas: combustão, híbrido e hí-
pernas e para os passageiros da se- brido ligeiro de 48V. E todas elas com
gunda fila, bem como mais espaço de variantes desportivas N Line, com
arrumação. O seu design é mais arro- detalhes claramente diferenciadores.
jado, com uma nova frente elegante e Além disso, em breve estarão disponí-
desportiva, realçada pela iluminação veis versões 100% elétricas. Preço: a
LED Seamless Horizon. O seu design partir de 28.490 euros.
apelativo continua na traseira com um
spoiler cromado que incorpora uma
marcante luz de travão. Mas o novo
Kona não cresce apenas em tamanho NOTA: 4,65

A quinta geração do SUV mais premiado da história, o


Grand Cherokee, é totalmente nova: a sua arquitetura,
o seu grupo motopropulsor híbrido plug-in, o seu
design exterior e o seu interior com acabamentos de
classe mundial. O mais interessante, no entanto, é a sua
capacidade todo-o-terreno e o seu comportamento
dinâmico, cortesia de dois sistemas 4x4. De facto, o seu
novo sistema de desconexão da barra estabilizadora,
exclusivo na sua classe, oferece uma melhor articulação e
tração sobre as rochas e o terreno acidentado. Consegue
imaginar o quanto nos divertimos nos percursos todo-o-
terreno concebidos pela Jeep no terreno de Sigüenza?
O SUCESSO DO PEUGEOT
MAIS VENDIDO NA EUROPA
O sistema Selec-Terrain, que oferece cinco modos de
condução — Auto, Sport, Rock, Snow e Very/Sand —
permite ao condutor escolher como quer que o Grand HERDEIRO DE NOVE GERAÇÕES de nuar a triunfar, o 208 vai receber um
Cherokee lide com qualquer cenário. citadinos da marca do Leão, o 208 liftface em 2023 com um visual mais
tem tido um sucesso ininterrupto desportivo com uma nova assinatura
desde o seu lançamento no final de luminosa, e um interior mais emocio-
2019. Em pouco mais de três anos, nal com um Peugeot i-Cockpit mais
PREÇO quase 1.000.000 de 208s foram pro- digital e tecnológico. A gama será
Avenger a partir de 22 850 euros, duzidos em todo o mundo. Assim, baseada em três versões, Active,
Grand Cherokee a partir de 79 550 euros em 2021 e 2022, o Peugeot 208 foi o Allure e GT; e cinco motorizações,
e Wrangler a partir de 85 950 euros. carro mais vendido na Europa, em to- incluindo o novo motor elétrico de
dos os segmentos combinados. Este 156 cv com uma autonomia até 400
sucesso deve-se em grande parte ao km, e os novos motores Hybrid 100
sucesso da sua versão 100% elétri- e 136.
NOTA: 4,56 ca, o E-208, que também se tornou
o carro elétrico mais vendido da
Europa no segmento B. E para conti- NOTA: 3,98

SUPER 65
EXPLORER MOTOR

UM GRANDE VOLVO DE ELEVADOS PADRÕES

NOTA: 4,92

A FIAT REGRESSA AO SEGMENTO B COM O 600E


O FIAT 600E tem uma
autonomia elétrica de mais
de 400 km e de mais de
600 km em cidade.

NOTA: 3,97
irmão mais velho do 500 é elegante e moderno, tem um tamanho generoso de 4,17 metros de comprimento e acomo-

O da confortavelmente 5 pessoas. É o melhor da sua classe em termos de arrumação dianteira, possui uma autonomia
elétrica superior a 400 km e superior a 600 km em cidade, e oferece características de segurança de última geração.
Disponível em 2 versões 100% elétricas, o Fiat 600e La Prima e o 600e RED, é uma solução familiar muito elegante a
considerar se, acima de tudo, procura versatilidade e espaço. Relativamente a este último, os 360 litros de capacidade de carga
são dignos de menção. Preço: a partir de 34.537 euros. e

66 SUPER
“ A MINHA OPINIÃO

O VEÍCULO
U
m automóvel familiar veis, e que tem Google integrado. Mas
versátil e elegante com tudo é uma questão de sustentabilida-
proporções modernas e a
mais recente tecnologia de
de. Por exemplo, os estofos são cons-
tituídos por tecidos fabricados a partir
ELÉTRICO CHINÊS
software, conetividade e eletrificação. de materiais reciclados, como garrafas NEM SEQUER PASSOU UMA DÉCADA
Este é o novo SUV de sete lugares to- de plástico PET e polímeros bio-atri- DESDE QUE O MUNDO AUTOMÓVEL de-
talmente elétrico da Volvo — 517 cv e buídos provenientes de florestas da cidiu fazer uma mudança abrupta e de-
até 600 km de autonomia — o EX90. Suécia e da Finlândia. Se juntarmos a finitiva de direção para este novo desti-
Um veículo muito seguro em todos os isto os painéis de madeira, os tapetes no, este novo mundo chamado «veículo
aspetos graças aos seus sensores de parcialmente compostos por poliamida elétrico». E embora esta viragem fosse
última geração, como câmaras, radar regenerada ou os estofos dos bancos indubitavelmente necessária, as circuns-
e sistema LiDAR; bem como altamente em mistura de lã — com certificação tâncias globais tornaram-na inevitável
conectado através do seu ecrã central de bem-estar animal — o resultado devido à situação climática que pedia
de 14,5 polegadas, a porta de entrada é que o EX90 contém quase 50 kg de ajuda (neste momento seria insensato
para um dos melhores sistemas de in- plásticos reciclados e materiais de base criar sequer uma pequena dúvida a
foentretenimento atualmente disponí- biológica. Preço: a partir de 102 269 este respeito), vale a pena afirmar que
foi forçada e obrigatória, precipitando e
adiantando grandemente os planos da
indústria automóvel internacional.
A partir do momento em que os cons-
trutores aceitaram o novo roteiro, só
havia uma possibilidade: pôr mãos à
obra! Quanto mais cedo, melhor. E a
verdade é que hoje, sem exceção, todas
as marcas foram capazes de criar uma
gama de produtos elétricos de vanguar-
da, competitivos e reais, de acordo com
as necessidades do mercado.
Pois bem, neste contexto de avanço de-
senfreado para o «veículo elétrico», che-
gam agora os veículos elétricos chine-
ses. Não quero lançar qualquer dúvida
negativa sobre a chegada destes produ-
tos, e muito menos criticar o aumento
da oferta. Mas quero tomar a liberdade
de questionar as regras do jogo.
Se estes veículos de novos fabrican-
tes chineses chegarem ao mercado,
alegadamente apoiados por subsídios
do seu país que lhes permitem, pre-
sumivelmente mais uma vez, oferecer
preços com os quais é impossível com-
petir, e se também os apoiarmos com
subsídios locais, estaremos a criar um
cenário catastrófico capaz de dizimar a
indústria europeia?
Só o tempo o dirá, mostrando-nos a
capacidade da indústria automóvel para
forçar de novo as coisas.
NOTA: 3,97

PARA CONDUZIR A PARTIR DOS 14 ANOS José Manuel González,


coordenador da secção Motor.
N
A FIAT, NA SUA MISSÃO DE TORNAR AS CIDADES NUM AMBIENTE SUSTENTÁVEL E DES-
CONTRAÍDO, criou o Topolino, um veículo elétrico de dimensões extremamente redu-
zidas (2,41 metros de comprimento) destinado aos mais jovens (pode ser conduzido a
partir dos 14 anos) e aos condutores mais urbanos, embora não esteja disponível em Por-
tugal. Mas não se destaca apenas pelo seu design, mas também pelos seus 63 litros de
arrumação interior e pelos seus acessórios verdadeiramente únicos, como um pequeno
chuveiro. Oferece até 75 km de autonomia e pode ser carregado em menos de 4 horas.

SUPER 67
N E U R O L O G I A

Encontrar uma
explicação científica
para a lucidez
terminal poderia
abrir o campo para o
estudo de terapias.
Compreender o que
acontece permitiria
prestar melhores
SHUTTERSTOCK

cuidados e apoio a
quem está a passar
por esse processo.

68 SUPER
LUCIDEZ
EXTREMA
À BEIRA DA
MORTE
Um doente em estado crítico, frequentemente pessoas idosas
com demência avançada ou Alzheimer que, alguns dias, horas
ou minutos antes da morte, experimentam um episódio de
inesperada lucidez mental. Este fenómeno é conhecido como
lucidez terminal e continua a ser um mistério para a ciência.

Texto de ABIGAIL CAMPOS, jornalista

SUPER 69
A
lucidez terminal é um regres- Desde então, muitos estudos analisaram estes casos,
so inesperado das faculdades mas sempre sem chegar a conclusões válidas. «É por
cognitivas, como a fala ou isso que se discute se esta melhoria paradoxal existe e
a ligação com o ambiente e quais são as causas», adverte o Dr. David Pérez, chefe
com as outras pessoas, em do Departamento de Neurologia do Hospital Doce de
doentes com doenças neu- Octubre e do Hospital La Luz de Madrid, e membro do
rodegenerativas, demência Conselho de Administração da Fundação Alzheimer.
avançada ou Alzheimer, que Atualmente, os estudos são mais retrospetivos e ana-
tinham perdido essas capaci- lisam casos relatados por testemunhas isoladas numa
dades no decurso da doença. percentagem muito pequena, 1%, e em qualquer caso,
Esta lucidez paradoxal, como menos de 5%, mas «não há provas claras de que isso
também é conhecida, surge alguns dias, horas, minu- seja possível», sublinha.
tos ou segundos antes da morte. Neste surto inesperado Jesús Romero Imbroda, chefe de Neurologia do hos-
de lucidez mental, as pessoas reconhecem subitamente pital Quirón Salud de Málaga e Marbella e presidente
os seus entes queridos pela primeira vez em anos, têm da Sociedade Andaluza de Neurologia, concorda que
recordações concretas de acontecimentos passados que não se trata de um fenómeno comum, mas sim anedó-
tinham perdido há muito tempo e exprimem-se através tico. «Fiz medicina interna e serviço noturno e assisti
da fala com toda a clareza. a situações de doentes em cuidados paliativos ou em
Isso acontece sempre nos momentos imediatamen- agonia. Pela minha experiência, diria que é um fenó-
te anteriores à morte. O filósofo e cientista cognitivo meno que ocorre entre 3 a 5% das vezes. Mas quando
Alexander Batthyány, investigador em instituições da acontece, é muito marcante», admite. «É complicado
Hungria, Áustria, Rússia e Liechtenstein, estudou a porque, por vezes, gera mal-entendidos com a família
prevalência desta lucidez súbita em 38 pacientes com porque, numa situação de cuidados paliativos, há por
demência. Quarenta e quatro por cento dos episódios vezes «negacionistas» que se recusam a acreditar que
surgiram um dia antes da morte e 31% dois a três dias. se trata de uma situação irreversível. Mas a verdade é
Além disso, 43% dos fenómenos duraram menos de que essa melhoria é normalmente transitória e o doen-
uma hora e 16% duraram um dia ou mais. te morre.
Para lá de conotações religiosas ou paranormais, esta
é uma experiência intrigante que a ciência está a estudar OS AVANÇOS NA TECNOLOGIA MÉDICA E NA NEUROCIÊNCIA PER-
e que, apesar de relatar casos há séculos, não conseguiu MITEM AGORA SABER MAIS SOBRE O PROCESSO DE MORRER.
encontrar uma explicação. O Dr. Michael Nahm, biólogo O que acontece no cérebro no momento da morte?
do Instituto de Áreas de Fronteira em Psicologia e Saúde «Excluindo a morte cerebral — em que o cérebro pode
Mental de Freiburg, cunhou pela primeira vez o termo lu- morrer mas não o resto do corpo — quando morremos
cidez terminal em 2009, no artigo «Terminal Lucidity in há uma cessação de todas as atividades cerebrais. O cé-
People with Mental Illness and Other Mental Disability: rebro é uma víscera que depende dos nutrientes que
An Overview and Implications for Possible Explanatory lhe chegam através da circulação sanguínea. Quando
Models», publicado na série Journal of Near-Death lhe faltam esses nutrientes, ele fica sensível e cessa to-
Studies. Até então, o especialista tinha encontrado 80 das as atividades», explica o Dr. Romero Imbroda.
referências a casos de lucidez terminal em pacientes Muitos autores relacionam não só a lucidez termi-
considerados doentes mentais, relatados por 50 autores nal, mas toda a gama das chamadas «experiências de
diferentes, na sua maioria psiquiatras e médicos. quase-morte» com a falta de oxigénio no cérebro. «No
JOHN GRANE

Quando morremos, há uma cessação de todas as atividades corporais.


Muitos autores relacionam a lucidez terminal e outras experiências de
quase-morte com a falta de oxigénio: talvez dentro desta paragem
hipóxica haja hiperatividade nas zonas onde se aninha a memória que
ISTOCK

nos dá acesso à informação sobre a nossa biografia.

70 SUPER
EQM, a pseudociência entra em jogo
E nquanto os cientistas discutem
a existência da lucidez terminal
e a sua potencial importância pa-
-Fenómenos físicos ou acústi-
cos síncronos, tais como batidas,
música, movimento de portas ou
ra a compreensão do processo de objetos, comportamento estranho
morrer e da natureza da consciên- de aparelhos elétricos ou relógios
cia humana, surgiram e continuam que param.
a surgir nomes relacionados com -Emanações de névoas, formas,
os estudos das experiências de luzes ou brilho em torno do mori-
quase-morte (EQM), embora mais bundo.
na linha da parapsicologia do que -Capacidade de realizar movi-
da ciência. mentos corporais ou habilidades
Por exemplo, a descrição destes pouco antes da morte que antes
fenómenos feita pelo Dr. Raymond pareciam impossíveis.
Moody em 1975 foi revolucionária. -O reaparecimento de capa-
Anos mais tarde, em 2009, Michael cidades mentais normais ou
Nahm, biólogo do Instituto de Áreas melhoradas em pacientes en-
de Fronteira em Psicologia e Saúde torpecidos, inconscientes ou
Mental de Freiburg, reuniu no seu mentalmente doentes, pouco
artigoTerminal Lucidity in People antes da morte, incluindo conside-

SHUTTERSTOCK
with Mental Illness and Other Mental rável elevação do ânimo e afetação
Disability: An Overview and Impli- espiritual.
cations for Possible Explanatory -A capacidade de falar de forma
Models, experiências de lucidez ter- -Clarividência espacial aparentemente ver- espiritualizada e eufórica, que an-
minal (aliás, ele seria o primeiro a descrever dadeira e previsões corretas e detalhadas. teriormente não era habitual.
este termo) e outras EQM que incluem fe- -Impressões telepáticas ou aparições Existem muitos estudos sobre EQM, mas
nómenos inexplicáveis como estes: do paciente no momento da morte, ex- sublinhamos que os estudos e publica-
-Visões no leito de morte de familiares, ami- perimentadas por parentes próximos ou ções de Nahm permanecem no domínio
gos ou figuras religiosas falecidos, e muitas amigos que não estão presentes com o da pseudociência e da parapsicologia, e
vezes comunicando com eles. paciente. não da ciência que as estuda.

tecido cerebral há uma zona muito sensível à hipoxia e UMA NOVA INVESTIGAÇÃO REVELOU NÍVEIS SURPREENDENTES
outra mais resistente. A mais resistente é a filogené- DE ATIVIDADE nos cérebros de pessoas que estão a mor-
tica, que se encarrega de gerir a parte básica como o rer e pode ajudar a explicar a clareza súbita sentida por
ritmo cardíaco, a pressão arterial, e é também a par- pessoas com demência em situações de quase-morte.
te dos instintos, do sexo, da alimentação, do controlo Um estudo da Universidade de Michigan (EUA) e do
do sono... Essa parte que nos faz mais animais. Mui- Centro para a Ciência da Consciência, recentemente
tas pessoas que experimentaram a reanimação após publicado na revista PNAS, mostra que a atividade
uma paragem cardíaca têm uma história comum, na cerebral aumenta em metade dos pacientes que so-
qual detalham acontecimentos como ver uma luz ao freram paragem cardíaca após a retirada do suporte
fundo do túnel ou ver a sua vida passar à sua frente. de vida. A hipoxia global resultante estimulou de for-
É possível que, neste abrandamento da atividade ce- ma acentuada a atividade das ondas cerebrais gama
rebral induzido pela hipoxia, haja hiperatividade nas em metade dos pacientes. Embora os mecanismos e
áreas do cérebro onde está aninhada a memória que o significado fisiológico destas descobertas ainda não
nos dá acesso à informação sobre a nossa biografia. Al- tenham sido totalmente explorados, estes dados de-
guma resposta é ativada para que, numa atividade de monstram que o cérebro moribundo pode ainda estar
consciência mínima, haja acessibilidade às memórias ativo. Sugerem também a necessidade de reavaliar o
biográficas», acrescenta o presidente da Sociedade papel do cérebro durante a paragem cardíaca», de-
Andaluza de Neurologia. fendem os autores.
Foram descritos casos de lucidez transitória em Este tipo de estudo também foi realizado em dife-
doentes em cuidados paliativos, por vezes com com- rentes anos em experiências com ratos (expostos a
plicações de doenças cardiovasculares, numa situação uma toxina cardíaca ou mortos por asfixia) e também
irreversível. «Quando há também défice cognitivo, se constatou que a atividade das ondas gama aumenta
estes doentes que melhoram são mais impressionan- nos primeiros minutos da paragem cardíaca. Assim,
tes, porque são capazes de manter uma conversa ou tanto em seres humanos como em animais, a investi-
recordar coisas antigas. É como se a doença tivesse gação demonstrou que o cérebro apresenta atividade
desaparecido de repente. Isto está relacionado com a após a redução súbita de oxigénio.
atividade do tecido cerebral ameaçado pela hipoxia, que O curso das doenças neurodegenerativas e da doença
o faz experimentar a acessibilidade a memórias antigas de Alzheimer apresenta certas flutuações e, por ve-
ou a ficar hiper-alerta», insiste Romero Imbroda. zes, surgem diferenças no desempenho cognitivo e na

SUPER 71
ASC

A) Localizações corticais e curso temporal da atividade neural em locais selecionados num dos sujeitos monitorizados no AWARE II. O
aumento da atividade em cada local é breve. B) A atividade neuronal ocorre durante o ponto mínimo das oscilações alfa (8,12 Hz).

Tarefas
relacionadas Início do Pressão do botão
estímulo
Motor Sensorial Visual
Início da atividade de banda larga
Passagem de banda alfa Envelope de banda larga

Atividades de banda larga pelo


Canal Alfa

Projeto Aware II
E ntre 2017 e 2020, Sam Parnia, profes-
sor assistente de medicina intensiva
na Universidade Estadual de Nova Iorque,
ção cardiopulmonar (RCP). Embora os
resultados finais ainda não tenham sido
publicados, Parnia afirmou que este no-
to são submetidos a RCP para testar a sua
memória após a paragem cardíaca. Os que
sobrevivem são posteriormente entrevis-
liderou um estudo denominado AWARE vo estudo irá mostrar que uma em cada tados sobre o grau de consciência que
II (AWAreness during REsuscitation), no cinco pessoas reanimadas após uma pa- tiveram durante o processo de reanimação
qual os investigadores monitorizaram a ragem cardíaca tem uma experiência de e se tiveram experiências lúcidas após a
atividade cerebral de mais de 500 pes- quase-morte, ou EQM. paragem cardíaca. A equipa do AWARE II
soas gravemente doentes nos EUA e no Para esta investigação, os pacientes são também observou um pico inesperado na
Reino Unido que receberam reanima- expostos a estímulos audiovisuais enquan- atividade cerebral durante a RCP.

perceção da realidade. «Há dias em que o doente está mum a administração de psicotrópicos para diminuir
mais alerta e mais atento, e outros em que está pior. a agitação e acalmá-lo. «Numa situação terminal, esta
Estas variações extremas podem ser causadas pelo je- medicação é retirada, e sabe-se que a retirada destes
jum prolongado, mas são hipóteses não confirmadas», fármacos torna-os mais alerta», acrescenta o Dr. Pérez.
alerta o Dr. Perez. E se falar deste tipo de experiência de quase-morte
levanta uma série de questões éticas, científicas e fi-
O CHEFE DE NEUROLOGIA DO HOSPITAL DOCE DE OCTUBRE, losóficas, o cenário é, como podemos imaginar, ainda
EM MADRID, ADMITE NÃO TER UMA HIPÓTESE CLARA SOBRE OS mais delicado quando se trata de melhorias súbitas
EPISÓDIOS DE LUCIDEZ TERMINAL, «mas se tivesse de me em pacientes pediátricos à beira da morte. Alex Gó-
envolver apostaria em ter em conta que muitos doentes mez-Marín, físico teórico e neurocientista do Instituto
com doenças neurodegenerativas têm sintomas neurop- de Neurociências de Alicante, um centro conjunto do
siquiátricos e psicológicos associados, com depressão, CSIC e da Universidade Miguel Hernández de Elche, é
apatia, baixa motivação, mutismo.... Pode colocar-se a o único espanhol de uma equipa internacional multi-
hipótese da reversibilidade destes fatores psicológicos, disciplinar que trabalha atualmente num estudo sobre
em situações de grande emotividade, com a presença de a lucidez terminal em pacientes pediátricos. O projeto
familiares na festa de despedida, e pode notar-se que o é dirigido por Natasha Tassell-Matamua, codiretora do
doente está mais atento e alerta; portanto, pode parecer Centro de Psicologia Indígena da Universidade de Mas-
que há uma reversão, mas é mais uma sensação subjetiva sey, na Nova Zelândia.
do que um facto cognitivamente verificável».
Outra hipótese que está a ser considerada está re- DESCONHECE-SE QUASE TUDO SOBRE ESTE FENÓMENO NAS
lacionada com os medicamentos. Ou melhor, com a CRIANÇAS. Quando se fala de lucidez em fase terminal,
retirada de medicamentos. Nesse tipo de paciente é co- a maior parte das vezes refere-se a adultos e especial-

72 SUPER
mente a doentes de Alzheimer e demência; até já foi Estudos demonstram que
estudado em animais. Mas o caso das crianças é di- um cérebro moribundo
ferente. «Sabe-se que acontece, mas não sabemos pode ainda estar ativo e
praticamente nada sobre isso. Ou, pelo menos, não que a atividade cerebral
aumenta em pacientes
temos casos suficientes para podermos tirar conclu- que sofreram uma
sões sobre a sua prevalência, tipos de lucidez, relação paragem cardíaca.
com patologias ou com o desenvolvimento cognitivo
da criança. É precisamente por isso que começámos a
investigá-la especificamente nas crianças mais peque-
nas», explica Gómez-Marín.
O especialista lembra que existem alguns relatos
publicados sobre a lucidez em crianças, mas são «fran-
camente escassos» para tirar conclusões. O primeiro
caso documentado de que há registo é do século XIII,
«quando uma criança moribunda, em angústia do-
lorosa, ficou subitamente consciente, começou a rir,
levantou os braços e morreu pouco depois. Os outros
casos conhecidos são semelhantes, na medida em que
a clareza mental e a capacidade física da criança me-
lhoraram subitamente pouco antes da morte».
Relativamente às hipóteses, o investigador acredita

SHUTTERSTOCK
que é bom considerar várias, «para não ficarmos pre-
sos à nossa preferida», diz. «Uma forma de interpretar
o que acontece é pensar no processo de lucidez termi-
nal simplesmente como os últimos estertores de um
corpo e de um cérebro danificados que se desligam. O
organismo sabe que está a morrer e descarrega subita- PLICAÇÃO PARA FENÓMENOS COMO A LUCIDEZ TERMINAL? «O
mente toda a sua energia física e mental. No entanto, processo de morrer é mais complexo do que se pensava.
tal como no caso das experiências de quase-morte, Não se morre simplesmente, como quando se desliga
estas hipóteses puramente fisiológicas de «cérebro a televisão ou um interrutor. É uma espécie de transe
avariado» têm, creio eu, mais dificuldade em explicar que é extremamente valioso para quem o experimenta
com exatidão a lucidez, a consistência, até mesmo a em primeira mão e para os seus familiares, especial-
beleza e o impacto positivo destas experiências. Quan- mente se tiverem a oportunidade de compreender o
do uma máquina avaria, não está no seu melhor, mas que está a acontecer. Não só a nível psicológico e expe-
antes pelo contrário. rimental, mas também para poderem tomar decisões
O neurocientista defende outra visão da função do mais informadas sobre os aspetos do tratamento que
cérebro em relação à mente: «Vejo-o como permissivo, podem ser úteis ou apropriados em determinadas fa-
não produtivo», diz. Ou seja, se o cérebro não «pro- ses dos cuidados aos moribundos. A nível clínico, uma
duz» a mente como uma chaminé produz o fumo, mas melhor compreensão da lucidez terminal pode mes-
«permite-a» como um prisma refracta e dispersa a luz mo levar ao desenvolvimento de novas terapias que
branca em várias cores, então podemos conceber a luci- permitam um melhor acesso às memórias. É também
dez terminal como uma espécie de abertura, ou mesmo inestimável para os cientistas, pois revela fenómenos
de rasgão, do filtro cerebral — Aldous Huxley chamou- fundamentais para a compreensão da vida e da men-
-lhe «válvula redutora» — que deixa passar, por alguns te, alguns deles ainda à sombra de tabus académicos
momentos, uma torrente de clareza mental antes que e sociais. Ao estudar estas «margens da consciência»,
«o grande órgão da consciência» cesse a sua atividade. podemos avançar na nossa compreensão da relação
O estudo conduzido por Tassell-Matamua envolve entre a mente e o cérebro. Da lucidez terminal às ex-
um grande grupo de especialistas de renome, incluin- periências de quase-morte, uma melhor compreensão
do Bruce Greyson, membro vitalício da Associação do que acontece, como e porquê permitir-nos-á cui-
Americana de Psiquiatria e cofundador da Associa- dar melhor e acompanhar aqueles que se encontram
ção Internacional para Estudos de Quase Morte, que, nesse processo. Mais cedo ou mais tarde, todos nós
juntamente com Michael Nahm, também membro da passaremos por isso».
equipa, cunhou o termo científico «lucidez termi- Encontrar uma explicação científica para a lucidez
nal». A investigação está numa fase muito preliminar. terminal poderia, portanto, abrir o campo para o es-
«Estamos realmente no início. A equipa obteve finan- tudo de terapias. Estes mecanismos de lucidez mental
ciamento para iniciar a investigação e acabámos de que surgem nos momentos que antecedem a mor-
lançar um inquérito internacional pioneiro, em inglês te «são como um oásis cognitivo e gostaríamos de os
e espanhol, para recolher testemunhos pormenoriza- compreender melhor, ou mesmo de os reproduzir
dos de adultos — familiares ou pessoal de saúde — que farmacologicamente para os doentes com doenças
tenham assistido a um episódio de lucidez terminal neurodegenerativas. Para transformar o oásis numa
numa criança. Se tiver conhecimento de algum caso, realidade cognitiva», afirma o Dr. Romero Imbroda.
contacte-nos. A sua experiência é muito valiosa nesta Embora ainda estejamos longe de uma interpretação
fase do projeto», afirma Gómez-Marín. adaptativa ou evolutiva do fenómeno, é evidente para
Gómez-Marín que a lucidez terminal permite a muitos
QUE POSSIBILIDADES SE ABRIRIAM PARA A CIÊNCIA E PARA moribundos despedirem-se conscientemente dos seus
OS SERES HUMANOS SE FOSSE POSSÍVEL ENCONTRAR UMA EX- entes queridos. «A vida dá-nos um último presente». e

SUPER 73
S A Ú D E

GORDURA BOA V Uma é responsável pelos pneuzinhos. A outra não se acumula e o corpo
transforma-a em energia.A ciência está a investigar como agir para acabar
com a epidemia de obesidade que faz cada vez mais vítimas.

Texto de ELENA SANZ, jornalista especializada em saúde

O que nos era útil


na antiguidade,
acumular gordura
para os períodos
de fome, é
atualmente
prejudicial: o
fornecimento
contínuo de
alimentos faz-nos
SHUTTERSTOCK

acumular gordura
que precisa de ser
queimada.

74 SUPER
VS. GORDURA MÁ
N
em toda a gordura do nos-
so corpo pode ser colocada
no mesmo saco. Há já algum
tempo que os cientistas distin-
guem entre a gordura branca
ou má, que é a gordura que se
deposita e forma os tão mal-
vistos pneuzinhos, flacidez
ou almofadas de gordura; e a
gordura castanha ou boa, que
é queimada para gerar calor.
A estas podemos acrescentar
uma terceira, a gordura bege, isolada pela primeira vez
em 2012 na Harvard Medical School (EUA), que também
é queimada para produzir calorias e aumentar a tempe-
ratura corporal.
Cada tipo tem um comportamento diferente. En-
quanto o excesso de gordura branca provoca obesidade
e diabetes, as células de gordura castanha e bege têm o
efeito oposto: protegem-nos do excesso de peso e das
suas consequências nefastas. «O bom e o mau são o yin
e o yang do metabolismo», afirma Kenneth Walsh, in-
vestigador da Faculdade de Medicina da Universidade de
Boston e diretor do Instituto Cardiovascular Whitaker,
nos EUA. De facto, foi demonstrado que os indivíduos
com maior quantidade da primeira, a gordura boa, são
mais propensos à magreza porque, em vez de armaze-
narem energia, tendem a dissipá-la continuamente sob
a forma de calor.
Perante estes dados, podemos perguntar-nos porque
é que o organismo humano desenvolveu vias metabóli-
cas complexas para armazenar quilos inúteis. Há uma
explicação evolutiva. «Se recuássemos no tempo, até à
época dos caçadores e recoletores, passávamos dias sem
conseguir pôr nada na boca e ter reservas para arma-
zenar excedentes de energia era uma vantagem», diz
Kenneth Walsh.

OS OBESOS DA PRÉ-HISTÓRIA TINHAM UMA VANTAGEM EVOLUTI-


VA AO ESTAREM PREPARADOS PARA SOBREVIVER EM SITUAÇÕES
DE FOME. Mas o que era biologicamente útil para nós há
milhares de anos, hoje, com os frigoríficos e as despen-
sas sempre cheios de comida, é gravemente prejudicial
para a nossa saúde. Podemos levar uma vida sedentária
e, ao mesmo tempo, ter sempre ao nosso alcance uma
grande quantidade de produtos altamente calóricos. E,
claro, «o fornecimento contínuo de alimentos leva-nos
a acumular demasiadas células brancas de gordura que
nunca precisamos de queimar», salienta Walsh.
Que estas circunstâncias nos levem a negligenciar
a nossa figura é o menos importante. O que é mais
preocupante é que o excesso de peso é acompanhado
de doenças que comprometem a nossa saúde, como

SUPER 75
a diabetes, a hipertensão, as doenças cardiovascula- Afinal, o arrepio não é mais do que um mecanismo de
res e cerebrovasculares e até certos tipos de cancro. A sobrevivência que produz contrações musculares para
situação é tão má que, de acordo com um estudo da manter a temperatura corporal e evitar a hipotermia
Universidade de Illinois, nos EUA, publicado no New quando o termómetro desce demasiado. Estes movi-
England Journal of Medicine, pela primeira vez a atual mentos musculares também enchem o sangue de irisina
geração poderá ter uma esperança de vida inferior à da que queima gorduras, como explicou o investigador na
sua antecessora. revista Cell Metabolism.

2030: 30% DE OBESOS. Encontrar uma forma de que estes CHILLI CONTRA AS GORDURAS. Se, para além de se mexer e
depósitos se transformem em bons, fáceis de queimar de se arrefecer, apimentar a sua comida com um pou-
pode ser a panaceia para acabar com a epidemia de co de chilli, não só a sua boca começará a arder, como
obesidade que afetará 30% da população até 2030, se- também se livrará daqueles pneuzinhos. Cientistas da
gundo a OMS. Está mais do que provado que, sempre Universidade de Wyoming, nos EUA, descobriram pro-
que corremos ou andamos de bicicleta, parte do te- vas de que a capsaicina, a molécula que produz o sabor
cido adiposo branco é convertido em tecido adiposo picante, aumenta a gordura castanha à custa da redução
castanho metabolicamente ativo. Bruce Spiegelman e da acumulação da sua contrária.
colegas da Harvard Medical School, nos Estados Unidos, Por outro lado, um estudo da Universidade de Quioto,
mostraram em 2012 que isso se deve à ação da irisina, no Japão, concluiu que o consumo de óleo de peixe fa-
uma hormona que os músculos libertam na corrente vorece que os depósitos de lípidos se mobilizem e sejam
sanguínea quando se contraem durante o exercício ae- queimados nas «caldeiras» da célula. Os números são
róbico. Com esta substância a correr nas nossas veias, a mais do que eloquentes: ao consumir este tipo de óleo,
gordura castanha derrete muito facilmente para forne- perde-se entre 5 a 10 % de peso e acumula-se 15 a 25 %
cer calorias. menos de gordura.
Curiosamente, uma exposição ao frio, de cerca de 12 a Por outro lado, o consumo excessivo de batatas fritas
14 graus Celsius durante quinze minutos, tem o mesmo tem o efeito contrário. Se comermos demasiados alimen-
efeito dissolvente que uma hora de desporto. Além dis- tos altamente calóricos, não só produzimos muito tecido
so, pode dizer-se que tremer emagrece, como provou adiposo branco, que é armazenado nos músculos, como
recentemente Paul Lee, endocrinologista do Garvan também as células castanhas deixam de funcionar corre-
Institute of Medical Research em Sydney, na Austrália. tamente e não consomem quaisquer calorias. E isso leva a
uma «espiral mortal», nas palavras de Walsh.
Num estudo publicado no Journal of Clinical Inves-
tigation, o cientista e os seus colegas atribuem esta
situação ao facto de que comer mais do que o necessário

Duas hormonas provoca o mau funcionamento dos sinais celulares es-


senciais para a formação dos vasos sanguíneos.

em equilíbrio O LADO BOM, O LADO NEGRO. A consequência imediata é que


os adipócitos castanhos ficam privados de irrigação de
O delicado equilíbrio entre o tecido adiposo que é armaze-
nado e o tecido adiposo que é queimado é mantido pela
ação combinada de duas hormonas, a insulina e a leptina. A
sangue. E como não recebem sangue e, portanto, não
recebem oxigénio, as mitocôndrias — as centrais ener-
géticas celulares — falham, não conseguem gerar calor
primeira é produzida no pâncreas e responde ao aumento dos
e incham, acumulando cada vez mais lípidos. Por ou-
níveis de glucose no sangue. A segunda é um inibidor de apeti-
tras palavras, se exagerarmos no açúcar, a gordura boa
te fabricado no interior das próprias células lipídicas. E as suas
começa a comportar-se como gordura má. «É uma cas-
mensagens são complementares: enquanto a leptina diz ao
cata patológica: a falha metabólica provoca a perda de
cérebro qual a dimensão das reservas de gordura num determi-
capilares, o que danifica a gordura castanha, agravando
nado momento, a insulina prevê o seu aumento no futuro, com
ainda mais esse erro metabólico», diz Walsh.
base no que estamos a comer. A sua ação combinada ativa um
O que também não é recomendado para se livrar
grupo de neurónios no cérebro, chamados neuropeptidérgicos,
do excesso de gordura é o jejum. Neurocientistas e fi-
que dão a ordem para queimar a gordura .
siologistas da Escola de Medicina de Yale, nos EUA,
localizaram o interrutor para a produção e queima de
depósitos castanhos no hipotálamo, nos neurónios
que regulam o apetite. Mostraram que, em caso de je-
jum prolongado, ocorrem alterações moleculares nessa
região que desligam o interruptor e impedem o escu-
recimento da gordura branca, o que favorece que esta
SHUTTERSTOCK

se acumule.
Por outro lado, quanto menor for o número de mi-
cróbios no intestino, mais fácil é reduzir o tamanho da
barriga. Se a sua flora diminuísse, a gordura bege, que,
tal como a gordura castanha, reduz o excesso de peso,
aumentaria. Para chegar a esta conclusão, a Universida-
de de Genebra (Suíça) alimentou com uma dieta rica em
calorias três grupos de ratinhos: normais, livres de mi-
crorganismos digestivos e tratados com antibióticos que
tinham destruído a microbiota.

76 SUPER
Porque importam tanto as cores das suas gorduras?

O tecido adiposo é essencial porque protege e mantém os órgãos internos no lugar e fornece energia ao
corpo. Mas tem dois lados: o lado bom é a gordura castanha e bege, e o lado mau é a gordura branca.

BEJE
TKM ARCHIVE A meio caminho entre os adipó-
citos brancos e castanhos, con-
CASTANHA tém também células que quei-
mam gordura para produzir
É um tecido crucial para a produção de
calorias. Após a sua descoberta
calor — termogénese — nos mamí-
em 2012, foi demonstrado que
feros. A temperatura gerada pelas
um aumento da sua atividade
suas células é fundamental para
também contribui eficazmente
a sobrevivência dos pequenos
para a perda de peso.
animais em ambientes frios. A
sua cor escura deve-se ao
elevado número de mito-
côndrias que contém. Es-
TKM ARCHIVE

tes orgánulos celulares são BRANCA

TKM ARCHIVE
responsáveis pela queima
Apesar da sua cor páli-
de gordura. Até 2009, pen-
da, é a ovelha negra das
sava-se que era exclusiva
gorduras corporais. É
dos recém-nascidos, mas
constituída por grandes
depois foram descobertos
acumulações de lípidos,
depósitos significativos no
moléculas utilizadas pelo
pescoço e no peito dos adul-
organismo para armazenar
tos e descobriu-se que a sua ati-
energia a longo prazo. A com-
vidade favorecia a perda de peso
bustão de cinquenta gramas for-
e a magreza. Este facto tornou-a o
nece ao organismo trezentas qui-
aliado perfeito para acabar com a crise
localorias de energia.
da obesidade.

A PISTA INTESTINAL. Os resultados da experiência branca para a gordura castanha. Quando os indivíduos
revelaram que, enquanto os primeiros roedores, em- têm mais estímulos sociais, parte da primeira é con-
panturrados de comida, desenvolveram obesidade e vertida na segunda. Os animais gastam mais energia e
resistência à insulina, os dois grupos de ratinhos sem perdem peso mesmo quando comem mais.
flora digestiva mantiveram-se «sãos como pêros». O isolamento, no entanto, favorece a acumulação da
A orexina, uma hormona que regula os mecanismos mais nociva. Estes resultados confirmam o forte efeito
do apetite e do sono no cérebro humano, é também res- que o ambiente social e físico tem na atividade meta-
ponsável por desencadear a transformação da gordura bólica. Os animais mais estimulados registaram uma
má em gordura boa. Segundo o seu descobridor, Take- redução de 49% da gordura abdominal.
shi Sakurai, trata-se de um neuropeptídeo cujo objetivo Mas esta não foi a única consequência: estes ratos ga-
é desencadear a vigília e manter os olhos abertos para nharam menos 29% de peso do que o grupo de controlo.
encontrar comida, mas também tem esta outra função Apesar de estarem sobrealimentados, este facto não
nos tecidos. Na sua ausência, qualquer coisa pode fazer- teve um impacto negativo. Também tinham uma tem-
-nos engordar. peratura corporal mais elevada, o que indica que foi o
aumento da produção de energia, e não a perda de ape-
LEI CAO, DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DE OHIO, NOS EUA, PREVÊ tite, que os tornou resistentes à obesidade. A equipa de
UM FUTURO SEM OBESIDADE, SEM NECESSIDADE DE NOS SUB- Lei Cao vai agora concentrar-se em identificar quais os
METERMOS AO FRIO NEM AO PICANTE. Em experiências com elementos do ambiente, ou seja, os estímulos cogniti-
ratos, identificou uma via, designada por eixo hipotála- vos, sensoriais e sociais, que produzem este resultado
mo-tecido adiposo, que assinala a mudança da gordura desejável. e

Os estímulos sociais favorecem a conversão da gordura


branca em gordura castanha. O isolamento, por outro lado,
leva à acumulação da gordura mais nociva no corpo
SUPER 77
A N T R O P O L O G I A

DADOS
INDÍGENAS A LUTA DAS COMUNIDADES
AUTÓCTONES PELA SOBERANIA
DA SUA INFORMAÇÃO
Os dados são as minas de ouro do século XXI. Quem os recolhe e tem acesso
a eles tem o poder. Algumas nações indígenas iniciaram uma cruzada para
manter o controlo dos seus dados, de quem os recolhe e para que fins.

Texto de SARAI J. RANGEL, jornalista científica.

A informação é o recurso
mais importante do
século XXI. Se os povos
indígenas puderem
conhecê-la e controlá-la,
terão mais recursos para
conhecer as suas
necessidades e gerir-se
GETTY

adequadamente.

78 SUPER
SUPER 79
ASC
Na foto, membros da
comunidade Yawuru. Tal
como eles, outros povos
indígenas podem controlar
os seus dados e garantir
que estes são utilizados em
seu benefício.

O
s Yawuru, um povo piscató- e repositórios nacionais como fonte, mas, para sua de-
rio semi-nómada que vive há ceção, estas estatísticas eram inexatas e não refletiam a
milhares de anos nas costas da sua realidade.
região de Kimberley, no no- Este foi um grande obstáculo ao progresso dos seus
roeste da Austrália Ocidental, objetivos. O diretor-adjunto do Centro de Estatística
só recuperaram os seus direitos para os Aborígenes e os Insulares do Estreito de Torres
aos seus territórios tradicionais e orgulhoso membro da comunidade Yawuru, Adrian
em 2010, um feito que durante Dodson-Shaw, explicou-o da seguinte forma na altu-
gerações parecia impossível. ra: «Se as pessoas que planeiam os nossos serviços e
Há séculos, eles foram des- programas não sabem onde estamos e quantos de nós
pojados de suas terras e meios vivem numa comunidade, então não saberão de que
de subsistência, e relega- serviços necessitaremos no futuro para nos mantermos
dos, como muitas outras nações indígenas do mundo, fortes e ligados».
à marginalização e à quase extinção de sua cultura e Confrontados com esta situação, os Yawuru tomaram
tradições. No entanto, de alguma forma, a essência Ya- uma decisão sem precedentes: iriam assumir a respon-
wuru sobreviveu. Após uma batalha judicial que durou sabilidade de gerar, proteger e gerir os seus próprios
16 anos, o governo australiano reconheceu a ligação da dados.
tribo às terras e águas dos seus antepassados, nas quais
foi fundada a cidade de Broome, mas que ainda chamam A INFORMAÇÃO É O RECURSO MAIS VALIOSO DO SÉCULO XXI,
pelo seu nome original: Rubibi. AINDA MAIS DO QUE O PETRÓLEO, PROCLAMOU O THE ECONO-
O chamado Native Title Act ratificou o seu papel de MIST EM 2017. É uma parte essencial da nossa sociedade,
proprietários tradicionais de cerca de 530 000 hectares desde estatísticas e inquéritos nacionais, a publicações
de terra em Rubibi e arredores. O pacto conferiu-lhes o nas redes sociais, dados pessoais, pesquisas na Internet,
poder de decidir e ter uma palavra a dizer sobre a utili- o que compramos, análises laboratoriais, endereços IP,
zação e a gestão desses territórios e previu programas provas de ADN, dados meteorológicos, faturas, sítios
de formação, desenvolvimento e habitação para a co- que visitamos e muito mais. Estes ativos permitem às
munidade Yawuru. Este último ponto suscitou grande organizações, tanto públicas como privadas, tomar de-
interesse devido à situação precária de sobrelotação em cisões.
que se encontrava a população aborígene na cidade. No entanto, os povos indígenas em geral não têm
Conscientes das necessidades do seu povo e dos re- beneficiado desta revolução dos dados. A sua invi-
cursos limitados disponíveis, os representantes dos sibilidade nos censos oficiais em muitos países com
Yawuru propuseram-se basear as suas decisões em da- populações nativas, juntamente com a falta de clareza
dos e informações exatos sobre as suas necessidades de e exatidão da informação, quando existe, é um proble-
habitação. Inicialmente, procuraram utilizar os censos ma recorrente. Um relatório recente da Organização

80 SUPER
O facto de os povos indígenas

ASC
terem um acesso limitado aos
seus dados impede-os de
tomarem decisões e de
exercerem a sua soberania

Mundial do Trabalho sublinha que os decisores políti-


cos ainda se deparam com questões fundamentais como
«quem são os povos indígenas» ou «quantos são».
Outro desafio, segundo Stephanie Russo Carroll,
diretora associada do Native Nations Institute da Uni-
O governo australiano teve que reconhecer a ligação entre o
versidade do Arizona e nativa do Alasca Ahtna, é que
povo Yawuru (alguns de seus membros podem ser vistos na
a grande maioria dos dados sobre os povos indígenas é
foto) e sua terra e água.
criada do ponto de vista de terceiros, como governos ou
instituições exteriores às próprias comunidades. Isto
resultou em dados inconsistentes, imprecisos e de pou-
co valor para a resolução dos problemas que os afetam. indígena. O professor australiano John Taylor, que fez
Além disso, as tribos têm frequentemente acesso limi- parte do grupo que treinou os pesquisadores Yawuru,
tado aos seus próprios dados, que não estão sob o seu observou num relatório: «Nunca tinha acontecido nada
controlo e são propriedade de terceiros, limitando a sua assim em lado nenhum, no sentido em que um grupo
capacidade de tomar decisões e exercer a sua soberania. aborígene foi mobilizado para recolher informações pa-
Em 2011, os líderes Yawuru estabeleceram uma par- ra os seus próprios fins».
ceria com o Kimberly Institute, uma organização
aborígene local, para receberem formação e realizarem ATUALMENTE, VÁRIAS NAÇÕES INDÍGENAS ESTÃO A LUTAR PELA
um inquérito que forneceria uma imagem mais exa- SOBERANIA DOS SEUS DADOS, seguindo o exemplo dos Ya-
ta da demografia das famílias aborígenes de Broome. wuru. Stephanie Russo e outros descendentes de povos
A partir desta informação, desenvolveriam o seu pro- nativos dos Estados Unidos fundaram a US Indigenous
jeto de habitação social. O inquérito Yawuru Knowing Data Sovereignty Network; é também co-fundadora da
Our Community (YKC) revelou uma subestimação da Global Indigenous Data Alliance (GIDA), uma parceria
população indígena na cidade, um aspeto crucial a con- internacional dedicada a promover o controlo indígena
siderar nos seus planos de desenvolvimento. sobre a sua informação.
Para além dos seus resultados, o que foi notável nesta Desi Rodriguez Lonebear, professora assistente de
iniciativa foi o facto de ter sido o primeiro esforço de Estudos sobre os Índios Americanos na Universidade da
recolha de dados do seu género por e para a população Califórnia, que também é membro deste grupo, salien-
IWGIA

Reunião do IWGIA (In-

Uma muralha virtual para


ternational Work Group
for Indigenous Affairs)
em 2022.
proteção de dados
A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indí-
genas (UNDRIP) é a base em que assenta a Soberania dos Dados
Indígenas, afirmando que os Povos Indígenas têm o direito de controlar
os dados sobre as suas populações, terras e recursos. No entanto, o ad-
FUENTE: HTTPS://WWW.CELL.COM/CELL/FULLTEXT/S0092-8674(22)00782-6

vento de grandes bases de dados abertas representa um desafio a esta


aspiração, uma vez que permite a qualquer pessoa aceder aos seus da-
dos e informações sem o seu consentimento.
Para o evitar, foram consideradas diferentes estratégias, como por exem-
plo, a utilização da tecnologia blockchain para dados genómicos. Esta
tecnologia encripta a informação e só pode ser divulgada depois de as
entidades indígenas terem aprovado o projeto.
Como salienta o investigador da Universidade da Califórnia em San Die-
go, Keolu Fox, «este modelo garantirá que cada nação indígena controla
o acesso à informação confidencial de saúde dos seus membros, dando
prioridade à investigação ligada às necessidades da sua comunidade».

SUPER 81
No caso dos povos indígenas do
México, como os Cachiquel (na foto),
dois elementos limitam a sua soberania
de dados: o acesso e a pertinência.
ASC

ta que, contrariamente à crença popular, os dados não reunir a informação produzida pela comunidade Maori,
são estranhos ao mundo indígena. Como membro da bem como os dados relacionados com ela e com o seu
Nação Cheyenne, é claro para ela que os povos nativos ambiente. Um dos seus objetivos é evitar o paradoxo dos
sempre foram criadores, utilizadores e administradores dados indígenas, em que é recolhida muita informação
de dados e informações. O seu conhecimento coletivo sobre os povos indígenas que não lhes é útil, enquan-
sobre o seu povo, território, recursos, locais sagrados to os dados gerados pelos próprios povos indígenas são
e cultura tem sido preservado através de meios como escassos.
histórias, canções e narrativas, transmitidas de geração É evidente que a luta pela soberania dos dados indíge-
em geração. nas é uma questão emergente que rapidamente ganhou
Outro exemplo proeminente é a Rede de Soberania atenção. Trata-se de um direito humano fundamen-
de Dados Maori, conhecida como Te Mana Raraunga, tal, explica Oscar Figueroa Rodríguez, investigador do
sediada em Aotearoa (nome tribal da Nova Zelândia). Colegio de Postgraduados (México) e especialista em
Sob o lema «Os nossos dados, a nossa soberania, o nos- soberania dos dados indígenas. Figueroa, membro do
so futuro», este grupo está encarregado de proteger e GIDA, salienta que esta questão é multifacetada, tal

Com princípios Com princípios

«Tão aberto quanto possível, CREA FAIR

tão fechado quanto necessário» PRINCÍPIOS CREA


PRINCÍPIOS FAIR

A publicação de dados de acordo com os princípios FAIR e CREA permite cumprir


o lema que a comunidade científica está atualmente a seguir em termos de Sobe-
rania dos Dados Indígenas. Os primeiros são um conjunto de princípios orientadores Com princípios
CREA mas não Com princípios
para tornar os dados de investigação fáceis de encontrar, acessíveis, interoperáveis e
princípios FAIR mas
reutilizáveis. O segundo, os Princípios CREA para a Governação de Dados, promovem
FAIR não princípios
os princípios legais subjacentes aos dados coletivos ou individuais das comunidades CREA
indígenas consagrados na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos
Indígenas (UNDRIP). Foi em 2019 que a Global Indigenous Data Alliance publicou os
CREAs que estabelecem quatro diretrizes básicas para a recolha, armazenamento e uti- Sem princípios CREA
FUENTE: HTTPS://WWW.NATURE.COM/ARTICLES/S41597-021-00892-0

lização de dados: nem princípios FAIR


○ Benefício coletivo: os sistemas de dados devem permitir que as comunidades indí-
genas, e não os indivíduos por si só, beneficiem dos dados.
+em princípios Sem princípios
○ Autoridade de controlo: reconhece o direito das comunidades e das suas autorida-
FAIR CREA
des a controlarem os seus próprios dados.
○ Responsabilidade: quem trabalha com dados indígenas deve garantir que os da- FAIR significa Findable, Accessible, Interoperable
dos recolhidos ou os seus resultados apoiam as comunidades indígenas. and Reusable (Localizável, Acessível, Interoperável
e Reutilizável); e CREA (em inglês CARE) significa
○ Ética: deve ser dada prioridade ao bem-estar das populações indígenas em todas as Control, Accountability, Ethics and Leveraging for the
fases da recolha e utilização dos dados. Collective Benefit (Controlo, Responsabilidade, Ética e
Fonte: https://www.nature.com/articles/s41597-021-00892-0 Aproveitamento para o Benefício Coletivo).

82 SUPER
Uma grande parte
da população
indígena do México
não tem acesso à
Internet nem a um
computador e lidera

SHUTTERSTOCK
as estatísticas do
atraso educativo.

As comunidades indígenas têm sido marginalizadas e


continuam a sentir-se vulneráveis e excluídas

como a própria indigeneidade. Globalmente, existem ele e os seus alunos perguntaram a nove municípios se
mais de 5.000 culturas nativas distintas em mais de 90 tinham utilizado estes registos para desenvolver o seu
países, cada uma com a sua própria visão do mundo, Plano de Desenvolvimento Municipal, a resposta foi um
condições e necessidades específicas. desconcertante «não».
«Para que os dados geográficos ou estatísticos sejam
MAS, APESAR DA SUA DIVERSIDADE, AS COMUNIDADES IN- úteis, é preciso ter um conhecimento mínimo desses
DÍGENAS PARTILHAM UMA SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE conceitos», afirma. Se não tivermos os conhecimentos
E EXCLUSÃO. Apesar de representarem apenas 6% da necessários para os utilizar, eles não serão úteis.
população mundial, 19% das pessoas que vivem em si- Esta opinião é partilhada por Brent Metz, diretor do
tuação de pobreza extrema pertencem a estes grupos Centro de Estudos Latino-Americanos e das Caraíbas da
étnicos. Muitas ainda mantêm laços ancestrais com os Universidade do Kansas: «É verdade que alguns povos
seus territórios, mas os seus direitos a esses territórios indígenas do mundo anglófono estão a ganhar contro-
e aos seus recursos não são reconhecidos. Também não lo sobre os seus próprios recursos. Estamos a chegar a
dispõem da informação de que necessitam para tomar um ponto em locais como os Estados Unidos, o Canadá,
decisões importantes. A marginalização histórica e a a Nova Zelândia e a Austrália em que os investigadores
falta de reconhecimento como proprietários de dados precisam de colaborar com as autoridades indígenas
têm constituído obstáculos significativos para os povos para recolher, processar e publicar dados sobre eles».
indígenas acederem e beneficiarem da sua própria in- De facto, recomenda-se a participação de membros
formação. destes grupos em projetos de investigação que os en-
Todas estas desvantagens são mais evidentes em regiões volvam. «E deve também servir os interesses dos povos
como a Ásia, a África e a América Latina. Segundo Oscar indígenas», explica Metz.
Figueroa, no caso específico do México, dois elementos
importantes limitam a soberania dos dados dos seus NA AMÉRICA LATINA, PORÉM, É MAIS FÁCIL FALAR DO QUE FAZER.
cidadãos indígenas: o acesso e a relevância. «Na nossa «Poucos grupos indígenas nestes países tiveram acesso
região, uma grande parte da população indígena não a recursos institucionais, materiais ou educativos para
tem acesso à Internet ou a um computador», explica. E obterem a soberania sobre o seu património cultural,
embora os telemóveis sejam de uso comum, a sua fun- histórico e biológico», diz Metz. Além disso, há aspetos
ção limita-se geralmente às redes sociais ou aos serviços políticos e sociais que complicam ainda mais a situação.
de mensagens. Por outro lado, «a população indígena Embora alguns grupos indígenas latinos estejam come-
de países como o nosso lidera as estatísticas do atraso çando a se organizar, ainda há um longo caminho a ser
educativo», o que levanta a questão da pertinência. percorrido para que eles conquistem a soberania através
Figueroa dá um exemplo ilustrativo: o estado de da defesa de seus dados. Talvez, como o povo Yawuru
Chiapas, no sul do país, tem uma plataforma digital e outras nações irmãs estão a fazer, devam começar a
carregada com uma grande variedade de informações concentrar-se no que é certamente o recurso mais im-
geográficas e dados atualizados. No entanto, quando portante desta época: a sua própria informação .e

SUPER 83
Z O O L O G I A

COM QUE
SONHAM OS
ANIMAIS?
ISTOCK

84 SUPER
Que os animais possam sonhar é socialmente aceite, mas não pelos
cientistas, talvez porque isso lhes atribuiria outras capacidades mentais
que tornariam a espécie humana menos exclusiva e ainda menos ética. O
filósofo David M. Peña-Guzmán aborda esta questão espinhosa num livro
em que até os peixes demonstram que a fase REM não é exclusiva dos que
sabem ler estas linhas.

Texto de JUAN RAMÓN GÓMEZ, jornalista

«Sonhar com o sofrimento


dos outros implica outras
capacidades que nós,
humanos, sempre
julgámos serem
exclusivas da nossa
espécie»

SUPER 85
ISTOCK

SHUTTERSTOCK
KENWAY LOUI / MIT

Assumir que os animais, todos os animais, sonham, dota-os de


consciência. A ideia de que os animais não têm vida interior tem
sido usada como justificação para continuar o sistema de violência
contra eles, quer na ciência quer na vida social.

SHUTTERSTOCK

Q
uando Charles Darwin publi- cava os seres humanos acima de todas as outras espécies,
cou A Origem das Espécies um movimento anti-vivissecção foi crescendo no sécu-
em 1859, a primeira reação da lo XIX mudando a forma como muitas pessoas viam os
comunidade científica foi re- animais; os animais começaram a ser vistos como tendo
jeitar uma teoria que atribuía sentimentos, pensamentos, talvez crenças, interesses e
a todos os animais, incluindo até empatia e moralidade. Coincidindo com, ou talvez
os seres humanos, um passa- como resultado da revolução darwiniana, certas expe-
do comum. Só duas décadas riências e formas de matar animais começaram a ser
mais tarde é que surgiu uma criticadas.
tendência entre os próprios
cientistas para aceitar este ESPECIALISTA EM ESTUDOS ANIMAIS, TEORIAS DA CONSCIÊN-
princípio. É provavelmente CIA, HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA e filosofia europeia
por esta razão que David M. Peña-Guzmán, Professor contemporânea, Peña-Guzmán tenta, com o seu livro,
Associado de Humanidades na Universidade Estatal de recuperar a aprovação da ciência ou, pelo menos, ex-
São Francisco, decidiu começar o primeiro capítulo do plicar por que razão, no início do século XX, se inverteu
seu livro When Animals Dream, The Hidden World of o jogo com a negação absoluta da existência da cons-
Animal Consciousness (Quando os Animais Sonham, ciência animal. Fá-lo através do estudo dos sonhos,
O Mundo Oculto da Consciência Animal) com uma ci- mais concretamente dos sonhos dos animais. Num
tação de Darwin: «Uma vez que os cães, os gatos, os primeiro capítulo intenso, repleto de casos estudados
cavalos, provavelmente todos os animais superiores, e em experiências científicas, o autor detalha exemplos
até as aves, estão sujeitos a ter devaneios [...], temos de animais que sonham, e fica a coçar a cabeça com as
de acreditar que também são dotados de algum poder interpretações que os próprios responsáveis por esses
imaginativo». estudos fazem para acabar negando que os animais se-
Contra a tendência humanista dominante, que colo- jam capazes de sonhar.

86 SUPER
Ao ler o título do livro, o leitor rapidamente imagi-
nará os sonhos de um grande primata, e encontrará o
exemplo de chimpanzés que aprenderam a linguagem Quando há sonhos,
gestual e a usam para falar durante o sono. Lembrar-
-se-á também de alguns vídeos de cães e gatos que há pesadelos
poderá ter visto nas redes sociais, mas provavelmente
ficará surpreendido com este ensaio quando descobrir
os sonhos dos polvos, dos chocos, dos ratos e de cer-
tas raças de aves e peixes. Porquê negar as provas? Para
S e aceitamos que os animais podem sonhar, é lógico pen-
sar que também têm pesadelos. Peña-Guzmán dedicou um
artigo a esta questão no sítio Web da revista Time, em 28 de
Peña-Guzmán, assumir que os animais sonham signi- dezembro do ano passado. Em « What If Animals Have Night-
fica dotá-los de consciência: «Na ciência, esta ideia de mares Too?» (E se os animais também tiverem pesadelos? ),
que os animais não têm vida interna, ou pelo menos de o autor relata casos como o dos elefantes que, em crianças,
que não podemos dizer que têm vida interna com base assistiram ao assassínio de um ente querido às mãos de ca-
empírica, tem sido historicamente utilizada como justi- çadores furtivos. Como conta o autor, «as imagens horríveis
ficação para continuar o sistema de violência contra os do ataque ficam gravadas nas suas memórias, deixando-os
animais, quer na própria ciência (nos laboratórios, nas tão destroçados que muitos deles começam a ter pesadelos
experiências), quer noutros domínios da vida social; es- pós-traumáticos que perturbam os seus padrões de sono,
tamos a falar de questões como a justificação dos jardins desregulam as suas emoções e fazem com que revivam o que
zoológicos, a matança de animais para a produção de podem muito bem ser os momentos mais devastadores das
alimentos...». suas vidas».
É claro que, ao contrário da interpretação que os cien- Uma experiência que se repete noutras espécies e que, nos
tistas fazem do comportamento dos animais que são exemplos publicados, faz dos humanos a causa dos piores
objeto das suas experiências, Peña-Guzmán faz a sua pesadelos. É o caso de Pal, um chimpanzé com problemas de
própria interpretação, «e é algo interessante que notei socialização que acordava muitas vezes a meio da noite «a
no processo de investigação para o livro». É uma posi- gritar de terror e a berrar tão alto que começava a tremer in-
ção um pouco estranha dizer a uma pessoa que talvez controlavelmente», como escreveu a conservacionista Shaila
esteja errada na forma como vê os dados que ela própria Siddle em My Family Tree: A Life with Chimpanzees.
gerou, mas isso tem muito a ver com a diferença entre Mas é também o caso de um grupo de ratos que foram sujei-
gerar dados científicos e fazer uma interpretação global tos a tortura por uma equipa de cientistas da Universidade de
do seu significado. E é aí que eu acho que os filósofos po- Pequim e que começaram a ter pesadelos quando, semanas
dem ajudar muito os cientistas, porque da mesma forma mais tarde, foram levados para o mesmo local, embora nessa
que os filósofos têm os seus próprios preconceitos, as segunda vez não tenham levado choques elétricos nas pernas.
Mais surpreendentemente, outro grupo de ratos que foi força-
do a testemunhar a tortura e voltou ao local para observar o seu
regresso também desenvolveu os seus próprios pesadelos,
Coincidindo com a apesar de nunca terem recebido os choques.
Sonhar com o sofrimento dos outros implica outras capacidades

revolução darwiniana, ou que nós, humanos, sempre julgámos serem exclusivas da nos-
sa espécie. O mesmo acontece com a ansiedade, um estado de

talvez como resultado dela, espírito que, como explica Peña-Guzmán no seu artigo, «envolve
não só uma consciência do futuro, mas também um sentido refi-

certas experiências e
nado de si próprio. Podemos temer algo por puro instinto ou em
virtude de experiências passadas, mas estamos ansiosos pelo
que pode acontecer e como isso nos pode afetar».
formas de matar animais Como prova dos seus argumentos, o filósofo explica as qua-
tro capacidades mentais necessárias para ter pesadelos: a
começaram a ser criticadas recordação a longo prazo de experiências passadas, a sua de-
composição em elementos constituintes, a sua recombinação
em novos episódios numa data futura e a sua reprodução du-
rante o sono como forma de exprimir a emoção. «Uma vez que
isto é exatamente o que significa ter um pesadelo, qualquer
animal que tenha pesadelos deve ser dotado destas capacida-
des de uma forma ou de outra», afirma.
GETTY

SUPER 87
Uma vez aceite a capacidade de os animais sonharem, surge uma
nova incerteza: estarão eles conscientes de que estão a sonhar?

suas próprias formas de ver o mundo, os cientistas tam- e volta a falar de sonhos em animais um século depois
bém têm os seus preconceitos, têm as suas expectativas de a ciência ter enterrado essa possibilidade. Peña-
e, por vezes, não vêem algo que outra pessoa com uma -Guzmán atribui à psicologia a responsabilidade por
formação diferente pode notar. Essa foi a minha primei- essa determinação. Concretamente, diz, foi a escola
ra experiência de entrar neste terreno entre a filosofia e do behaviorismo (também conhecido como compor-
a ciência». tamentalismo) que exigiu que não se falasse dos
processos internos da mente, mesmo nos seres huma-
O LIVRO PODE TORNAR-SE NUM ARGUMENTO PARA OS VEGANOS, nos. Apenas os comportamentos físicos, observáveis
UM ASSUNTO QUE PEÑA-GUZMÁN aborda do ponto de vista empiricamente, podiam ser estudados, sem que se
da ética: «O termo que utilizo no último capítulo, o pudesse interpretar a causa ou o significado dos mo-
estatuto moral dos animais, é um termo que os filóso- vimentos.
fos usam para identificar as entidades que existem no E esses movimentos existem. Polvos que mudam de
mundo que, simplesmente por serem o tipo de entida- cor da mesma forma que quando estão acordados pa-
des que são, merecem proteções, sejam elas morais ou ra caçar, comer ou esconder-se, gatos que correm e
legais. A consciência ajuda-nos a determinar quais as saltam durante o sono, pássaros que melhoram o seu
entidades que merecem essas protecções e quais as que canto enquanto dormem em silêncio... Até onde che-
não merecem». Estas proteções, na sua opinião, têm a ga a capacidade de sonhar? É realmente difícil saber,
ver com o direito à vida, à integridade e à liberdade, e da mesma forma que às vezes não sabemos onde aca-
vai mais longe e fala sobre o papel que os animais não ba uma espécie e começa outra, porque na natureza,
humanos deveriam ter numa comunidade em que são «num continuum onde não há cortes absolutos, have-
os humanos que determinam as leis. rá sempre zonas cinzentas», diz Peña-Guzmán, que se
Uma dessas leis é a lei europeia do bem-estar animal. opõe à teoria humanista e também à que se centra nos
A lei traz este livro para a primeira linha da atualidade mamíferos: «Os cefalópodes, em particular, são inte-
SHUTTERSTOCK

SHUTTERSTOCK
GETTY

Diz-se que a teoria de que os animais sonham pode


tornar-se um argumento a favor dos veganos. O autor
argumenta que o papel dos animais não humanos
numa comunidade onde os humanos fazem as leis
precisa de ser repensado.

88 SUPER
MAX HALBERSTADT

ASC
Sigmund Freud
começou por estudar
os animais e
extrapolou os seus

ASC
estudos para os
seres humanos.

ressantes porque, quando se olha para a árvore da vida pensar que pelo menos são afetados quando os sonhos
animal, estamos quase em lados opostos em termos de são muito intensos. Se um animal tem um pesadelo,
evolução; temos de aceitar que ou os sonhos já estavam por exemplo, e o conteúdo emocional é tão negativo
lá, na base que temos em comum, que é muito antiga, que provoca alterações mentais, fisiológicas e emocio-
ou que a capacidade de sonhar surge várias vezes na nais, ao ponto de o animal acordar em pânico, é óbvio
árvore da evolução, e não há apenas uma origem, mas que o sonho afeta o estado de vigília, porque acorda
várias.» num estado alterado».
Talvez Sigmund Freud, que também tem espaço no
APESAR DE NÃO CONHECERMOS OS LIMITES DOS SONHOS, O AU- livro, pudesse dar-nos uma teoria sobre os sonhos
TOR DO LIVRO ALUDE A UM EXEMPLO que não incluiu por ter nos animais. De facto, Peña-Guzmán recorda que o
sido publicado depois de a edição original, em inglês, psicólogo começou a sua carreira a estudar outras es-
ter chegado às livrarias: «Surgiram provas científicas pécies. «Há mesmo quem pense que a sua teoria da
na Alemanha de que as aranhas também têm sonhos, bissexualidade universal dos seres humanos se de-
e isto inclui outra espécie animal, os artrópodes, que veu simplesmente ao facto de ter extrapolado os seus
historicamente têm sido considerados animais que estudos sobre os animais, que por vezes mudam de se-
têm um sistema nervoso demasiado simples para pro- xo, para os seres humanos». E embora não lhe tenha
duzir formas sofisticadas de experiência mental». Por ocorrido sentar um animal no seu divã terapêutico,
isso, na sua opinião, «temos de ter a mente um pouco arrisca-se a pensar que ele teria relacionado os sonhos
aberta em relação aos animais que, de momento, estão com o inconsciente e a repressão: «Há coisas que re-
excluídos da capacidade de sonhar. Se me falassem de primimos e que aparecem nos sonhos porque, quando
minhocas, eu diria que talvez não, mas se me falassem estamos a dormir, o nosso ego, a nossa capacidade de
de aranhas, há um ano teria dito que não sabia, e agora controlo, desliga-se um pouco e há uma abertura para
a posição mudou». que todas essas coisas que estão reprimidas venham de
Uma vez aceite a capacidade de sonhar dos animais, repente ao de cima. Freud interpreta-o através deste
chegamos a uma nova incerteza: será que eles têm modelo da mente consciente até ao subconsciente, e
consciência dos sonhos? Nos últimos trinta anos, sur- penso que ele utilizaria este mesmo método com os
giram provas de que alguns animais têm capacidade animais». Um método que teria resultados muito in-
metacognitiva, podem pensar sobre os seus próprios teressantes no caso dos pesadelos, que surgem contra
pensamentos; agora, se essa reflexão ocorre nos so- a vontade para trazer à tona algo que foi reprimido.
nhos, não sabemos», explica o filósofo, que acredita As evidências que apresenta no seu livro não es-
que, se isso acontecer, «penso que será nos grandes condem o facto de Peña-Guzmán ter tirado as suas
símios e talvez também em alguns tipos de aves, que já próprias conclusões, mas deixa poucas dúvidas sobre
sabemos que podem ter essa capacidade». a capacidade de sonhar dos animais, apesar do que
Se se lembram dos sonhos depois de acordarem, considera ser uma negação inexplicável por parte dos
também não sabemos, mas, afirma, «acho razoável próprios cientistas. e

SUPER 89
CURIOSIDADE TECNOCULTURA

A ERA DA PORNOGRAFIA
HOJE EM DIA, OS CONTACTOS PESSOAIS ESTÃO A DIMINUIR A FAVOR DAS RELAÇÕES VIRTUAIS: A
INTIMIDADE ACOBARDA-NOS. A PORNOGRAFIA AMATEUR TRIUNFA, MAS ESTA SOBRE-EXPOSIÇÃO
DE IMAGENS É CANSATIVA E ACABA POR GERAR UMA EXTINÇÃO DO DESEJO.
á que reconhecê-lo. Vivemos adultos como entre adolescentes, não como a agulha de um compasso capri-

H na era da pornografia. A por-


nografia (e o seu ato deriva-
do, a masturbação) é prefe-
é exclusiva da sociedade britânica, mas
pode ser generalizada a outros países
ocidentais. Com efeito, o núcleo de in-
choso e voltar a apontar para o eu. Sem
dúvida que é isso que está a acontecer
em muitos casos. O narcisismo é um dos
rida ao sexo, em muitos casos. Uma das timidade do casal explode num big bang traços distintivos do nosso tempo, obje-
causas deste declínio do contacto sexual libidinal que atinge ou pretende atin- to de uma reflexão mais aprofundada e
(pelo menos em termos quantitativos) tem gir o resto da sociedade. Por sua vez, cuidadosa do que a que nos ocupa aqui.
a ver com o declínio das relações pessoais a libido, segundo Freud, oscila entre Embora o desinteresse pelo sexo se-
e com a utilização das novas tecnologias. dois opostos: o ego e os objetos. Ini- ja uma tendência crescente nos países
Na hora de nos relacionarmos, preferimos cialmente (nas primeiras fases da nossa ocidentais, é no Japão que ele é mais
frequentemente enviar mensagens ou pu- existência) a libido está orientada para exacerbado. Uma elevada percentagem
blicar nas nossas redes a encontrarmo-nos o eu, naquilo a que Freud chama narci- de homens e mulheres japoneses re-
com um amigo ou amante. A previsibilida- sismo primário. Com o passar do tempo, nuncia ao incómodo emocional — e
de e o controlo das nossas comunicações esta libido é canalizada para os objetos. económico — de ter uma relação se-
impõem-se ao imediatismo da presença, No entanto, o pai da psicanálise adverte xual e recorre à pornografia na Internet
como analisou Sherry Turkle, professora que este vetor pode mudar de orientação para libertar a sua libido. De facto, foi
de Estudos Sociais da Ciência e da Tecno-
logia, em livros como Alone together ou
In defence of conversation. A comunicação
em tempo real, pelo contrário, obriga-nos
a improvisar, expõe-nos (no sentido lato
do termo) à arbitrariedade da conversa,
a uma fisicalidade inevitável, a um outro
que pode não pensar como nós, que po-
de pôr à prova as nossas convicções e os
nossos preconceitos.

SE FREUD CONTRAPÕE SEXUALIDADE E CUL-


TURA COMO ELEMENTOS IMISCÍVEIS, redu-
zindo a primeira exclusivamente à fusão
de duas pessoas e reservando a segunda
para os laços libidinais que o indivíduo
estabelece com o resto da sociedade,
então só se pode concluir que o nosso
tempo privilegia indubitavelmente a se-
gunda em detrimento da primeira. Esta
é precisamente uma das razões que Soa-
zig Clifton, diretora académica do Natsal
(The National Survey of Sexual Attitudes
and Lifestyles) da University College em
Londres, aponta para explicar o declínio
gradual da frequência das relações se-
xuais nas últimas décadas no contexto
britânico: «As pessoas parecem estar a
deixar de fazer sexo com a pessoa que
está ao seu lado
para se ligarem vir-
tualmente a outras
pessoas através dos
seus iPads e telefo-
nes». Uma tendên-
cia, a diminuição
POR JAVIER
dos contactos se-
MORENO xuais, tanto entre
Matemático e escritor

90 SUPER
cunhado um termo específico, soshoku conseguir. Como afirma Eloy Fernández
danshi (homem herbívoro), para desig- A ERA DA Porta: «A queda da indústria pornográ-
nar os homens que consideram aborre- fica, a deriva amateur do género e a sua
cidas as relações carnais com mulheres PORNOGRAFIA feminização têm vindo a recodificar a
(ou outros homens). imagem erótica como mais uma forma
MANIFESTA-SE de autorretrato». Mas este exibicionis-
A PORNOGRAFIA CARACTERIZA-SE POR TOR- mo extremo não afeta apenas os cor-
NAR EXPLÍCITO TUDO O que era sugestivo NUMA BULIMIA pos. Reproduz-se também nas opiniões
para a imaginação, mostrando o obs- expressas nas redes. A pornografia tor-
ceno (aquilo que deveria ser deixado DE IMAGENS E DE na-se despudorada. Se o mundo real é
de fora da cena). Não estamos a falar assolado pelo politicamente correto e
exclusivamente de sexo, claro, embora INFORMAÇÕES pela linguagem inclusiva, concordamos
isso também seja verdade. A porno- que a Internet se tornou, de alguma
grafia, de facto, sofreu uma revolução dormitórios de estudantes. Gravações, forma, um espaço compensatório onde
nos últimos anos. Estou a referir-me ao muitas vezes de muito baixa qualidade, a incorreção corre desenfreada. O livro
aparecimento do amateurismo. As gran- cujo atrativo reside na imaginação dos Antisocial de Andrew Marantz mostra
des produtoras de filmes pornográficos atores/produtores. É a democratização muito claramente como os dissemina-
foram ultrapassadas por uma vaga des- da exibição dos corpos. Descobrimos dores da alt-right ou do supremacismo
medida de produções caseiras, protago- que nada é mais sexy do que a normali- branco nos Estados Unidos se declaram
nizadas por amateurs, no sentido lato dade: todos queremos ser escritores, to- vítimas do politicamente correto. As
da palavra. Basta mencionar o sucesso dos queremos ser trending topic, todos suas mensagens misóginas, racistas ou
da rede OnlyFans como exemplo do que queremos ser estrelas porno . Queremos mesmo fascistas não são — segundo
estamos a falar. A lingerie é substituída desesperadamente chamar a atenção eles — mais do que um sinal de liberda-
por pijamas ou fatos de cosplayers, a vi- dos nossos semelhantes, e a pornogra- de de expressão, um ar fresco para are-
venda com piscina por descampados ou fia amateur é uma forma rápida de o jar a sufocante esfera mediática, uma
revolta saudável contra um sistema que
os restringe. A Internet tornou-se um
A comunicação e as meio onde as suas mensagens se pro-
relações através das redes
sociais permitem-nos pagam sem controlo. Muitos deles são
controlar os tempos e os obrigados a levar uma vida dupla, es-
modos, dando-nos trelas mediáticas sórdidas que têm de
previsibilidade. esconder a sua verdadeira identidade ou
correm o risco de perder o emprego, os
amigos ou a família. A exibição da inti-
midade vem juntar-se a esta estratégia
pornográfica. Nada deve ser deixado por
revelar: tristezas e alegrias, glórias ou
misérias. A topologia da transparência
corresponde à de uma Fita de Möbius, o
exterior e o interior são meros aspetos
de uma única superfície.

A ERA DA PORNOGRAFIA MANIFESTA-SE nu-


ma bulimia de imagens e de informação,
uma bulimia que, num primeiro momen-
to, satisfaz o nosso apetite escópico,
mas que, a longo prazo, gera cansaço,
fadiga e impotência, uma incapacida-
de de desejar, a extinção do desejo de
desejar de que fala Shoshana Zuboff,
a agonia de Eros em que tanto insiste
Byung-Chul Han.
O centro panótico deste espetáculo
sicalíptico multitudinário situa-se onde
quer que haja um dispositivo móvel, ou
seja, em qualquer lugar. O mundo trans-
forma-se num espaço sem ângulos mortos.
A evasão a este panótico é complicada
mas possível. Afastar-se um pouco do al-
vo insaciável e omnipresente, procurar e
renovar espaços de intimidade, são estra-
SHUTTERSTOCK

tégias através das quais talvez possamos


redescobrir o desejo. e

SUPER 91
H I S T Ó R I A D A C I Ê N C I A
GETTY

Isaac Asimov
admitiu que
nunca
abandonou a
sua velha
máquina de
escrever, que
continuou a
utilizar apesar
do advento do
novo robot, o
computador.

92 SUPER
O pior dia
de
Isaac
Asimov
O homem que deu vida aos robots e descreveu as suas leis não sabia como lidar com
um: o computador que chegou ao seu estúdio para substituir a sua velha máquina de
escrever. O escritor de ficção científica não consegue esconder a sua perplexidade, mas
«há que aceitar a passagem do tempo», diz a si próprio.

Texto de DAVID CHAUMEL

SUPER 93
ROWENA MORRIL HERITAGE AUCTION
Isaac Asimov sempre
escreveu na sua velha
máquina de escrever IBM
Selectric III. Escreveu 40
romances e 383 histórias
de ficção científica. O
autor não estava
familiarizado com
computadores, de facto,
quando o primeiro chegou
a sua casa, não sabia
como o ligar.

E
screveu a saga mais épica so- macacos de 2001, Uma Odisseia no Espaço. O que teria
bre o futuro da humanidade pensado o seu amigo Arthur C. Clarke, autor do roman-
através dos séculos e toda uma ce? «Ter-se-ia rido de mim», pensa Isaac. Continua sem
série de histórias sobre robots. perceber. Não sabe como é que funciona. E pensa, além
Autor de 40 romances e 383 disso, que o aparelho é inútil: «Vá lá, homem! Aban-
histórias de ficção científica, donar a minha fiel máquina de escrever?», escreveu
é considerado um dos «três nas suas memórias. A sua velha máquina de escrever,
grandes» do género, a par a IBM Selectric III, parece erguer as sobrancelhas na es-
de Heinlein e Clarke. Ganhou perança de não ser abandonada. O computador, pelo
várias vezes os prémios Hugo contrário, parece sorrir maliciosamente. Isaac nunca
e Nebula. Escreveu 280 arti- se deixou levar pelos novos tempos modernos. Sim, ti-
gos de divulgação científica e nha escrito a saga mais conhecida da ficção científica:
14 livros sobre história universal. É membro da Mensa, Fundação, romances sobre como uma colónia de pes-
uma associação de sobredotados, Doutor em Química soas tenta preservar todo o conhecimento humano para
— trabalhou como investigador químico na Segunda recriar uma civilização. Mas ele não ia deixar entrar em
Guerra Mundial — e Presidente Honorário da Associa- sua casa essa decadência tecnológica. Nem sequer uma
ção Humanista Americana. Um asteroide, o 5020, e uma calculadora. Escreveu na sua autobiografia: «O mundo
cratera, em Marte, têm o seu nome. da tecnologia está a avançar e está a girar à minha volta
Mas agora, Isaac Asimov, nos seus 60 anos, está de- e eu ignoro-o até que ele irrompe na minha vida com
sesperado perante uma máquina. Um eletrodoméstico força». Mas chegou a altura. Irrompeu na vida dele.
mais, apenas. Um simples robot. Ele gaba-se de ser o
melhor escritor de ficção científica. O mais prolífico. NA PRIMAVERA DE 1981, ISAAC FOI CONVIDADO PELA RADIO
Mais inteligente do que a média. E, no entanto, é o pior SHACK, UMA REVISTA DE COMPUTADORES, para escrever um
dia da sua vida. Ele não sabe como ligar o seu novo com- artigo sobre as suas experiências com computadores.
putador. Ele, que escreveu Eu, Robot, é agora forçado a Pensaram que o deus da ficção científica teria vários e,
dizer, «Tu, Robot». além disso, saberia como os usar. Mas nada poderia es-
Isaac aproxima-se do computador. Olha para ele de tar mais errado. O editor da revista enviou a Isaac o seu
diferentes ângulos. Enfeita as suas longas patilhas. Ajus- primeiro computador. E lá estavam os dois: máquina e
ta a gravata. Limpa os seus óculos «fundo de garrafa», autor. «Fiquei horrorizado e fiz tudo para fingir que não
bate no computador com a mão aberta, simulando os o via, apesar de estar no meio da minha biblioteca (...)

94 SUPER
Era um microcomputador TRS-Ho Modelo 11, da Radio
Shack, com uma impressora e um programa Scripsit».
Explica-nos Isaac na sua autobiografia.
Não pensa pedir ajuda à sua secretária. Nem ao seu
assistente. Assim descrevia Isaac os seus métodos de
escritor: «Não tenho qualquer tipo de ajuda, nem
secretário, nem datilógrafo, nem representante.
Sou uma empresa individual, trabalho sozinho no
meu escritório, atendo o meu telefone e o meu cor-
reio». Podia escrever durante 16 horas seguidas.
Sozinho. Todos os dias do ano. Não gostava de sair
do seu estúdio. Com a relutância dos seus dois
filhos e da sua mulher. Esta foi uma das razões
do seu divórcio com Gertrude, a sua primeira
mulher. Isaac escreve: «Suponho que é aborre-
cido para uma família ter um marido e pai que
nunca quer viajar ou ir a excursões, a festas ou
ao teatro, que não quer mais do que sentar-se
numa sala e escrever. Tenho quase a certeza de
que o fracasso do meu primeiro casamento se deveu
em parte a isso». Isaac, que viajou muito através das suas Capas dos três primeiros títulos da saga
peças, nunca apanhou um avião. Sofria de aerofobia, um de sete livros Fundação: Fundação (1951),
medo de aviões. Nunca foi de férias. Nunca abandonou a Fundação e Império (1952) e Segunda
sua máquina de escrever. A sua companheira. Fundação (1953).

ISAAC É ATUALMENTE CASADO COM JANET. PARCEIRA, AMIGA E


AMANTE. Ela compreende-o perfeitamente. Compreende
a sua solidão na escrita. Ela compreende os seus mun- novo computador também parece lembrar-se e sorrir.
dos criados. Porque Janet também é escritora. Foram Isaac não gosta disso. Pensa no que diria a que foi a sua
amigos durante anos, até Isaac ganhar coragem para melhor editora durante toda a sua carreira profissional:
dar o primeiro passo. Ele não sabia que Janet estava Judy-Lynn del Rey. A mulher mais inteligente que ele já
apaixonada por ele há anos. Ela, apaixonada pela série conheceu, para além de Janet. A melhor editora de fic-
Star Trek. Ele, apaixonado por universos imaginários. ção científica. Mulher de um dos seus melhores amigos,
Ambos escritores. Ambos amantes da ficção científica. Lester. Linda. Inteligente e a sua melhor amiga. Mas Ju-
Ambos apaixonados. Ele escreveu sobre ela: «Diz-me dy sofria de um distúrbio de acondroplasia, nanismo.
porque é que as estrelas brilham. Diz-me o que torna o Além disso, foi ela, Judy, que lhe deu a ideia de escrever
céu azul. E eu digo-te porque te amo». Janet sabia sobre a sua melhor história. Isaac escreve na sua autobiografia:
estrelas e céus, mas nada sobre computadores. E o no- «Noutra altura, Judy perguntou-me: ‘Porque não escre-
vo computador de Isaac continuava a não se ligar. Janet ves uma história sobre um robot que vai trabalhar para
diverte-se com o facto de o escritor que mais sabe sobre poupar dinheiro para comprar a sua liberdade? Respondi
robots não conseguir encontrar o botão certo. Isaac, em com uma gargalhada. Chegou então o momento em que
desespero, continua a debater-se com o computador. escrevi O Homem Bicentenário e, algum tempo depois,
Máquina e autor voltam a olhar-se desafiadoramente. dei-lhe a cópia e, na manhã seguinte, ela telefonou-me:
Isaac sorri, ele próprio criou as três leis da robótica na ‘Asimov, tentei não gostar, mas adorei’. E foi Judy-Lynn
sua saga de robots e não se vai deixar enganar por uma quem publicou The Bicentennial Man numa antologia. A
máquina. Recorda as suas leis da robótica: história acabou por ganhar o Prémio Nebula em 1976 e o
- Primeira lei: um robot não fará mal a um ser huma- Prémio Hugo em 1977.
no, nem permitirá, por inação, que um ser humano seja Isaac não desiste do seu novo robot de escrita. Lem-
prejudicado. bra-se de que os dois jovens que lhe instalaram o
- Segunda Lei: um robot deve cumprir as ordens computador deixaram dois volumes de instruções.
dadas por seres humanos, exceto as que entrem em Grande. Pesados. Angustiantes. «Ah, livros, aí está a
conflito com a primeira lei. solução», pensou Isaac. Escreveu: «A verdadeira capa-
- Terceira Lei: um robot deve proteger a sua própria cidade de ler está a tornar-se uma arte arcana e o país
existência, desde que essa proteção não entre em con- está lenta mas inexoravelmente a «afundar-se na es-
flito com a primeira ou a segunda lei. tupidez»». Os livros sempre o acompanharam na sua
Isaac ri às gargalhadas. Pára imediatamente. O escritor aprendizagem. Já em criança, devorava os fanzines de
acaba de se aperceber que, nos 21 contos e 10 romances ficção científica que os pais vendiam na loja de doces.
que compõem a sua saga Robots, explica como contor- Os seus pais, dois imigrantes russos e judeus, vieram
nar estas leis. As suas leis não são perfeitas. Foi ele que para os Estados Unidos sem um cêntimo. Abriram uma
as criou e ele próprio conseguiu contorná-las. O seu loja de doces. Mas o negócio não dava para sustentar os

Isaac, que viajou muito através das suas obras,


nunca apanhou um avião
SUPER 95
TKM ARCHIVE

GETTY
A Radio Shack ofereceu a Asimov a possibilidade
de fazer publicidade para a marca. Na foto da
direita, com a sua mulher Janet Opal Jeppson.

três filhos. Então, colocaram na loja fanzines de ficção garantir isso. O conto é Menino feio. Escrito em bela pro-
científica, tão em voga nos anos 30, a chamada Idade de sa, que tanto lembra Ray Bradbury. Isaac é mais direto.
Ouro da ficção científica: histórias de H. G. Wells ou Jú- Um estilo mais simples. Sobre a sua escrita, disse: «Es-
lio Verne. Aí se encontrava a revista mais conhecida do crever de forma poética é muito difícil, mas também o
género: Astounding Science Fiction , dirigida por John é escrever com clareza. De facto, a clareza é talvez mais
W. Campbell. Isaac não o sabia na altura, mas foi Cam- difícil de alcançar do que a beleza».
pbell quem lhe deu a primeira oportunidade de publicar Talvez tenha chegado a altura de dizer adeus à sua
a sua primeira história. E ao longo dos anos, Isaac foi velha máquina. Como lhe vai acontecer um dia. Ele
colaborador do fanzine até ao seu encerramento. terá de dizer adeus ao seu mundo. Passar à frente pa-
Na loja, os seus pais não lhe permitiam ficar com os ra dar lugar ao novo. Para os novos escritores. Para os
exemplares dos fanzines. Só podia lê-los entre os clien- mais jovens. Nada dura para sempre. Isaac reflete sobre
tes, enquanto atendia. No entanto, Isaac queria ficar a vida: «Nunca me juntei à procissão do pessimismo e
com eles. Tê-los para si. Eram pequenos tesouros das da morte. Não porque não acredite que a humanidade
revistas pulp. Mas não podia permitir-se à despesa. Ti- não seja capaz de se destruir a si própria, acredito pia-
nham de ser deixados para os clientes. Mas Isaac sempre mente nisso e escrevi inúmeros artigos sobre diferentes
foi teimoso. Escreveu as suas próprias histórias de fic- aspetos do problema. É que acho que já há escritores de
ção científica para poder fazer a sua própria coleção. Aí ficção científica suficientes a gritar: o dia do juízo final
nasceu o grande escritor de ficção científica. está próximo! E ninguém sentirá a minha falta se eu não
estiver entre eles». Como estás enganado, Isaac. Sobre
MAS MUITOS ANOS SE PASSARAM DESDE ENTÃO. Ele tem agora a morte, escreveu: «Em que é que eu acredito? Uma vez
60 anos e é incapaz de utilizar um simples computador. que sou ateu e não acredito que exista Deus ou o Diabo,
Os meses passam e o computador está a ganhar pó des- céu ou inferno, só posso assumir que quando morrer
de a sua chegada a casa dos Asimov. A sua biblioteca e a tudo o que existirá será uma eternidade feita de nada.
máquina de escrever têm olhado para o computador com Afinal, o universo já existia 15 biliões de anos antes de eu
desconfiança durante todo este tempo, não gostam de o nascer e eu sobrevivi a tudo isso no não-ser.
ter ali. O futuro chegou ao escritório de Isaac de forma Isaac aproxima-se do telefone. «Temos de nos con-
inesperada. Mas o microcomputador TRS-Ho Modelo 11 formar com a passagem do tempo», diz para si próprio.
espera impotente para ser ligado. Ele sabe que vai mu- Liga para os dois tipos que lhe enviaram o computador.
dar a forma como o escritor trabalha. Isaac recosta-se Dentro de algumas horas, os informáticos estão no seu
na sua cadeira. Reflete. Olha para o seu novo aparelho. gabinete. E em poucos minutos o TRS-Ho Modelo 11 es-
Desvia o olhar da sua velha máquina de escrever. E pensa tá ligado. O seu ecrã ilumina a biblioteca. Tal como os
que talvez tenha chegado o momento de dar lugar à no- rostos dos presentes. E, claro, os óculos de Isaac. O es-
va. Escreveu as suas melhores histórias naquelas teclas: critor abre os olhos para o futuro. Perante um mundo
Nightfall, A Pebble in the Sky, e a sua história mais an- novo. Descreveu tantas vezes situações semelhantes nos
gustiante, que o escritor se gaba, na sua biografia, de que rostos das personagens do seu romance que Isaac fica es-
ninguém a consegue ler sem chorar no fim. E eu posso pantado com este acontecimento. O computador parece

«O primeiro livro que escrevi com um computador foi


Exploring the Earth and the Cosmos», reconhece Asimov
96 SUPER
dizer: ««Eu, robot». Nas suas memórias, Isaac descre- Isaac dá a sua opinião na sua autobiografia: «Os escrito-
ve a situação: «Pedi aos técnicos da Radio Shack que o res são famosos pela sua insegurança. Estarei a criar lixo?
preparassem para ter as margens e o espaçamento duplo Mesmo um escritor popular, que tem a certeza de publi-
que eu queria, e tudo o resto. Não faço a mínima ideia car tudo o que escreve, pode continuar a preocupar-se
como é que estas coisas podem ser alteradas. Não conse- com a qualidade. Penso que a combinação de solidão e
gui colocar um espaço simples nem ajustar as margens». insegurança encoraja a procura de consolo no álcool».
Os dois jovens não o conhecem. Para eles, é apenas um Mas Isaac nunca conheceu vícios. Nem álcool, nem dro-
cliente excêntrico. Nunca saberão que instalaram o com- gas. Apenas o amor pela literatura. O amor pela ficção
putador do escritor mais influente da ficção científica. A científica.
Radio Shack deixou-o ficar com o computador durante Agora o robot de escrever e o escritor são amigos. Am-
um ano inteiro, a título experimental. Isaac habituou-se bos sorriem quando escrevem. Ou pelo menos é o que o
às suas novas teclas. Ele adorava escrever sobre robots computador parece fazer sempre que Isaac o liga. Desde
num outro robot. Queria comprá-lo. Mas a Radio Shack então, tem escrito todos os seus romances, artigos e en-
tinha uma oferta melhor: «Gostaria de ser um dos nossos saios nesse computador. Mas há um objeto que está triste.
porta-vozes? Se quiser, pode ficar com o computador e Inútil. Velho. Isaac escreve: «Não abandonei a minha
pagaremos algo ao mês». Isaac não só aceitou, como a velha máquina de escrever. Utilizo-a para a correspon-
Radio Shack incluiu no contrato a realização de sessões dência, para os calhamaços de fichas, para tudo menos
fotográficas para publicidade na imprensa. E assim foi. para os manuscritos. Peças curtas, até duas mil palavras,
Fotografia de Isaac a apontar para um computador com escrevo-as diretamente no computador, admito. Mas tu-
um videojogo de marcianos. Segurando uma enorme do o que é mais longo do que isso, escrevo primeiro na
calculadora com o nome da sua grande marca por baixo. máquina de escrever e depois transfiro-o para o compu-
A sorrir para um novo e maior teclado de computador. tador. O método mudou, mas o romancista não.
Todo o tipo de publicidade com a cara sorridente de Isaac Asimov morreu a 6 de abril de 1992, em Nova
Isaac. O futuro tinha chegado até ele. «O primeiro livro Iorque. De paragem cardíaca. Em 2002, após a morte
que escrevi com o computador foi Exploring the Earth dos médicos que o trataram, Janet, a sua mulher, tornou
and the Cosmos», admite na sua biografia. pública a verdade sobre a morte do humanista, o que
não tinha feito antes porque poderia ter gerado rejeição
ISAAC ASIMOV, QUE CONTINUA A ESCREVER NO SEU COMPUTA- social. Asimov tinha morrido com o vírus HIV. Contraiu
DOR, NÃO MUDOU. Passou nove anos com esse computador a doença através de uma transfusão de sangue durante
e escreveu: «O leitor pode pensar que agora que tenho uma operação cardiovascular. Morreu rodeado pelos fi-
um computador e estou atualizado com os tempos mo- lhos, irmãos e de mãos dadas com a mulher, Janet. A sua
dernos, as pessoas me vão deixar em paz, mas não vão. máquina de escrever e o seu computador continuaram a
Ao ritmo a que estas coisas estão a progredir, o meu, que escrever através dos dedos de Janet. e
tem nove anos, é medieval. De facto, já nem sequer se
fabrica». Afinal de contas, escrever é um trabalho soli-
tário. Tu e a máquina. Não importa se é um computador Bibliografia: I Asimov, memórias.
ou uma máquina de escrever, é solitário e inseguro. Tu Isaac Asimov. Arpa editores, 2023.
contra as palavras, as frases, os parágrafos, as páginas...

ARCHIVE COLLECTION
Asimov morreu em 1992 devido ao vírus HIV contraído através de uma transfusão
de sangue durante uma cirurgia cardiovascular. A sua família manteve-o
escondido para evitar a rejeição social.

SUPER 97
H I S T Ó R I A POR ÓSCAR CURIESES, ESCRITOR

ALEGORIA
s vezes, de repente, a

À magia chega. Bate à tua


porta, levantas-te e re-
cebe-la sem saber quem
é. Logo a convidas, educadamente, a
entrar na sala, dás-lhe o lugar onde
estavas sentado e ofereces-lhe um ca-
fé. Colocas a cafeteira no fogão, vol-
tas para a sala, sentas-te à frente de-
la e conversas um pouco enquanto tu-
do se está preparando. Voltas, serves
o café e colocas-te de novo à frente
dela, enquanto retomas a conver-
sa. E, de repente, ao observá-la com
atenção, apercebes-te de que a magia
está lá, que ela está a falar contigo,
contigo, como se nada fosse, como se
tudo fosse normal. E é então que tudo
— absolutamente tudo — acontece,
e a magia decide ficar e viver con-
tigo. Sim, viver contigo. Talvez por-
que abriste a porta sem saber quem
ela era e a trataste com cortesia, ou
talvez porque a convidaste para um
café e para se sentar no teu lugar,
ou porque tu, só tu, ouviste as suas
palavras com verdadeira atenção sem
pedir nada em troca, absolutamente
nada, exceto um pouco de magia. e

SHUTTERSTOCK

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O QUE VEIO PRIMEIRO,
A GALINHA OU O OVO?

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NÚMERO 303
MENSAL ○ JULHO 2023

ENTREVISTA
NUNO MAULIDE
A QUÍMICA ORGÂNICA
SEM COMPLEXIDADE
PÁG. 42

GUERRA
PORTUGAL NA
1ª GUERRA MUNDIAL
PÁG. 80

TECNOLOGIA
SERÁ QUE ALGUMA
VEZ VEREMOS A
FUSÃO NUCLEAR A
FUNCIONAR?
PÁG. 36

HISTÓRIA
A ÚLTIMA NOITE
DE GIACOMO
CASANOVA
PÁG. 88

CRIMINOLOGIA
PORQUE É QUE
AS CRIANÇAS

MORFOLOGIA
MATAM?
PÁG. 74

GALÁCTICA
N.º 303

PORTUGAL NA
QUE FORMA TÊM AS GALÁXIAS E PORQUÊ? 1ª GUERRA MUNDIAL

SUBSCRIÇÃO ANUAL SUBSCRIÇÃO ANUAL


versão impressa versão digital

39 E/ano 19 E/ano

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