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os abusos lobotomia: a
da indústria barbaridade
farmacêutica. que rendeu
um nobel.
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Quando a
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josef usar LSD
mengele e como armA.
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nazista.
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Josef Mengele e os
médicos nazistas
Unidade 731: as terríveis
experiências japonesas
MK Ultra: o projeto de
controle da mente
Os abusos da indústria
farmacêutica
Os bichos enviados ao
espaço e o Projeto X
Um ano no "poço
do desespero"
A crueldade dos testes
de cosméticos
A verdade sobre os
global séc. 3.a.C.-hoje
testes em animais
A triste história do
pequeno Albert
O Estudo Monstro e as crianças
sequeladas para sempre
Lobotomia: a barbaridade
que rendeu um Nobel
Os choques de
Stanley Milgram
O experimento carcerário
de Stanford
A nanotecnologia e o
fim da vida na Terra
O lado sinistro da
inteligência artificial
Os riscos da
global 1860-hoje
biologia sintética
Ciência
tentar compreender o mundo que nos
cerca – e a única realmente universal. A
ciência é um instrumento extraordinário de construção
positiva e produtiva da nossa realidade. Mas ela também
pode ser usada para o mal. E como pode.
Esta edição, baseada no meu livro Ciência Proibida,
Proibida
que a SUPER lançou em 2015, é uma tentativa de mos-
trar isso, de revelar quando e como se manifesta o lado
sombrio da ciência. Uma força que, se não for contro-
lada, pode levar a humanidade a desastres – com a
mesma rapidez com que o progresso científico nos
JP 1935-1945 Pág. 14
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ajudou a obter a vida que temos hoje. Foi ra é o menor dos nossos problemas. O futuro nos re-
no século 20 que nos vimos, pela primei- serva promessas incríveis – e riscos ainda maiores. A
ra vez, ameaçados pelo fantasma da au- única saída é reconhecermos que a ciência, por si só,
todestruição. Após a detonação das bom- não faz milagres. Milagroso é o uso sábio e consciente
bas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, do progresso científico, pautado pela moralidade e pe-
em 1945, muitos de nós começamos a la ética. Sem consciência de onde estamos nos meten-
pensar que finalmente o progresso tec- do, não teremos a menor chance. Mas se soubermos
nológico havia superado nosso nível de administrar o ímpeto da ciência, direcionando-a para
sabedoria e que o fim da humanidade era o bem, podemos florescer e nos tornar de fato uma
iminente. civilização sábia, próspera e longeva. Eu acredito.
Quase um século depois, ainda esta-
mos aqui. Boa notícia. Em compensação,
os perigos se multiplicaram. Nunca es- Salvador Nogueira
tivemos tão ameaçados. E a bomba ago- e d i to r
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Mengele e
os médicos
nazistas
O "Anjo da Morte" se ofereceu para
trabalhar em Auschwitz. Motivo: queria
cobaias para suas experiências macabras.
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Esta imagem,
chocante, foi
feita por
tivo. Imagine, nesse contexto de extermí- médicos nazistas versidade de Munique, suas pesquisas estavam forte-
para documentar
nio em massa, o que poderia ser o plane- a morte de um mente contaminadas pela ideologia nazista, que se
jamento de experimentos médicos e prisioneiro pautava pela ideia de que havia uma “raça superior”,
científicos envolvendo seres humanos. utilizado como a ariana, e de que havia diferenças genéticas palpáveis
cobaia. O
Nyiszli viu tudo isso de perto quando propósito era
a produzir essa superioridade. Conceitos como higie-
Mengele o recrutou para auxiliá-lo e mon- marcar quanto ne racial e eugenia, hoje considerados aberrações, eram
tou um laboratório de necrópsia para ele tempo ele abraçados entusiasticamente ou pelo menos tolerados
ao lado do Crematório 2, onde ele se jun- levaria para naquela época – não só entre os alemães, mas prati-
morrer por falta
tou ao 12o onderkommando. Ali, o húngaro de oxigenação camente em todo o mundo.
veria todos os horrores da “ciência” expe- no cérebro. Mengele se ofereceu para trabalhar no campo de
rimental de Mengele. concentração de Auschwitz em 1943 e tinha a expec-
Sim, hoje usaríamos “ciência” entre tativa de provar suas ideias antropológicas e genéticas
aspas. Porque, apesar de o médico da SS num ambiente em que poderia fazer experiências sem
ter doutorado em antropologia pela Uni- qualquer tipo de restrição. Enquanto os outros médi-
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um tiro. Não podia haver meiro foco foi na compreensão dos efei-
tos de altas altitudes sobre os pilotos. De
início, o médico havia solicitado a
testemunhas. Gebhardt foi Himmler “dois ou três criminosos pro-
fissionais”, mas seus testes acabaram
um dos médicos nazistas fazendo centenas de vítimas.
Uma câmara pressurizada fornecida
julgados e condenados à morte pela Luftwaffe foi levada a Dachau, e o
prisioneiro era trancado dentro dela,
no tribunal de Nuremberg, para em seguida sofrer uma despressu-
rização que equivalia à existente em
após o fim da guerra. grandes altitudes. Logo após isso, a pres-
são era rapidamente aumentada, o que
permitia ao médico simular as condições
experimentadas por um piloto em que-
da livre sem uma fonte de oxigênio.
Naturalmente, a maioria das cobaias
morria no processo. Após ver um rela-
tório de um dos experimentos fatais,
Himmler teria instruído que, se um pri-
mente científico saiu desses experimentos pavorosos. sioneiro sobrevivesse a esse tratamento,
“Como os estudos etnológicos, como as noções de uma deveria ser “perdoado” com prisão per-
raça superior, a pesquisa do doutor Mengele sobre as pétua. Rascher respondeu que os pri-
origens dos nascimentos duais era nada mais que uma sioneiros usados até aquele momento
pseudociência”, escreveu Nyiszli. eram apenas poloneses e russos, de
Outros médicos nazistas praticaram crueldades si- modo que ele acreditava ser desneces-
milares com nenhum resultado que não fosse a tortu- sária qualquer forma de anistia. De toda
ra e a morte indiscriminada de suas cobaias. Entre eles forma, a oportunidade de aprender mais
estava Karl Gebhardt, cirurgião e médico pessoal de com os sobreviventes não seria perdida
Heinrich Himmler, o chefe da SS e um dos homens – em vários desses experimentos, quan-
mais poderosos no regime de Hitler. No campo de con- do o prisioneiro resistia, passava por
centração de Ravënsbruck, Gebhardt cometeu atroci- uma necrópsia ainda vivo, para que se
dades como estudos de regeneração óssea que envolviam estudassem os efeitos em seus pulmões.
a remoção de porções de osso e até membros inteiros O mais completo horror.
de mulheres. Muitas vezes, a mesma vítima voltava à Depois de atacar os efeitos da altitude,
mesa de operação para repetidas remoções de porções Rascher passou a investigar outro pro-
da tíbia, por exemplo. Nessas condições, muitas morriam blema enfrentado por pilotos. Uma vez
por falta de condições cirúrgicas adequadas. Mas quem que eram derrubados, eles muitas vezes
sobrevivia aos procedimentos terminava executada por conseguiam sobreviver apenas para cair
um tiro. Não podia haver testemunhas. Gebhardt foi de paraquedas no Mar do Norte, onde
um dos médicos nazistas capturados, julgados e con- estariam cercados de gelo e sem água
denados à morte no tribunal de Nuremberg (Alemanha), potável. Por isso, o médico nazista achou
após o fim da guerra. por bem realizar congelamentos contro-
Nem tudo era pseudociência, contudo. Alguns dos lados de cobaias, a fim de descobrir a
Ex-prisioneira
polonesa
mostra, nos
von Braun, o criador dos foguetes V-2 usados para ata- julgamentos de demonstrar a que ponto pode chegar
de Nuremberg,
car Londres (e, por sinal, eram construídos com mão ferimentos
o cinismo entre os vencedores da Se-
de obra escrava dos campos de concentração), também que sofreu gunda Guerra, isso indica que, gostemos
foi levado à América na Operação Paperclip e acabou ao ser usada ou não, pelo menos alguns dos horrores
por desenvolver o Saturn V, lançador que levaria o ho- como cobaia. nazistas produziram resultados. Ou se-
mem à Lua entre 1968 e 1972. E a proteção à saúde dos ja, eram ciência. Só não eram a ciência
primeiros astronautas se beneficiou dos experimentos que moralmente devemos praticar.
de altitude realizados nos campos de concentração. Dificilmente haverá demonstração
Os currículos de Strughold e Von Braun foram de- mais contundente de que a ciência, por
vidamente “desnazificados”, antes que eles fossem si só, não é benévola. É preciso que ela
apresentados ao público americano. Os soviéticos venha acompanhada de uma moralidade
fizeram procedimento similar e integraram especia- que respeite as diferenças e as liberdades
listas alemães a seu próprio programa espacial. Além individuais – sem espaço para exceções.
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Unidade 731:
as terríveis
experiências
japonesas
O Japão invadiu a China. E seus
cientistas decidiram fazer testes
com armas químicas e biológicas.
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Ruínas da
Unidade 731, em
Harbin, China:
E esse foi o julgamento soviético, em que os con- as experiências viético – ajudaram na leniência.
denados receberam de 2 a 25 anos de trabalhos força- conduzidas ali Já o julgamento americano dos crimi-
evoluíram para
dos num gulag na Sibéria – uma pena incomumente um plano de nosos da Unidade 731, bem... Não houve
leve, em se tratando de crimes tão horrendos, perpe- ataque biológico um julgamento americano. Numa ação que
trados sobre prisioneiros russos, em meio ao jugo do aos EUA. faz até a Operação Paperclip parecer ex-
tirânico Josef Stalin. Por quê? Informações dão conta cessivamente honesta, o general Douglas
de que os soviéticos conseguiram um bocado de in- MacArthur, responsável pela reconstrução
formações que lhes interessavam. Até hoje não sabemos do Japão durante a ocupação pelos Aliados,
bem qual é o nível do programa de armas biológicas fez um acordo secreto com os médicos da
russo, e a queda da União Soviética não foi suficiente equipe de Ishii – inclusive o próprio –
para que as lideranças por lá abrissem seus arquivos para conceder imunidade em troca dos
da época da Guerra Fria no que diz respeito a temas dados colhidos nos experimentos huma-
espinhosos como experimentação humana. Sabe-se que nos. A ideia era alavancar o desenvolvi-
há um laboratório, criado em 1921 e na ativa até hoje, mento de armas biológicas nos Estados
às vezes chamado apenas de Laboratório 1, Laboratório Unidos, centrada em Fort Detrick, unida-
12 ou Kamera (russo para “câmara”), que desenvolveu de do Exército em Maryland, tendo por
armas biológicas para a KGB (polícia secreta soviética) base pesquisas que jamais poderiam ter
e as testou em prisioneiros dos gulags no passado. De- sido conduzidas com liberdade similar em
certo as informações fornecidas pelos japoneses – e solo americano. Uma hipocrisia sem limi-
que não constam dos autos do rápido julgamento so- tes para a ciência sem limites.
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H oj e , s e t e d é c a da s
depois do fim da Segunda
H Guerra Mundial, a possi-
bilidade de um novo con-
flito global, desta vez tra-
vado com armas nucleares, não parece
tão concreta. Mas era basicamente isso
que esperavam – e para breve – os go-
vernos dos Estados Unidos e da União
Soviética, mesmo antes da rendição final
do Japão. E a pergunta que eles precisa-
vam responder urgentemente era: pode
uma nação sobreviver a um ataque atô-
mico feroz? Só havia um meio de saber,
e envolvia basicamente expor seres hu-
manos à radiação.
O primeiro experimento americano
aconteceu quase por acidente, em agosto
de 1944, no Laboratório Nacional de Los
Alamos, principal instalação do Projeto
Manhattan. Um químico de 23 anos cha-
mado Don Mastick acabou sendo expos-
to a 10 miligramas de plutônio quando
o tubo que ele tentava abrir estourou
feito uma garrafa de champanhe, e a so-
lução espirrou para fora, molhando a
parede. Mastick sentiu imediatamente
um gosto ácido na boca que deu a dica:
ele havia sido exposto ao vapor de plu-
tônio. Seu rosto e boca foram esfregados
imediatamente, mas ainda assim, duran-
te dias, tudo que ele precisava para fazer
a agulha do sensor da câmara de ioniza-
ção estourar a escala era soprar suave-
mente – estando do outro lado da sala.
O químico também passou por uma la-
vagem estomacal e parte do plutônio foi
recuperada. Mastick jamais teve um sin-
toma adverso, embora 30 anos depois
ainda fosse possível detectar traços de
plutônio em sua urina.
O episódio, contudo, veio na esteira
de outros similares e fez com que os mé-
dicos de Los Alamos apresentassem a
Robert Oppenheimer, diretor do Projeto
Manhattan, a recomendação de que fos-
Robert
sem realizados experimentos humanos Oppenheimer,
para esclarecer as dúvidas que não haviam líder do
sido respondidas nos testes em animais. Projeto nio em 10 de abril de 1945, em Oak Ridge. Depois dis-
Manhattan:
E assim nascia um projeto americano experiências
so, outros três pacientes receberiam injeções similares,
para injetar pequenas doses de plutônio com radiação sem saber, entre abril e dezembro de 1945, no Hospital
em humanos – sem que eles soubessem em humanos. Billings, da Universidade de Chicago: um homem de
– e observar os resultados. O primeiro a 68 anos com câncer de boca e estômago avançado, uma
receber sua dose foi Ebb Cade, um tra- mulher de 55 anos com câncer de pulmão e um jovem
balhador negro do Tennessee, que foi com doença de Hodgkin. O mais velho recebera apenas
injetado com 4,7 microgramas de plutô- 6,5 microgramas, mas os outros dois tomaram 95 mi-
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MK Ultra:
o projeto
de controle
da mente
Na década de 1950, a CIA estudou
várias técnicas para tentar manipular
cobaias humanas. Sua arma: doses
ocultas de LSD e mescalina.
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Os abusos
da indústria
farmacêutica
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divíduos saudáveis. Depois, foram transferidos a hos- que testar drogas é melhor do que bater
pitais universitários e clínicas com vínculos acadêmicos, cartão com os escravos assalariados”,
controladas por pesquisadores. relata o médico e filósofo americano Carl
Mas, a partir dos anos 1990, a pressão para que os Elliott, bioeticista da Universidade do
estudos avançassem mais depressa e a crescente com- Minnesota e crítico ferrenho dos mean-
plexidade dos experimentos envolvidos fizeram com dros da indústria farmacêutica. “Em al-
que uma indústria paralela de testes, controlada pelas gumas cidades, como Filadélfia e Austin,
empresas farmacêuticas, emergisse. Nos EUA, em 1991, a economia dos testes clínicos produziu
80% dos estudos de novas drogas eram conduzidos por uma comunidade de voluntários semi-
centros de saúde acadêmicos. Isso mudou completa- profissionais, que participam de estudos
mente. Em 2004, 70% dos testes estavam a cargo de um após o outro.” Um aspecto particu-
empresas terceirizadas. larmente perverso desse sistema de “pro-
Um problema é que os pesquisadores que realizam fissionalização” de cobaias é que ele
esses estudos em companhias privadas não têm nenhum permite a exploração de grupos margi-
tipo de ambição acadêmica – eles não irão se destacar nalizados.
pelos resultados obtidos e nem mesmo pelo protocolo Quer um exemplo? Em 1996, a farma-
de testes, que foi desenvolvido pela indústria e será cêutica Eli Lilly se viu em maus lençóis,
meramente executado por eles. Não há, em essência, quando o Wall Street Journal revelou que,
uma reputação científica pessoal a ser protegida. A havia pelo menos duas décadas, a empre-
única motivação desses funcionários – e das companhias sa estava pagando a alcoólatras morado-
que os contratam – é fazer seu cliente feliz. E as gigan- res de rua para que eles fossem cobaias
tes farmacêuticas ficam felizes quando seus medica- em sua clínica de fase 1 em Indianápolis.
mentos vão bem. (A Lilly é uma das poucas que realizam
Outro problema é que esse esquema criou um am- diretamente seus estudos, desde 1926,
biente para o aparecimento das cobaias profissionais sem fazer uso de empresas terceirizadas
– pessoas que decidem viver de participar em testes ou laboratórios acadêmicos.) Questiona-
clínicos de fase 1. “Como esses estudos requerem uma dos pelo jornal, executivos da companhia
quantidade significativa de tempo numa unidade de tiveram a coragem de dizer que os vo-
pesquisa, os voluntários usuais são pessoas que preci- luntários eram motivados pelo altruísmo
sam de dinheiro e têm muito tempo livre: os desem- para participar dos testes clínicos. “Esses
pregados, os estudantes universitários, trabalhadores indivíduos querem ajudar a sociedade”,
temporários, ex-presidiários ou jovens que decidiram disse Dwight McKinney, médico e dire-
tor executivo de farmacologia clínica. Já
alguns dos voluntários participantes
contavam outra história. “A única razão
pela qual eu vim aqui é para que eu pos-
sa comprar um carro e um novo par de
sapatos”, disse um ex-viciado em crack
de 23 anos que ficou sabendo da clínica
Testes como o da Pfizer, em nas ruas. “Eu compro uma caixa de [cer-
veja] Miller e uma acompanhante e faço
1996, na África, são casos de sexo”, outro voluntário relatou. “A garo-
ta vai me custar US$ 200 por hora.”
fraude e desumanidade, em que Como você pode imaginar, esses vo-
luntários recebiam menos pelos testes
o experimento é manipulado para do que a média do mercado. Após o es-
cândalo, a Eli Lilly parou de recrutar
produzir um resultado – e vidas gente que não tenha comprovante de
residência. Mas não aposte que a solução
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Hospital em
Kano, Nigéria.
Pacientes de
farmacêutica estavam acontecendo em meningite final do teste, muitas crianças ficaram com sequelas
foram
países emergentes. Entre 1995 e 2006, os recrutados,
deixadas pela doença, e 11 delas morreram – cinco que
maiores aumentos anuais no número de sem saber, haviam tomado Trovan e seis que tomaram ceftriaxo-
pesquisadores realizando testes clínicos para servir ne. Ponto para o novo medicamento, certo?
aconteceram na Rússia, na Índia, na Ar- de cobaias Não exatamente. Primeiro que houve uma violação
em testes
gentina, na Polônia, na China e no Brasil. de um novo ética – nem os pais, nem as crianças foram informadas
E não pense você que os padrões éticos antibiótico. de que um experimento estava em andamento. Todos
melhoraram muito. imaginavam que se tratasse apenas de ajuda humani-
Um caso particularmente chocante tária. Segundo que, em nome do estudo, crianças cuja
aconteceu em 1996, na África. A farma- saúde estava se deteriorando a olhos vistos não tiveram
cêutica Pfizer estava desenvolvendo um a medicação trocada. E o pior: as crianças do grupo de
novo antibiótico, chamado Trovan (tro- controle, que receberam ceftriaxone, tomaram a droga
vafloxacin), que já havia se mostrado em doses menores do que as adequadas – presumivel-
promissor contra uma gama ampla de mente para garantir o melhor resultado do Trovan. O
infecções e que podia ser ministrado por caso terminou na Justiça e, num acordo para encerrar
via oral, em vez de injeção. Quando uma o processo, a Pfizer pagou US$ 75 milhões.
epidemia de meningite apareceu na Ni- Que ciência é essa? Trata-se de um caso claro de frau-
géria, uma equipe da companhia viu a de (além de desumanidade), em que o experimento é
oportunidade ideal para a realização de manipulado para produzir o resultado desejado – e vidas
um teste de campo. Duzentas crianças são perdidas por isso. Mas, ainda que não fosse, ele teria
doentes foram recrutadas, e metade re- grande chance de produzir conclusões não confiáveis. E
cebeu Trovan, enquanto a outra metade esse é outro grande segredo da indústria farmacêutica
recebeu ceftriaxone, uma droga já esta- – ela explora o fato de que testes clínicos podem essen-
belecida no tratamento de meningite. Ao cialmente provar qualquer coisa que se queira.
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Os bichos
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enviados ao
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Projeto X
Missões mortais. Sessões de choques e
envenenamento. Cirurgias terríveis.
A Guerra Fria sujeitou os animais
a experiências abjetas.
A
uma linha ética tênue. É preciso defen- em 1961.
desempenho sob situações mais adversas,
der que os bichos não são suficiente- era preciso condicionar os animais para
mente parecidos conosco a ponto de ter que eles soubessem operar o dispositivo.
direitos similares, mas ainda assim são E o condicionamento era feito mediante
suficientemente parecidos para que as pesquisas te- incontáveis descargas elétricas. O exaus-
nham valor – e os resultados sejam referências con- tivo processo de treino consistia em
fiáveis do que aconteceria se humanos fossem sub- sete etapas, em que os pobres animais
metidos às mesmas condições. gradualmente perdiam a capacidade de
Esse é o conceito por trás dos “animais-modelos”, resistir, condicionados pelos choques
que podem representar, em diferentes graus, certos constantes e dolorosos.
aspectos da biologia humana. No caso da cognição, os “Todo esse treinamento, envolvendo
mais próximos naturalmente são os primatas. Não por milhares de choques elétricos, é apenas
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preliminar para o experimento real”, des- mentos era Donald Barnes, da Escola de Medicina
creve Singer. “Uma vez que os macacos Aeroespacial da Força Aérea americana. Ele estima
estão mantendo regularmente a platafor- que irradiou cerca de mil macacos treinados durante
ma horizontal pela maior parte do tempo, os anos em que esteve à frente do projeto. E mais
são expostos a doses letais ou subletais tarde admitiu o que já parece óbvio a quem lê – os
de radiação ou a agentes químicos de experimentos, além de extremamente cruéis, foram
guerra, para ver por quanto tempo eles muito pouco informativos.
podem continuar a ‘voar’ na plataforma. “Durante alguns anos, eu tive suspeitas sobre a
Então, nauseados e provavelmente vo- utilidade dos dados que estávamos recolhendo. Fiz
mitando de uma dose fatal de radiação, algumas tentativas simbólicas de me certificar tanto
eles são forçados a tentar manter a pla- do destino quanto do propósito dos relatórios técnicos
taforma horizontal, e se falham recebem que publicamos, mas agora reconheço minha ansie-
choques elétricos frequentes.” dade em aceitar garantias de quem estava no coman-
O Projeto X teve seus relatórios pu- do de que estávamos, de fato, fornecendo um serviço
blicados e chegou a virar filme, estrela- real à Força Aérea americana e, portanto, à defesa do
do por Matthew Broderick e Helen Hunt, mundo livre. Eu usava essas garantias para evitar a
em 1987. O responsável pelos experi- realidade do que eu via no campo, e embora eu nem
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Bebê de
macaco
resos em
numa nova técnica para induzir psicopa- uma pesquisa nenhum tipo de crueldade, que tipo de justificativa
de privação
tologia nos bebês macacos, mas que não maternal
poderia haver para experimentos como os de Harlow?
estava dando muito certo. Recebeu uma dirigida por E ficava pior. O psicólogo americano e seus colegas
resposta irônica de Bowlby: “Por que vo- Harlow. também bolaram um experimento com “mamães mons-
cê está tentando produzir psicopatologia tros”, em que bebês resos eram expostos a bonecos que
em macacos? Você já tem mais macacos pareciam ser suas mães, mas então de surpresa se trans-
psicopatológicos no laboratório do que já formavam em monstros, por assim dizer. Na versão
foi visto na face da Terra”. mais radical, o boneco soltava espinhos do corpo quan-
Bowlby era um especialista nas con- do o bebê estava agarrado a ela. Os pobres animais se
sequências de privação maternal, mas seus afastavam, mas retornavam à mamãe quando os espinhos
estudos foram realizados com crianças recuavam. Então os pesquisadores concluíram que uma
– principalmente órfãos de guerra, refu- “mãe monstro” de mentira não bastava e arrumaram
giados e jovens em orfanatos. Em 1951, uma de verdade – uma macaca tornada psicótica por
antes que Harlow começasse a privar os ter sido criada em isolamento – especialidade da casa.
macacos de suas mães, Bowlby já havia Para engravidá-la, dada sua condição antissocial, os
escrito: “Podemos concluir que as evidên- cientistas providenciavam um estupro por outros ma-
cias são tais que não deixam espaço para cacos. E depois observavam a macaca perturbada inte-
dúvida sobre a proposição geral de que a ragindo com seu bebê recém-nascido. Isso foi feito
privação prolongada de crianças jovens diversas vezes. Algumas das macacas simplesmente
de cuidados maternais pode ter graves e ignoravam os bebês e não os amamentavam. Outras
prolongados efeitos sobre seu caráter e, eram bem piores. Harlow descreve: “As outras macacas
portanto, em toda sua vida futura.” eram brutais ou letais. Um de seus truques favoritos
Com estudos tão cristalinos, feitos era esmagar o crânio do bebê com os dentes. Mas o
com crianças humanas e sem envolver padrão de comportamento realmente perturbador era
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dos testes
cidade aguda de substâncias – de início,
principalmente cosméticos. Os testes
eram realizados em coelhos. Mas nada
moderado, como injetar alguma coisa
de cosméticos
em bichos anestesiados. Nada disso. Os
animais eram mantidos conscientes e
presos a uma estrutura que impedia
qualquer movimento e deixava apenas
a cabeça de fora. Então a substância a
ser testada – podia ser uma xampu, ma-
ade quiagem ou até tinta – era colocada num
ld dos olhos do coelho.
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ais eram monitorados diariamente para que
se verificasse o nível de irritação nos
olhos – que podia ir de inchaço a sangra-
mento. Veja uma descrição fria e calcu-
lista presente num dos relatórios de
pesquisa de uma grande companhia
química: “Total perda da visão por feri-
A terrível história dos mentos internos sérios na córnea ou na
estrutura interna. O animal mantém o
testes Draize: procedimentos olho fechado com urgência”. O texto tam-
bém inclui informações de como lidar
usados para saber se uma com o coelho ao tirá-lo do suporte. “Po-
substância é tóxica. de grasnar, arranhar o olho, saltar e ten-
tar escapar.” Outra modalidade de teste
envolvia a exposição da pele do coelho
– que precisava naturalmente ser raspa-
da antes – às substâncias testadas, com
q ua n d o 1944 – hoje onde Global os mesmos efeitos deletérios. A pele po-
de sangrar, formar bolhas e descascar.
Os resultados não eram perfeitos, mas
bastante razoáveis para estimar a segu-
rança. Em 1971, cientistas da Universi-
dade Carnegie Mellon avaliaram o quan-
to o uso dos testes Draize acertavam ou
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A verdade
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sobre os
testes em
animais
Eles são, em algum grau, inevitáveis.
Entenda os motivos.
N
uma criatura multicelular, como nós, um poderiam ter em humanos. E usa como
chimpanzé ou um camundongo. E não exemplo a amedrontadora substância
existem criaturas mais parecidas conos- talidomida. Ele cita que experimentos
co que um chimpanzé (que tem 96% de feitos em animais mostraram que ela era
seu DNA codificante – ou seja, que produz proteínas completamente segura, o que não se
– idêntico ao nosso) ou mesmo um camundongo (70%). revelou verdadeiro em humanos. Inver-
Da primeira afirmação, tiramos que é extremamente samente, há muitos casos em que drogas
complexo simular o metabolismo de um organismo, e perigosas para certos animais-modelos
da segunda, que animais aparentados conosco (10 mi- são inofensivas para humanos e poten-
lhões de anos de evolução nos separam dos chimpas, e cialmente úteis.
80 milhões de anos dos camundongos) são represen- O problema é que esses são pontos
tações mais ou menos fiéis do nosso organismo. fora da curva, justamente os que realçam
Esse é um jeito de dizer que, se ainda temos am- o fato de que os animais são similares – e
bições de desenvolver novos medicamentos e trata- não idênticos – entre si. Mas se você parar
mentos melhores para nossas doenças, teremos de para pensar que todos os medicamentos
lançar mão de estudos com animais. E esse é um pon- – todos, sem exceção – passam, antes de
to em que os cientistas em geral divergem fortemen- tudo, por testes animais, não é difícil ima-
te dos defensores da libertação animal, como o filó- ginar que os casos de sucesso são muito
sofo Peter Singer. Em seu livro, ele tenta fazer parecer mais numerosos do que os de fracasso. E
que estudos com animais são pouco ou nada repre- outra: os cientistas reconhecem essas di-
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cio, mas, convenhamos, é uma proposição utópica. da simples coleta de frutos e de vegetais,
Mesmo que cessássemos toda a experimentação ani- sem lançarmos mão do plantio? Quantas
mal, mesmo que nos tornássemos todos vegetarianos bocas conseguiríamos alimentar dessa
(ou comêssemos apenas carne “sintética”, feita a partir maneira? Lembrando que a situação teria
da cultura de células que nunca estiveram num animal de ser ainda pior do que os caçadores-
inteiro), mesmo que nos recusássemos a matar até mes- coletores de outrora, uma vez que tería-
mo os mosquitos que nos transmitem doenças sob o mos eticamente excluído a caça do nosso
argumento de que eles são capazes de sofrer – e quem rol de opções. A alternativa a isso – e
já viu um inseto esperneando ferido sabe que claramen- quase tão implausível quanto – seria nos
te eles sofrem –, e se até mesmo abdicássemos do direi- abstermos completamente da biosfera
to de ter animais de estimação (não seria a liberdade um terrestre. É isso aí. Ir embora. De vez.
direito deles também?), ainda assim causaríamos muita Podemos, em alguns milhares ou milhões
morte e sofrimento na biosfera terrestre. Por causa das de anos (uma ninharia diante da idade
nossas intervenções ambientais. do nosso planeta), nos mudar para outros
Não custa lembrar, mas toda vez que separamos um corpos celestes desabitados e então dei-
pedaço de terra para plantar – e a agricultura seria uma xar a Terra inteirinha para seus demais
peça essencial num cenário de “liberação animal” in- habitantes, incapazes de produzir impac-
condicional –, estamos eliminando pelo menos uma tos ambientais tão brutalmente devasta-
parte do nicho ecológico de um sem-número de espé- dores quanto os que o homem já produ-
cies animais, que possivelmente reduzirão suas popu- ziu ao longo da história (sem falar nos
lações ou mesmo entrarão em extinção por conta de que ainda vêm por aí).
nossas ações. A partir do momento em que o ser hu- Isso nos deixa com o fato de que a
mano começa a promover manipulações radicais no “libertação animal”, ao menos nos próxi-
ambiente – e isso teve início não agora, no século 21, mos milhares de anos, é uma utopia filo-
mas cerca de 13 mil anos atrás, quando inventamos a sófica. O óbvio é que devemos nos con-
agricultura –, os outros animais começaram a sofrer os centrar na redução do sofrimento animal
efeitos indiretos de nossa intervenção. A mesma inte- – não abandonar o especismo completa-
ligência que nos permite atingir reflexões éticas e mo- mente, mas sim reconhecê-lo, abraçá-lo
rais mais elevadas é a que produz as ameaças aos animais. como uma “falha” inerente a seres que
E não dá para ficar com uma parte e dispensar a outra. emergem de uma biosfera que é comple-
Ou será que podemos voltar ao nomadismo e viver tamente amoral, e, como seres morais
nesse mundo amoral, tentar diminuir seu
impacto ao mínimo possível, ainda que
reconhecendo as limitações disso.
No fim das contas, o que mais inco-
moda nas histórias com experimentos
animais é o nível de insensibilidade que
se manifesta em muitos dos cientistas
Sem testes com animais, que realizam esses testes. Não dá para
generalizar, claro, pois muitos tratam
o desenvolvimento de novos com reverência os animais que usam em
benefício da humanidade, mas alguns
remédios seria freado deles realmente não se importam. Em
2014, uma jornalista estava gravando
consideravelmente, e ainda um programa de TV e um pesquisador
se ofereceu para fazer uma vivissecção
estamos longe de simular num rato somente para que o procedi-
mento fosse filmado, sem nenhum pro-
um organismo completo, pósito científico.
Não é possível aceitar que a vida –
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história do
sência, eles queriam condicionar fobias
numa criança emocionalmente estável
para demonstrar que o mecanismo fun-
cionava também em humanos.
pequeno
O escolhido foi o “pequeno Albert”, um
bebê cuja identidade verdadeira até hoje
suscita discussões entre os estudiosos.
Albert
Numa etapa preliminar, ele foi submetido
a uma bateria de testes emocionais, quan-
s
ia • do o expuseram, rapidamente e pela pri-
a meira vez, a um coelho branco, um rato,
um cão, um macaco, máscaras, algodão,
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hum
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cob
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O Estudo
s
Monstro e
as crianças
sequeladas
para sempre
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s
Lobotomia: a
barbaridade
que rendeu
um Nobel
Cortar as conexões entre os lobos
frontais e o resto do cérebro para
curar doenças mentais. É absurdo —
mas já foi aceito pela ciência.
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Cirurgião
abrindo o
crânio de
– embora ela jamais tenha deixado o hospital psiquiá- um paciente de controle dos olhos, além de mudanças
para realizar
trico. No total, oito pacientes foram operados por esse lobotomia,
psicológicas como apatia, letargia, deso-
método, mas a injeção de etanol não estava se mostran- num hospital rientação, cleptomania e sensação anor-
do eficaz para cortar as ligações cerebrais. britânico, mal de fome. Nada muito relevante, se-
Então, para realizar a tarefa com mais eficácia, em 1946. gundo o entusiástico Moniz.
Moniz e Lima introduziram um instrumento cirúrgi- De acordo com seu levantamento, se-
co projetado para realizar os cortes no cérebro: o leu- te dos casos, ou 35%, tiveram melhora
cotomo. Tipicamente, ele era usado para produzir seis significativa. Outros 35% tiveram alguma
lesões em cada um dos lobos frontais. Em março de melhora, e os 30% remanescentes per-
1936, os cientistas estavam prontos para apresentar maneceram sem mudança. Não houve
seus resultados colhidos da primeira leva de 20 ope- mortes e ele não viu nenhum paciente
rações. Nove dos pacientes sofriam de depressão, seis piorar de sua condição psiquiátrica após
de esquizofrenia, dois de síndrome do pânico e três a lobotomia.
respectivamente eram vitimados por mania, catatonia Quanto aos sintomas negativos, Moniz
e depressão maníaca. Os casos mais recentes tinham dizia que todos seriam transitórios e o
diagnóstico feito apenas quatro semanas antes da ci- paciente se recuperaria assim que seu
rurgia. Mas havia casos em que a doença já se mani- cérebro se adaptasse, formando conexões
festava havia 22 anos. alternativas. Num mundo em que não
Os pacientes apresentaram efeitos colaterais como havia recurso contra doença mental, e os
febre, vômitos, incontinência urinária, diarreia e perda resultados eram apresentados sob essa luz
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cob
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s
Os choques
de Stanley
Milgram
à
lógico não assusta somente por sua falta controverso,
duas cabines fechadas, uma do lado da
de ética. Em alguns casos, o mais deses- mas revelador outra, e de início o professor leria ao
perador é o que ele revela sobre a própria sobre a aluno uma lista completa de pares de
psique humana – coisas que não gosta- natureza palavras. Então, testaria o aprendizado
humana.
ríamos de acreditar que fazem parte de nós mesmos. e a memória, falando uma palavra e
Em 1960, o tenente-coronel da SS Adolf Eichmann, um oferecendo uma lista de quatro possíveis
dos organizadores do Holocausto durante o Terceiro complementos para formar o par. Cabia
Reich, foi capturado na Argentina pelo Mossad, servi- então ao aluno pressionar um de quatro
ço secreto israelense, e levado ao tribunal no ano se- botões em sua cabine para indicar a
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resposta certa. Caso acertasse, o professor passaria à bines, lembrava seu problema cardíaco
palavra seguinte. Se errasse, ele apertaria um botão e pedia que o experimento fosse inter-
que daria um choque elétrico no aluno. rompido. Por fim, o aluno parava de
O choque inicial era de 15 volts, e o professor era fazer qualquer ruído. Milgram queria ver
submetido a ele só para que se demonstrasse que tipo até onde o voluntário de verdade iria
de desconforto seria submetido ao aluno. E então ele com aquela sessão de tortura em seu
era informado que cada choque subsequente teria um colega. Quando começavam as pancadas
incremento de mais 15 volts. O ator, passando-se pelo na parede, normalmente, a maioria dos
aluno, informava casualmente o voluntário professor participantes pedia para parar, e aí en-
de que tinha problemas cardíacos, mas o experimenta- trava em cena o papel do experimenta-
dor garantia que ele não sofreria qualquer mal. E assim dor. Na primeira interpelação, ele res-
os dois se separavam e o procedimento começava. A pondia apenas “por favor, continue”. Na
cada resposta errada, o voluntário apertava um botão segunda, “o experimento exige que
para aplicar o choque no que ele pensava ser outro vo- você continue”. Na terceira, “é absoluta-
luntário. Mas na verdade o ator não estava levando mente essencial que você continue”. E
nenhuma descarga elétrica. O botão do choque estava na quarta, “você não tem escolha, pre-
meramente ligado a uma fita magnética gravada que cisa prosseguir”. Se, depois dessas qua-
rodava e produzia os “Bzzzz” e os gritos que emulavam tro falas, o voluntário ainda assim qui-
o sofrimento do aluno. sesse parar, o experimento era interrom-
Após algumas descargas, o ator começava a fingir pido. Caso isso não acontecesse, o teste
desespero, socava a parede que separava as duas ca- terminava com três descargas sucessivas
do choque máximo, 450 volts.
Milgram estava curioso não só pelo
resultado do experimento, mas pela ex-
pectativa que outros pudessem ter dele.
Perguntou então a vários colegas de uni-
versidade quantos voluntários, de uma
amostra de cem, chegariam a aplicar a
voltagem máxima. A resposta variou
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hum
U m e s t u d o especial-
a
mente assustador foi con-
u
na •
s duzido em 1971 sob o
comando do psicólogo
Philip Zimbardo, da Uni-
versidade Stanford, na Califórnia. O
objetivo era investigar os efeitos psico-
lógicos de se tornar um prisioneiro ou
um carcereiro. Mas os resultados foram
tão devastadores que o experimento
teve de ser interrompido em apenas seis
dias, embora o planejamento inicial pre-
carcerário
tários homens, nenhum dos quais com
ficha criminal, problemas psicológicos
ou médicos. Todos sabiam que o expe-
rimento envolvia uma simulação de
de Stanford
prisão e receberiam US$ 15 por dia.
A prisão em si seria o porão do prédio
do departamento de psicologia de Stanford,
e metade dos voluntários formaria a po-
pulação carcerária, enquanto a outra me-
tade representaria os carcereiros. Equipa-
dos com bastões de madeira, eles foram
instruídos por Zimbardo – que assumiria
o papel de supervisor dos carcereiros,
enquanto um assistente faria o papel do
diretor da prisão – a não agredir fisica-
mente os presos. Mas era permitido inti-
midá-los, “criar a noção de arbitrariedade
de que a vida deles é totalmente contro-
lada por nós, pelo sistema, eu, você, e que
eles não têm privacidade”. A brincadeira
começou bem realista. Zimbardo obteve
a colaboração da polícia local, que foi até
a casa dos participantes e, de fato, os pren-
deu, conduzindo-os à delegacia para fi-
chamento antes de encaminhá-los à prisão.
Era um presídio de mentira. As pequenas celas foram formatadas pa-
ra abrigar três prisioneiros cada, e havia
Mas a selvageria e a um espaço para solitária e uma sala gran-
crueldade eram reais. de para os guardas e o diretor. Os cativos
tinham de ficar em suas celas dia e noite
até o fim do estudo. Já os guardas traba-
lhavam em grupos de três por turnos de
oito horas. Depois que seu turno termi-
nasse, eles podiam deixar o porão e viver
q ua n d o 1971 onde EUA suas vidas lá fora. Era como se fosse um
emprego para eles.
O primeiro dia foi tranquilo, mas no
segundo os problemas começaram. Os
prisioneiros da cela 1 resolveram bloque-
ar a passagem com suas camas e se recu-
savam a sair ou a seguir as instruções dos
•
Ame
glo
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ais •
Eric
Drexler, o
nanotecnólogo
Uma das grandes fronteiras da que descreveu Ela seria responsável por colher esses
os perigos
u
ciência no século 21 é o desenvolvimen- que sua
materiais e construir réplicas de si mes-
to de materiais e dispositivos na escala própria ma. Agora pense no que aconteceria se
de átomos individuais. Embora hoje a ciência pode essa pequena maravilha escapasse do
principal área de pesquisa seja o desen- trazer para laboratório e se multiplicasse descontro-
a humanidade.
volvimento de materiais, como os famosos nanotubos ladamente por aí, “comendo” tudo que
de carbono e o grafeno, conforme os pesquisadores encontrasse pela frente para usar de ma-
começam a adquirir a tecnologia para manipular áto- téria-prima para a autorreplicação. Ter-
mos individuais, a imaginação logo começa a voar, minaríamos com o planeta inteiro reco-
com a imagem de robôs tão pequenos que possam berto dessas maquininhas – sob uma
entrar em células vivas e ali produzir curas miracu- “gosma cinza” (grey goo), nas palavras de
losas, hoje impensáveis para a medicina. Drexler.
Esses mesmos robôs, lamentavelmente, poderiam Atualmente, até ele acha que esse é
produzir tragédias impensáveis, como extinguir a vida um cenário improvável, uma vez que um
na Terra. Exagero? Esse foi o cenário sugerido pelo dispositivo desses, capaz apenas de pro-
nanotecnólogo americano Eric Drexler, um dos pionei- duzir réplicas de si mesmo, seria com-
ros na área, em seu livro Engines of Creation, publicado pletamente inútil. A não ser, é claro, que
em 1986. Imagine, por exemplo, uma máquina capaz o objetivo seja mesmo o de destruir a
de usar praticamente qualquer material para se replicar. vida na Terra. Só um louco faria isso, é
i m ag e m : reprodução
O grafeno
(o "pó" aqui
na imagem),
verdade. Mas os loucos existem. Para a nossa sorte, eles trará saltos peixes expostos a fulerenos, na modesta
tecnológicos.
não costumam ser exímios nanocientistas. Mas também
dose de meia parte por milhão (PPM),
Uma coisa que joga contra uma catástrofe nanotec- pode gerar durante apenas 48 horas, apresentaram
nológica é o custo envolvido nesses trabalhos. A exem- perigos extensos danos cerebrais. Claro, ninguém
plo da bomba atômica, os nanodispositivos são de de- impossíveis de resolveu testar para ver se o efeito era igual
prever hoje.
senvolvimento caríssimo, o que significa que poucos em humanos. Dá para arriscar?
terroristas terão interesse neles. Por outro lado, ainda Ainda assim, as pesquisas seguem a
não está claro o efeito que pecinhas tão pequenas, cons- todo vapor. E é inegável que têm enor-
truídas em laboratório, poderiam ter na saúde humana, me valor. Tome o caso do grafeno, por
caso fossem acidentalmente engolidas, inaladas ou ab- exemplo. É basicamente a substância
sorvidas. É isso aí. Mesmo sem um grey goo cataclísmi- mais resistente conhecida, além de ser
co, coisas como nanotubos de carbono podem ser peri- ótimo condutor de eletricidade e de ca-
gosas. Estudos mostram que fulerenos (as chamadas lor. Fora isso, ele é transparente, durável
buckyballs, substâncias nanoscópicas feitas com átomos e impermeável. Com tantas qualidades,
de carbono, cuja forma molecular lembra uma cúpula é natural que esteja na mira dos desen-
geodésica) podem facilmente atravessar a barreira que volvedores de tecnologia. Especula-se
protege o cérebro de partículas invasoras. Um estudo que ele permita desenvolver conexões
assustador feito pela toxicologista Eva Oberdöster, da de fibra óptica cem vezes mais velozes
Universidade Metodista do Sul, no Texas, mostrou que que as atuais. O grafeno poderia ser
i m ag e n s : Getty Images
da inteligência
a tecnologistas – tem apontado as incer-
tezas trazidas pelo desenvolvimento de
máquinas pensantes.
Outro luminar a se pronunciar sobre
artificial
o assunto foi Elon Musk, sul-africano que
fez fortuna ao criar um sistema de paga-
mentos para internet e agora desenvolve
foguetes e naves para o programa espacial
americano. Em outubro de 2014, falando
a alunos do MIT (Instituto de Tecnologia
ças
de Massachusetts), ele lançou um alerta
a parecido. “Acho que temos de ser muito
•
National Laboratory, nos EUA. Ele é ca- seus próprios meios, se reprojetando a um ritmo cada
paz de realizar 148 quatrilhões de ope- vez maior”, sugeriu Hawking. O resultado é que não só
rações matemáticas por segundo. Mas as máquinas passariam a ser mais inteligentes que os
não se compara ao cérebro humano. humanos, como fariam praticamente tudo melhor do
Como o cérebro opera com sofisticados que nós. E, caso sejam dotadas de consciência, o que
níveis de processamento paralelo, em que elas farão conosco? Kurzweil prefere pensar que elas
várias redes de neurônios trabalham ao nos ajudarão a resolver todos os problemas sociais hu-
mesmo tempo num mesmo problema, ele manos e se integrarão à nossa civilização, elevando
ainda é melhor que as máquinas de silí- nosso potencial a um nível jamais visto. Mas até ele
cio. Mas até quando? Alguns tecnólogos admite que não há garantias. Máquinas superinteligen-
acreditam que a ultrapassagem é iminen- tes poderiam se voltar contra nós.
te. É o caso do inventor americano Ray “A coisa mais difícil de defender é essa noção da IA
Kurzweil, que atualmente tem trabalha- não amigável, que seria mais inteligente que nós e de-
do em parceria com o Google para de- fenderia valores que não reconhecemos em nosso sis-
senvolver o campo da IA (inteligência tema moral”, disse Kurzweil numa entrevista em 2012.
artificial). Ele estima que as primeiras “Acho que o melhor jeito de nos defendermos é refletir
máquinas com capacidade intelectual O astrônomo os valores que respeitamos em nossa sociedade hoje,
similar à dos humanos surgirão em 2029. britânico valores como democracia, tolerância, apreciação pelo
É mais ou menos o horizonte de tempo Martin Rees. próximo, liberdade de expressão e por aí vai.” Para ele,
Para ele, a
imaginado por Musk para o surgimento chance de a
máquinas criadas nesse ambiente aprenderiam a culti-
da ameaça. E que ameaça seria essa? humanidade var os mesmos valores. “Não é uma estratégia infalível”,
“Uma vez que os humanos desenvol- passar diz Kurzweil. “Mas é o melhor que podemos fazer.”
incólume
vam inteligência artificial, ela voaria por Enquanto Musk sugere um controle sobre o desen-
pelo século
21 é de volvimento dessa tecnologia (mas não dá a menor ideia
apenas 50%. de como implementá-lo), Kurzweil acredita que já
passamos o ponto de não retorno – estamos a caminho
do que ele chama de singularidade tecnológica. O prê-
mio a quem atingir a singularidade pode até mesmo
ser a própria imortalidade. Aliás, é nisso que está
apostando Kurzweil. Ele acredita que, em pouco tem-
po, será capaz de transferir sua mente para uma má-
quina e com isso se tornar virtualmente indestrutível.
Enquanto esse dia não chega, ele se enche de pílulas
para tentar prolongar sua vida ao máximo. Não dá
para ficar mais otimista que isso.
Por outro lado, máquinas superinteligentes podem
achar os humanos inferiores, uma verdadeira perda de
tempo para elas, ou mesmo chegar a uma conclusão a
que nós mesmos já chegamos: o único modo de real-
mente proteger a integridade da biosfera terrestre é se
livrar do impacto que a civilização traz sobre ela.
Diante disso, nós especulamos que, em longo pra-
zo, a humanidade poderia simplesmente se mudar da
Terra, para preservar a existência de todos e deixar a
combalida biosfera se recuperar em paz. Só que as
máquinas superinteligentes podem muito bem ter uma
ideia mais radical e de implementação mais simples
para solucionar o problema. Dica: essa solução não
incluiria a humanidade.
Foi diante de todos esses perigos, indo das velhas
armas atômicas até a iminente singularidade tecnoló-
gica, que o astrônomo real britânico Martin Rees fez
uma previsão sombria, em 2003. Segundo ele, as chan-
ces de a civilização humana passar incólume pelo sé-
culo 21 são de no máximo 50%. Vamos decidir nossa
sorte no cara ou coroa.
i m ag e m : Getty Images
•
Os riscos Ame
glo
da biologia
b
ais •
sintética
As bombas atômicas
são terrivelmente perigo-
A sas, mas pelo menos têm
uma virtude – são de fa-
bricação tão complexa que
somente governos, investindo muito
dinheiro, podem produzi-las. Desse
modo, é improvável que caiam nas mãos
de terroristas. Mas o século 21 trouxe
tecnologias ainda mais assustadoras —
porque podem ser desenvolvidas num
fundo de quintal.
Como o avanço da engenharia Estamos falando do avanço da enge-
nharia genética e da biotecnologia, e seu
genética trouxe uma ameaça potencial uso para fins malignos. Para
inédita: o bioterrorismo. demonstrar o tamanho do perigo, um
grupo de pesquisadores da Universida-
de de Nova York fez, em 2002, o seguin-
te experimento: “baixaram” de uma
base de dados de acesso livre o genoma
completo do vírus da poliomielite e en-
q ua n d o 1860 – hoje onde Global tão, usando somente insumos que eles
podiam comprar facilmente no mercado
(como bases nitrogenadas usadas na
composição do DNA, vendidas para uso
em pesquisa), decidiram reconstruí-lo.
Deu certo. Isso prova que um aspirante a
Osama bin Laden, com um modesto la-
i m ag e m : divulgação
cob
Ciência Proibida
ISBN 978-85-5579-281-6
é um livro da Editora Abril S.A., distribuído em todo o país pela Dinap S.A. Distribuidora Nacional de Publicações, São Paulo. •
O Dossiê Ciência Proibida não admite publicidade redacional. as
N778c
Nogueira, Salvador
Ciência proibida: as experiências científicas mais assustadoras, perigo-
sas e cruéis já realizadas. / Salvador Nogueira – São Paulo:
Abril, 2020.
66 p ; il. ; 27 cm.
(Dossiê Superinteressante , ISBN 978-85-5579-281-6 ; ed. 416-A)
CDD 507.24
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