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NÚMERO 295

MENSAL ○ NOVEMBRO 2022

DEMOGRAFIA
JÁ SOMOS 8000 MILHÕES DE
PERSSOAS,
IRÁ O PLANETA RESISTIR?
PÁG. 34

ENTREVISTA
JOÃO NUNO TAVARES,
DIRETOR DA CASA DAS CIÊNCIAS
PÁG. 49

HISTÓRIA
1941: A OUTRA
BATALHA DE KIEV
PÁG. 62

PRÉ-HISTÓRIA
MISTÉRIO DA
CRIANÇA DO LAPEDO
PÁG. 68

TECNOLOGIA
AS APPS
ESPIAM-NOS?

A LUA
PÁG. 84

PSICOLOGIA
OBEDIÊNCIA DEVIDA
AS EXPERIÊNCIAS DE
MILGRAM
PÁG. 90

NOVO OBJETIVO DAS MISSÕES ESPACIAIS.


VIVEREMOS NELA ALGUM DIA?
VIVER A HISTÓRIA
COM PAIXÃO
INTERESSANTE

INTERESSANTE

75
EDIÇÃO
BIBLIOTECA
75 MISTÉRIOS DA CIÊNCIA

MISTÉRIOS
DA
Nova
edição

CIÊNCIA
de coleç
ão

Da Matéria Negra e a existência de E.T.


ao Manuscrito Voynich e ao móvel perpétuo

AGORA À VENDA!
EDITORIAL

A outra face da lua


GABINETE EDITORIAL
Direção: Carmen Sabalete
(csabalete@zinetmedia.es).

Editora-chefe: Cristina Enríquez

A
lbert Einstein disse algo no sentido de que gostava de
(cenriquez @zinetmedia.es).
pensar que a lua estava lá mesmo quando não estava a
Edição gráfica: Manuela Arias
olhar para ela. Algo semelhante acontece connosco, o (marias@zinetmedia.es).
nosso satélite concentra a força de atração de todo o nosso univer- Coordenação de design: María Somonte
so. Embora a estejamos a conhecer cada vez melhor, continua a ser (msomonte@zinetmedia.es).

um enigma para nós. De facto, pode ser precisamente isso, quanto Colaboram neste número:
mais sabemos dela, mais estimulante se nos torna. Embora tenha Laura G. de Rivera, Elsa Regadas, Javier Rada, Doctor
Fisión, Gema Boiza, Michael Le Page, Miriam Frankel,
sido afastada dos meios de comunicação depois dos anos 60, quando
Manu Montero, Laura Chaparro, Ángel L. León Panal,
a sua conquista foi um símbolo da corrida entre os Estados Unidos Eduardo Mesa, Javier Granda, José Ángel Martos, José M.
López Nicolás, Henar L. Senovilla, David Cuadrado,
e a União Soviética, é agora mais uma vez alvo de missões espaciais
Sergio Parra.
de países tão diferentes como o Japão e os Emirados Árabes Unidos,
por exemplo. São muitas as expedições previstas para os próximos Conselho Editorial:
José Pardina, Angela Posada-Swarford, Ramón Núñez,
anos, mas quais são os seus objetivos? O Doutor Fisión revela-nos Miguel Á. Sabadell, Elena Sanz, Pampa García,
tudo isso no seu apaixonante artigo. Também analisamos de perto Manu Montero, Mario García Bartual,
José Á. Martos, Fernando Cohnen.
a realidade da Covid-19 persistente: o que pode ser feito hoje para
aliviar os sintomas e porque variam tanto de uma pessoa para outra? EN D EREÇO E T ELE FONE
E contamos-vos sobre o primeiro mapeamento do desenvolvimen- C/ Alcalá 79 1.º A - 28009 Madrid - España;
Tel. +34 810 583 412
to do cérebro humano, desde a gestação até à idade de 100 anos.
Email: minteresante@zinetmedia.es
Falamos-vos também do crescimento populacional que se verificou
Subscrições: tel. 910 604 482.
nos últimos dois séculos, porque atingimos um número recorde: Email: suscripciones@zinetmedia.es
existem agora 8 mil milhões de pessoas na Terra! Que consequên-
cias, pode daí resultar para as nossas vidas?
Porque terá certamente um impacto sobre o
planeta e a sua economia. No número que tem
nas mãos abordamos também um tema fasci-
Chefe do Executivo: Marta Ariño
nante que abre interrogações quanto à história
Responsável financeiro: Carlos Franco
da evolução humana. Como podemos explicar Diretor Comercial: Alfonso Juliá
a Criança do Lapedo? No artigo falamos das (ajulia@zinetmedia.es)

últimas investigações a esse respeito. Não Diretor de Desenvolvimento Empresarial:


Óscar Pérez-Solero (operez@zinetmedia.es)
Carmen Sabalete, tenho dúvidas de que desfrutará da leitura.
diretora
csabalete@zinetmedia.es Editada por Zinet Media Global, S.L.

DISTRIBUIÇÃO:
V.A.S.P. Distribuidora de Publicaçöes, S.A.

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Social com o n.º 118 348. Depósito legal: 122 152/98.
INTERESSANTE

INTERESSANTE

INTERESSANTE INTERESSANTE Esta publicação é membro da Associação


A INVASÃO DA POLÓNIA, O INÍCIO DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

A TRAIÇÃO

75
EDIÇÃO EDIÇÃO

de Jornais de Informação (ARI).


DE ESTALINE BIBLIOTECA BIBLIOTECA
POLÓNIA As ambições soviéticas
A cobiçada presa
GRANDES DRAMAS
SILÊNCIO Do genocídio judeu ao
COMPROMETIDO massacre de Katyn
Posturas da França © Zinet Media Global, S.L. Todos os direitos reservados. Esta
75 MISTÉRIOS DA CIÊNCIA

e do Reino Unido
HISTÓRIA DA VIDA

MISTÉRIOS
PALEO
FALL WEISS
O plano mestre de Hitler
Últimas notícias
da pré-história publicação é propriedade exclusiva da Zinet Media Global, S.L.,
EVOLUÇÃO
DA e a sua reprodução total ou parcial, não autorizada, é
CIÊNCIA
Foi assim que Darwin
EXÉRCITOS concebeu a sua ideia
E ARMAS revolucionária
Uma guerra
desigual AMBIENTE
Poderemos parar
totalmente proibida, de acordo com os termos da legislação
a sexta extinção?
em vigor. Os contraventores serão perseguidos legalmente,
A INVASÃO HISTÓRIA tanto a nível nacional como internacional. O uso, cópia,
DA POLÓNIA DA VIDA
Do primeiro micróbio ao ser humano
Da Matéria Negra e a existência de E.T.
ao Manuscrito Voynich e ao móvel perpétuo
reprodução ou venda desta revista só poderá realizar-se com
INÍCIO DA II GUERRA MUNDIAL autorização expressa e por escrito da Zinet Media Global, S.L.
Sumário

84

54

62
4 SUPER
90

14

34
REPORTAGENS
CAPA
34 Somos 8000 milhões
6 Marcos do cérebro
Mapa interior, desde a gestação até aos cem
6
Como nos afetará? anos.

49 João Nuno Tavares 14 Objetivo: A lua


Diretor da Casa das Ciências.
Novas missões ativam a corrida espacial.
62 A batalha de Kiev
Como o Reich cercou o Exército Vermelho. 26 Muda a tua personalidade
O teu caráter não está gravado na pedra.
68 Criança do Lapedo
A história da evolução humana.
42 Agroenergia
84 Apps espiãs O uso de matéria orgânica como energia.
Vigiam-nos, a partir dos telemóveis,
tablets e computadores? 54 Animais que incham
Porque algumas espécies incham o seu corpo?
90 Obediência devida
As experiências de Milgram. Podemos
ignorar as ordens de um superior?
76 As sequelas da Covid-19
A incógnita dos sintomas persistentes.
FOTO DE PORTADA: SHUTTERSTOCK

RÚBRICAS 97 Moedas criptográficas


ENTREVISTA 74 Defesa cibernética Por Laura G. de Rivera
Por Javier Rada.
22 María Martinón-Torres 98 História de
Médica e paleontóloga espanhola 82 História em imagem ficção científica
protagonista nas escavações de Atapuerca. O couraçado de Potemkin. Por Sergio Parra.

SUPER 5
EA VR OT LÍ CU UÇ ÃL O

Ainda sabemos muito pouco sobre o cére-


bro. É portanto uma grande notícia que,
graças ao poder do processamento de
dados e das novas tecnologias, é final-
mente possível ter uma visão contínua do
que está a acontecer no cérebro desde as
primeiras semanas de gravidez até aos
100 anos de idade, e mesmo detectar
mudanças associadas a uma patologia.

Texto de JAVIER RADA

PRIMEIRO MAPEAMENTO GERAL DO SEU DESENVOLVIMENTO

OS GRANDES
MARCOS DO
6 SUPER
CÉREBRO
Estamos no berçário

SHUTTERSTOCK
do conhecimento. O
cérebro é o desconhe-
cido mais íntimo
possível, ainda sabe-
mos muito pouco
sobre ele.

SUPER 7
O
órgão que se observa a si pró- ainda sabemos muito pouco sobre ele, estamos nas
prio é superado pelo enigma. fases iniciais, no berçário do conhecimento. É por
Na sua reflexão confronta-se isso que é uma boa notícia que, pela primeira vez,
com um imenso universo em tenhamos um mapa estatístico de como evolui ao
miniatura: galáxias de neuró- longo da sua vida. Uma promessa publicada na re-
nios e células gliais, triliões de vista Nature e a que chamaram Brain charts for the
sinapses e axónios em sedosas human lifespan (Gráficos cerebrais para o desenvol-
bainhas de mielina. vimento vital).
O cérebro que tenta ex- Graças à potência no processamento de dados e às
plicar-se só encontra uma novas tecnologias, o cérebro pode, finalmente, ver em
exclamação possível e diz: gráficos e curvas, em médias ou percentis, com mé-
«Uau!» (embora também tricas globais (principalmente volumes) e de maneira
possa ser um suspiro). Vê-se como uma massa gela- contínua, como ele próprio cresce e se desenvolve ao
tinosa mutante, uma borboleta elétrica em constante longo da sua vida.
crisálida enroscada no casulo ósseo do crânio, em Também pode ver o desenvolvimento completo da
permanente mudança. Falamos de uma rede que abre espessura cortical, ou detetar padrões de alterações na
e fecha caminhos, que se poda e se reconecta ao lon- anatomia cerebral associado a uma patologia. Tem uma
go da vida. Parece funcionar como um jardineiro zen: visão contínua do que ali se passa, desde as primeiras
sempre em busca da máxima eficiência e beleza. semanas de gestação até aos cem anos de idade. E há
É o desconhecido mais íntimo possível, porque muita coisa a acontecer, verá....
ISTOCK

Até à chegada do Brain charts for the human lifespan, não havia normas para quantificar margens saudáveis na maturação e envelheci-
mento do cérebro. Pela primeira vez, temos um mapa estatístico de como ele evolui ao longo da sua vida.

8 SUPER
ISTOCK
A matéria cinzen-
ta é basicamente
composta por cé-
lulas, tais como
neurónios e glia.

Até agora tínhamos métricas para olhar para perío- concentrando-se inicialmente no volume dos teci-
dos mais curtos e específicos da sua evolução, «mas até dos principais. A colheita foi de um petabyte de dados
termos sido capazes de reunir os dados para toda a sua (equivalente a mil triliões de bytes). «Foi por isso que
vida útil, não conseguimos obter esta imagem de como tivemos de trabalhar com muitos computadores em
é a sua trajetória em alta precisão temporal», explica paralelo, para nos mantermos num prazo realista»,
Richard Bethlehem, neurocientista e investigador da explica Rafael Romero, especialista em neuroimagem e
Universidade de Cambridge, coordenador da investiga- neuro-oncologia da Universidade de Sevilha e um dos
ção Brain Charts. poucos colaboradores espanhóis na investigação.
A ideia surgiu daquele cérebro que faz perguntas
É UMA BÚSSOLA INICIAL, UM MAPA DE DESENVOLVIMENTO COM sobre si próprio. «Há seis anos, numa conferência de
OS SEUS SINAIS E MARCOS GRAÇAS ÀS INFORMAÇÕES dos scans neurociência, fizemos a nós próprios duas perguntas
cerebrais. São percentis (medida estatística de posi- muito simples: quão grande é o cérebro humano? E
ção), da mesma forma que os pediatras fazem quando poderíamos criar uma referência comum para a forma
analisam o desenvolvimento físico de uma criança. De- como o medimos?», explica Bethlehem.
pendendo do percentil, pode-se dizer se a criança, com Assim, iniciaram o projeto, primeiro com dados pu-
base na idade ou no sexo, está dentro das margens de blicados abertamente e depois contactando centros
desenvolvimento habituais. especializados. «Começámos a contactar colegas e a
Mas com o cérebro não tínhamos nada do género. Não resposta foi esmagadoramente positiva», acrescenta
existiam normas para quantificar a maturação e o en- ele. Um sucesso da tecnologia, mas acima de tudo da
velhecimento saudável. Para tal, a investigação Brain cooperação internacional.
Charts necessitava de desenvolver a sua própria me-
todologia e colaborar com centenas de investigadores COMO É QUE UM CÉREBRO SE DESENVOLVE EM CONDIÇÕES
de vários continentes. Foi necessária uma enorme NORMAIS? O problema é que não há dois cérebros iguais.
quantidade de dados para estabelecer o novo quadro O cálculo da média não é fácil com esta variabilidade
estatístico. interindividual. Qualquer pessoa familiarizada com a
Mais de cem mil exames ao cérebro de participantes neuroimagem saberá que cada órgão é único.
de metade do mundo (saudáveis e com transtornos, A investigação publicada na Nature tem cerca de 200
de todas as idades, incluindo o feto) para extrair mé- autores, principalmente da América do Norte, Europa
dias desse desenvolvimento, neurotípico ou normal, e Ásia. A ideia é que os Brain Charts funcionem como

Tudo o que precisa para treinar o seu cérebro é vontade. Não o


deixar ficar parado em momento algum é a melhor terapia que existe
SUPER 9
SHUTTERSTOCK

Os dados já estão a ser utilizados


para determinar a forma como
evoluem doenças como a síndro-
me de Tourette.

um guia para os especialistas utilizarem na sua práti- De acordo com as suas observações, o pico da maté-
ca diária e para ajudar disciplinas tão sensíveis como a ria cinzenta ocorre com a idade de seis anos. O cérebro
psiquiatria. «É um grande avanço, um bom ponto de é concebido para atingir o pico do tecido celular na
partida, embora ainda haja um longo caminho a percor- infância. A partir daí, os neurónios diminuem gra-
rer antes de poder ser implementado clinicamente», dualmente.
diz Juan Francisco Martín, neurocientista do Instituto É como se quizesse dotar a criança de um potencial
de Biomedicina em Sevilha, que já está a começar a uti- máximo, preferindo que tenha células que sobrem para
lizar os dados para determinar a forma como doenças o que ela possa necessitar. Esta é a razão da reconhecida
como a síndrome de Tourette evoluem. flexibilidade cognitiva na infância, o que não implica,
Neste momento, as curvas são demasiado generalistas, contudo, o máximo desenvolvimento.
uma vez que trabalham com variáveis globais. Mas isto tor- Depois é uma questão de economia. «O cérebro cres-
nou possível determinar com precisão quais são os marcos, ce mais do que precisa e depois é a própria experiência
ou milestones (em inglês), do desenvolvimento cerebral. que poda as ligações que não estão a ser utilizadas», diz
Martín.
COM BASE NESTES GRÁFICOS OU CURVAS, O CÉREBRO QUE O cérebro enfrenta o meio: o jardineiro poda os neu-
AGORA LÊ ESTE ARTIGO ACABA DE RECEBER UM CONVITE pa- rónios (chamam-lhe podas sinápticas). Os estímulos
ra uma curta viagem pelo caminho da sua evolução. As são as suas tesouras. Dessa indefinida sequóia neuro-
mudanças que ocorrem no cérebro ao longo do seu de- nal, ele irá formar um bonsái - que irá crescer com o
senvolvimento são múltiplas e drásticas. Assemelha-se tempo - completamente especializado de acordo com o
a um balão que incha e depois desincha. que experimenta.
Duas das curvas principais baseiam-se em medições Eliminará os neurónios que considera não serem úteis
indiretas: o volume de matéria cinzenta e branca. «A ou relevantes, porque são um desperdício. Há um di-
matéria cinzenta é basicamente constituída por células, tado em neurociência: use-o ou perca-o. «Durante a
tais como neurónios e glia», diz Juan Francisco Martín. última infância e adolescência, será que já estamos a
A matéria branca é constituída por fibras, tais como os perder neurónios? Bem, sim, porque é uma parte im-
axónios que ligam as diferentes regiões, as indispensá- portante desse refinamento criar uma rede que seja
veis pontes neuronais. mais eficiente», diz Rafael Romero.

O nosso cérebro cresce mais do que necessita e depois é


a própria experiência que poda todas as ligações que não
estão a ser utilizadas
10 SUPER
É como se o cérebro se apercebesse que o poder sem
A importância da reserva
direção é inútil. E por isso volta a sofrer uma mutação.
Antes da idade de seis anos, já está a decorrer outro
cognitiva à medida que
evento que se tornará importante na adolescência e na envelhecemos
idade adulta jovem. É conhecido como «mielinização».
A mielina é a camada que envolve e protege os axónios
do sistema nervoso; aparece branca nas ressonâncias
magnéticas por causa do contraste.
E mbora o envelhecimento do cérebro seja inevitável, o
nosso órgão tem os seus truques para lidar com as mu-
danças no ambiente e em si mesmo. Está bem documentado
A sua missão? Aperfeiçoar as redes existentes. Ajuda a que a reserva cognitiva é de grande ajuda quando começa
transmissão elétrica a ser mais eficaz. Na adolescência, a vacilar. «Sabe-se que aqueles indivíduos que têm um nível
este mundo de ligações torna-se predominante. «É um de educação superior, e não tem de ser formal, levam mui-
momento importante porque estamos a aproximar-nos to mais tempo a mostrar sintomas neurodegenerativos»,
do máximo em termos de ligações e número de neuró- explica Romero. «Existem formas de mitigar estes declínios
nios», explica Martín. que são marcados por variáveis biológicas», acrescenta
Martín. Tal como uma flor cresce e murcha, o cérebro segue
O ADOLESCENTE COMEÇA A DELIMITAR O JARDIM QUE SERÁ A o mesmo caminho. Não podemos parar o processo mas,
SUA CASA PARA O RESTO DA SUA VIDA. Este é um processo se exercermos as ligações durante a sua vida, «podemos
que irá continuar até ao período entre os vinte e trinta torná-lo menos pronunciado», diz Martín. Esta é a famosa
anos de idade, quando a matéria branca (uma melhor resiliência cerebral, que em alguns casos atinge o paroxis-
conectividade) atingirá também o seu auge. O nosso cé- mo. Há estudos sobre pessoas que tiveram um dos seus
rebro continuará a afinar de acordo com a experiência hemisférios removido, e em muitos casos são capazes de
e a reserva cognitiva que acumula. «Existe uma diretriz manter uma vida normal. Um dos casos mais famosos é o
inscrita no nosso código genético que orienta o cresci- conhecido como o homem sem cérebro. «O homem tinha um
mento. Mas depois há uma parte que está relacionada cérebro, mas tinha um caso grave de hidrocefalia (um ventrí-
com a nossa própria experiência», diz Martín. culo aumentado que causa estragos)», explica Romero. A
Chegamos aos nossos trinta anos. O cérebro continua pessoa em questão foi um dia ao médico e este fez-lhe um
a refinar as suas redes, mas já começa a ver outro hori- um scan; surpreendido, teve de o informar que 90 por cento
zonte: em breve a matéria branca começará o seu lento do seu cérebro não estava lá, que tinha estado a operar na
declínio. É como se dissesse: Dei-vos muitos anos para sua vida com apenas 10 por cento da sua massa encefálica.
fazerem o que tem de ser feito. É verdade que ele tinha um QI ligeiramente inferior à média,
A diferença entre maturidade cerebral e envelheci- mas isto não o impediu de ter um emprego, casar e desfrutar
mento, contudo, não tem uma fronteira clara. «Não há dos seus filhos.
uma idade em que se diga que agora não está a amadu-

As mudanças que
ocorrem no cére-
bro durante o seu
desenvolvimento
são múltiplas e
drásticas. Asseme-
CÓRTEX lha-se a um balão
que incha para lo-
go depois
desinchar.
ASC

SUPER 11
SHUTTERSTOCK

Não há dois cére-


bros iguais, cada
órgão é único. A
variabilidade inte-
rindividual significa
que a obtenção de
uma média fiável
está longe de ser
simples.

recer, mas sim a envelhecer, mas é verdade que após sobem como um foguete na curva, o que não é uma
determinados intervalos se observam mudanças que boa notícia. Isto significa que grande parte da matéria
podem estar associadas a uma perda de eficiência, por cinzenta e branca está a ser removida. «O crânio é um
exemplo, a partir dos cinquenta/sessenta anos», expli- compartimento estanque, ganha-se de um lado o que
ca Romero. se perde do outro», diz Martin. O espaço livre deixa-
O outono chega ao jardim e o bonsái perde mais folhas do pelo tecido é ocupado pelo fluido. Embora saibamos
do que antes. O jardineiro está cansado. O volume da que certas áreas, próximas da zona subventricular,
substância branca começa a diminuir mais acentuada- continuam a gerar novos neurónios, a quantidade que é
mente. Acabámos de passar a idade de sessenta anos e a produzida é baixa em comparação com as que são per-
curva da matéria cinzenta assemelha-se a uma monta- didas, é inevitável. E assim chega o inverno.
nha-russa descendente. Tal como a massa muscular se perde, o mesmo acon-
tece com a massa cerebral, mas o nosso estranho íntimo,
OUTRO DADO QUE OBSERVARAM DIZ RESPEITO AO TAMANHO DOS o fiel podador, não pretende desistir tão facilmente.
VENTRÍCULOS, as áreas do cérebro que não são constituí- Dedicará o que resta da sua vida ao minimalismo: tirará
das por neurónios ou ligações. Estão cheios de líquido o máximo partido do menor espaço possível. Como um
cefalorraquidiano e têm uma função de apoio, mas não bom jardineiro Zen, escreverá o seu último haiku (pe-
processam informação. quenos poemas) fechado no claustro de osso.
Num certo marco (sessenta anos), estes ventrículos, O cérebro de uma pessoa idosa, apesar do seu declínio,
que têm sido estáveis até agora, começam a crescer, ainda mantém uma plasticidade cerebral espantosa. De

12 SUPER
Demasiado WEIRD
U m dos problemas que Brain Charts apresenta, e a biome-
dicina em geral, é que os estudos são tendenciosos para
certas populações. Os anglo-saxões chamam a isto WEIRD,
que significa «raro», mas é um acrónimo de Western Educa-
ted Industrialized, Rich, and Democratic. A grande maioria dos
dados provém destas regiões, devido ao custo da neuro-ima-
gem e ao financiamento necessário para os estudos: Estados
Unidos, Canadá, Europa, Austrália e parte da Ásia (China e Sin-
gapura). Isto significa que uma grande parte da população está
fora da análise do desenvolvimento do cérebro. «Tentámos utili-
zar todos os dados que estavam disponíveis em todo o mundo,
mas a realidade impõe-se. Há muito mais pessoas dos EUA no
estudo do que de qualquer outro continente», diz Romero. Is-
to significa que sabemos como o cérebro do americano médio
cresce e se desenvolve, mas pode haver surpresas se o compa-
rarmos com o cidadão global. «Sabemos que a etnicidade tem
um efeito importante em praticamente tudo, estamos a fazer as
curvas de como se desenvolvem os cérebros daqueles huma-
nos que se podem dar ao luxo de fazer um exame ao cérebro»,
conclui. A nível mundial existem variantes genéticas por região
que podem ser importantes. Mas um scanner custa cerca de
um milhão de euros, a maioria deles encontra-se em hospitais e
há muita pressão para os utilizar. Continua a ser uma tecnologia
cara e de vanguarda. É por isso que Brain Charts ainda estão
abertos para quaisquer novos dados e porque implantaram o
seu website brainchart.io.

SHUTTERSTOCK

facto, quando um indivíduo apresenta sintomas de um sistema imunitário, é o sistema mais complexo que te-
trnastorno neurológico é geralmente porque o cérebro mos», acrescenta Romero.
está muito danificado. «O que fizemos com este conjunto de dados é acres-
Antes de isto acontecer, compensou o máximo pos- centar um nível de precisão que antes não era possível,
sível. O bonsái continua a ser uma árvore funcional uma linguagem comum em todos os estudos, e portanto
embora esteja a ficar cada vez mais pequeno. «Tem uma imagem harmonizada de métricas interpretáveis.
muita margem, é uma rede, se uma forma não funcio- À medida que obtemos mais dados longitudinais e clí-
nar, pode usar outra», explica Romero. nicos, podemos começar a ver se estas ferramentas
A desvantagem é que quando os sintomas aparecem podem ser utilizadas para previsões clínicas», conclui
pouco há a fazer, já é demasiado tarde. Precisamente o Bethlehem.
que se pretende com estes índices de referência é prever Um cérebro que lança outra exclamação em frente ao
se uma pessoa vai ter sintomas antes de se manifesta- espelho (desta vez, um sopro de esperança): «Oxalá!
rem. «Esta é a hipótese que temos e a que precisamos de Esperemos que uma investigação como esta e uma co-
testar antes de a podermos utilizar como um biomarca- laboração mais aberta possam desvendar os segredos do
dor com valor de diagnóstico», explica Romero. nosso jardineiro.
Entretanto, tome bem conta do bonsái. Use a melhor
A CONCLUSÃO A QUE CHEGARAM É QUE, APESAR DE TUDO, O tesoura, deixe a sua poda ser frutífera, para que o seu
CÉREBRO ENVELHECE MELHOR DO QUE OUTROS ÓRGÃOS. «A último haiku, graças à valiosa reserva cognitiva, seja
resiliência é surpreendente. E isto porque, a par do memorável. e

SUPER 13
EXPLORAÇÃO ESPACIAL

OBJETIVO:
A LUA
Durante cinco dé-
SHUTTERSTOCK

cadas, a Lua não


tem sido atraente
para a exploração.
O que mudou pa-
ra tornar o nosso
satélite tão inte-
ressante agora?

14 SUPER
A 21 de julho de 1969, às 2:56 da manhã, Neil Armstrong pôs os pés
na lua pela primeira vez e isto mudou para sempre a história humana.
Não só porque foi a primeira vez que uma nave espacial tripulada
aterrou no nosso satélite, o que era importante em si mesmo, mas
também porque significava que os Estados Unidos tinham ganho
a corrida espacial contra a União Soviética. Hoje, a Lua «reclama»
novamente a nossa atenção: vários países estão a organizar missões
até ela. Porquê? O que é que procuram?

Texto por DOCTOR FISIÓN

SUPER 15
SHUTTERSTOCK

O
programa Apollo terminou ULTIMAMENTE, NO ENTANTO, TEMOS OUVIDO
em julho de 1975 da me- FALAR MUITO SOBRE A EXPLORAÇÃO LUNAR. Os
lhor maneira possível: com Estados Unidos, a Rússia, a Índia, a Coreia do
um aperto de mão entre os Sul, os Emirados Árabes Unidos e o Japão têm
Estados Unidos e a União os olhos postos na Lua. O que mudou para tornar
Soviética, dois países ad- o nosso satélite tão interessante agora? Depois de
versários que se esqueceram um tempo sem missões à Lua, veremos este ano, um
das suas diferenças para se grande número delas. Os Estados Unidos vão lançar
abraçarem no espaço com a o seu programa Artemis e estão a financiar uma série
missão Apollo-Soyuz. Foi o de missões para enviar equipamento e fornecimentos
início de uma longa era que para a Lua para utilização pelos futuros astronautas.
nos levou muito longe em Os restantes países irão aventurar-se a explorar o
termos de cooperação e expansão da ciência, mas nosso satélite.
que, por enquanto, não conseguiu que saíssemos do Todas estas missões serão não tripuladas e, na sua
nosso planeta. maioria, lançarão as bases para uma presença huma-
Durante cinco décadas, a Lua não tem sido muito na sustentável no nosso satélite em menos de uma
interessante para a exploração espacial. Tínhamos década. Mas esse não é o objetivo final; a criação de
todas as amostras de que precisávamos, há trezen- uma estação espacial lunar é apenas um passo no ca-
tos e oitenta e dois quilos da Lua na Terra, mais do minho para missões tripuladas a Marte.
que suficiente, e o interesse público desceu depois Antes de ser dada luz verde para esta primeira
das primeiras missões, o que foi razão suficiente para missão, está em curso uma série de ensaios de ves-
cancelar o programa Apollo. tuário no Kennedy Space Center, na Florida. A NASA

16 SUPER
Este foguete de
noventa e oito
metros foi
concebido para ser
o foguete mais
potente da história
e para ser capaz de
transportar
grandes cargas até
à Lua.

trabalha há mais de dez anos no SLS, um foguetão


mais potente que o Saturn V, que nos levou à Lua há
mais de cinquenta anos. A missão Artemis 1 marcará
o primeiro de uma série de voos sob o guarda-chuva
Artemis da NASA. O primeiro voo SLS será lançado
do Centro Espacial Kennedy para enviar uma cáp-
NASA

sula chamada Orion à volta da Lua. No seu regresso,


irá testar a trajetória a ser seguida pelo Artemis 2,
a missão subsequente que está programada para
transportar astronautas em 2024. A terceira missão,
Artemis 3, terá como resultado uma aterragem na
lua. Como qualquer missão espacial importante, a
Artemis 1 foi adiada várias vezes. Inicialmente, esta-
va prevista para 2020 e dois anos mais tarde a missão
ainda não descolou. A NASA declarou a 2 de feverei-
ro deste ano que «as equipas não estão a trabalhar
em nenhuma questão importante», mas observou
que o último atraso, de março de 2022 até aos meses
seguintes, era necessário para completar as tarefas
indispensáveis e preparar o foguetão para um teste da Emblema da histórica missão Apollo 11: uma águia careca
plataforma de lançamento conhecido como «ensaio (símbolo nacional dos EUA) aterrando em solo lunar com
geral», a última grande verificação antes do primei- um ramo de oliveira (símbolo da paz) nas patas.

SUPER 17
Todas estas missões
ro lançamento. «Esta será a irão lançar as bases Musk de transportar huma-
última verificação do projeto nos até Marte.
antes do nosso lançamento», para uma presença Para alcançar esta proeza, a
disse Tom Whitmeyer, um al- Starship deve ser capaz de or-
to funcionário da NASA.
O foguete de noventa e oi-
humana sustentável na bitar o nosso planeta. Esse voo
de teste, também sem pessoas
to metros foi concebido para
ser o mais potente da história
superfície do nosso a bordo, deveria ocorrer em
meados deste ano. Um teste
e para ser capaz de transpor-
tar grandes cargas até à Lua. satélite em menos de orbital bem sucedido será um
passo fundamental no pro-
Os seus sete milhões de libras
de propulsão são capazes de uma década grama lunar da NASA, mas à
data de hoje, a SpaceX está
transportar cento e trinta muito longe de o conseguir.
toneladas de carga útil. Na Os astronautas que se lança-
sua primeira missão, chegará a menos de cem qui- rem no Sistema de Lançamento Espacial, dentro da
lómetros da superfície lunar e depois voará a uma cápsula Orion, irão encontrar-se e transferir-se para
distância recorde de quatrocentos e cinquenta mil a Starship na Lua para descer o resto da viagem até à
quilómetros do nosso planeta, mais longe do que superfície lunar. A nave espacial descolará então da
qualquer nave espacial concebida para transportar Lua e transferirá os astronautas de volta à Orion para
uma tripulação alguma vez antes. Mas a agência es- a viagem de regresso à Terra. Um feito e tanto.
pacial americana não está sozinha na sua missão. No
centro dos esforços da NASA para levar os humanos PEREGRINO LUNAR
até à Lua está a Starship da SpaceX, que será utiliza- Intuitive Machines, uma empresa sediada em Hous-
da como módulo de aterragem lunar em 2025. Será ton, e Astrobotic, em Pittsburgh, pretendem enviar
a primeira missão de astronauta da agência à super- pequenos módulos de aterragem lunar que transpor-
fície da lua desde 1972. Concebido como um sistema tem várias cargas úteis científicas para a lua até ao
de foguete totalmente reutilizável, a nave espacial final de 2022. Os seus módulos foram desenvolvidos
está também no centro do objetivo final de Elon ao abrigo do programa Comercial Lunar Cargo Servi-
SHUTTERSTOCK

O primeiro voo do
SLS será lançado do
Centro Espacial
Kennedy para en-
viar uma cápsula
chamada Orion à
volta da Lua.

18 SUPER
A SpaceX está a

SHUTTERSTOCK
trabalhar com a
NASA para voltar à
Lua no futuro, mas
também faz parte
do principal
objetivo do Elon
Musk: transportar
humanos para
Marte.

SUPER 19
NASA

Nas últimas centenas de metros da


descida durante a aterragem lunar da
Apollo 12 (19 de novembro de 1969),
Conrad aumentou o controlo manual
no que foi um exercício de precisão. Na
imagem, Intrepid, o módulo lunar da
Apollo 12, pairando sobre a superfície
do nosso satélite.

O Pathfinder orbital
ces da NASA; parte do esforço do lado da Lua voltado para
da agência para confiar em
empresas privadas para en-
lunar passará um ano a Terra e transporta catorze
cargas úteis de investigação.
viar carga e instrumentos de
investigação para o espaço é
a estudar a geologia A companhia disse que Pe-
regrine estará pronto para o
a esperança de estimular um
mercado comercial.
da Lua e a examinar lançamento a bordo do novo
foguetão Vulcan da United
O módulo de aterragem No-
va-C da Intuitive Machines, de longe a Launch Alliance em meados
de 2022.
um robô cilíndrico de seis
pernas, deverá ser lançado no composição química CAPSTONE
foguete Falcon 9 da SpaceX Rocket Lab, que constrói
durante 2022, que trans- da poeira lunar foguetes para pequenos lança-
portará uma dúzia de cargas mentos, está preparado para
úteis para a superfície lunar. enviar um satélite do tamanho
Um dos instrumentos a bordo medirá a nuvem de de um microondas, o CubeSat, para a NASA, chamado
detritos lunares levantada durante a aterragem de CAPSTONE, a partir do local de lançamento da empre-
Nova-C, uma experiência que poderá ajudar os en- sa na Nova Zelândia .
genheiros a evitar aterragens lunares desordenadas O satélite estudará uma órbita à volta da lua para
no futuro. O lander irá também instalar um peque- uma futura estação espacial chamada Gateway, a ser
no rover construído pela Spacebit, uma empresa desenvolvida pela NASA e outras agências espaciais,
britânica. algures na próxima década.
O módulo de aterragem Peregrine da Astrobo- CAPSTONE irá também testar uma nova tecnologia
tic é um módulo quadrado de quatro pernas com de navegação concebida para calcular a posição de
um sistema de propulsão a bordo que deslizará so- uma nave espacial em relação a outras naves espa-
bre uma planície basáltica no quadrante nordeste ciais. Tradicionalmente, os satélites utilizam câmaras

20 SUPER
NASA

Nesta fotografia, tirada


durante a terceira etapa
da missão Apollo 16,
Charles Duke, o piloto do
módulo lunar, é visto na
sombra da chamada
«Shadow Rock».

a bordo para determinar a sua posição em relação às Luna-24 da era soviética recolheu amostras lunares
formações estelares ou à posição aparente do Sol. Em para regressar à Terra. O Luna-25 estudará o solo
vez disso, CAPSTONE tentará determinar a sua posi- lunar e testará tecnologias para futuras alunagens
ção no espaço através da comunicação com o Lunar russas.
Reconnaissance Orbiter da NASA, um satélite de ima-
gem lançado em 2009. MISSÃO 1
A companhia espacial japonesa Ispace pretende en-
LUNAR PATHFINDER viar o seu módulo de aterragem da Missão 1 à Lua
Pathfinder, o orbitador lunar da Coreia, um saté- algum tempo antes do final de 2022. Se o desembar-
lite em forma de caixa, será a primeira incursão da que for bem sucedido, irá colocar um par de rovers.
Coreia do Sul à Lua, uma vez que o país pretende re-
forçar os seus conhecimentos técnicos para missões RASHID
no espaço. A nave, que transporta seis ferramentas É um pequeno robot de quatro rodas construído pelos
principais, deverá ser lançada em agosto de 2022 Emirados Árabes Unidos. Trata-se de outro explora-
num foguetão Falcon 9 da SpaceX e atingirá a órbi- dor robótico mais pequeno construído pela Ispace,
ta lunar em dezembro. Passará um ano a estudar a com o tamanho e a forma de uma bola de basquetebol.
geologia da Lua e a examinar de longe, a composi- Pode transformar-se num rover após a implantação,
ção química da poeira lunar. O satélite transportará dividir-se-á em dois e utilizará as suas metades como
também um Lunar Terrain Imager, que fará o levan- rodas para se deslocar e estudar a poeira lunar.
tamento de potenciais locais para uma subsequente
missão de aterragem robótica sul-coreana. CHANDRAYAYAAN-3
A Índia tinha planeado enviar um módulo de aterra-
LUNA-25 gem e o rover Chandrayaan-3 para a Lua no terceiro
O módulo de aterragem Luna-25, que deverá ser trimestre de 2022. Será a sua terceira tentativa numa
lançado em julho de 2022, marcará a primeira ater- missão lunar após o módulo de aterragem e rover da
ragem lunar da Rússia desde 1976, quando o módulo missão Chandrayaan-2 se ter despenhado em 2019. e

SUPER 21
ENTREVISTA

A paleontóloga María
Martinón-Torres,
diretora do Centro
Nacional de
Investigação da
Evolução Humana
(CENIEH), Espanha e
membro da equipa de
investigação de
Atapuerca, posando
na jazida, em Burgos.

22 SUPER
María
MARTINÓN-
TORRES
«O que mais gosto no Homo sapiens
é a sua imperfeição e o que menos
gosto é o seu lado hierárquico,
territorial e violento»
María Martinón-Torres, médica e paleoantropóloga, é uma das poucas cientistas espanholas
que não necessita de apresentação. Foi protagonista nas escavações da Serra de Atapuerca
que trouxeram à luz inúmeros fósseis humanos e pré-humanos de Sima de los Huesos.
Recentemente, fez parte da equipa internacional que encontrou um maxilar Homo sapiens
de há 180.000 anos em Israel. Uma descoberta que antecipou, pelo menos em cinquenta mil
anos, a expansão dos nossos antepassados para fora de África e outros aspectos cruciais
da evolução da nossa espécie.
SUSANA SANTAMARÍA

Entrevista de GEMA BOIZA

SUPER 23
M
édica de formação e cardíacos isquémicos, AVC, osteoartrite, obesidade ou
paleoantropóloga de arteriosclerose de que a sociedade sofre atualmente são
profissão, María Marti- uma consequência deste desequilíbrio, dos nossos ex-
nón-Torres, diretora do cessos alimentares ou do nosso estilo de vida sedentário.
CENIEH (Centro Nacio- Originalmente, éramos uma espécie caçadora-recole-
nal de Investigação da tora que vivia ao ar livre com uma atividade física muito
Evolução Humana), em maior. A nossa biologia ainda está a adaptar-se, mas a
Espanha, acaba de pu- um ritmo muito mais lento.
blicar Homo imperfectus
nas Ediciones Destino, Qual diria que é o superpoder da nossa espécie?
um livro em que coloca Desde logo, o superpoder da adaptação não é exclu-
a nú o Homo sapiens, já sivo dos seres humanos, porque todas as espécies
que põe em foco a im- que ainda estão vivas estão a adaptar-se a todo o
portância das fragilidades da nossa espécie na luta pela momento. Penso que isso faz parte do intrigante,
sobrevivência. María Martinón-Torres coloca-nos em emocionante e assustador da natureza, onde a mesma
frente ao espelho para nos fazer refletir. lei rege a sobrevivência de peixes, aves, plantas e se-
res humanos. O que acontece é que aqueles que estão
O que é Homo imperfectus e porque é que escreveu este mais bem adaptados reproduzem-se mais e tornam-
livro? -se as formas dominantes que fazem o seu caminho
É um livro científico no qual eu queria partilhar a mi- na vida. Se existe algum superpoder no Homo sa-
nha visão pessoal da doença e do sofrimento, uma parte piens, eu diria que é cultural e não biológico, porque
inerente da vida que penso que raramente falamos. É não creio que estejamos melhor adaptados do que um
o espinho no coração de alguém que se dedicou à pa- tubarão ou uma águia. Na realidade, estes dois pro-
laeoantropologia, mas que nunca deixou de ser médica. cessos evolutivos não se desenvolveram em paralelo.
O que acontece com esta evolução cultural é que esta-
Pensava num grupo específico quando o estava a docu- mos a antecipar problemas que, paradoxalmente, nós
mentar e a escrever? próprios criámos.
A minha intenção era alcançar o maior número de
pessoas possível. Não procurei escrever um tratado de- Pensa que estamos «condenados» a continuar a con-
talhado e intensivo sobre medicina evolutiva, mas sim trair doenças?
recolher quadros médicos com os quais todos vivemos Enquanto houver doença, haverá vida. Vemo-lo quan-
diariamente e partilhar a minha visão sobre eles. do a detetamos no estudo dos registos fósseis, os sinais
com que a identificamos são os de uma tentativa de
Em Homo imperfectus fala das nossas fragilidades na recuperar o corpo ou de reparar os danos sofridos. Na
luta pela sobrevivência. Pensa que os seres humanos, natureza, no mundo selvagem, é muito raro encontrar
enquanto espécie, podem continuar a adaptar-se à a doença, porque essa doença não é normalmente com-
mudança? patível com a vida. Portanto, sim, temos de aceitar que
Sim, estamos constantemente a adaptar-nos. O proble- a nossa espécie vai continuar a sofrer ou, pelo menos, a
ma é que os ritmos da biologia são muito, muito mais lidar e viver com patologias e doenças; pedimos-lhe que
lentos do que os da tecnologia e da cultura. Somos uma faça muitas coisas, que se adapte a diferentes tipos de
espécie que se tornou uma das forças mais impactan- vida e lugares. Haverá um preço a pagar por isso. O que
tes do planeta, a nossa capacidade transformadora fez acontece é que estas doenças, mesmo que tenhamos de
com que a nossa vida quotidiana, a nossa paisagem e o sofrê-las, não têm, na maioria dos casos, um impacto
nosso clima mudassem. A maioria dos casos de quadros direto sobre o sucesso da nossa espécie.

Acha que os seres humanos têm uma data de validade?


Se olharmos para trás, podemos pensar que sim. To-
das as espécies evoluíram, o que significa que ao longo
de milhões de anos algumas espécies surgiram e ou-

«Temos de aceitar que a nossa


espécie continuará a sofrer de
Homo
Imperfectus: doenças porque lhe pedimos
que se adapte a diferentes tipos
Porque é que
continuamos a

de vida e a diferentes lugares


adoecer apesar
da evolução?
Editorial Destino,
18,90 euros. ao mesmo tempo»
24 SUPER
«Criámos rotinas, estilos de vida e
ambientes que nada têm a ver com o
ambiente em que a nossa biologia e
metabolismo se desenvolveram».

ÁNGEL L. FERNÁNDEZ
tras desapareceram. Porque é que isso não nos deveria E o que menos lhe agrada?
acontecer? Pense nos australopitecos. Viveram durante Sermos hierárquicos, territoriais e que exista sempre
milhões de anos e no final... acabaram por se extinguir. um grau de violência, que temos de controlar. Por ve-
Somos uma espécie muito jovem, que existe há muito zes vemos inimigos onde não deveríamos, e a guerra
pouco tempo. Penso que ainda temos um longo cami- atual é um caso exemplar. Não gosto deste sentimen-
nho a percorrer, mas os humanos não são invencíveis. to de proteção que se transforma em violência. O que
Dito isto, não sou catastrofista, penso que é muito difícil devemos promover é o que nos torna mais fortes, que
nos extinguirmos com o limiar de explosão populacio- é a sociabilidade. Aquele que está sozinho tem um fu-
nal e o controlo e antecipação dos problemas que temos turo mais curto do que aquele que é abrigado e aceite
desenvolvido. Refugiámo-nos na nossa cultura e na pelo grupo.
nossa tecnologia, já não falamos tanto da nossa capaci-
dade de adaptação ao mundo, mas da nossa capacidade O que mais a assusta no Homo sapiens?
de adaptar o mundo às nossas necessidades. Tenho mui- O facto de por vezes sermos como uma criança com
ta dificuldade em acreditar na extinção de uma espécie um brinquedo que é demasiado grande para ela. Com a
como a nossa que está tão habituada a criar problemas tecnologia aprendemos a fazer mal à distância, a perder
e a resolvê-los. a empatia e quando isso acontece, desligamo-nos do
mundo natural e social, perdemos uma das ferramentas
Até que ponto acha que estamos longe de saber tudo so- do sucesso da nossa espécie, que tem sido a nossa capa-
bre a nossa espécie? cidade de nos colocarmos no lugar do outro e imaginar
Creio que estamos bastante longe, mas muito mais o que ele pensa, o que sente ou o que precisa. O contacto
perto do que estávamos há uma década atrás. Estamos virtual entorpece a parte humana da nossa espécie. So-
muito longe porque ainda nos falta muito por saber, por mos um pouco letárgicos porque a tecnologia nos afasta
exemplo, sobre o nosso cérebro, e penso que devemos da experiência física.
dizer que felizmente estamos longe porque essa curiosi-
dade manterá viva uma espécie como o Homo sapiens, Por falar em tecnologia e neste mundo hiperligado, co-
que não só sabe como responder a perguntas, mas tam- mo é ser um paleoantropólogo no século XXI?
bém como fazê-las. Penso que a ciência é a expressão Há uma parte muito clássica da minha profissão que
mais singular dessa capacidade sapiens de fazer per- não mudou, ainda precisamos de equipas de pessoas
guntas, fazê-las à natureza e de saber responder-lhes. para estudar os fósseis. O bom é que o conhecimento
E se não, há a antropologia e a medicina, disciplinas que é agora partilhado, de modo que a ciência avança mais
criámos para olhar para o nosso umbigo. rapidamente.

O que é que mais lhe agrada na nossa espécie? Em que projetos está a trabalhar agora, e qual é o seu
Gosto do facto de o Homo sapiens ser imperfeito. Não trabalho inacabado?
existe um protótipo de Homo sapiens perfeito, que Vou voltar aos estudos que tinha em mãos. Vou voltar ao
possamos dizer ser a melhor forma em que a nossa es- estudo dos fósseis provenientes da China.
pécie poderia apresentar-se. Gosto de pensar que é uma
espécie em que há espaço para tudo; dessa totalidade, Como imagina o Homo sapiens daqui a cem anos?
dessa diversidade, é de onde a natureza tirará as solu- Como agora, mas com maior sensibilidade. O facto
ções quando tiver de enfrentar um novo problema. Se de nos preocuparmos com coisas que transcendem as
fôssemos todos iguais, teríamos menos ferramentas na nossas próprias vidas significa que temos um grande
nossa biologia para lidar com as novas ameaças. instinto de sobrevivência como espécie. e

SUPER 25
PA SRI TC ÍO CL OU GLI OA

26 SUPER
Porque o seu carácter não está gravado em pedra

Como mudar a
sua personalidade
(de verdade!)
Pode acreditar que traços como a conscienciosidade ou a extroversão definem o seu
temperamento, mas não são inamovíveis. Novas pesquisas revelam que qualquer
pessoa pode mudar a sua personalidade se realmente o desejar.

Texto de MIRIAM FRANKEL, NEW SCIENTIST

Programas de
SHUTTERSTOCK

mudança de per-
sonalidade
poderiam ajudar
a reduzir proble-
mas de saúde
mental tais como
depressão, ansie-
dade e distúrbios
alimentares.

SUPER 27
Os grandes traços são
geralmente avaliados
através de questionários
onde se pergunta às pes-
soas sobre os seus
pensamentos, sentimen-
tos e comportamentos.

SHUTTERSTOCK

N
ão, eu não sou uma objetora de demonstraram que é mesmo possível transformá-la
consciência: nunca fui recru- intencionalmente. Uma vez que certos traços de perso-
tada para o exército. Aquilo a nalidade estão relacionados com a satisfação de vida, e
que me oponho são entradas inclusivé, com uma melhor saúde mental, isto poderia
no diário meticulosamente ter um impacto substancial em muitas pessoas. Parece
codificadas por cores, planos bom demais para ser verdade, e a psicologia tem uma
de refeições semanais e orga- reputação um pouco duvidosa quando se trata das suas
nização doméstica ao estilo de descobertas resistirem ao escrutínio. Mas eu estava
Marie Kondo, o que se reflete curiosa, por isso decidi experimentar por mim mesma.
perfeitamente num traço de Quando os psicólogos falam de personalidade, refe-
personalidade em que tenho rem-se aos nossos hábitos de pensamento, emoção e
uma pontuação particularmente baixa: a consciencio- comportamento tal como se manifestam ao longo de
sidade. Isto nunca foi um grande problema, embora me anos ou décadas, por oposição aos que variam em es-
tenha feito sentir como uma proscrita desorganizada, calas de tempo mais curtas, como dias ou horas. Mas
especialmente quando passo tempo com outras mães no medir a personalidade é complicado. Atualmente, a
meu bairro londrino. Sabe, o tipo de pessoas que chegam maioria dos psicólogos utiliza o «modelo dos Cinco
sempre às festas ou às datas de jogos a horas, com tudo Grandes», que divide a nossa personalidade em cinco
o que poderiam precisar, com um aspeto bem arranja- traços independentes: extroversão, amabilidade, cons-
do. Mas recentemente comecei a pensar como seria a cienciosidade, abertura à experiência e neuroticismo,
minha vida se eu fosse mais como elas. Pensei em como também conhecido como estabilidade emocional.
as coisas podem ser cansativas: pânico de última hora, O «modelo dos Cinco Grandes» tem os seus detrato-
desarrumação, chaves mal colocadas, marcações falha- res. Foi desenvolvido a partir de uma técnica estatística
das. Pensei nos potenciais benefícios para a minha saúde chamada «análise de fatores», que mostrou que as
e bem-estar se eu pudesse mudar tudo isso. No mínimo, palavras utilizadas para descrever a personalidade nos
iria certamente tornar as coisas muito mais fáceis. inquéritos podiam ser agrupadas em cinco traços dis-
tintos. Alguns investigadores discordam da falta de uma
TRADICIONALMENTE, OS PSICÓLOGOS ACREDITAVAM QUE A PER- explicação mais profunda e subjacente para este mode-
SONALIDADE ERA MAIS OU MENOS FIXA AO LONGO DA VIDA. Já lo. Outros argumentam que não pode captar todos os
não é este o caso. Parece agora que a personalidade evo- aspetos da personalidade, incluindo «traços sombrios
lui ao longo da vida e, nos últimos anos, vários estudos « como a psicopatia ou o maquiavelismo, ou mesmo o

28 SUPER
humor. Ainda assim, como o mais amplamente aceite a produtividade. O resultado global foi afetado pela
entre os psicólogos, o modelo constitui a base de muita minha pontuação na componente organizacional: um
pesquisa de personalidade. embaraçoso seis em 100. «Faria uma académica ideal»,
Os cinco grandes traços são geralmente avaliados disse Brent Roberts, um psicólogo da Universidade de
através de questionários nos quais se interrogam as Illinois, quando analisou os meus resultados.
pessoas sobre os seus pensamentos, sentimentos e com-
portamentos. É uma questão de concordar ou discordar CARACTERÍSTICAS DA MARCA. O meu tipo de personalida-
de afirmações como «tende a ser preguiçoso» ou «é de deve-se em parte ao meu ADN. Estudos com gémeos
eficiente, faz as coisas bem». E foi aqui que a minha mostram que os genes podem explicar cerca de metade
modificação de personalidade começou, com um teste das diferenças nos traços de personalidade. O outro la-
chamado Big Five Inventory-2. do da moeda é que há muito espaço para experiências
na vida adulta deixarem a sua marca. De facto, embo-
«AS PESSOAS PODEM MUDAR DRAMATICAMENTE, MUITO ra muitos de nós partam do princípio de que a nossa
RAPIDAMENTE». Tive a maior pontuação na abertura à ex- personalidade está gravada na pedra quando atingimos
periência, sugerindo que prefiro a novidade à rotina e o uma certa idade, os psicólogos têm demonstrado ao
grande quadro ao detalhe. Também tive uma pontuação longo das últimas duas décadas que os traços de perso-
alta em extroversão e amabilidade, mas ligeiramente nalidade mudam ao longo da vida.
baixa em estabilidade emocional, sugerindo que sou Um estudo de Roberts e colegas mostrou que, em
particularmente propensa à ansiedade. Finalmente, média, aumentamos nas medidas de quase todos os
em conscienciosidade, obtive uma pontuação impres- traços de personalidade entre os nossos vinte e quaren-
sionante de quarenta e quatro em cem, apesar de uma ta anos. Dos nossos quarenta aos nossos sessenta anos,
pontuação elevada na sua componente relacionada com permanecemos mais conscientes e emocionalmen-

Os psicólogos acreditam agora que a personalidade evolui ao


longo da vida e, nos últimos anos, vários estudos demonstraram
que é mesmo possível transformá-la intencionalmente
SHUTTERSTOCK

A personalidade
está dividida em
cinco traços:
extroversão,
amabilidade,
conscienciosidade ,
abertura à
experiência e
neuroticismo.

SUPER 29
te estáveis, e que a amabilidade aumenta a partir dos Curiosamente, novas provas sugerem que isso é pos-
cinquenta anos. Para além da idade de sessenta anos, sível. Num estudo publicado em fevereiro passado,
tornamo-nos menos abertos e extrovertidos e mais Roberts e colegas tentaram mudar um traço de per-
conscienciosos, talvez como resultado da diminuição sonalidade em cada um dos 1523 participantes suíços
dos círculos sociais. com uma média de idade de 25 anos. Cada pessoa foi
Além disso, as mudanças são bastante grandes. Os treinada por uma aplicação de smartphone chamada
psicólogos medem frequentemente as alterações na PEACH, que lhe dava tarefas específicas, tais como
personalidade em termos de «desvios padrão», pelo falar com pessoas novas se quisessem ser mais extro-
que passar de um máximo introvertido para um máxi- vertidas ou escrever todos os aniversários importantes
mo extrovertido é equivalente a uma diferença de cerca do ano seguinte no seu calendário, se quisessem ser
de três desvios padrão, por exemplo. Segundo Roberts, mais conscienciosos.
existem traços específicos que mudam até um desvio É fácil ver que os nossos traços de personalida-
padrão ao longo da vida de uma pessoa, especialmente de podem influenciar a forma como pensamos e nos
a conscienciosidade e a estabilidade emocional. comportamos. Mas a ideia por detrás da mudança de
A mudança também pode ocorrer em interva- personalidade é que os nossos pensamentos e compor-
los de tempo mais curtos. Em 2017, Roberts e colegas tamentos também podem influenciar os nossos traços
analisaram duzentos e sete estudos anteriormente pu- de personalidade. Dado que as pessoas tendem a mu-
blicados sobre a eficácia dos tratamentos psicológicos, dar de forma previsível à medida que envelhecem, é
que simultaneamente rastreavam as personalidades razoável assumir que isto se deve em parte ao envol-
dos participantes. Descobriram que as pessoas que vimento em vários papéis e expetativas, argumentam
foram submetidas a um tratamento bem sucedido pa- os investigadores. Quando decidimos estudar muito
ra condições como depressão, ansiedade e distúrbios na universidade, por exemplo, a mudança de compor-
alimentares não só se tornaram mais estáveis emocio- tamento torna-se automática e é integrada na nossa
nalmente, como também cada vez mais extrovertidas personalidade.
e abertas ao longo da intervenção. Estas alterações, até Após três meses, os investigadores descobriram que
meio desvio padrão, ainda estavam presentes um ano os participantes que queriam impulsionar a estabilidade
mais tarde. emocional, a extroversão ou a conscienciosidade, - que
Mudar de personalidade ao longo da vida ou em res- era a maioria do grupo - tinham sido bem sucedidos.
posta a um programa de tratamento compreende-se, Mudaram estes traços de personalidade entre um ter-
mas eu queria saber se poderia mudar de propósito. ço e metade de um desvio padrão. Isso é até metade da

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Nas últimas duas


décadas, estudos
psicológicos
mostraram que os
traços de perso-
nalidade mudam
ao longo das nos-
sas vidas.

30 SUPER
Se quiser traba-
lhar num aspeto
da sua personali-
dade, pode
acabar por mu-
dar de uma forma
que não espera-
va. É necessário
avaliar se se trata
de uma melhoria
para a sua saúde
e bem-estar.

SHUTTERSTOCK

Brent Roberts, psicólogo da Universidade de Illinois, está


espantado com o facto de as pessoas poderem mudar os seus
traços de personalidade de forma drástica e bastante rápida

mudança que uma pessoa média pode experimentar envolve uma nova forma de ver o mundo, pelo que faz
em toda a sua vida. «As pessoas podem mudar drasti- sentido que os próprios participantes a experimentem
camente muito rapidamente», diz Roberts. «Essa tem de forma mais viva.
sido a grande surpresa para nós». Mas este é apenas um estudo. E embora repita, em
O estudo incluiu auto-avaliação através de ques- grande parte, outros anteriores, mais pequenos, a histó-
tionários, o que é problemático porque nem sempre ria recente da psicologia ensinou-nos que não devemos
temos um conhecimento exato dos nossos sentimen- confiar em estudos vistosos que não tenham sido repli-
tos e comportamentos. Mas os investigadores também cados. A este respeito, Nathan Hudson, um psicólogo
recolheram avaliações de «observadores» - amigos e da Southern Methodist University no Texas, diz que o
familiares dos participantes. Estas avaliações também trabalho representa uma «boa réplica» da sua própria
revelaram uma mudança de personalidade, embora não investigação sobre estudantes universitários. Afirma
na mesma medida que os próprios participantes. que é ótimo ver que o efeito se mantém num grande e
genérico grupo de pessoas, e acrescenta que os relató-
E NÃO FOI APENAS UM EFEITO PLACEBO. Segundo Mathias rios dos observadores são um complemento valioso. No
Allemand, um psicólogo da Universidade de Zurique entanto, uma meta-análise em 2020 de doze dos seus
(Suíça) que conduziu o estudo, se tivesse sido um sim- próprios estudos anteriores sobre mudança de persona-
ples efeito placebo, seria improvável que as mudanças lidade volitiva em estudantes universitários encontrou
persistissem três meses após o fim da intervenção, efeitos ligeiramente menores. Outros investigadores
como aconteceu, diz ele. De facto, muitas pessoas con- também encontraram resultados semelhantes.
tinuaram a evoluir de acordo com os seus objetivos Agora era a minha vez de tentar. Tem de estar alta-
depois da experiência e do treino terem terminado. mente motivada, disse-me Allemand. «Não é fácil». É
Além disso, diz Allemand, a mudança de personalidade também uma boa ideia para qualquer pessoa que queira

SUPER 31
Se conseguirmos
não ser tão
vulneráveis aos
acontecimentos
da vida, podemos
diminuir a
probabilidade de
experimentar
várias formas de
psicopatologia.

SHUTTERSTOCK

“hackear” a sua personalidade, educar-se sobre os be- Para mim, o desafio era totalmente assustador e eu
nefícios das mudanças que está a tentar fazer. Pesquisei só tinha quatro semanas para mudar. Decidi fazer pelo
os benefícios de ser conscienciosa e descobri que exis- menos duas tarefas por dia, em vez de pelo menos uma
tem algumas evidências que sugerem que as pessoas por semana, como sugerido aos participantes no estu-
com níveis mais elevados de conscienciosidade tendem do de Hudson. Isto envolveu tarefas excruciantemente
a ser mais saudáveis, a viver mais tempo e a ter melho- aborrecidas, tais como organizar os ícones das aplica-
res resultados nos estudos e no mundo do trabalho do ções no meu telefone e preparar a roupa do dia seguinte
que as pessoas com níveis mais baixos. Estava motivada. na noite anterior. Também me habituei a rever cuidado-
samente os meus e-mails antes de os enviar. E não parei
QUANTO A COMO FAZER A MUDANÇA, PODE RESUMIR-SE MAIS por aí. Planeei praticamente todas as horas de cada dia
OU MENOS NA FRASE: «FINGIR ATÉ CONSEGUIR FAZER». Utili- no meu calendário online, com lembretes constan-
zei principalmente uma longa lista de tarefas publicada tes sobre a transcrição de entrevistas, ir ao ginásio ou
no apêndice de um artigo de Hudson e colegas de 2019, escrever quinhentas palavras. Fiz muitas limpezas pro-
escrito por ordem de dificuldade crescente. Se quiser fundas sem procrastinar, voluntariei-me para assumir
ser mais estável emocionalmente, por exemplo, tente a responsabilidade de fazer tarefas aborrecidas para os
encontrar detalhes positivos em situações negativas e, outros e bani o vinho nos dias de semana.
quando se sentir incomodado com alguém, passe dois Após quatro semanas, fiz novamente o mesmo teste
minutos a refletir sobre as suas boas qualidades (segu- de personalidade. A minha pontuação de conscienciosi-
ramente que as tem). dade tinha subido para mais de cinquenta e seis em cada

32 SUPER
«Tive algumas conversas com as pessoas que participaram
nas intervenções e elas disseram-me que isso não só mudou
as suas personalidades, mas também as suas vidas»

cem e a organização tinha subido de seis para vinte e tar. Os traços de personalidade podem ser ligados e
cinco. Alguns dos meus outros traços de personalida- sobrepor-se de diferentes maneiras em diferentes indi-
de também tinham mudado alguns pontos aqui e ali. A víduos, por isso, se tiver uma pontuação mais alta num
minha pontuação de abertura está intacta, mas pareço traço, como a extroversão, também tende a ter uma
ter-me tornado um pouco mais amável e emocional- pontuação mais alta noutro, como a abertura. Se quiser
mente estável. Isto pode estar relacionado com a minha trabalhar num aspeto da sua personalidade, pode aca-
mudança na conscienciosidade, mas é mais provável bar por mudar de uma forma que não esperava.
que se deva ao facto de os resultados dos testes de per- Por isso, antes de se lançar na criação de uma versão
sonalidade poderem flutuar um pouco de dia para dia, melhor de si próprio, vale provavelmente a pena con-
pelo que os cientistas medem-nos repetidamente em siderar o que significa alterar quem é, e o que poderia
experiências, o que dá uma imagem muito mais fiável constituir uma boa razão para embarcar numa mudança
do que o meu projeto de bricolage. de personalidade. Se pode melhorar a saúde e o bem-
-estar, parece suficientemente sensato, mas e se apenas
SERÁ QUE MUDEI REALMENTE A MINHA PERSONALIDADE OU SERÁ se sentir pressionado pelas normas sociais? Como diz
QUE ACABEI DE APRENDER UMA NOVA HABILIDADE? Coral Dan- Allemand, a maioria das pessoas não sofre da sua perso-
do, psicóloga da Universidade de Westminster no Reino nalidade, por isso há algo a dizer sobre a auto-aceitação.
Unido, diz que embora o estudo suíço tenha sido «bem
concebido» e com uma análise «afinada», levanta a QUE COISAS CONCRETAS PODEMOS FAZER PARA QUE A MUDANÇA
questão de saber se podemos realmente mudar a nossa ACONTEÇA. Por exemplo, para ser mais extrovertido . Os
personalidade desta forma ou se estamos apenas a alte- desafios simples neste caso incluem conversar com um
rar o nosso comportamento, e interpretá-lo como uma empregado de mesa, cumprimentar um caixa ou fazer
mudança mais fundamental do que é. Acrescenta que o um comentário positivo nas redes sociais sobre alguém
campo da investigação beneficiaria de uma maior repli- que se conhece ou não conhece. Os próximos passos
cação em diferentes amostras de população em diversas incluem convidar um amigo para um café, anotar as
culturas e contextos. perguntas que lhe pode fazer, ou assistir a uma reunião
Mesmo assumindo tudo isso, a ciência da mudança de social. Considere também falar com um amigo sobre um
personalidade levanta outras questões, nomeadamen- problema, entrar num clube, convidar um conhecido
te se seria desejável que todos nós decidíssemos o que para jantar ou organizar um passeio social.
queremos mudar. A investigação sugere que a grande Para ser emocionalmente estável, escreva diariamente
maioria das pessoas quer mudar algum aspeto da sua algo pelo qual esteja verdadeiramente grato, mantenha
personalidade. É fácil de ver os benefícios, especialmen- um diário da sua vida quotidiana. Faça exercício durante
te quando se trata de conscienciosidade e estabilidade pelo menos quinze minutos (e aumente-o progressi-
emocional. «Tive algumas conversas com pessoas que vamente ao longo do tempo) e marque trinta minutos
participaram nas intervenções e elas disseram-me que para uma atividade de que goste. Quando se sente preo-
isso não só mudou as suas personalidades, mas também cupado com algo, visualize o melhor resultado possível.
as suas vidas», diz Allemand, porque alterou a forma Doar dinheiro para caridade, ajudar um amigo, tentar
como viam o mundo e, muito provavelmente, a forma encontrar pontos positivos em experiências negativas
como os outros lhes respondiam. e, se se sentir magoado ou zangado, refletir sobre as cir-
Roberts concorda e diz que o foco deve ser a estabili- cunstâncias da situação.
dade emocional. De facto, de acordo com uma escola de Se procura tornar-se mais simpático, um bom começo
pensamento, programas de mudança de personalidade seria sorrir, fazer elogios, pagar o café a alguém e es-
poderiam ajudar a reduzir problemas de saúde mental. crever sobre as coisas agradáveis que fez pelos outros.
O neuroticismo, por exemplo, está ligado à ansiedade e Aderir a uma instituição de caridade, adotar o ponto de
à depressão. «Se conseguirmos tornar as pessoas menos vista de outras pessoas ou perdoar alguém que o tenha
vulneráveis aos acontecimentos da vida, o que é essen- prejudicado, também pode ser útil para se tornar mais
cialmente estabilidade emocional, isso pode ter efeitos amável. Para os mais ambiciosos, a formação em reso-
em cascata que diminuirão a probabilidade de experi- lução de conflitos poderia impulsionar ainda mais estes
mentar várias formas de psicopatologia», diz Roberts. esforços.
Mas de momento não sabemos se a mudança de perso- As tarefas simples para se tornar uma pessoa de mente
nalidade volitiva é permanente. mais aberta incluem ouvir um novo podcast, ir a uma
galeria de arte ou experimentar uma comida que nunca
TAMBÉM PODE HAVER UM LADO NEGRO. Por exemplo, as comeu antes. Pode também passar trinta minutos por
empresas podem pressionar o pessoal a seguir uma dia a ler um romance, a refletir sobre a bondade de uma
formação de mudança de personalidade contra a sua canção de que não gosta, a assistir a um debate e a tentar
vontade. Outra área obscura é como mudamos exata- compreender ambos os lados, ou a pedir a um amigo a
mente em resposta às intervenções, especialmente se sua opinião sobre um tema controverso e a tentar com-
não tivermos investigadores por perto para nos orien- preendê-lo. e

SUPER 33
DA RE M
T ÍOCGURLAOF I A

JÁ SOMOS
8000
MILHÕES
DE PESSOAS
IRÁ O PLANETA RESISTIR, E A ECONOMIA?
34 SUPER
O crescimento da po-

SHUTTERSTOCK
pulação está a absorver
algumas melhorias so-
cioeconómicas. As
megacidades surgem
atualmente ao mesmo
tempo que a qualidade
do ar e da água se está
a degradar.

Este crescimento exponencial produziu-se nos últimos dois


séculos. Calcula-se que ao longo da História tenham vivido no
mundo cerca de cento e seis mil milhões de pessoas. A população
atual representa cerca de 7% de toda a população que habita a
Terra desde sempre. Somos muitos e, estatisticamente, ocupamos
um lugar relevante na História da humanidade.

Texto de MANU MONTERO, Professor de História Contemporânea e ex-Reitor da UPV

SUPER 35
ALBUM

Entre a Idade Média e 1750, a


população cresceu a um ritmo
comedido, até triplicar. Nesse
ano, atingiu 750 milhões.

O
s indicadores de crescimento mundo. Embora este seja um número discutível devido
da população mundial calcu- à dificuldade de tal cálculo, serve como uma referência
lam a marcha demográfica. plausível: hoje em dia, a Terra é habitada por 7% de to-
De acordo com os country- da a população que alguma vez existiu. Somos muitos e
meters pode deduzir-se que ocupamos um lugar estatisticamente relevante na histó-
no próximo mês de julho a ria da humanidade.
humanidade atingirá oito mil
milhões de pessoas. Alguns A ACELERAÇÃO DO CRESCIMENTO POPULACIONAL COMEÇOU NA-
indicadores adiam o evento SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII. A população mundial
estatístico por alguns meses. atingiu mil milhões em 1830, como consequência das
Desde 1974, a população au- mudanças associadas ao progresso industrial e científi-
mentou em mil milhões a cada doze ou treze anos. Os co iniciado no século anterior. Nos cem anos seguintes, o
números absolutos sugerem um crescimento impa- número duplicou, para dois mil milhões em 1928. Dobrou
rável, mas escondem uma redução gradual das taxas. novamente em menos de cinquenta anos, quatro mil mi-
Aumentos semelhantes em intervalos de tempo se- lhões em 1975. A duplicação de quatro mil milhões para
melhantes estão a ocorrer em números cada vez mais oito mil milhões levou-nos um espaço de tempo seme-
elevados, a velocidade de crescimento está a abrandar. lhante, quase meio século.
Isto não retira importância ao descomunal crescimen- Estima-se que no início da era cristã a população era
to populacional no último século. A procura de recursos de cerca de duzentos e cinquenta milhões, após um
está a aumentar: atualmente, a necessidade de alimentos crescimento muito lento e irregular ao longo dos mi-
ou água é cinco vezes maior do que há um século atrás lhares de anos anteriores. O crescimento nos milénios
(na realidade, a desproporção é maior devido ao aumen- anteriores foi comparativamente lento - duplicou em
to do consumo per capita), uma vez que é isso que tem dois mil anos - mas a população espalhou-se por todo
aumentado a população.. o mundo, incluindo regiões inóspitas e locais aparen-
Este crescimento exponencial é relativamente recente, temente difíceis para sobreviver.
tendo ocorrido nos últimos dois séculos, um curto espaço Entre a Idade Média e 1750 - quando as primeiras
de tempo nos milénios transcorridos desde o surgimento mudanças no comportamento demográfico estavam a
da espécie humana. Ao longo da história, estima-se que tornar-se aparentes - a população cresceu a um ritmo
cento e seis mil milhões de pessoas tenham vivido no comedido, triplicando para 750 milhões em 1750. A de-

36 SUPER
GETTY
O modelo demográfico do
Ancien Régime persistiu até
ao final do século xvii e em
mografia tradicional caracterizava-se por elevadas taxas de
muitos países europeus até
natalidade e mortalidade e pela incidência de mortalidade ao século xix.
catastrófica, com epidemias e fomes periódicas. A fertilida-
de era muito elevada e a esperança de vida muito baixa.

O DESENVOLVIMENTO POPULACIONAL FOI ESTREITAMENTE CON-


DICIONADO PELOS RECURSOS. A escassez podia aumentar as
taxas de mortalidade, que eram sempre muito elevadas,
e podia levar a crises demográficas. O crescimento na-
tural da população foi muito lento (0,6%), com crises
periódicas. Dependia também da produção agrícola,
cuja capacidade de crescimento tinha limites que não
podiam ser ultrapassados; era uma época de fertilizantes
escassos. Os desequilíbrios sucessivos provocavam pe-
riodicamente crises de subsistência. Era uma sociedade
fundamentalmente agrária, com taxas de nascimento e
mortalidade entre 30% e 40% e mortalidade infantil en-
tre 20% e 30%. Ao longo da Idade Moderna, a população
europeia cresceu, mas sem quebrar o ciclo da demografia
tradicional, com crises de subsistência que faziam retro-
ceder a população.
Na segunda metade do século XVIII, o regime demo-
gráfico começou a mudar em Inglaterra. A chave foram
os melhoramentos médicos e higiénicos, que mitiga-
vam os efeitos da fome e reduziam a mortalidade. A
revolução agrária melhorou a nutrição da população.
Começou um novo ciclo demográfico de crescimento
contínuo. A isto chama-se «transição demográfica»,

A procura de recursos está a aumentar: hoje, a necessidade de alimentos


ou água potável é cinco vezes maior do que era há um século atrás

Existe um limite para o crescimento?


A população mundial tem vindo a crescer rapidamente, mas não irá crescer ilimitadamente. À medida que a transição de-
mográfica avança, a taxa de crescimento em diferentes áreas do mundo está a abrandar. Atingiu o seu auge há meio
século, por volta de 1968, com 2,1%. Atualmente, é pouco mais de 1% por ano e está a abrandar. Nos países mais avança-
dos, o crescimento já parou e, devido à queda da fertilidade, não está assegurada a substituição geracional. O seu eventual
crescimento e mesmo a manutenção da população só
será possível através da imigração. EEA (EUROPEAN ENVIRONMENT AGENCY

Em muitas áreas do terceiro mundo, especialmente em


África, o crescimento rápido continua, mas o compor-
tamento demográfico será provavelmente semelhante Ásia América Latina e Caraíbas
ao das sociedades que já completaram a transição África América do Norte
demográfica:com as taxas de mortalidade a diminuir,
Europa
a taxa de natalidade também diminuirá, um processo
que está bem avançado na Ásia e na América Lati-
milhares
na e que já começou em África. É provável que seja
de
concluído à medida do processo de urbanização. A milhões
transferência da população rural para as cidades é um
dos principais processos atuais. milhares de milhões

Segundo as projeções da ONU, até ao final deste sé-


culo o crescimento da população mundial terá caído
Percentagens calculadas de
para 0,1% por ano. Antes disso, por volta de 2060, a milhares de acordo com a projeção da
população começará a estabilizar em cerca de onze milhões variante de fertilidade média
da ONU.
mil milhões, talvez menos. Até 2100, oito em cada dez
milhares de milhões
pessoas viverão na Ásia ou em África.

SUPER 37
GETTY

No século XVIII, começou um novo ciclo


demográfico de crescimento contínuo
chamado «transição demográfica».

um termo que substituiu «revolução demográfica»,


uma vez que se refere a um processo que não é abrupto,
mas que se estende ao longo do tempo e tem diferentes
fases. Começou na Europa Ocidental.

A TRANSIÇÃO DEMOGRÁFICA EXPLICA O BOOM EXPERIENCIADO


PELA POPULAÇÃO durante o período contemporâneo e as
razões para o crescimento atual, bem como proporciona
um vislumbre do futuro demográfico da Humanidade.
Com a Revolução Industrial, a disseminação de má-
quinas mais eficientes e o melhoramento agrícola, as
capacidades de produção aumentaram drasticamente,
quebrando o limite tradicional do crescimento humano.
O aumento da população foi influenciado por vários
fatores. Em primeiro lugar, o aumento dos recursos
alimentares. Um fator decisivo foi também um melhor
conhecimento científico sobre a propagação de doenças.
A mortalidade catastrófica foi consideravelmente redu-
zida (embora tenha havido algumas epidemias de cólera
e gripe). A partir do final do século XIX, a mortalidade
infantil diminuiu e a esperança de vida melhorou consi-
deravelmente. Para além de melhorias na higiene, houve
o conhecimento cumulativo de como os micróbios são
transmitidos, especialmente após as descobertas de Pas-
teur e o desenvolvimento de vacinas.
No final do século XIX, a mortalidade infantil Na transição demográfica, após a redução da morta-
diminuiu e a esperança de vida melhorou.
Especialmente após as descobertas de Pasteur
lidade, as taxas de natalidade diminuíram através do
e o desenvolvimento de vacinas. controlo voluntário da natalidade. Várias circunstân-
cias influenciam este processo: a sobrevivência de mais
ASC

38 SUPER
A Europa foi a primeira a
experimentar o efeito da
transição demográfica,
que levou à emigração
para outros continentes.

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crianças por família, a perceção de custos mais elevados para os Estados Unidos, Canadá, Brasil, Argentina e
por criança à medida que a sociedade industrial atrasa Austrália, onde surgiram novas sociedades de coloni-
o acesso ao trabalho. Em geral, a queda na taxa de na- zação europeia.
talidade está associada ao desenvolvimento urbano, No final do século XIX, a taxa de natalidade começou a
embora, em todos os casos, fatores educacionais e cultu- diminuir nos países ocidentais, e o crescimento popula-
rais tenham desempenhado um papel. cional abrandou gradualmente. No entanto, a transição
O intervalo de tempo entre a queda das taxas de demográfica continuou, envolvendo outros continen-
mortalidade e de natalidade supõe um boom demo- tes. Em meados do séculoXX, afetou populações na Ásia,
gráfico, por vezes durando muitas décadas. A Europa América Latina e África, com transferências de tecnologias
foi a primeira região a experimentar o efeito da tran- médicas, novos medicamentos, tais como sulfonamidas e
sição demográfica. Entre 1800 e 1914, cresceu de 188 antibióticos, vacinas e o uso de pesticidas no campo.
milhões para 480 milhões, a uma taxa anual superior A mortalidade declinou muito rapidamente, mais
a 2%; gerou também uma emigração em grande es- do que na Europa durante o século anterior. Tal como
cala para outros continentes. Cerca de 60 milhões na Europa, a taxa de natalidade diminuiu, mas muito
de europeus partiram antes de 1914, principalmente lentamente. Em alguns países asiáticos, o fenómeno só

Com o advento da Revolução Industrial, as capacidades de


produção no mundo aumentaram drasticamente, quebrando o
limite tradicional do crescimento humano
SUPER 39
SHUTTERSTOCK

A Ásia tornou-se a região


com maior demografia, onde
vive mais de 60 por cento da
população.

Em 1950, a América Latina tinha


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uma população ligeiramente


maior do que os Estados Unidos,
mas hoje é duas vezes maior
POPULAÇÃO MUNDIAL
POPULAÇÃO POR CONTINENTE DESENVOLVIMENTO
Estimativa para 2050:
Ásia
da população
mundial viverá em ci- começou nos anos 70. No México e noutros países da
A população África dades.
mundial atual é
Hoje América Latina ,chegou no final do séculoXX. Em Áfri-
de oito mil América ca, tem avançado lentamente a partir dos países do sul
A DE
LID do continente.
milhões de
Europa TI Em 1950
habitantes.
R

O fosso entre a queda da mortalidade e as taxas de


FE

Taxa de crescimento
Oceânia natalidade no terceiro mundo significa que a grande ex-
crianças/mulheres pansão demográfica, que tinha começado no Ocidente,
CRESCIMENTO DA POPULAÇÃO MUNDIAL ESPERANÇA MÉDIA DE VIDA continuou. Assim, a população mundial cresceu de cinco
9 biliões
Mais do dobro nos últimos 100 anos mil milhões em 1990 para os atuais oito mil milhões. En-
8 biliões
7 biliões
6 biliões TO DIAR
IO tre os efeitos mais marcantes está a emergência de países
AUMEpNoblación
com populações enormes, com destaque para a China e
5 biliões anos
4 biliões de lamundial
3 biliões
2 biliões
1 biliões
anos
a Índia, com mais de 1,4 mil milhões; este último será o
anos
país com a maior população até 2027. Em 1950, a Améri-
Um bilião = 1000 milhões = 1 bilião
ca Latina tinha uma população ligeiramente maior do que
TAXA DE NASCIMENTO TAXA DE MORTALIDADE IDADE MÉDIA os Estados Unidos (168 milhões em comparação com 152
milhões). Atualmente, é duas vezes maior (648 milhões
contra 330 milhões), embora a população dos EUA tenha
crescido devido à imigração, especialmente de latinos. A
África Subsariana em 1950, na véspera da descolonização,
tinha uma população de cerca de 200 milhões, 8% do total
mundial; atualmente é superior a 1,1 mil milhões, mantém

40 SUPER
a taxa de crescimento mais rápida e estima-se que atinja
2,5 mil milhões em 2050, 25% da humanidade. Coloca o
problema muito sério de conseguir um crescimento se-
Problemas
melhante na produção. O crescimento da população está a
absorver alguns ganhos socioeconómicos. Por exemplo, a
demográficos
população em extrema pobreza caiu entre 1990 e 2008 de
57% para 41%. No entanto, a população afetada aumentou
atuais
de 288 milhões para 413 milhões como resultado do cres-
cimento populacional. A evolução demográfica deste século trouxe consigo novos
e diversos problemas: nos países do terceiro mundo, a ma-
nutenção de taxas de crescimento elevadas coloca o desafio
AO CHEGAR A OITO MIL MILHÕES, OS DIFERENTES RITMOS DE de alcançar um crescimento económico que evite que situa-
CRESCIMENTO ALTERAM A IMAGEM DEMOGRÁFICA DO MUNDO. A ções de extrema pobreza se tornem crónicas ou se agravem.
parte da Europa na população mundial foi significativa- A disparidade de comportamentos demográficos provoca uma
mente reduzida (de 24% para 6% entre 1900 e 2020), a tensão migratória, que se tornará progressivamente maior devi-
dos Estados Unidos está a diminuir e a da América Latina do às diferenças nos padrões de vida. A necessidade de países
e, sobretudo, a de África está a aumentar. A Ásia tor- avançados receberem migrantes é combinada com restrições
nou-se a área com a maior demografia, onde vive mais à mobilidade, devido à impossibilidade de uma abertura geral
de 60% da população. Para além da China e da Índia, das fronteiras e a reticências políticas ou culturais. Por sua vez,
Bangladesh, Paquistão e Indonésia têm grandes con- a partida de pessoal qualificado leva à descapitalização dos
centrações. Todos os cinco estão entre os dez países com países subdesenvolvidos.
maior população. Os Estados Unidos, Brasil, Nigéria, Os países avançados têm uma população cada vez mais en-
Rússia e México fazem parte deste grupo. A Alemanha, velhecida, grandes proporções de idosos e proporções muito
o primeiro país da Europa Ocidental, ocupa a vigésima baixas de jovens, com os consequentes problemas associados
primeira posição. Em 1950, quatro países europeus esta- à manutenção do estado social - onde ele existe - ou, num ou-
vam entre os dez primeiros, juntamente com os Estados tro sentido, com a inevitável perda de criatividade.
Unidos e o Japão. O declínio demográfico ocidental tem Em 2050, dois terços da população mundial viverão pro-
consequências geopolíticas e implica uma clara mudança vavelmente em zonas urbanas. Em 1950, era de 30%, uma
do centro de gravidade do mundo para o Pacífico, após percentagem excedida nos países mais desenvolvidos. Me-
séculos de centralização na Europa e no Atlântico. O gacidades estão agora a emergir e, ao mesmo tempo, a
boom demográfico de África, entretanto, irá gerar no- degradação da qualidade do ar e da água está a ocorrer. Con-
vos pólos de atenção impossíveis de imaginar na posição centrações de populações empobrecidas e marginalizadas
acessória que ocupa atualmente. e estão a emergir nas grandes cidades dos países em desenvol-
vimento e dos países de acolhimento de migrantes.
GETTY

O declínio demográfico ocidental


significa que a centralidade do mundo
está a deslocar-se para o Pacífico.

SUPER 41
E N E R G I A ALTERNATIVA

AGRO
A biomassa
desempenha um
papel fundamental
na melhoria da
gestão florestal e no
desenvolvimento
socioeconómico
das zonas rurais.

42 SUPER
ENERGIA
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SUPER 43
O apoio à utilização de
energia térmica produ-
zida a partir de
biomassa evitaria a
queima de resíduos de
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poda, ajudando assim a


prevenir incêndios.

Os cavacos de madeira, os caroços de oliveira, as queimada foi previamente capturado por organismos
biológicos», explica De Gregorio. Como a especialista
plantas aquáticas ou os vegetais estragados podem comenta, a bioenergia é muito versátil, uma vez que
pode ser utilizada para desenvolver biocombustíveis lí-
ser utilizados como fonte de energia. Estamos a falar quidos, que são atualmente misturados com a gasolina e
o gasóleo que abastecemos nas estações de serviço, co-
de agroenergia, um setor em constante inovação que mo combustível numa central térmica e como biomassa
térmica para aquecimento e água quente.
contribui para a luta contra os gases com efeito de Este setor inclui a biomassa, o biogás, os biocombustí-
veis e a energia agro-fotovoltaica. No caso da biomassa,
estufa e melhora a gestão florestal. Os agricultores tal como relatado pelo Instituto para la Diversificación
y Ahorro de la Energía (IDAE), os combustíveis mais
pedem mais ajuda e apoio para estas tecnologias que utilizados são lenha, aparas de madeira, pellets, caroço
de azeitona e casca de fruta. As suas aplicações concen-
estão tão intimamente ligadas ao mundo rural. tram-se em caldeiras, fogões e lareiras.
Como podemos ver, esta tecnologia engloba desde
os resíduos das atividades florestais, agrícolas e pe-
Texto de LAURA CHAPARRO cuárias até à parte orgânica dos resíduos domésticos

E
e industriais, incluindo os subprodutos das indústrias
agroalimentares e de transformação de madeira.
mbora o conceito de agroe- A origem da energia pode ser animal ou vegetal e pode
nergia ou bioenergia possa ser obtida naturalmente ou a partir de transformações
parecer-nos bastante recen- artificiais realizadas em centrais de biomassa.
te, a verdade é que data de há
mais de um milhão de anos. O POTENCIAL DA BIOMASSA. De acordo com o IDAE, para
Tantos como a origem do fogo além de fornecer um combustível renovável e neutro
descoberto pelos nossos an- em termos de CO2, a biomassa desempenha um papel
tepassados. «A biomassa foi fundamental na melhoria da gestão das florestas e no
uma das primeiras energias desenvolvimento socioeconómico das zonas rurais.
utilizadas pela humanidade, Javier Alejandre, membro do Gabinete Técnico da
sob a forma de fogo, e ain- Unión de Pequeños Agricultores y Ganaderos (UPA),
da hoje é uma das principais fontes de energia a nível partilha esta avaliação e aponta a biomassa, tanto
mundial», recorda Margarita de Gregorio, diretora da agrícola como florestal, como um grande trunfo da
espanhola APPA (Associação das Empresas de Energias agroenergia. «Precisamos de um verdadeiro plano
Renováveis) Biomassa. para apoiar a utilização da energia térmica produ-
A bioenergia engloba uma vasta gama de tecnologias, zida com biomassa, porque isto evitará a queima de
cujo denominador comum é a utilização de matéria resíduos de poda e ajudará a prevenir incêndios. No
orgânica como fonte de energia. «É considerada ener- contexto da luta contra as alterações climáticas, pare-
gia renovável porque o CO2 que é emitido quando é ce necessário apoiar estas vias», sublinha. Se olharmos

44 SUPER
Plantas aquáticas para gerar bioetanol
A

SHUTTERSTOCK
s plantas aquáticas são utilizadas Este componente pode ser convertido
para produzir energia. O projeto em bioetanol, uma vez que tem um ele-
europeu LIFE Biomassa C - envol- vado teor de amido. Os investigadores
vendo universidades, centros de estimam que a produção de biomassa
investigação, empresas agrícolas e a partir desta vegetação conduzirá a
energéticas e comunidades de irriga- uma redução de cerca de 250 tonela-
ção em Espanha e na Grécia - está a das de CO2.
investigar a utilização de uma tecnolo- Em paralelo, os cientistas também
gia verde, filtros verdes flutuantes, para querem demonstrar a eficácia des-
cultivar plantas aquáticas conhecidas tas plantas aquáticas na melhoria da
como eneas (Typha domingensis) em qualidade da água, tanto em termos
canais de irrigação, lagoas, lagos ou biológicos, reduzindo a proliferação
ramos de rios. Estas plantas geram de algas, como em termos físico-quí-
biomassa de origem aquática que não micos, com uma redução da presença
compete com as terras agrícolas. de poluentes.

para os dados apresentados pela APPA Renovables no com hidrogénio. Estas substâncias são principalmente
relatório Aportación de la biomasa de nueva genera- utilizadas no transporte rodoviário, mas são cada vez
ción al sistema elétrico en el contexto de la transición mais utilizadas no setor da aviação, onde é utilizado o
energética, no período 2014-19 esta tecnologia gerou termo «bioquerosene».
um total de 5,3 TWh (terawatt/hora) de eletricidade Em 2019, a sua utilização para transportes na União
em Espanha, o que representa 5% da geração renová- Europeia cresceu 6,8% em comparação com o ano an-
vel nesse intervalo de tempo. terior e atingiu 17,8 milhões de toneladas de equivalente
de petróleo, como refletido no barómetro de biocom-
«O FORNECIMENTO TRADICIONAL DE BIOMASSA CORRESPON- bustíveis do consórcio EurObserv’ER. Com o objetivo
DE A 7,5% DO CONSUMO ENERGÉTICO MUNDIAL SEGUNDO A
REN21, um grupo de reflexão especializado neste se-
tor», diz De Gregorio. «A nível europeu, a Espanha é o

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terceiro país em termos de recursos de biomassa, mas
BIOMASSA E PIRÂMIDES DE FLUXO DE ENERGIA
está longe da utilização de outros países», salienta.
Se os objetivos estabelecidos no Plano Nacional In-
tegrado de Energia e Clima (PNIEC) 2021-30 fossem FLUXO DE NÍVEL TRÓFICO
atingidos, a biomassa geraria cerca de 10.050 GWh (gi- ENERGIA
gawatt/hora) de eletricidade por ano, o que pouparia ao
Fluxo de energia Biomassa
sistema elétrico espanhol e aos cofres estatais três mil (Calorias/m2/dia) (Gramas/m2)
e seiscentos milhões de euros por ano, como estimado
pela APPA Renováveis.

BIOCOMBUSTÍVEIS CONTRA O EFEITO DE ESTUFA. Outro exem- Prado


plo de agroenergia são os biocombustíveis, ou seja,
combustíveis líquidos ou gasosos produzidos a partir de
biomassa que são utilizados em todos os tipos de trans-
porte. Os principais biocombustíveis de acordo com o
seu desenvolvimento comercial são o bioetanol - álcool
etílico produzido a partir de produtos agrícolas ou vege-
tais -, biodiesel - gerado a partir de gorduras vegetais ou
animais - e o hidrobiodiesel - um hidrocarboneto pro-
duzido a partir de óleos vegetais ou gorduras animais Floresta

«A biomassa foi uma das


primeiras fontes de energia
utilizadas pela humanidade
e ainda hoje é uma das Mar aberto

principais fontes de energia


a nível mundial»
SUPER 45
de promover a utilização de energia limpa e reduzir a de obrigatórios - como a Diretiva 2018/2001 sobre a
pegada de carbono, o governo aprovou um Decreto que promoção da utilização de energia de fontes renová-
regulamenta os objetivos de venda ou consumo de bio- veis - e requisitos de redução de gases com efeito de
combustíveis para os anos 2021 e 2022. estufa», diz María Dolores Curt, investigadora sénior
do grupo agroenergético da Universidade Politécnica
O REGULAMENTO REQUERE QUE AS VENDAS SEJAM 9,5% DO de Madrid.
TOTAL DE COMBUSTÍVEIS CONSUMIDOS EM ESPANHA DESTE Embora não tão amplamente utilizado como outros
ANO, e 10% no próximo ano. O objetivo, em confor- biocombustíveis, o biogás é também um exemplo de
midade com o PNIEC, é atingir uma quota mínima agroenergia. É composto principalmente de metano
de energias renováveis nos transportes de 28% até e dióxido de carbono em diferentes proporções, de-
2030 e reduzir as emissões de gases com efeito de es- pendendo da composição da matéria orgânica da qual
tufa, que estão normalmente associadas a este setor. é gerado.
Tanto os biocombustíveis como a bioenergia, no seu As principais fontes são os resíduos animais e agro-in-
sentido mais amplo, são altamente regulamentados. dustriais, as lamas das estações de tratamento de águas
«As matérias-primas bioenergéticas são na prática residuais urbanas e a parte orgânica dos resíduos domés-
o único setor com regulamentos de sustentabilida- ticos. O biogás é a única energia renovável que pode ser
SHUTTERSTOCK

A segunda vida das


cenouras «demasiado
maduras»
T oneladas de cenouras são descartadas todos os anos por
serem demasiado grandes, demasiado pequenas, , com
cortes, ou em mau estado. Há quase uma década, cientistas es-
panhóis e argentinos descobriram o potencial destes resíduos
para produzir bioetanol, pelo que uma fábrica piloto no país lati-
no-americano - na província de Santa Fé - tem vindo a trabalhar
com este vegetal desde 2018.
A obtenção de bioetanol por fermentação, com diferentes subs-
tratos orgânicos, é um método amplamente utilizado e é o que
tem sido utilizado com cenouras descartadas. Como os investi-
gadores descreveram, qualquer produto que contenha hidratos
de carbono pode ser convertido em etanol por este método,
como é o caso das cenouras, que contêm entre 8% e 10% de
açúcares simples e 1% de amido.
Para além de produzir bioetanol, a pasta resultante do processo
tem várias aplicações. Uma delas é como alimentação animal.
Outro uso é a extração de carotenos, os compostos que lhe dão
a sua cor laranja característica e que são amplamente utilizados
na indústria farmacêutica e alimentar. Finalmente, a extração de fi-
bras do vegetal pode ser utilizada para a alimentação humana.

46 SUPER
utilizada para qualquer uma das principais aplicações geração pode ser combinada com a utilização agríco-
energéticas: eletricidade, calor ou combustível. la», explica Alejandre.
Para produzir este gás a partir de matéria orgânica,
são necessários reatores fechados nos quais os proces- COMO REFERE DOCUMENTO AGROVOLTAICA: SOMANDO AGRICUL-
sos de decomposição biológica têm lugar na ausência TURA E ENERGIA SOLAR, elaborado pela Plataforma para um
de oxigénio. Ao contrário de outros biocombustíveis, Novo Modelo Energético, o objetivo é que a instalação
a utilização desta fonte de energia na União Europeia não dificulte o trabalho agrícola e que ocupe o mínimo
cresceu apenas 0,7% em 2019 em comparação com o de terreno possível, assegurando que a luz suficiente
ano anterior, de acordo com EurObserv’ER. chegue tanto aos painéis como às plantas.
Segundo o relatório, no contexto das alterações cli-
PAINÉIS SOLARES EM TERRENOS AGRÍCOLAS, OUTRA TECNO- máticas, a agrovoltaica tem uma dupla função: por um
LOGIA INOVADORA QUE COMBINA A PARTE AGRÍCOLA com lado, combate as alterações climáticas gerando eletrici-
a energia fotovoltaica, que é obtida a partir do sol: dade a partir de uma fonte de energia renovável e, por
agro-fotovoltaica ou agrovoltaica. «É um novo con- outro lado, pode reduzir os efeitos negativos nas cul-
ceito que se refere à geração de eletricidade a partir de turas, uma vez que os painéis as protegem do excesso
painéis solares, mas em terrenos agrícolas onde esta de sol ou granizo. Andrea Colantoni, investigadora do

SHUTTERSTOCK
A agrovoltaica tem uma dupla função:
combate as alterações climáticas geran-
do eletricidade a partir de energias
renováveis, e protege as culturas contra
o excesso de sol ou granizo.
A Espanha é o principal produtor mundial de azeite, e a
bioenergia poderia ser promovida com subprodutos
gerados a partir da poda ou chorume destas culturas.

SHUTTERSTOCK

Departamento de Ciências Agrárias e Florestais da Uni-


versidade de Tuscia, salienta que esta tecnologia é mais Os agricultores declaram-se
fácil de implementar do que outras e que «é melhor
para os agricultores porque melhora o rendimento sem «totalmente empenhados»,
perder a cultura».
tanto em termos do seu
CONCORRÊNCIA COM CULTURAS PARA CONSUMO HUMANO.
Uma das questões em cima da mesa quando se fala de
agroenergia é se estas fontes podem reduzir a área de
próprio autoconsumo como
superfície cultivável para consumo humano. Colantoni
garante-nos que a agrovoltaica é a que menos perdas
de uma perspetiva de
causa a este tipo.
«Em Espanha há muitos recursos vegetais e animais economia circular
que são insuficientemente explorados e há muita terra
que pode ser utilizada para produzir biomassa que pode
gerar desde biocombustíveis a energia térmica», pro- corram com a produção de alimentos para humanos
põe Alejandre. e animais», diz ele.
No caso da biomassa ser desenvolvida a nível nacio-
OS ANUÁRIOS AGRÍCOLAS DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, PES- nal, a APPA Renováveis afirma que não existe conflito,
CAS E ALIMENTOS mostram que em Espanha existe uma uma vez que não compete com áreas que podem ser
grande parte de terras não cultivadas. Se acrescentar- cultivadas para consumo humano. De Gregorio salienta
mos terras de cultivo, pastagens, florestas - arbustivas que as culturas alimentares e energéticas são diferentes
e de mato - e outras áreas, vemos que as terras em pou- e, no caso das plantas de biomassa, utilizam subprodu-
sio e os terrenos baldios representaram pouco mais de tos e resíduos de outras indústrias para obterem o seu
10% em 2018, mais de cinco milhões de hectares, o que recurso energético.
é uma proporção semelhante à do ano anterior. «Somos o maior produtor mundial de azeite, com
«Esta terra poderia talvez ser utilizada em parte pa- o maior efetivo suíno da Europa, uma grande área
ra a produção de biomassa para bioenergia, mesmo que florestal que precisa de ser desbravada... Todas estas in-
apenas marginalmente», diz Curt. A cientista salienta dústrias geram subprodutos que, por si só, são mais do
que a disponibilidade de terras para produzir biomas- que suficientes para impulsionar a bioenergia para além
sa para bioenergia também depende de muitos outros dos objetivos que estabelecemos para o ano 2030», afir-
fatores, tais como o despovoamento, o abandono da ma a perita.
atividade agrícola, a marginalidade da produção tradi- Neste caminho, os pequenos e médios agriculto-
cional, a baixa rentabilidade e poucos incentivos. res declaram estar «totalmente empenhados», tanto
Do ponto de vista dos pequenos agricultores, em termos do seu próprio autoconsumo como de uma
Alejandre acredita que os fundos europeus de re- perspetiva de economia circular. «Vemos o apoio à
cuperação para aliviar os danos económicos da agroenergia como uma abordagem integral intimamen-
pandemia da Covid-19 poderiam ser utilizados para te ligada ao território. Trata-se de fazer uma utilização
desenvolver todo o setor das energias renováveis e, sustentável de todos os recursos à nossa disposição e de
em particular, da agroenergia. «O objetivo é apoiar trabalhar para reduzir as emissões de gases com efeito
a implementação de plantas e projetos que não con- de estufa», conclui Alejandre.e

48 SUPER
ENTREVISTA

João NUNO
TAVARES
«É muito importante
desenvolver os aspetos
éticos ligados ao enorme
progresso científico e
tecnológico a que
assistimos»
Formou-se em Engenharia Mecânica na Faculdade de Engenharia
e em Matemática Pura na Faculdade de Ciências da Universidade
do Porto. É membro do Centro de Matemática da Universidade
do Porto e professor associado no Departamento de Matemática
« A Casa das Ciências da Faculdade de Ciências daquela universidade. Doutorou-se
tem como principal
missão reunir e construir em Física Matemática no Instituto Superior Técnico, em métodos
recursos educativos
digitais que, depois de matemáticos em quantização loop da relatividade. Atualmente
avaliados e validados
cientifica e dedica-se a modelação matemática em biologia molecular e
pedagogicamente, são
livremente
disponibilizados...»
terapias de cancro.

Entrevista de ELSA REGADAS

SUPER 49
J
oão Nuno Tavares é tam- principais passos foram dados no sentido da evolução
bém Diretor da Casa das do ensino dessas disciplinas?
Ciências, um projeto A evolução do conhecimento científico nos últimos anos
académico que se traduz tem sido vertiginosa. Obviamente que isso se refletiu no
num portal de base co- ensino das Ciências Experimentais que hoje conta com
laborativa que recolhe, recursos a nível de tecnologias de experimentação, de
valida, divulga e dispo- observação de fenómenos a escalas inimagináveis, capa-
nibiliza recursos digitais cidade de cálculo com uma quantidade enorme de dados,
de apoio aos professores modelação em laboratórios virtuais, e muitas outras coi-
no ensino da matemática sas, impensáveis ainda há poucas dezenas de anos.
e das ciências em vários
níveis de ensino. É generalizada a ideia de que o ensino das ciências em
À SI falou não apenas Portugal continua a ir pouco mais além da mera trans-
acerca deste projeto impulsionador e do seu inquestio- missão de conhecimentos teóricos aos alunos e que
nável contributo no ensino das ciências em Portugal, estes tendem ainda a ser agentes mais passivos que ati-
mas também da sua visão relativamente à forma como vos no processo de aprendizagem. Por favor, comente.
tem vindo a ser legado o compromisso das novas gera- A transmissão de conhecimentos continua a ser, na mi-
ções para com a Ciência. nha opinião, a componente principal do ensino. Isso
não implica atitude passiva. Tudo depende das meto-
Formou-se em Engenharia Mecânica na Faculdade de dologias adotadas. O equívoco tem sido acreditar que
Engenharia e em Matemática Pura na Faculdade de chavões como o “ensino pela descoberta”, “aprender
Ciências. Que força o conduziu da engenharia para as a aprender”, discussões completamente estéreis sobre
ciências, designadamente para a Matemática, e de que avaliação, competências, capacidades, conhecimento,
forma se complementam? com que se entretêm os chamados cientistas da edu-
No início, foi apenas uma questão de pragmatismo, cação, levam a uma maior eficácia das aprendizagens,
já que comecei a lecionar matemática para cursos de quando o seu resultado prático tem sido uma escola ca-
engenharia, o que me criou uma forte necessidade de da vez mais frágil, mais burocratizada, mais confusa e
aprofundar os meus conhecimentos matemáticos. mais desprestigiada no seu papel crucial de formação
Da engenharia trouxe o sentido prático que orientou de cidadãos lúcidos e cultos. Quem sofre são sempre os
a minha visão da matemática como um instrumento professores e alunos e, em última instância, a sociedade
poderosíssimo de interpretação da realidade física, bio- em geral.
lógica, social e outras.
A Casa das Ciências, tem sido precursora de múltiplas
Foi em 1910, com a instauração da República, que o iniciativas junto da comunidade escolar. Fale-nos um
ensino das Ciências Experimentais despertou Portugal pouco da sua missão e dos seus projetos mais relevantes.
para uma nova atitude pedagógica. Em 112 anos, que A Casa das Ciências (CdC) tem como principal missão

Esta plataforma disponibiliza também um Banco de


Imagens, organizado pelas diversas áreas da Ciência,
para utilizar em ambiente educativo.

50 SUPER
A CASA DAS CIÊNCIAS é um portal de base colaborativa, especialmente criado a pensar
na classe docente que leciona na área das ciências nos diferentes níveis do ensino básico
ao secundário.
Com o objetivo de tornar as aulas ainda mais ricas e aliciantes, o portal coloca à disposição
diversos materiais educativos de apoio em áreas como introdução às Ciências, Biologia,
Geologia, Matemática e Estatística, Física, Química, Informática e Ciências da Computa-
ção.
Entre outras funcionalidades, esta plataforma integra mais de 2000 recursos educativos,
um Banco de Imagens nas diversas áreas e uma enciclopédia digital.
Trimestralmente, a Casa das Ciências publica a Revista de Ciência Elementar, disponível
em suporte digital e em suporte impresso e, anualmente, promove para a comunidade
educativa os grandes encontros anuais e os Encontros Temáticos, focados no Ensino das
Ciências e na Intervenção Social da Ciência. Estes encontros envolvem cerca de 16 a 25 ho-
ras de formação específica, acreditadas pelo Conselho Científico-Pedagógico da Formação
Contínua.
O Encontro Internacional Anual é orientado para a formação dos professores nas áreas
científicas de matemática, física, química, biologia, geologia, tecnologias de informação e
comunicação e ciência elementar (especialmente, para o ensino básico).
Conheça melhor a Casa das Ciências em https://www.casadasciencias.org

reunir e construir recursos educativos digitais que, Que outros projetos estão a ser desenvolvidos e que a
depois de avaliados e validados cientifica e pedago- Casa das Ciências pretende lançar em breve?
gicamente, são livremente disponibilizados, através Estamos a desenvolver uma linha editorial com livros de
do portal, a toda a comunidade escolar nacional e de apoio ao professor de ensino básico e secundário, e ou-
países de expressão lusófona. Promove ainda encon- tra intitulada “Ciência para todos” dedicada a temas de
tros de professores onde, para além da componente Ciência atual acessíveis a um público alargado.
de formação, se discutem temas atuais, tais como, Vamos ainda estender os projetos “Experimenta Ciên-
energia, sustentabilidade, alterações climáticas, e cia”, “Experimenta Estatística e Probabilidade” e ainda
outros, e como a ciência poderá ajudar a resolvê-los. “Pensamento Computacional”, para todo o ensino bá-
Publica ainda uma Revista de Ciência Elementar, on- sico e secundário.
de apresenta trimestralmente uma multiplicidade de
temas atuais e de grande interesse para a comunidade
escolar.

É um facto que aprendizagem da ciência na mais ten-


ra idade é de crucial importância. O seu estudo não ENTRE AS EDIÇÕES DA CASA
só permite explorar experiências capazes de apelar a DAS CIÊNCIAS destacamos os
novas competências, como desenvolver a curiosida- livros:
de pelo mundo, conhecimentos e outras capacidades ExperimentaCiências - Livro
fundamentais a nível cognitivo, motor, afetivo e de apoio aos professores do
social. Foi com esse propósito que nasceu o “Experi- 1.º ciclo do ensino das escolas
menta Ciência”? de expressão lusófona. Contém
Exatamente com esse propósito. 17 atividades experimentais
para alunos do 3.º e 4.º anos
Para que idades é vocacionado e como podem as es- de escolaridade, com o objetivo
colas, ou agrupamentos de escolas, candidatar-se a de os iniciar numa postura
participar? de indagação experimental,
Está vocacionado para alunos do 1º ciclo de escola- com materiais muito fáceis de
ridade. Podem candidatar-se através do nosso site. encontrar e situações do dia a
Posteriormente celebrar-se-á um protocolo de coo- dia dos alunos. Pretende-se que
peração, e, logo após, os nossos colaboradores fazem ensaiem o método científico
a monitorização nas salas de aula, juntamente com os de colocar questões e que
professores, das experiências propostas num manual se habituem a compreender melhor a natureza através de um
de apoio publicado pela CdC. questionamento sistemático.
Experimenta Estatística e Probabilidade – Um livro com 30
No caso dos Recursos Educativos digitais - mais de 2000 atividades, divididas por Estatística e Análise de Dados (18) e
à disposição na plataforma - como podem ser acedidos? Probabilidade (12), destinados ao 1.º ciclo.
O portal da CdC guia, com simplicidade, o visitante na Pensamento Computacional - 50 atividades, incluindo
pesquisa dos materiais que lhe interessa através de bus- introdução à programação em Python (no prelo).
ca por palavra-chave. Os materiais estão organizados,
por área, tema e ciclos de estudo.

SUPER 51
«...Falta realizar o sonho de
unificação das duas teorias -
criar uma teoria de gravitação
quântica. Esse é um enorme de-
safio da física atual»

Em 1915, Albert Einstein fez uma breve publicação nu- fundamental na explicação de tantas questões científicas?
ma revista da Academia de Ciências da Prússia, sobre Trata-se, a par da mecânica quântica, de uma das prin-
a formulação das equações de campo da Teoria Geral da cipais criações da mente humana. As evidências da sua
Relatividade. Cem anos depois, o evento foi comemorado validade continuam a surgir. É fascinante que Einstein
pelos Centros de Matemática e de Física da Universidade tenha sido predominante nestas duas revoluções científi-
do Porto, em que o Professor participou e cujas palestras cas, que marcam o progresso científico e tecnológico de
deram origem ao livro “100 anos de relatividade geral”, que hoje todos usufruímos. Falta realizar o sonho de uni-
edição da U.P. em 2018. O que lhe apraz comentar acerca ficação das duas teorias – criar uma teoria de gravitação
de uma teoria que, ao fim de tantos anos, continua a ser quântica. Esse é um enorme desafio da física atual.

52 SUPER
UNSPLASH
O portal coloca à disposição diversos
materiais educativos de apoio à ativida-
de letiva. Entre os mais de 2000 recursos
educativos, encontram-se documentos
digitais, powerpoints, vídeos e anima-
ções, atividades experimentais e
simulações interativas.

A propósito de mais uma reforma do ensino da Mate-


mática, que implica uma revisão curricular transversal
a vários níveis de ensino e que continua a gerar discus-
sões e controvérsia, qual é a sua opinião?
Uma tragédia o que está a acontecer com as sucessivas
reformas do ensino da matemática. Mais parece uma
luta de fações – a ligada às ciências da educação e outra
aos matemáticos mais “puristas”. Estão de costas volta-
das e incapazes de um diálogo útil e construtivo.

Que importância atribui à Matemática no contexto da


vida prática?
Imprescindível.

Além da Matemática, da Física e de outras áreas da


Ciência, que outras paixões o movem?
A Música, sem dúvida, nomeadamente a Clássica (Bee-
thoven, acima de todos) mas também música popular
(Beatles, Rolling Stones, Bob Dylan, e mais recente-
mente, Tindersticks). A 25 DE NOVEMBRO DE 1915, Albert Einstein publi-
cou uma nota de apenas quatro páginas numa revista
Num momento em que as sociedades olham para as da Academia de Ciências da Prússia. É um texto cur-
ciências como a última esperança, exigindo respostas to, mas, apesar do escasso tamanho, o seu impacto
cada vez mais amplas, mais rápidas e mais eficazes, que foi monumental, pois contém o culminar do trabalho
responsabilidade podemos legar às novas gerações no que o seu autor vinha a desenvolver há vários anos:
domínio das Ciências? a formulação das equações de campo da Teoria Geral
É muito importante desenvolver os aspetos éticos liga- da Relatividade. Cem anos mais tarde, em novem-
dos ao enorme progresso científico e tecnológico a que bro de 2015, os Centros de Matemática e de Física
assistimos. O desenvolvimento dos novos paradigmas: da Universidade do Porto organizaram uma sessão
“Conhecimento extraído de dados”, “aprendiza- comemorativa relativa a esse evento. Os textos reuni-
gem-máquina” e “aprendizagem profunda”, têm um dos neste livro foram escritos pelos autores de várias
enorme risco de manipulação das vontades e contro- das palestras desse encontro, que quiseram fazer uma
lo das liberdades individuais. A par da influência das versão escrita da apresentação que fizeram naquela
redes sociais, estes verdadeiros cancros das sociedades ocasião. Editora: U.Porto Edições.
modernas, encaminham-nas para retrocessos morais e
civilizacionais sem retorno. e

SUPER 53
R E I N O A N I M A L

VOU
O que têm em comum os sapos e os gibões conhecidos como siamangos, e o que têm as
aves fragatas em comum com as focas-de-crista? Todos estes animais insuflam uma
parte do seu corpo para vários fins. Não são os únicos. Aqui estão alguns dos exemplos
mais incríveis de animais que incham.

Texto de ANGEL LUIS LEÓN PANAL, biólogo

EXPLODIR!
54 SUPER
Graças à
evolução, os
sapos e rãs
geraram um
repertório
impressionante
de canções, que
produzem com a
ajuda do seu saco
vocal, uma
SHUTTERSTOCK

câmara de
ressonância que
amplifica o som.

SUPER 55
Durante o seu ritual de

CORDON
acasalamento, o galo-
das-pradarias
(Tympanuchus cupido)
exibe-se inchando os
seus sacos aéreos.

56 SUPER
ISTOCK
Quando
ameaçados pelos
seus inimigos, os
peixes-ouriço e os
peixes-balão
engolem grandes
quantidades de
água para inchar o
estômago,
transformando os
seus corpos em
esferas.

Serenatas anfíbias Uma criatura do espaço?


A s serenatas de amor de sapos e rãs têm
pouco a invejar às que são cantados pelos
pássaros. Estes anfíbios utilizam o ar para pro-
J á deve ter visto esta mariposa a protagonizar num vídeo viral que
finge fazê-la parecer um extraterrestre. Mas é tão terrestre como
o resto dos insetos com os quais partilha o grupo taxonómico. Foi
duzir as suas canções características. Depois de registada pela primeira vez pela ciência em 1763 pelo naturalista
inspirar o ar, fecham as narinas e a boca e empur- Charles Linnaeus, que lhe deu o nome de Creatonotos gangis. Estes
ram ar dos pulmões para a laringe para fazer vibrar Lepidoptera são encontrados no Sudeste Asiático e em partes da
as cordas vocais. O ar passa através da traqueia e Austrália. Recentemente, os machos tornaram-se famosos no mun-
flui para o característico saco vocal, que atua co- do digital, onde os “gostos” são a norma, graças aos seus quatro
mo uma câmara de ressonância que amplifica o apêndices marcantes e alongados que surgem no final do abdó-
som. O ar é então devolvido em marcha atrás para men durante a época de reprodução. Estas estruturas são chamadas
continuar a exibição. Graças à evolução, que mol- “coremata”, ou “corema” no singular, e desempenham um papel fun-
dou os diferentes componentes deste sistema, damental no processo de cortejo da fêmea.
estes animais foram capazes de gerar um reper- A coremata é uma estrutura glandular interna reversível presente
tório impressionante de canções. Por vezes, entre apenas em machos lepidópteros, que pode inflar com hemolinfa - o
espécies intimamente relacionadas, uma ligeira fluido circulatório de artrópodes e outros invertebrados - ou ar. É
mudança no tom foi suficiente para se iniciar um também o órgão que serve de suporte aos pêlos responsáveis pela
caminho evolutivo próprio. Por detrás de toda es- difusão das suas feromonas no ambiente. A quantidade de feromo-
ta orquestra está o mecanismo da seleção sexual: nas e o tamanho dos coremata depende da dieta que o indivíduo
o canto dos machos deve ser capaz de sintonizar desfrutou quando era uma lagarta. Como em outras borboletas, a
com os ouvidos das fêmeas. produção destes químicos é favorecida por um menu centrado em
A produção destas chamadas requer uma mus- plantas com alcalóides de pirrolizidina. No reino vegetal, estas molé-
culatura forte e abundante. Isto pode ser um culas têm uma função protetora contra os herbívoros, enquanto que
problema para os sapos mais pequenos, que as lagartas as utilizam para evitar que se tornem alimento para ou-
devem encontrar um equilíbrio entre o gasto tros. Por conseguinte, a intrigante exibição dos gangis Creatonotos
energético envolvido no canto e conseguir que o masculinos é na realidade um cortejo perfumado destinado a atrair a
cortejo chegue o mais longe possível. Algumas atenção das fêmeas, demonstrando o seu valor.
espécies, tais como a rã arborícola de Borneo -
Metaphrynella sundana - que não tem mais de
dois centímetros de comprimento, resolvem este
problema usando a acústica do seu próprio lugar. O aposematismo é o mecanismo pelo
Para fazer ressoar a sua chamada até cinquen-
ta metros de distância na floresta densa, cantam qual algumas espécies avisam que
dentro dos ocos das árvores e até modulam o seu
tom de acordo com a acústica do local. possuem um veneno potente
SUPER 57
Todas as manhãs,
as parelhas de
siamangos vão para
o limite do seu
território, localizado
numa floresta
densa, e cantam
duetos a partir das
árvores mais altas.
CORDON

Tríplice defesa Um fato preto


H á três coisas pelas quais os peixes-ouriço e os seus parentes, os
peixes-globo, são famosos: a capacidade que todos eles têm de
com uma enorme
inchar os seus corpos, as espinhas e as toxinas mortais que contêm.
Quando estes animais se sentem ameaçados ou em perigo, engo-
gravata vermelha
lem grandes quantidades de água para encher e esticar o estômago
até os seus corpos se tornarem quase uma esfera. Neste estado, o
seu movimento é muito limitado, mas o objetivo desta estratégia de
N o século XIX, naturalistas como Charles Darwin
e Alfred Wallace ficaram intrigados com a ex-
travagância demonstrada pelos pavões reais. O seu
defesa não é fugir, mas ser um incómodo para as mandíbulas dos aspeto marcante parecia desafiar o processo evoluti-
predadores. No caso de tudo o resto falhar, algumas espécies podem vo que os havia moldado através da seleção natural.
fornecer o animal que ousa incluí-los no seu almoço com uma poten- Não era a única espécie a fazê-lo. O seu estudo en-
te neurotoxina: a tetrodotoxina. riqueceu a teoria da evolução ao definir o processo
O corpo destes peixes está adaptado para inchar, o seu estômago conhecido como “seleção sexual”. Mecanismo que
flexível fica dobrado na cavidade abdominal como um acordeão. Em explica o aspeto elegante das aves fragata.
algumas espécies até perdeu parte da sua função digestiva. A evo- As fragatas são um grupo de aves marinhas que
lução também eliminou algumas costelas e a pélvis para que não compreende um total de cinco espécies. A sua ca-
interfiram com o mecanismo. No entanto, pressionar o botão “inchar” racterística mais marcante é exibida pelos machos:
tem as suas consequências. Tomar água tão rapidamente requer um grande saco gular vermelho. Esta estrutura é for-
fortes contrações da boca, enquanto que os músculos esofágicos mada pela pele da garganta e não tem penas. Este é
devem posteriormente ser capazes de a reter. Isto implica que, dado um exemplo de dimorfismo sexual, pois a caracterís-
o esforço metabólico, o consumo de oxigénio sobe em tais momen- tica não está presente nas fêmeas. Durante a época
tos até cinco vezes mais do que nos níveis de repouso. Portanto, uma de acasalamento, estas aves formam frequentemente
vez passado o perigo, o peixe terá de esperar cinco a seis horas para colónias de milhares em ilhas remotas. As fêmeas
regressar ao seu estado inicial. Durante este tempo, será vulnerável voam no céu, observando a azáfama lá em baixo,
aos predadores. onde os machos se reúnem e competem pela sua
Ao contrário da crença popular, eles não sustêm a respiração atenção. Durante a coreografia, espalham-se e vi-
enquanto inchados. Em 2014, um estudo com peixes-balão Canthi- bram as suas asas, apontam os seus bicos para cima
gaster Valentini mostrou que, quando neste estado, estes animais e insuflam os seus sacos gulares com ar para exibir,
ainda respiram graças às suas guelras. como um cartaz, o chamamento vermelho impres-
sionante, que acompanham com um som de tambor
dos seus bicos. Desta forma, os machos enviam a

Na natureza, enviar e compreender sua mensagem, uma demonstração de que são ca-
pazes de investir energia num sinal muito custoso e

adequadamente certas mensagens de que podem enfrentar o risco de serem apanhados


por um predador. Em suma, provam que são can-

pode salvar a vida


didatos cuja escolha de parceiro é uma garantia de
descendência bem sucedida.

58 SUPER
É uma demonstração

GTRES
de que são capazes
de investir energia
num sinal muito
custoso e de que
podem enfrentar o
risco de serem
apanhados por um
predador.

SUPER 59
Uma mensagem sincera Canções na selva
N a natureza, enviar e compreender adequadamente certas men-
sagens pode salvar a vida. Entre os animais, não faltam casos em
que adotam aparências impressionantes para dissuadir predadores,
O s pares de siamangos - Symphalangussyndacty-
lus - dedicam um tempo todas as manhãs numa
das tarefas mais importantes do dia. Vão para o limi-
concorrentes ou outras ameaças. Serpentes como a víbora - género te do seu território, situado numa floresta densa, e
Bitis -são famosas por inflarem e deflacionarem os seus corpos, ao cantam em dueto a partir das árvores mais altas. Nas
mesmo tempo que emitem sons de assobio altos. Por outro lado, a selvas, como as encontradas na Indonésia, Malásia ou
serpente de nariz-de-porco oriental - Heterodonplatirhinos -achata o Tailândia, o som é mais significativo do que qualquer
seu pescoço quando se sente ameaçada, um traço que lembra as co- paleta de cores. A sua canção é um aviso aos seus vi-
bras, e também silva. Com tais exposições, estes répteis ganham uma zinhos: “Estamos aqui. Este é o nosso território».
vantagem em termos de imagem ameaçadora. Mas também enviam Os siamangos têm um saco gular debaixo do quei-
uma mensagem sincera, avisando que têm uma mordedura venenosa. xo, que está presente tanto nos machos como nas
Outro caso curioso pode ser encontrado na África Austral. A serpente fêmeas. Esta estrutura, capaz de inchar tanto como
galho da savana - Thelotorniscapensis -está perfeitamente adapta- o tamanho das suas cabeças, é utilizada para res-
da para passar despercebida nas árvores frondosas. Tem um corpo sonar o som que emitem após expulsarem o ar dos
esguio encimado por uma longa cauda, enquanto a sua cabeça é es- pulmões e o passarem através da sua laringe. Além
treita com um focinho pontiagudo. Tem uma cor críptica que é útil para disso, utilizando as suas mãos ou bocas, conseguem
se misturar com o seu ambiente e, como culminação do seu disfarce, acrescentar mais variedade ao seu repertório. Estas
é capaz de ficar parada ou balançar como qualquer outro galho. chamadas podem exceder 100 decibéis e percorrer
No entanto, quando esta espécie se sente em perigo, infla a sua gar- mais de três quilómetros através da selva.
ganta para mais do dobro do seu tamanho normal. Os padrões negros Esta espécie, a maior de entre os gibões, é arborícola,
na sua cabeça compostos por faixas escuras e claras, antigamente um fazendo a sua casa nas copas das árvores com até 30
elemento de camuflagem, tornam-se um sinal de aviso. Este mecanis- metros de altura. Infelizmente, o seu reino está cada
mo é conhecido como “aposematismo”, que é utilizado pela serpente vez mais ameaçado pela desflorestação na ilha de Su-
para indicar que possui um potente veneno hemotóxico. matra e na Península de Malaca.

Uma foca singular


O nome científico da foca-de-crista - Cystophoracristata
-já oferece uma pista para uma das suas características
mais marcantes .Cystophora vem do grego e significa
“portador de bexiga”. Esta é uma referência à bexiga que
pode ser insuflada com ar, que só está presente nos ma-
chos e ocupa uma grande parte da cabeça, desde a testa
até ao focinho. Este atributo é complementado por uma
crista excepcionalmente elástica, escondida dentro da
narina esquerda, que é insuflada com ar como um balão
vermelho. Ambas as características são exemplos de di-
morfismo sexual.
Focas-de-crista habitam o Ártico e o norte do Atlân-
tico, onde geralmente levam uma vida solitária.
Na verdade, esta espécie tem o período de lac-
tação mais curto de todos os mamíferos. Após
cerca de quatro dias, as mães abandonam as
suas crias, que terão de se defender sozinhas
graças à gordura acumulada durante a lacta-
ção. Por esta razão, o teor de gordura do seu
leite é de 60%.
Podemos encontrar estes singulares animais re-
unidos durante a época de reprodução, quando
os machos devem demonstrar toda a sua atrativi-
dade. Depois de fecharem a narina direita, insuflam
a sua excepcional crista e abrem-na para produzir vários
sons. Este sinal vermelho é muito visível num ambien-
te onde o branco é predominante, uma forma curiosa de
atrair as fêmeas e de dissuadir outros machos concor-
rentes. A crista e a bexiga são também utilizadas quando
Usam a crista quando submersas pa- submersas, permitindo-lhes produzir vários sons, tais co-
ra produzir vários sons, tais como mo chamadas longas ou pulsos, para diferentes fins.
chamadas longas ou pulsos.
CORDON

60 SUPER
Nem todas as rãs coaxam
A canção tem sido tradicionalmente
considerada o sinal mais impor-
tante para as rãs durante o cortejo. No
acompanhada por uma coreografia
marcante na qual levantam as pernas
dianteiras e traseiras.
tocam nos machos para obterem a sua
atenção.
Há mesmo rãs que não têm a capaci-
entanto, estudos têm demonstrado Outro exemplo é a espécie Hylodes ja- dade de coaxar. É o caso das rãs de
que estes anfíbios têm um repertório pi, que habita riachos de montanha de cauda (género Ascaphus), considera-
muito mais variado. A espécie Sacha- fluxo rápido na região de São Paulo, no das uma das famílias mais primitivas.
tamia orejuela, um tipo de rã-de-vidro, Brasil. As rãs machos também utilizam A sua característica mais marcante, a
vive entre as rochas das cascatas de um dos seus dois sacos vocais para fa- “cauda”, é na realidade uma extensão
algumas florestas tropicais do Equa- zer sinais visuais, que complementam da cloaca masculina que utilizam pa-
dor e da Colômbia. Este ambiente com movimentos das suas pernas e ra a fecundação interna. As rãs deste
proporciona um bom abrigo, mas o dedos dos pés. Além disso, a exibição grupo não têm saco vocal e não têm
ruído da água a correr mascara gran- inclui mostrar o ventre de cor creme, tímpanos externos. Portanto, na pro-
de parte do som. Por esta razão, estas que contrasta com o dorso escuro. Por cura de fêmeas, os machos devem ser
rãs executam uma canção mais aguda outro lado, durante o cortejo, as fêmeas guiados por sinais visuais ou químicos.

Os padrões negros
na sua cabeça,
antigamente um
elemento de
camuflagem,
tornam-se um sinal
de aviso quando
sente o perigo.
ASC

Quanto resta por descobrir?


A biologia está longe de dar por con-
cluida a classificação de todas as
espécies que prosperam na Terra. Uma
inéditos, abre a possibilidade de desco-
brir adaptações incríveis.
O primeiro espécime conhecido de
estranha característica ter sido des-
coberta entre as fêmeas. Frank Glaw,
um especialista em répteis e anfíbios,
nova espécie para a ciência pode estar Stenophylla lobivertex, um tipo de observou por acaso o que inicialmen-
escondida em qualquer recanto, mes- louva-a-deus, era uma fêmea e foi en- te pareciam ser parasitas a emergir do
mo em cidades movimentadas. Esta contrado no Equador pelo biólogo seu abdómen. Um exame mais atento
é uma tarefa desmedida, bem como Francesco Lombardo. Foi em março revelou que na realidade era um órgão
urgente, dada a extensão do impacto de 1996. Mas a espécie só foi formal- verde, em forma de Y, com cerca de
humano. Não é raro os organismos de- mente descrita no ano 2000, depois seis milímetros de comprimento que
saparecerem da existência antes de os de Lombardo ter conseguido encon- é inflado por hemolinfa. A estrutura é
podermos encontrar. A descrição de trar indivíduos machos. uma glândula envolvida na libertação
uma nova espécie é também o primeiro Muito mais tarde, em abril de 2021, de feromonas, que estes louva-a-deus
passo para compreender mais um ramo estes louva-a-deus atingiram as man- utilizam para comunicar com outros
da evolução. Cada um destes trajetos chetes da ciência depois de uma membros da sua espécie.

SUPER 61
HA RI ST TÍ CÓ UR LI OA

A pinça sobre Kiev passou aos


anais da estratégia militar como o
maior cerco de tropas inimigas
de sempre, realizado na História.
AGE

62 SUPER
A PINÇA DO REICH QUE CERCOU O EXÉRCITO VERMELHO

1941
A outra batalha
de Kiev
Alguns enclaves da geografia ucraniana, tais como
Kiev, Irpin, Kharkov, Odessa, o Dnieper, etc., que nos
são hoje tão familiares após a invasão da Rússia,
já eram campos de batalha há menos de um século.
Aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial e os
protagonistas da incursão foram, nessa ocasião, os
alemães, enquanto os russos (então soviéticos) se
impuseram como defensores de um território que,
nessa altura, fazia parte da URSS.

Texto de JOSÉ ÁNGEL MARTOS

SUPER 63
Para Hitler, conquistar a
Ucrânia significava con-
quistar o maior celeiro da
Europa e grandiosas fábri-
cas industriais na região de
Donbas.
ISTOCK

A
atual capital ucraniana e os enviadas de volta para a Frente Sul, onde também se
seus arredores testemunha- encontravam numa situação precária.
ram um confronto de titãs Após a primeira tentativa fracassada, os alemães
no qual nazis e comunistas retomaram o avanço com o seu Grupo de Exércitos
se empenharam com todas as Sul, comandado pelo Marechal Gerd von Rundstedt,
suas forças numa batalha que que iria desempenhar um papel importante nas ope-
iria ficar nos anais da estra- rações ucranianas.
tégia militar como o maior Durante o mês de agosto, Hitler e os seus principais
cerco de tropas da História. comandantes iniciaram uma discussão estratégica sobre
A 22 de junho de 1941, os qual deveria ser o principal objetivo das tropas nazis na
exércitos do Reich penetra- URSS. Enquanto os militares, e em particular o prestigia-
ram rapidamente no território soviético graças ao do General Heinz Guderian, que comandava o 2º Exército
efeito surpresa da Operação Barbarossa, o nome de Panzer, estava inclinado a dar prioridade à tomada de
código do projeto militar para ganhar «espaço vital» Moscovo, Hitler tinha outra visão. Ouviu pessoalmen-
a leste. Com a Wehrmacht organizada em três grupos te Guderian, mas ignorou as suas opiniões e optou pela
de exércitos (Norte, Centro e Sul), o destacamento de campanha a sul da capital soviética.
tropas foi esmagador.
O Grupo de Exércitos Centro era o mais podero- HITLER TINHA DOIS MOTIVOS, O MAIS PODEROSO DOS QUAIS
so de todos. Tinha cinquenta e sete divisões, nove ERA ALCANÇAR UM SUCESSO RÁPIDO, ANTES DO TEMIDO
das quais blindadas. Romperam facilmente a cha- INVERNO das estepes, que mostraria ao mundo uma
mada Linha de Estaline (a tentativa de fortificar a Alemanha vitoriosa. O outro era económico, uma vez
fronteira ocidental soviética) e a 11 de julho tinham que conquistar a Ucrânia significava tomar o maior
chegado ao rio Irpin, a escassos vinte quilómetros da celeiro da Europa e as maiores fábricas industriais
capital ucraniana. Tal era o seu avanço que Kiev co- da região de Donbas, fatores que, quase um século
meçava a destacar-se dentro das posições soviéticas, depois, continuam a ser fundamentais. Além disso,
uma área pouco protegida nos seus flancos. Os nazis a situação de fragilidade em que Kiev estava a ser
progrediam a bom ritmo, tanto a norte (na estrada deixada era uma oportunidade incomensurável para
para Moscovo) como a sul (na direção da Crimeia e cercar completamente as tropas soviéticas.
de Donbas). Guderian, após o seu encontro com Hitler, regres-
A primeira tentativa alemã de atacar a capital sou com ordens para implementar um movimento
ucraniana foi repelida por uma contra-ofensiva do de pinça na Frente Sudoeste do Exército Vermelho.
Exército Vermelho, cujos comandantes, perceben- Para o efeito, separou os seus tanques do exército
do o perigo, colocaram as principais unidades da sua central e deslocou-os para sul. Atrás dos panzers
Frente Sudoeste num «Y» em torno de Kiev. No final marcharam o 2º Exército de Infantaria, liderado pe-
de julho, algumas delas tiveram de ser dispensadas e lo comandante-chefe Maximilian von Weichs, com

64 SUPER
Após a vitória, a matança de judeus:
o massacre de Babi Yar
A s sabotagens com explosões, que
os nazis sofreram em Kiev a 24 de
setembro de 1941, serviu de pretexto
da manhã, para ali entregarem os seus
bens. Mas o objetivo era de facto elimi-
ná-los. Como uma testemunha relatou,
acudiram em grande número (mais de
trinta mil) e, devido à extensão da fila,
desconheciam o que os esperava até
para lançar uma repressão maciça con- depois de terem passado por várias ao último momento.
tra os judeus. Acusaram-nos de serem secções onde foram despojados de to- O massacre foi organizado pelos es-
os culpados e lançaram uma terrível dos os seus valores e das suas roupas quadrões da morte (Einsatzgruppen)
operação de extermínio, conhecida co- de abrigo e de cama, chegaram ao bar- das SS e SD. Entre os seus coman-
mo o massacre de Babi Yar. Este era o ranco, onde lhes foi ordenado que se dantes, um dos principais executores
nome de uma ravina perto da cidade, deitassem (em muitos casos em cima operacionais foi Paul Blobel, que foi
à qual todos os judeus foram obriga- de outras pessoas) e foram alvejados condenado à morte nos julgamentos
dos a ir a 29 de setembro às oito horas sem demora. Os judeus enganados de Nuremberga e enforcado em 1951.

Prisioneiros nus na ravina de Babi Yar em


Kiev, onde as forças alemãs levaram a
cabo uma série de massacres.
AGE

Para despistar a vigilância aérea do Exército Vermelho, as milícias


alemãs fingiram atravessar o Dnieper em outros pontos

ordens idênticas. Os avanços de ambas as milícias O local mais adequado foi cuidadosamente esco-
tornaram-se imparáveis. A 17 de agosto ocuparam lhido. Depois de tomarem Uman, os nazis podiam
Novgorod-Síversky e atravessaram o Desná, um dirigir-se para qualquer uma das duas principais
afluente do rio Dnieper. No dia 19, tomaram Gomel, cidades ribeirinhas a sul de Kiev: Cherkasi e Kremen-
um episódio conhecido como o «cerco de Gomel», chuk. Mas, no meio, o rio corria com múltiplos canais
no qual conseguiram cercar o 21º Exército Soviético, e, para aumentar a complexidade, havia um pequeno
a maior parte do qual destruiram. Para completar a afluente que dificultava as operações e o terreno era
pinça em Kiev, foi também necessário avançar a par- muito pantanoso.
tir do sul, e esta foi a tarefa do 1º Exército Panzer,
liderado por Ewald von Kleist, e do 17º Exército de APÓS MUITAS CONSIDERAÇÕES, FOI DETERMINADO QUE A
Infantaria, comandado por Carl-Heinrich von Stülp- TRAVESSIA DEVERIA SER FEITA A SUL DE KREMENCHUK ,on-
nagel. Enfrentaram o maior desafio logístico, pois se de já não existiam canais ou afluentes. Aí, um cume
a travessia do Desna não foi muito difícil, no sul não arborizado permitia que a operação fosse preparada
havia outra escolha senão atravessar o Dnieper, um quase a coberto. Os seus solos arenosos facilitaram o
dos maiores rios da Europa. transporte de veículos para o rio. Durante os últimos

SUPER 65
ALBUM

dez dias de agosto, o trabalho foi realizado enquan- atravessar o Dnieper e tomar o Kremenchuk a 8 de
to simulavam tentativas de atravessar o Dnieper em setembro.
outros pontos, a fim de despistar a vigilância aérea A esta altura do conflito, os comandantes soviéticos
do Exército Vermelho. A peça central deste projeto em Kiev sentiam-se cercados e condenados à derrota,
foi a construção de uma ponte que foi concluída nu- mas não podiam render-se porque estavam sujeitos à
ma única noite, de 31 de agosto para 1 de setembro, temida Ordem 270 emitida por Estaline. Nela, o líder
à qual acrescentariam mais tarde uma segunda pon- soviético instava os comandantes de tropas a «lutar
te. Através delas, tropas e equipamento conseguiram até ao fim».
Toda a Frente Sudoeste era supervisionada por
Semyon Budionni, um herói cossaco da Revolução
Russa e eterno aliado de Estaline, o que lhe tinha per-
mitido sobreviver às purgas. Tinha construido a sua
Foi uma má decisão reputação quando a cavalaria era parte essencial dos
exércitos e continuou a defendê-la como indispen-
atrasar o avanço para sável até aos alvores da guerra. As divisões blindadas
alemãs, movendo-se com determinação em direção
Moscovo? à capital ucraniana, provavam que ele estava erra-
do. Entretanto, em Kiev, o comandante principal era

E m agosto de 1941, os principais generais de Hitler que lide-


ravam a Operação Barbarossa teriam preferido ignorar Kiev e
prosseguir em direção a Moscovo. Acreditavam que ao seguirem o
Mikhail Kirponos, um general considerado «fraco»
por alguns dos seus colegas mais influentes.
A 12 de setembro, o 1º Exército Panzer reuniu-se
avanço do seu Exército Central em direção a Moscovo teriam saído com os tanques de Guderian em Lokhvitsa, na Ucrânia
vitoriosos rapidamente, tendo sido capazes de chegar à capital so- central. Estavam a menos de duzentos quilómetros a
viética antes do mau tempo complicar os movimentos das tropas. leste de Kiev, o que impedia uma possível retirada do
Contudo, quando a Operação Tufão (o nome alemão para a sua Exército Vermelho para a URSS. A tenaz estava a fe-
marcha em direção a Moscovo) começou, no final de setembro, o char-se e as forças soviéticas ficaram sem saída.
tempo já era um inimigo. A reação de Estaline foi de retirar Budionni do
O lamacento outono foi seguido por um inverno gelado, com míni- comando a 16 de setembro e relegá-lo para uma po-
mos históricos de 42 graus negativos em alguns locais. Além disso, sição honorária sem qualquer influência no curso da
os soviéticos mostraram grande capacidade defensiva, moven- guerra. No dia seguinte, a autorização do Alto Esta-
do mais unidades para Moscovo do que os alemães esperavam. do-maior General para a rendição de Kiev chegou às
Os Alemães também sofreram de carências logísticas. Guderian, tropas cercadas. Mas era demasiado tarde. Quatro
um dos arquitetos da captura de Kiev, queixava-se de que os seus corpos do Exército Vermelho (5º, 21º, 26º e 37º) fi-
tanques destruídos não estavam a ser substituídos e de que lhes caram presos na pinça que o exército alemão tinha
faltava combustível. Assim, no final, a conquista da Ucrânia, apesar conseguido levar a cabo. Setecentos mil soldados
da sua aparente recompensa sob a forma de recursos económicos, soviéticos foram apanhados nesta armadilha mortal.
pode ter sido mais uma distração do que um sucesso. Foi o maior cerco de tropas inimigas de sempre na
história.

66 SUPER
Tropas do Exército
Vermelho atravessando o
rio Dnieper a norte de Kiev,
em outubro de 1943.

Um general
alemão na Kiev
SURPRESAS EM KIEV destruida de
A resistência demonstrada pelos soviéticos foi 1941.
tenaz, lutando por cada centímetro de terreno. Tenta-

AGE
ram quebrar o cerco em vários locais, especialmente
no oriente, mas encontravam-se em inferioridade
numérica. O próprio Kirponos foi morto em ação a
poucos quilómetros de Lojvitsia pela explosão de dias, as minas explodiram uma após a outra, prova-
uma mina terrestre alemã. velmente por terem sido acionadas remotamente por
Os Alemães entraram em Kiev a 19 de setembro. um agente secreto.
Ao meio-dia, as bandeiras nazis já estavam hasteadas Este episódio teria repercussões inesperadas, uma
na cidade. Os soviéticos tinham deixado o seu quar- vez que os Alemães se vingariam nos judeus da cida-
tel e edifícios oficiais intactos (ao contrário de outros de. Também pressagiava uma ocupação complexa. As
locais). Os invasores iriam usá-los, mas lá dentro es- minas controladas por rádio tornar-se-iam um pesa-
peravam-nos surpresas. delo para os nazis noutras cidades ucranianas, como
Após uma primeira explosão a 20 de setembro na Odessa e Kharkov.
fortificação conhecida como a Cidadela, na qual A partir de então, Kiev, a terceira cidade mais po-
morreram vários oficiais de artilharia alemães que a pulosa da União Soviética na altura, permaneceria em
ocupavam, no dia 24 houve uma grande explosão no mãos alemãs durante dois anos. Só a 6 de novembro
edifício do quartel-general da retaguarda alemã, na de 1943 é que os soviéticos a recapturaram numa ope-
rua principal de Kiev, Rua Khreshchatyk. Seguiram- ração de contra-ataque que seria seguida por outras
-se outras explosões em edifícios notáveis no centro como parte de uma ofensiva que levou os nazis a per-
da cidade, que também foram utilizados pelos nazis derem tudo o que tinham ganho no seu fulgurante
como residências ou centros administrativos. mas efémero avanço inicial.
O que aconteceu foi que, em todos eles, os soviéti- Oitenta e um anos mais tarde, os russos já não são
cos tinham enterrado minas F-10 radio-controladas, os invadidos, mas os invasores de Kiev. Mas nem se-
um tipo de arma da sua invenção. Eram ativadas por quer conseguiram chegar à capital ucraniana na sua
um sinal de rádio codificado, enviado para um recetor «operação militar especial», que foi excessivamente
enterrado ou escondido, que por sua vez desencadea- acelerada e demasiado otimista por parte do Kremlin,
va circuitos ligados a minas explosivas. Com baterias que parece não ter tirado as lições certas da sua pró-
que lhes permitiam receber sinais durante quarenta pria história. e

Mesmo rodeados e condenados à derrota, os soviéticos não


podiam render-se. Estavam sujeitos à temível Ordem 270, na
qual Estaline instava as suas tropas a «lutar até ao fim»
SUPER 67
A R T Í C HUMANA
EVOLUÇÃO U L O

A preciosidade cien-
tífica da Criança do
Lapedo advém de se
constituir como tes-
temunho «vivo» da
miscigenação entre
Homo sapiens e
Neandertais.

68 SUPER
A
«CRIANÇA
DO
LAPEDO»
E AS ORIGENS DO HOMEM MODERNO
NA PENÍNSULA IBÉRICA

Uma descoberta que revolucionou a história da evolução


humana, e importou um novo olhar sobre a relação entre
o Homo sapiens e os Neandertais.

Texto de ELSA REGADAS


YANA MENA

SUPER 69
A

TWITTER ICREA COMMUNITY


Criança do Lapedo foi a pri-
meira, e até agora única,
sepultura do Paleolítico Supe-
rior descoberta na Península
Ibérica e é um dos poucos es-
queletos humanos quase
completos, dessa época, exis-
tentes no mundo.

Como referiu em 2018, no


vigésimo aniversário da des-
coberta, em entrevista ao
jornal Público, a antropóloga Cidália Duarte, cientis-
ta que, juntamente com João Zilhão, protagonizou as
primeiras escavações, a Criança do Lapedo «...contém
uma herança biológica da humanidade, em particular
das populações europeias daqueles tempos...e traz-nos
O arqueólogo João Zilhão, responsável, à época da descoberta (1998), pelo
para a memória coletiva o modo de vida e bagagem bio- Instituto Português de Arqueologia.
lógica dessa época de há pouco menos de 30 mil anos,
além das características culturais de como a sepultura
estava feita...»
O achado gerou forte polémica no seio da Paleoantro- A informação chegou ao Instituto Português de Ar-
pologia internacional da altura, porque o esqueleto da queologia, na altura dirigido pelo arqueólogo João
Criança do Lapedo, apresentando simultaneamente ca- Zilhão, que imediatamente pediu uma investigação
racterísticas morfológicas do moderno Homo sapiens e deste caso.
características morfológicas do homem de Neandertal, Para o efeito, a 28 de novembro, Pedro Souto e João
sugeria um «hibridismo» que contrariava fortemente a Maurício da sociedade de espeleologia e arqueologia
corrente de pensamento então dominante. de Torres Vedras dirigiram-se ao local. Confirmaram
a existência das pinturas, mas, sobretudo despertou-
MAS CONTEMOS A HISTÓRIA DESDE O PRINCÍPIO. Estávamos -lhes interesse um abrigo rochoso que viram do outro
no outono de 1998. Um universitário, Pedro Ferreira, lado do vale e que lhes parecia oferecer potencial como
procurava arte rupestre no vale do Lapedo, na região de sítio paleolítico. Em boa hora o pensaram, porque ao
Leiria, Portugal, para um trabalho da sua licenciatura, aproximar-se do entretanto chamado Abrigo do La-
encontrando três figuras antropomórficas com alguns gar Velho, logo se aperceberam de dezenas de vestígios
milhares de anos. arqueológicos (restos de fauna fossilizados e rochas de

ASC

O Abrigo do Lagar Ve-


lho situa-se numa es-
treita garganta com 2
km de comprimento, de
paredes quase verticais
onde se encontram nu-
merosos abrigos sob a
rocha, as «lapas».

70 SUPER
PATRIMONIO CULTURAL DE PORTUGAL
sílex talhadas) que uma terraplanagem tinha deixado a
descoberto.
Estavam perante uma jazida do Paleolítico Superior!
Escavaram com a mão uma reentrância do abrigo, de-
parando-se com alguns ossos, possivelmente humanos.
Taparam tudo.
Uma semana depois, a 6 de dezembro, uma equipa
constituída por João Zilhão, Cidália Duarte e Ana Cristi-
na, acompanhados por Pedro Ferreira, Pedro Souto e João
Maurício, entre outros, fizeram uma inspeção ao local.
Cidália Duarte logo reconheceu alguns ossos pequenos
e frágeis de um único indivíduo humano, uma crian-
ça. João Zilhão notou que estavam manchados de ocre,
uma substância usada em ritos funerários e encontrada
em sepulturas em toda a Europa do período Gravetten-
se (entre há 30.000 e 26.000 anos). Perceberam que se
tratava de uma sepultura de uma criança do Paleolítico
e pressentiram estar perante um achado arqueológico de
relevância mundial, que tinha de ser sujeito a uma esca-
vação de emergência para retirar o esqueleto.
Logo no dia 12 de dezembro, um dia frio e chuvoso,
iniciaram as escavações, que terminaram a 9 de janeiro.
O resultado foi um esqueleto humano quase completo
e bem preservado (ainda que com o crâneo esmagado)
de uma criança do Paleolítico Superior, um exemplar
único em Portugal e em toda a Península Ibérica.
Os estudos arqueológicos e de datação indicaram
tratar-se de um esqueleto de há cerca de 29 000 anos
atrás, de uma criança muito pequena, com idade en-
tre 4 anos e seis meses e 5 anos, provavelmente do sexo
masculino, sem indícios de patologias do esqueleto nem
de anomalias de crescimento ou de doença que pudesse
constituir causa de morte.

O PRIMEIRO RITUAL FUNERÁRIO DE UMA CRIANÇA DO PERÍODO


GRAVETTENSE. O notório cuidado posto na preparação da
sepultura testemunha as práticas funerárias que nesse
período (Gravettense) eram partilhadas num vasto ter-
ritório, que ia desde a Península Ibérica aos Urais.
João Zilhão, agora professor da Universidade de Barce-
lon, escreveu nas suas Provas de Agregação (Universidade
do Algarve, 2004): «...após a abertura da fossa, a segun-
da etapa da cerimónia consistiu na queima de um ramo
de pinheiro silvestre. O corpo foi depositado sobre esse
leito de cinzas arrefecidas, estendido e de costas, ligei-
ramente inclinado para a esquerda e com as pernas um
pouco fletidas...e os pés foram postos bem juntos, de
forma cuidadosa e deliberada... A coloração avermelha-
da dos ossos e dos sedimentos da sepultura explica-se
pelo facto de a criança ter sido envolta numa mortalha,
provavelmente uma pele de veado curtida e tingida com
ocre, pigmento relativamente comum e extensivamente
usado desde precoces tempos pré-históricos...»
Sobre as pernas da criança foi colocado, como oferen-
da , um coelho ainda jovem. Encontrava-se enfeitada
com adornos, tendo sido encontradas junto ao esquele-
to, duas conchas marinhas perfuradas, provavelmente
pertencentes a um colar. Junto ao crânio partido encon- O esqueleto encontrava-se quase completo e bem preservado.
traram-se também quatro dentes de veado furados.... As tíbias são proporcionalmente muito pequenas, uma característica que
Também se registou a presença de duas pélvis de veado apenas se encontra nos neandertais. A coloração avermelhada advém do
junto ao corpo que «devem corresponder a peças de carne corpo da criança ter sido envolto numa mortalha tingida com ocre.

O achado gerou forte polémica no seio da Paleoantropologia


internacional da época
SUPER 71
Então, porque razão então se tinha encontrado, no Gravettense, um enterra-
os neandertais mento ritual de criança de tão pouca idade..»

desapareceram? UMA DESCOBERTA QUE CAUSOU POLÉMICA E RECUPEROU OS


NEANDERTAIS PARA A HISTÓRIA DA EVOLUÇÃO HUMANA. Cientes

S endo certo que os traços neandertais da Criança do Lape-


do são prova de um processo extensivo de miscigenação,
isso não significa que os neandertais europeus não tenham
da importância da descoberta, os cientistas portugueses
falaram a Erik Trinkaus, antropólogo especializado na
anatomia e morfologia do homem do Paleolítico Médio e
acabado por desaparecer, também na Península Ibérica, sen- Superior. O especialista norte-americano veio a Portu-
do hoje mínimo o seu registo genético na humanidade. Tal gal em janeiro de 1999, ainda decorriam os trabalhos na
explica-se pelo desiquilíbrio demográfico que se verificava na escavação, para medir e analisar os ossos que chegavam
interação com os Homo sapiens, desde há 50.000 anos, altu- do terreno. Algo incrédulo, já nos EUA, pediu que em
ra em que o tipo geográfico africano, iniciou a sua expansão Portugal fossem repetidas as medições, pois achava que
para a Eurásia, e logo se tornaram maioritários. Na Europa, os se tinha enganado. Mas não!
grupos humanos mais arcaicos, entre eles, o Neandertal, con- Alguns meses depois, a equipa chocava a ortodoxia
frontavam-se com condições climáticas mais adversas que da época, anunciando, num artigo publicado na revis-
obrigaram a uma forte mobilidade e dispersão geográfica, ta Proceedings of the National Academy of Sciences
reduzindo as suas populações. Era na África que, há 50.000 (PNAS), que a Criança do Lapedo, sendo claramente um
anos vivia a esmagadora maioria da humanidade, onde as Homo sapiens moderno, apresentava, no entanto, ca-
temperaturas tropicais lhe propiciava taxas de fertilidade mais racterísticas morfológicas resultantes de cruzamentos
elevadas. João Zilhão refere que «a modelização matemática antigos de dois grupos humanos que até aí se conside-
de processos de miscigenação em que, à partida há desi- ravam biologicamente distintos – os modernos Homo
quilíbrio demográfico entre grupos envolvidos, mostra que o sapiens e os arcaicos Neandertais.
‘desaparecimento’ do grupo menor, é inevitável e, do ponto de Baseavam a sua afirmação nas proporções evi-
vista evolutivo, muito rápido». denciadas nos ossos do esqueleto, que apresentava
uma mistura de características: ancas estreitas co-
mo os humanos modernos e pernas curtas como os
neandertais. Além disso tinha queixo, um traço ine-
xistente nos neandertais, mas invulgarmente metido
oferecidas ao morto...», uma prática comum nas socieda- para dentro.
de de caçadores-recoletores, que viam a morte como uma
simples passagem para uma etapa diferente da vida. MAS COMO ERA POSSÍVEL, SE HÁ 29000 ANOS, ÉPOCA EM QUE
A datação por radiocarbono de todos estes elementos VIVEU A CRIANÇA DO LAPEDO, OS NEANDERTAIS JÁ ESTAVAM «EX-
(fragmentos do fémur, uma costela, ossos do coelho, TINTOS» há pelo menos 3000 anos?
ossos de veado e carvões queimados) confirmou que Isso indicava que, quando os primeiros Homo sapiens
eram contemporâneos. chegaram à Península Ibérica, os neandertais, que aqui
As características deste ritual funerário reforçam, se- tinham o seu último reduto, contribuíram para o patri-
gundo João Zilhão, «a noção da existência de um fundo mónio genético das populações da época em que viveu
cultural comum a todo o espaço europeu», marcado pe- a Criança do Lapedo. Ora, para que esse contributo ain-
lo uso do ocre, pela «purificação» pelo fogo do espaço da fosse perceptível na morfologia do esqueleto tanto
sepulcral, e pela colocação sobre a testa de ornamentos tempo depois (pelo menos 3000 anos), a miscigenação
constituídos por pequenos dentes de veado. «Há um as- entre os dois tipos humanos, não poderia ter sido me-
peto, porém, em que a descoberta do Lapedo representa ramente episódica ou limitada, mas antes realizada de
uma novidade importante para o nosso conhecimento forma extensiva e frequente.
da cultura das populações desta época: é que nunca até E, se assim foi, isso quereria dizer que houve uma
ancestralidade partilhada, na qual se incluíam os Nean-
dertais e que estes não desapreceram por extinção,
como era dominantemente defendido, mas sim por ab-
ASC

sorção, pois não se negava que o homem de Neandertal


desapareceu da Península Ibérica há cerca de 30.000
anos e que as populações europeias atuais descendem
de antepassados recentes africanos.
A polémica instalou-se, com a nossa equipa a ser alvo de
um ataque feroz, que argumentava que não havia provas
genéticas da procriação entre os dois grupos humanos.

O cuidado posto na pre-


A miscigenação entre os dois
paração da sepultura
testemunha as práticas tipos humanos, não poderia
funerárias do período
Gravettense, partilhadas
em todo o vasto territó-
ter sido meramente episódica
ou limitada
rio europeu.

72 SUPER
ASC
PARA MELHOR SE ENTENDER A NATUREZA DO DEBATE DA ÉPOCA
SOBRE AS ORIGENS DA HUMANIDADE ATUAL E A ONDA DE CHOQUE
CAUSADA PELA DESCOBERTA DA CRIANÇA DO LAPEDO, sigamos
o raciocínio de João Zilhão, no texto já referido.
Diz ele que, durante as décadas finais do século XX,
o debate girava em torno de duas posições diametral-
mente opostas.
Uma, a Hipótese Multiregional, que defendia que
após a saída do Homo erectus de África, há mais de um
milhão de anos, todas as populações do género Homo
constituiam uma espécie única, que foi evoluindo gra-
dualmente num quadro de fluxo genético em que os
O crâneo da Criança do Lapedo apresentava queixo, um traço inexistente
Neandertais representariam um ponto intermédio en-
nos neandertais, mas invulgarmente metido para dentro.
tre o «estado erectus» e o «estado sapiens».
Outra, a da Origem Africana Recente, que susten-
tava que a transformação gradual do Homo erectus em
Homo Sapiens só teria ocorrido em África e que, fora Ora, continuando com João Zilhão, a descoberta da
desta, e devido ao isolamento geográfico posterior à ex- Criança do Lapedo dava, precisamente a esta teoria in-
pansão, teriam emergido espécies distintas do ponto de termédia, «a forte prova empírica que lhe faltava para
vista biológico, entretanto extintas. Assim, a Humani- se transformar no mais convincente modelo das origens
dade atual descenderia na sua totalidade da espécie-mãe da humanidade atual»
africana que, há 50000 anos ter-se-á expandido para a Esta é atualmente uma discussão ultrapassada,
Eurásia, causando a extinção das espécies irmãs, como porque o desenvolvimento das técnicas genéticas per-
os neandertalenses europeus. mitiram entretanto realizar a descodificação do genoma
Nas suas versões mais radicais, esta teoria atribuía dos neandertais(2010) e comprovar que as duas espé-
uma superioridade intelectual e cultural ao Homo cies se reproduziram várias vezes ao longo de 10000
sapiens africanus que explicaria porque é que os nean- anos e que, ainda hoje, as populações da Europa e Ásia
dertais (que, por sofrerem de uma inferioridade cultural têm cerca de 2% a 4% de ADN Neandertal. «Esse valor
congénita, de fundamento biológico - anatomia das era alto nas populações do Paleolítico Superior e, com o
faringes e do cérebro - não teriam capacidade para a tempo tem vindo a baixar» referiu João Zilhão.
produção de linguagem ou arte) tinham desaparecido O assunto está longe de estar esgotado e a polémica
tão rápida e completamente. encerrada, mas a preciosidade científica para a huma-
Vários factos entretanto ocorridos abalaram ambas nidade que constitui a Criança do Lapedo mantém-se,
as teorias, dando lugar a uma posição intermédia, a da ficando como testemunho «vivo» dessa miscigenação.
Origem Recente com Miscigenação que «aceitando Ou poderíamos dizer, como poeticamente o faz Paulo
uma origem africana recente para o tipo físico moderno, Lameiro - coordenador da Candidatura de Leiria a Capi-
postula que o desaparecimento de tipos físicos arcaicos, tal Europeia da Cultura 2027- «a grande mensagem que
como o dos Neandertais, terá resultado de uma história a Criança do Lapedo nos traz é uma mensagem europeia
de interações biológicas e culturais longa e complexa, para a humanidade. Não existe uma Europa de ‘sapiens’
em que tanto podem ter jogado um papel importante os que destruíram e mataram ‘neanderthalensis’. Coabitá-
fenómenos de extinção local, como atos de extermínio mos, criamos e procriamos juntos. Quem nos conta isso
ou processos de miscigenação». é uma criança e conta-nos num ritual completamente
inesperado». e

Publicações em destaque
«A Criança do Lapedo» foi um facto arqueológico que teve eco em todo o mundo,
gerando uma forte polémica e apaixonando os media e um vasto setor de público.
Das várias obras realizadas sobre o tema, destacamos três pelas suas peculiarida-
des: a primeira, pela importância científica, é a monografia «Portrait of the artist as
a Child», the Gravettian Human Skeleton from the Abrigo do Lagar Velho and its Ar-
cheological Context, escrita pelos cientistas João Zilhão e Erik Trinkaus. Outra, é a
curta metragem a preto e branco «Uma História com 29000 anos: recriação imagi-
nada do Menino do Lapedo», realizada por Diogo Vilhena para o Museu de Leiria,
que obteve uma distinção do júri no Festival Firenze Archeofilme, em Florença, Itália.
E, finalmente, o livro do escritor português João Aguiar, falecido em 2010, que faz
Capa do livro “Lapedo,
uma abordagem do tema, dirigida ao grande público visando evitar que o assunto
uma criança no Vale”, obra
do escritor português ficasse «fechado» no universo académico.
João Aguiar

SUPER 73
N E G Ó C I O E M P R E S A

SHUTTERSTOCK
Em 2021, 94% das empresas sofreram graves
incidentes de ciber-segurança, de acordo
com a empresa de consultoria Deloitte.

A ARTE DA
CIBERDEFESA
MAIS DO QUE A SOFISTICAÇÃO DO s dados críticos do seu extradição judicial. Depois tentarão

MALWARE, OS ESPECIALISTAS FALAM O negócio emanam odores


e os ratos informáticos
cheiram-no, eles vêem
extorqui-nos...
No influente tratado militar chinês
A Arte da Guerra, que se crê ter sido
AGORA DA SUA PROFISSIONALIZAÇÃO. as fendas. Dezenas de milhares de escrito pelo General Sun Tzu, pode-
ataques cibernéticos ocorrem todos mos ler: “Conhece o teu inimigo e
EXPLICAMOS AS PRINCIPAIS AMEAÇAS os dias. Não existem números fiá- conhece-te a ti mesmo, e em cem ba-
veis, mas a empresa de consultoria talhas nunca serás derrotado”.
CIBERNÉTICAS ENFRENTADAS PELAS Deloitte diz que 94% das empresas O que pensaria Sun Tzu se fosse o
sofreram pelo menos um incidente CSO (Chief Security Officer) da nossa
NOSSAS EMPRESAS E COMO SE grave de ciber-segurança em 2021. empresa? Ele diria: “Primeiro, conhe-
DEFENDER. Os ratos farejam dispositivos e co- ça o cibercriminoso”.
nexões. Utilizam os nossos sistemas O inimigo é silencioso e rápido.
Texto: JAVIER RADA desatualizados e exploram qualquer Ele ataca PMEs e grandes empre-
vulnerabilidade. Passarão pela sua sas, procurando maximizar o lucro.
casa como Pyotr se não tivermos Atualmente são profissionalizados e
posto em prática as medidas corre- utilizam todos os tipos de métodos.
tas. E regressarão com o saque para Desde a mais sofisticada (tal como
o labirinto de países onde não existe imitar a voz real de um CEO, usando

74 SUPER
Uma botnet é uma rede com aplicações maliciosas que cus-
ta entre cinco e duzentos euros). É
Serra, perito da Universitat Oberta
de Catalunya (UOC). Ou através do
remotamente controlada de o cibercrime as service. “Existem WhatsApp (chama-se smishing, imi-
computadores infetados markets de aplicação maliciosa para
todos os fins”, explica Lozano. É um
tação por mensagens instantâneas ou
SMS). Podem atacar de um fornecedor
aos quais se pode obrigar a ataque de ‘botão gordo’, é-lhes dado que tenha sido previamente infetado e
enviar spam um painel de controlo, modelos, e enviar-lhe uma factura com malware.
eles atacam sem grande conhecimen- Há também fraude de recursos hu-
to. “Temos uma grande variedade de manos: o cibercriminoso pirateia
inteligência artificial, um deepfake) vermes no labirinto e várias formas de contas de correio eletrónico e faz-se
até à simples força bruta para quebrar peste”, concluiria o nosso Sun Tzu. passar por alguém do departamento
uma senha não fiável (surpreen- A maioria de nós irá sofrer os ata- de pessoal, que pede que as folhas de
dentemente “1234” continua a ser a ques indiscriminados. Milhares deles pagamento sejam encaminhadas para
senha de referência) ou engenharia são lançados e o criminoso espera outras contas bancárias. Outras vezes
social (enviar-lhe um USB, fingindo que alguém morda. Têm um sistema eles utilizam o que se chama fileless
ser um colaborador próximo). de escuta que lhes diz quem descar- malware (não requer um ficheiro ma-
As suas tácticas são bem conhecidas, regou o malware ou introduziu os licioso, eles enviam-lhe um usb).
mas ainda funcionam: phishing (ata- seus dados. “As artes do inimigo são múlti-
ques em massa de correio eletrónico Podem fazer uma extorção dizendo plas”, conclui o CSO Sun Tzu. “O
que permitem que os dados do utili- que registaram uma masturbação do atacante só precisa de um buraco
zador sejam divulgados induzindo em utilizador (mostram ao utilizador a sua para entrar, o defensor tem de os ta-
erro o utilizador); ransomware (en- palavra-passe, mas é só para o assustar par a todos”, diz Serra.
criptação de informação através de um e ver se mordem). “Se enviarem um Ficamos com “conhece-te a ti mes-
vírus), ou acesso através de uma bre- milhão de e-mails e 0,5 por cento deles mo”, porque “a maioria dos incidentes
cha que foi resolvida há anos atrás, mas forem atingidos, já tiveram lucro”, diz tende a vir de erro do utilizador”, diz
que a empresa não atualizou. Lozano. “É a arte de pescar, não a guer- Lozano. Muito raramente “são amea-
“A arte da guerra é baseada no en- ra cibernética”, queixa-se Sun Tzu. ças avançadas, se forem bem sucedidas
gano”, diz o nosso CSO Sun Tzu. Têm Os outros tipos de ataques são os di- é mais culpa dos defensores do que dos
duas estratégias: o ataque maciço e rigidos. Procuram PMEs ou empresas atacantes”, conclui Albors.
indiscriminado e o ataque seletivo e que consideram interessantes. Espiam Há que ser “ciber-resiliente”. Deve
direcionado. Eles perpetram campa- o organigrama da empresa, controlam saber quais são os bens críticos da sua
nhas de infeção utilizando um exército as contas do LinkedIn dos emprega- empresa, aplicar medidas preventivas
de computadores zombies pré-infeta- dos. A fraude do CEO, por exemplo, e reativas, realizar uma auditoria de se-
dos, as redes botnets. “Dependendo consiste em fazer-se passar pelo CEO gurança, conhecer as vulnerabilidades
do tipo de ataque que queiram reali- através de e-mails ou de chamadas e encriptar a informação, encriptá-la
zar, utilizam certas técnicas que têm Zoom (vishing é quando utilizam você mesmo antes que o façam. De-
uma taxa de sucesso superior a ou- chamadas telefónicas) enquanto o terminar a atualidade do equipamento
tras”, explica Marco Antonio Lozano, CEO está na estrada. Em 2019, uma (são fugas). Estabelecer factores de
responsável de cibersegurança para empresa britânica de energia perdeu dupla autenticação. “Faça backups de
empresas do INCIBE. duzentos e vinte mil euros porque tudo e faça-o bem”, acrescenta Serra.
Procuram “o acesso a redes empre- imitaram a voz do seu CEO. Ter uma cultura em que os empregados
sariais e o roubo de informação, tais Utilizam ataques homográficos: aprendam a identificar perigos... Em
como credenciais de e-mail, acesso a url ou o endereço de correio ele- suma, é preciso conhecer o inimigo,
remoto, ou a informação confidencial trónico será muito semelhante ao mas acima de tudo é preciso conhecer-
da empresa e dos seus utilizadores”, legítimo, mudam uma ou duas letras. -se a si próprio: esta é a arte de antecipar
diz Josep Albors, diretor de pesquisa “jogam ao despiste”, explica Jordi o ataque. Puro Sun Tzu. e
da ESET, uma empresa de ciber-se-
gurança.
A maioria dos ataques que ocor-
rem em Espanha têm dois objetivos:
obter a informação para a vender aos
concorrentes ou extorquir dinheiro,
ameaçando publicá-la. Também há
ransoware, sequestrar computado-
res para exigir um resgate em moedas
criptográficas. À medida que a cultura
das cópias de segurança foi crescendo,
hoje em dia utilizam a “dupla com-
binação”: encriptam e roubam ao
mesmo tempo.
Grupos e clãs diferentes operam e
Dependendo do tipo
por vezes cooperam uns com os outros. de ataque que queiram
Alguns são altamente organizados e fazer, utilizam algumas
compartimentados. Isto já dá mais di- técnicas que têm uma
nheiro do que o tráfico de droga.
SHUTTERSTOCK

taxa de sucesso supe-


Há também ladrões que obtiveram rior a outras.
o seu exploit kit na deep web (um kit

SUPER 75
S A Ú D E

Um grupo de
SHUTTERSTOCK

peritos não
considera A
Covid-19 uma
doença, mas
uma «condição»
caracterizada
por sintomas
como cansaço
ou dores de
cabeça.

76 SUPER
HETEROGÉNEAS, DE DURAÇÃO VARIÁVEL
E AINDA NÃO COMPREENDIDAS

AS SEQUELAS DA
COVID-19 Falta de ar, fadiga, esgotamento,
problemas de sono, falta de olfato e
gosto, dificuldade de concentração,
dores de cabeça, distúrbios oculares,
ansiedade... Os sintomas persistentes
da COVID-19 caracterizam-se pela sua
heterogeneidade e duração variável.
Embora a investigação continue, muitas
incógnitas permanecem sem resposta.

Texto de JAVIER GRANDA REVILLA,


jornalista especializado em biomedicina.

SUPER 77
SHUTTERSTOCK
Tem sido sugerido que é
uma espécie de doença
auto-imune.

U
m dos estudos mais recentes ocorrer. É, portanto, uma definição muito ampla.
neste campo é a meta-aná- Estamos atualmente a trabalhar em Espanha para
lise publicada na revista da restringir a definição e adaptá-la à realidade dos
Academia Americana de Me- nossos pacientes», explica a Dra. Esther del Corral,
dicina(JAMA). Este trabalho internista e porta-voz da Sociedade Espanhola de
reviu sistematicamente qua- Medicina Interna.
renta e cinco investigações Como a perita salienta, «temos muitas incertezas
anteriores, envolvendo um quanto às causas e razões. Na maioria dos pacientes,
total de 9751 pacientes. Os os sintomas persistem, mas não há explicação para
autores advertem que os fu- a sua persistência. Foram apresentadas diferentes
turos estudos de sequelas de teorias, desde a de que pacientes que ainda têm re-
coronavírus devem ter um servatórios do vírus no seu corpo, ou que o sistema
seguimento a longo prazo, com desenhos padroni- imunitário foi alterado, até ao facto de continua-
zados que permitam uma quantificação precisa dos rem a ter sintomas. Ou que é uma espécie de doença
riscos. auto-imune ou que talvez os sintomas e a sua per-
«Continuamos a saber muito pouco sobre as se- sistência se devam às alterações na coagulação que
quelas a longo prazo da Covid-19. A Organização ocorrem durante a fase aguda. Mas, na realidade,
Mundial de Saúde publicou a 6 de outubro de 2021 neste momento, a causa da doença não é bem com-
uma definição baseada no consenso de um grupo de preendida.
peritos: não a considera uma doença, mas uma ‘con-
dição’ caracterizada por critérios tais como terem AUSÊNCIA DE MARCADORES. Outra dificuldade que
passado pelo menos dois/três meses após o diagnós- sublinha é que, atualmente, não existe um marca-
tico de infeção aguda e pela persistência de sintomas dor disponível para estratificar a gravidade de cada
como fadiga, dor de cabeça ou sintomas neurocog- caso, pelo que quando se faz uma análise ao sangue
nitivos, embora outros sintomas possam também ou uma radiografia ao tórax, os resultados são nor-

«Se o paciente teve a doença, passaram três meses e os


sintomas continuam, pensa-se que é uma covid persistente»
78 SUPER
Sequelas na visão
As variantes do
coronavírus modificaram
os sintomas da COVID-19
na nossa população.
O clusões venosas retinais e alterações da córnea são as
principais sequelas no olho. Estas oclusões são causa-
das pela formação de um trombo dentro de uma das veias
da retina, resultando num bloqueio do fluxo sanguíneo atra-
vés da retina. «Isto pode levar a edema macular, isquemia
da retina e outras complicações que podem resultar em gra-
ves perdas de visão», explica o Dr. Álvaro Fernández-Vega
González, oftalmologista da unidade de retina e vítreo do
Instituto Oftalmológico Fernández-Vega.
Como adverte, esta patologia ocorre mais frequentemen-
te em pessoas com factores de risco cardiovascular, mas
também tem sido observada em doentes saudáveis que
sofreram de covid. A infeção desencadeia uma resposta
imunitária com a libertação de mediadores inflamatórios
que promovem a formação de trombos em todo o corpo,
pelo que este mecanismo pode estar relacionado com o de-
senvolvimento de trombos, também nos vasos da retina, o
que pode levar a oclusões venosas da retina.
Um artigo recente, publicado na revista da Academia Ame-
ricana de Medicina(JAMA), avaliou a incidência de oclusões
vasculares da retina após infeção por Covid-19, analisando
432.515 pacientes que tinham covid e comparou a incidên-
cia de oclusões venosas da retina seis meses antes e seis
meses depois. O estudo constatou que houve um aumento
na incidência destas oclusões após a infeção covid, com
um pico de incidência entre a sexta e a oitava semana após
o diagnóstico.
Relativamente às alterações da córnea, destaca-se o estu-
SHUTTERSTOCK

do realizado pelo Instituto Oftalmológico Fernández-Vega


em conjunto com o Instituto de Investigación Sanitaria del
Principado de Asturias (ISPA) e o Instituto de Neurociencias
de la Universidad Miguel Hernández, que foi publicado na
revista The Ocular Surface. No estudo, concluiu-se que os
mais». Trabalhamos por critérios, portanto, se o pacientes que superaram a Covid-19 poderiam apresentar
paciente teve a doença, se passaram três meses e os alterações no tecido nervoso córneo compatíveis com a
sintomas continuam, pensa-se em covid persistente. neuropatia de fibras periféricas.
Mas, na verdade, não existem testes para o provar, e Estas alterações estiveram presentes em até 91% dos par-
não se pode procurar o vírus para provar que ainda ticipantes no estudo «e são semelhantes às encontradas
o tem. É um pouco frustrante para os pacientes por- nas córneas diabéticas ou com doença ocular seca, em que
que continuam a sentir-se mal, continuam a relatar há uma perda funcional e uma alteração de sensibilidade,
sintomas e temos poucas respostas a dar-lhes. E o levando à secura, irritação e mesmo dor. Há indicações de
mesmo com os medicamentos: não conhecemos a que estas sequelas podem ser duradouras e, em alguns ca-
causa e nenhum tratamento é benéfico, embora es- sos, permanecer presentes independentemente do tempo
tejam em curso muitos ensaios clínicos tanto sobre decorrido após a infeção». Algumas patologias da retina
medicamentos específicos como sobre biomarcado- também têm sido ligadas à Covid-19.
res e abordagens para mitigar os sintomas.
O sintoma mais comum da covid persistente é uma
sensação de falta de ar ou dispneia, presente em cer-
ca de um em cada quatro pacientes. O Dr. Antoni
Torres, pneumologista e membro da área de infeções
respiratórias da Sociedade Espanhola de Pneumolo- ção pulmonar demonstrou ser útil em alguns casos
gia e Cirurgia Torácica, salienta que, nestes casos, «mas outros não melhoram de todo. Também a tos-
quando se realiza um esforço, surge a fadiga e a sen- se pode melhorar com corticosteróides inalados,
sação de falta de ar. mas persiste noutros doentes.Em termos de inves-
tigação, no estudo CIBERES-UCI-COVID estamos a
«ISTO PARECE SER INDEPENDENTE DA GRAVIDADE AGUDA DO seguir oito mil pacientes e os ensaios clínicos estão
QUADRO». Mas quando são realizados testes, nada de centrados na imunomodulação de alguns deles».
específico é encontrado, exceto uma diminuição da A falta de cheiro e gosto após a doença estive-
capacidade de difusão do monóxido de carbono, o ram entre os primeiros sintomas descritos. A Dra.
que sugere um problema vascular pulmonar e, por Adriana Izquierdo-Domínguez, especialista em
outro lado, um problema de extração de oxigénio. Alergologia e membro da Sociedade Espanhola de
Outros pacientes queixam-se de dores no peito e Otorrinolaringologia, recorda que estas alterações
palpitações. Ou de tosse». sensoriais «continuam a ser frequentes nas nossas
Uma das dificuldades, na sua opinião, é saber se a consultas clínicas, em comparação com o período
Covid-19 remodela o tecido pulmonar. A reabilita- pré-pandemia. Mas, desde 2020 até agora, as dife-

SUPER 79
rentes variantes do coronavírus têm modificado a ciedade Espanhola de Neurologia, lembra-nos que os
apresentação clínica da COVID-19 na nossa popula- sintomas neurológicos «são muito comuns. Depois
ção: encontramos maior ou menor afetação do olfato de eliminar o vírus do corpo, muitos pacientes, tanto
nas diferentes ondas, assim como outros sintomas com formas leves como graves da doença, descre-
(muco, dor de garganta, dores de cabeça) comuns vem dificuldades de concentração, esquecimento,
à doença. Além disso, foi relatada uma menor gra- ausências... Estes sintomas foram mais frequentes
vidade dos sintomas (incluindo o cheiro) após a nas primeiras ondas, pelo que parece que a vacina-
imunização da população». ção tem um efeito protetor no seu aparecimento».
Será que a perceção da importância do olfato mu-
dou por ser tão frequentemente citado nos meios EVITAR A REINFECÇÃO. Nem os sintomas cognitivos
de comunicação social? Na sua opinião, sim. Como (tais como lapsos de concentração) nem as dores
sublinha, «antes da pandemia parecia um sentido de cabeça são devidos a danos irreversíveis no sis-
esquecido e hoje em dia é-lhe dada importância de tema nervoso. «Temos observado que a maioria dos
um ponto de vista médico, social e pessoal. As pes- doentes experimenta algumas melhorias ao longo do
soas em geral, não só os especialistas, sabem que tempo», descreve. Mas, como insiste, é necessário
estes sentidos podem ser afetados, que existem extremo cuidado para evitar a reinfeção porque mui-
estudos específicos e também possibilidades de tra- tos destes sintomas podem agravar-se novamente.
tamento». Quanto à dor de cabeça, se não desaparecer ao fim
As infeções virais já foram descritas como uma das de dois meses, normalmente torna-se uma dor de
principais causas de perda do olfato. «No caso da cabeça crónica. «É importante considerar um tra-
COVID-19, o mecanismo envolvido é multifactorial: tamento se a dor de cabeça persistir 60 dias após a
vai desde a obstrução dos odores pela inflamação da infeção. Em qualquer caso, todos os pacientes que
mucosa nasal, passando por lesões nas células que têm um impacto na sua vida diária devem ser ava-
mantêm a homeostase celular na mucosa olfativa, liados pelo seu médico de cuidados primários e, se
danos nos centros olfativos, disfunção dos neurónios necessário, pelo seu neurologista. Alguns sintomas
olfativos, até à inflamação podem beneficiar de reabi-
do epitélio olfativo pela res- litação».
posta imunitária local». Em crianças e adoles-
A realidade é que a evolu- A formação olfativa é uma centes, a prevalência de
ção dos pacientes dependerá, sequelas pós-covid é mui-
em grande medida, dos danos
iniciais e do tratamento pre-
técnica inovadora que é to baixa, diz a Dra. Yolanda
Martín Peinador, do Grupo
coce. A maioria dos pacientes,
como o Dr. Izquierdo-Domín-
indicada quando a perda de Patologia Infeciosa da
Associação Espanhola de
guez salientou, «recuperam
espontaneamente nos pri- do olfato é permanente, Pediatria de Cuidados Pri-
mários. A prevalência de
meiros 15 dias após a infeção.
No entanto, uma percenta- principalmente devido a covid persistente é estimada
entre 2% e 14%, com uma
gem de pacientes persiste predominância nas idades
com uma deficiência olfativa causas traumáticas entre doze e dezasseis anos
para além de trinta ou sessen- e com um tempo de persis-
ta dias e devem ser avaliados
pelo especialista para iniciar o
e pós-infeciosas tência dos sintomas entre
quatro e dezasseis semanas
estudo e tratamento». em média. Os sintomas mais
frequentemente relatados
TÉCNICA INOVADORA. As estratégias de tratamento são dor de cabeça, mal-estar e fadiga, entre outros.
das perturbações olfativas dependem da perda to-
tal (anosmia) ou parcial (hiposmia) do sentido do IMPACTO NA SAÚDE MENTAL. «O impacto que a pró-
olfato. Os corticosteróides, tanto tópicos como pria pandemia e as consequentes ações tiveram na
sistémicos, são indicados porque o seu efeito anti- saúde mental da população mundial deve ser real-
-inflamatório tem demonstrado melhorar muito o çado. E, acima de tudo, sobre os mais vulneráveis,
sentido do olfato. «No caso da COVID-19, só são tais como a população pediátrica. Foi documentado
recomendados se houver sintomas de acompanha- um aumento de distúrbios de ansiedade, fobias, dis-
mento, tais como muco ou obstrução nasal. Uma túrbios alimentares, problemas de relacionamento
técnica inovadora a destacar é a chamada ‘formação e integração social, muitos dos quais estão também
olfativa’, que é indicada quando a perda de odor é presentes nesta constelação de sintomas persisten-
permanente, especialmente devido a causas traumá- tes. Foram observados mais em adolescentes, no
ticas e pós-infeciosas. Tal como o treino físico, esta sexo feminino e naqueles com problemas psicológi-
técnica consiste em expor os pacientes diariamente cos anteriores», sublinha o pediatra.
a diferentes odores concentrados em recipientes in- «O prognóstico na covid persistente pediátrica
dividuais durante um mínimo de seis meses. Existem é geralmente bom com resolução dos sintomas na
provas científicas muito elevadas de que esta terapia maioria dos casos espontaneamente. No entanto,as
melhora a sensibilidade olfativa, não tem efeitos se- crianças com problemas médicos mais relevantes
cundários e encurta a evolução dos sintomas». exigirão uma intervenção mais específica e contínua
E os problemas de concentração e as dores de dos profissionais de saúde para ajudar à resolução
cabeça? O Dr. David García Azorín, membro da So- completa dos sintomas». e

80 SUPER
A chave pode
residir na falta de
diversidade de
um tipo de
glóbulo branco
nos pulmões dos
macrófagos.

SHUTTERSTOCK

Genes que protegem contra a infeção


P ara além das sequelas acima mencionadas, a infeção por coronavírus causa perturbações cardíacas - tais como ar-
ritmias, pericardite, insuficiência cardíaca - dores abdominais, diarreia, distúrbios cutâneos. A questão que tem sido
colocada é porque é que algumas pessoas ficam mais doentes do que outras e como evitar os piores sintomas.
A resposta pode residir em onze genes que determinam se as nossas defesas podem ou não repelir o ataque do corona-
vírus. De acordo com um estudo recentemente publicado na revista Cell Reports, baseado num modelo de rato, a chave
é a falta de diversidade nos pulmões dos macrófagos, um tipo de glóbulo branco do sangue. Estes, sendo inalado um
vírus, desempenham um papel fundamental no combate à infeção. A investigação está agora a concentrar-se na razão
pela qual esta diversidade celular existe em algumas pessoas e não noutras.

SUPER 81
HISTÓRIA EM IMAGENS 100 ANOS DA URSS

O COURAÇADO POTEMKIN, UM MITO DE AÇO


O primeiro tiro da Revolução foi disparado não em
São Petersburgo em outubro de 1917, mas 12 anos
antes, no distante porto de Odessa.

Nicolau II acreditava nas guerras. Como Longe de intimidar a tripulação, o


tantos outros governantes do seu tiro desencadeou a tempestade. Os
tempo, ele acreditava que elas eram guardas recusaram-se a abrir fogo e os
necessárias para moldar o patriotismo e oficiais foram cercados. O capitão, o Potemkin era um pré-
construir a essência de uma nação. Sob segundo e outros cinco homens foram dreadnought, ou seja, um dos
o seu domínio, a Rússia estava a falhar, atirados borda fora e o navio ficou na couraçados que se tornaram
e o jovem czar estava convencido de posse dos rebeldes, sob a liderança de obsoletos quando o primeiro
que uma guerra com o Japão uniria os um comité presidido por Matushenko. navio de guerra moderno,
corações de todos os russos. HMS Dreadnought, foi
Odessa estava um caos nessa altura.
Uma greve geral sacudia as ruas, e os lançado em 1906.
No início tudo parecia provar que ele
tinha razão, pois após o ataque japonês marinheiros rebeldes, após capturarem
a Port Arthur, o povo encheu as ruas a outro navio, o torpedeiro Ismail,
aplaudir o seu nome, mas esse conflito regressaram ao porto para iniciar um Este navio seria o
seria o primeiro prego no caixão do levantamento entre os outros navios primeiro no mundo
czar e da sua família. da esquadra. Uma vez em Odessa, e a hastear a bandeira
temendo a perda dos seus navios, as vermelha da revolução.
A destruição do esquadrão oriental
tripulações preferiram não desembarcar,
e a queda de Port Arthur, seguida da
limitando-se a apoiar os manifestantes
aniquilação do segundo esquadrão
com a ameaça dos seus canhões. O
czarista em Tutshima, afundaram as Torre da Popa
navio de guerra Pobedonosets juntou-
ilusões do autocrata. Em janeiro de
se ao motim, e as tripulações do resto
1905, a guarda do Czar massacrou
manifestantes que se aproximaram da frota recusaram-se a disparar sobre
do Palácio de inverno, pedindo pão o Potemkin.
e trabalho, e a ameaça de revolução O funeral de Vakulinchuk foi realizado
varreu a Rússia como um vento gelado. a 29 de junho, e em resposta à
De toda a Armada, só restou o concentração no porto, de apoio aos
esquadrão do Mar Negro. Um tratado marinheiros, as autoridades enviaram
proibia esta frota de atravessar tropas para reprimir a rebelião. Como
o Bósforo, o que a tinha salvo da aviso, o Potemkin abriu fogo, e tudo
destruição às mãos dos navios do ficou num impasse.
Contra-Almirante japonês Togo. Finalmente, na manhã do dia 30, o
O Potemkin era um dos navios que Potemkin e o Ismail zarparam. Os Bateria secundária
ainda içava a águia de cabeça dupla. O comandantes da frota sabiam que (16 peças de 152 mm e 14 peças de 76,2)
seu capitão, o apático Evgeny Golikov, uma tentativa de retomar o navio de
confiou no seu segundo oficial, Ippolit guerra poderia resultar numa revolta
Giliarovsky, um homem que acreditava de todo o esquadrão, e ninguém
que a disciplina só podia ser mantida tentou deter os rebeldes.
através da brutalidade.
Estes decidiram dirigir-se ao porto
A corrupção reinava na base de romeno de Constança para se
Odessa, e os intendentes, depois de abastecerem, mas como não colheram
roubarem às mãos cheias, compravam a simpatia das autoridades romenas,
comida podre para cortar custos e optaram por pedir asilo, depois de
cobrir o seu furto. A 27 de junho de abrirem as torneiras de inundação e
1905, quando o navio participava entregarem as armas e o controlo do
em exercícios de tiro, foi servido aos navio aos romenos.
marinheiros um guisado de carne
cheio de larvas, e estes recusaram-se a O navio foi reparado e regressou à
comer. Em vez de os ouvir, Giliarovsky Rússia, onde passou a chamar-se São
sacou da sua arma e acusou o Pantaleão. As autoridades tentaram
Sub oficial Matushenko, que tinha silenciar o que tinha acontecido,
apresentado as queixas, de motim. procurando dissipar os ventos de
Depois de ameaçar os marinheiros, revolução. Os seus esforços foram em
vão. A memória do Potemkin resistiu, Navios como o Potemkin, armados com peças de
ordenou que a guarda de bordo
e tornou-se um símbolo para os 305mm, foram concebidos em resposta aos navios
espalhasse uma lona de borracha
revolucionários. E o Czar, incapaz de de linha britânicos, por exemplo o HMS Majestik,
para que o sangue não manchasse o
convés de madeira e, vendo a agitação aprender a sua lição, envolver-se-ia de o maior pré-dreadnought de todos os tempos,
a crescer, disparou, matando o novo numa guerra desnecessária que lançado aproximadamente ao mesmo tempo que o
marinheiro Vakulinchuk. lhe custaria a sua coroa e a sua cabeça. navio russo. O esforço para construir uma grande
frota oceânica quase arruinou a Rússia.

82 SUPER
ASC
A criação da lenda
Fora da Rússia, os incidentes de Odessa não
fizeram muitas manchetes, mas hoje o coura-
çado Potemkin é um dos navios mais famosos
do mundo, graças ao trabalho do realizador de
cinema Sergei Eisenstein.
Em 1925, o governo soviético encarregou o
cineasta de fazer um filme para comemorar a
revolta de 1905. O seu trabalho, longe de ser
um simples filme de propaganda, tornar-se-ia
uma das obras-primas do cinema do século
O couraçado deslocava XX, notável pela sua utilização do plano como
12.500 toneladas e elemento narrativo e pela integração de cenas
poderia teoricamente aparentemente dispersas para construir uma
atingir 16 nós (30 km/h), trama coerente sem utilizar uma narrativa
mas com o lamentável linear. Curiosamente, a sequência que ficou
estado das suas caldeiras mais profundamente gravada na imaginação
não chegava a superar os coletiva não corresponde ao barco, mas ao
12 nós. massacre de civis nos degraus da avenida
de Odessa, com a imagem dramática de
um carrinho de bebé a cair das escadas.
Atualmente, estas escadas são um dos
lugares mais emblemáticos da cidade e uma
das suas mais importantes atrações turísticas.

Durante o motim, o Potemkin disparou

ASC
apenas dois projéteis, tentando alcançar o
Teatro de Odessa, onde o estado maior da
Armada se tinha reunido. Os seus disparos
Ponte de comando falharam, mas foram suficientes para
garantir que o navio não seria atacado.

A bateria principal consistia


Torre da Proa em duas torres, cada uma
com dois canhões Krupp
M1895 de 305 mm.

O líder dos marinheiros


Matushenko morreu na
Roménia, em 1907, mas
não antes de se encontrar
com os líderes socialistas
mais importantes da época,
incluindo o próprio Lenine.

O navio recebeu o nome do ministro


preferido de Catarina, a Grande. Por
coincidência, o seu nome é identificado
com uma política de corrupção, pois
O estado de conservação dos navios russos era o príncipe Potemkin favoreceu a
lamentável. A corrupção era a norma na Marinha construção de aldeias Potemkin - falsas
Imperial e os responsáveis pela manutenção povoações na Ucrânia - para dar uma
ILUSTRAÇÃO E TEXTO: JOSÉ ANTONIO PEÑAS

dos navios desviavam a maior parte do dinheiro impressão de opulência e encobrir a


para os seus próprios bolsos. A situação do situação desastrosa dos camponeses,
couraçado não era exceção, uma vez que a reduzidos à miséria e à escravatura pela
desmoralização e indisciplina tinham tomado rapacidade dos cobradores de impostos
conta de toda a frota do Mar Negro. da imperatriz.

SUPER 83
TA ER CT NÍ CO UL LO OG I A

O reconhecimento fa-
ISTOCK

cial do Facebook ou
do Instagram ou os as-
sistentes digitais, tais
como Siri, Alexa ou
Hey Google, são o ca-
valo de Tróia utilizado
pelas grandes corpo-
rações para extrair
dados sobre os nos-
sos interesses a fim de
nos manipular?

AS APPS ESTÃO
84 SUPER
Muitos de nós sentimo-nos espiados pelo nosso próprio telemóvel, tablet
ou computador quando discutimos um tópico numa chamada, mensagem
ou e-mail, e depois tropeçamos num anúncio relacionado com esse tópico
enquanto navegamos na Internet. Mas será que estamos realmente a ser
espiados pelas nossas aplicações?

Texto de HENAR L. SENOVILLA

A ESPIAR-NOS? SUPER 85
T
odas as manhãs, as crian- jam claras: vivemos num mundo hiper-conectado,
ças de uma qualquer família nós próprios despejamos uma vasta quantidade de
falam com a Alexa e pedem- informação sobre as nossas vidas e preferências em
-lhe para tocar canções ou aplicações, e a gestão de dados tornou-se o El Dorado
dizer-lhes como vai ser o desta era tecnológica. Onde estão os limites e quem os
tempo. Quando saem de casa, estabelece?
a Alexa não regista qualquer
atividade. O assistente pes- VIDA HIPERCONECTADA. Ninguém hoje negaria que a vida
soal deteta que a casa foi atual envolve uma utilização massiva de telemóveis,
deixada vazia. computadores, milhares de aplicações e a Internet. De
Ocasionalmente, falamos facto, os dados apoiam esta afirmação: existem ago-
com o nosso grupo de ami- ra mais linhas telefónicas móveis do que pessoas no
gos ou familiares sobre destinos a visitar ou sobre um mundo.
artigo que queremos comprar. Magicamente, após Segundo um relatório recente da Hootsuite, em 2021
pouco tempo, a informação sobre o conteúdo exato de doram feitos cerca de 230 mil milhões de downloads
que falávamos aparece no nosso motor de busca. Os de apps. Se olharmos para o tipo de aplicações des-
nossos dispositivos estão a espiar-nos? O telemóvel carregadas, a tendência desde 2020 tem sido marcada
tem ouvidos, e olhos o computador? Estes dispositi- pela pandemia gerada pela COVID-19: as aplicações
vos captam a nossa informação? O que fazem com ela? de restaurante para encomendar comida em casa são
Estamos suficientemente protegidos pela legislação as aplicações mais instaladas, seguidas pelas lojas de
contra a utilização dos nossos dados? roupa, calçado e moda.
Não há conclusões inequívocas sobre esta espinhosa Por outro lado, cada vez mais pessoas utilizam
questão em torno da qual são geradas opiniões contra- aplicações para fazer compras ou transações, o que
ditórias e não há unanimidade, nem sequer legislativa significa várias aplicações diferentes instaladas nos
a nível internacional. Embora certas premissas se- seus telemóveis para este fim. A isto some-se o cresci-

Alguns spyware são capazes de ativar câmaras e microfones para


ver e ouvir tudo sem que o utilizador se aperceba de nada
SHUTTERSTOCK

IMUNE
DIGITALIZAÇÃO
IMUNE
SAUDÁVEL
SAUDÁVEL

DIGITALIZAÇÃO

DIGITALIZAÇÃO
INFETADO
DIGITALIZAÇÃO

SAUDÁVEL

Pela sua conceção, algumas das aplicações que


IMUNE descarregamos têm a capacidade de nos espiar
ou, pelo menos, de capturar dados sem que
tenhamos consciência disso, como aconteceu
durante a pandemia.

86 SUPER
Suspeita devido à falta
mento do número de horas que passamos a consultar
as aplicações: em média, cada pessoa passou, em 2021, de conhecimento
quatro horas e 48 minutos por dia em apps móveis,
um aumento de 30%, comparado com 2019.
E o que é que isto realmente significa? Quantos
mais telemóveis, mais aplicações descarregadas e
E m Democracia e Verdade, a autora Sophia Rosenfeld sugere
que as teorias da conspiração prosperam em sociedades
com grandes lacunas de conhecimento sobre questões co-
utilizadas, e mais transações online. Há mais possi- mo os avanços tecnológicos ou as possibilidades que estes
bilidades de obter informações sobre os utilizadores, proporcionam. De acordo com o seu raciocínio, as empresas
as suas preferências, a sua situação económica, os tecnológicas podem (ainda) não nos governar, mas têm aces-
seus horários, as suas localizações... Dados extre- so a conhecimentos e recursos que o cidadão médio ainda não
mamente valiosos para um marketing cada vez mais possui. De facto, o fosso cada vez maior é o fosso entre as coi-
personalizado que modula as suas mensagens, canais, sas que podem ser feitas tecnologicamente e a compreensão e
frequências e intensidades de acordo com o segmento conhecimento da sociedade sobre como são feitas e o que im-
alvo, de tal forma que o bombardeamento publicitário plicam. Em The Workshop and the World, Robert Crease observa
destinado a aumentar o nosso consumo é muito mais como «se cria uma lacuna entre aqueles que não conseguem
eficiente. Mas será que esta informação é acedida por- compreender esta linguagem (tecnológica) especial e aqueles
que a autorizamos ou porque os dados são extraídos que a compreendem, o que facilita a desconfiança dos primei-
de forma fraudulenta? ros em relação aos segundos».

TRANSFERÊNCIA DE DADOS... Se os nossos telefones e

SHUTTERSTOCK
Os canais laterais são métodos de
computadores nos ouvem, fazem-no em parte com a acesso não monitorizados, como
nossa permissão. Quando descarregamos aplicações, se estivessem a entrar pela janela
damos permissão aos seus termos de utilização, e ao da sua casa.
fazê-lo, estamos a dar o nosso consentimento para
que tenham acesso às funcionalidades de imagem e
som dos nossos dispositivos.
Esta é a resposta às perguntas que nos são feitas
quando estamos a instalá-las, exigindo que lhes per-
mitamos o acesso às nossas câmaras ou microfones.
De facto, na maioria das vezes, estas permissões não
respondem a uma necessidade real de funcionamento
das aplicações, mas servem antes para criar um am-
biente publicitário mais eficiente.
Juntamente com estas permissões, fornecemos-lhes
a nossa idade, a nossa localização, os nossos interesses,
os sítios que visitámos, as coisas que vimos através das
pesquisas que fizemos ou as dezenas de questionários
que respondemos sobre diferentes tópicos. embora isso não signifique que não existam aplicações
Quando o Twitter ou o Instagram nos enviam infor- que o façam. O que todas as aplicações devem fazer é
mações sobre um assunto em particular, por exemplo, oferecer-lhe os seus termos de utilização, para que
não é porque tenham ouvido as nossas conversas, mas qualquer utilizador os possa conhecer», explica Víctor
porque, em algum momento, escrevemos um concei- Villagrá, Diretor Adjunto de Estudos da Escola Técnica
to relacionado num motor de busca. As nossas vidas Superior de Ingenieros de Telecomunicación e Diretor
digitais estão entrelaçadas com as nossas vidas reais do Mestrado em Cibersegurança da Universidade Po-
através dos motores de busca. Por esta razão, o Goo- litécnica de Madrid. «Contudo, isto é para aplicações
gle não precisa de ler as nossas mentes, apenas o que legítimas. Com as ilegítimas, tudo é possível».
lhe pedimos para pesquisar. Os algoritmos utilizados Luis Felipe López Álvarez, professor de Direito Ad-
são programados para fornecer conteúdos promocio- ministrativo na Universidade a Distancia de Madrid
nais adaptados aos nossos interesses, com base nas (UDIMA), concorda: «Dependendo da sua conceção,
pesquisas que fazemos. Se tivermos a geolocalização as aplicações têm a capacidade de nos espiar, ou se-
ativada, estamos também a enviar o local onde nos ja, de captar dados sem que tenhamos conhecimento
encontramos. dos mesmos. Por esta razão, a legislação nacional e da
União Europeia estabeleceram disposições extremas
...E ESPIONAGEM DIGITAL. Até este ponto, o consenso sobre transparência e o dever de informar quando os
poderia ser generalizado, uma vez que todos nós ex- dados são capturados».
perimentamos estes pedidos constantes de acesso ao A este respeito, um estudo conduzido por dois aca-
microfone ou à câmara dos nossos dispositivos quan- démicos espanhóis, Narseo Vallina-Rodríguez, da
do descarregamos uma aplicação e introduzimos as IMDEA Networks e ICSI (Universidade de Berkeley),
nossas dúvidas, preocupações ou desejos nos motores e Juan Tapiador, da Universidade Carlos III de Madrid,
de busca da Internet. Mas, por outro lado, existem sobre mais de 1700 telefones de 240 fabricantes, con-
realmente aplicações, software ou funcionalidades cluiu que os dispositivos que executam o Android têm
invisíveis (e não autorizadas) de dispositivos que estão mecanismos de recolha de dados incorporados que
a roubar os nossos dados sem o nosso conhecimento? capturam dados e os vendem sem o consentimento
«A questão de saber se as aplicações nos espiam é dos utilizadores. Isto seria software pré-instalado que
uma questão difícil de responder, uma vez que existem não pode ser removido do sistema porque ao fazê-lo, o
muitos tipos de aplicações. Em geral, eu diria que não, telefone deixaria de funcionar. Da mesma forma,este

SUPER 87
Spyware, um tipo de
código malicioso,
tenta ficar escondido
em dispositivos
enquanto regista
SHUTTERSTOCK

secretamente
informações.

mesmo investigador, Vallina-Rodríguez, analisou em canais laterais seriam métodos de acesso não monito-
2018 mais de sete mil aplicações Google Play na cate- rizados, ou seja, algo semelhante a entrar na sua casa
goria destinada às famílias e mostrou que 51 delas não através de uma janela em vez de através da porta, en-
cumpriam a regulamentação dos EUA em matéria de quanto os canais cobertos permitiriam a partilha de
proteção de dados. informação através de uma rota alternativa, que seria o
Richard Stallman, físico e programador americano, equivalente a alguém abrir a porta traseira da sua casa
ativista e fundador do movimento do software livre, o para ter acesso a ela.
sistema operativo GNU e a Free Software Foundation,
tem vindo a denunciar há anos a espionagem telefóni- E DEPOIS HÁ O SPYWARE. Este é um tipo de malwa-
ca. Stallman afirma que os nossos dispositivos emitem re, ou código malicioso, que infeta o computador ou
sinais de localização a cada dois ou três minutos pa- dispositivo móvel. Tenta manter-se escondido nos dis-
ra tornar os nossos movimentos visíveis e que alguns positivos enquanto regista secretamente informação e
processadores telefónicos podem impor mudanças permite ao telemóvel, tablet ou computador continuar
remotas de software, que não são conhecidas (e por as suas atividades online normalmente, ao mesmo
isso não consentidas), para as transformar em dis- tempo que monitoriza e copia tudo o que é digitado,
positivos de escuta que nunca se desligam e emitem carregado, descarregado e armazenado.
constantemente dados. Alguns spyware são também capazes de ativar câ-
A isto juntar-se-iam os chamados canais de cober- maras e microfones para ver e ouvir tudo sem que o
tura e os canais laterais dos nossos dispositivos. Os utilizador se aperceba de nada. Ao contrário dos vírus,

88 SUPER
Existem aplicações, software
ou funcionalidades invisíveis
(e não autorizadas) em
dispositivos que estão a
roubar os nossos dados sem
o nosso conhecimento?

Como saber se
estamos infetados por
spyware?
O s sinais que os nossos dispositivos podem estar infetados
incluem: desempenho mais lento do que o normal, falhas
ou pendências frequentes, pop-ups descontrolados; alterações
não solicitadas na página de início do navegador, ícones novos
ou não identificados que aparecem na barra de tarefas, buscas
na web redirecionadas para diferentes motores de busca, ou
receção de mensagens não identificáveis em aplicações que
normalmente funcionam bem.

mesmo se passa com os cartões de crédito. Todos os


prestadores de serviços estão sujeitos à legislação
existente, o que requer uma série de controlos e ve-
rificações. E, em geral, estes controlos são eficazes,
embora possam existir exceções», explica Víctor
Villagrá, Subchefe de Estudos da Escola Técnica Su-
perior de Ingenieros de Telecomunicación e Diretor
do Mestrado em Cibersegurança da Universidade Po-
litécnica de Madrid.
Luis Felipe López Álvarez, professor de Direito Ad-
ministrativo na Universidade a Distancia de Madrid
que procuram propagar-se, o código malicioso é con- (UDIMA), tem uma opinião semelhante: «A proteção
cebido para permanecer escondido nos dispositivos de dados varia muito e depende de quem capta os da-
que infeta. dos. Antes de processar os dados, é necessário realizar
Os controlos parentais, por exemplo, que limitam uma avaliação de risco e adotar as medidas necessárias
a utilização de dispositivos e bloqueiam o conteúdo para garantir a sua segurança».
adulto a que os menores podem aceder por ação dos Do ponto de vista do utilizador, algumas orientações
seus progenitores, são também uma forma de spy- simples que ajudariam a reforçar a proteção dos nos-
ware, embora neste caso com uma finalidade válida. sos dados seriam «pelo menos ler a informação básica
Os utilizadores frequentes de banca online ou utiliza- sobre proteção de dados, não instalar aplicações de
dores do Windows são vítimas comuns de spyware fontes desconhecidas, levar tempo a selecionar os ní-
malicioso, que violam qualquer forma de proteção de veis de privacidade dos nossos dispositivos, manter o
dados. nosso sistema operativo atualizado e ter uma firewall
e um antivírus», conclui López Álvarez.
SEGURANÇA DOS DADOS. Também não é possível gene- Tanto os utilizadores como as empresas tecnoló-
ralizar sobre a segurança dos dados que despejamos gicas devem avançar para um comportamento ético
nas aplicações que temos nos nossos dispositivos. e responsável que nos proteja e nos impeça de nos
«Depende da aplicação, fornecedor de serviços... tornarmos naquilo a que Richard Stallman chamou
Damos as nossas próprias palavras-passe, que são «seres utilizados» pela tecnologia e o lucro que lhe
frequentemente partilhadas entre aplicações. O está associado. O debate está servido. e

SUPER 89
PSICOLOGIA

Eichmann estava
GETTY

separado do
tribunal, das
testemunhas
oculares e da
imprensa por uma
cela de vidro
reforçado e
permanentemente
guardado por dois
polícias armados.

90 SUPER
OBEDIÊNCIA DEVIDA

AS
EXPERIÊNCIAS
DE MILGRAM
Em 1961, após o julgamento do nazi Adolf
Eichmann, o psicólogo Stanley Milgram,
professor em Yale, começou a questionar
se é verdade que alguém, dependendo
de um sistema autoritário e altamente
hierárquico, pode realmente opor-se a
uma ordem direta de um superior. Que
conclusões tirou ele?

Texto: DAVID CUADRADO, psicólogo


especializado em comportamento de grupos.

SUPER 91
«Eichmann era
um homenzinho
mole, um pouco
patético e
normal, não
parecia ter
matado milhões
dos nossos...
mas organizou a
matança».
GETTY

92 SUPER
Embora na última fase, as ordens
de deportação tivessem vindo de
Heinrich Himmler, Adolf
Eichmann foi diretamente
responsável pela organização
logística da Solução Final.

AGE
N
a sala do tribunal onde foi cia do seu trabalho. Apesar de, no seu último período
julgado, em Jerusalém, o pri- nessa tarefa, as ordens específicas de deportação terem
sioneiro estava separado do vindo de Heinrich Himmler, Eichmann foi sem dúvida
tribunal, das testemunhas diretamente responsável pela organização da logística
oculares e da imprensa por necessária para a Solução Final.
uma cela de vidro reforçado
e permanentemente guarda- OLHANDO PARA ELE, ESTE AUSTRO-ALEMÃO NÃO PARECE SER O
do por dois polícias armados. MONSTRO QUE O PROCURADOR GABRIEL BACH DESCREVE. Um
Foi apenas alguns meses antes dos seus captores relata: «Eichmann era um homem
(maio de 1960) que um pelotão pequeno e mole, algo patético e normal, não parecia ter
de oito agentes Shin Bet israeli- morto milhões dos nossos..., mas organizou a matança».
tas o havia capturado na Argentina, onde se escondia sob Eichmann invocou com o seu advogado, Robert
a identidade de Ricardo Klement, gerente de uma fábrica Servatius, a obediência devida aos superiores: «Não
da Mercedes Benz na Grande Buenos Aires . A sua captura persegui os prisioneiros com ganância ou prazer. Foi o
foi possível graças a um vizinho, um emigrante judeu ce- governo que o fez (...). Acuso os governantes de terem
go chamado Lothar Hermann que, interpretando o que a abusado da minha obediência». Adolf Eichmann foi jul-
sua filha Sofia lhe dizia das suas visitas à casa de Klement, gado por genocídio e condenado à forca. A sentença foi
identificou o antigo criminoso de guerra nazi, Standar- executada a 31 de maio de 1962 na prisão de Ramla.
tenführer (Coronel) Adolf Eichmann. O famoso caçador Um dos profissionais presentes no julgamento foi a
nazi Simon Wiesenthal corrobora a sua identidade. escritora e teórica política de origem judaica e emigran-
Quando, em julho de 1941, o Marechal Goering deu a te da Alemanha durante o nazismo, Hannah Arendt.
Reinhard Heydrich autorização escrita para uma solu- Assistiu como repórter do The New Yorker, e o que viu
ção total da questão judaica, colocou a organização e a e ouviu condicionou a sua opinião sobre a moralidade
logística nas mãos do seu adjunto Eichmann. Este, com humana. Em 1963, publicou Eichmann em Jerusalém,
escrupulosa eficiência, enumerou as vítimas, organizou um estudo sobre a banalidade do mal que lhe causou
os preparativos, definiu os processos e pôs em marcha não poucos conflitos tanto com a opinião pública judai-
a maquinaria que permitiu a transferência e execução ca como com outros pensadores e filósofos, tais como
de, segundo algumas estimativas, mais de dois milhões Hans Jonas, autor de O Princípio da Responsabilidade.
de judeus, cujo destino dependia diretamente da eficá- Embora Arendt não acreditasse que haja um Eichmann

Adolf Eichmann foi condenado por genocídio e


condenado à forca na prisão de Ramla
SUPER 93
GETTY

Em julho de 1941, o
Reichsmarshal Goering deu a
Reinhard Heydrich autorização
escrita para uma solução total
da questão judaica.

em cada ser humano (como foi acusada), nem ques- No mesmo ano do julgamento, o psicólogo Stan-
tionasse o resultado do veredito, ela sentiu que era um ley Milgram, professor em Yale, perguntou-se se era
erro apresentá-lo como um vilão. Criticou a criação de verdade que alguém, dependendo de um sistema
um caso estrela para poder mostrar ao mundo que eles autoritário e altamente hierarquizado, poderia real-
eram capazes de punir um verdugo. mente opor-se a uma lei, a uma ordem direta de um
superior. E decidiu realizar uma série de experiências
ELA MESMA AFIRMOU: «FOI COMO SE NAQUELES MINUTOS EI- que publicou num livro ao mesmo tempo que Arendt.
CHMANN RESUMISSE A LIÇÃO QUE A SUA LONGA CARREIRA do O seu título é explícito: Estudo Comportamental da
mal nos ensinou, a lição da terrível banalidade do mal, Obediência.
perante a qual as palavras e o pensamento se tornam Em julho, iniciou as suas experiências a fim de testar
impotentes». e medir a vontade de um participante disposto a obe-
decer às ordens de uma autoridade, mesmo quando
estas possam entrar em conflito com a sua consciên-
cia pessoal. Nas suas próprias palavras: «Será que
Eichmann e os seus mil cúmplices do Holocausto esta-
É uma coisa alemã vam apenas a seguir ordens? Poderíamos chamar-lhes
todos cúmplices?».

N os EUA, a investigação de Milgram foi frequentemente


descartada como «coisa alemã» e, portanto, nada a ver
com o comportamento dos americanos mais éticos. No entan-
Juntamente com a sua equipa de colaboradores,
colocou uma placa numa paragem de autocarro em
Connecticut, apelando a voluntários para um estudo
to, as atrocidades cometidas na Guerra do Vietname vieram sobre memória e aprendizagem na Universidade de Ya-
sacudir a opinião pública do seu falso sono. Especialmente o le. Para encorajar a participação, decidiu oferecer-lhes
que aconteceu na aldeia vietnamita de My Lai, onde soldados uma compensação de quatro dólares mais alimentação.
americanos sob o comando do Tenente W. Calley e seguindo Reuniu um grupo de pessoas «normais» entre os vinte
as suas ordens, depois de aterrarem perto da aldeia, cercaram e cinquenta anos, incluindo trabalhadores de colari-
homens, mulheres e crianças e metralharam-nas sem qualquer nho azul, estudantes, desempregados e doutorandos.
outra justificação. Cerca de 370 pessoas foram mortas por exe- A experiência exigia o envolvimento de três interve-
cutarem o que o tenente considerou serem ordens legítimas. nientes: um experimentador (que era um dos próprios
Uma sondagem telefónica de Gallup revelou que 79% dos ame- investigadores de Milgram), um professor e um aluno.
ricanos desaprovaram que Calley fosse acusado de homicídio Foi dito aos participantes que eram escolhidos «ao
premeditado. acaso» como professores ou alunos, mas eles não sa-
biam que a única opção era serem escolhidos como

94 SUPER
ASC
Em 1961, Hannah Arendt assistiu ao
julgamento de Adolf Eichmann como
repórter do The New Yorker, e o que
professores. De facto, os alunos eram atores que ti- viu e ouviu condicionou a sua opinião
nham de desempenhar o seu papel de forma credível sobre a moralidade humana.
e em ligação com o experimentador. Milgram estava a
esconder o verdadeiro objetivo da investigação.

O EXPERIMENTADOR EXPLICAVA AO PROFESSOR QUAL ERA


O SEU PAPEL: ELE LERIA AO ALUNO UMA LISTA DE PARES DE
PALAVRAS QUE O ALUNO TINHA DE MEMORIZAR. Depois le-
ria apenas a primeira palavra e o aluno teria de dizer
a segunda palavra, escolhendo entre quatro possibili-
dades que lhe eram oferecidas. Cada vez que o aluno,
separado por um módulo de vidro, cometia um erro, o
professor devia castigá-lo com um choque elétrico que
variava entre quinze volts (o único que realmente exis-
tia e que o próprio professor experimentou no início)
e um de quatrocentos e cinquenta volts, o que indi-
cava um risco claro de morte. Se a resposta estivesse
correta, o professor poderia passar diretamente para a
pergunta seguinte.
Para tornar a experiência mais plausível, o estu-
dante estava sentado no que parecia ser uma cadeira
elétrica, com elétrodos no seu corpo e untado com
creme para evitar as supostas queimaduras. Foi dito
aos participantes que a experiência estava a ser regis-
tada para que mais tarde não pudessem negar o que
tinha acontecido.
À medida que a experiência avançava, os estudan-
tes começaram a mostrar sinais de dor e desconforto.
Batiam no vidro que os separava do professor.
Uivavam de dor. Reportavam problemas cardiovas-
culares. Aos duzentos e setenta volts gritavam em
agonia. Com trezentos volts, o estudante deixava de
responder a perguntas e produzia estertores pré-
vios ao coma. Se fossem alcançados quatrocentos e
cinquenta volts, invariavelmente, parecia que o es- As respostas variaram de 0,1% a 1,5%: basicamente, a
tudante tinha morrido. percentagem de psicopatas que pode haver na popula-
Normalmente, quando se alcançavam setenta e cin- ção normal.
co volts, os professores mostravam o seu desconforto Os resultados deram um golpe definitivo no que sa-
na experiência. Com cento e trinta e cinco volts, al- bemos sobre a moralidade e o nosso livre arbítrio para
guns deles quiseram parar e questionaram o objetivo tomar decisões sob pressão. Uns inimagináveis 65%
da experiência, afirmando também que não se sentiam dos sujeitos do estudo atingiu o limite de punição.
responsáveis pelas consequências dos seus atos. Apesar do desconforto que muitos expressaram e da
As respostas dos experimentadores eram clas- aparente rejeição, nenhum professor parou até atingir
sificadas de acordo com um protocolo rigoroso. o nível de pelo menos 300 volts. Em 1999, foi publicada
Quando os professores não queriam continuar, os uma meta-análise de investigação semelhante. Em to-
experimentadores admoestavam-nos, cada vez mais dos os casos, o resultado das experiências variou entre
imperativamente, dizendo: «por favor continue», «a 61% e 66%, independentemente do ano da experiên-
experiência exige que continue», «é absolutamente cia ou da localização dos estudos.
essencial que continue», «não tem escolha. Deve con- Algumas variações da experiência mostraram que
tinuar». O estudo era encerrado quando o professor se os resultados percentuais desciam quando o aluno era
recusava a continuar após o quarto aviso... ou quando colocado próximo do professor, as instruções que o
o professor tinha administrado o máximo de volts ao professor recebia eram feitas por telefone, ou a expe-
aluno três vezes seguidas. riência era feita fora do enquadramento regulamentar
Antes de iniciar a investigação, Milgram tinha de uma universidade (por exemplo, uma companhia
perguntado a um grupo de especialistas em compor- de seguros).
tamento, psicólogos e psiquiatras, qual o número de Mas, ao contrário, subia (até 90%) quando o aluno
pessoas que estimavam ser capazes de administrar o estava numa sala distante onde os seus gritos e gemi-
castigo máximo seguindo as ordens do experimentador. dos não podiam ser claramente ouvidos, havia mais do

«Quem diz que eu, que condeno uma injustiça, afirmo ser
incapaz de o fazer eu própria?» escreve Hannah Arendt
SUPER 95
Técnica de imposição um instrumento que realiza os desejos e ordens de uma
gradual autoridade e, portanto, não se considera responsável
pelos seus atos; também vê o «outro» como um sujei-

O cumprimento gera o cumprimento. Se induzir uma pessoa


a cumprir uma pequena exigência inicial, é mais prová-
vel que mais tarde a faça cumprir uma exigência maior. Assim,
to reificado que merece ser punido pelos seus próprios
atos. Esta é a base, para Milgram, do respeito militar
pelos superiores: os soldados seguirão, obedecerão e
durante a Guerra da Coreia, os chineses que interrogavam executarão as ordens e instruções dadas pelos superio-
os americanos começaram por pedir a assinatura de um do- res, uma vez que a responsabilidade recai sobre eles e
cumento sem compromisso, para acabarem por aceitar uma não sobre aqueles que as executam.
declaração anti-americana. Ou os vendedores começam com Talvez a investigação de Milgram tenha sido uma
um pequeno pedido (Tem um minuto para me explicar como...?) das experiências mais cruciais na história da psico-
antes de oferecer o produto ou serviço. Ou os políticos pedem logia, mas centrou-se na própria existência do livre
um pequeno esforço temporário antes de o tornarem perma- arbítrio. Sem questionar essencialmente esta capa-
nente. Ou os abusadores começam por justificar pequenos atos cidade do ser humano, elas servem como explicação
(gritos, insultos, pancadas nas paredes...) antes de passarem e espelho de comportamentos que, aparentemente,
ao nível seguinte. Ou... em suma, uma grande exigência ou um não têm compreensão quando vistos à distância do
grande abuso começaram quase sempre de uma forma mais tempo, do espaço e da complacência que a nossa zona
suave e subtil. Vai continuar a confiar? de conforto nos proporciona. Acontecimentos como
o uso abusivo da força em situações de conflito ou de
injustiça são mostrados como um simples «foram as
ordens recebidas». E a partir dessa tese defenderemos
o uso da violência em manifestações pacíficas, balas
que um experimentador a pressionar o professor, ou de borracha para afastar migrantes que acabarão por
era incluída uma figura de autoridade (como um polí- morrer no mar, violações dos direitos humanos em
cia) para reforçar a ordem de executar o castigo. qualquer guerra, ataques indiscriminados ou o uso
de tecnologia que permita o assassinato seletivo por
O PRÓPRIO MILGRAM OFERECEU DUAS TEORIAS QUE PODERIAM drone, ou o assassinato de civis ao toque de um bo-
EXPLICAR ESTE RESULTADO INESPERADO. Uma é a teoria do tão num míssil lançado a centenas de quilómetros de
conformismo que surgiu após as experiências de So- distância.
lomon Asch em 1951, que tratavam sobre os efeitos da É-nos permitido continuar a ter fé no ser humano,
pressão dos pares nos processos de tomada de decisão. mas as palavras de Hannah Arendt ainda ecoam no ar:
A outra refere-se à própria teoria de reificação de Mil- «Quem diz que eu, que condeno uma injustiça, afirmo
gram: por um lado,a pessoa que obedece vê-se como ser incapaz de o fazer eu próprio?» e
ARCHIVE COLLECTION

A investigação de Stanley Milgram


centrou-se na própria existência
do livre arbítrio.

O experimentador explicava ao professor qual era o seu papel: ler para


o aluno uma lista de pares de palavras que este devia memorizar

96 SUPER
INVESTIMENTO CRIPTOMOEDAS

SEIS DICAS PARA EVITAR COMETER


ERROS COM CRIPTOMOEDAS
É UMA BOA IDEIA COMPRAR CRIPTOMOEDAS? A RESPOSTA DEPENDE MUITO DE A QUEM
SE PERGUNTA. AQUI ESTÃO ALGUMAS SUGESTÕES PRELIMINARES ESSENCIAIS.
Texto: LAURA G. DE RIVERA

M
esmo os defensores vestidores espanhóis têm sido levados San Nicolás, professor na Faculdade
mais entusiastas des- pelas baixas taxas de juro a procurar de Ciências Sociais e Jurídicas da Uni-
tas moedas «livres» e outros produtos de investimento». versidade Internacional de Valência
descentralizadas, como «Há uma transferência de riqueza e especialista em Blockchain. Car-
Carlos Aránguez, presidente da como nunca antes, que transformou los Aránguez aconselha a obtenção
Asociación de Usuarios de Cripto- pessoas médias em grandes milio- de informação em fóruns e websites
monedas, sublinham o seu elevado nários», diz Alberto Gómez Toribio, oficiais de prestígio sobre o produto
risco, «devido à sua elevada vola- professor na Universidade Interna- em que está a investir. «Os avisos da
tilidade, porque a taxa de câmbio cional de La Rioja (UNIR), chefe das CNMV ou fóruns como o Tulip Resear-
flutua muito mesmo em segundos relações institucionais na Cryptoplaza ch são especialmente úteis».
e devido à elevada probabilidade e antigo chefe da tecnologia de Block-
de fraude, uma vez que se trata de chain na Bankia . 2. Comece pequeno. «Se entender
um produto intangível e inova- Mas «pode perder todo o dinheiro alguma coisa, compre cem euros. Se
dor». Por bons motivos, a CNMV que investiu, as moedas criptográfi- ganhar ou perder e compreender por-
e o Banco de Espanha apoiaram o cas não estão ligadas a nenhum ativo quê, continue a investir. Se não, não
aviso das Autoridades Europeias real, são muito voláteis e podem de- o faça», sugere Alejandro San Nicolás.
de Supervisão do sistema finan- saparecer de um dia para o outro.
ceiro, numa declaração publicada Não são reguladas ou supervisionadas 3. «Invista o que não precisa», acon-
em Março, onde salientaram que por nenhum organismo que ofereça selha Aránguez. Pela sua parte, Gómez
«os criptoativos não são adequados proteção aos utilizadores», adverte Toribio sugere investir a parte que as
como investimento ou como meio Marqués. Estas são as dicas dadas pe- moedas criptográficas representam
de pagamento para a maioria dos los peritos entrevistados: no mercado global: «Se representam
consumidores de retalho». 2%, não lhes dedique mais de 2% da
José Manuel Marqués, chefe da Di- 1. Estudar. «Até saber o que é um bit sua carteira de investimentos».
visão de Inovação Financeira do Banco coin, não o compre. Noventa e cinco
de Espanha, observa que «muitos in- por cento dos investidores em moe- 4. Cuidado com os milagres. Evite
das criptográficas não sabem no que projetos que prometem elevados re-
estão a investir. Isso é um perigo, tornos num curto período de tempo e
Os criptoativos não são porque muitas pessoas estão a ficar que exigem que retenha parte do seu
adequados como um falidas. Antes de comprar, devem investimento inicial durante algum
compreender o que está por detrás de tempo. «É provavelmente um esque-
investimento para os cada moeda, quais são os seus riscos ma em pirâmide», adverte Aránguez.
consumidores retalhistas e vulnerabilidades», diz Alejandro
5. Operar com pés de chumbo. Não
Não estão só na escolha do que comprar, mas
ligadas a ne- também na gestão do que já se tem.
nhum bem real, Pela própria natureza da tecnologia
podem desapa- da blockchain, os registos que faz não
recer da noite são reversíveis: se cometer um erro
para o dia. num número ao fazer uma transfe-
rência, não há como voltar atrás.

6. Escolher um operador regulamenta-


do. Certifique-se de que o seu operador
de câmbio é regulado pelo Banco de
Espanha em termos de regulamenta-
ção sobre branqueamento de capitais
e prevenção do terrorismo e tenha
em conta a sua segurança e reputa-
ção, «embora tenha havido fraudes e
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roubos de senhas em todos os tipos de


serviços», salienta Marqués. e

SUPER 97
HISTÓRIA DE FICÇÃO CIENTÍFICA POR SERGIO PARRA
SHUTTERSTOCK

Uma crença da
Ásia Oriental
sustenta que um
fio vermelho nos
prende à pessoa
que estamos
destinados a
amar.

RED THREAD
ões uma cara de pato, foto. notavelmente semelhante, sim, mas apre- - O meu também.

P Colocas o dedo na boche-


cha, foto. Exibes o indicador
no coração como símbolo de
sentava as diferenças de que precisavas.
- Red Thread é… começaste, tentando
fazer conversa, embora soubesses que
Sorri. Outra coincidência.
- Apareceram sete concordâncias. Vi a
tua fotografia e senti que eras tu.
vitória, foto. Utilizas um contrapicado não era necessário. Ela pareceu franzir um pouco o
para esconder o queixo duplo, foto. -…melhor que a lenda do fio verme- sobrolho.
lho, completou ela, antecipando os teus - A mim só saíram duas concordân-
Ninguém te ensinou estes códigos. pensamentos, porque era como se esti- cias. Comecei por ti porque eras o que
Utiliza-los porque outros os utilizam. São vesse dentro de ti. vive mais perto.
aceites porque todos os outros os fazem. O fio vermelho do destino é uma cren-
Não há ninguém ao volante. São ideias ça da Ásia Oriental de que duas pessoas ENCOLHI OS OMBROS. Senti-me inferior,
nascidas da mimese e do «feedback». ligadas por este fio invisível estão des- mais vulnerável e exposto. Parecia que
E o mesmo sucede com a forma como tinadas a amarem-se mutuamente. Red eu a tinha escolhido, mas ela tinha-se
falas. As palavras que utilizas. As coisas Thread era uma app que convertia a len- deixado conduzir pelo pragmatismo.
que dizes sobre ti próprio. Tudo passa da numa realidade composta por longas Tentei não dar muita importância. O
por filtros e peneiras internas, ajustadas cadeias de zeros e uns. Red Thread tinha feito o trabalho por nós.
por conveniência pelas mesmas forças Os servidores da Red Thread foram Era irrelevante se eu tinha feito um esfor-
subterrâneas que te levam a dizer «chee- alimentados por toda a informação ço de seleção mais pessoal, não era?
se» quando te é tirada uma foto. que, como migalhas de pão, deixámos Por vezes, tudo parecia um pacto
inconscientemente para trás nas nos- faustiano que despojava de romantis-
O MESMO ACONTECE NO AMOR. Os opostos sas redes sociais, nas nossas interações mo as relações. Mas o cálculo racional
não se atraem no campo afetivo, pelo me- com outras pessoas. de custo/benefício não era melhor para
nos em termos estatísticos. Procuramos o Toda essa informação, esse torrencial todos, do que a espontaneidade? O al-
mesmo pólo. Ideias semelhantes. Formas de big data, podia recolher-se e ana- goritmo fazia o trabalho por nós.
semelhantes de ver o mundo. lizar-se graças à mineração de dados O amor, apesar de todas as hipérbo-
- Gostas realmente de mim? -pergun- alimentada por poderosos algoritmos de les poéticas, era apenas um conjunto
tou, olhando-te nos olhos. aprendizagem automática. O amor podia de regras que podiam ser descodifi-
Não gostavas, mas era a forma do teu finalmente ser descodificado. cadas. Red Thread sabia o que estava
sapato. A tua cara-metade. O teu do- - Quando pressionei o botão, disse eu, a fazer. Tinha sido pragmática na sua
ppelgänger. Não, talvez não tanto assim, saboreando a sensação novamente, de- seleção. Como Red Thread. Pelo menos,
porque não era exatamente como tu. Era morou apenas três segundos a verificar. era isso que eu queria sentir. e

98 SUPER
VIVER A HISTÓRIA
COM PAIXÃO
INTERESSANTE

INTERESSANTE

75
EDIÇÃO
BIBLIOTECA
75 MISTÉRIOS DA CIÊNCIA

MISTÉRIOS
DA
Nova
edição

CIÊNCIA
de coleç
ão

Da Matéria Negra e a existência de E.T.


ao Manuscrito Voynich e ao móvel perpétuo

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