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S959
Ebook
Superinteressante : as 25 melhores reportagens dos 25 anos da revista : 1987-2012 . –
São Paulo: Ed. Abril, 2013.
320 p. : il. color. ; 23 cm.
Formato PDF
ISBN 978-85-364-1421-8
1. Periódicos brasileiros.
CDD 056.9
2012
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA ABRIL S.A.
Av. das Nações Unidas, 7221
05425-902 – Pinheiros – São Paulo – SP - Brasil
É pela televisão seu boletim escolar. Só notas altas. Parabéns! Em seguida, fui me lavar.
Durante o banho, a velha e calosa pele das plantas dos pés rebentou e se desprendeu
por completo, como a casca de uma batata. Isso porque aqui não andamos apoiados
nos pés. Agora eles estão parecidos com os de um recém-nascido: rosados, revestidos
de uma fina pele enrugada. Ainda que seja trabalhoso tomar um rápido banho em pleno
Cosmos - porque, antes de começar, você deve montar o boxe, abastecê-lo de água e, depois
de se lavar, desmontar, jogar fora a água suja e limpar o invólucro -, acho que vale a pena,
tamanho é o prazer que dá! Terminado o banho, ponho roupas limpas: camisa, ceroulas e
meias. Vestido assim, preparo uma comida quente, saborosa.
S etembro, 14
Dia de revisão do “contrato de trabalho”: devemos decidir se prolongamos o prazo de
permanência no Cosmo. Hoje também estamos realizando experiências geofísicas.
Fotografamos os territórios da União Soviética, de Cuba e dos países africanos com os quais
temos acordos na prospecção de recursos naturais. Também registramos com a câmera de
vídeo o que Yuri Gagarin viu ao dar uma volta ao redor do planeta (em 1961). Tudo como se
fosse com os olhos dele, os do primeiro homem que viu nossa Terra do Cosmo. Às duas da
tarde, fizeram-nos a proposta de continuar o voo, ou seja, prolongá-lo 40 dias além do prazo
inicialmente previsto. Respondemos que sim, desde que voar mais de 200 dias não fosse um
objetivo em si – quer dizer, desde que o novo prazo se justificasse com trabalho
suplementar. Pedimos que nos fossem dadas melhores condições para o cumprimento das
experiências e maior autonomia na organização da jornada de trabalho. E que fosse
considerada a possibilidade de mais uma saída ao espaço exterior. Argumentamos que isso
ajudaria a motivar o corpo para o novo trabalho e melhorar nossa disposição emocional.
Responderam que discutiriam com os especialistas. Agora, temos pela frente mais três meses
de voo – perspectiva que, para ser franco, parece dura.
S etembro, 18
Hoje o dia é de descanso. Cada um se ocupa de suas próprias coisas. Peguei a câmera para
fotografar a estrutura do horizonte da Terra com o visor ótico Puma, que tem um poder de
ampliação de 15 vezes. Quero registrar ainda a aurora boreal com um filme em cores, bem
como o nascer do sol, que é um belo espetáculo. Ao passar por trás da atmosfera, o Sol não
tem aquela forma redonda a que estamos tão habituados na Terra. Daqui, parece achatado e,
à medida que se levanta no horizonte, vai adquirindo uma forma arredondada, como uma
bola sendo inflada. Um fenômeno interessante e empolgante. O horizonte é um arco-íris vivo,
com faixas coloridas sendo substituídas por outras, variando em largura, brilho, número de
camadas e densidade das cores, fazendo com que a atmosfera pareça um prisma manipulando
os componentes do espectro solar para formar uma faixa branca cada vez mais intensa.
A filmagem do Sol comporta um sério problema: com um aumento de 15 vezes, o ângulo
de visão é muito pequeno. Sem contar que se é obrigado a usar um filtro de luz que reduz a
luminosidade mil vezes, o que dificulta a operação de apontar a câmera para o lugar em que
o astro vai nascer. É preciso olhar durante muito tempo pela vigia da nave para mirar bem.
Para isso, tive de colocar a camisa sobre a cabeça e nela abrir dois orifícios, como se fosse
uma máscara, protegendo assim o rosto e os olhos. Uma vez cheguei a queimar os olhos, que
ficaram com a esclerótica coberta por uma película amarela - um horror! - e tive de me tratar
com um unguento especial da farmácia de bordo.
S etembro, 20
Acordamos às 5h30. Temos a acoplagem com o transportador Progress- 15. O encontro com
o veículo de carga é sempre um acontecimento emocionante. Nele vêm novos aparelhos,
para novos e interessantes trabalhos. Chegam também outras coisas bastante agradáveis:
presentes dos companheiros de solo, correspondência de casa, edições recentes de jornais e
revistas. Esse veículo em particular é importante porque é o último da nossa missão, e é dele
que depende a prorrogação da permanência em voo, pois traz combustível, alimentação e
água. Depois da acoplagem, tivemos uma sensação de alívio. O voo vai continuar. Para nós,
é habitual dizer “chegou o transportador espacial”. Mas como a nave Progress nos localiza
no espaço? Como se acopla com a estação? Vou tentar explicar.
Uma vez lançado, o transportador espacial é orientado para a órbita de encontro por
manobras comandadas da Terra. A fim de garantir a precisão no momento do encontro, um
sistema de radionavegação chamado Igla é ligado quando o transportador chega a 20
quilômetros da estação espacial. Estabelecido o contato de rádio entre a nave e a estação, os
dois veículos ficam se falando continuamente, trocando informações sobre velocidade,
distância e posição angular. Nós permanecemos como simples espectadores. Quando os
propulsores de orientação são ligados, ouvem-se pancadas surdas no casco, como se fosse
um tambor. Durante o movimento de rotação para acertar a posição de acoplagem, sente-se
uma pequena aceleração, momento em que os objetos que não estão presos começam a voar
pela estação. À tarde, recebemos o sinal positivo para abrir a escotilha do veículo de carga.
Entramos nele. Ainda bem que não há guardas alfandegários no espaço.
S etembro, 21
Dia de descarga do Progress. Dormi mal. É muito bom estar habituado a esse tipo de
trabalho, sabendo por onde começar. É uma operação semelhante ao ato de trinchar um
peixe, que você ou pode simplesmente cortar de qualquer jeito e a muito custo, ou dividi- lo
da forma certa, rápida e elegante. É o que fizemos com nosso transportador: concluímos o
trabalho em apenas um dia, dois antes do prazo programado. E, quando nos disseram que
ainda havia cartas numa caixa no fundo do veículo, justamente no local em que existe uma
escotilha por onde o lixo é expelido, pus-me a cavar como uma toupeira, afastando as cargas
que encontrava no caminho, até alcançar a presa. Fiz esse trabalho sem os óculos de
proteção. Torci para que nenhuma farpa metálica caísse nos olhos. Saí do transportador com
as cartas, o rosto brilhando de suor e com algumas farpas coladas nele.
Encontramos no pacote de guloseimas mostarda, mel, amêndoas, damasco; nossas
mulheres haviam acrescentado ainda caranguejos, caviar, cebola e alho. Mas o melhor é o
pão de Tula, enviado por Liudmila. É pena que não temos leite gelado. Ao fim do dia,
abrimos um grande e grosso envelope ricamente decorado. Dentro encontramos algumas
cartas, uma série de desenhos e propostas relativas a futuras experiências no Cosmo - todas
feitas por crianças que participaram de um concurso. Algumas das ideias são bastante
curiosas, como a de cortar uma minhoca e verificar se, em órbita, sua pele se regenera. Ou
saber se as formigas são capazes de construir um formigueiro no estado de
imponderabilidade. Ou então descobrir qual seria a forma de uma pérola feita por um
molusco a bordo da estação. Quando acabamos de ler essas cartas, percebemos que as
crianças conseguiram realizar seu propósito: nos deixaram desconcertados.
S etembro, 23
Dia reservado a trabalhos de reparação, estando também previsto continuar a mexer no
transportador espacial. Substituímos o conjunto de aparelhagens médicas e trocamos a água
do reservatório. Não estou com vontade de fazer observações visuais. Sinto cansaço. Meu
corpo parece uma mola sem nenhum milímetro de folga e muito tensa.
Vem uma certa apatia. Tudo parece aborrecido. O apetite, entretanto, continua bom, graças
a Deus. Lavamos o rosto com lenços úmidos. Escovamos os dentes com uma espécie de
dedal coberto por um antisséptico. Você põe no dedo e esfrega os dentes e as gengivas. Uma
coisa agradável e cômoda. Também se pode utilizar a escova comum com pasta de dentes,
mas aí existe o problema de como enxaguar depois a boca. Temos de aplicar
obrigatoriamente um creme no rosto para evitar a secura e irritação da pele.
Limpamos o corpo todo com toalhas úmidas e depois o secamos com toalhas secas. Uma
sensação prazerosa. Depois de terminada a descarga do Progress, nossa estação está uma
verdadeira bagunça. Estão flutuando entre nós sacos cheios de equipamentos. Pelo tom das
vozes vindas da Terra, percebemos que o pessoal está tomando o cuidado de nos tratar de
maneira especial. Eles falam conosco como quem lida com doentes, preocupados com a
duração prolongada do voo. Não compreendem que isso é muito pior porque estraga nossa
disposição. À noite, li algumas revistas acomodado em meu lugar preferido, no
compartimento onde as naves engatam. Agora, vou dormir.
S etembro, 27
Dormi muito bem, um sono de quase onze horas. Ao me levantar, sentia uma pequena dor de
cabeça. Mas, pouco depois, passou. À noite, senti o estômago. Acho que foi uma leve
gastrite. Tivemos de nos preparar para as experiências durante toda a manhã. Quase não
falamos. Quando comecei a experiência com o fotômetro eletrônico, vi Tolia (Anatoli,
companheiro de voo de Lebedev) chegar perto e dizer: “Vamos fazer juntos”. Fizemos um
bom trabalho. Registramos três estrelas: Beta de Cisne, Vega e Altair. Lembro-me de ter lido
em vários artigos que, em órbita, alguns cosmonautas enxergaram casas esparsas, um navio
no mar e até um ônibus correndo pela estrada.
Será que isso é possível? Vamos ver. A capacidade de resolução do olho humano com boa
visão permite distinguir, de uma altura de 350 quilômetros, objetos com dimensões da ordem
de 100 metros, ou seja, navios e os maiores edifícios. Em certas condições atmosféricas,
com uma iluminação solar favorável e a presença de sombras, é possível discernir coisas
menores. Distinguir um veículo e ainda por cima afirmar que é um ônibus é impossível a
olho nu. Isso porque é difícil isolar pequenos objetos entre uma infinidade de coisas
semelhantes e sobre um fundo muito retalhado. Não digo que, com uma rara combinação de
condições atmosféricas sobre determinadas regiões, a camada aérea não possa funcionar
como uma lente, possibilitando uma melhora súbita da visibilidade. Eu, porém, nunca vi.
Novembro, 6
Pela manhã, executamos uma nova experiência científica. Depois começamos os
preparativos para o banho. Me distraí e não fechei direito o recipiente onde colhemos a
urina, por isso a tampa pulou fora com a pressão, brotando também água suja misturada com
a urina. Uma grande gota amarela ficou pendurada no extremo da mangueira. Grande coisa!
Fiz a limpeza. A propósito, não sentimos aqui nojo por tais coisas, compreendendo que tudo
isso é nosso, só dos dois. Tomei uma ducha. Tenho sentido ultimamente dor na coluna. Sei,
por experiência terrestre, que isso acontece quando pratico pouco esporte. Os músculos se
enfraquecem. Por isso fica difícil para a coluna sustentar o peso do corpo, originando uma
compressão das vértebras. Aqui, em órbita, acontece o contrário: elas se dilatam. Como
voamos há muito tempo, perdemos o sentido do tempo. Sabemos que muito já se passou, mas
não podemos perceber exatamente quanto, como fazemos quando estamos em terra. Lá se
vive a primavera, o verão, o outono, o inverno e as férias. Aqui, tudo está envolto por um
tempo anônimo, uma sucessão de luz e escuridão, quinze vezes por dia.
Novembro, 11
Dia da morte de Leonid Brejnev (chefe do governo soviético desde 1964). Lançamento do
ônibus espacial americano Columbia. Acordei por volta das cinco da madrugada. Levantei
mais cedo para filmar o Extremo Oriente em videoteipe. Vejo a cama de Tolia vazia. Olho
para o compartimento de trabalho e o descubro deitado e encolhido no aparelho de esteira
rolante. Perguntei o que tinha acontecido. Ele disse que não estava se sentindo bem,
parecendo intoxicação, uma dor no lado esquerdo do abdômen. Ao cabo de uma hora, vejo o
homem ainda sofrendo. Fui até a farmácia e peguei dois remédios e um comprimido de
carvão ativado. Sobrevoamos o território soviético. Digo a Tolia que não temos o direito de
esconder sua dor e sugiro entrar em contato com a Terra e informá-los. Ele concorda.
Estamos passando sobre o litoral do Extremo Oriente, não estando programada nessa volta
uma sessão de comunicação. Faço a chamada: “Aqui Elbrus-2, responda-me”. Entra o
operador de plantão do posto terrestre em Ussuriisk. Peço ligação para o Centro de Controle
de Voos. Atende Viktor. Solicito um médico, vem correndo Valera, médico de turno.
Expliquei-lhe tudo e aí saímos da zona de radiovisibilidade. Somente na comunicação
seguinte, às oito da manhã, tive nova conversa com Valera e ele recomendou aplicar uma
injeção de atropina. Peguei na farmácia uma seringa e disse: “Vamos, Tolia, mostre o seu
traseiro porque vou te dar uma agulhada”. Segurei metade da agulha com os dedos para que
não entrasse toda na carne. Ele disse que nem sequer percebeu quando apliquei. Uma hora
depois, se sentia aliviado. Na sessão de comunicação seguinte, já haviam reunido uma junta
médica para decidir se devíamos ou não aterrissar. Coisa absurda: passar nove anos se
preparando para o voo, voar meio ano e ter de aterrissar uma semana antes do recorde de
permanência no espaço. Como se isso fosse pouco, entra Riumin (cosmonauta que à época
trabalhava no Centro de Controle dos Voos): “Rapazes, estamos preparados para trazê-los
de volta”. Bolas! Depois do almoço, o pessoal de terra pediu que, pelo sim, pelo não, nos
preparássemos para a descida. Ao meiodia, Tolia já não parecia tão aborrecido. Digo-lhe:
“Vamos então comunicar que aterrissamos”.
Dezembro, 13
(Depois do regresso) Dia de repouso. Sinto-me muito mais aliviado, já sem aquele cansaço
no corpo. Levanto os objetos com mais facilidade, me mexo na cama sem esforço.
Participamos de uma entrevista coletiva. Fiquei contente porque parece ter sido uma boa
conversa. De dia, fiz um treino na piscina, uma caminhada, exercícios fáceis para as pernas e
os braços. Fica-se cansado rapidamente. Estou com bom apetite. Já recuperei o peso de 72
quilos. No primeiro dia em terra, estava com 70,5 quilos. Os médicos estão contentes. O
restabelecimento é normal. Só alterações no sangue. Isso porque o organismo se adaptou à
imponderabilidade. Agora se inicia o processo contrário. De manhã, fiz uma brincadeira:
pus a máscara de fantasia trazida a bordo da estação por Jean-Loup Chrétien (cosmonauta
francês que esteve na Saliut). É uma máscara feia. Depois de colocá-la na cabeça, deitei na
cama e fiquei imóvel. Alguém foi correndo aos médicos assustado com o que viu. Quando
Ivan Skiba, chefe da seção médica, Slava Bogdachevski e o psicólogo entraram no meu
quarto, virei o rosto para eles e lancei um grito feroz. Ficaram apavorados. Aconteceu uma
cena muda, com minha máscara refletindo-se nas suas fisionomias desfiguradas pelo susto.
Quando voltaram a si, desataram a rir. O psicólogo diagnosticou: “Se o paciente está
brincando, é sinal de que tudo vai bem”.
instantâneo
COMO UM TIME DE
VENCEDORES DO PRÊMIO
NOBEL DEU À LUZ
A BOMBA ATÔMICA.
A americano, em Alamogordo, Novo México. Uma luz dura, 20 vezes mais brilhante que
a do Sol, acendeu a noite e fez o céu, o deserto e as montanhas próximas ficarem
brancos como papel. Apesar da hora, milhares de pessoas, em cinco Estados vizinhos,
viram o flash sem ter ideia do que estava acontecendo. Não se ouviu o som.
Muito mais lento do que a luz, o som veio muitos segundos depois. Um estalo seco como
um tiro, seguido de um trovão. E uma imensa bola de fogo, com 2 mil metros de diâmetro,
levantou-se de repente. Mudando de amarelo para laranja, e depois para vermelho, a bola
em poucos minutos alcançou 15 quilômetros de altura.
Numa reação automática, manifestou-se o gênio do físico italiano Enrico Fermi. Ele
calculou quase a olho a energia da detonação: deixando cair pequenos pedaços de papel,
quando a onda de choque passou pela casamata em que estava escondido, mediu a distância
a que os papéis foram lançados e estimou o poder da energia liberada em pelo menos 10
quilotons. O equivalente a 10 mil toneladas de dinamite. Uma conta excelente, naquelas
circunstâncias: o número preciso, como se verificou mais tarde, era de 18 quilotons. De
longe, a maior quantidade de energia já produzida de um só golpe pelo homem.
Foi um instante de imenso orgulho e alegria. Os cientistas, técnicos, militares e políticos
reunidos em Alamogordo pularam, gritaram e se abraçaram na lama que a chuva tinha
deixado por toda parte. A montagem final da bomba, a partir do segundo semestre de 1944, e
o teste em julho de 1945 tinham sido apenas as últimas etapas de uma longa corrida contra o
tempo.
Nos três anos anteriores, centenas de milhares de americanos tiveram de ser mobilizados,
de engenheiros a trabalhadores da construção civil. Acima de tudo, exigiu-se a colaboração
disciplinada de dezenas de físicos, químicos e matemáticos. Um time de cérebros que
contava com mais de 20 ganhadores do Prêmio Nobel. Alguns já haviam sido premiados,
como o italiano Fermi, o dinamarquês Niels Bohr e o alemão Otto Hahn. Outros seriam
futuros escolhidos: o alemão Hans Bethe, o húngaro Eugene Wigner e o americano Richard
Feynman.
O time aceitou trabalhar voluntariamente, num regime de disciplina militar. Em
Alamogordo, uma região seca e arenosa, habitat de escorpiões e cobras, quase deserta de
gente, ficava apenas uma parte da equipe. Juntando cientistas, técnicos e soldados, a
população chegava a 200. Vida duríssima e sigilo absoluto. Ninguém podia telefonar para
fora sem autorização. Nem sair do alojamento, um punhado de barracos levantados às
pressas pelo exército em 1944. Aí, durante dez meses, os pesquisadores trabalharam
alegremente, com toda boa vontade.
No final de 1938, o físico italiano Enrico Fermi aproveitou uma ocasião extraordinária
para escapar da ameaça de perseguição que sentia em seu país, então sob o domínio fascista.
Numa quebra de sigilo sem precedentes, mas justificável naquelas circunstâncias, ele havia
sido informado de antemão que ganharia o Prêmio Nobel de Física daquele ano. Então,
sabendo que conseguiria uma autorização para ir a Estocolmo, na Suécia, receber a láurea,
planejou secreta mente não voltar mais para a Itália. Fugiu com toda a família para os
Estados Unidos.
A chegada de Fermi foi decisiva para que a tecnologia do átomo fosse dominada em
apenas três anos - um feito, na época, inimaginável para a ciência. Ninguém conhecia melhor
do que ele a ação de partículas recém-descobertas no núcleo atômico, chamadas nêutrons,
que teoricamente poderiam escapar de seu núcleo original e entrar em outro para quebrá-lo.
Assim, liberariam a energia estocada lá dentro. Na prática, não era tão simples. O próprio
Fermi sabia apenas que os nêutrons penetravam facilmente nos núcleos: não sabia que os
núcleos se quebravam. A fissão nuclear, nome dado a esse fenômeno, foi comprovada em
1939, um ano depois da fuga para os Estados Unidos.
Mas Fermi tinha certeza, desde o início do século, de que o núcleo representava a mais
densa concentração de matéria já vista. E isso significava muita energia. Um único grama de
matéria, seja do que for, representa 20 trilhões de calorias, o suficiente para fazer ferver 900
mil toneladas de água. É o que diz a fórmula descoberta por Albert Einstein em 1905,
E=mc2. Energia (E) é igual à massa (m) multiplicada pela velocidade da luz ao quadrado
(c2). Em 1939, a alemã Lise Mentner usou a fórmula de Einstein para calcular a força gerada
durante a fissão do núcleo do urânio. Nem toda a matéria virava energia (a conversão não
chega a 20%, ainda hoje), mas dava de sobra para projetar uma superarma.
Só faltava demonstrar que, quando um átomo de urânio se quebra, seus fragmentos
provocam sucessivamente a quebra de outros núcleos. Ou seja, uma reação em cadeia, que
foi demonstrada por Fermi em 1942. Daí em diante, a construção da bomba já não dependia
tanto da Ciência. Era um problema de tecnologia e de dinheiro, especialmente para produzir
e transformar o urânio comum em combustível (ele precisa ser enriquecido com variedades
mais raras de urânio).
A própria guerra, então, daria o empurrão final para a conquista da energia nuclear. Em
meados de 1942, os ditadores Adolf Hitler, da Alemanha, e Benito Mussolini, da Itália,
haviam dominado toda a Europa continental, da França à Polônia. Diante de tamanha
demonstração de força, o presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt, resolveu
encomendar a arma atômica a uma unidade de engenharia do Exército. A ordem foi dada em
junho. Em agosto, nasceu o Projeto Manhattan, cuja função era coordenar o trabalho de todos
os físicos, químicos, engenheiros, técnicos e operários necessários para executar a ordem.
O gatilho da revolução atômica foi a ciência pura. Mas, depois de iniciada, teve de ser
sustentada por uma mobilização monumental de recursos. Até cidades foram construídas.
Algumas saíram do nada, em locais isolados, justamente para garantir o segredo. Existem até
hoje. Outras, que também permanecem, foram refeitas. Hanford, então um povoado
insignificante e perdido do mundo no Estado de Washington, foi invadida, em 1943, por 25
mil trabalhadores. Em menos de um ano, construíram 250 quilômetros de ferrovias, 600
quilômetros de estradas, casas para 40 mil operários e suas famílias, e uma fábrica de
plutônio, combustível nuclear como o urânio.
As cidades cresceram em diversos pontos do país, sempre com o mesmo fim: alimentar a
superbomba. Das novas fábricas, saíam peças ou combustível. Dos laboratórios, números e
medidas. Quantos quilos de urânio ou plutônio seriam necessários? Como detonar a
explosão no momento exato? Até que ponto o urânio comum, extraído das minas, precisaria
ser misturado com o urânio-235, mais radioativo? Em resumo, os cientistas já não faziam
Física pura. Mas só eles eram capazes de manipular as equações descobertas na década
anterior para desenvolver a tecnologia que estava nascendo.
A direção geral do Projeto Manhattan, que coordenava toda a operação, foi entregue a um
general do setor de engenharia do Exército chamado Leslie Groves. Era administrador
competente e autoritário, conhecido por ter levantado o prédio do Pentágono, a secretaria
militar do governo americano. O general estava fora da luta, mas queria combater. Então,
deram-lhe a função de “construir o armamento que acabaria com a guerra”.
Groves teve o bom senso de escolher um cientista brilhante para comandar o time de
gênios: o físico Robert Oppenheimer, que também revelou admirável capacidade gerencial.
Voluntariamente, os pesquisadores se submeteram a uma disciplina militar. Confinados aos
locais de trabalho, moravam longe de suas famílias. Foram divididos em equipes para que
uns não soubessem o que os outros estavam criando. Usavam nomes falsos e escreviam tudo
em código. Ficaram proibidos até de pronunciar palavras denunciadoras, como “físico”. A
vontade de vencer a Alemanha gerou um espírito de cooperação fora do comum.
Houve erros e contratempos. A divisão de tarefas por equipes que não se comunicavam
não funcionou, pois, entre cientistas, pensar significa trocar e debater ideias. O húngaro Leo
Szilard simplesmente não obedeceu às restrições de segurança. E, apesar de ter sido o
primeiro a propor a construção da bomba, foi ameaçado por Groves com a acusação de
traidor. O americano Richard Feynman, outro rebelde incorrigível, se divertia quebrando
códigos secretos e abrindo os mais complicados cofres com perícia de arrombador. Edward
Teller, da Universidade da Califórnia, futuro idealizador da bomba de hidrogênio, muito
mais poderosa que a atômica, brigou com Oppenheimer também por causa da disciplina.
Queria mais autonomia.
Nada disso, porém, comprometeu a eficiência prodigiosa do projeto.
A euforia com o teste de Alamogordo durou pouco. Foi uma emoção passageira. O estado
de espírito dos cientistas era péssimo. Eles já sabiam que o governo americano planejava
um ataque nuclear ao Japão, o último inimigo ainda de pé (alemães e italianos já estavam
vencidos na Europa).
Numa carta à mãe, o físico Richard Feynman descreveu os sentimentos de quase todos:
“Tudo estava perfeito, menos o objetivo”. Oppenheimer, chefe da equipe científica, lembrou
um antigo texto hindu: “Eu me tornei morte/ Destruidor de mundos”. O moral da equipe de
gênios caía vertiginosamente nos últimos dias do Projeto Manhattan.
O ânimo já vinha despencando desde a morte do presidente Franklin Roosevelt, em 12 de
abril de 1945, com quem os cientistas haviam concordado em trabalhar. Eles não se
entenderam bem com o novo presidente, o vice de Roosevelt, Harry Truman. Em seguida,
com a rendição dos alemães no dia 7 de maio de 1945, a tensão aumentou ainda mais. A
derrota nazista, que o resto do mundo recebeu como boa notícia, virou fator de preocupação
dentro do Projeto Manhattan. O que é fácil de explicar: foi contra Hitler que eles tinham se
unido e, com o ditador nazista fora do onflito, desapareciam as justificativas para a
construção de uma arma tão arrasadora. E ainda faltava um mês para o teste de Alamogordo.
Foi então que, para tornar tudo ainda mais torturante, às vésperas do teste, veio a informação
de que o governo americano estudava a hipótese de empregar a nova arma contra o Japão.
Era o início do pesadelo. Até ali, os cientistas alimentavam a ilusão de que o poder
nuclear jamais seria de fato empregado. Na pior das hipóteses, aceitariam lançá-lo contra os
nazistas. Truman vacilou entre argumentos contra e a favor. Por fim, decidiu-se. Era o final
de julho.
Dois anos antes, a máquina militar já começava a se mover. Desde 1943, a Força Aérea
treinava o chamado Esquadrão 509, chefiado por um dos melhores pilotos de bombardeiro
do país, o coronel Paul Tibbets. Na Boeing, em Seattle, ele escolheu pessoalmente seu
avião, o gigantesco quadrimotor B-29, o que havia de melhor na indústria americana. O
objetivo do 509 era lançar uma bomba de 4 mil quilos sobre Hiroshima, fazer uma curva de
180 graus, mergulhar, acelerar e dar o fora.
Hiroshima havia sido escolhida depois que o ministro da Guerra, Henry Stimson,
descartou a opção por Kyoto, ex-capital e maior centro religioso do Japão. Na madrugada de
6 de agosto de 1945, já a caminho do Japão, mas sem saber bem por quê, a tripulação
recebeu a ordem de lançar a bomba. Ela partiu do avião às 8h16 da manhã e, 43 segundos
depois, explodiu.
A cidade ficou coalhada de incêndios. Perto do hipocentro, foco da detonação, gente
virava cinza. Quase ninguém, a menos de 5 mil metros do hipocentro, sobreviveu. Em toda a
cidade, 50 mil edifícios ruíram. Mais tarde, durante anos, a radiação continuou matando. Até
hoje surgem novas vítimas fatais do pikadon, o “raio-trovão”, neologismo criado para
descrever o indescritível. Elas já são mais de 200 mil.
“Os físicos conhecerão a vergonha”. A maldição poderia ter vindo de uma das vítimas de
Hiroshima ou de Nagasaki. Mas seu autor, paradoxalmente, foi um dos arquitetos da bomba,
o físico americano Robert Oppenheimer. Que nunca se arrependeu do que fez. Essa
ambiguidade - a mistura de desonra com falta de arrependimento - foi uma marca que pairou
sobre a ciência e dividiu a sua história em duas partes. Antes e depois da bomba.
A vergonha ficou porque não há como negar: os cientistas produziram a máquina do
genocídio instantâneo conscientemente. Têm a seu favor o fato de que queriam construí-la
antes de Adolf Hitler. Mas, então, por que não foram unânimes em condenar o seu
lançamento contra Hiroshima e Nagasaki, quando Hitler já estava derrotado na Europa? Por
que muitos se conformaram? Tudo leva a crer que, quando terminaram a sua parte do
trabalho, os cientistas, simplesmente, deixaram que ele fosse completado. Bombas são
bombas. Existem para matar gente.
Há nuances, e muitas. O homem que mais lutou para ver a bomba construída foi depois o
que mais fez força para impedir que ela fosse usada: o físico húngaro Leo Szilard. Desde
1933, antes de qualquer outro, ele intuiu no que daria a mistura das equações de Einstein
com a radioatividade. Nos dez anos seguintes, gastou tempo batendo à porta dos governos
inglês e americano para convencê-los de que suas ideias não eram absurdas. Em 1939,
Szilard conseguiu que Einstein, um dos gênios de maior prestígio na época, escrevesse uma
carta a Roosevelt, presidente dos Estados Unidos, dizendo que a bomba era factível e que os
alemães poderiam construí-la durante a guerra. Mas, depois, tentou evitar o bombardeio de
Hiroshima a todo custo. Arrumou encrenca com quem foi preciso. Especialmente com o
então poderosíssimo general Leslie Groves, coordenador do projeto. Derrotado, depois do
ataque nuclear pediu a um padre para rezar uma missa para os mortos.
No final das contas, Szilard foi apenas ingênuo. Obcecado pelos crimes do nazismo, ele
só se deu conta do demônio que havia criado quando já não havia mais como detê-lo. Porque
a arma nuclear, mais do que qualquer outra obra humana, trouxe para dentro da ciência o
poder do sistema de produção em escala. O projeto da bomba virou indústria: posta em
movimento, começou a devorar os seus criadores.
Resumo: ela não acabou apenas com duas cidades japonesas. Ou com o ideal do cientista
como benfeitor da humanidade. Ela acabou também com a noção de liberdade. A começar
pela pesquisa científica. De 1945 em diante, o Estado passou a impor limites à manipulação
de urânio ou de plutônio, que acarreta riscos imensos. Desconhecidos pela humanidade, até
então. Os desastres potenciais são muitos, desde a possibilidade de um acidente causar
contaminação ambiental por longo período, de até milhares de anos, até o perigo de
atentados terroristas com material nuclear. Mas a liberdade também viveu outras limitações.
A informação passou a ser a mais vigiada pelas razões de Estado. No mundo que se seguiu à
Segunda Guerra, até mesmo as convicções ideológicas dos cidadãos viraram matéria de
segurança nacional. A sombra do cogumelo nuclear destruiu a inocência. Científica e
política.
Depois do teste de Alamogordo, já não havia mais lugar para a ingenuidade como a de
Szilard. Oppenheimer, mesmo sentindo vergonha, parece ter compreendido isso melhor do
que seu colega húngaro. Daí porque também não mostrou remorso. Não custa lembrar que,
quando a história da bomba começou, os Estados Unidos estavam em uma guerra selvagem,
na qual o número de atrocidades cometidas pelos vários exércitos superou o de qualquer
conflito anterior.
Mesmo depois da rendição da Alemanha, havia argumentos militares muito fortes a favor
de usar a bomba contra o Japão. Eles iam muito além da necessidade de derrotar o inimigo.
O governo dos Estados Unidos alegava que o recurso atômico quebraria o ânimo dos
generais japoneses, aparentemente dispostos a prolongar a luta até o seu último soldado.
Assim, a bomba poderia custar menos vidas do que a invasão do país com a ajuda de armas
convencionais. Pode ser, mas a estratégia americana não era determinada apenas pelo que ia
acontecer nos meses seguintes. Estava em jogo, principalmente, o equilíbrio do poder sobre
o mundo do futuro. Depois da guerra, restariam duas potências: os Estados Unidos e a então
União Soviética. Isso estava bem claro e pesou decisivamente nos cálculos frios da política
com relação ao Japão. Hiroshima e Nagasaki eram uma oportunidade para os americanos
ostentarem a força de que dispunham.
Há uma ironia na mudança dos tempos, desde a ascensão da ciência, na época do italiano
Galileu Galilei, no século 17, até a era nu clear. Galileu foi um dos pais da física moderna, a
mesma que projetou a arma atômica. Galileu também é lembrado por sua luta contra o
autoritarismo. É famosa a sua frase depois de ter sido obrigado a abandonar a ideia de que a
Terra não estava parada e que girava em torno do Sol. “No entanto, ela se move”, comentou
o sábio, apesar da humilhação a que fora submetido. Pode-se dizer, como uma metáfora, que
ele enfrentou o imobilismo em defesa do prosseguimento da evolução do conhecimento. E da
História. Em 1945, deuse o oposto. A ciência fez o tempo parar. Restou em Hiroshima um
símbolo do horror paralisante causado pelo genocídio instantâneo: um relógio parado,
encontrado junto da ponte Aioi, perto do local da detonação. Deixando de marcar os
minutos, ele parece dizer que, agora, a Terra já não se move.
O relógio de Hiroshima, num sentido muito real, é um herdeiro maldito de Galileu.
Oppenheimer percebeu isso muito bem. Reconheceu que tinha as mãos manchadas de sangue.
Não tinha dúvida de que tinha sido um dos personagens centrais de uma tragédia gigantesca.
Mesmo assim, não queria voltar atrás. Em mais de uma oportunidade, respondeu que faria
tudo de novo. Sua trágica lucidez rompe com a ilusão de neutralidade da ciência e assume as
contradições em que os mais destacados gênios podem sucumbir. A realidade em que
vivemos hoje é um paradoxo fatal. Oppenheimer e seus colaboradores fabricaram o
instrumento de um genocídio inominável. Eles não têm perdão. Mas também não têm
condenação. No mundo que surgiu depois de Hiroshima e Nagasaki, não existe um tribunal
com a isenção necessária para julgá-los. A humanidade ficou assim: de uma vez só, é vítima
e cúmplice da invenção da bomba atômica.
do tempo,
odos
sonho secreto
físicos
ELES NÃO CONTAM PARA NINGUÉM
E NÃO GOSTAM DE COMENTAR O
ASSUNTO EM PÚBLICO. MAS CIENTISTAS
ANDAM ATRÁS DA RESPOSTA: COMO
É QUE FAZ PARA VIAJAR NO TEMPO?
D antropólogos, normalmente, não gostam de falar a respeito porque têm medo de expor
os índios. Os índios, por sua vez, quanto mais “civilizados”, mais têm medo de ser
julgados bárbaros. Assim, o canibalismo virou tabu.
A antropologia desconhece, no passado ou no presente, uma sociedade que
consuma carne humana como alimento. O canibalismo sempre foi simbólico. Ou se devoram
os inimigos, como faziam os tupis do litoral brasileiro no século 16, em impressionantes
cerimônias coletivas, ou se pratica uma antropofagia funerária e religiosa. Aí, a ingestão das
cinzas dos mortos homenageia e ajuda a alma daquele que morreu. Esse ritual faz parte,
ainda hoje, dos costumes dos ianomâmis.
Se as cerimônias tupis apavoram pelo que tinham de brutal, o ritual dos ianomâmis é
capaz de chocar o senso comum dos brancos pelo que tem de inesperado. Para um ianomâmi,
comer as cinzas doamigo morto é uma prova de respeito e afeto. O mais desconcertante
desse canibalismo que perdura é exatamente isso: ele não é um gesto de ódio, mas de amor.
Agora, a SUPER vai pôr você em dia com os rituais antropofágicos dos índios
brasileiros. Desde a bravura dos guerreiros que devoravam inimigos para herdar sua
valentia em combate, até a devoção dos praticantes do canibalismo funerário, movido pela
compaixão com os mortos. Sem temores nem tabus.
Comendo a coragem do inimigo
Em 1500, os europeus se espantaram com a belicosidade dos tupinambás, que habitavam a
costa brasileira de São Paulo ao Ceará. Os índios, da família linguística tupi, moravam em
aldeias de 2 mil habitantes, mantinham relações pacíficas entre si e faziam alianças para
atacar outras aldeias.
Em 1553, o alemão Hans Staden naufragou em Itanhaém, litoral de São Paulo, e ficou nove
meses na aldeia do cacique Cunhambebe, na região de Mangaratiba, rio de Janeiro. Ele
mesmo participou de uma expedição de canoa até Bertioga, em São Paulo, para capturar
inimigos. Mortos e feridos foram devorados no campo de batalha e durante a retirada. Os
cativos foram levados para a aldeia, para que as mulheres pudessem participar do ritual
antropofágico.
Segundo o antropólogo Carlos Fausto, do Museu Nacional, da universidade Federal do rio
de Janeiro, “o valor fundamental da sociedade tupinambá era predar o inimigo”.
Fausto enfatiza: “Predação repetida e sem fim. Eles viviam para guerrear.” A lógica da
guerra não era o extermínio, e sim o cultivo da inimizade. “O objetivo era valorizar-se,
apropriando-se das qualidades do oponente.”
O sacrifício honrava vítima e carrasco. A execução podia demorar meses. O captor cedia
sua casa ao cativo. Cedia também uma irmã, ou filha, como esposa.
O preso circulava pela aldeia e era exibido aos vizinhos. A execução atraía convidados
em festas e danças regadas a cauim (uma bebida fermentada à base de mandioca). O preso
recebia a chance de vingar sua morte, antecipadamente. Pintado e decorado, era amarrado
pelo ventre com a mussurama (uma corda de algodão) e recebia pedras para jogar contra a
audiência. Insultava a todos, provando sua coragem.
O carrasco vestia um manto de penas, imitava uma ave de rapina e usava uma ibirapema
(borduna). O padre Anchieta conta, em suas Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e
Sermões, que viu um preso desafiar o algoz, aos gritos: “Mata- me! Tens muito que te vingar
de mim! Comi teu pai. Comi teu irmão! Comi teu filho! E meus irmãos vão me vingar e
comer vocês todos.”
Golpe de misericórdia
um golpe na nuca rompia o crânio. Acudiam mulheres velhas, com cabaças, para recolher o
sangue. Tudo era consumido por todos. As mães besuntavam os seios de sangue para os
bebês também provarem do inimigo. O cadáver era esquartejado, destrinchado, assado numa
grelha e disputado por centenas de participantes - que comiam pedacinhos. Se fossem muito
numerosos, fazia-se um caldo dos pés, mãos e tripas cozidas. Os hóspedes retornavam às
aldeias levando pedaços assados.
Só o carrasco não comia. Entrava em resguardo, em jejum, e, após a reclusão, adotava um
novo nome. O acúmulo de nomes era sinal de bravura: indicava o número de inimigos
abatidos. Grandes guerreiros tinham até cem apelidos. Comer o inimigo era afirmar
potência. “O canibalismo exprimia a força do predador, na sua capacidade máxima”, diz
Carlos Fausto. “Para eles, os seres potentes eram devoradores. Como o jaguar.”
A catequese dos brancos acabou com esse canibalismo guerreiro. O ritual pertencia a uma
cultura estável, que foi desestruturada até em grupos mais arredios. A última tribo tupi
contatada no Brasil, em 1994, os tupi-de-cunimapanema, no norte de Santarém, não tinha
vestígio de antropofagia.
No purê de banana, as cinzas dos amigos
Há 25 mil ianomâmis nas montanhas da fronteira do Brasil com a Venezuela, numa das áreas
mais remotas e intactas do mundo. Desses, 10 mil estão em território brasileiro.
Moram em mais de cem aldeias, falam quatro dialetos e mantêm um estado de guerra
intermitente uns com os outros. Para todos eles, não há morte natural. Morre-se pela ação
dos inimigos ou pela trama de um feiticeiro. Portanto, toda morte requer vingança.
Esses ianomâmis praticam o endocanibalismo (comem gente da própria tribo). É uma
cerimônia que reitera o compromisso de vingar o morto. “O ritual organiza um estado de
hostilidade permanente”, diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, do Museu Nacional.
“A cerimônia é quase uma eucaristia.” Só os amigos sem laços de consanguinidade são
convidados para o funeral.
O cadáver é pranteado e colocado sobre uma plataforma, fora da aldeia. A carne é
separada dos ossos e cremada. Os ossos são limpos e moídos num pilão até virarem cinza.
No funeral, os vizinhos e aliados comem as cinzas com purê de banana.
“Ao contrário do culto cristão do ancestral”, explica Viveiros de Castro, “a antropofagia
ianomâmi realiza o apagamento total do antepassado”. Tudo o que era do morto é destruído,
e seu nome deixa de ser pronunciado. Como o espírito deseja companhia, atraindo os vivos
para a morte, todas suas posses e traços são destruídos para que ele viaje para o mundo dos
mortos - que fica nas “costas do céu”. Até pegadas, na mata, são apagadas.
P redação sem ódio
Até o final dos anos 1960, os waris de rondônia também praticavam o endocanibalismo. O
ritual funerário era elaborado. Os mortos eram pranteados durante dias, com a família
agarrada ao cadáver. Convidavam-se os amigos de outras aldeias para o funeral. O corpo
era cortado, e os ossos, quebrados. Alguns órgãos eram cremados. Fígado e coração eram
assados, embrulhados em folhas. Desfiados e estirados em uma esteira, eram comidos, entre
lágrimas, com pão de milho assado. Quase sempre, o corpo já estava se deteriorando.
Os waris apreciam carne gordurosa. Mas não tocavam no tronco humano, cheio de
gordura, porque a cerimônia era simbólica, não gastronômica. “Eles comiam naquinhos,
pedacinhos da carne do morto”, explica a antropóloga Aparecida Villaça. Se o corpo
estivesse realmente estragado, era queimado. O crânio era quebrado, os ossos moídos, e as
cinzas, comidas com mel. O luto durava seis meses, durante os quais a família queimava e
destruía as posses do morto até esquecer seu nome.
Para a antropóloga, há uma continuidade entre o endocanibalismo e o exocanibalismo dos
waris, que comiam os inimigos para expropriar-lhes a humanidade. “Comer é a prova
irrefutável da não-humanidade da coisa comida. Tanto para os inimigos, que não eram
considerados gente, quanto para os parentes, cuja morte é difícil de aceitar.
O endocanibalismo dos waris é uma predação sem hostilidade. Também aí, comer o morto
acaba com sua humanidade.”
o fantasma
VISÕES ESTRANHAS ATEMORIZAM
PESQUISADORES NUM LABORATÓRIO
INGLÊS. VEJA COMO UM CIENTISTA DE
VERDADE ENFRENTA ASSOMBRAÇÕES.
or que a maconha é proibida? Porque faz mal à saúde. Será mesmo? Então, por que o
bacon não é proibido? Ou as anfetaminas? E, diga-se de passagem, nenhum mal sério
P à saúde foi comprovado para o uso esporádico de maconha. A guerra contra essa
planta foi motivada muito mais por fatores raciais, econômicos, políticos e morais do
que por argumentos científicos. E algumas dessas razões são inconfessáveis. Tem a
ver com o preconceito contra árabes, chineses, mexicanos e negros, usuários
frequentes de maconha no começo do século 20. Deve muito aos interesses de indústrias
poderosas dos anos 1920, que vendiam tecidos sintéticos e papel, e queriam se livrar de um
concorrente: o cânhamo. Tem raízes também na bem-sucedida estratégia de dominação dos
Estados unidos sobre o planeta. E, é claro, guarda relação com o moralismo judaico-cristão
(e principalmente protestante-puritano), que não aceita a ideia do prazer sem merecimento –
pelo mesmo motivo, no passado, condenou-se a masturbação.
Não é fácil falar desse assunto – admito que levei um dia inteiro para compor o parágrafo
acima. O tema é tão carregado de ideologia, e as pessoas têm convicções tão profundas
sobre ele, que qualquer convite ao debate, qualquer insinuação de que estamos lidando mal
com o problema já é interpretada como “apologia às drogas” –e, portanto, punível com
cadeia. O fato é que, apesar da desinformação dominante, sabe-se muito sobre a maconha.
Ela é cultivada há milênios, e centenas de pesquisas já foram feitas sobre o assunto. O que
tentei fazer foi condensar nestas páginas o conhecimento que a humanidade reuniu sobre a
droga nos milênios em que convive com ela.
P or que é proibido?
“O corpo esmagado da menina jazia espalhado na calçada um dia depois de mergulhar do
quinto andar de um prédio de apartamentos em Chicago. Todos disseram que ela tinha se
suicidado, mas, na verdade, foi homicídio. O assassino foi um narcótico conhecido na
América como marijuana e na história como haxixe. usado na forma de cigarros, ele é uma
novidade nos Estados unidos e é tão perigoso quanto uma cascavel.” Começa assim a
matéria “Marijuana: assassina de jovens”, publicada em 1937 na revista American
Magazine. A cena nunca aconteceu. O texto era assinado por um funcionário do governo
chamado Harry Anslinger. Se a maconha, hoje, é ilegal em praticamente todo o mundo, não é
exagero dizer que o maior responsável foi ele.
Nas primeiras décadas do século 20, a maconha era liberada, embora muita gente a visse
com maus olhos. Aqui no Brasil, maconha era “coisa de negro”, fumada nos terreiros de
candomblé para facilitar a incorporação, e nos confins do País por agricultores depois do
trabalho. Na Europa, ela era associada aos imigrantes árabes e indianos e aos incômodos
intelectuais boêmios. Nos Estados unidos, quem fumava eram os cada vez mais numerosos
mexicanos – meio milhão deles cruzaram o rio Grande entre 1915 e 1930 em busca de
trabalho. Muitos não acharam. Ou seja, em boa parte do Ocidente, fumar maconha era
relegado a classes marginalizadas e visto com antipatia pela classe média branca.
Pouca gente sabia, entretanto, que a mesma planta que fornecia fumo às classes baixas
tinha enorme importância econômica. Dezenas de remédios – de xaropes para tosse a pílulas
para dormir – continham cannabis. Quase toda a produção de papel usava como matéria-
prima a fibra do cânhamo, retirada do caule do pé de maconha. A indústria de tecidos
também dependia da cannabis – o tecido de cânhamo era muito difundido, especialmente
para fazer cordas, velas de barco, redes de pesca e outros produtos que exigissem um
material muito resistente. A Ford estava desenvolvendo combustíveis e plásticos feitos a
partir do óleo da semente de maconha. As plantações de cânhamo tomavam áreas imensas na
Europa e nos Estados unidos.
Em 1920, sob pressão de grupos religiosos protestantes, os Estados unidos decretaram a
proibição da produção e da comercialização de bebidas alcoólicas. Era a Lei Seca, que
durou até 1933. Foi aí que Henry Anslinger surgiu na vida pública americana – reprimindo o
tráfico de rum que vinha das Bahamas. Foi aí também que a maconha entrou na vida de muita
gente – e não só dos mexicanos. “A proibição do álcool foi o estopim para o boom da
maconha”, afirma o historiador inglês richard Davenport-Hines, especialista na história dos
narcóticos, em seu livro The Pursuit of Oblivion (“A busca do esquecimento”, ainda sem
versão para o Brasil). “Na medida em que ficou mais difícil obter bebidas alcoólicas, e elas
ficaram mais caras e piores, pequenos cafés que vendiam maconha começaram a proliferar”,
escreveu.
Anslinger foi promovido a chefe da Divisão de Controle Estrangeiro do Comitê de
Proibição e sua tarefa era cuidar do contrabando de bebidas. Foi nessa época que ele
percebeu o clima de antipatia contra a maconha que tomava a nação. Clima esse que só
piorou com a quebra da Bolsa, em 1929, que afundou a nação numa recessão. No sul do país,
corria o boato de que a droga dava força sobre-humana aos mexicanos, o que seria uma
vantagem injusta na disputa pelos escassos empregos. A isso se somavam insinuações de que
a droga induzia ao sexo promíscuo (muitos mexicanos talvez tivessem mais parceiros que um
americano puritano médio, mas isso não tem nada a ver com a maconha) e ao crime (com a
crise, a criminalidade aumentou entre os mexicanos pobres, mas a maconha é inocente
disso). Baseados nesses boatos, vários Estados começaram a proibir a substância. Nessa
época, a maconha virou a droga de escolha dos músicos de jazz, que afirmavam ficar mais
criativos depois de fumar.
Anslinger agarrou-se firme à bandeira proibicionista, batalhou para divulgar os mitos
antimaconha e, em 1930, quando o governo, preocupado com a cocaína e o ópio, criou o
FBN (Federal Bureau of Narcotics, um escritório nos moldes do FBI para lidar com drogas),
ele articulou para chefiá-lo. De repente, de um cargo burocrático obscuro, Anslinger passou
a ser o responsável pela política de drogas do país. E quanto mais substâncias fossem
proibidas, mais poder ele teria.
Mas é improvável que a cruzada fosse motivada apenas pela sede de poder. Outros
interesses devem ter pesado. Anslinger era casado com a sobrinha de Andrew Mellon, dono
da gigante petrolífera Gulf Oil e um dos principais investidores da igualmente gigante
DuPont. “A DuPont foi uma das maiores responsáveis por orquestrar a destruição da
indústria do cânhamo”, afirma o escritor Jack Herer, em seu livro The Emperor Wears No
Clothes (“O imperador está nu”, ainda sem tradução). Nos anos 1920, a empresa estava
desenvolvendo vários produtos a partir do petróleo: aditivos para combustíveis, plásticos,
fibras sintéticas como o náilon e processos químicos para a fabricação de papel feito de
madeira. Esses produtos tinham uma coisa em comum: disputavam o mercado com o
cânhamo.
Seria um empurrão considerável para a nascente indústria de sintéticos se as imensas
lavouras de cannabis fossem destruídas, tirando a fibra do cânhamo e o óleo da semente do
mercado. “A maconha foi proibida por interesses econômicos, especialmente para abrir o
mercado das fibras naturais para o náilon”, afirma o jurista Wálter Maierovitch, especialista
em tráfico de entorpecentes e exsecretário nacional antidrogas.
Anslinger tinha um aliado poderoso na guerra contra a maconha: William randolph Hearst,
dono de uma imensa rede de jornais. Hearst era a pessoa mais influente dos Estados unidos.
Milionário, comandava suas empresas de um castelo monumental na Califórnia, onde recebia
artistas de Hollywood para passear pelo zoológico particular ou dar braçadas na piscina
coberta, adornada com estátuas gregas. Foi nele que Orson Welles se inspirou para criar o
protagonista do filme Cidadão Kane. Hearst sabidamente odiava mexicanos. Parte desse
ódio talvez se devesse ao fato de que, durante a revolução Mexicana de 1910, as tropas de
Pancho Villa (que, aliás, faziam uso frequente de maconha) desapropriaram uma enorme
propriedade sua. Sim, Hearst era dono de terras e as usava para plantar eucaliptos e outras
árvores para produzir papel. Ou seja, ele também tinha interesse em que a maconha
americana fosse destruída – levando com ela a indústria de papel de cânhamo.
Hearst iniciou, nos anos 1930, uma intensa campanha contra a maconha. Seus jornais
passaram a publicar seguidas matérias sobre a droga, às vezes afirmando que a maconha
fazia os mexicanos estuprarem mulheres brancas, outras noticiando que 60% dos crimes
eram cometidos sob efeito da droga (um número tirado sabe-se lá de onde). Nessa época,
surgiu a história de que o fumo mata neurônios, um mito repetido até hoje. Foi Hearst que, se
não inventou, ao menos popularizou o nome marijuana (ele queria uma palavra que soasse
bem hispânica, para permitir a associação direta entre a droga e os mexicanos). Anslinger
era presença constante nos jornais de Hearst, onde contava suas histórias de terror. A
opinião pública ficou apavorada. Em 1937, Anslinger foi ao Congresso dizer que, sob o
efeito da maconha, “algumas pessoas embarcam numa raiva delirante e cometem crimes
violentos”.
Os deputados votaram pela proibição do cultivo, da venda e do uso da cannabis, sem
levar em conta as pesquisas que afirmavam que a substância era segura. Proibiu-se não
apenas a droga, mas a planta. O homem simplesmente cassou o direito da espécie Cannabis
sativa de existir.
Anslinger também atuou internacionalmente. Criou uma rede de espiões e passou a
frequentar as reuniões da Liga das Nações, antecessora da ONu, propondo tratados cada vez
mais duros para reprimir o tráfico internacional. Também começou a encontrar líderes de
vários países e a levar a eles os mesmos argumentos aterrorizantes que funcionaram com os
americanos. Não foi difícil convencer os governos – já na década de 1920, o Brasil adotava
leis federais antimaconha. A Europa também embarcou na onda proibicionista.
“A proibição das drogas serve aos governos porque é uma forma de controle social das
minorias”, diz o cientista político Thiago rodrigues, pesquisador do Núcleo de Estudos
Interdisciplinares sobre Psicoativos. Funciona assim: maconha é coisa de mexicano,
mexicano é uma classe incômoda. “Como não é possível proibir alguém de ser mexicano,
proíbe-se algo que seja típico dessa etnia”, diz Thiago. Assim, é possível manter sob
controle todos os mexicanos – eles estarão sempre ameaçados de cadeia. Por isso, a
proibição da maconha fez tanto sucesso no mundo. O governo brasileiro achou ótimo mais
esse instrumento para manter os negros sob controle. Os europeus também adoraram poder
enquadrar seus imigrantes.
A proibição foi virando uma forma de controle internacional por parte dos Estados
unidos, especialmente depois de 1961, quando uma convenção da ONU determinou que as
drogas são ruins para a saúde e o bem-estar da humanidade – e, portanto, eram necessárias
ações coordenadas e universais para reprimir seu uso. “Isso abriu espaço para intervenções
militares americanas”, diz Maierovitch. “Virou um pretexto oportuno para que os americanos
possam entrar em outros países e exercer os seus interesses econômicos.”
Estava erguida uma estrutura mundial interessada em manter as drogas na ilegalidade, a
maconha entre elas. um ano depois, em 1962, o presidente John Kennedy demitiu Anslinger –
depois de nada menos que 32 anos à frente do FBN. um grupo formado para analisar os
efeitos da droga concluiu que os riscos da maconha estavam sendo exagerados e que a tese
de que ela levava a drogas mais pesadas era furada. Mas não veio a descriminalização. Pelo
contrário. O presidente richard Nixon endureceu mais a lei, declarou “guerra às drogas” e
criou o DEA (em português, “Escritório de Coação das Drogas”), um órgão ainda mais
poderoso que o FBN, porque, além de definir políticas, tem poder de polícia.
Maconha faz mal?
Taí uma pergunta que vem sendo feita faz tempo. Depois de mais de um século de pesquisas,
a resposta mais honesta é: faz, mas muito pouco e só para casos extremos. O uso moderado
não faz mal. A preocupação da ciência com esse assunto começou em 1894, quando a Índia
fazia parte do Império Britânico. Havia, então, a desconfiança de que o bhang, uma bebida à
base de maconha muito comum na Índia, causava demência. Grupos religiosos britânicos
reivindicavam sua proibição. Formou-se a Comissão Indiana de Drogas da Cannabis, que
passou dois anos investigando o tema. O relatório final desaconselhou a proibição: “O bhang
é quase sempre inofensivo quando usado com moderação e, em alguns casos, é benéfico. O
abuso do bhang é menos prejudicial que o abuso do álcool.”
Em 1944, um dos mais populares prefeitos de Nova York, Fiorello La Guardia,
encomendou outra pesquisa. Em meio à histeria antimaconha de Anslinger, La Guardia
resolveu conferir quais os reais riscos da tal droga assassina. Os cientistas escolhidos por
ele fizeram testes com presidiários (algo comum na época) e concluíram: “O uso prolongado
da droga não leva à degeneração física, mental ou moral”. O trabalho passou despercebido
no meio da barulheira proibicionista de Anslinger.
A partir dos anos 1960, várias pesquisas parecidas foram encomendadas por outros
governos. relatórios produzidos na Inglaterra, no Canadá e nos Estados unidos aconselharam
um afrouxamento nas leis. Nenhuma dessas pesquisas foi suficiente para forçar uma
mudança. Mas a experiência mais reveladora sobre a maconha e suas consequências foi
realizada fora do laboratório. Em 1976, a Holanda decidiu parar de prender usuários de
maconha desde que eles comprassem a droga em cafés autorizados. resultado: o índice de
usuários continua comparável aos de outros países da Europa. O de jovens dependentes de
heroína caiu – estima-se que, ao tirar a maconha da mão dos traficantes, os holandeses
separaram essa droga das mais pesadas e, assim, dificultaram o acesso a elas.
Nos últimos anos, os possíveis males da maconha foram cuidadosamente escrutinados –
às vezes por pesquisadores competentes, às vezes por gente mais interessada em convencer
os outros da sua opinião. Veja a seguir um resumo do que se sabe:
Câncer
Não se provou nenhuma relação direta entre fumar maconha e câncer de pulmão, traqueia,
boca e outros associados ao cigarro. Isso não quer dizer que não haja. Por muito tempo, os
riscos do cigarro foram negligenciados, e só nas últimas duas décadas ficou claro que havia
uma bomba-relógio armada – porque os danos só se manifestam depois de décadas de uso
contínuo. Há o temor de que uma bomba semelhante esteja para explodir no caso da
maconha, cujo uso se popularizou a partir dos anos 1960. O que se sabe é que o cigarro de
maconha tem praticamente a mesma composição de um cigarro comum – a única diferença
significativa é o princípio ativo. No cigarro é a nicotina, na maconha o tetrahidrocanabinol,
ou THC. Também é verdade que o fumante de maconha tem comportamentos mais arriscados
que o de cigarro: traga mais profundamente, não usa filtro e segura a fumaça por mais tempo
no pulmão (o que, aliás, segundo os cientistas, não aumenta os efeitos da droga).
Em compensação, boa parte dos maconheiros fuma muito menos e para ou reduz o
consumo depois dos 30 anos (parar cedo é sabidamente uma forma de diminuir muito o risco
de câncer). Em resumo: o usuário eventual de maconha, que é o mais comum, não precisa se
preocupar com um aumento grande do risco de câncer. Quem fuma mais de um baseado por
dia há mais de 15 anos deve pensar em parar.
Dependência
Algo entre 6% e 12% dos usuários, dependendo da pesquisa, desenvolve um uso compulsivo
da maconha (menos que a metade das taxas para álcool e tabaco). A questão é: será que a
maconha é a causa da dependência ou apenas uma válvula de escape? “Dependência de
maconha não é problema da substância, mas da pessoa”, afirma o psiquiatra Dartiu Xavier,
coordenador do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Escola Paulista de
Medicina. Segundo Dartiu, há um perfil claro do dependente de maconha: em geral, ele é
jovem, quase sempre ansioso e eventualmente depressivo. Pessoas que não se encaixam
nisso não desenvolvem o vício. “E as que se encaixam podem tanto ficar dependentes de
maconha quanto de sexo, de jogo, de internet”, diz.
Muitos especialistas apontam para o fato de que a maconha está ficando mais perigosa –
na medida em que fica mais potente. Ao longo dos últimos 40 anos, foi feito um
melhoramento genético, cruzando plantas com alto teor de THC. Surgiram variedades como
o skunk. No último ano, foram apreendidos carregamentos de maconha alterada
geneticamente no Leste Europeu – a engenharia genética é usada para aumentar a potência, o
que poderia aumentar o potencial de dependência. Segundo o farmacólogo Leslie Iversen,
autor do ótimo The Science of Marijuana (“A ciência da maconha”, sem tradução para o
português) e consultor para esse tema da Câmara dos Lordes (o Senado inglês), esses
temores são exagerados e o aumento da concentração de THC não foi tão grande assim.
Para além dessa discussão, o fato é que, para quem é dependente, maconha faz muito mal.
Isso é especialmente verdade para crianças e adolescentes. “O sujeito com 15 anos não está
com a personalidade formada. O uso exagerado de maconha pode ser muito danoso a ele”,
diz Dartiu. O maior risco para adolescentes que fumam maconha é a síndrome
amotivacional, nome que se dá à completa perda de interesse que a droga causa em algumas
pessoas. A síndrome amotivacional é muito mais frequente em jovens, e realmente atrapalha
a vida – é quase certeza de bomba na escola e de crise na família.
Danos cerebrais
“Maconha mata neurônios”. Essa frase, repetida há décadas, não passa de mito. Bilhões de
dólares foram investidos para comprovar que o THC destrói tecido cerebral–às vezes com
pesquisas que ministravam doses de elefante em ratinhos–, mas nada foi encontrado.
Muitas experiências foram feitas em busca de danos nas capacidades cognitivas do
usuário de maconha. A maior preocupação é com a memória. Sabe-se que o usuário de
maconha, quando fuma, fica com a memória de curto prazo prejudicada. São bem comuns os
relatos de pessoas que têm ideias que parecem geniais durante o “barato”, mas não
conseguem lembrar-se de nada no momento seguinte. Isso acontece porque a memória de
curto prazo funciona mal sob o efeito de maconha e, sem ela, as memórias de longo prazo
não são fixadas (é por causa desse “desligamento” da memória que o usuário perde a noção
do tempo). Mas esse dano não é permanente. Basta ficar sem fumar que tudo volta a
funcionar normalmente. O mesmo vale para o raciocínio, que fica mais lento quando o
usuário fuma muito frequentemente.
Há pesquisas com usuários “pesados” e antigos, aqueles que fumam vários baseados por
dia há mais de 15 anos, que mostraram que eles se saem um pouco pior em alguns testes,
principalmente nos de memória e de atenção. As diferenças, no entanto, são sutis. Na
comparação com o álcool, a maconha leva grande vantagem: beber muito provoca danos
cerebrais irreparáveis e destrói a memória.
Coração
O uso de maconha dilata os vasos sanguíneos e, para compensar, acelera os batimentos
cardíacos. Isso não oferece risco para a maioria dos usuários, mas a droga deve ser evitada
por quem sofre do coração.
Infertilidade
Pesquisas mostraram que o usuário frequente tem o número de espermatozoides reduzido.
Ninguém conseguiu provar que isso possa causar infertilidade, muito menos impotência.
Também está claro que os espermatozoides voltam ao normal quando se para de fumar.
Depressão imunológica
Nos anos 1970, descobriu-se que o THC afeta os glóbulos brancos, células de defesa do
corpo. No entanto, nenhuma pesquisa encontrou relação entre o uso de maconha e a
incidência de infecções.
L oucura
No passado, acreditava-se que maconha causava demência. Isso não se confirmou, mas sabe-
se que a droga pode precipitar crises em quem já tem doenças psiquiátricas.
Gravidez
Algumas pesquisas apontaram uma tendência de filhos de mães que usaram muita maconha
durante a gravidez de nascer com menor peso. Outras não confirmaram a suspeita. De
qualquer maneira, é melhor evitar qualquer droga psicoativa durante a gestação. Sem
dúvida, a mais perigosa delas é o álcool.
Maconha faz bem?
No geral, não. A maioria das pessoas não gosta dos efeitos, e as afirmações de que a erva,
por ser “natural”, faz bem, não passam de besteira. Outros adoram e relatam que ela ajuda a
aumentar a criatividade, a relaxar, a melhorar o humor, a diminuir a ansiedade. É inevitável:
cada um é um.
O uso medicinal da maconha é tão antigo quanto a maconha. Hoje há muitas pesquisas com
a cannabis para usá-la como remédio. Segundo o farmacólogo inglês Iversen, não há dúvidas
de que ela seja um remédio útil para muitos e fundamental para alguns, mas há um certo
exagero sobre seus potenciais. Em outras palavras: a maconha não é a salvação da
humanidade. um dos maiores desafios dos laboratórios é tentar separar o efeito medicinal da
droga do efeito psicoativo – ou seja, criar uma maconha que não dê “barato”. Muitos
pesquisadores estão chegando à conclusão de que isso é impossível: aparentemente, as
mesmas propriedades químicas que alteram a percepção do cérebro são responsáveis pelo
caráter curativo. Esse fato é uma das limitações da maconha como medicamento, já que
muitas pessoas não gostam do efeito mental. No Brasil, assim como em boa parte do mundo,
o uso médico da cannabis é proibido, e milhares de pessoas usam o remédio ilegalmente.
Conheça alguns dos usos:
Câncer
Pessoas tratadas com quimioterapia muitas vezes têm enjoos terríveis, eventualmente tão
terríveis que elas preferem a doença ao remédio. Há medicamentos para reduzir esse enjoo,
e eles são eficientes. No entanto, alguns pacientes não respondem a nenhum remédio legal e
respondem maravilhosamente à maconha. Era o caso do brilhante escritor e paleontólogo
Stephen Jay Gould, que perdeu uma batalha de 20 anos contra o câncer. Gould nunca tinha
usado drogas psicoativas – ele detestava a ideia de que interferissem no funcionamento do
cérebro. Veja o que ele disse: “A maconha funcionou como uma mágica. Eu não gostava do
‘efeito colateral’ que era o borrão mental. Mas a alegria cristalina de não ter náusea – e de
não experimentar o pavor nos dias que antecediam o tratamento – foi o maior incentivo em
todos os meus anos de quimioterapia”.
Aids
Maconha dá fome. Qualquer um que fuma sabe disso (aliás, esse é um de seus
inconvenientes: ela engorda). Nenhum remédio é tão eficiente para restaurar o peso de
portadores do HIV quanto a maconha. E isso pode prolongar muito a vida: acredita-se que
manter o peso seja o principal requisito para que um soropositivo não desenvolva a doença.
O problema: a cannabis tem uma ação ainda pouco compreendida no sistema imunológico.
Sabe-se que isso não representa perigo para pessoas saudáveis, mas pode ser um risco para
doentes de Aids.
E sclerose múltipla
Essa doença degenerativa do sistema nervoso é terrivelmente incômoda e fatal. Os doentes
sentem fortes espasmos musculares, muita dor, e suas bexigas e intestinos funcionam muito
mal. Acredita-se que ela seja causada por uma má função do sistema imunológico, que faz
com que as células de defesa ataquem os neurônios. A maconha alivia todos os sintomas.
Ninguém entende bem por que ela é tão eficiente, mas especula-se que tenha a ver com seu
pouco compreendido efeito no sistema imunológico.
Dor
A cannabis é um analgésico usado em várias ocasiões. Os relatos de alívio das cólicas
menstruais são os mais promissores.
Glaucoma
Essa doença caracteriza-se pelo aumento da pressão do líquido dentro do olho, e pode levar
à cegueira. Maconha baixa a pressão intraocular. O problema é que, para ser um remédio
eficiente, a pessoa tem de fumar a cada três ou quatro horas, o que não é prático e, com
certeza, é nocivo (essa dose de maconha deixaria o paciente eternamente “chapado”). Há
estudos promissores com colírios feitos à base de maconha, que agiriam diretamente no
olho, sem afetar o cérebro.
Ansiedade
Maconha é um remédio leve e pouco agressivo contra a ansiedade. Isso, no entanto, depende
do paciente. Algumas pessoas melhoram após fumar; outras, principalmente as pouco
habituadas à droga, têm o efeito oposto. Também há relatos de sucesso no tratamento de
depressão e insônia, casos em que os remédios disponíveis no mercado, embora sejam mais
eficientes, são também bem mais agressivos e têm maior potencial de dependência.
Dependência
Dois psiquiatras brasileiros, Dartiu Xavier e Eliseu Labigalini, fizeram uma experiência
interessante. Incentivaram dependentes de crack a fumar maconha no processo de largar o
vício. resultado: 68% deles abandonaram o crack e, depois, pararam espontaneamente com a
maconha, um índice altíssimo. Segundo eles, a maconha é um remédio feito sob medida para
combater a dependência de crack e cocaína, porque estimula o apetite e combate a
ansiedade, dois problemas sérios para cocainômanos. Dartiu e Eliseu pretendem continuar
as pesquisas, mas estão com problemas para conseguir financiamento–dificilmente um órgão
público investirá num trabalho que aposte nos benefícios da maconha.
O passado
O primeiro registro do contato entre o Homo sapiens e a Cannabis sativa é de 6 mil anos
atrás. Trata-se da marca de uma corda de cânhamo impressa em cacos de barro, na China. O
emprego da fibra, não só em cordas, mas também em vários tecidos e, depois, na fabricação
de papel, é um dos mais antigos usos da maconha. Graças a ele, a planta, original da região
ao norte do Afeganistão, nos pés do Himalaia, tornou-se a primeira cultivada pelo homem
com usos não alimentícios, e espalhou-se por toda a Ásia e depois pela Europa e África.
Mas há um uso da maconha que pode ser tão antigo quanto o da fibra do cânhamo: o
medicinal. Os chineses conhecem há pelo menos 2 mil anos o poder curativo da droga, como
prova o Pen-Ts’ao Ching, considerado a primeira farmacopeia conhecida do mundo
(farmacopeia é um livro que reúne fórmulas e receitas de medicamentos). O livro recomenda
o uso da maconha contra prisão-de-ventre, malária, reumatismo e dores menstruais. Também
na Índia, a erva já há milênios é parte integral da medicina ayurvédica, usada no tratamento
de dezenas de doenças. Sem falar que ela ocupa um lugar de destaque na religião hindu. Pela
mitologia, maconha era a comida favorita do deus Shiva, que, por isso, viveria o tempo todo
“chapado”. Tomar bhang seria uma forma de entrar em comunhão com Shiva.
O hinduísmo não é a única religião a dar destaque para a cannabis. Para os budistas da
tradição Mahayana, Buda passou seis anos comendo apenas uma semente de maconha por
dia. Sua iluminação teria sido atingida após esse período de quase-jejum. Da Índia, a
maconha migrou para a Mesopotâmia, ainda em tempos pré-cristãos, e de lá para o Oriente
Médio. Portanto, ela já estava presente na região quando começou a expansão do Império
Árabe. Com a proibição do álcool entre o povo de Maomé, iniciou-se uma acalorada
discussão sobre se a maconha deveria ser banida também. Por séculos, consumiu-se
cannabis abundantemente nas terras muçulmanas, até que, na Idade Média, muitos islâmicos
abandonaram o hábito. A exceção foram os sufi, membros de uma corrente considerada mais
mística e esotérica do Islã, que até bem recentemente consideravam a cannabis fundamental
em seus ritos.
Os gregos usaram velas e cordas de cânhamo nos seus navios, assim como, depois, os
romanos. Sabe-se que o Império romano tinha pelo menos conhecimento dos poderes
psicoativos da maconha. O historiador latino Tácito, que viveu no século 1 d.C., relata que
os citas, um povo da atual Turquia, tinham o costume de armar uma tenda, acender uma
fogueira e queimar grande quantidade de maconha. Daí ficavam lá dentro, numa versão
psicodélica do banho turco.
Graças ao contato com os árabes, grande parte da África conheceu a erva e incorporou-a
aos seus ritos e à sua medicina – dos países muçulmanos acima do Saara até os zulus da
África do Sul. A Europa toda também passou a plantar maconha e usava extensivamente a
fibra do cânhamo, mas há raríssimos registros do seu uso como psicoativo naquele
continente. Pode ser que isso se deva ao clima. O THC é uma resina produzida pela planta
para proteger suas folhas e flores do sol forte. Na fria Europa, é possível que tenha se
desenvolvido uma variação da Cannabis sativa com menos THC, já que não havia tanto sol
para ameaçar o arbusto.
O fato é que, na renascença, a maconha se transformou no principal produto agrícola da
Europa. E sua importância não foi só econômica: a planta teve uma grande participação na
mudança de mentalidade que ocorreu no século 15. Os primeiros livros depois da revolução
de Gutemberg foram impressos em papel de cânhamo. As pinturas dos gênios da arte eram
feitas em telas de cânhamo (canvas, a palavra usada em várias línguas para designar “tela”,
é uma corruptela holandesa do latim cannabis). E as grandes navegações foram
impulsionadas por velas de cânhamo – segundo o autor americano rowan robinson, autor de
O Grande Livro da Cannabis, havia 80 toneladas de cânhamo, contando o velame e as
cordas, no barco comandado por Cristóvão Colombo em 1496. Ou seja, a América foi
descoberta graças à maconha. Irônico.
Sobre as luzes da renascença caíram as sombras da Inquisição – um período em que a
Igreja ganhou muita força e passou a exercer o papel de polícia, julgando hereges em seu
tribunal e condenando bruxas à fogueira. “As bruxas nada mais eram do que as curandeiras
tradicionais, principalmente as de origem celta, que utilizavam plantas para tratar as
pessoas, às vezes plantas com poderes psicoativos”, diz o historiador Henrique Carneiro,
especialista em drogas da universidade Federal de Ouro Preto. Não há registros de que
maconheiros tenham sido queimados no século 16 – inclusive porque o uso psicoativo da
maconha era incomum na Europa –, mas é certo que se cristalizou naquela época uma
antipatia cristã por plantas que alteram o estado de consciência. “O cristianismo afirmou seu
caráter de religião imperial e, sob seus domínios, a única droga permitida é o álcool,
associado com o sangue de Cristo”, diz Henrique.
Em 1798, as tropas de Napoleão conquistaram o Egito. Até hoje não estão muito claras as
razões pelas quais o imperador francês se aventurou no norte da África (vaidade, talvez).
Mas pode ser que o principal motivo fosse a intenção de destruir as plantações de maconha,
que abasteciam de cânhamo a poderosa Marinha da Inglaterra. O fato é que coube a
Napoleão promulgar a primeira lei do mundo moderno proibindo a maconha. Os egípcios
eram fumantes de haxixe, a resina extraída da folha e da flor da maconha, constituída de
THC concentrado. Mas a proibição saiu pela culatra. Os egípcios ignoraram a lei e
continuaram fumando como sempre fizeram. Em compensação, os europeus ouviram falar da
droga e ela rapidamente virou moda na Europa, principalmente entre os intelectuais. “O
haxixe está substituindo o champanhe”, disse em 1845, depois da conquista da Argélia, o
escritor Théophile Gautier – que, na época, era outro grande consumidor de THC.
No Brasil, a planta chegou cedo, talvez ainda no século 16, trazida pelos escravos (o
nome “maconha” vem do idioma quimbundo, de Angola; mas, até o século 19, era mais usual
chamar a erva de fumodeangola ou de diamba, nome também quimbundo). Por séculos, a
droga foi tolerada no País, provavelmente fumada em rituais de candomblé (teria sido o
presidente Getúlio Vargas que negociou a retirada da maconha dos terreiros, em troca da
legalização da religião). Em 1830, o Brasil fez sua primeira lei restringindo a planta. A
Câmara Municipal do rio de Janeiro tornou ilegal a venda e o uso da droga na cidade, e
determinou que “os contraventores serão multados, a saber: o vendedor em 20 mil réis, e os
escravos e demais pessoas, que dela usarem, em três dias de cadeia.” Note que, naquela
primeira lei proibicionista, a pena para o uso era mais rigorosa que a do traficante. Há uma
razão para isso. Ao contrário do que acontece hoje, o vendedor vinha da classe média
branca e o usuário era quase sempre negro e escravo.
O presente
Segundo dados da ONu, 147 milhões de pessoas fumam maconha no mundo, o que faz dela a
terceira droga psicoativa mais consumida, depois do tabaco e do álcool. A droga é proibida
em boa parte do planeta, mas, desde que a Holanda começou a tolerá-la, na década de 1970,
alguns outros países europeus seguiram os passos da descriminalização. Itália e Espanha há
tempos aceitam pequenas quantidades da erva – embora a Espanha esteja abandonando a
posição branda e haja projetos de lei, na Itália, no mesmo sentido. O reino unido acabou de
anunciar que descriminalizou o uso da maconha – a partir do ano que vem, a droga será
apreendida e o portador receberá apenas uma advertência verbal. Os ingleses esperam,
assim, poder concentrar seus esforços na repressão de drogas mais pesadas.
No ano passado, Portugal endureceu as penas para o tráfico, mas descriminalizou o
usuário de qualquer droga, desde que ele seja encontrado com quantidades pequenas. Porte
de drogas virou uma infração administrativa, como parar em lugar proibido.
Nos últimos anos, os Estados unidos também mudaram sua forma de lidar com as drogas.
Dentro da tendência mundial de ver a questão mais como um problema de saúde do que
criminal, o país, em vez de botar na cadeia, obriga o usuário a se tratar numa clínica para
dependentes. “Essa ideia é completamente equivocada”, afirma o psiquiatra Dartiu Xavier,
refletindo a opinião de muitos especialistas. “Primeiro porque nem todo usuário é
dependente. Segundo porque um tratamento não funciona se é compulsório – a pessoa tem de
querer parar”, diz. No sistema americano, quem recusa o tratamento ou o abandona vai para
a cadeia. Portanto, não é uma descriminalização. “Chamo esse sistema de ‘solidariedade
autoritária’”, diz o jurista Maierovitch. O Brasil planeja adotar o mesmo modelo.
O futuro
Há possibilidades de uma mudança no tratamento à maconha? “No Brasil, não é fácil”, diz
Maierovitch – que, enquanto era secretário nacional antidrogas do governo de Fernando
Henrique Cardoso, planejou a descriminalização. “A lei hoje em vigor em Portugal foi feita
em conjunto conosco, com o apoio do presidente”, afirma. A ideia é que ela fosse colocada
em prática ao mesmo tempo nos dois países. Segundo Maierovitch, Fernando Henrique
mudou de ideia depois. O jurista afirma que há uma enorme influência americana na política
de drogas brasileira. O fato é que essa questão mais tira do que dá votos, e assusta os
políticos – e não só aqui no Brasil. Fernando Gabeira é um dos poucos identificados com a
causa da descriminalização. “Pretendo, como um primeiro passo, tentar a legalização da
maconha para uso médico”, diz. Mas suas ideias estão longe de ser unanimidade, mesmo
dentro do seu partido.
No remoto caso de uma legalização da compra e da venda, haveria dois modelos
possíveis. um seria o monopólio estatal, com o governo plantando e fornecendo as drogas,
para permitir um controle maior. A outra possibilidade seria o governo estabelecer as regras
(composição química exigida, proibição para menores de idade, proibição para fumar e
dirigir), cobrar impostos (que seriam altíssimos, inclusive para evitar que o preço caia
muito com o fim do tráfico ilegal) e a iniciativa privada assumir o lucrativo negócio. Não há
no horizonte nenhum sinal de que isso esteja para acontecer. Mas a SUPER apurou, em
consulta ao Instituto Nacional de Propriedade Intelectual, que a Souza Cruz registrou, em
1997, a marca Marley – fica para o leitor imaginar que produto a empresa de tabaco
pretende comercializar com o nome do ídolo do reggae.
os animais?
O HOMEM CONVIVE COM OS ANIMAIS DESDE
QUANDO AINDA TINHA A SENSAÇÃO DE QUE ERA
UM DELES. AO LONGO DOS ANOS, JÁ OS ADORAMOS
COMO DEUSES E JÁ OS MALTRATAMOS COMO SE
FOSSEM COISAS. HOJE, ENQUANTO VÁRIAS PESSOAS
PREGAM QUE DEVEMOS NOS ISOLAR DOS BICHOS,
OUTRAS ACREDITAM QUE DEVERÍAMOS
TRATÁ-LOS COMO MEMBROS DA FAMÍLIA.
AFINAL, COMO CONVIVER COM ELES?
cachorro é todo marrom, da cauda às longas orelhas, a não ser por uma mancha sobre
o olho esquerdo. Se fosse um bicho de estimação, podia ser batizado de Pirata ou
O Camões, por causa do tapa-olho. Mas esse cachorro não tem nome. Nascido há
semanas, ele foi logo separado da mãe e passa a vida em uma jaula pouco maior que
seu corpo. Sem ter o que fazer, ele come e dorme. rapidamente engorda. um dia, ele é
enfiado em uma gaiola com outros cães e levado a um galpão. O cheiro de sangue e
fezes é forte. Ouvem-se ganidos. uma pessoa se aproxima e lhe aplica um choque violento.
Em instantes, o cão sem nome morre. Seu corpo é jogado sobre uma grelha, e seu pêlo,
tostado. Em alguns minutos, ele é cortado em pedaços para virar churrasco.
A cena descrita acima é real e acontece diariamente na Coreia, onde carne de cachorro é
muito apreciada. Fora dali, porém, o abate de cães é considerado uma afronta, uma ofensa
aos padrões civilizados. Não deixa de ser curioso, já que porcos, vacas e galinhas têm
destinos bem parecidos com o do anônimo cão coreano, mas bem pouca gente ergue a voz
para protegê-los.
O fato de aceitarmos que alguns animais sejam torturados enquanto enchemos outros de
cuidados reflete a confusão que fizemos com os seres de outras espécies. Por um lado, nunca
houve tanta preocupação com a vida dos bichos. Por outro, nunca tantos sofreram e
morreram por nossa culpa. Em um ano, a indústria de artigos para animais de estimação
fatura 30 bilhões de dólares nos Estados unidos vendendo conforto para bichos domésticos.
No mesmo prazo, 8 bilhões de frangos são atormentados e mortos por lá. E na mesma
Alemanha em que, no ano passado, os animais ganharam um direito constitucional – a lei
agora obriga o Estado a respeitar e proteger a dignidade dos homens “e dos animais” –, a
carne de porco ainda é a base proteica da população, e os suínos vivem confinados a maior
parte da vida.
Não é fácil entender como chegamos a essa confusão cultural. Conhecer o passado ajuda a
esclarecer as coisas.
Uma relação antiga
O homem come carne de outras espécies há quase 2,5 milhões de anos e já faz mais de 6 mil
anos que os criamos, com o único propósito de digeri-los ou vestir sua pele. Curiosamente,
muitos deuses dos povos primitivos eram animais. Então o homem primitivo matava seus
deuses? Isso mesmo. “O caráter sagrado do animal pode ser visto como um pedido de
desculpas, uma solicitação de autorização ou uma compensação, uma homenagem pela sua
morte”, diz Antonio Fernandes Nascimento Júnior, antropólogo e etólogo (que estuda o
comportamento animal) da universidade Estadual Paulista (unesp), em Bauru. Em outras
palavras, os caçadores podiam matar o bicho, desde que depois rezassem para ele ou por
ele. Pecado era faltar com o respeito. “Tratá-los sem o devido respeito poderia causar
vinganças dos deuses.” Alguns povos exigiam que o animal a ser degolado concordasse com
sua morte, o que se conseguia com alguma trapaça, para a qual todo mundo fazia vista
grossa.
Na Grécia, os sacerdotes derramavam água benta sobre a cabeça do animal. Os gregos
espertamente entendiam o chacoalhão de cabeça que ele dava para se secar como um “sim”.
Hoje em dia, ninguém reza ao deus-chester no almoço de domingo, graças às religiões
monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo), que retiraram os poderes mágicos do
mundo real e os concentraram em Deus. E é Dele, o Todo-Poderoso, que vem a autorização
para desfrutarmos dos outros seres. Está na Bíblia: o Jardim do Éden é um paraíso
preparado para o homem no qual temos o domínio sobre todas as coisas vivas. A natureza
passou a ser como uma massa virgem, pronta para ser moldada e dominada. “Há poucos
séculos, a ideia de resistir à agricultura, ao invés de estimulá-la, pareceria ininteligível”,
escreve o historiador Keith Thomas em O Homem e o Mundo Natural. “A agricultura estava
para a terra como o cozimento estava para a carne crua. Terra não cultivada significava
homens incultos”, diz ele.
Sem seus poderes, a natureza ficou à mercê do ser humano, que se aperfeiçoou em explorá-
la. O respeito do passado deu lugar a uma visão utilitária, ou seja, tudo o que servia ao ser
humano estava liberado. Matar bichos por prazer já não chocava ninguém, mesmo porque
todo mundo praticava alguma tortura de animais. Keith Thomas dá muitos exemplos dessas
crueldades. um deles: donas de casa do século 17 cortavam as pernas de aves vivas,
acreditando que isso deixava a carne mais tenra. Açular um touro significa atiçar cães contra
ele. Há cerca de 350 anos, acreditava-se que o açulamento melhorava o sabor da carne do
touro, e a maioria das cidades inglesas tinha uma lei que não só permitia o açulamento antes
do abate, como o tornava obrigatório.
A visão que se tinha da natureza era antropocêntrica. Os animais eram classificados em
comestíveis e não-comestíveis, ferozes e mansos, úteis e inúteis. O reino vegetal era loteado
de forma parecida. Só em 1500 surgiram os primeiros naturalistas, que passaram a
classificar os seres por suas caraterísticas, e não pela relação que tinham conosco.
S omos iguais, diz a ciência
Não é segredo que a ciência desbancou a religião no papel de intérprete do mundo natural. E
a ciência diz que a Terra não é um jardim dado de presente por Deus à humanidade, cheio de
bichinhos para desfrutarmos como quisermos. Na versão científica, a vida evoluiu por
tentativa e erro, gerando desde bactérias até os mamíferos e o homem. Aos poucos, foram
caindo as barreiras que nos diferenciavam das bestas. Percebeu-se que nossos corpos e os
dos animais eram muito parecidos, que eles também tinham linguagem, embora mais
rudimentar, e que podiam raciocinar. Aristóteles dizia que o homem era o único animal
político, mas os primatologistas hoje sabem que os chimpanzés têm uma vida social digna de
uma novela, com favores, amizades e falsidades. Já para Benjamin Franklin, o homem era o
único animal que fabrica utensílios, mas primatas não só fazem suas ferramentas como
ensinam os colegas a fabricá-las, gerando uma “cultura animal”.
Esse conhecimento científico abriu caminho para a ideia de igualdade entre todas as
formas de vida. Em algumas décadas, o oceano que nos separava dos animais virou um
córrego. Muitos não gostaram dessa proximidade e procuraram formas de se diferenciar dos
bichos. uma delas foi apelar para uma das poucas diferenças que até hoje se sustenta: a
religião. O homem é o único ser com uma alma imortal, ou, em outras palavras, é o único
com moral, capaz de discernir o que é certo e o que é errado. “A religião e a moral são
tentativas de restringir os aspectos animais da natureza humana, o que Platão chamava de ‘o
animal selvagem dentro de nós’”, diz Keith Thomas. Não por acaso, o Diabo é representado
por um bicho. No século 17, isso era uma novidade. Até então, as pessoas pensavam que os
animais também sabiam o que era certo ou errado. Bichos que desrespeitassem a lei eram
levados a julgamento. O Antigo Testamento previa a pena de morte para animais que
matassem pessoas.
Segundo Keith Thomas, houve um caso em que marujos atacados por tubarões vingaram-
se dos peixes capturando um cardume e torturando-os.
Outro jeito de se diferenciar dos bichos era pelo comportamento. Foi assim que surgiram
os primeiros manuais de etiqueta: para que as pessoas não agissem como animais que eram.
Ficar nu, ter cabelos compridos, trabalhar à noite e até nadar eram atitudes condenáveis.
Passaram a ser suspeitas também as pessoas que viviam muito perto dos animais, o que
significava quase toda a população da época. Até o final do século 18, mesmo nas cidades
apinhadas, a família dividia o teto com patos, porcos e cabras. O estábulo era separado do
quarto de dormir por uma parede. Não demorou muito e os animais foram expulsos de casa.
Como não podiam viver pelas ruas, foram expulsos também das cidades.
A partir de então, tirando os animais de estimação, os bichos só entravam na casa mortos,
para serem comidos. Alguns, nem assim. Afinal, são poucos os animais aceitos à mesa,
graças a hábitos alimentares baseados em costumes antigos, sem critérios científicos. um
desses critérios era a dieta do animal. Não se comiam carnívoros e devoradores de carniça
ou excrementos, nem animais de trabalho. Não por acaso, o rosbife inglês popularizou-se ao
mesmo tempo que o boi perdeu sua função como animal de tração. Outros critérios eram a
semelhança com o homem (que tirou os macacos do cardápio) e o ambiente do bicho: na
Inglaterra, rãs, lesmas, cogumelos e ostras eram considerados nojentos. Mas, como diz a mãe
para a criança que faz cara feia à mesa: “Tudo é costume”. Os franceses comiam pernas de
rã revirando os olhos de alegria.
Nessa época, foi tomando corpo uma teoria que acabou servindo de justificativa moral
para as pessoas que queriam continuar comendo carne: o mecanicismo. “Para os
mecanicistas, os animais e o corpo humano eram apenas máquinas. Mas nós temos mente e,
portanto, uma alma separada”, diz o filósofo roberto romano, da universidade Estadual de
Campinas (unicamp). O filósofo francês rené Descartes (1595-1650), um dos mais
conhecidos mecanicistas, dizia que os sentimentos, como a dor e o sofrimento, moravam na
alma. Como animais não têm alma, também não sentem dor. “A explicação cartesiana era
uma ótima justificativa para o tratamento que era dado aos animais, porque eliminava a
culpa pelas crueldades”, afirma Thomas.
A tese de que os animais eram insensíveis perdeu popularidade, mas a atitude que ela
incentivou sobrevive até hoje entre gente que lida com animais: vaqueiros que maltratam o
gado, cientistas que matam animais à toa. Para a maioria das pessoas, porém, cujo único
contato com animais era com seu cachorro ou com seu cavalo (algumas das poucas espécies
que ainda eram aceitas nas cidades), a história de que só homem sente dor não colou. Pelo
contrário. A multiplicação dos bichos de estimação fez aumentar o sentimentalismo em
relação aos animais. As pessoas enxergavam neles cada vez mais traços humanos. Além de
dor, eles passaram a ter ataques nervosos, vícios e carências. Aos poucos, o tempo foi
apagando as lembranças ruins do trabalho rural e só restou uma nostalgia campestre. De
repente, a floresta, antes chamada de “terrível”, passou a ser bela.
Até o século 16, matar animais selvagens considerados perigosos ou daninhos rendia
recompensa. Menos de 300 anos depois, já havia gente querendo proteger o urso, que estava
desaparecendo da Europa.
Para algumas pessoas da cidade, passou a ser intolerável o uso de animais. Qualquer uso,
mesmo para comer. Foi o primeiro surto de vegetarianismo no Ocidente. Logo alguém achou
na Bíblia uma justificativa para se viver de alface: o homem não era originalmente
carnívoro, diziam, só depois do Dilúvio é que fomos comer carne. É claro que havia gente
menos sensível, que não se incomodava em comer uma boa bisteca. Mas mesmo esses
tiveram de mudar sua atitude à mesa, para não ofender a sensibilidade alheia. Nada de servir
leitões, lebres ou vacas acompanhados de suas cabeças, como era comum até o século 18.
Entre o descaso de uns e o zelo excessivo de outros, foram surgindo leis para regular o trato
dos animais. Em linhas gerais, até hoje elas permitem o uso de algumas espécies e a
eliminação das ameaçadoras. Mas causar sofrimento por prazer é proibido.
Temos direito de usá-los?
Como todas as outras espécies, a humanidade tem o direito de fazer o que achar necessário
para sobreviver e se multiplicar. Qualquer coisa, desde dizimar os búfalos norte-americanos
até virar vegetariano. Os únicos limites a isso são aqueles impostos por nós mesmos, que
começam como regras morais e acabam virando leis. Portanto, se alguém conseguiu
convencer o resto da humanidade (ou a parte mais influente dela) de que não é legal
maltratar animais, nada mais justo que se proíbam os maus tratos. Agora, entidades como a
Peta (People for the Ethical Treatment of Animals, ou “Pessoas pelo Tratamento Ético de
Animais”, em português) querem nos persuadir a deixar de usar os animais para tudo. E,
para nos convencer dessa ideia, estão jogando pesado (como comparar matadouros com
campos de extermínio nazistas).
A proposta de abandonarmos de vez os animais não é nova. Ela já está por aí, tentando
conquistar adeptos, desde 1975, quando foi publicado o Animal Liberation (“Libertação dos
Animais”, inédito no Brasil), escrito pelo filósofo australiano Peter Singer. Na época, o
livro foi saudado como uma sequência lógica dos fatos recentes. A escravidão dos negros foi
banida no século 19, mas sua igualdade só foi reconhecida na metade do século 20 (muita
gente dirá que ainda não foi). A fumaça dos sutiãs queimados, marca do movimento
feminista, ainda estava no ar. E os homossexuais começavam a ser admitidos como iguais.
Parecia que, na infinita fila dos oprimidos, era chegada a vez dos animais.
E Singer mostrou-se um bom advogado dos não-humanos, com boas respostas para tudo.
Sua teoria se baseia na ideia da igualdade entre os homens. Certo, somos todos iguais
perante a lei. Mas igualdade, diz ele, não quer dizer que somos idênticos. Algumas pessoas
são mais inteligentes que outras. Para o conceito de igualdade, isso não importa. Se o físico
alemão Albert Einstein precisasse de um transplante de rim, não poderia obrigar ninguém,
nem o pior aluno da escola local, a doar seu órgão a ele. Por quê? Porque o interesse dos
dois tem o mesmo valor. Para Singer, não há razão para que isso não valha também para os
animais. “Se a posse de um grau mais alto de inteligência não autoriza um ser humano a usar
outros seres humanos para seus próprios objetivos, como poderá autorizar a exploração,
com o mesmo propósito, dos não-humanos?”
Mas isso não significa conferir aos animais os direitos ou o tratamento dados a uma
pessoa. Conceder direito de voto aos cavalos não faria sentido nenhum. Só os interesses
iguais podem ser comparados. E onde é que nossos interesses se igualam aos de um boi? Na
aversão ao sofrimento, diz Singer. Animais, assim como humanos, sentem dor e não gostam
dela. Ou seja, devemos evitar causar dor a eles com o mesmo cuidado que evitamos causar
dor a uma pessoa. E isso vale para vários tipos de sofrimento, inclusive psicológico: medo,
ansiedade, frustração e estresse. É nossa obrigação evitar causar esses sentimentos a eles,
com tudo o que isso significa: parar de comer carne, abandonar experimentos científicos
com cobaias e banir os animais de estimação, para ficar nos três exemplos mais dramáticos.
Não é uma mudança das mais fáceis. Mas, mesmo assim, é difícil escapar do raciocínio
de Singer. Afinal, por que temos consideração pelo sofrimento de outro ser humano e não
pelo dos não-humanos? Se você pensou em responder “porque somos humanos”, cuidado.
reservar privilégios ao grupo a que você pertence é preconceito, diz Singer, como racismo e
sexismo. Discriminar animais só porque são animais é chamado de “especicismo”, uma
atitude moralmente indefensável, diz ele.
Mas humanos têm uma noção de futuro que os animais não alcançam. A morte de uma
pessoa, portanto, tem mais significado que a de um animal, porque com ela morre um plano
para os dias que virão. “uma pessoa com uma deficiência mental grave e órfã não tem essa
noção de futuro”, diz Peter Singer. “um chimpanzé ou um porco tem um grau mais alto de
autoconsciência e uma maior capacidade de relacionar-se do que uma criança com uma
doença mental séria.” Os animais, portanto, merecem um direito à vida tão consistente
quanto o assegurado aos doentes mentais. É claro que ele não está sugerindo que ocupemos o
manicômio e cortemos os internos em bifes. Sua intenção não é degradar doentes mentais,
senis ou crianças, mas justamente o contrário: elevar o status dos animais.
Então, professor Peter Singer, como deveríamos tratar os animais? “No que diz respeito
aos animais selvagens, deveríamos abandonar o contato com eles. Quanto aos outros,
deveríamos parar de reproduzi-los, exceto por um pequeno número deles, que poderíamos
manter em reservas para que não fossem extintos”, disse ele em entrevista à SUPER.
É bom que se diga que Singer é um filósofo utilitarista, ou seja, para dizer se uma atitude é
certa ou errada, ele estima seus efeitos e decide baseado na comparação entre o prazer e o
sofrimento que ela causaria a todos os afetados. O detalhe é que ele põe no cálculo também
os sentimentos dos bichos (vertebrados somente, porque, até onde sabemos, são os únicos
que sentem dor). Mas há ressalvas. Se nosso interesse entrar em conflito com o dos animais,
temos prevalência, porque nossa capacidade de planejar o futuro eleva nossa existência.
Também está liberada a autodefesa contra ameaças animais: se você acabar em uma ilha
deserta com uma vaca, fique à vontade para devorá-la. E, se sua casa for infestada por ratos,
tudo bem eliminá-los.
No mundo de hoje, se calcularmos o sofrimento usando a fórmula de Singer, vamos
descobrir uma dívida moral imensa. A fazenda está longe de ser um lugar bucólico cheio de
bichos felizes. Ponha-se no lugar de um frango que vive amontoado sob luz artificial quase
ininterrupta, equilibrando-se no arame do fundo da gaiola e que tem seu bico cortado com
uma lâmina quente, para evitar que ele selecione a comida que lhe é dada (e para que, de
nervoso, não ataque e mate os outros frangos), até que, um dia, uma descarga elétrica o
ponha para dormir enquanto uma lâmina corta seu pescoço. Sua vida está mais próxima de
um pesadelo sem fim do que de um sonho idílico. Multiplique essa tortura por 14,8 bilhões
de aves que vivem nas condições acima e você verá o tamanho da nossa culpa.
Onde foi parar aquele respeito ancestral, que exigia desculpas por cada animal abatido?
Segundo o jornalista americano Michael Pollan, em seu artigo na revista do jornal The New
York Times, a consideração foi soterrada pelo dinheiro. “Sempre houve uma tensão entre a
pressão capitalista para maximizar os lucros e as regras religiosas da comunidade, que
serviam como um contrapeso para a cegueira moral do mercado”, diz ele. “A criação
industrial é um exemplo do que pode ocorrer na ausência de constrangimento moral.” Mateus
Paranhos da Costa, etólogo da unesp em Jaboticabal, especialista em bem-estar animal, diz
que o problema é medir nosso convívio com os bichos pela relação custo-benefício.
E aí, você se convenceu de que devemos abandonar o uso de animais? Antes de
responder, talvez seja melhor saber se isso é possível.
P odemos viver sem eles?
Não. Primeiro, por questões alimentares. É verdade que o consumo de carne, que ao longo
da evolução humana desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento de nosso
cérebro potente, já não é mais fundamental. Apesar de sermos onívoros por natureza
(digerimos carne e vegetais), conhecemos hoje fontes proteicas capazes de substituir o bife.
Mas submeter crianças a uma dieta vegetariana, como sugere Singer, seria no mínimo
leviano. Para obter proteína suficiente da dieta vegetariana, precisamos ingerir grandes
porções de vegetais proteicos, como soja e feijão. E muitos nutricionistas acham que
algumas crianças não conseguiriam processar a quantidade de soja necessária para um
crescimento saudável. Enquanto restar essa dúvida, é legítimo que os pais tenham a opção de
oferecer um filé aos seus filhos.
Além do que, uma humanidade vegetariana causaria um impacto ambiental razoável,
porque consumiria muito mais petróleo. Primeiro porque o vai-e-vem de alimentos pelo
planeta aumentaria. Vivemos em todos os cantos do globo há tanto tempo porque comemos
carne, já que são poucos os locais do planeta capazes de produzir uma dieta completa de
vegetais. Para driblar essa deficiência, seria preciso transportar muita comida ou investir
pesado em fertilizantes (se bem que o melhor adubo, o esterco de boi, estaria escasso). Além
disso, a principal alternativa ao couro são os tecidos sintéticos, feitos de derivados de
petróleo (sem contar os produtos industriais que levam algum composto animal).
Mantenhamos os bois e libertemos os demais, então? Ainda não. Se a controvérsia quanto
à carne persiste, a briga esquenta mesmo quando se fala de pesquisa científica com cobaias,
chamada de vivissecção. De um lado, os cientistas defendem que estudar doenças e
tratamentos em seres vivos é fundamental para os avanços médicos e farmacêuticos. A cura
do câncer, a vacina contra a Aids e a luta contra o Alzheimer e o mal de Parkinson, por
exemplo, dependem da pesquisa de corpos inteiros em funcionamento. Em posição oposta,
os ativistas da proteção animal afirmam que pesquisas em animais não servem para nada,
porque nossos corpos são muito diferentes. A falta de diálogo entre os grupos torna difícil
saber se vale a pena brigar pelo fim dos experimentos.
Mas nossa dependência dos bichos vai além. Temos uma necessidade psicológica de nos
relacionar com os animais que não pode ser satisfeita pelo contato humano. É o que diz
Hannelore Fuchs, médica veterinária e psicóloga de São Paulo, especialista na relação entre
humanos e animais. Hannelore leva cães e coelhos para visitar pacientes em hospitais e diz
que há muitos benefícios nesses encontros. “O contato com os bichos faz o corpo liberar
endorfinas (um analgésico natural), relaxa, melhora a resposta imunológica e
comprovadamente diminui o tempo de hospitalização. Para pacientes deprimidos ou
solitários, as visitas diminuem as queixas e o uso de tranquilizantes.” uma característica
fundamental da relação com o animal, diz ela, é a disponibilidade. um cão saudável atenderá
feliz e prontamente o chamado do dono a qualquer hora do dia ou da noite. “Ninguém dá esse
tipo de afeto”, diz ela. O biólogo americano Edward O. Wilson chama essa afinidade de
biofilia. Para ele, há algo no nosso DNA que nos faz querer bem tudo o que é vivo.
Para o etólogo e antropólogo Antonio Fernandes Nascimento Júnior, o animal preenche
uma lacuna existencial em nós. “O animal serve como um espelho, em que o ser humano
procura ver a si mesmo. Os índios americanos comiam o bisão não só pela carne, mas
também para adquirir sua força, seu espírito”, diz ele. E isso continua valendo. “O dono do
pitbull enxerga no cão características que ele admira, que valoriza para si. E o caçador, em
geral, tem uma reverência por sua caça.”
Enfim, viver sem animais seria um sonho pouco realista. Para o etólogo Cesar Ades, da
USP, especialista em comportamento animal, o homem nasceu entre os animais e sempre teve
relações com eles. “Não usar animal nenhum faz parte das utopias”, diz Ades.
E ntão, como tratá-los?
Se você acredita nas ideias de Peter Singer e acha que só devemos utilizar os animais no que
for indispensável, há uma expressão utilizada pelos ativistas que pode ajudar: “redução,
refinamento e substituição”. Isso significa reduzir o consumo de animais onde eles são
indispensáveis (carne só para as crianças, por exemplo), melhorar o tratamento aos bichos
que forem utilizados (ainda há frangos criados soltos) e substituí-los onde for possível
(algumas marcas de cosméticos não testam produtos em cobaias). Essa é a atitude mais
radical. A partir daí, até os limites aos maus tratos impostos pela lei, há vários caminhos,
que só cabe a você escolher.
Mas é impossível tratar melhor os animais se não soubermos como eles querem ser
tratados. É preciso conhecer suas vontades. E cada vez há mais informação sobre suas
necessidades.
Em primeiro lugar, é preciso entender que a domesticação não precisa ser uma
exploração. Do ponto de vista ecológico, a domesticação é uma simbiose, uma associação
entre espécies em que ambas se beneficiam, ou seja, elas se tornam mais aptas a se
multiplicar e sobreviver, mesmo que nas condições mais hostis. Por esse ponto de vista, os
animais de estimação podem ser considerados um caso de sucesso. É bom lembrar que os
bichos domésticos proliferaram, enquanto os selvagens foram dizimados. Nos Estados
unidos, por exemplo, há 10 mil lobos, contra 65 milhões de cães. Além disso, se a
domesticação fosse algo imposto aos bichos, como explicar os muitos casos de animais que
se entregam voluntariamente ao convívio humano? O pato crioulo, por exemplo, uma ave
selvagem brasileira, pousa às vezes em uma granja, atraído pelo alimento e pela
tranquilidade. Vai ficando, ficando... até que, de tão pesado, não consegue mais voar e fica
na fazenda. Acaba na panela.
Pode-se dizer que o animal de criação não tem liberdade para fazer o que quer. Mas,
afinal de contas, quem tem?
A teoria de Singer (e a motivação dos ativistas) soa tão diferente porque ele não acredita
nisso. Ele discorda de uma premissa básica da teoria mais difundida sobre a natureza. Em
outras palavras, ele não acha que as espécies tenham como interesse fundamental a
sobrevivência. “Eu não acho que a reprodução é um interesse básico para os animais”, disse
ele à SUPER.
E se criássemos animais com respeito por suas necessidades e os matássemos sem dor?
Nesse caso, nem Peter Singer iria se opor: “Eu não estaria suficientemente confiante nos
meus argumentos para condenar alguém que comprasse carne de um lugar desses”, disse o
filósofo em entrevista à revista do The New York Times. De fato, viver confortavelmente e no
final ser morto de um golpe, sem desconfiar do perigo, parece bem melhor do que viver sob
perigo constante em liberdade e, um dia, acabar perseguido por um grupo de lobos
recebendo mordidas nas canelas ou ser devorado vivo por um urso. Guardadas as
diferenças, é uma troca parecida com a do sujeito que abre mão do impulso genético de
transar com o maior número de garotas para viver no conforto do casamento.
Em outras palavras, não é preciso abandonar os animais para evitar causar sofrimento a
eles. Basta tratá-los da melhor maneira possível. Mas como saber o que eles querem, se eles
não falam? O movimento de proteção animal desenvolveu uma lista de mandamentos que, se
cumpridos, eliminam o sofrimento animal. Chama-se “As Cinco Liberdades Básicas” e diz
que devemos livrar os animais de: 1) fome e sede, 2) desconforto, 3) dor, machucados ou
doenças, 4) limites ao seu comportamento normal e 5) medo e estresse. Para o etólogo
Mateus Paranhos da Costa, da unesp, em Jaboticabal, a cartilha é uma fantasia de quem não
lida com animais. “A busca pela ausência de sofrimento é justa, mas não é realista. O
sofrimento faz parte da vida.” O fundamental, diz ele, é o respeito pelo bicho. E, para isso, é
preciso despertar o respeito nas pessoas que lidam com animais e informá-las sobre as
necessidades dos bichos.
Até os animais de estimação precisam de mais respeito. Segundo o veterinário canadense
Charles Danten, bichos de companhia sofrem, e sofrem muito. Tudo começa na infância do
animal. O filhote se liga em quem cuida dele, seja a mãe ou o dono. Na natureza, a mãe corta
essa ligação para que o filhote aprenda a cuidar de sua vida, mas, fora dela, o dono a
incentiva, impedindo o mascote de alcançar a maturidade emocional. Como um filho
mimado, o animal vive carente de atenção e adota comportamentos bizarros para
conquistála, como se masturbar, derrubar coisas ou morder as visitas.
Quando isso acontece, a maioria dos donos abandona, passa a tratar mal ou dá ainda mais
cuidados ao animal, o que só piora a situação. Alguns levam o bichinho a um psicólogo de
animais, mas, quando descobrem que eles também precisam mudar seus hábitos, acabam
aceitando a sugestão de dar remédios como Prozac ou Valium para o mascote ficar mais
tranquilo. A atitude mais saudável seria deixar o animal à vontade para se expressar como
queira, mesmo que isso signifique não dar a mínima para o dono. Mas, diz Danten, como há
pouco sentido em ter um animal que não pode ser moldado à nossa maneira, o melhor é não
ter animais, coisa que ele promete fazer assim que seu gato morrer.
Mas aos poucos o respeito está voltando. Em algumas granjas, as galinhas ganharam
puleiros, ninhos e brinquedos para passar o tempo. Na fazenda, os vaqueiros que são
alertados para ter mais cuidado com o animal facilmente percebem os abusos que cometem e
melhoram o trato. Nos laboratórios, a anestesia é cada vez mais usada nos testes com
cobaias. No zoológico, tratadores escondem a comida pela jaula, para o animal passar mais
tempo procurando por ela, como na natureza. Quem sabe, em algumas décadas, estaremos
novamente rezando para o bife que nos é servido.
liminar o país, nada menos que isso, era o objetivo do Exército alemão ao entrar na
união Soviética em 1941. Soldados procuravam líderes políticos e autoridades
texano Kenneth Hagin, nascido em 1917, era uma criança doente. Desde os nove anos,
ficou confinado na casa do avô. Aos 16, desenganado pelos médicos, infeliz e preso a
O uma cama, tinha poucas esperanças de ver sua vida melhorar. um ano depois, em
agosto de 1934, Hagin teve uma revelação. Ele compreendeu de repente o significado
de um versículo do Evangelho de São Marcos. A passagem do Novo Testamento
dizia: “Tudo quanto em oração pedires, credes que recebeste, e será assim
convosco”. Hagin então ergueu as mãos para o céu e agradeceu a Deus pela cura, mesmo
sem ver sinal de melhora. Então levantou-se da cama. Estava curado.
A mensagem, que Hagin popularizou por meio de mais de cem livros, é clara: Deus é
capaz de dar o que o fiel desejar. Basta ter fé e acreditar que as próprias palavras têm poder.
Sendo assim, para os verdadeiros devotos, nunca faltará dinheiro ou saúde. Essa doutrina
ficou conhecida como “teologia da prosperidade”. A crença foi incorporada anos depois por
várias igrejas. Ela é central no mais impressionante fenômeno religioso do Brasil
contemporâneo: a explosão evangélica.
No começo, essa explosão se deu em silêncio, praticamente ignorada pelas classes
médias. Os templos evangélicos surgiam nas cidadezinhas perdidas e nas periferias
miseráveis das metrópoles. Já não é mais assim. No primeiro dia de 2004, a Igreja
Pentecostal Deus é Amor inaugurou no coração de São Paulo o seu novo templo. A obra tem
tamanho de shopping center, arquitetura de gosto duvidoso e comporta 22 mil pessoas
sentadas. É cinco vezes maior que a católica Catedral da Sé, lá perto.
Há meio século, os evangélicos têm a religião que mais cresce no País. Nos últimos 20
anos, mais que triplicou o número de fiéis: de 7,8 milhões de pessoas em 1980 para 26,4
milhões em 2001, um pulo de 6,6% para 15,6% da população brasileira. Em algumas
cidades, foram criados vagões de trem exclusivos para crentes, em que as pessoas podem
viajar ouvindo pregações bíblicas. Em outras, não parece longe o dia em que eles
representarão mais de 50% dos habitantes. Com mais de 400 anos de atraso, finalmente
estamos sentindo os efeitos da reforma protestante que varreu a Europa no século 16.
Um terreninho do céu
Evangélicos, é importante esclarecer, é a mesma coisa que protestantes. As duas palavras
são sinônimas. Ou seja, evangélicas são praticamente todas as correntes nascidas do racha
entre o teólogo alemão Martinho Lutero e a Igreja Católica, em 1517. O alemão estava
especialmente chateado com o comportamento dos padres, que, segundo ele, tinham virado
corretores imobiliários do céu, comercializando indulgências – vagas no Paraíso para quem
pagasse.
Lutero abriu a primeira fenda no até então indevassável poder papal sobre as almas do
Ocidente. A ele se seguiram outros. Na Inglaterra, o rei Henrique VIII criou sua própria
dissidência do catolicismo – depois batizada de anglicanismo – só porque o papa não queria
que ele se divorciasse e casasse de novo. Na Suíça, ulrico Zwinglio e João Calvino
aprofundaram as reformas de Lutero. Zwinglio pregava o princípio que fundamentaria todo o
movimento: o cristão deve seguir apenas a Bíblia (os católicos aceitam influências de
teólogos, como Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino). Já Calvino foi o responsável
pela introdução do puritanismo, que combinava regras rígidas de conduta com uma fervorosa
dedicação ao trabalho. No começo do século 20, o sociólogo alemão Max Weber publicou o
texto clássico A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, no qual atribui a essa
invenção de Calvino o sucesso do capitalismo em países evangélicos.
Todos esses movimentos estimulavam o fim do monopólio da Igreja sobre a interpretação
da Bíblia. Cabia a todo e qualquer cristão ler as Escrituras e tirar delas o que quisesse. Os
protestantes recusavam a ideia de que um único líder – o papa – deveria guiar os rumos da
religião. Foi isso que começou a fragmentação do movimento em diversas correntes, com
pequenas diferenças doutrinárias. Surgem os batistas, os metodistas, os presbiterianos...
Mas o Brasil colonial passou quase imune à avalanche protestante. Houve apenas algumas
exceções, como os calvinistas franceses e holandeses que invadiram o País – o primeiro
culto evangélico por estas terras foi celebrado por franceses no rio de Janeiro, em 1557, só
57 anos depois da missa católica inaugural. Era proibido realizar cultos de qualquer religião
que não o catolicismo no território português.
A liberdade religiosa no Brasil só veio com a independência, na Constituição de 1824,
ainda que impondo restrições de que as reuniões acontecessem em locais que não tivessem
“aparência exterior de templo”. No mesmo ano, alemães fundaram a primeira comunidade
luterana do Brasil. Logo depois chegaram as correntes missionárias, como os metodistas,
dispostas a pregar nas ruas para salvar almas. Eles caíram nas graças da elite intelectual
republicana que, impressionada com a “ética protestante”, defendia a presença de
evangélicos como condição para a modernização do País.
Mas os protestantes que prosperaram no Brasil pouco tinham a ver com a tal ética de
Weber. No início do século 20, a fundação de duas igrejas seria decisiva para definir o
perfil evangélico nacional: a Congregação Cristã no Brasil, inaugurada em São Paulo pelo
italiano Luigi Francescon, em 1910, e a Assembleia de Deus, aberta um ano depois em
Belém pelos suecos Gunnar Vingren e Daniel Berg. Apesar da origem europeia, eles
chegaram via Estados unidos, onde se envolveram com uma nova corrente protestante, o
pentecostalismo, um grupo que crescia em popularidade por lá desde a virada do século.
Começou aí o que o sociólogo Paul Freston chama de “a primeira onda do
pentecostalismo brasileiro”. O movimento era desaprovado tanto por católicos quanto pelos
protestantes “históricos”, como são conhecidas as correntes diretamente ligadas a Lutero e
Calvino. Nem uns nem outros gostavam da principal característica da doutrina pentecostal: a
exacerbação dos poderes sobrenaturais do Espírito Santo (a palavra “pentecostalismo” vem
de uma passagem da Bíblia que diz que, num dia de Pentecostes – a Páscoa judaica –, o
Espírito Santo desceu aos apóstolos e começou a operar milagres). O mais notável desses
poderes é a capacidade que Deus tem de curar imediatamente qualquer problema de saúde –
daí as cenas de aleijados abandonando muletas e míopes pisando nos óculos. O
pentecostalismo cresceu na classe baixa, promovendo cultos de adoração fervorosa e
improvisada, bem dissonantes dos protestantes tradicionais, tão formais quanto contidos.
Para participar das novas congregações, os fiéis eram obrigados a se submeter a rígidas
normas comportamentais. Os pentecostais eram os “crentes” estereotípicos: mulheres de
cabelos compridos e saia, homens de terno e Bíblia na mão. As palavras essenciais para
entender suas rotinas de vida são ascetismo, ou a recusa de usufruir os prazeres da carne, e
sectarismo, o isolamento do restante da sociedade. Por trás delas, está a ideia de que o
cristão deve se manter concentrado em Deus. Só assim ele pode evitar que o Diabo ganhe
espaço na sua vida. Para os pentecostais, o mundo é simples: o que não é de Deus é o Diabo.
A Deus é Amor, aquela que acabou de abrir um megatemplo no centro de São Paulo, é uma
das mais rigorosas entre as pentecostais. Ela proíbe frequentar praias, praticar esportes ou
participar de festas. Às mulheres, é vetado cortar o cabelo e depilar. Crianças com mais de
sete anos não podem jogar bola, graças a um versículo bíblico que diz “desde que me tornei
homem, eliminei as coisas de crian-ça”. Tantas regras têm compensação: para os
pentecostais, o melhor da vida está reservado aos fiéis para depois da morte.
Até a década de 1950, esse modelo reinou sozinho no pentecostalismo nacional. Fez
sucesso, mas ficou restrito a grupos relativamente pequenos. A chegada da “segunda onda”,
no entanto, traria uma novidade. É o que se convencionou chamar de “neopentecostalismo”.
Em 1951, desembarcou aqui a Igreja do Evangelho Quadrangular, inaugurando no País o
pentecostalismo de costumes liberais. “Todas essas igrejas que fazem sucesso hoje são
nossas filhas, netas ou bisnetas”, diz o pastor Neslon Agnoletto, do conselho nacional da
Quadrangular. De fato, inovações como os hinos com ritmos populares, a forte utilização do
rádio e regras de comportamento menos duras, todos os ingredientes indispensáveis do
“evangelismo de massas”, foram práticas importadas pela Quadrangular, fundada nos
Estados unidos em 1923.
Deus é um office-boy
Para resumir, neopentecostalismo quer dizer que Monique Evans, Gretchen e Marcelinho
Carioca podem agora se considerar “crentes”. Para isso, algumas adaptações aconteceram:
saem os homens de terno e as mulheres de pelos nas pernas, entram pessoas que se vestem
com roupas comuns e não se animam a seguir normas rígidas de conduta. A primeira
inovação foi riscar do mapa o ascetismo, o sectarismo e a crença de que a melhor parte da
vida está reservada para o Paraíso. “A preocupação dos neopentecostais é com esta vida. O
que interessa é o aqui e o agora”, afirma o sociólogo ricardo Mariano, autor de
Neopentecostais – Sociologia do Novo Pentecostalismo no Brasil.
Outra diferença é a radicalização da divisão do universo entre Deus e o Diabo. Para os
neopentecostais, os homens não são responsáveis pelos atos de maldade que cometem: é o
Diabo que os leva a pecar. Numa sessão de descarrego da Igreja universal, o pastor explicou
que, se o fiel enfrenta um problema há mais de três meses, é provável que esteja carregando
um encosto. “Se a dificuldade completar um ano, daí não há dúvida: a culpa é do demônio”,
disse para a congregação. Ele não se referia só a entraves financeiros ou comportamentais. A
receita vale para tudo, inclusive para doenças incuráveis. Assim, expulsar o demônio do
corpo é a receita única para todos os males, de casamento infeliz até câncer no pulmão.
O ritual é feito aos gritos de “sai, capeta”, às vezes com lágrimas escorrendo pelo rosto e
transes que terminam no exorcismo. Os cultos tornaram-se mais ativos, incluindo aplausos
para Jesus e música gospel. Mas a inovação mais profunda do neopentecostalismo foi a
aplicação da teologia da prosperidade, aquela exposta no primeiro parágrafo desta
reportagem. Graças a ela, o neopentecostalismo ganhou o apelido de “fé de resultados”.
“A teologia da prosperidade faz o fiel encarar Deus como um office-boy”, diz o cientista
da religião e pastor Paulo romeiro, autor de Supercrentes–O Evangelho Segundo os Profetas
da Prosperidade. “O crente dá ordens e determina o que pretende. Não há qualquer
reconhecimento das fragilidades humanas e de suas necessidades em relação a um Deus
superior”, afirma romeiro. No Brasil, além da universal, a renascer em Cristo, a Sara Nossa
Terra e a Internacional da Graça de Deus adotam a teologia da prosperidade.
A força de enxurrada com que o neopentecostalismo cresceu desorganizou todo o
protestantismo. “Há uma verdadeira perda de identidade no movimento evangélico mundial.
O pentecostalismo flexibilizou suas exigências comportamentais, e até os protestantes
históricos passaram a aceitar a participação mais ativa do fiel no culto e algumas
manifestações sobrenaturais”, afirma o pastor batista Joaquim de Andrade, pesquisador da
Agência de Informações da religião. Mais e mais, boa parte do mundo protestante aceita a
teologia da prosperidade.
A onda de mudança foi bater até onde a reforma de Lutero não tinha chegado: nas praias
do catolicismo. A influência neopentecostal sobre a renovação carismática católica é tão
grande que seu maior expoente no Brasil, padre Marcelo rossi, é acusado de ter gravado
hinos religiosos tirados de templos evangélicos.
P romessas de um novo mundo
Mas por que cada vez mais pessoas abandonam suas religiões para tornarem-se evangélicas?
Nos anos 1960, a nova religião era vista como uma forma de migrantes de zonas rurais
enfrentarem a falta de valores e regras da sociedade moderna e estabelecerem relações de
solidariedade na metrópole. Demorou dez anos para essa hipótese ser desacreditada por
estudos que mostraram que as igrejas eram compostas igualmente pelos pobres nascidos e
viventes na cidade e no campo.
Houve espaço para teorias conspiratórias: o avanço evangélico seria um plano dos
Estados unidos (ou do Diabo) para dominar a América Latina. A hipótese foi defendida a
sério pela Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, que na década de 1980 enviou
memorando ao Vaticano, citado no livro de Mariano, afirmando que a CIA, aliada à direita
brasileira, acelerava a “expansão dessa religião alienante no continente para frear a
proliferação da Igreja Católica progressista”.
Mas essas explicações não convencem ninguém, e o avanço neopentecostal exigiu um
novo foco nos estudos. Em seu mais recente trabalho, o ainda não publicado Análise
Sociológica do Crescimento Pentecostal no Brasil, Mariano afirma que as motivações para
a conversão estariam nas soluções mágicas oferecidas. “uma grande parcela da população
não tem acesso ao serviço de saúde – e, quando tem, recebe atendimento precário e mal
entende os médicos. É muito mais fácil, e faz mais sentido, acreditar que os problemas são
causados pelo demônio e se tratar na igreja”, afirma o sociólogo.
Não é apenas a questão médica que está em jogo. A dualidade entre Deus e o Diabo é uma
das mais eficientes respostas para a eterna pergunta sobre como é possível existirem tantas
coisas ruins. um presidiário pode culpar a influência do demônio pelo passado violento –
uma explicação para o sucesso da religião nas prisões. Essa dualidade também pode estar na
raiz da popularidade evangélica entre ex-viciados em drogas – e de sua comprovada
eficácia na luta contra o vício. O apelo pode efetivamente ajudar ex-criminosos e ex-
viciados a deixarem seus “maus hábitos” para trás. Com isso, os neopentecostais respondem
satisfatoriamente às questões dos nossos tempos – coisa que outras religiões nem sempre
conseguem fazer.
Juntando tudo, o que se tem é uma religião que escancara uma ambição materialista e
imediata na relação com Deus. um apelo e tanto, que parece ter especial atração para os
mais pobres. Estaríamos, portanto, diante de uma mudança naquilo que as pessoas esperam
da experiência religiosa? “Não”, responde o estudioso de religiões Antonio Flávio Pierucci,
da USP. “A maior parte das religiões tem esse viés materialista. As pessoas sempre rezam
com o objetivo de pedir e receber algo. A diferença é que os evangélicos assumem essa
faceta sem se envergonhar.”
Seria injusto, no entanto, listar apenas explicações sociológicas para justificar a onda de
conversões. Poucas religiões têm tanta disposição para atrair fiéis como os evangélicos.
Templos são abertos nos mais distantes rincões, e pastores dedicam-se com fervor. As
igrejas estão à frente das demais no entendimento de que evangelizar é como convencer um
consumidor a comprar. “Os depoimentos de fiéis na tevê e no rádio são os apelos de
marketing para demonstrar a eficiência dos serviços”, diz Ari Pedro Oro, antropólogo da
universidade Federal do rio Grande do Sul e organizador do livro Igreja Universal do
Reino de Deus. As igrejas seduzem com um produto atraente e oferecem bom serviço. São
religiosamente adeptas da mais pura e simples mentalidade empresarial.
Crescei e multiplicai
Em novembro do ano passado, um evangélico foi ao Programa do Ratinho pedir a
devolução dos dízimos que havia dado à igreja. Argumentava que o pastor lhe prometera
prosperidade em troca do dinheiro. Sem melhorar de vida, o fiel, como se fosse um
consumidor lesado, foi ao ratinho pedir o dinheiro de volta.
Essa história ilustra de modo brilhante a relação que as neopentecostais criaram com seus
fiéis-clientes. Elas prestam um serviço. E eles pagam. É bom lembrar que dar dinheiro a
Deus, seja por meio da caridade ou de doações, é parte da doutrina de diversas religiões,
incluindo todas do braço judaico-cristão. Com a teologia da prosperidade, no entanto, o
dinheiro ganhou nova função. Agora é preciso dar para receber. Num de seus livros, Edir
Macedo, o líder da universal, explica que devemos formar uma “sociedade com Deus”. “O
que nos pertence (nossa vida, nossa força, nosso dinheiro) passa a pertencer a Deus; e o que
é d’Ele (as bênçãos, a paz, a felicidade, a alegria, tudo de bom) passa a nos pertencer”,
afirma o bispo.
É uma leitura polêmica do Evangelho. A ideia de que dar dinheiro é parte de uma relação
de troca com Deus desperta calafrios em muitos religiosos. “É uma contradição. A reforma
protestante começou justamente porque Lutero se levantou contra a venda das indulgências”,
diz o pastor Paulo Cezar Brito, líder da Igreja Evangélica Maranata, uma pentecostal que
rejeita a teologia da prosperidade.
“Templo é dinheiro”, diz a maldosa adaptação do ditado popular. “Deus é o caminho, Edir
Macedo é o pedágio”, diz outra. Na cabeça de muita gente, as igrejas evangélicas são ótimas
opções de carreira para quem pretende enriquecer facilmente. Não dá para negar que muitos
realmente ganharam dinheiro com a fé alheia – em especial os líderes das grandes igrejas.
Como em qualquer empresa moderna, pastores hábeis que trazem muito dinheiro para a
igreja ganham bem – ninguém confirma a informação, mas comenta-se que alguns salários se
parecem com os de astros de futebol, na casa das várias dezenas de milhares de reais. Mas
essas afirmações escondem também um preconceito. Em termos legais, não há diferença
entre um templo evangélico e qualquer outro local de cultos religiosos. A Constituição
garante a todos – evangélicos, católicos ou budistas – a mesma isenção de vários tributos,
entre eles o IPTu e o Imposto de renda.
Além disso, o crescimento da concorrência faz ser cada vez mais difícil sobreviver entre
tantas denominações evangélicas. Calculase que uma congregação precise ter no mínimo 50
integrantes para recolher dízimos e doações em quantidade suficiente para cobrir as
despesas mínimas, como aluguel e contas de luz e água. Nessas horas, ser a religião dos
pobres não é vantagem. Por isso, cada denominação procura seu nicho de atuação. A
Assembleia de Deus prefere abrir templos dentro de bairros isolados, enquanto a universal
opta pelas grandes vias de acesso – uma decisão que pouco tem a ver com a fé, segue mais a
lógica da competição de qualquer mercado capitalista.
O maior país católico do mundo pode estar se tornando uma nação de maioria evangélica?
Dificilmente, concorda a maioria dos especialistas. Mas eles discordam na hora de prever o
ritmo do crescimento. De um lado, estão os que acham que o boom já passou e que a Igreja
Católica, com a renovação carismática, equilibrou o jogo. Do outro, pesquisadores que
veem no frágil compromisso dos brasileiros com a religião um prato cheio para os
neopentecostais. Cerca de 80% dos nossos católicos se dizem não-praticantes. É um enorme
mercado para os evangélicos.
Não é à toa que a maioria dos convertidos vem do catolicismo. Mas, na hora de afirmar a
identidade e escolher um adversário, o pentecostalismo ataca o candomblé e a umbanda. E
vai na jugular, às vezes escorregando para a intolerância religiosa. Em quase todos os
templos é possível ouvir que essas religiões cultuam o Diabo. Também há casos de ataques a
terreiros estimulados por pastores. Pode-se dizer que a briga contra as religiões afro-
brasileiras, e não contra o catolicismo, o verdadeiro rival, seja uma estratégia de marketing.
Quando enfrentaram os católicos, os evangélicos levaram um contra-ataque duro, que
envolveu denúncias de charlatanismo e estelionato e ameaçou a sobrevivência das igrejas,
além de provavelmente afastar fiéis. A popularidade dos evangélicos chegou ao fundo do
poço quando um pastor da universal chutou na tevê uma estátua de Nossa Senhora Aparecida
(os evangélicos não cultuam imagens).
Mas, embora esses episódios possam dar a impressão de que o fanatismo religioso esteja
em alta no Brasil, muitos especialistas defendem a tese de que o crescimento evangélico seja
um indício do contrário: de que cada vez mais gente rejeita a religião. É o que sugerem
pesquisas mostrando concentrações de evangélicos nas mesmas regiões onde há altos índices
de pessoas “sem religião” – caso do Estado do rio e da zona leste paulistana. “As pessoas
estão experimentando uma nova crença. Se perceberem que não está dando certo, que Deus
não é tão fiel, podem desistir da busca”, diz o sociólogo Pierucci. “Abandonar a religião
oficial é o primeiro passo de saída do mundo religioso”, afirma.
Um indício de que a conversão ao mundo evangélico significa um arrefecimento do fervor
religioso é o fato de que as neopentecostais exigem poucas mudanças nos fiéis. O resultado é
que, quanto mais crescem, menos os evangélicos mudam a cara do País – bem ao contrário
da revolução que ocorreu na Europa com as ideias de Lutero e Calvino. Prova disso é a
programação da rede record, comprada pela Igreja universal com o dinheiro do dízimo, que
pouco difere das concorrentes.
Talvez o trunfo evangélico para conquistar almas seja sua capacidade de adaptação. Com
a rejeição à centralização da interpretação bíblica herdada da reforma protestante, qualquer
um pode abrir um templo e pregar como quiser. Assim, enquanto seus “irmãos” se
expandiam em áreas pobres, a Igreja Bola de Neve cresceu 1.100% em três anos orando
para os ricos. Seus dez templos, cuja marca registrada são as pranchas de surfe como púlpito
e os hinos religiosos em ritmo de reggae, funcionam em áreas de classe média-alta de São
Paulo e cidades de praia, como Florianópolis, Itacaré e Guarujá. O público é de jovens da
classe A e B, com curso superior. Para quem está acostumado a fiéis pobres e pouco
instruídos, a Bola de Neve é uma surpresa desconcertante. Para os evangélicos, somente
mais uma prova de que a obra de Deus chegará a todos os corações.
o sentido
marginal
APESAR DE INDISPENSÁVEL, O
OLFATO FOI COLOCADO EM SEGUNDO
PLANO PELO HOMEM CIVILIZADO –
ATÉ MESMO PELA CIÊNCIA, QUE SÓ
RECENTEMENTE COMEÇOU
A FAREJAR A IMPORTÂNCIA DOS CHEIROS.
P Michael Jackson. Para ser considerado bonito, um nariz deve ser virtualmente
invisível, não pode chamar a atenção. O desdém em relação ao nariz tem paralelo no
pouco apreço que a humanidade tem dispensado ao olfato desde que transformou as
patas dianteiras em mãos.
Para o humanoide primitivo, tanto quanto para muitos animais, um faro apurado fazia a
diferença – fosse para detectar a proximidade de um predador, fosse para avaliar se um
alimento era venenoso. No curso da civilização, entretanto, o homem focou quase todas as
suas atenções na comunicação por estímulos visuais e auditivos. A dependência do nariz foi
reduzida e o conhecimento do olfato caminhou a passos de tartaruga: para se ter uma ideia,
só em 1991 os biofísicos americanos richard Axel e Linda Buck, da universidade Colúmbia,
identificaram os receptores responsáveis pela captação de odores no nariz humano.
Ainda assim, seria injusto dizer que a lentidão no avanço desses conhecimentos se deveu
somente ao desinteresse pelo tema. Os mecanismos do olfato e de seus efeitos no cérebro
envolvem sistemas intrincadíssimos que, para serem decifrados, requerem perícia em
diversas áreas: química, física, biologia molecular, fisiologia, neurociência... Gente versada
em tantos assuntos não se encontra em qualquer esquina, o que dificulta o recrutamento de
especialistas. Por ser pouco conhecido, o universo dos cheiros é um enorme terreno a ser
explorado pela ciência – amparada pela indústria, que já farejou na manipulação de aromas
uma inesgotável fonte de negócios. E nada como o cheiro de dinheiro para estimular a
curiosidade científica, que nas duas últimas décadas mergulhou de nariz nos meandros de um
dos mais fascinantes mistérios do corpo humano: o olfato.
O nariz em ação
Quando um avião passa a centenas de metros da sua cabeça, você pode vê-lo se o céu
estiver claro. Também pode ouvir o barulho de suas asas cortando os ares, mas não há
chance de você sentir o cheiro do combustível que queima nas turbinas. Isso porque a
audição e a visão são sentidos físicos – imagens e sons são vibrações que se propagam no
ar, na água ou em outro meio – enquanto o nariz é uma espécie de laboratório de análises
químicas. Assim, o olfato depende totalmente da matéria: para que você sinta o cheiro de
algo, é preciso que algum pedacinho desse objeto entre em contato com seu nariz. Essa regra
vale tanto para as rosas quanto para aquele banheiro imundo que você precisou usar na
semana passada, sinto dizer.
Mas por que algumas coisas têm cheiro e outras não? O principal fator que torna uma
substância perceptível ao olfato é sua volatilidade. Ou seja: as moléculas precisam ser leves
o suficiente para permanecer em suspensão no ar e chegar ao nosso nariz. Dentro do nariz, a
área responsável por identificar os odores chama-se epitélio olfativo. Trata-se de um tecido
do tamanho de um selo postal, escondido no teto da cavidade nasal, coberto de muco
pegajoso. O muco retém as partículas odoríferas para que elas possam ser analisadas pelos
neurônios receptores – células que decodificam a natureza química das substâncias. O nariz
humano tem cerca de 5 milhões dessas células receptoras – pode parecer muito, mas a
comparação com um cão de caça da raça bloodhound, dono de 220 milhões de neurônios
especializados, chega a ser humilhante.
O funcionamento desses receptores ainda gera debates acalorados no meio acadêmico. A
teoria mais aceita afirma que o formato de uma molécula define seu cheiro. As partículas
odorantes se encaixam em receptores moldados especialmente para reconhecê-las – isso é
uma simplificação, pois estamos falando de estruturas infinitamente mais complexas que
chaves e fechaduras.
Há quem diga que isso tudo é bobagem: no livro The Emperor of Scent (“O Imperador do
Perfume”, inédito no Brasil), o jornalista americano Chandler Burr narra a tentativa
quixotesca do biofísico francês Luca Turin de pôr abaixo essa teoria. Turin, autor de guias
de perfumes e professor honorário da university College London, na Inglaterra, tem lá seus
argumentos. um deles é o fato de que os trabalhos de richard Axel e Linda Buck catalogaram
em torno de mil tipos diferentes de receptores, enquanto o número de cheiros reconhecidos
pelo nariz humano é superior a 10 mil – desse modo, tais células precisariam ser versáteis.
No modelo defendido por Luca Turin, o nariz é uma máquina semelhante a um
espectroscópio, capaz de medir a vibração das ligações entre os átomos de uma molécula e
assim identificar a substância. Mas Turin não logrou explicar o funcionamento do tal
“espectroscópio nasal”. Que conclusão se pode tirar disso tudo, então? Simples: ainda há
muito a ser descoberto dentro do nariz além de pelotas de muco ressecado.
P or que cheiramos?
Os odores do mundo têm muito a nos dizer. O problema é que nós perdemos a capacidade de
entender essa linguagem, pelo menos no nível da consciência. Inconscientemente, cheiros
podem despertar emoções ou ressuscitar lembranças perdidas – e, segundo alguns
pesquisadores, substâncias que exalamos e inalamos determinam a afinidade entre parceiros
sexuais. Já ouviu aquela conversa de que “rolou uma química”? É exatamente isso.
A falta de intimidade com a linguagem dos cheiros pode ter origem nos tempos em que os
ancestrais do homem assumiram a posição ereta. “Sobre dois pés, temos o nariz longe da
maioria dos odores”, diz o médico grego Joseph Gogos, da universidade Colúmbia, no livro
The Nose (“O Nariz”, inédito no Brasil), de Gabrielle Glaser. Segundo Gogos, a maioria dos
cheiros interessantes flutua logo acima do chão. A postura do bípede facilita, em
contrapartida, a visualização de objetos distantes. Aí pode residir a razão da perda de
terreno do olfato para a visão no rol das prioridades humanas.
Poucas pessoas conseguem verbalizar as informações olfativas. Descrever o conteúdo de
um frasco de perfume é muito mais difícil que identificar cores ou sons – esse é um trabalho
que só profissionais especializados e exaustivamente treinados conseguem executar. Fábio
Navarro, especialista em perfumes da fábrica de cosméticos Natura, é um desses
supernarizes. “Sou capaz de identificar o aroma de cerca de 400 materiais”, afirma. Fábio e
seus pares se entendem: dê a mesma fragrância a dois bons profissionais de perfumaria e
você obterá duas descrições muito semelhantes. “Descrevemos objetivamente sensações
subjetivas”, diz Valquíria Seixas da Silva, farmacêutica que faz avaliação aromática de
produtos na unilever.
Por que isso é tão difícil para simples mortais como você e eu? Porque o olfato e a
linguagem competem no cérebro, segundo o psicólogo Tyler Lorig, da universidade
Washington and Lee, nos Estados unidos. “uma coisa interfere na outra. Quando você pede
para o cérebro cheirar e descrever o cheiro, é como pedir para a seção de violinos de uma
orquestra tocar duas melodias ao mesmo tempo. Até é possível, mas o desempenho é
prejudicado.”
A questão cultural também pesa muito. Na sociedade ocidental, cheirar as coisas por aí
está longe de ser um paradigma da boa educação. “Crianças pequenas não sentam em frente
de brinquedos que borrifam cheiros diferentes – elas aprendem a distinguir triângulos de
quadrados, mugidos de latidos”, afirma Gabrielle Glaser. Na opinião de Tyler Lorig, nós
captamos desde cedo a mensagem de que o olfato é uma coisa primitiva – primitiva demais
para uma sociedade polida.
É exatamente nas partes primitivas de nosso cérebro – que regulam as emoções – que os
cheiros atuam mais intensamente. Existe até um campo de estudo que relaciona aromas e
psicologia: a aromacologia, termo patenteado em 1989 pela Fundação para a Pesquisa do
Olfato, de Los Angeles – em contraposição à palavra aromaterapia, prática de medicina
alternativa que não goza de muita reputação na comunidade científica. “A aromacologia
investiga a atuação dos cheiros no sistema límbico e no hipotálamo, que controlam a maioria
das funções vegetativas e endócrinas do corpo”, afirma a engenheira química Sonia Corazza,
autora do livro Aromacologia, uma Ciência de Muitos Cheiros. Odores podem despertar
sentimentos de ansiedade, medo ou excitação. Nesse sentido, nosso nariz é uma pequena
máquina do tempo – além nos fazer recordar fatos passados, a memória olfativa parece nos
transportar de volta a situações marcantes. Essa é uma das razões de um mesmo cheiro
causar reações díspares em pessoas diferentes. “Eu, por exemplo, adoro cheiro de estrume
de vaca. Pode parecer estranho, mas para mim ele traz lembranças boas da infância, de
férias na fazenda”, diz a bioquímica Mônica rosseto, perfumista sênior da Givaudan,
indústria de origem suíça que produz aromas para uma gama de produtos que vai do sabão
em pó ao suco de groselha.
Não bastassem as coisas que cheiram de fato, existem substâncias aspiráveis chamadas
feromônios – elas não têm odor, mas estimulam uma área do nariz chamada órgão
vomeronasal. Em alguns animais, os feromônios comprovadamente guiam o comportamento
sexual. Especula-se que eles tenham ação semelhante em humanos. Assim, mesmo que você
seja a cara do Brad Pitt, corre o risco de perder aquela gata para um sujeito mais feio que o
diabo virado no avesso – se ele exalar o feromônio certo e você não. Em 1998, a psicóloga
Martha McClintock, da universidade de Chicago, conduziu um estudo curioso que
demonstrou que mulheres reagem a feromônios de outras mulheres. Ela recolheu o suor de
voluntárias que ainda não haviam ovulado naquele mês e o aplicou nos lábios superiores de
outras mulheres. O suor acelerou a produção do hormônio indutor da ovulação, o que alterou
em até duas semanas o ciclo menstrual das cobaias humanas.
Estudos assim são recebidos com desconfiança por alguns cientistas. Catherine Dulac,
bióloga molecular da universidade Harvard, admite que os feromônios possam influenciar
sutilmente o cérebro, mas crê que eles são superestimados. Segundo ela, eles são apenas um
grão de areia em meio a todos os estímulos e experiências que determinam a vida sexual
humana.
Negócio perfumado
A perspectiva de criar fragrâncias que possam induzir comportamentos nas pessoas é apenas
mais uma frente aberta em um negócio que movimenta dezenas de bilhões de dólares por
ano: a indústria de aromas. Ela produz cheiros para uma gama quase infinita de itens – de
detergentes a gomas de mascar, de cigarros a salgadinhos. (Vale dizer que 75% daquilo que
conhecemos como sabor é percebido pelo nariz: a língua só identifica gostos básicos, como
salgado e doce). Perfumes, é claro, continuam sendo um filão importante nesse ramo.
A ideia de “roubar” perfumes da natureza surgiu do incômodo do homem com os cheiros
de seu próprio corpo e dos subprodutos das atividades humanas – lixo, fezes, roupas
impregnadas de suor. “Enquanto o fedor do mundo pré-esgoto era um lembrete constante das
necessidades mundanas do homem, as fragrâncias representavam um poderoso elo com o
esotérico. Cheiros podiam seduzir amantes, curar os doentes e – o mais importante – ligar o
humano ao divino”, afirma a escritora americana Gabrielle Glaser.
Os antigos egípcios acreditavam que todos os odores agradáveis eram derivados das
lágrimas e do suor de suas divindades. Já no século 12 a.C., eles produziam perfumes com
plantas que nasciam às margens do Nilo – lírios, endro, manjerona. Os nobres do Egito
tomavam banho todo dia, mas não conheciam o sabonete e passavam o dia sob o sol
saariano. Numa vã tentativa de vencer o bodum, inventaram o primeiro arremedo de
desodorante: bolas de resina de pinheiro presas às axilas. Hebreus, gregos e romanos
também prezavam muito os aromas de incensos, cremes e óleos perfumados. Mas, na Alta
Idade Média, a Igreja decretou que todas essas coisas – vinculadas a rituais religiosos
pagãos – eram obra do Diabo. A posição foi sendo relaxada aos poucos, pois os clérigos
perceberam que incensários e defumadores eram indispensáveis para dissipar a pestilência
de capelas e catedrais. Mas o império da fedentina só começou a cair de verdade no século
15, época em que Veneza, na Itália, era um importante centro de comércio e convívio com os
muçulmanos, que se mantiveram limpinhos por todo esse tempo.
A florentina Catarina de Médici é considerada a responsável pelo florescimento da
perfumaria na França. Em 1533, ela casou-se com o rei Henrique II e levou da Itália uma
corte que incluía seu alquimista e perfumista particular. Catarina teria escolhido Grasse, uma
vila no litoral mediterrâneo, como o local ideal para que se plantassem suas flores e ervas
perfumadas – a cidade é até hoje uma importante referência na indústria de fragrâncias. Dois
séculos mais tarde, toda a nobreza da França tinha o perfume como um item de
sobrevivência. Ele era indispensável para disfarçar os odores pútridos que emanavam de
corpos que, não raro, haviam tomado dois ou três banhos em toda a vida.
Dos pioneiros de Grasse até meados do século passado, os métodos de fabricação de
perfumes permaneceram mais ou menos os mesmos. usavam-se artifícios químicos e físicos
para se extraírem odores já existentes na natureza: em flores, frutos, madeiras, folhas, cascas
de frutas. A lista de matérias-primas incluía coisas no mínimo surpreendentes, como vômito
de baleia ou extrato de castor. “Notas animálicas, associadas a secreções, dão calor e
sensualidade à fragrância”, diz Mônica rosseto, perfumista da Givaudan. Muitos materiais
eram difíceis de obter e, consequentemente, caros demais para serem usados na produção em
massa de aromas. Por isso, a grande guinada da perfumaria no século 20 foi a reprodução
sintética de aromas. Sabe-se, por exemplo, que o principal componente aromático da
baunilha é uma substância chamada vanilina. Para se obter cheiro de baunilha, ninguém mais
precisa das favas colhidas em Madagascar: produz-se vanilina em laboratório. Qualquer
indústria química é capaz de sintetizar essas substâncias, mas a complexidade da matéria-
prima natural é difícil de ser reproduzida com perfeição.
Esse é um dos desafios atuais da perfumaria atual. “Flores liberam substâncias diferentes
ao longo do dia”, afirma o engenheiro químico Marco Carmini, diretor de tecnologia e
inovação da Givaudan. Para que essa distorção não ocorra e seja feito, digamos, um perfume
de “rosas às 10h30”, Marco e sua equipe trabalham em uma técnica na qual as emanações
são recolhidas por cápsulas que capturam a fragrância em horas diferentes, sem que a flor
precise ser colhida. Esses aromas encapsulados são mais tarde analisados e sintetizados,
sendo possível se aproximar do cheiro verdadeiro de uma rosa.
A clonagem de cheiros pode ser assombrosa do ponto de vista tecnológico, mas é uma
prática até conservadora perto do que está por vir. Muitas fichas têm sido apostadas nos
efeitos que os odores podem ter sobre o comportamento humano – seja para acalmar pessoas
nervosas, seja para induzi-las a comprar alguma coisa. O anatomista David Berliner, ex-
professor da universidade de utah, deixou a vida acadêmica para fundar uma empresa que
produz fragrâncias com feromônios. No Japão, há empresas que borrifam aromas no sistema
de ar-condicionado dos escritórios – brisa de limão pela manhã, lufadas de manjericão à
tarde – para que seus funcionários trabalhem mais satisfeitos. O Exército americano
desenvolve as chamadas “bombas fedorentas”, com substâncias fedidas o suficiente para
deixar qualquer inimigo sem ação. Se realmente for possível controlar as emoções com
cheiros fabricados, o futuro poderá nos trazer o alívio de muitos males – e também o medo
permanente de meter o nariz onde não somos chamados.
Fragrâncias bizarras
OS INGREDIENTES MAIS ESTRANHOS, RAROS E
POLITICAMENTE INCORRETOS DA PERFUMARIA.
Oudh
O QUE É:bolor.
EXTRAÇÃO: “caçadores” de oudh vasculham a mata atrás de tocos de madeira apodrecida por
fungos para extrair a resina de seu interior.
ONDE É ENCONTRADO: Índia, Oriente Médio.
PREÇO MÉDIO: 15 dólares/mililitro.
Castóreo
O QUE É:secreção do castor.
EXTRAÇÃO: o animal é morto e sua glândula anal é extirpada. O castóreo, que na natureza serve
para marcar território, é extraído quimicamente.
ONDE É ENCONTRADO: Europa, América do Norte.
PREÇO MÉDIO: 3 dólares/mililitro.
Almíscar
O QUE É:secreção do veado-almiscareiro macho.
EXTRAÇÃO: o animal é morto e uma glândula sob a pele de seu abdômen é extirpada para a
extração do óleo.
ONDE É ENCONTRADO: Índia, Sibéria, Extremo Oriente.
Preço médio: 4 dólares/mililitro.
Âmbar gris
O QUE É:vômito de baleia.
EXTRAÇÃO: a baleia cachalote vomita bolas de cera sólida, que são pescadas enquanto flutuam ou
recolhidas na praia.
ONDE É ENCONTRADO: China, Japão, África, Américas.
Preço médio: 10 dólares/grama.
Civeta
O QUE É:secreção da civeta, mamífero da família dos viverrídeos.
EXTRAÇÃO: o animal, mantido em cativeiro, tem sua glândula anal espremida para que se recolha
a secreção aromática.
ONDE É ENCONTRADO: África, Ásia.
PREÇO MÉDIO: o uso da civeta natural foi banido da perfumaria devido à dificuldade de obtenção,
ao alto preço e a questões éticas e ambientais; estas essências são geralmente substituídas
por similares sintéticos.
identidade
secreta
de Einstein
COMO UM JOVEM DE 26 ANOS
NOCAUTEOU A CIÊNCIA. TUDO EM
POUCOS MESES, ENQUANTO CARIMBAVA
PAPÉIS NUMA REPARTIÇÃO PÚBLICA.
lbert não era nenhum Einstein, pelo menos à primeira vista. Os professores não iam
com a cara dele. Nunca foi chegado a uma sala de aula. E só conseguiu se formar na
A faculdade porque um amigo emprestava cadernos para ele estudar antes das provas. O
diploma até veio. Mas não adiantou grande coisa: o rapaz ficou dois anos sem
arranjar um emprego decente. “Não sabia de onde viria minha próxima refeição”,
lamentava. Albert tinha 21 anos. Formado em física e matemática pela prestigiosa
Escola Politécnica de Zurique, na Suíça, o alemão não conseguia uma vaga de professor de
jeito nenhum – a fama de aluno relapso não ajudava. Suas tentativas de fazer doutorado
também só davam na água. Desencantado da vida, passou a viver dos trocados que levantava
dando aulas particulares. “Abandonei completamente a ambição de algum dia trabalhar numa
universidade.”
Uma pena. Só que ele não era mais moleque: precisava arranjar algo estável logo. Do
jeito que as coisas iam, qualquer trabalho com salário fixo já estava ótimo. E foi aí que o
mesmo amigo que emprestava cadernos para ele, Marcel Grossmann, o indicou para um em
prego numa repartição pública suíça, o Escritório de Patentes, em Berna. O trabalho teria
pouco a ver com ciência. Mas e daí? O fato é que “esse negócio chato de passar fome”,
como ele mesmo disse na época, iria acabar. Albert ficou todo pimpão: “Estou realmente
tocado por você não ter esquecido seu velho e azarado amigo! Vou fazer tudo o que puder
para não desonrar sua indicação”, escreveu emocionado para Grossmann.
Não desonrou. Assumiu a vaga em 1902, aos 22 anos e, se a moda já existisse, teria
ganhado vários títulos de “funcionário do mês”. Seu trabalho era aporrinhar inventores e
empresas que requeriam patentes para seus produtos – está pensando que é fácil conseguir
uma patente na Suíça? O pessoal do escritório analisava calhamaços de especificações
técnicas e comparava projetos novos com outros que já estavam patenteados, para ver se
ninguém estava sacaneando ninguém... uma burocracia só.
E Albert passou sete anos na repartição. Oito horas por dia, seis dias por semana. E foi de
lá, de sua mesinha na “firma”, que ele fez boa parte de uma obra só comparável à de Isaac
Newton (1642-1727). O Einstein que existia sob a “identidade secreta” do azarado Albert
começava a dar as caras.
Essa transformação, a do pacato funcionário público no maior super-herói da ciência em
todos os tempos, aconteceu rápido: entre março e maio de 1905. Foi o tempo que ele levou
para cravar três descobertas: com as duas primeiras, Albert redesenharia a física; com a
terceira, o universo e mais um pouco. Tudo escondido do chefe, como qualquer Peter Parker
ou Clark Kent que se preze.
Março: a revolução da luz
Vamos voltar um pouco no tempo. Para 1901, quando Albert estava sem um gato para puxar
pelo rabo. Nessa época, ele já tinha sido indicado por Marcel Grossmann para o trabalho na
repartição. Mas os meses passavam e nada de a vaga abrir.
Enquanto o rapaz esperava, apareceu uma proposta de trabalho temporário. um ex-colega
da Politécnica que dava aulas na cidadezinha de Winterhur, perto de Zurique, precisava tirar
uma licença de dois meses. E ofereceu sua vaga de professor de colegial para Albert. “Você
nem imagina como eu fiquei contente!”, escreveu em uma carta para a namorada, Mileva,
também ex-colega de faculdade. Ele gostou dessa sua primeira experiência como professor.
Mas a temporada por lá foi dura. Além de dar 30 horas de aula por semana, Albert ensinava
geometria descritiva, matéria que ele achava um porre, e que evitava a todo custo nos
tempos de Politécnica. Para piorar, nosso herói ainda recebeu uma carta de Zurique com uma
surpresa: Mileva anunciava uma nada planejada gravidez. E agora, Albert?
“Fica tranquila, amor. Não vou te deixar, e tudo vai dar certo”, escreveu para reconfortar
a garota. Normal. Mas o futuro papai só colocou isso no final da carta. O resto deixava claro
que sua cabeça estava voltada para outra coisa. Olha só o primeiro parágrafo da mensagem:
“Acabei de ler um artigo incrível sobre a geração de raios catódicos por raios ultravioleta.
Essa maravilha me encheu de alegria, e tenho que dividir isso com você”. A situação pouco
confortável em que o casal tinha se metido estava em segundo plano. Pobre Mileva.
Pior para a moça, melhor para a Física. Foi a partir desse artigo que ele começou a
matutar sobre a natureza da luz. E em pouco tempo isso o ajudaria a virar um dos fundadores
de uma nova ciência.
Na época, já se sabia que, quando raios luminosos batem em chapas de certos tipos de
metal, elas soltam elétrons. É que a luz faz a chapa perder energia – em outras palavras,
esquentar. Quando isso acontece, alguns elétrons pulam para fora, como se fossem pipocas
ultramicroscópicas dentro de uma panela quente. Nada demais.
Mas o artigo que Albert viu, escrito pelo físico alemão Philipp Lenard, tinha uma
novidade intrigante: como por mágica, a cor da luz afetava a velocidade com que os elétrons
pipocavam da chapa. E ninguém conseguia imaginar por quê.
Justamente por isso, a coisa afetou nosso amigo mais do que a gravidez de Mileva: o
homem gostava de problemas aparentemente insolúveis. E partiu com tudo para resolver
esse. Ele tinha lido o artigo de Lenard na revista científica alemã Annalen der Physik
(“Anais da Física”). Como não tinha conseguido uma vaga no meio acadêmico quando
terminou a faculdade, ele usava a revista para se manter atualizado com a Física de ponta. A
Annalen, aliás, era sua maior fonte de estudos desde os tempos de Politécnica. E foi por
causa disso que ele teve dificuldades lá. Einstein preferia gastar o seu tempo refletindo
sobre artigos científicos do que se concentrar em decorebas de sala de aula. “Acho melhor
sofrer qualquer tipo de punição do que ser obrigado a decorar alguma coisa”, disse mais
tarde.
Foi na Annalen, enfim, que ele encontrou a solução para o “mistério das cores”, mais
exatamente em outro artigo de 1901. Desta vez, um escrito pelo físico e gênio alemão Max
Planck.
Havia uma teoria bombástica ali: a de que a energia também pode ser composta de
“átomos”. Não por átomos iguais aos que formam a gente, mas por uma quantidade imensa
de “pacotes” de energia. Minúsculos e indivisíveis, eles funcionariam como se fossem
estranhas partículas.
Só tinha um problema nessa história toda: a ideia dele era basicamente uma abstração
matemática. Até Planck duvidava que a energia pudesse mesmo ser feita de grãos, assim
como as coisas palpáveis.
Mas Albert não duvidava e resolveu provar, ao menos teoricamente. Num artigo enviado
para a Annalen em março de 1905, ele usava o experimento de Lenard para mostrar que,
sim, os átomos de energia, batizados de “quanta”, não existiam só na cabeça de Planck. Para
Albert, eles eram justamente os protagonistas do efeito “mágico” das cores no humor dos
elétrons.
Era a primeira daquelas teorias que mudariam a Física. Mas ela só foi comprovada por
experimentos em laboratório bem mais tarde, em 1916. Demorou para a ideia lhe render
alguma coisa. Mas quando rendeu, foi com juros e correção monetária: a teoria valeu um
Nobel para ele em 1922.
Mas calma: quem levou o caneco na Suécia foi o Einstein superherói, que àquela altura,
na década de 1920, já era considerado o maior gênio de todos os tempos. Nosso homem
aqui, você sabe, é o pacato funcionário público Albert. E, em 1905, o que ele queria mesmo
era um aumento de salário.
Abril: a revelação dos átomos
“Expert de terceira classe”. Esse era o cargo de Albert no Escritório de Patentes. As
“classes” maiores geralmente eram ocupadas por engenheiros mecânicos, mais
familiarizados com desenhos técnicos e afins do que um físico, como Einstein.
O terreno ali era dos engenheiros. Ele só conseguiu sua vaga porque a indústria elétrica
começou a se desenvolver na primeira década do século 20, com o crescimento dos sistemas
de telefonia e de comunicação por ondas de rádio.
Friedrich Haller, o chefe do escritório, percebeu um aumento nos pedidos de patente para
invenções desse tipo. Como elas tinham mais a ver com a Física que com a engenharia
mecânica, achou melhor contar com alguém que manjasse do assunto no time de funcionários.
Pelo menos desta vez, o “azarado” Albert estava no lugar certo, na hora certa. E, depois de
indicado, ganhou a vaga sem dificuldade.
Para Haller, deu mais do que certo. O homem era um chefão linha-dura, que soltava
orientações do tipo “Quando vocês receberem um pedido de patente, pensem que tudo o que
o inventor diz está errado”. E Albert seguia essa filosofia à risca. Certa vez, recusou uma
solicitação de patente da empresa alemã AEG, uma gigante do setor elétrico, dizendo que o
pedido estava “incorreto, impreciso e esquematizado de forma pouco clara”. Curto e grosso,
do jeito que Haller gostava.
De patada em patada, foi ganhando moral na “firma”. E, quando não tinha nem um ano de
casa, tentou uma promoção: estava aberta uma vaga para expert de segunda classe, com
salário de 4.800 francos anuais. Albert, que ganhava 3.500, estava confiante, mas a resposta
de Haller foi desanimadora: “Espere ficar mais familiarizado com a engenharia mecânica, já
que suas qualificações são as de um físico”. Se o problema eram “qualificações”, o caminho
seria arranjar alguma acima de qualquer suspeita, como um título de doutor. O problema é
que as duas teses de doutorado que ele tentara emplacar já tinham sido recusadas pela
universidade de Zurique. Na primeira, em 1901, Einstein estava crente que tinha descoberto
uma ligação entre as forças que unem as moléculas e a gravidade. Seria uma nova lei da
natureza! Mas não era.
Ele até conseguiu publicar seu primeiro artigo na Annalen com essa teoria errada. Mas os
professores, que eram os que interessavam, não engoliram. E a tese naufragou. No ano
seguinte, ele tentou de novo, também com uma teoria sobre o comportamento das moléculas.
E nada. Einstein até diria depois que aqueles foram “os dois piores trabalhos da sua vida”.
Mas na época ele ficou foi magoado: disse que a recusa às suas duas primeiras teses foi
“uma grande comédia” dos acadêmicos, e perdeu a esperança de um dia virar professor.
Comédia ou não, o fato é que um doutorado agora poderia lhe ajudar no Escritório de
Patentes. Então, em abril de 1905, ele mandou um trabalho mais pé-no-chão para a
universidade. E dessa vez correto.
Albert tinha inventado algo que a gente pode chamar de “super-microscópio”. Não, não
era uma máquina ou algo assim, só uma teoria que mostrava a natureza mais profunda das
moléculas com base no jeito como elas se comportam quando estão dissolvidas na água. Por
exemplo: se você vai colocando cada vez mais açúcar no café, ele fica mais e mais grosso,
certo? O que Albert fez foi calcular esse “engrossamento” de um jeito bem preciso. Tão
exato que permitia deduzir o tamanho de cada uma das moléculas de açúcar.
Desta vez, a universidade aceitou. E nosso engenhoso amigo virou o “Doutor Albert”.
Agora as coisas ficavam mais fáceis. Haller mandou um pedido ao Conselho Federal Suíço,
que controlava o escritório, pedindo uma promoção para ele. O chefe ressaltava que Albert
agora “tinha se familiarizado com a tecnologia e, além do mais, era um dos experts mais
respeitados daqui”. Para fechar o pedido, fez uma referência ao título de doutor do
funcionário. E deu certo: meses depois Albert virava expert de segunda classe, com salário
de 4.500 francos anuais, mais ou menos o que um professor universitário ganhava.
Albert agora entrava para o mundo da classe média “remediada”. Mas essa história
rendeu mais: uma ampliação do seu trabalho sobre moléculas virou outro artigo para a
Annalen. E lá dentro estava a segunda teoria revolucionária do ano.
A ideia agora era usar o comportamento das moléculas para provar que a matéria
realmente é formada por átomos. Sim: apesar de a existência deles ser aceita desde o
começo do século 19, ainda não havia consenso entre os cientistas. O matemático austríaco
Ernst Mach, por exemplo, era um dos mais renomados daquele tempo e, se alguém falasse
em átomos com ele, a resposta estava na ponta da língua: “Não acredito nisso! Você já viu
algum?”
Albert viu. Indiretamente, mas viu. Em 1828, o botânico inglês robert Brown tinha
observado um fenômeno estranho: percebeu que, quando ele colocava grãos de pólen na
água, eles não boiavam de um jeito normal, mas ficavam agitados, tremendo. É como se você
fosse relaxar deitado numa boia de piscina e ela começasse a chacoalhar inexplicavelmente,
tipo um poltergeist. Sinistro. Mas só até Albert resolver o mistério. Ele assumiu que os grãos
de pólen eram tão pequenos que as moléculas da água causavam o tremelique. Outros
físicos, na verdade, já tinham chegado a essa dedução - e sem que ele soubesse. Mas Albert
foi o único a dar detalhes minuciosos sobre o fenômeno, tipo equações que previam a
velocidade das moléculas e, surpreendentemente, a quantidade de átomos envolvidos no
processo.
Albert mostrava, de uma vez por todas, que átomos e moléculas não eram uma abstração
teórica. Essas “entidades” interagiam, sim, com a matéria visível. Então não havia dúvida de
que estavam lá. A prova final veio três anos depois, quando o físico francês Jean Perrin
confirmou a teoria de Albert nos laboratórios da universidade Sorbonne, em Paris. Essa
comprovação relativamente rápida começou a lhe dar fama de verdade no meio acadêmico.
Tanto que, na primeira vez em que ele foi indicado para o Nobel, em 1910, foi justamente
por essa teoria. Se o trabalho de Albert tivesse parado por aí, 1905 já seria visto como um
ano histórico para a ciência. Mas ele ainda tinha uma “missão”: destruir a Física.
Maio: o milagre da relatividade
Depois de dez anos com o problema martelando na cabeça, chegou o dia. Numa noite
qualquer de maio de 1905, Albert foi visitar seu melhor amigo, Michele Besso, e saiu da
casa dele pronto para dar à luz um monstro. “Nós tínhamos discutido todos os aspectos do
problema naquele dia. Aí, de repente, me veio a chave!”. Albert concluía que o mundo não
existe. Pelo menos não da forma que a gente imagina. Essa era a única solução para um
enigma que tinha começado em 1865. Foi quando o físico escocês James Maxwell descobriu
que os raios de luz se comportam de um jeito sobrenatural: “fogem” quando são perseguidos.
Para visualizar, imagine que você vá apostar corrida contra um raio de luz. Foi o que Albert
pensou aos 16 anos, no colegial.
Vamos lá: você larga na frente, voando baixo a mais de 900 milhões de km/h – para
disputar com a luz você tem de correr bem, né? Bom, o raio atrasa um pouco, mas parte a
1,08 bilhão de km/h (à velocidade da luz, em outras palavras). Aí não tem mistério: o
público desse racha vai ver o raio ultrapassar você a uma velocidade 108 milhões de
quilômetros por hora mais rápida que a sua. Nada demais. Agora vem o problema: Maxwell
descobriu que você, ao olhar para o lado bem na hora da ultrapassagem, não vai ver o raio
passar a 108 milhões de km/h. Mas a 1,08 bilhão, como se você estivesse parado! Nonsense
total: a velocidade da luz em relação à gente nunca muda. Nunca. Foi para esse absurdo que
Einstein achou uma resposta. Ele sabia que Ernst Mach e outros matemáticos vinham
defendendo uma ideia surreal: a de que o tempo não é uma coisa absoluta, um “rio” que flui
do mesmo jeito para todo mundo. Não: ele passaria num ritmo aqui e em outro acolá. Mas
ninguém fazia ideia de como isso poderia acontecer. Ninguém até aquela noite de maio.
Porque Einstein chegou e concluiu: a velocidade é quem destrói o tempo absoluto. Olha só:
se um carro percorre um trecho de 100 quilômetros em uma hora, ele andou a 100
quilômetros por hora. óbvio: a gente sabe que velocidade, tempo e espaço estão ligados
intimamente. Mas e naquele caso da luz? Se não existe consenso entre você e o público
sobre a velocidade com que o raio te ultrapassou, o que aconteceu com o resto? Simples: as
noções de tempo e de espaço não podiam ser as mesmas para todo mundo! É como se as
duas “se ajustassem” para que a velocidade da luz sempre parecesse igual a 1,08 bilhão de
quilômetros por hora para qualquer um – seja para alguém parado, seja para alguém
correndo que nem um raio. Albert via que tempo e espaço não eram coisas idênticas para
todo mundo, como teimam em parecer: estavam nos olhos de cada um.
Essa ideia trazia consequências absurdas no pacote, como a velocidade fazer as coisas
viajarem para o futuro. Por exemplo: do “ponto de vista” de cada uma das zilhões de
partículas de luz que esta página reflete, você já está morto – a velocidade delas é tão alta
que essas partículas estão agora mesmo no mais remoto dos futuros, um lugar onde não existe
mais nada. Todo o tempo do universo já passou para elas. Mas do seu ponto de vista, aí
paradão, não é nada disso: esses mesmos grãos de luz estão aqui, agora, refletindo nesta
página. Pois é: o mundo está nos olhos de quem vê. E só. O resto é ilusão. Nosso “azarado
amigo” era o primeiro a ver o universo como ele realmente é. Agora sim: naquela noite de
maio, Albert virava um Einstein.
amos fazer um acordo: eu conto um segredo e você, leitor, promete não revelá-lo a
ninguém. Antes de topar o trato, você precisa saber que as outras quase 3 milhões de
v pessoas que lerem esta revista conhecerão o mesmo segredo. Mas elas também se
comprometerão a ficar de bico fechado. Agora, cá entre nós: quais as chances de
nenhum dos envolvidos quebrar o trato e contar o que ficou sabendo para a patroa –
que por sua vez vai contar para a irmã, que vai dividir a novidade com as amigas do
salão de beleza e daí para o mundo? Você apostaria na possibilidade de mantermos o tal
segredo em sigilo?
Na cabeça de muita gente, a maçonaria foi capaz dessa proeza. Uma tarefa árdua. Os
integrantes da mais conhecida entre as organizações secretas guardariam um grande segredo
bombástico, revelado somente para quem concorda em ser iniciado numa sessão cercada de
mistério. Em nome da honestidade jornalística, é preciso dizer logo no início da reportagem
que, se os maçons escondem uma informação dessas capazes de mudar o rumo do mundo,
este repórter – e os estudiosos mais influentes do tema – foram incapazes de descobrir do
que se trata. Por outro lado, são vários os rituais, símbolos e conchavos políticos que
deveriam ficar restritos às quatro paredes (obrigatoriamente sem janelas) de um templo
maçônico, mas que estão descritos nas próximas páginas. Segredos e histórias que foram
reveladas a gente graúda como Benjamin Franklin, Simón Bolívar, pelo menos 17
presidentes americanos e D. Pedro I – que entre os maçons brasileiros atendia pelo exótico
apelido de Guatimozim. Nas próximas páginas, você se juntará a eles.
A história
Para quem gosta tanto de segredos, nada melhor do que começar a própria história com um
relato misterioso e que não pode ser comprovado. A origem da palavra maçom está no
inglês, mason, que quer dizer pedreiro. Por isso, é forte a crença de que os primeiros
integrantes da organização davam duro em canteiros de obras do passado. A lenda mais
famosa conta que a origem da maçonaria está na construção do grande templo de Salomão,
em Jerusalém, narrada no Velho Testamento. Durante a obra, Hiram Abiff, o engenheirochefe,
foi assassinado por três de seus pupilos. O motivo do crime é nebuloso, mas envolveria
segredos de engenharia guardados por Hiram e uma disputa por promoções de cargo. O fato
é que Hiram foi para o túmulo, mas não revelou o que sabia. Além de mártir, virou exemplo
de bom comportamento maçônico. Para muitos maçons, é aí que começa a sua história,
apesar de existir quem defenda que Moisés, os construtores da Torre de Babel e até Deus
são maçons – afinal, o Todo-Poderoso não “construiu” o mundo em seis dias?
Outra tese, também sem comprovação, é defendida por historiadores maçônicos como
Christopher Knight e robert Lomas, e aponta a maçonaria como herdeira direta dos poucos
cavaleiros templários que não foram trucidados por ordem do papa e do rei da França entre
1307 e 1314. Pesquisadores independentes, porém, acreditam que a origem da maçonaria
moderna estaria nas corporações de ofício, espécie de sindicatos da Idade Média.
Especificamente na corporação dos pedreiros, que reunia alguns dos trabalhadores mais
qualificados da Europa – gente que construía catedrais gigantescas, como a belíssima abadia
de Westminster, na Inglaterra, que recebe fiéis até hoje. Como esses truques profissionais
significavam bons salários, era natural que os masons cultivassem o hábito de mantê-los em
segredo. Ficou conhecido como “maçonaria operativa” esse período em que os integrantes
da ordem colocavam a mão na massa.
Entre os séculos 16 e 17, as técnicas de construção começaram a perder valor, e as
corporações mudaram o tom das reuniões. Especialmente na Grã-Bretanha, elas ganharam
traços de alquimia e rituais simbólicos. Também se abriram para quem não trabalhasse com
construção, mas topasse guardar segredo sobre o que acontecia nos encontros. Começou a
fase da “maçonaria especulativa”, voltada para o conhecimento filosófico – que dura até
hoje.
O crescimento atraiu nobres. Era chique participar daqueles encontros com ar de sarau
secreto. Os antigos trabalhadores, por sua vez, adoravam estar ao lado da nobreza. Em
cidades da Inglaterra, surgiram lojas (como são chamados os grupos de reunião) e, em 1717,
quatro delas se reuniram para fundar a Grande Loja de Londres, o “Vaticano da maçonaria”,
até hoje a mais importante instituição mundial da ordem. Cinco anos mais tarde, foi escrita a
Constituição de Anderson, texto redigido pelo maçom James Anderson, que colocava no
papel todas as normas e rituais transmitidos oralmente. As lojas escolheram também seu
primeiro grão-mestre, um sujeito chamado Anthony Sayer, que estava longe do glamour que o
cargo teria no futuro, quando seria ocupado até por herdeiros do trono inglês. Quando
morreu, Sayer era um simples vendedor de livros em Covent Garden, região de Londres que
até hoje é sede de uma feirinha dessas com jeitão alternativo.
Ideias
Mas o que esses homens faziam – e ainda fazem – em suas reuniões? Basicamente, discutem
o caminho que o planeta deve tomar. E o rumo proposto é o da Luz, como eles se referem ao
pensamento racional. A ideia é que, se cada indivíduo refletir sobre suas atitudes e buscar
sempre o caminho do bem e da perfeição, a sociedade vai caminhar naturalmente para o
progresso. É uma filosofia, uma maneira de encarar o mundo, que foi um bocado
revolucionária ao surgir no século 18, época em que reis controlavam o corpo, e a Igreja, as
mentes das pessoas. Para debater ideias, maçons criaram uma série de regras e tradições – o
historiador inglês Eric Hobsbawm diz que o período do surgimento da maçonaria
especulativa foi especialmente rico no que ele chama de “invenção de tradições”, muito por
causa das rápidas transformações que a sociedade vivia, com mudanças nos costumes
sociais e na divisão do poder. Foi nessa mesma época que surgiriam outras organizações do
tipo, como a rosacruz e a Iluminati.
A maçonaria, que acabaria sendo a mais forte e poderosa de todas, se desenvolveu como
uma fraternidade que funciona como Estado, com hierarquias e legislação. E cada maçom
tem liberdade de pensamento. No fundo, a maçonaria não é uma, são várias. E, ao contrário
do que muitos pensam, a ordem não formou um grupo uniforme. Cada país teve autonomia
para definir seus rumos e caminhos, o que fez a ordem ter inclinações diferentes ao redor do
globo: na Inglaterra e no Brasil, era ligada à aristocracia política; na França, anticlerical e
pragmática; na Itália, revolucionária.
Diferenças entre as maçonarias existem. Mas também há muita coisa em comum – em
especial, as regras e os rituais. Ser admitido na maçonaria, por exemplo, requer paciência
em qualquer lugar do mundo. O candidato precisa ser convidado por um maçom, passar por
entrevistas e ter a vida investigada por integrantes da ordem. São aceitos apenas homens que
acreditam em Deus, têm pelo menos 21 anos e nenhuma deficiência física.
As sessões acontecem em templos cheios de simbologia. “Entrar num templo maçônico é
mergulhar num espaço codificado”, diz o sociólogo José rodorval, da universidade Federal
de Sergipe e autor de uma tese de doutorado sobre a maçonaria. O templo não tem janelas e
a entrada é voltada para o ocidente, onde a pintura é mais escura. No outro extremo, o
oriente, é mais claro – para a maçonaria, é dali que vem o conhecimento. É nessa área
também que fica o altar de onde a autoridade mais alta comanda a sessão. Nas paredes, há
12 colunas, uma corda com 81 nós e outros símbolos, como as pedras bruta e polida, que
representam os momentos pré e pós-iniciação.
Durante as cerimônias, os homens vestem aventais para venerar o Grande Arquiteto do
universo, como eles se referem a Deus. Mas um Deus tratado dentro dos valores de
tolerância religiosa do deísmo, tradição que recusa a ideia de que uma instituição tem o
poder para fazer a ligação com o divino. E por isso um maçom pode ser judeu, católico,
muçulmano. Nas sessões, Deus tem um nome específico. “Esse nome é um dos segredos mais
bem guardados da maçonaria”, diz o historiador Jasper ridley, que escreveu The
Freemasons (“Os Maçons”, sem tradução em português). Mas ridley entrega o ouro: o
criador é chamado de Jahbulon, uma corruptela que reúne os nomes sagrados de Jeová, Baal
e Osíris.
Essas reuniões religiosas misteriosas, adivinhem só, colocaram a maçonaria em rota de
colisão com o Vaticano. Tanto que duas bulas papais condenando a ordem chegaram a ser
emitidas por Clemente 12 e Bento 14. “Como outros governos, o Vaticano também se
molestava com a atmosfera de segredo com a qual se cercava a maçonaria”, diz o historiador
espanhol Jose Benimeli no livro Maçonaria e Igreja Católica. A tensão hoje é menor, mas
ainda existe. Em 1983, quando comandava a Congregação para a Doutrina da Fé, o hoje
papa Bento 16 publicou a Declaração sobre as Associações Maçônicas. O texto não deixa
dúvidas: “Os fiéis que pertencem às associações maçônicas estão em pecado grave”,
escreveu.
Revoluções e conspirações
O Vaticano é apenas um dos desafetos da maçonaria. Ao longo da história, a ordem
colecionou inimigos com a mesma força que manteve seus segredos – as duas coisas, aliás,
sempre estiveram diretamente ligadas. Pense na seguinte situação: sua vizinha está
promovendo reuniões semanais na casa dela, mas não permite que você participe. Mais do
que isso, ela se recusa a revelar o que está sendo discutido lá dentro. Se você tiver um
mínimo “instinto de paranoia” – e a maioria de nós tem – , vai achar que a dona está
tramando contra você. A mesma lógica funciona para os maçons. Muitas das acusações
contra a fraternidade começaram com perguntas do tipo “se é tudo boa gente, então por que
raios eles não revelam o que estão fazendo?”
Assim, manter segredo mostrou-se uma ótima maneira de atrair desconfianças. Mas a
verdade é que, para além do mistério, existe o fato de que as lojas maçônicas serviram, sim,
de espaço para a agitação política. Seus ideais espelhados no Iluminismo inspiraram – e
muitos de seus integrantes se engajaram em – revoluções que chacoalharam o mundo,
derrubaram governos e cortaram cabeças coroadas. “Ser maçom nos séculos 18 e 19 era um
pouco como ser de esquerda no começo do século 20. Em geral, eram pessoas liberais,
receptivas a novas ideologias e preocupadas em reorganizar a socie-dade”, diz Andrew
Prescott, diretor do Centro de Estudos da Maçonaria da universidade de Sheffield, na
Inglaterra. A consequência óbvia dessa atuação foi que a ordem frequentou os primeiros
lugares da lista de maiores inimigos das monarquias absolutistas. O efeito colateral
indesejado foi que quanto mais a maçonaria era acusada de conspiradora pelos líderes
aristocratas, mais ela se fortalecia. É uma espécie de autoprofecia que se cumpre. “Se as
lojas maçônicas eram apontadas pelos inimigos como o lugar em que revoluções eram
planejadas, então era lá que os jovens revolucionários queriam estar”, afirma Jasper ridley.
A revolução Francesa, por exemplo, fez da visão de mundo maçônica (liberdade para
adorar qualquer deus, igualdade entre nobres e plebeus, e fraternidade entre os membros do
mesmo grupo) o mote do novo país que pretendia construir. E transformou em hino nacional
uma música originalmente composta e cantada na loja maçônica de Marselha – rebatizado de
La Marseillaise, “A Marselhesa”. Segundo ridley, porém, são exageradas as afirmações de
que a maçonaria liderou a revolução. Marat, ideólogo de uma das alas mais radicais da
revolução, e La Fayette, o militar aristocrata que aderiu ao movimento popular, eram
maçons. Mas Danton e robespierre, os dois mais importantes líderes da França após a
revolução, não.
Mais ativa foi a influência na independência americana. Pelo menos nove das 55
assinaturas da Declaração de Independência vinham da maçonaria, assim como um terço dos
39 homens que aprovaram a primeira Constituição do país. Benjamin Franklin, um dos
principais articuladores da independência, era maçom até o último fio dos poucos (mas
longos) cabelos que tinha. E George Washington, líder dos rebelados, teria aparecido de
avental maçônico na cerimônia de lançamento da pedra fundamental da cidade que leva o
seu nome. Hoje, há quem afirme que, durante sua construção, a capital americana foi
recheada de símbolos maçônicos e, no mercado editorial, especula-se que a arquitetura da
cidade será o ponto de partida para o próximo livro de Dan “O Código da Vinci” Brown.
Talvez o autor também dê nova explicação para as imagens que decoram a cédula de 1 dólar,
como o olho que tudo vê e a pirâmide luminosa, que parecem inspiradas na maçonaria – uma
ligação que nunca foi admitida pelos desenhistas da nota.
Ventos maçônicos também foram sentidos na América do Sul. Na loja Lautaro, que tinha
braços espalhados pelo continente (o nome é homenagem ao índio que liderou uma revolta
contra os espanhóis no século 16), costumavam se reunir Simón Bolívar, José de San Martín
e Bernardo O’Higgins, todos líderes da independência no continente. No Brasil, eram
integrantes, entre outros, José Bonifácio de Andrada e Silva, o barão do rio Branco e o
príncipe regente – e depois imperador – Pedro I. Apelidado de Guatimozim, nome do último
chefe asteca, D. Pedro teve ascensão meteórica na fraternidade. Foi iniciado em 2 de agosto
de 1822 e promovido a mestre três dias depois. Menos de dois meses mais tarde, já era
grão-mestre da ordem no Brasil, cargo máximo que poderia atingir. Na mesma velocidade,
passaram-se apenas 17 dias até que, já imperador, ele proibisse as atividades maçônicas no
Brasil. “A maçonaria é uma fraternidade e, durante as sessões, todos se tratam por irmãos e
são iguais. Quando percebeu que nesse círculo ele poderia ter seu poder questionado, e não
seria apenas ‘o imperador’, D. Pedro deixou a ordem e proibiu seus trabalhos”, diz o
historiador Marco Morel, da uerj.
Nada que tenha afastado os “irmãos” das atividades políticas. Pior para os sucessores de
Guatimozim: legalizada em 1831, grande parte da maçonaria se aliou ao movimento
abolicionista, anticlerical e mais tarde republicano para forçar a queda da monarquia no
Brasil. Apesar de existirem muitos maçons monarquistas e escravocratas, a luta contra o
poder da Igreja colocou a organização na linha de frente da defesa de um Estado laico, como
o estabelecido em 1891 pela primeira Constituição republicana. Para os adversários, foi a
comprovação do caráter conspirador da ordem. Os maçons diziam agir dentro de sua
filosofia: lutavam por um país mais racional, e com ordem, que só assim chegaria ao
progresso.
Os segredos
“E o segredo?”, você deve estar perguntando. Qual é o grande segredo da maçonaria, aquele
que aguçou séculos de curiosidade? “O segredo consiste de rituais e códigos. São apenas
algumas palavras”, diz Andrew Prescott, da universidade de Sheffield. O negócio é que os
maçons cultivam com cuidado o silêncio. Quem já viu um texto maçônico sabe disso. As
frases têm abreviações aparentemente indecifráveis. Mas a coisa até que é simples. Algumas
palavras são reduzidas a sílabas e acrescidas dos três pontos em forma de delta – o mesmo
símbolo que aparece ao lado da assinatura de um maçom. Loj é loja; Ir é irmão, como os
maçons se referem uns aos outros; Prof é profano, ou seja, quem não é da maçonaria. Há
palavras reduzidas às iniciais e duplicadas em caso de plural. VVig quer dizer vigilantes;
AApr, aprendizes. GADU é o Grande Arquiteto do universo. Também é comum ver inscrições
que devem ser lidas da direita para a esquerda, numa referência ao alfabeto hebraico.
MOCAM, por exemplo, quer dizer “maçom”.
Existem ainda toques e sinais para quem é da maçonaria. E esses são os mais secretos. No
aperto de mãos, por exemplo, maçons se reconheceriam ao encostar o indicador no punho de
quem está sendo cumprimentado. Outro sinal para identificação fora dos templos seria
passar a mão pelo cabelo, virando-a durante o movimento. E, como durante as cerimônias os
maçons devem estar sempre eretos, uma maneira de se comunicar em lugares públicos é
endireitar a coluna e colocar os pés em forma de esquadro. O abraço maçônico, presente em
vários rituais, consiste em colocar um braço por cima e outro por baixo, em “X”, bater três
vezes nas costas e trocar de posição outras três vezes.
Outra corrente de pesquisadores afirma que o segredo maçônico é uma coisa íntima, que
nasce no fundo do coração de cada maçom. Afinal, se para os que estão do lado de fora a
maçonaria é uma organização com forte inclinação para a política, para os que estão do lado
de dentro, tão ou mais importante é o conhecimento intelectual. “O segredo é uma espécie de
viagem espiritual que o iniciado faz e que dificilmente poderia exprimir-se com palavras. É
algo que o maçom guarda para si. Quanto mais velho, mais volumoso é o seu segredo,
composto dos resquícios de suas experiências de vida”, diz Jesus Hortal, reitor da PUC-RJ,
em seu livro Maçonaria e Igreja.
Tantas hipóteses para explicar qual seria o mistério maçônico fez surgir até o grupo dos
céticos. Gente como o filósofo John Locke, que sugeriu que o grande segredo guardado pela
maçonaria é que não existe segredo nenhum. O que, cá entre nós, seria uma revelação de
proporções nada desprezíveis. “Mesmo que a inexistência de algum segredo seja o grande
segredo maçônico, não é uma pequena proeza manter isso em segredo”, afirmou Locke.
A maçonaria manda no mundo?
Andrew Prescott e Jasper ridley integram o time de historiadores que defendem a tese de que
a influência da maçonaria nos rumos da história foi superestimada ao longo dos tempos. Do
outro lado, a lista dos que apontaram o dedo para a maçonaria é grande. Inclui praticamente
todos os papas que passaram pelo Vaticano nos últimos 300 anos; o general Franco, ditador
da Espanha, escreveu um livro sob o pseudônimo de J. Boor em que acusava os maçons de
serem responsáveis pela decadência da sociedade espanhola; e Adolf Hitler, que promoveu
exposições de “arte antimaçônica” e afirmou que a ordem secreta sucumbira aos interesses
judaicos – a fonte da acusação pode estar nos Protocolos dos Sábios de Sião, livro sagrado
do antissemitismo no século 20, que usou documentos falsos para “comprovar” a existência
de uma conspiração judaica e afirmar que a maçonaria era um dos instrumentos à disposição
dos judeus.
Desde a virada do século 20, no entanto, é proibido em sessões maçônicas falar de
política e religião (futebol vale). Como a maçonaria não tem um corpo único – cada país é
autônomo e existem diversas dissidências – a decisão não vale para todas as pessoas que se
dizem maçons. Mas, na prática, a mudança deixou os encontros maçônicos bem menos
agitados do que nos tempos em que reunia revolucionários como Simón Bolívar.
Coincidência ou não, desde a proibição, as histórias (e os boatos) envolvendo a maçonaria
rarearam – a última vez que alguém se lembrou de citar a ordem como possível culpada em
algum grande mistério foi na morte de João Paulo 1º, em 1978, que supostamente teria
descoberto ramificações da fraternidade dentro do Vaticano, e por isso teria sido
assassinado após 33 dias de pontificado. Em outros tempos, certamente alguém afirmaria que
eventos como a Guerra do Iraque, os atentados em Londres ou a convulsão do ronaldinho às
vésperas da final da Copa da França haviam sido tramados pela maçonaria. Seria essa
exclusão da ordem na lista de grandes conspiradores mundiais um sinal de que a poderosa
organização secreta está perdendo a força? Muitos estudiosos acreditam que sim.
“Atualmente, a maçonaria mais parece uma tentativa por parte de homens bem-
intencionados, na maioria brancos e velhos, de entender o sentido da vida”, afirma o
historiador americano H. Paul Jeffers, autor de Freemasons (“Ma-çons”, sem versão
brasileira).
O que não quer dizer que seus integrantes tenham se afastado do poder. Muitos maçons
brasileiros adoram listar pessoas importantes que integram a ordem. São empresários,
policiais de alta patente, políticos, juízes... Todos unidos pelo compromisso de ajuda mútua
– irmão que é irmão nunca deixa outro na mão. Atualmente, por exemplo, circula entre os
maçons paulistas a história de um julgamento recente, parte de um escândalo nacional, que
caminhava para a condenação do réu e mudou de rumo após telefonemas entre altos membros
do tribunal. Advogados, juízes e o acusado eram iniciados da ordem.
Casos assim são frequentemente ouvidos, ainda que na maioria das vezes em tom de
boato. E preocupam muita gente. Por mais que os integrantes da maçonaria sejam gente da
mais fina estirpe e dotados das melhores intenções, será que têm condições de abandonar os
valores e pactos da fraternidade na hora de exercer cargos na sociedade pública? Entre os
que acham que não, estão os líderes da campanha britânica, encampada por setores do
Partido Trabalhista, para que todos os maçons sejam obrigados a se revelar como tal – e
eventualmente proibidos de trabalhar na polícia e na Justiça. Assim, evitariam ter a chance
de auxiliar amigos em situação delicada. “Os críticos fazem acusações como se integrar a
maçonaria fosse muito diferente de ser sócio de um clube de golfe”, diz Andrew Prescott, da
universidade de Sheffield, para quem a campanha é um exagero. Pode até ser. Mas será que
há mesmo um clube de golfe metido em tantas histórias, revoluções e rituais misteriosos? Se
existir, vive em segredo.
psicopata
CINCO MILHÕES DE BRASILEIROS
SÃO INCAPAZES DE SENTIR
EMOÇÕES. ELES PODEM ATÉ MATAR
SEM CULPA E ESTÃO INCÓGNITOS
AO SEU LADO. AGORA, A CIÊNCIA
COMEÇA A DESVENDÁ-LOS.
inha alguma coisa errada com o Guilherme. Desde quando era pequeno, quatro anos
de idade, a mãe, Norma*, achava que ele não era uma criança normal. O guri não tinha
T apego a nada, era frio, não obedecia a ninguém. O problema ficou claro aos nove
anos. Guilherme, nome fictício de um rapaz do Guarujá, litoral de São Paulo, que hoje
tem 28 anos, roubava os colegas da escola, os vizinhos e dinheiro em casa. Também
passou a expressar uma enorme capacidade de fazer os outros acreditarem no que
inventava. Aos 18, o garoto conseguiu enganar uma construtora e comprar um apartamento
fiado. “Quando um primo da mesma idade morreu de repente, ele só disse ‘que pena’ e
continuou o que estava fazendo”, conta a mãe. Tinha alguma coisa errada com o Guilherme.
Em busca de uma solução, Norma passou 15 anos rodando com o filho entre psicólogos,
psiquiatras, pediatras e até benzedeiros. Para todos, ele não passava de um garoto normal,
com vontades e birrascomuns. “Diziam que era mimo demais, que não soubemos impor
limites.” uma pista para o problema do filho só apareceu em 2004. A mãe leu uma entrevista
sobre psicopatia e resolveu procurar psiquiatras especializados no assunto. Então descobriu
que o filho sofre da mesma doença de alguns assassinos em série e também de certos
políticos, líderes religiosos e executivos. “Apenas confirmei o que já sabia sobre ele”, diz
Norma. “Dói saber que meu filho é um psicopata, mas pelo menos agora eu entendo que
problema ele tem.”
Guilherme não é um assassino como o “Maníaco do Parque” ou o “Chico Picadinho”. Mas
todos eles sofrem do mesmo problema: uma total ausência de compaixão, nenhuma culpa
pelo que fazem ou medo de serem pegos, além de inteligência acima da média e habilidade
para manipular quem está em volta. A gente costuma chamar pessoas assim de monstros,
gênios malignos ou coisa que o valha. Mas, para a Organização Mundial da Saúde (OMS),
eles têm uma doença, ou melhor, deficiência. O nome mais conhecido é psicopatia, mas
também se usam os termos sociopatia e transtorno de personalidade antissocial.
Com um nome ou outro, não se trata de raridade. Entre os psiquiatras, há consenso quanto
a estimativas surpreendentes sobre a psicopatia. “De 1% a 3% da população têm esse
transtorno. Entre os presos, esse índice chega a 20%”, afirma a psiquiatra forense Hilda
Morana, do Instituto de Medicina Social e de Criminologia do Estado de São Paulo (Imesc).
Isso significa que uma pessoa em cada 30 poderia ser diagnosticada como psicopata. E que
haveria até 5 milhões de pessoas assim só no Brasil. Dessas, poucas seriam violentas.
A maioria não comete crimes, mas deixa desapontadas as pessoas com quem convive.
“Eles andam pela sociedade como predadores sociais, rachando famílias, se aproveitando
de pessoas vulneráveis e deixando carteiras vazias por onde passam”, disse à SUPER o
psicólogo canadense robert Hare, professor da universidade da Colúmbia Britânica e um
dos maiores especialistas no assunto.
Os psicopatas que não são assassinos estão em escritórios por aí, muitas vezes ganhando
uma promoção atrás da outra enquanto puxam o tapete de colegas. Também dá para encontrá-
los de baciada entre políticos que desviam dinheiro de merenda para suas contas bancárias,
entre médicos que deixam pacientes morrer por descaso, entre “amigos” que pegam dinheiro
emprestado e nunca devolvem... Lendo esta reportagem, não se surpreenda se você achar que
conhece algum. Certamente você já conheceu.
Amigo da onça
O psicólogo robert Hare tinha acabado de sair da faculdade, na década de 1960, quando
arranjou um emprego no presídio de Vancouver. Função: atender os presos com problemas e
montar diagnósticos de sanidade para pedidos de condicional. Lá conheceu o simpático ray,
um dos presos. Era um sujeito legal, contava histórias envolventes e tinha um sorriso que
deixava qualquer um confortável. Como o sujeito parecia aplicado e dedicado a ter uma vida
correta depois da prisão, o doutor resolveu ajudá-lo em pedidos de transferência para
trabalhos melhores na cadeia, tipo a cozinha e a oficina mecânica. Os dois ficaram amigos.
Mas ray não era o que parecia. Hare descobriu que o homem usava a cozinha para produzir
álcool e vender aos colegas. Os funcionários do presídio também alertaram o psicólogo
dizendo que ele não tinha sido o primeiro a ser ludibriado pelo “gente boa” ray. E que a falta
de escrúpulos do preso não tinha limites. Pouco depois, Hare sentiu isso na pele: teve os
freios de seu carro sabotados pelo “amigo” presidiário.
Ray não era único ali. Boa parte de seus colegas no presídio de Vancouver era formada
por sujeitos alegres, comunicativos e cheios de amigos que também eram egocêntricos, sem
remorso e não mudavam de atitude nem depois de semanas na solitária. Nas prateleiras
sobre doenças mentais, havia várias descrições parecidas. O francês Philip Pinel, um dos
pais da psiquiatria, escreveu no século 18 sobre pessoas que sofriam uma “loucura sem
delírio”. Mas o primeiro estudo para valer sobre psicopatia só viria em 1941, com o livro
The Mask of Sanity (“A Máscara da Sanidade”, sem tradução para o português), do
psiquiatra americano Hervey Cleckley. Ele dedica a obra a um problema “conhecido, mas
ignorado” e cita casos de pacientes com charme acima da média, capacidade de convencer
qualquer um e ausência de remorso. Com base nesses estudos, robert Hare passou 30 anos
reunindo características comuns de pessoas assim, até montar sua escala Hare, o método
para reconhecer psicopatas mais usado hoje.
Trata-se de um questionário com perguntas sobre a vida do sujeito, feito para investigar se
ele tem traços de psicopatia. Seja como for, não é fácil identificar um. Psicopatas não têm
crises como doentes mentais: o transtorno é constante ao longo da vida. Outras funções
cerebrais, como a capacidade de raciocínio, não são afetadas. Algumas características, no
entanto, são evidentes.
S egredos e mentiras
Atributo número 1: mentir. Todo mundo mente, mas psicopatas fazem isso o tempo todo, com
todo mundo. Inclusive com eles mesmos. São capazes de dizer “já saltei de paraquedas” e,
logo depois, “nunca andei de avião”, sem achar que existe uma grande contradição aí.
Espertos, não se contentam só em dizer que são neurocirurgiões, por exemplo, sem nunca ter
completado o colegial: usam e abusam de termos técnicos das profissões que fingem ter. Se
o sujeito finge ser advogado, manda ver nos “data venias” da vida. Se diz que estudou
filosofia, vai encher o vocabulário de expressões tipo “dialética kantiana” sem fazer ideia
do que isso significa. Sim, eles são profissionais da lorota.
“Depois que descobri as mentiras que ele me contou, passei um tempo me perguntando
como tinha sido tão burra para acreditar naquilo”, diz a professora carioca Ana*. Há nove
anos, ela conheceu um cara incrível. Ele dizia que, com apenas 27 anos, era diretor de uma
grande companhia e que, por causa disso, viajava sempre para os Estados unidos e para a
Europa. Atencioso e encantador, Cláudio era o genro que toda sogra queria ter. “Em cinco
meses, a gente estava quase casando. Então a mãe dele revelou que era tudo mentira, que o
filho era doente, enganava as pessoas desde criança e passava por um tratamento
psiquiátrico.”
Ana largou Cláudio e foi tocar a vida. Mas nem sempre quem passa pelas mãos de um
psicopata “pacífico” tem tempo para reorganizar as coisas. Que o digam as pessoas que
cruzaram o caminho de Alessandro Marques Gonçalves. Formado em direito, ele resolveu
fingir que era médico. E levou esse delírio às últimas consequências: forjou documentos e
conseguiu trabalho em três grandes hospitais paulistas. Enganou pacientes, chefes e até a
mulher, que espera um filho dele e não fazia ideia da fraude. Desmascarado em fevereiro de
2006, Alessandro aleijou pelo menos 23 pessoas e é suspeito da morte de três.
“Ele usa termos técnicos e fala com toda a naturalidade. realmente parece um médico”,
diz o delegado André ricardo Hauy, de Lins, que o interrogou. “Também acha que não está
fazendo nada de errado e diz, friamente, que queria fazer o bem aos pacientes.” Quando foi
preso, Alessandro não escondeu a cabeça como os presos geralmente fazem: deixou-se
filmar à vontade.
“O diagnóstico de transtorno antissocial depende de um exame detalhado, mas dá para
perceber características de um psicopata nesse falso médico. É que, além de mentir, ele
mostra ausência de culpa”, afirma o psiquiatra Antônio de Pádua Serafim, do Hospital das
Clínicas de São Paulo.
E esse é um atributo-chave da mente de um psicopata: cabeça fresca. Nada deixa esses
indivíduos com peso na consciência. Fazer coisas erradas, todo mundo faz. Mas o que
diferencia o psicopata do “todo mundo” é que um erro não vai fazer com que ele sofra.
Sempre vai ter uma desculpa: “um cara que matou 41 garotos no Maranhão, Francisco das
Chagas, disse que as vítimas queriam morrer”, conta Antônio Serafim.
Justamente por achar que não fazem nada de errado, eles repetem seus erros. “Psicopatas
reincidem três vezes mais que criminosos comuns”, afirma Hilda Morana, que traduziu e
adaptou a escala Hare para o Brasil. “Tem mais: eles acham que são imunes a punições.” E
isso vale em qualquer situação. Até na hora de jogar baralho.
Foi o que mostrou o psicólogo americano Joe Newman num experimento em 1987. No
laboratório, havia quatro montes de cartas. Sem que os jogadores soubessem, um deles
estava cheio de cartas premiadas. Ou seja: quem escolhesse aquele monte ganhava mais
dinheiro e continuava no jogo. Aos poucos, porém, a quantidade de cartas boas rareava, até
que, em vez de dar vantagem, escolher aquele monte passava a dar prejuízo. Pessoas comuns
que participaram da pesquisa logo perceberam a mudança e deixaram de apostar nele.
Psicopatas, porém, seguiram tentando obter a recompensa anterior. “Pessoas comuns mudam
de estratégia quando não obtêm recompensa”, afirma o neurocientista James Blair, autor do
livro The Psychopath–Emotion and the Brain (“O Psicopata – Emoção e o Cérebro”, sem
edição brasileira). “Mas crianças e adultos com tendências psicopáticas continuam a ação
mesmo sendo repetidamente punidos com a perda de pontos.”
Psicopatas não aprendem com punições. Não adianta dar palmadas neles.
Além disso, psicopata que se preze se orgulha de suas mancadas. Esse sujeito pode ser o
marido que trai a mulher e se gaba para os amigos. Ou coisa pior. Veja o caso do promotor
de eventos Michael Alig. Querido por todos, ele difundiu a cultura clubber em Nova York,
organizando festas itinerantes. E em 1996 ele matou um amigo em casa. Quando o corpo
começou a feder, retalhou-o e jogou os pedaços no rio Hudson. Dias depois, em um
programa de TV, Alig simplesmente descreveu o assassinato, todo pimpão. Os jornalistas
acharam que era só uma brincadeira besta, claro. Dias depois, a polícia achou o corpo do
amigo de Alig no rio. Ele foi condenado a 20 anos de prisão – sem perder a pose.
Isso é lugar-comum entre os psicopatas. O próprio psiquiatra Antônio Serafim está
acostumado com relatos grandiosos de carnificinas: “Quando você pergunta sobre a destreza
com que cometeram os crimes, eles contam detalhes dos assassinatos, cheios de orgulho.”
Zumbis
Se você estivesse indo comprar cerveja perto de casa e se desse conta que esqueceu a
carteira, o que faria? Em vez de voltar para buscar dinheiro, um psicopata da Califórnia
preferiu catar um pedaço de pau, bater num homem e levar o dinheiro dele. Também tem o
caso de uma mulher que deixou a filha de cinco anos ser estuprada pelo namorado.
Perguntada por que deixou aquilo acontecer, ela disse: “Eu não queria mais transar, então
deixei que ele fosse com a minha filha.”
Eis mais um traço psicopático. “Eles tratam as pessoas como coisas”, afirma o psiquiatra
Sérgio Paulo rigonatti, do Instituto de Psiquiatria do HC. Isso acontece porque eles
simplesmente não assimilam emoções. Para entender isso melhor, vamos dar um passeio
pelo inferno.
Corpos decapitados, crianças esquálidas com moscas nos olhos, torturas com
eletrochoque, gemidos desesperados. Só de imaginar cenas assim, a reação de pessoas
comuns é ter alterações fisiológicas como acelerar as batidas do coração, intensificar a
atividade cerebral e enrijecer os músculos. Em 2001, o psiquiatra Antônio Serafim colocou
presos de São Paulo para assistir a cenas assim. Cada um ouvia, por um fone, sons
desagradáveis, como gritos de desespero. “Os criminosos comuns tiveram reações físicas de
medo”, diz ele. “Já os identificados como psicopatas não apresentaram sequer variação de
batimento cardíaco.”
Mais: uma série de estudos do Instituto de Neurociência Cognitiva, nos EUA, mostrou que
psicopatas têm dificuldade em nomear expressões de tristeza, medo e reprovação em
imagens de rostos humanos. “Outros três estudos ligaram psicopatia com a falta de nojo e
problemas em reconhecer qualquer tipo de emoção na voz das pessoas”, afirma Blair.
É simples: assim como daltônicos não conseguem ver cores, psicopatas são incapazes de
enxergar emoções. Não as enxergam nem as sentem, pelo menos não do mesmo jeito que os
outros fazem. Em vez disso, eles só teriam o que os psiquiatras chamam de protoemoções –
sensações de prazer, euforia e dor menos intensas que o normal. “Isso impede os psicopatas
de se colocar no lugar dos outros”, diz Hilda Morana.
Um dos pacientes entrevistados por Hare confirma: “Quando assaltei um banco, notei que
uma caixa começou a tremer e a outra vomitou em cima do dinheiro, mas não consigo
entender por quê”, disse. “Na verdade, não entendo o que as pessoas querem dizer com a
palavra ‘medo’”.
No livro No Ventre da Besta – Cartas da Prisão, o escritor americano Jack Abbott
descreve com honestidade o que acontece na sua cabeça de psicopata: “Existem emoções
que eu só conheço de nome. Posso imaginar que as tenho, mas na verdade nunca as senti.”
É como se eles entendessem a letra de uma canção, mas não a música. Esse jeito asséptico
de ver o mundo faz com que um psicopata consiga mentir sem ficar nervoso, sacanear os
outros sem sentir culpa e, em casos extremos, retalhar um corpo com o mesmo sangue-frio de
quem separa as asinhas do peito de um frango assado.
Cérebros em curto
Ok, o problema central dos psicopatas é que eles não conseguem sentir emoções. Mas por
que isso acontece? “A crença de que tudo é causado por famílias instáveis ou condições
sociais pobres nos faz fingir que o problema não existe”, afirma Hare.
Para a neurologia, a coisa é mais objetiva: os “circuitos” do cérebro de um psicopata são
fisicamente diferentes dos de uma pessoa normal. uma descoberta importante foi feita pelo
neuropsiquiatra ricardo de Oliveira-Souza e pelo neurologista Jorge Moll Neto, pesquisador
do Instituto Nacional de Distúrbios Neurológicos dos EUA. Em 2000, os dois identificaram,
com imagens de ressonância magnética, as partes do cérebro ativadas quando as pessoas
fazem julgamentos morais. Os participantes da pesquisa tiveram o cérebro mapeado
enquanto decidiam se eram certas ou erradas frases como “podemos ignorar a lei quando
necessário” ou “todos têm o direito de viver”, além de outras sem julgamento moral, como
“pedras são feitas de água”. A maioria dos voluntários ativou uma área bem na testa,
chamada Brodmann 10, ao responder às perguntas.
E aí vem o pulo do gato: a dupla repetiu o estudo em 2005 com pessoas identificadas
como psicopatas, e descobriu que elas ativam menos essa parte do cérebro. Daí a
incompetência que os sujeitos com transtorno antissocial têm para sentir o que é certo e o
que é errado. Agora, resta saber se essas deficiências vêm escritas no DNA ou se surgem
depois do nascimento.
Hoje, se sabe que boa parte da estrutura cerebral se forma durante a vida, sobretudo na
infância. Mas cientistas buscam uma causa genética porque a psicopatia parece surgir
independentemente do contexto ou da educação. “Nascem tantos psicopatas na Suécia ou na
Finlândia quanto no Brasil”, afirma Hilda Morana. “Os pais costumam se perguntar onde foi
que erraram.” A impressão é que psicopatas nasceram com o problema. “Eles também
surgem em famílias equilibradas, são irmãos de pessoas normais e deixam seus pais
perplexos”, afirma Oliveira-Souza.
James Blair vai pela mesma linha: “Estudos com pessoas da mesma família, gêmeos e
filhos adotados indicam que o comportamento dos psicopatas e as disfunções emocionais
são coisas hereditárias”, afirma.
Cobras de terno
Mesmo quem defende uma origem 100% genética para a psicopatia não descarta a
importância do ambiente. A criação, nessa história, seria fundamental para determinar que
tipo de psicopata um camarada com tendência vai ser.
“Fatores sociais e práticas familiares influenciam no modo como o problema será
expresso no comportamento”, afirma rigonatti. Por exemplo: psicopatas que cresceram
sofrendo ou presenciando agressões teriam uma chance bem maior de usar sua “habilidade”
psicopática para matar pessoas.
Um bom exemplo desse tipo é o americano Charles Manson. Filho de uma prostituta
alcoólatra e dono de uma mente pra lá de sociopata, transformou um punhado de hippies da
Califórnia em um grupo paramilitar fanático nos anos 1970. Manson foi responsável pela
carnificina na casa do cineasta roman Polanski. Entre os cinco mortos, estava a atriz Sharon
Tate, mulher do diretor e grávida de oito meses. Detalhe: ele nem sequer participou da ação.
Só usou sua capacidade de liderança para convencer um punhado de seguidores a realizar o
massacre.
Já os que vêm de famílias equilibradas e viveram uma infância sem grandes dramas teriam
uma probabilidade maior de se transformar naqueles que mentem, trapaceiam, roubam, mas
não matam. Mais de 70% dos psicopatas diagnosticados são desse grupo, mas não há motivo
para alívio. Psicopatas infiltrados na política, em igrejas ou em grandes empresas podem
fazer estragos ainda piores.
Exemplos não faltam. O político absurdamente corrupto que é adorado por eleitores,
cativa jornalistas durante entrevistas, não entra em contradição nem parece sentir culpa por
ter recheado suas contas bancárias com dinheiro público é um. O líder religioso que
enriquece à custa de doações dos fiéis é outro. E por aí vai.
“Eles costumam se dar bem em ambientes pouco estruturados e com pessoas vulneráveis.
Agem como cartomantes, pais de santo, líderes messiânicos”, afirma Oliveira-Souza.
Psicopatas não tão fanáticos, mas com a mesma falta de escrúpulos, também estão em
grandes empresas, sugando dinheiro e tornando a vida dos colegas um inferno.
A habilidade para mentir despudoradamente sem levantar suspeitas faz com que eles se
deem bem já nas entrevistas de emprego. O charme que eles simulam ajuda a conquistar a
confiança dos chefes e a pressionar para que colegas que atrapalham sua ascensão
profissional acabem demitidos. Não raro, costumam ocupar os cargos hierárquicos mais
altos.
O psicólogo ocupacional Paul Babiak cita o exemplo de Dave, um executivo de uma
empresa americana de tecnologia. Logo na primeira semana, o chefe notou que ele gastava
mais tempo criando picuinhas entre os funcionários do que trabalhando, e plagiava relatórios
sem medo de ser pego. Quando o chefe recomendou sua demissão, Dave foi reclamar aos
chefes do seu chefe. Com sua lábia, conseguiu ficar dois anos na empresa, sendo promovido
duas vezes, até causar um rombo na firma e sua máscara cair. “Certamente há mais
psicopatas no mundo dos negócios que na população em geral”, diz o psiquiatra Hare, que
escreveu com Babiak o livro Snakes in Suits – When Psychopaths Go to Work (“Cobras de
Terno – Quando Psicopatas Vão Trabalhar”, inédito no Brasil). Para ele, sociopatas
corporativos são responsáveis por escândalos como o da Enron, em 2002, quando a empresa
americana mentiu sobre seus lucros para bombar preços de ações. “O poder e o controle
sobre os outros tornam grandes empresas atraentes para os psicopatas”, diz.
O que fazer?
Seja nas empresas, nas ruas, ou numa casinha de sapê, nossos amigos com transtorno
antissocial são tecnicamente incapazes de frear seus impulsos sacanas. Mas, para os
psiquiatras, essa limitação não significa que eles não devam ser responsabilizados pelo que
fazem. “Psicopatas têm plena consciência de que seus atos não são corretos”, afirma Hare.
“Apenas não dão muita importância para isso.” Se cometem crimes, então, devem ir para a
cadeia como os outros criminosos.
Só que, até depois de presos, psicopatas causam mais dores de cabeça que a média dos
criminosos. Na cadeia, tendem a se transformar em líderes e agir no comando de rebeliões,
por exemplo. “Mas nunca aparecem. Eles sabem como manter suas fichas limpas e acabam
saindo da prisão mais cedo”, diz Antônio de Pádua Serafim.
Por conta disso, a psiquiatra forense Hilda Morana foi a Brasília em 2004 tentar
convencer deputados a criar prisões especiais para psicopatas. Conseguiu fazer a ideia virar
um projeto de lei, que não foi aprovado. Nas prisões brasileiras, não há procedimento de
diagnóstico de psicopatia para os presos que pedem redução da pena. “Países que aplicam o
diagnóstico têm a reincidência dos criminosos diminuída em dois terços, já que mantêm mais
psicopatas longe das ruas”, diz ela. Tampouco há procedimentos para evitar que psicopatas
entrem na polícia – uma instituição teoricamente tão atraente para eles quanto as grandes
empresas. Também não há testes de psicopatia na hora de julgar se um preso pode partir para
um regime semiaberto. Nas escolas, professores não estão preparados para reconhecer
jovens com o transtorno.
“Mesmo dentro da psiquiatria, existe pouca gente interessada no assunto, já que os
psicopatas não se reconhecem como tal e dificilmente vão mudar de comportamento durante
a vida”, diz o psiquiatra João Augusto Figueiró, de São Paulo. Também não existem
tratamentos comprovados nem remédios que façam efeito. Outro problema: quando levados a
consultórios, os psicopatas acabam ficando piores. Eles adquirem o vocabulário dos
especialistas e se munem de desculpas para justificar seu comportamento quando for
necessário. Diante da falta de perspectiva de cura, quem convive com psicopatas no dia a
dia opta por vigiá-los o máximo possível. É o que faz a dona de casa Norma, do Guarujá,
com o filho Guilherme. “Enquanto eu e o pai dele estivermos vivos, podemos tomar conta”,
diz. “Mas... e depois?
* Nome fictício.
nazista –
doutores
da agonia
ELES UTILIZARAM HUMANOS COMO
COBAIAS DE PESQUISAS MACABRAS.
AGORA ESTUDOS DIZEM QUE ESSAS
EXPERIÊNCIAS GUARDAM INFORMAÇÕES
VALIOSAS PARA A HUMANIDADE.
amarada, por favor, peça ao oficial que acabe conosco com uma bala”, suplicou o
“C soldado russo. Depois de três horas dentro de um tanque de água gelada, ele já não
suportava mais a sensação de congelamento no corpo. “Não espere compaixão daquele
cão fascista”, respondeu o colega que dividia o tanque com ele. Quando o cientista
responsável pelo experimento descobriu o significado das palavras de suas cobaias, retirou-
se para o escritório. Voltou com um revólver na mão. Não para atender ao pedido do
soldado, mas para ameaçar seus assistentes na experiência. “Não se intrometam. Nem se
aproximem deles!” Passaram-se mais duas horas de agonia antes que o alívio da morte
chegasse para os russos. Assim como eles, pelo menos outros 300 prisioneiros dos nazistas
foram usados em experimentos destinados a entender os efeitos do frio no organismo – a
hipotermia. A maioria não teve a sorte de um final rápido. Ao chegarem ao limite entre a
vida e a morte, eram reanimados e expostos novamente a temperaturas baixas.
As descrições acima são apenas um exemplo de como alguns cientistas alemães se
adaptaram ao ideário nazista. Eticamente, a ciência produzida na Alemanha entre as décadas
de 1930 e 1940 foi repugnante. Os experimentos causaram dor, humilhação e mortes terríveis
às pessoas confinadas em campos de concentração – fossem elas judias, ciganas,
homossexuais ou qualquer tipo de inimigo do regime. Acontece que os responsáveis por
essas “pesquisas” podiam ser sádicos, mas não eram leigos. Muitos foram formados nas
escolas mais tradicionais do planeta – antes da chegada dos nazistas ao poder, a Alemanha
era um dos líderes mundiais em inovação científica. Metódicos como só pesquisadores
alemães podem ser, eles sistematizaram as experiências, coletaram dados, chegaram a
conclusões. E geraram informações que, além de inéditas na época, nunca mais foram
reproduzidas em testes sérios – afinal de contas, e ainda bem, não é todo dia que aparece
alguém propondo jogar ácido na pele de um ser humano para entender como nosso corpo
reage à substância.
As pesquisas sobre hipotermia, por exemplo, além de matar centenas de prisioneiros do
campo de Dachau, produziram dados que alguns cientistas gostariam de usar em pesquisas
atuais. robert Pozos, diretor do Laboratório de Hipotermia da universidade de Minnesota,
nos EUA, é um deles. Ele estuda como o corpo responde ao frio para descobrir a melhor
maneira de reanimar pessoas que cheguem quase congeladas aos hospitais. Mas seu trabalho
enfrenta um problema: muitas de suas pesquisas não podem ser concluídas, pois os
voluntários podem morrer quando sua temperatura cai abaixo de 36ºC. A única fonte
conhecida de dados sobre pessoas nessas condições são os experimentos nazistas. É ético
utilizá-los para salvar vidas? Pozos acha que sim. Mas a respeitada revista médica New
England Journal of Medicine se recusou a publicar a pesquisa.
Para enfrentar essa delicada questão, é necessário encarar o legado científico do nazismo,
desconhecido até pouco tempo atrás. Estudos recentes, porém, lançaram nova luz em direção
ao que sabemos sobre a ciência no período. Afinal, houve experimentos de qualidade no
nazismo? O que acontece com a ciência sob um regime tão desumano?
Ciência e nazismo
Planície de Ypres, fronteira entre Bélgica e França, 17 horas de 22 de abril de 1915, 1ª
Guerra Mundial. Entrincheirados, soldados do Exército francês observam, atônitos, um
inimigo desconhecido se aproximar. Alguns percebem que é impossível combatê-lo e fogem.
Outros ficam parados, sem saber como lutar contra o oponente mais letal que já enfrentaram:
uma nuvem verde-amarelada de 1,5 metro de altura.
Dez minutos antes, uma tropa especial havia tomado a dianteira do Exército alemão. O
Pionierkommando 36 era um batalhão de cientistas com uniforme militar e máscaras
protetoras, liderados por um ganhador do Prêmio Nobel de Química, o alemão Fritz Haber.
Ao sinal de Haber, foram abertos 730 cilindros, com 100 quilos cada um, de gás cloro em
forma líquida. Assim nasceu a nuvem que castigou os franceses. O saldo: 10 mil mortos e 5
mil feridos.
Os cientistas envolvidos no projeto científico-militar alemão eram de primeira linha. Fritz
Haber, por exemplo, foi responsável por uma descoberta que não só permitiu à Alemanha
prolongar a Primeira Guerra, mas hoje nos permite produzir alimentos para 6 bilhões de
pessoas: a técnica de fixação da amônia a partir do nitrogênio do ar serviu tanto à criação de
explosivos quanto ao desenvolvimento de fertilizantes baratos. Otto Hahn, outro ganhador do
Nobel que liderou um ataque com gás, foi um dos descobridores do processo de fissão
nuclear, usado em bombas atômicas e em usinas nucleares. “O Exército alemão se convenceu
de que a ciência desenvolveria armas superiores, que compensariam as restrições à
produção de armamentos impostas pelo Tratado de Versalhes”, diz Helmut Maier,
pesquisador do Instituto Max Planck. “Após a guerra, a elite científica levou o país à
liderança nos ramos de balística, química, aviação e construção de foguetes.”
Veterano da Primeira Guerra, Adolf Hitler conhecia o poder da ciência militar – ele foi
internado com cegueira temporária após um ataque com gás. E sabia que, se chegasse ao
poder, faria da ciência um dos pilares da Alemanha. Mas seu interesse trazia um problema.
Ele admirava a ciência, mas não entendia nada do assunto. “Ele seguia seu instinto, seu
feeling”, diz o historiador alemão Joachim Fest, um dos mais importantes biógrafos do líder
nazista. Na cúpula nazista, a situação não era melhor. Heinrich Himmler, segundo homem na
hierarquia, mandava cientistas investigarem a relação entre os canhotos e a
homossexualidade, ou pesquisarem a genealogia dos cavalos dos antigos reis nórdicos.
“Himmler era a verdadeira encarnação da pseudociência”, diz Michael Kater, autor de
Doctors Under Hitler (“Doutores de Hitler”, sem tradução em português).
Hitler não via nenhum problema nessas ideias. Na verdade, ele se considerava um
cientista de vanguarda – era um entusiasmado adepto da teoria da higiene racial, doutrina
“científica” que prega a eliminação dos genes não arianos do povo alemão. Em seu livro
Mein Kampf (“Minha Luta”), de 1925, ele ajudou a disseminar uma metáfora muito útil para
o progresso da doutrina: “O povo alemão é um só corpo, mas sua integridade está ameaçada.
Para manter a saúde do povo, é preciso curar o corpo infestado de parasitas”. Os parasitas
eram os judeus. O que há de científico nisso? Nada. Mas, às vésperas da ascensão de Hitler,
já estava difícil discernir o que era ou não ciência. “Desenvolveu-se uma relação simbiótica
entre ideologia e ciência. A ciência, nessa época, começou a funcionar como legitimação das
ideias racistas do nazismo”, diz Helmut Maier. E era essa mistura insólita que os cientistas
teriam de enfrentar, se quisessem permanecer na Alemanha após 10 de janeiro de 1933, dia
em que Hitler tomou o poder.
Hitler domina a ciência
Em 6 de maio de 1933, um dos mais importantes cientistas da Alemanha bateu à porta do
escritório de Hitler. O führer ouviu com atenção sua tentativa de abrandar a perseguição a
pesquisadores judeus: “Há diversos tipos de judeus, alguns valiosos e outros inúteis para a
humanidade”, argumentou o pesquisador. Hitler respondeu: “Se a ciência não pode passar
sem judeus, teremos de nos haver sem a ciência!” E começou a berrar, falando cada vez mais
rápido e tremendo de raiva. O visitante se calou e despediu-se, desapontado. Naquele dia,
Max Planck, pai da física quântica e presidente do Kaiser Wilhelm Institute (hoje Instituto
Max Planck), não conseguiu o que queria: evitar a demissão do amigo judeu Fritz Haber,
aquele que comandara a primeira tropa de gás da história.
Planck foi um dos cientistas que optaram por continuar na Alemanha, mesmo não
concordando com os ideais do novo regime. O físico Max von Laue, que costumava sair de
casa com um embrulho debaixo de cada braço para não ter de fazer a saudação nazista,
tomou a mesma decisão. Acreditando em dias melhores, Planck e Laue encorajavam colegas
a ficar no país. Mas nem todos compartilhavam da mesma opinião. “A conduta dos
intelectuais alemães como grupo não foi melhor que a de uma ralé”, afirmou o judeu Albert
Einstein a respeito da reação de seus pares ao nazismo. Ele foi criticado por Laue quando
decidiu ir para os EUA em 10 de março de 1933 – um mês antes de uma lei expulsar todos
os descendentes de judeus do funcionalismo público, fazendo cerca de mil cientistas de elite
perder o emprego. Passariam-se mais 30 dias até que universitários alemães saíssem às ruas
para aplaudir a queima de mais de 10 mil livros em praças públicas.
Se alguns cientistas foram culpados por silenciar, outros não hesitaram em aderir ao
ideário racista. um ramo em especial aceitou com bons olhos a limpeza dos “parasitas”
judeus: a medicina. Em 1933, 44,8% dos médicos alemães eram filiados ao partido nazista.
Era a maior proporção de representação entre todas as profissões. Além de antissemita, a
classe médica alemã era, em geral, favorável às políticas da higiene racial.
Mas nem todos tiveram estômago para embarcar no projeto do führer. Max Planck, por
exemplo, não suportou o clima no país e pediu demissão em 1937. Já não estava na
Alemanha quando seu filho Erwin foi executado por envolver-se num plano para matar
Hitler. Seu amigo Fritz Haber teve um enfarto e morreu em 1934. Muitos de seus parentes
seriam mortos pelo gás que ajudou a desenvolver. Na iminência das batalhas da Segunda
Guerra Mundial, em 1939, apenas os cientistas considerados “mais fortes” pelos nazistas
ficaram no país. Se você quer continuar lendo esta reportagem, também precisará ser forte.
L aboratórios do inferno
“Escutem, colegas, já que vocês vão matar toda essa gente, pelo menos arranquem o cérebro
deles”, disse, em 1939, o professor de medicina Julius Hallervorden aos encarregados da
eutanásia de doentes mentais, um programa que exterminava quem recebesse dos médicos o
diagnóstico de lebensunwertes leben, ou “vida indigna de viver”. Foi assim que
Hallervorden formou uma coleção que, em 1944, contava com 697 cérebros. Entre seus
favoritos, estava o de uma menina cuja mãe fora envenenada acidentalmente com gás
enquanto estava esperando o bebê.
August Hirt, médico da universidade de Estrasburgo (então na Alemanha, hoje na França),
não queria só cérebros, mas cabeças inteiras. E tinham de ser cabeças de judeus. Logo
percebeu que, se conseguia cabeças sem problemas, por que não pedir corpos inteiros?
Encomendou 115 prisioneiros a Auschwitz, que foram prontamente executados. Em agosto,
recebeu mais 80 cadáveres para estudos sobre a superioridade anatômica do povo ariano.
Mas médicos como Hirt e Hallervorden ainda não tinham as mesmas possibilidades que
Sigmund rascher, responsável pelo campo de concentração de Dachau: usar cobaias humanas
vivas. “Sou, sem dúvida, o único que conhece por completo a fisiologia humana, porque
faço experiências em homens e não em ratos”, dizia. rascher era admirado e protegido por
Himmler, entusiasta das pesquisas a ponto de assistir aos terríveis experimentos em câmaras
de baixa pressão. Das cerca de 200 cobaias que passaram pelas câmaras até maio de 1942,
80 morreram durante os testes. Algumas tiveram o cérebro dissecado enquanto estavam
vivas para que o médico observasse as bolhas de ar que se formavam nos vasos sanguíneos.
Em seguida, rascher começou a pesquisar a hipotermia. Era ele o responsável pelo
experimento do início desta reportagem.
Rascher foi um dos pioneiros entre os 350 médicos que oficialmente se envolveram em
experiências nos campos de concentração. Se considerarmos o número de pacientes
assassinados, ele não foi páreo para o mais sanguinário de todos: Joseph Mengele, cujas
experiências foram responsáveis pelo extermínio de 400 mil pessoas em Auschwitz.
Mengele injetou tinta azul em olhos de crianças, uniu as veias de gêmeos, jogou pessoas em
caldeirões de água fervente, amputou membros de prisioneiros, dissecou anões vivos e
coletou milhares de órgãos em seu laboratório. Depois da guerra, fugiu e viveu escondido no
Brasil até morrer, em 1979. Oficialmente, comprou sua fuga com anéis de casamento e
dentes de ouro dos cadáveres. Segundo o cientista alemão Benno Müller-Hill, a história não
é bem essa. “Muito embaraço teria sido causado se ele tivesse revelado para onde mandou o
material humano”, diz o autor de Murderous Science (“Ciência Assassina”, sem tradução em
português), livro precursor da nova onda de estudos sobre a ciência nazista.
Se você chegou até aqui, deve estar se perguntando: “O que se passava na cabeça desses
médicos?” O psiquiatra robert Lifton tem uma teoria a respeito: um processo psicológico
que chamou de doubling. “O doubling é a dissociação do eu, que leva à formação de uma
espécie de segundo eu”, diz. Professor de Harvard e autor de The Nazi Doctors (“Os
Doutores Nazistas”, sem tradução em português), Lifton percebeu as características do
doubling em muitos dos “doutores” que entrevistou para seu livro. Na rua, eram éticos e
respeitadores. Nos campos de concentração, monstros. “Eles falavam do que fizeram sem
envolvimento emocional, como se estivessem narrando os atos de outra pessoa”, diz.
O horror nazista transformava a mente dos médicos. Mas e as vítimas? Na tentativa de
entender o trauma causado pelas experiências, a SUPER procurou em São Paulo a judia
polonesa Bluma reicher, de 83 anos. Ao ouvir um pedido para descrever as cirurgias a
sangue-frio pelas quais passou em Auschwitz há mais de 60 anos, a única resposta que
Bluma deu foram lágrimas.
Karl Hoellenrainer, um cigano, respondeu de outra forma. Ao encontrar no tribunal de
Nuremberg o homem que o obrigou a tomar água salgada por quatro semanas e depois
arrancou pedaços do seu fígado, sacou uma adaga e partiu para cima de seu algoz. Queria
matá-lo ali mesmo. Não conseguiu e foi sentenciado no mesmo dia, 27 de junho de 1947, a
três meses de prisão.
A exposição de tantos atos desumanos deixa a impressão de que, em pleno século 20, o
nazismo levou a ciência de volta à idade das trevas. Até recentemente, era essa a visão que a
maioria dos historiadores tinha. Novos estudos, porém, revelam a realidade muito mais
complexa que se escondia sob um manto de atrocidades e absurdos científicos.
Outra visão
Naquela cidade, o fumo estava banido de todas as áreas públicas, incluindo escritórios e
salas de espera. Trens e automóveis também eram territórios proibidos para fumantes.
Apesar da semelhança com as metrópoles atuais, a cidade em questão é a Berlim da década
de 1940. As medidas antitabagistas foram implementadas pelos nazistas, os únicos que
tinham acesso ao conhecimento necessário para desenvolvê-las.
“Os nazistas foram os primeiros a fazer estudos estatísticos rigorosos que provaram a
relação entre o hábito de fumar e o câncer de pulmão”, afirma robert Proctor, historiador da
ciência e professor da universidade Stanford, nos EUA, e autor de The Nazi War on Cancer
(“A Guerra Nazista contra o Câncer”, sem tradução em português). É uma ironia que a
origem de uma das maiores descobertas do século 20 esteja relacionada a um efeito da
doutrina de higiene racial. A esse efeito, Proctor deu o nome de paranoia homeopática. “Os
nazistas tinham pavor de agentes minúsculos que poderiam corromper o corpo alemão. Eram
obcecados por ar limpo, comida natural e um estilo de vida saudável.” Essa obsessão
empurrou os alemães em direção aos mais avançados estudos anticâncer.
Proctor não é uma unanimidade no mundo científico. Pesquisadores experientes contestam
os resultados de seus estudos. “Proctor afirma que os nazistas fizeram boa ciência, ainda que
com propósitos malignos. Isso é uma bobagem. Tenho estatísticas em meus livros que
mostram que os nazistas não chegaram nem perto de derrotar o câncer. Na época em que as
publiquei, Proctor ainda era um bebezinho recém-saído das fraldas”, diz o historiador
Michael Kater. O professor de Stanford, porém, está longe de ser um acadêmico isolado por
seus pares. Matérias favoráveis a respeito de seu trabalho foram publicadas nas
conceituadas revistas científicas Nature, Science e New Scientist. Proctor acredita que a
visão que se tem do nazismo ainda é simplificadora e estereotipada. “A ciência nazista tem
de ser estudada em toda a sua complexidade”, afirma.
Lançar um novo olhar sobre a ciência alemã no período nazista foi exatamente o objetivo
do mais ambicioso projeto histórico já feito pela Sociedade Max Planck, que controla 80
dos mais importantes institutos de pesquisa da Alemanha. O resultado do estudo, que
consumiu mais de seis anos de trabalho, foi divulgado em 2005 e chacoalhou tudo o que
sabíamos a respeito da ciência nazista. A tese de que os laboratórios eram controlados por
monstros impiedosos e desumanos, que não produziram nenhum conhecimento valioso para a
humanidade, caiu por terra. A nova pesquisa revelou que muitos dos então melhores
cientistas da Alemanha viram o regime nazista não como uma ameaça, mas como uma
oportunidade de adquirir status pessoal e financiamento para seus estudos. Para isso, eles
procuraram fazer ciência sobre os temas que mais interessavam aos chefões nazistas e se
engajaram em experimentos antiéticos que seguiam as regras dos métodos científicos mais
avançados da época. O estudo da Sociedade Max Planck provou que as fronteiras que
separaram os cientistas comuns dos torturadores nos campos de concentração não são tão
claras e ressuscitou um dilema que permanece em aberto na comunidade científica
internacional: o que fazer com os resultados obtidos nas experiências?
Dados da discórdia
“Eu não queria ter de usar os dados nazistas. Mas não existem outras opções para a minha
pesquisa. Nem nunca existirão num mundo ético”, diz o médico John Hayward, da
universidade de Victoria, no Canadá, que estuda os efeitos do frio no corpo humano. Apesar
da defesa contundente de Hayward, a validade científica dos experimentos que ele usou é
criticada por alguns pesquisadores. “Os dados são péssimos. Não havia livros de controle,
métodos estatísticos nem repetição de experimentos em condições similares. Eles não têm
uso nenhum para a ciência”, afirma Michael Kater, uma das maiores autoridades mundiais no
assunto. robert Lifton, que entrevistou os doutores nazistas, também diz ter razões para
duvidar da validade das experiências. Mesmo assim, defende sua utilização pela ciência.
“Os médicos nazistas usavam como assistentes prisioneiros do campo, gente muito mais
preocupada com a própria sobrevivência do que com a acuidade das pesquisas”, diz. “Mas
qualquer dado que sirva para poupar sofrimento humano deve ser usado.”
Mas afinal, que dados são esses? robert Proctor dá um exemplo: “Todos os coletes salva-
vidas hoje em dia são desenhados para aquecer o pescoço justamente porque os nazistas
provaram que isso aumenta as chances de sobrevivência dos náufragos em água gelada.”
Outro caso polêmico envolveu a Agência de Proteção Ambiental dos EUA (EPA). Em
1989, seus especialistas foram chamados a definir regras para a utilização do fosgênio, um
gás tóxico usado na fabricação de plásticos e pesticidas. Mas não havia estudos detalhados
sobre o efeito do fosgênio em humanos – os únicos dados conhecidos foram produzidos
pelos nazistas. Entre utilizar essas pesquisas e arriscar a vida da população americana com
uma legislação perigosa, a EPA escolheu a segunda opção.
Mas há razão para descartar os dados? Segundo um editorial da revista científica Nature,
não deveríamos decidir precipitadamente. “O estudo da Sociedade Max Planck descobriu
que grande parte das pesquisas mais criminosas conduzidas pelos nazistas não era
pseudociência – na verdade, elas seguiam métodos científicos tradicionais e estavam na
vanguarda dos estudos produzidos no período.” Até as pesquisas do sanguinário Mengele
devem ser revistas. “Agora ficou claro o que os relatos macabros que demonizaram Mengele
tendiam a encobrir: seus experimentos não eram baseados em puro sadismo, e sim em
interesses científicos que, levando-se em consideração os conhecimentos da época, não eram
totalmente implausíveis”, afirma a alemã Susanne Heim, líder do estudo da Sociedade Max
Planck.
Se ainda não há unanimidade em torno da criteriosa pesquisa nazista sobre o câncer, é
compreensível que o uso dos dados obtidos de maneira antiética continue sendo polêmico.
Mas negar a existência de progressos científicos no período nazista não parece ser uma
atitude que vá contribuir para uma melhor compreensão da história. Olhar para o lado
positivo, se é que ele existe, do período mais desumano pelo qual a ciência já passou, é
difícil para nós. Que dizer, então, para pessoas que passaram a vida debruçadas em estudos
exaustivos sobre as atrocidades ou convivendo diariamente com os traumas que elas
deixaram? “Não há ciência no inferno de Dante”, diz o historiador Michael Kater. Mas
talvez, por mais duro que seja, tenhamos de admitir que existiu ciência mesmo no inferno. Se
isso acontecer, será preciso refletir sobre uma nova e inquietadora questão: é justo usarmos
o sofrimento de Bluma reicher e dos milhares que passaram pelas mãos dos doutores de
Hitler para tentar evitar que mais pessoas sofram no mundo de hoje? Para essa pergunta,
infelizmente não existe fórmula, equação, experimento ou qualquer outro meio científico de
obter uma resposta exata.
homem que
matou Deus
UMA IDEIA SIMPLES RESOLVEU O
MISTÉRIO MAIS COMPLEXO DE TODOS:
O SENTIDO DA VIDA. AGORA CIENTISTAS
USAM DARWIN PARA DESVENDAR DA
MENTE À ORIGEM DO UNIVERSO. E O QUE
ELES ENCONTRARAM É ASSUSTADOR.
Charles Darwin criou o homem. Ou, pelo menos, inventou o que hoje nós conhecemos
como homem. Antes dele, éramos o centro do universo, a obra sublime da criação.
E Agora somos apenas mais uma entre milhões e milhões de espécies, um bicho de
origem nada especial. Nada mesmo: a Teoria da Evolução deixou claro que todas as
formas de vida que já pisaram na Terra são filhas da mesma tataravó – uma simples
molécula que virou tudo o que existe hoje.
Assim, mostrando como a vida evolui, Darwin dispensou Deus do cargo de criador. E
agora seus seguidores do século 21 querem fazer algo ainda mais chocante: mostrar que não
passamos de escravos a serviço dos verdadeiros donos deste planeta. Ah, tem mais: a teoria
de Darwin pode ter desvendado o segredo dos buracos negros. E mostrado não só que deve
haver vida fora da Terra, mas em universos paralelos também. Quer saber como? Então
vamos embarcar no Beagle. Primeira escala: o inferno.
O inferno de Darwin
O solo repleto de lava negra estava coberto de lagartos e tartarugas monstruosas.
Caranguejos escarlates corriam por todos os lados. O calor era tão forte que atravessava as
botas e queimava os pés. Cercado por uma vegetação composta de cactos de três metros de
altura, girassóis do tamanho de árvores e arbustos desfolhados, Darwin escrevia em seu
diário: “A superfície seca e crestada, aquecida pelo sol do meio-dia, deixava o ar abafado,
quente como em um forno. Tínhamos a impressão de que até os arbustos cheiravam mal”.
“Esse lugar é o inferno!”, dizia robert Fitzroy, capitão do navio de pesquisas Beagle, que
levara o jovem Charles Darwin às Galápagos, um arquipélago no oceano Pacífico. Fitzroy
queria um cavalheiro a bordo para lhe fazer companhia. E o abonado Darwin, de 22 anos,
acabou escolhido, principalmente porque estava estudando para virar padre – mas também
porque Fitzroy gostou do formato do nariz dele, que “sinalizava profundidade de caráter”. O
capitão tinha dois objetivos para a viagem. um a serviço do Império Britânico: mapear a
costa da Patagônia. Outro, pessoal: encontrar provas científicas de que o mundo tinha sido
criado de acordo com o que está na Bíblia. Mal sabia ele que o assassino de Deus estava a
bordo.
A paisagem infernal das Galápagos, onde aportaram em 15 de setembro de 1835, após
quase quatro anos de expedição, era um paraíso para Darwin. Ele pintou e bordou com tudo
o que pôde naquele lugar perdido no tempo. Pegou carona nas tartarugas (“Era difícil manter
o equilíbrio.”), tirou onda com os iguanas (“Ele ficou olhando para mim como se quisesse
dizer: por que você puxou a minha cauda?”) e encheu o bucho de iguarias exóticas (“Tatu é
um prato excelente quando assado em sua carapaça.”). De quebra, tirou de lá a inspiração
para a ideia mais importante e assustadora da história da ciência.
O gatilho para esse pensamento veio quando ele percebeu diferenças instigantes entre os
bicos de uma espécie de passarinho das Galápagos, os tentilhões. Em uma ilha, eles tinham
bicos grossos, bons para quebrar nozes. Em outra, longos e finos, ideais para arranjar
comida em frestas. Darwin imaginou que aquelas aves deviam ter se adaptado de algum
jeito. Por mágica? Não: por um processo de seleção que levou gerações. Em ambas as ilhas,
teriam nascido pássaros de bico fino e de bico grosso. Naquela onde havia nozes para
comer, só estes últimos teriam sobrevivido. A partir desse raciocínio simples, nascia um
monstro.
De volta à Inglaterra, aos 27 anos, Darwin estudou a fundo as 5.436 carcaças, peles e
ossos que colecionara na viagem do Beagle e concluiu que TODAS as espécies do mundo
tinham passado por processos de adaptação equivalentes ao dos tentilhões. Bem
devagarzinho.
Imagine as asas dos pássaros, por exemplo. Pela lógica de Darwin, elas não nasceram
prontas. Em algum ninho dos ancestrais dos pássaros, que não voavam, surgiu um mutante,
um “patinho feio”, com uma pequena membrana que lhe permitia planar de vez em quando.
Essa característica deu-lhe alguma vantagem na luta pela sobrevivência. E o bicho deixou
mais descendentes que seus irmãos. A prole dele, que carregava a mesma mutação, também
fez mais filhos, e por aí foi. Com o tempo, novos mutantes, novos patinhos feios, foram
nascendo com asas cada vez melhores. E, no fim das contas, um novo tipo de animal se
consolidava no planeta: os pássaros. Tudo às custas da extinção de outros bichos parecidos,
só que menos adaptados à dureza da vida. “A produção de animais superiores é
consequência da natureza, da fome e da morte”, escreveu Darwin.
Nós mesmos, imaginou o inglês, não podíamos estar de fora. A diferença é que a evolução
para a forma que temos hoje foi a partir de “macacos” (na verdade, animais parecidos com
macacos), que foram desenvolvendo cérebros cada vez maiores, do mesmo jeito que os
pássaros fizeram com as asas. E esses “macacos” vieram de outros bichos... Hoje sabemos
de quem: de peixes mutantes que nasceram com a capacidade de respirar fora da água –
nossos pulmões, por exemplo, vieram direto desses animais, que viviam em pântanos
lamacentos.
Aí não tinha mais jeito. Darwin já sabia que não éramos “a imagem e semelhança de
Deus”. Agora responda: o que você faria ao perceber que na sua cabeça existe uma ideia que
pode abalar as crenças mais profundas de quase toda a humanidade? Darwin sentiu o peso, e
ficou aterrorizado. Demorou mais de 30 anos para publicar a ideia em seu livro A Origem
das Espécies, de 1859. E ainda assim o livro só saiu quando ele leu um artigo de Alfred
russel Wallace, um biólogo inglês. O texto continha uma teoria bem similar à da seleção
natural, porém menos abrangente. Com medo de ser passado para trás, Darwin autorizou seu
amigo Thomas Huxley a expor a Teoria da Evolução ao mundo científico, pois ele mesmo
não teve coragem. “Foi como confessar um assassinato”, escreveu.
Por isso mesmo, a teoria demorou para virar unanimidade entre os acadêmicos. Ela só foi
aceita para valer quando outros cientistas, já no século 20, a refinaram com base na genética
– a forma como os pais transmitem suas características aos filhos. Esse renascimento deu um
gás novo à Teoria da Evolução. E na década de 1930 começava uma nova revolução: o
neodarwinismo. Com ele, uma ideia aterradora começou a sair do forno: a de que você não
passa de um robô. Era a Teoria do Gene Egoísta, que ganhou corpo nos anos 1970. Para
entendermos melhor essa história, vamos fazer outra viagem no tempo. Desta vez para uma
época bem anterior à do Beagle. Mas com um destino igualmente infernal.
Origem das espécies 2.0
Planeta Terra, 4 bilhões de anos atrás. um mundo adolescente, infestado por vulcões,
meteoritos e tempestades violentas. No mar desse inferno, moléculas de carbono
encontraram um porto seguro. E começaram a se juntar, formando cadeias cada vez mais
longas e complexas. uma hora, como quem não quer nada, apareceu um estranho nesse ninho.
um acidente da natureza. Era uma molécula capaz de se replicar, de sugar matéria orgânica
do ambiente e usar como matéria-prima para produzir cópias dela mesma. Motivo? Nenhum:
ela fazia réplicas por fazer e pronto. Vai entender...
Essa aparição foi algo tão improvável quanto se esta revista (que também é feita de
cadeias de carbono) comesse seus dedos agora e, a partir dos átomos da sua carne, pele e
ossos, construísse uma cópia dela mesma. Improvável, mas foi exatamente o que aconteceu
naquele dia. E não havia nada ali para conter o apetite da monstruosa molécula.
Ainda mais porque arranjar matéria-prima – ou seja, “comida” – nesse oceano primitivo
era fácil: bastava “pescar” nutrientes na água. Assim ela cresceu e se multiplicou. Mas tinha
um problema: nem sempre as réplicas saíam perfeitas. Às vezes acontecia um erro de cópia
aqui, outro ali. Surgiam aberrações. “um livro e tanto escreveria o capelão do Diabo sobre
os trabalhos desastrados, esbanjadores, ineficientes e terrivelmente cruéis da natureza”,
escreveria Darwin sobre esse processo bilhões de anos depois.
Esses erros aconteciam bem de vez em quando: um a cada milhão de réplicas. Mas tempo
é o que não falta nesse mundo. Então eles foram se acumulando mais e mais. Só que alguns
não davam em aberrações. Muito pelo contrário. Algumas réplicas nasciam com uma
mutação que as fazia se multiplicar mais em menos tempo. E não demorou para essas
mutantes mais férteis dominarem o mar. Só isso já é um tipo de seleção natural. Mas a regra
de Darwin só deu as caras para valer quando aconteceu o inevitável: o mundo ficou pequeno
para tantos replicadores. Com a superpopulação, os ingredientes de que eles precisavam
para fazer suas cópias rarearam. Era a primeira crise de fome no planeta.
A saída? Ir para a briga. Mas estamos falando de moléculas, que não têm lá muito poder
de decisão. Foi aí que provavelmente surgiu uma mutação inédita, que permitia a algumas
moléculas comer outros replicadores. Assim elas conseguiam eficiência total: arranjavam
almoço e eliminavam rivais ao mesmo tempo. Mas o domínio não duraria para sempre. Com
o tempo, surgiram mutantes com capa protetora natural. Com essa armadura, dava para
comer os rivais sem o risco de ser comido. Nasciam as primeiras células do mundo. “Os
replicadores deixavam de meramente existir e começavam a fazer contêineres para eles,
veículos para que pudessem continuar vivos. Os que sobreviveram foram os que construíram
‘máquinas de sobrevivência’ para si”, escreveu o mais notório dos neodarwinistas, o
zoólogo richard Dawkins, da universidade de Oxford, na Inglaterra.
Logo viriam células mutantes ainda mais terríveis contra as rivais. Elas tinham o poder de
juntar forças com outras células e atacar unidas. E de fazer cópias de si mesmas numa tacada
só, como se todas fossem uma única molécula. Surgiam os primeiros seres multicelulares.
E eles ficaram cada vez mais complexos: suas células passaram a assumir funções
distintas para operar sua máquina de sobrevivência. Faziam como soldados num tanque de
guerra: umas ficavam a cargo da locomoção, na forma de nadadeiras; outras, de “satélites”
para encontrar comida (visão, olfato).
E o progresso nunca parou. Tanto que hoje boa parte dos replicadores vive em “robôs”
imensos, feitos de milhares de trilhões de células. Agora os chamamos de genes, e eles estão
dentro de nós. Somos sua máquina de sobrevivência.
O sentido da vida
Genes mutantes e as pressões da seleção natural fizeram essa obra esplêndida que você vê
no espelho todas as manhãs. uma caminhada e tanto. Mas uma coisa não mudou desde os
tempos da primeira molécula replicadora. Aquele objetivo irracional continua intacto: tudo
o que os genes querem é fazer cópias de si mesmos. Foi para isso que eles criaram nosso
corpo e nossa mente. E agora nos comandam lá de dentro, por controle remoto, para que
trabalhemos em nome de sua preservação. A razão da existência? Lutar para que os genes
façam cópias deles mesmos do melhor jeito possível.
E, para os neodarwinistas, esse egoísmo dos genes é a chave para descobrir como a nossa
mente funciona. O próprio Darwin tinha escrito, no final de A Origem das Espécies: “Agora
a psicologia se assentará sobre um novo alicerce”. Demorou, mas aconteceu. uma nova
ciência da mente ganhou terreno no final do século 20. Foi a psicologia evolucionista, que
usa Darwin e a mecânica dos genes para entender o que se passa aí dentro da sua cabeça.
Premissa número 1 dessa ciência: a mente já nasce quase pronta. Ela não é uma folha em
branco, em que qualquer coisa pode ser “escrita”, como muitos filósofos e cientistas sociais
defendem. Do ponto de vista da psicologia evolucionista, não faz sentido dizer que a cultura
molda o nosso comportamento. Ela afirma que sua mente foi forjada ao longo de toda a
evolução. E que você vem ao mundo com todos os “softwares” instalados no “hardware” da
sua cabeça. Seus desejos, sua personalidade e tudo o mais dependem desses programas
mentais. Nossa margem de manobra é pequena. E tem outra: a mente humana ganhou os
softwares que tem hoje nos últimos 200 mil anos, quando nossa espécie, o Homo sapiens,
veio ao mundo. Passamos 97% desse tempo em bandos nômades, que viviam da caça e da
coleta. Nossa mente, então, não passa de uma ferramenta da Idade da Pedra tentando se virar
num mundo que não existe mais. Do ponto de vista dos nossos genes, ainda estamos no
Paleolítico, uma época sem faculdade, carreira, dinheiro ou anticoncepcionais. uma época
em que só duas coisas realmente contavam:
S exo e violência
Se ainda sobrou alguma coisa que você queria saber sobre sexo, mas não tinha coragem de
perguntar, talvez a resposta dos evolucionistas sirva: ele é a forma que os genes arrumaram
para melhorar as defesas da sua máquina de sobrevivência. Por exemplo: se você tem um
sistema imunológico que não sabe se defender de algum vírus, e tudo o que você sabe fazer
para se reproduzir são cópias de si mesmo, como aquelas primeiras células, seus rebentos
vão ter esse problema. E o clã inteiro vai morrer no caso de um ataque.
Agora, se você combina seus genes com o de um ser imune ao tal vírus, a história é outra:
teoricamente, só uma parte do clã morreria. E o resto continuaria passando seus genes
adiante como se nada tivesse acontecido.
Ao criar esse tipo inovador de reprodução, a seleção natural tratou de dividir o trabalho
entre dois tipos de funcionários especializados. um teria a função de tentar pôr seus genes
em qualquer máquina de sobrevivência que cruzasse seu caminho. O outro selecionaria entre
esses primeiros quais têm os melhores genes para compartilhar, e cuidaria da cria que os
dois tivessem juntos. Em outras palavras, o mundo se dividia entre machos e fêmeas (em
algumas espécies, os papéis se invertem: os filhotes ficam a cargo dos machos, então eles é
que são os mais paquerados).
Enfim, ao ganhar o poder de decidir quais machos terão filhos e quais ficarão na
prateleira, as fêmeas assumiram o controle da evolução na maioria das espécies. E, para a
psicologia evolutiva, é isso que determina aquilo que mais importa na vida: a propagação
dos nossos genes, coisa também conhecida como vida afetiva e sexual.
O sexo, hoje, tem pouca relação com o ato de fazer filhos. Você sabe. Nenhum adolescente
pensa em engravidar dez meninas quando vai viajar para o Carnaval. Mas os genes dele não
fazem ideia de que existem camisinhas e tudo o mais, então deixam o rapaz com vontade de
transar com dez garotas e pronto. Se tudo der certo, esses genes poderão instalar-se no útero
de um monte de meninas e construir um monte de bebês (várias máquinas de sobrevivência
novinhas em folha!).
Do ponto de vista das fêmeas, a história é outra: transar com dez sujeitos num feriado não
vai “render” dez filhos para os genes dela se instalarem. Vai dar é uma baita dor de cabeça.
Os contraceptivos poderiam deixá-las livres para fazer sexo só pelo prazer com um monte
de seres do sexo oposto, como qualquer homem faz (ou tenta fazer). Mas não. O cérebro
delas evoluiu para selecionar os melhores parceiros, ter poucos (e bons) filhos, não para
tentar a sorte com qualquer um. Sem falar que, do tempo dos nossos ancestrais caçadores-
coletores até o século 20, sexo casual para elas era correr o risco de acabar com um bebê
indesejado. Aí não tem ideologia liberal nem pílula que dê conta de superar esse “trauma”
evolutivo.
Psicólogos da universidade Stanford, nos EUA, checaram isso com uma experiência
simples. Contrataram homens e mulheres atraentes para abordar estudantes e dizer: “Você
gostaria de ir para a cama comigo hoje?” Nenhuma mulher aceitou. Já as garotas tiveram
resultados melhores: 75% dos homens toparam no ato. Dos 25% restantes, a maioria pediu
desculpas, explicando que tinha marcado de sair com a namorada. Pois é: do ponto de vista
da seleção natural, uma bela fêmea disponível é um bem valioso demais para ser
desperdiçado. Nenhum homem se surpreende com isso (o pessoal da obra não está só
brincando quando diz “ô, lá em casa!”), mas para as mulheres a verdade da psicologia
evolucionista pode soar assustadora: “O desejo de variedade sexual nos homens é
insaciável. Quanto maior for o número de mulheres com quem um homem tiver relações,
mais filhos ele terá (pelo menos é o que ‘pensam’ os genes). Então demais nunca é o
bastante”, escreveu outro guru do neodarwinismo, o psicólogo Steven Pinker, da
universidade Harvard, nos EUA.
Esse apetite todo também ajuda a explicar as raízes de outro comportamento ancestral: a
violência. Os despojos de guerra mais comuns nos conflitos tribais sempre foram as
mulheres. Não é à toa que uma das lendas sobre a fundação de roma, que aconteceu no
século 8 a.C., celebra o dia em que os primeiros romanos atacaram uma tribo vizinha, a dos
sabinos, e raptaram as mulheres deles para começar sua civilização. Não dá para não dizer
que deu certo.
E esse é o ponto: às vezes a violência é, sim, o melhor jeito de conseguir alguma coisa.
Então não há mistério para a psicologia evolucionista: como a violência funcionou ao longo
da história, está impregnada nos nossos genes. “Os bebês só não matam uns aos outros
porque não lhes damos acesso a facas e revólveres”, disse o pediatra e psicólogo richard
Tremblay, da universidade de Montreal, em uma entrevista à revista americana Science. A
grande questão, ele completa, não é como as crianças aprendem a agredir, mas como elas
aprendem a não fazer isso.
Intrigante, mas o psicólogo evolucionista Eduardo Ottoni, da USP, tem a resposta na ponta
da língua: “A coisa mais complicada na vida de um primata é a capacidade de se virar em
sociedades complexas. E se dar bem socialmente não é dar bifa em todo mundo”. Então nada
melhor que um pouco de altruísmo com alguns para ficar bonito na foto. Os morcegos que o
digam: entre as espécies que se alimentam de sangue, a vida não é fácil. Nem sempre dá para
voltar pra caverna com o almoço na barriga. Mas os que conseguiram sangue durante o dia
dão uma força aos malsucedidos, oferecendo a eles o sangue que sobrou na boca. Mas não
tem conversa: quem não retribuir a oferta quando a situação for inversa fica com a reputação
manchada e é banido do almoço grátis.
Mas em alguns casos somos altruístas sem querer nada em troca, nem inconscientemente.
Isso acontece quando se trata das nossas famílias. E é aí que, para os neodarwinistas, fica
mais clara a forma como os genes nos dominam.
S angue do meu sangue
Você é uma máquina de sobrevivência dos seus genes, que o usam para se reproduzir. Ok.
Mas o que aconteceria se esses genes tivessem construído um cérebro capaz de detectar
cópias deles em outro corpo? O seguinte: eles também lutariam pela sobrevivência desse
corpo. Fariam você se sentir aliviado com bem-estar dele.
O fato é que os genes construíram esse sistema de detecção. Todos os cérebros têm isso
em algum grau. E o altruísmo puro é exatamente o que acontece quando dois animais são
parentes próximos.
Existe uma chance em duas de que qualquer um dos seus genes esteja no seu irmão ou no
seu filho. E uma em oito de que esteja em um primo. Sendo assim, o que o neodarwinismo
diz é: você não “ama” seus filhos e irmãos. São seus genes que veem neles maneiras de se
perpetuar. E é por isso que você os ajuda. O geneticista John Haldane (1892-1964), um dos
pioneiros do neodarwinismo, quis deixar isso claro quando lhe perguntaram se ele daria a
vida por um irmão. A resposta: “Não. Mas daria por dois irmãos ou oito primos”.
O mesmo vale para quando nos apaixonamos. Se você ama alguém, quer ter filhos com
essa pessoa, quer colocar seus replicadores ali e se esfolar para cuidar dos rebentos. Aí,
para o futuro dos genes, sua vida só faz sentido se aquela pessoa existir. E o sentimento é tão
poderoso que parece eterno enquanto dura.
Outra coisa que determina a hierarquia entre parentes é a expectativa de que eles se
reproduzam. Daí os pais se sacrificarem mais pelos filhos do que os filhos pelos pais.
responda rápido: se você tivesse que decidir entre a morte de 20 estranhos e a vida do seu
filho, ficaria com qual opção? Ou melhor: existe algum número de pessoas que valha a vida
de um filho? Para a psicologia evolucionista, não. Para o Zé Mané do boteco e a dona
Cleide da quitanda, também não. O egoísmo dos genes aí dentro é maior do que tudo o que
tem do lado de fora.
A evolução do Universo
Falando em lado de fora, e o lado de fora? A evolução seria um fenômeno circunscrito à
vida na Terra ou algo universal, como as leis da física? O físico Lee Smolin, do Perimeter
Institute, no Canadá, fica com a opção número dois.
Smolin mandou as regras de Darwin para o espaço. Literalmente: criou uma teoria que
aplica a seleção natural ao universo inteiro. E foi além. Para ele (e outros físicos), nosso
universo é só mais um entre bilhões e bilhões. Todos juntos num Cosmos imensurável que
podemos chamar de Multiverso. Nesse cenário, os universos são os indivíduos, os
replicadores. Cada um lutando para fazer mais e mais cópias de si mesmo.
Bom, este universo aqui começou quando toda matéria, tempo e espaço que conhecemos
estavam espremidos em algo infinitamente pequeno. Esse pontinho explodiu no “dia” do Big
Bang, há 13,7 bilhões de anos, e agora estamos aqui. Mas tem uma coisa: existem alguns
lugares no universo em que tudo também está espremido desse jeito agora mesmo. São os
buracos negros, que sugam tudo o que está à volta deles, inclusive tempo e espaço. Por isso,
Smolin imagina que dentro de cada buraco negro há um Big Bang acontecendo. E os buracos
seriam como “gametas” cósmicos: dariam à luz novos universos, parecidos com o “pai”.
Então Smolin considera que as “espécies” mais bem-sucedidas no Multiverso são justamente
as que produzem mais buracos negros – a “prole” delas vai ser seguramente maior.
Lembre-se que buracos negros são estrelas mortas. E daí? Daí que, quanto maior for o
número de estrelas, maior vai ser o de “ga-metas”. Mais: as nuvens de matéria onde as
estrelas nascem precisam ser bem frias (por motivos que só teríamos como explicar com
uma página inteira, e bem chata). Bom, e sabe que tipo de coisa é o que há de melhor para
esfriar essas nuvens cósmicas? Moléculas de carbono. Elas mesmas, as que deram o pontapé
inicial na vida por aqui. Quanto mais delas houver por aí, mais “filhos” um universo vai
gerar. E nós, os descendentes dessas moléculas, seríamos um mero subproduto da verdadeira
seleção natural, a do Cosmos. Parece desolador, mas, se for isso mesmo, podemos nos
orgulhar de saber que as leis de Darwin governam tudo isso.
Ou até mais do que isso. Baruch Spinoza, um filósofo holandês do século 17, defendia que
Deus e universo são apenas dois nomes para uma coisa só; que o Criador não é exatamente
um criador, mas a grande regra que move o Cosmos. Se você gosta desse ponto de vista
(Albert Einstein gostava), pode dizer tranquilamente: Charles Darwin não matou Deus. Só
descobriu onde ele estava.
viemos
EM DUAS OCASIÕES NA
HISTÓRIA DO COSMOS, A
MATÉRIA QUE COMPÕE O SEU
CORPO ESTEVE REUNIDA NO
MESMO LUGAR - NO BIG-BANG
E AGORA. SAIBA COMO SAÍMOS
DE LÁ E VIEMOS PARAR AQUI.
gora, enquanto você lê esta revista, uma incrível coincidência está acontecendo. Pela
segunda vez na história do universo, esse exato conteúdo de partículas e
A subpartículas, matéria e energia, que você costuma chamar de “eu” está reunido
exatamente no mesmo lugar do espaço.
A primeira vez foi há 13,7 bilhões de anos. E a organização de todos esses
elementos que faziam parte de você era bem diferente. Na verdade, tudo estava na
forma de energia – e misturado a todas as outras coisas que existem no universo. Eu, você e
esta revista éramos a mesma coisa, condensados num amontoado absurdamente denso de
energia. Tudo bem apertado, concentrado num espaço mínimo – esse foi o instante
imediatamente após o Big Bang.
A grande explosão que deu origem a tudo não aconteceu num determinado lugar. rolou
aqui, ali e em toda parte. É que todos os lugares também estavam espremidos num ponto
bilhões de vezes menor que uma cabeça de alfinete. E lá estávamos nós, embaralhados num
mar de energia explosiva. Logo, com todo esse amontoado, o universo trataria de acabar
com isso e nos espalhar para todos os lugares possíveis – mas não sem antes ampliar todos
os lugares possíveis.
Até que pudéssemos assumir nossa forma atual, uma longa jornada teria de ser percorrida.
Essa é a história que você vai ler nas próximas páginas. A sua história, do Big Bang até
agora.
Bem, se tivéssemos de resumir em uma única palavra tudo que sabemos sobre o instante
inicial do universo, escolheríamos esta: nada. É como disse o astrofísico americano Carl
Sagan sobre o Big Bang: “Por que ele aconteceu é o maior mistério que se conhece. Mas o
fato de ter acontecido é razoavelmente claro”. Quer dizer: sabemos com razoável precisão
que, cerca de 13,7 bilhões de anos atrás, aquela microcabeça de alfinete começou a crescer.
Nisso o universo foi se diluindo. E uma parte daquela sopa de energia onde você estava
esfriou, assumindo uma forma mais familiar: a de matéria.
Essas primeiras partículas de matéria de que se tem notícia foram batizadas de quarks. No
universo atual, elas não existem soltas, porque outras partículas, chamadas de glúons,
impedem que elas vivam sua vida independentemente – os glúons são o superbonder da
matéria.
O universo, porém, ainda fervia. Era tão quente por lá que quarks e glúons se agitavam
como pipoca na panela, e não existiam misturados. Viviam separados num estado chamado
de plasma de quark-glúon, que chegou a ser criado por um pentelhésimo de segundo num
acelerador de partículas do Laboratório Nacional Brookhaven, EUA, em 2005. Isso nos deu
uma boa pista do que foi essa época. E do que viria depois.
Conforme o universo foi se resfriando, os quarks e os glúons começaram a se entender.
Então os primeiros começaram a se reunir, em trios, para formar os muito mais conhecidos
prótons e nêutrons.
Tudo isso aconteceu em mais ou menos 10 milésimos de 1 milésimo de segundo. A essa
altura, você já era um amálgama de prótons e nêutrons, misturados de uma forma indistinta –
nada que realmente desse para chamar de “eu”. Mas era um belo começo. E o próximo passo
era juntar esses prótons, nêutrons e elétrons na forma de átomos.
Tenha em mente que, durante todo o processo, o universo continuava a se resfriar e a se
diluir (coisa que ele está fazendo até hoje). Cem segundos depois do Big Bang, então,
quando o Cosmos atingiu uma temperatura mais amena (de mais ou menos 10 milhões de
graus Celsius), essa brincadeira de colar prótons, nêutrons e elétrons passou a ser possível.
Surgiam os primeiros átomos. Primeiro, os de hidrogênio – forma atômica mais simples,
composta de um próton, solitário ou acompanhado por um ou dois nêutrons. E, rodopiando
em volta dele, um elétron (outra partícula que, como o quark, nasceu um pouco depois da
grande explosão).
Depois disso, já com um belo estoque de hidrogênio em mãos, o Cosmos passou a colar
esses átomos uns nos outros para formar o segundo elemento mais simples, o hélio, com dois
prótons e um ou dois nêutrons no núcleo. Em seguida deu para formar mais um pouquinho de
lítio, o terceiro elemento, mas aí o universo ficou frio demais para seguir com esse processo
de fusão nuclear. Saldo final: 300 segundos após o Big Bang, o Cosmos tinha 75% de
hidrogênio, 25% de hélio e umas pitadinhas de nada de lítio.
A última milha
Um universo eternamente composto só de hidrogênio e hélio ia ser bem sem graça. Não dá
para criar vida (leia-se “você”) com esses elementos. Então, o Cosmos precisou dar um
jeito. Ele criou as estrelas – pequenas fábricas de novos elementos.
A melhor forma de imaginar uma estrela é pensar numa imensa bola de gás, feita
basicamente de hidrogênio, com umas pitadas de hélio. Ela surge a partir de nuvens gasosas,
que deviam ser bem abundantes logo no início do universo.
Cabe à gravidade transformar as nuvens difusas em bolas compactas. E a força
gravitacional exagera na dose, de modo que o astro recém-nascido se torna muito, muito
denso. A pressão no interior dele atinge um ponto que leva os átomos de hidrogênio a grudar
uns nos outros, formando mais hélio. Esse processo de fusão nuclear produz muita energia, e
é isso que faz a estrela brilhar. Mas, se a função primordial da estrela é formar hélio a partir
de hidrogênio, então qual é a diferença entre uma estrela e aquele cenário pouco após o Big
Bang? Bem, a vantagem da estrela é que ela não está se diluindo a passos largos, como todo
o universo do lado de fora – assim o processo de fusão pode seguir por milhões (ou bilhões)
de anos.
Apertada pela gravidade, a estrela passa muito tempo fabricando hélio. O mais
interessante, no entanto, é o que acontece a seguir. Quando o hidrogênio no núcleo estelar se
esgota, ele se comprime mais, e a pressão se torna suficiente para usar o hélio como
matériaprima para a criação de elementos ainda mais pesados. Foi assim que nasceram os
átomos grandes, com muitos prótons no núcleo, como o oxigênio e o carbono.
Claro, de nada adianta ter todas essas pequenas joias da vida (o oxigênio, com o
hidrogênio, forma a água, e o carbono, por sua vez, é a base para todas as moléculas
complexas ligadas ao metabolismo biológico) se elas estão inacessíveis, trancafiadas no
núcleo de uma estrela.
Felizmente para nós, o universo tinha mais uma carta na manga: chega um momento em que
o centro da estrela se comprime tanto que ela não aguenta mais. E dá sua estrebuchada final:
o núcleo colapsa por conta do próprio peso e, num efeito rebote, o astro explode
violentamente, expulsando suas camadas superiores. Esse fenômeno, que chamamos de
supernova, espalha elementos pesados (a matéria-prima da gente) pelo espaço. Quer dizer:
cada pedacinho que agora forma o seu corpo foi forjado dentro de várias supernovas
universo afora.
Bom, essa mesma gravidade que, mais hora, menos hora, mata as estrelas também agiu em
escalas maiores, reunindo enxames estelares em galáxias, e essas galáxias em aglomerados,
e os aglomerados em superaglomerados, deixando o universo parecido com uma teia de
aranha... mas essa é uma outra história. Estamos aqui para dizer como você veio parar onde
está agora, então vamos, sem mais delongas, prosseguir em nosso caminho.
Até este momento falamos de apenas 1 bilhão de anos após o Big Bang. As galáxias já
existem, as primeiras estrelas já explodiram em supernovas, e o Cosmos está ficando cada
vez mais rico em átomos complexos. Concentremo-nos então numa única galáxia espiral, que
hoje convencionamos chamar de Via Láctea. Avançando a fita mais 8 bilhões de anos, vamos
descobrir que, na periferia dessa estrutura, uma nova estrela está se formando a partir de
uma nuvem de gás. Era uma nuvem tênue para os padrões cósmicos, sem muita massa.
resultado: a estrela não se agigantou tanto, e o resultado foi um astro medíocre – de porte
médio para pequeno. Esse foi o nada emocionante nascimento do Sol.
Ao redor dele, um disco composto de gás e poeira, já devidamente enriquecido com
elementos pesados, acabou produzindo oito bolotas mais parrudas que hoje chamamos de
planetas. É numa dessas bolotas, a terceira a contar do Sol, que a nossa história deu outro
grande salto: fomos promovidos de poeira estelar a formas de vida.
Só que não foi fácil. A própria Terra não era nem de longe o lugar agradável que é hoje.
Nosso primeiro bilhão de anos foi marcado por surras memoráveis – o sistema solar recém-
nascido tinha muito mais sujeira, e vira e mexe algum asteroide trombava aqui. um desses
choques, para você sentir o drama, foi com um objeto do tamanho de Marte. A pancada foi
tão violenta que jogou bilhões de toneladas de matéria na órbita terrestre. A gravidade logo
reuniria esses destroços numa bola de pedra com 1/4 do tamanho da Terra. Uma bola que
agora chamamos de Lua, a maior testemunha daqueles tempos turbulentos.
A despeito dessa fase hostil de pancadaria cósmica, que durou até mais ou menos 3,9
bilhões de anos atrás (ou quase 10 bilhões de anos após o Big Bang), a Terra foi um planeta
que deu sorte, pois nasceu no lugar certo. Por sua distância do Sol, é um mundo que não fica
nem muito frio nem muito quente. Isso quer dizer que uma substância muito especial,
chamada água, pode existir numa forma muito especial, o estado líquido. Por causa disso,
nosso planeta foi contemplado com as condições de preparar o grande sopão que daria
origem à vida. Mas, para cozinhar seres vivos, não basta uma sopa qualquer – é preciso uma
sopa de letrinhas.
P áginas da vida
Até o começo do século 20, o consenso científico era simples: as formas de vida eram
compostas de algo diferente da matéria inanimada – algo especial, único, capaz de as
tornar... bem, vivas. Hoje sabemos que não é assim. Na verdade, somos feitos dos
mesmíssimos átomos que todo o resto. A diferença está na combinação desses átomos e na
complexidade dessas relações. As formas de vida são baseadas em famílias de moléculas
muito complicadas – algumas delas tão incríveis que nenhuma reação de laboratório
consegue sintetizar. Mas, evidentemente, nada pode ter começado tão complicado assim.
Ainda não há certeza absoluta de como algumas substâncias inanimadas de repente se
rearranjaram para produzir coisas vivas, mas a maioria dos cientistas acredita que tudo
começou com apenas um tipo de molécula.
Vocês ainda não se conhecem? Então vamos apresentá-la de uma vez. RNA, leitor; leitor,
RNA.
Tudo bem se você não se lembrar de ter ouvido falar nessa molécula. O RNA é um primo
pobre do DNA. Ele serve ao mesmo propósito que seu parente mais conhecido (ou seja,
armazenar os genes, as “receitas” químicas que fazem o grosso do trabalho na hora de tornar
você o que você é) e o faz mais ou menos do mesmo jeito (com letrinhas químicas que
formam a “linguagem” da vida).
Em compensação, o RNA é bem menos estável e resistente, o que faz dele uma opção hoje
pouco privilegiada pelos seres vivos para armazenar sua biblioteca genética. Atualmente, o
DNA é o rei.
Agora, como toda estrela que se preze, o DNA não se digna a fazer muito mais coisa além
de ser o glorioso repositório da informação genética, o sensacional “livro da vida”. Para
que ele realize toda essa magia hollywoodiana, um exército de outras moléculas, as
proteínas, trabalha duro para ele.
Problema: como é extremamente improvável que elas tenham surgido sozinhas e, então,
num momento sublime, se juntado com o DNA para formar a primeira célula viva, os
cientistas acreditam que coube ao RNA iniciar a coisa toda.
Pobre, mas extremamente trabalhador, o RNA consegue, além de fazer o trabalho de
armazenar genes, executar algumas funções mais simples, que normalmente seriam atribuídas
a outras substâncias – como se reproduzir, coisa essencial para que algo possa ser
considerado vivo. Por seu caráter “faz-tudo”, o RNA seria a molécula mais indicada para
iniciar o processo da vida.
Uma vez iniciada, ela estaria sujeita às regras da seleção natural – e uma das coisas de
que ela mais gosta é de especialização, em nome da eficiência. Moléculas especializadas
fazem melhor seus trabalhos do que moléculas faz-tudo.
Com essa mudança no mercado de trabalho, o RNA perdeu espaço. Surgiram proteínas
que faziam certas atividades melhor do que ele, e seu primo DNA armazenava os genes com
mais segurança. Nesse admirável mundo novo, o RNA acabou relegado a subempregos.
Fazendo bicos em várias partes da célula, ele hoje serve, entre outras coisas, como motoboy
do DNA, levando pedaços de genes que precisam ser lidos e transformados em proteínas em
outros lugares da célula. Mas não fique com dó. A história de decadência do RNA fez parte
da evolução da vida, que, com seu aumento crescente de especialização e complexidade,
ainda produziria outros fenômenos.
Revolução das células
Tudo que vive hoje é resultado de uma única molécula de DNA, que surgiu naquele ambiente
de 4 bilhões de anos atrás e se mostrou eficiente a ponto de superar qualquer concorrência
que possa ter surgido na época. Você, sua samambaia e as bactérias que vivem no seu
intestino são todos parentes, filhos dessa criatura.
Essa grande mãe, veja só, produziu filhos tão diferentes por uma razão pouco nobre: um
defeito de fabricação. Seu sistema de cópia do código genético de uma geração para outra
tem falhas. Sempre surge alguma mudança na sopa de letrinhas do DNA. E elas vão se
acumulando, até que, em alguns milhares de gerações, uma forma de vida pode dar origem a
outras, bem diferentes. Se a transformação for para melhor (ou seja, ajudar o organismo a se
replicar), ela é mantida. Se for para pior, termina apagada, numa linhagem condenada ao
esquecimento. E assim caminhou a evolução. Só que em marcha lenta.
Por dois longos e tediosos bilhões de anos, tudo que vimos na Terra foi uma sequência
interminável de replicações de criaturas unicelulares, disputando para ver quem era melhor
na arte da sobrevivência.
Então, cerca de 1,2 bilhão de anos atrás, algo revolucionário aconteceu. Algumas dessas
células individuais descobriram que, se vivessem em conjunto, teriam mais chances de bater
a concorrência. De início, formaram apenas colônias de células, mas logo a evolução tornou
esse vínculo mais permanente, dando funções especializadas a cada uma das células. Seu
próprio corpo é uma cooperativa formada por 10 mil trilhões delas. Mas a mais violenta
explosão da vida teria de esperar mais uns 600 milhões de anos para acontecer. Aí é que,
literalmente, o bicho iria pegar.
O milagre da multiplicação
A partir de 540 milhões de anos atrás, a vida tomou conta do planeta, se multiplicando como
nunca pelos oceanos. O que ninguém sabe é por quê. A única certeza é que nada disso teria
acontecido se, ao longo dos bilhões de anos anteriores, algumas criaturas não tivessem
desenvolvido uma tecnologia crucial para o surgimento da vida complexa: a fotossíntese.
Ao converter luz do Sol e gás carbônico em alimento, as criaturas que fazem fotossíntese
desenvolveram uma maneira sustentável de viver (luz solar não ia faltar por aqui). Só que o
mais importante é outra coisa: a fotossíntese gera moléculas de oxigênio (o O2).
A graça do oxigênio é que ele produz bastante energia. Quanto mais O2 tivesse na
atmosfera, então, mais as portas estariam abertas para animais de grande porte, como nós,
que consumimos trilhões de vezes mais energia que um ser unicelular. usando o oxigênio
como combustível, a vida cresceu. E, há 230 milhões de anos, essa mania de tornar as coisas
grandes fez surgir os dinossauros – criaturas a meio caminho entre os répteis e as aves, que
dominaram a Terra até um asteroide gigante se chocar com o planeta, há 65 milhões de anos,
e acabar com a festa deles.
A essa altura, os primatas já estavam se desenvolvendo, ainda que fossem bem
pequenininhos e vivessem na sombra dos dinos. um longo caminho de evolução fez com que
algumas dessas criaturas perdessem força, mas, para compensar, ganhassem em inteligência.
Cerca de 2,5 milhões de anos atrás, surgiu o primeiro membro da família humana – o Homo
habilis. Baixinho, atarracado, burro feito uma porta pelos padrões de hoje, mas já capaz de
produzir ferramentas e pregar peças em espécies mais fortes.
A linhagem exata que sai do Homo habilis e chega até nós, o Homo sapiens, não está
clara (e os antropólogos adoram brincar de escravos-de-Jó com as peças desse quebra-
cabeça), mas o que sabemos com certeza é que, na África, cerca de 180 mil anos atrás,
apareceram os primeiros seres humanos anatomicamente modernos – mais ou menos como
você. De lá, eles se espalharam pelos continentes.
Se tirarmos uma média de quanto dura cada geração humana (20 anos), é fácil calcular
que a nossa distância genealógica para esses nossos ancestrais pioneiros é de umas 9 mil
gerações. Pode parecer muito nesse contexto, mas, revisando a história toda que acabamos
de contar, é uma quantidade ínfima de tempo. uma analogia ajuda a explicar isso.
Imagine que a história do universo até hoje seja uma partida de futebol, com seus dois
tempos de 45 minutos. O surgimento do Sol e da Terra só se daria aos 14 minutos do segundo
tempo. O surgimento da vida ocorreria aos 20 do segundo tempo, e a vida complexa quase
aos 37. A explosão do Cambriano viria aos 40. Os dinossauros surgiriam aos 43 e meio, e
morreriam um minuto depois. O Homo habilis surgiria faltando 8 décimos de segundo para o
apito final, e o Homo sapiens entrou em campo com apenas 8 centésimos de segundo de bola
ainda por rolar.
Quase nada, mas o suficiente para que a nossa espécie descobrisse de onde ela e todo o
resto vieram. Hoje sabemos que o presente é só um piscar de olhos num universo que muda o
tempo todo. Mas e agora? Para onde vamos?
a sair
apaga a luz
A CIÊNCIA JÁ SABE DE ONDE
VIEMOS. MAS PARA ONDE
VAMOS? ONDE O UNIVERSO VAI
PARAR? QUEM VIVER NÃO VERÁ.
O BREU VAI SER TOTAL.
ocê nunca brincou de colocar uma concha no ouvido e ficar curtindo o barulho do mar,
as ondas, a calmaria? Hoje seria bem mais realista colocar seu iPod no ouvido – e no
V volume máximo. Isso, sim, se aproxima do som que o oceano produz para boa parte
das criaturas que vivem dentro dele. Um navio de carga emite, pelo estouro das
bolhas que seus propulsores criam na água, ruídos de 150 a 195 decibéis. É mais do
que uma britadeira (120 decibéis) ou um iPod no talo (114 decibéis). Imagine então o
barulho produzido por 100 mil cargueiros que cruzam os mares durante o ano inteiro!
Qual o problema disso? É que os animais marinhos usam a audição para quase tudo – para
encontrar o lugar de procriação, o parceiro sexual, a comida. E o mar virou uma linha
cruzada dos diabos. Cientistas concluíram que a baleia-azul está ficando surda – escuta a
distâncias até 90% menores do que antes. Já a orca está precisando gritar – produzir cantos
mais longos para se fazer ouvir. Outras baleias aparecem mortas nas praias após testes
militares com sonares caça-submarinos – seus 235 decibéis causam hemorragia nos ouvidos
e nos olhos dos animais.
Os oceanos são 70% da superfície do planeta. Em volume, representam muito mais que
isso. E sempre o vimos como uma vastidão infinita e onipotente. Mas não poderíamos estar
mais enganados. Segundo a ONU, os mares estão em ruínas porque pescamos demais,
produzimos lixo, gases do efeito estufa e esgoto demais, e bagunçamos os ecossistemas.
Pior: nem fazemos ideia do que está acontecendo lá embaixo em consequência disso.
Ultimamente, aprendemos a pensar que o oceano está trasbordando de tanta água. Mas está
acontecendo o contrário: ele está esvaziando, perdendo vida.
O atum-azul não é um peixe qualquer. É o peixe. Primeiro, porque ele tem sangue
quente, o que lhe permite cruzar os mares do Ártico aos trópicos. Sua arrancada ao
caçar ou fugir é mais potente que a de um Porsche. Um atum-azul pode pesar o mesmo
que um cavalo (500 quilos) e render 10 mil cortes do sashimi mais suculento e caro do
mundo. É por isso que, enquanto cardumes deles nadam pelo Mediterrâneo,
superpesqueiros rondam à sua caça, com a ajuda de sonares e de aviões localizadores.
O navio que chegar primeiro e fechar a rede de cerco em volta dos bichos leva o
prêmio. E leva para o Japão, país que captura 25% dos atuns-azuis dos oceanos. No
maior mercadão de peixes do planeta, o Tsukiji, em Tóquio, um desses peixes é
leiloado por até US$ 25 mil. Os que são pescados pequenos ficam enjaulados em
fazendas de engorda nas costas de países como Espanha, Itália e Turquia. Passam meses
sendo alimentados com peixes gordurosos e depois são abatidos a tiros – isso mesmo, a
tiros. Então seguem seu caminho rumo ao desaparecimento e às mesas dos aficionados
por sushis. (Um detalhe para você se tranquilizar um pouco: o atum que comemos no
Brasil não é dessa espécie.)
A saga do atum-azul começou na década de 1990, depois que a flotilha japonesa reduziu
os estoques do Pacífico a 6% da população original. Em dez anos de pesca no Mediterrâneo,
já o levamos ao risco de extinção. Como pudemos ser tão eficientes em dizimá-lo?
Basicamente, lançamos mais de 1.500 navios pesqueiros high-tech ao mar, sacamos dali três
vezes mais atuns do que o limite para que a espécie se recomponha e turbinamos tudo isso
com subsídios da União Europeia. Empresas gigantes do setor, da Espanha, da França e do
Japão, dividem um mercado que movimenta US$ 400 milhões ao ano. Na Itália, até a máfia
se meteu na caça ao atum. Ela ajuda a colocar aviões localizadores clandestinos nos ares da
Líbia e da Argélia em junho, quando a pesca está proibida para dar alguma chance às fêmeas
em período reprodutivo.
A má notícia é que a trajetória do atum não é única. Já estamos repetindo essa lógica há
mais de um século nos oceanos, e com muito mais tecnologia nos últimos 50 anos. Em Grand
Banks, a leste do Canadá, reduzimos o bacalhau do tipo cod a 1% da população original. O
blue skate, uma arraia que figura no fish’n’chips, prato típico inglês, sumiu do mar do Norte.
O alabote do Atlântico entrou em colapso ainda no século 19. E do esturjão do mar Cáspio –
cujas ovas são o caríssimo caviar –, só sobraram 10%. Nossa indústria hoje, quando entra
em uma nova área de exploração, tem bala para arrasar uma espécie comercial em dez ou 15
anos. Nesse ritmo, podemos chegar ao colapso de todas as áreas de pesca do planeta em
2048 (hoje, já inutilizamos ou pescamos além do sustentável em 76% dessas regiões – no
Brasil, sobe para 80%, segundo relatório recente do Greenpeace).
Essas projeções são parte dos estudos estatísticos de uma década de Boris Worm,
professor de conservação marinha da Universidade de Dalhousie, no Canadá. Junto com
outros cientistas, ele estimou que, das populações de grandes peixes que nadavam em nossos
mares em 1900, podem ter sobrado só 10%. O pesquisador Callum Roberts, da
Universidade de York, na Inglaterra, autor do livro The Unnatural History of the Sea (“A
História Não Natural do Mar”, sem edição em português), alerta para outro problema grave:
estima-se que um quarto a um terço de criaturas marinhas seja capturado acidentalmente a
cada pesca de arrasto e jogado de volta ao mar, já morto ou morrendo. A ONU vem tentando,
sem sucesso, tornar o arrasto ilegal em alto-mar. “O arrasto é um meio muito rentável de
pegar peixes, camarões, lagostas. Duvido que ele vá acabar”, diz Worm.
O que também não deve acabar é outra burrada na gestão de nossos recursos marítimos: a
pesca fantasma. Quando uma rede é perdida no mar, ela continua pescando sozinha, só que
para ninguém comer. Vai afundando e carregando peixes e crustáceos, até ficar cheia e
aterrissar no fundo. “Alguns jogam bolas de redes velhas ao mar para atrair atuns e não
recolhem de volta”, diz o cientista Charles Moore, criador da Fundação Algalita de Pesquisa
Marinha, instituto californiano que se dedica a medir os impactos do lixo plástico nos
oceanos. “As redes fantasmas matam 100 mil mamíferos marinhos por ano só no Pacífico
Norte”, afirma Moore.
Se desgraça pouca é bobagem, o que podemos esperar de impactos no dia a dia? No
mínimo, uma mudança de dieta. Você já comeu água-viva? Bem, talvez daqui a 50 anos você
se acostume com a ideia. No passado, os oceanos eram dominados por batalhões de
tubarões, bacalhaus e peixes-espada – predadores que comiam peixes menores e que estão
sendo dizimados. Com isso, muitos ecossistemas tiveram um boom desses peixinhos que
eram suas presas, e também de invertebrados, criaturas filtradoras e comedoras de plâncton.
São elas que estamos pescando mais hoje, segundo Daniel Pauly, cientista da Universidade
da Colúmbia Britânica, no Canadá. Depois de estudar as estatísticas de pesca entre 1950 e
1994, Pauly publicou um artigo-bomba em que afirma: “Estamos comendo hoje o que nossos
avós usavam como isca”. Ele previu que, nesse ritmo, acabaríamos almoçando águas-vivas e
jantando plâncton.
Sopão de plástico
O MAR VIROU A GRANDE LIXEIRA DO PLANETA.
PARA SUMIR COM TODO O LIXO, SÓ COMENDO.
Passageiros clandestinos
OS PORÕES DE 100 MIL NAVIOS CARGUEIROS
SÃO UMA AMEAÇA À BIODIVERSIDADE.
O tráfego naval é outro fator que está levando a biodiversidade marinha à ruína.
Noventa por cento das mercadorias comercializadas entre os países são transportadas
por navios. A frota mundial de cargueiros chega a quase 100 mil. Para os nossos
padrões rodoviários, até que não é muito: é um quinto dos carros que deixam São Paulo
rumo ao litoral num feriado prolongado. Além disso, os grandes cargueiros não
despejam na atmosfera nem metade do dióxido de carbono que os caminhões de nossas
estradas. Mas, então, por que os navios são tão ruins? Porque seu impacto ambiental
não se mede só pela poluição que ele gera, mas pela quantidade de vida que carrega.
A flotilha de cargueiros do planeta transporta, além de seus contêineres, algo entre 7 mil e
10 mil espécies de criaturas marinhas todos os dias. Algumas viajam grudadas no casco,
enquanto outras vão nadando nos 10 bilhões de toneladas de água de lastro levadas nos
porões dos navios. Estima-se que, a cada nove semanas, uma dessas espécies se instala de
vez em um ecossistema novo. E se dá muito bem por lá – o que causa uma confusão dos
infernos na comunidade local.
Uma das consequências dessas viagens clandestinas teriam sido as 10 mil mortes por
cólera na América do Sul – os primeiros casos da doença aconteceram na região dos portos,
e os vibriões podem ter viajado pela água de lastro vinda de áreas endêmicas. Nos EUA, o
problema é o mexilhão-zebra, originário de lagos da Rússia e que infestou 40% das vias
navegáveis internas do país. O bicho se reproduz vertiginosamente e se incrusta em tudo o
que é superfície dura – de cabos de internet submersos a pontes –, contamina tubulações de
água potável e entope filtros dos sistemas de arrefecimento industriais. E gerou gastos com
medidas de controle de até US$ 1 bilhão entre 1989 e 2000. Os animais marinhos também
sofrem: no Mar Negro, a água-viva filtradora Mnemiopsis leidyi se espalhou
assustadoramente, comendo os estoques de plâncton e matando de fome crustáceos e peixes.
Você deve estar se perguntando por que os navios precisam carregar essas criaturas.
Funciona assim: quando um cargueiro sai vazio ou meio cheio do porto, ele tem de
armazenar água do mar em tanques, para ter a mesma estabilidade (o chamado lastro) de
quando está com carga completa. Chegando ao porto de destino, ele esvazia os tanques
enquanto carrega as mercadorias. E essa água vem misturada a areia, pedras, mexilhões,
plâncton, peixes, bactérias, vírus. Toda a turma cabe lá dentro porque quase toda espécie
marinha tem em seu ciclo de vida uma fase planctônica, em que é minúscula.
Em 2004, uma convenção internacional da Organização Marítima Internacional (IMO, na
sigla em inglês) estabeleceu parâmetros de gerenciamento das águas de lastro para
cargueiros. Apesar de ainda não ter entrado em vigor, já induziu leis nacionais, como no
Brasil, a exigir a troca da água de lastro em alto-mar (evitando a invasão nas regiões
costeiras). Sistemas de filtração conseguem impedir a entrada de organismos maiores nos
tanques de lastro, alguns tratamentos de aquecimento da água ou supersaturação de gás
podem matar boa parte dos organismos ali dentro – mas não vírus, bactérias e protozoários.
Enfim, não existe um método totalmente eficaz de eliminação dos invasores. E nem há o que
fazer contra mexilhões e larvas que se prendem ao casco dos barcos.
Enquanto isso, a indústria naval promete dobrar sua frota até 2025. Os navios vão
promover uma globalização que vai além de uniformizar as marcas nas prateleiras dos
supermercados: a globalização dos ecossistemas submersos.
Um cemitério de corais
A CADA ANO, OS OCEANOS GANHAM
UM DESERTO DO TAMANHO DO TEXAS.
Na nossa cabeça, algumas convicções parecem sagradas: desertos são secos, recifes
de corais são coloridos e ostras têm casca grossa. Pois no mundo de ponta-cabeça das
mudanças climáticas, alguns conceitos precisam ser revistos. O primeiro contrassenso
nada tem a ver com o clima, é apenas ignorância nossa mesmo. É que o oceano sempre
teve os seus desertos. São cinco, todos em alto-mar – o maior deles no Pacífico Sul.
Assim como na terra, são lugares de pouquíssima fotossíntese, quase sem fitoplâncton,
e que por isso não abrigam muita vida. O problema é que o mundo está ganhando cada
vez mais desertos de água. Um estudo do oceanógrafo americano Jeff Polovina estimou
que, em dez anos, 6,6 milhões de km2 de área produtiva dos mares viraram desertos.
Ele usou imagens de satélites que enxergam a “cor” do oceano (preto é o deserto, azul é
mais produtivo e verde tem fitoplâncton abundante). E as manchas “pretas” se
expandiram à velocidade de um Estado do Texas por ano.
De quem é a culpa? De gases do efeito estufa. A água do mar está mais quente. Assim, “a
ressurgência (fenômeno em que as águas frias e profundas, ricas em nutrientes, sobem à
superfície) está diminuindo, porque é mais difícil para a água fria se misturar a águas
superficiais, que são quentes e leves”, explica Jeremy Jackson, um dos mais influentes
ecologistas marinhos da atualidade. Isso afeta o suprimento de nutrientes na superfície e
mata o fitoplâncton.
A segunda informação surpreendente é que a Grande Barreira de Corais australiana –
aquela pirotecnia de cores e peixes e tartarugas- marinhas, que é a única estrutura viva do
planeta que pode ser vista do espaço – está ficando branca. Ou melhor, pálida. E não só ela,
mas todos os recifes de corais da Terra. De novo, a culpa é dos mares quentes. Eles fazem os
corais sofrerem, se contraírem e começarem a sufocar as algas que vivem em simbiose
dentro deles – dando a sua cor e seu alimento. As algas então liberam toxinas para forçar o
coral a expulsá-las. Então eles ficam brancos e doentes. Se a temperatura continua quente e
há outros desequilíbrios ao redor, os corais morrem.
A terceira aberração é que as ostras, mexilhões e caranguejos podem começar a perder a
sua concha. Ou tê-la mais quebradiça. Basicamente porque o oceano absorve de 30 a 50%
do CO2 que jogamos na atmosfera, e isso reage com a água, formando ácido carbônico. Os
mares estão mais ácidos. Já perderam 0,1 unidade do seu pH, que pode cair mais 0,5 até
2100, segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Tanto ácido
pode corroer a concha de ostras, mariscos e mexilhões. O plâncton calcário também vai
sofrer, o que desequilibra cadeias alimentares inteiras – incluindo estoques pesqueiros. Por
fim, o ácido deve sequestrar os carbonatos da água, substâncias que são usadas pelos corais
para calcificar seu esqueleto.
Recifes de corais são os sistemas mais vulneráveis ao exagero da emissão de carbono na
atmosfera. Isso tem desesperado os cientistas. Corais estão para o mar como as florestas
tropicais estão para a terra: são campeões de biodiversidade. Tais como as florestas,
acredita-se que possam guardar tesouros em termos de substâncias potencialmente curadoras
de doenças. Pelo menos dois remédios largamente utilizados por humanos – o AZT, coquetel
contra o vírus da aids, e o Acyclovir, que combate o herpes – são derivados de componentes
encontrados pela primeira vez em esponjas do mar. E a possibilidade de perder de vez essas
riquezas antes mesmo de descobri-las não é pequena. “No Caribe, a cobertura viva de corais
já caiu de uma média de 55% em 1977 para 5% em 2001, enquanto as macroalgas que os
substituem aumentaram de 5 a 40%”, afirma Jackson. “Nas últimas décadas, a quantidade de
corais vivos no mundo diminuiu entre um terço e mais de dois terços”, diz o ecologista
marinho.
Enquanto não enxergarmos o que acontece nos oceanos, não vamos protegê-los. Dados da
Organização Mundial do Turismo mostram que 80% do turismo mundial se concentra no
litoral, sendo praias e recifes de corais nossos principais objetos de desejo. Talvez a
esperada viagem de mergulho a Abrolhos ou a Fernando de Noronha seja a ficha que falta
cair para percebermos que o ecossistema marinho tem um equilíbrio delicado. E que,
enquanto bagunçamos todos esses ecossistemas e fazemos pesquisas para descobrir como
reverter os estragos, os corais vão silenciosamente perdendo a cor. Os bacalhaus da região
de Grand Banks, a leste do Canadá, no Oceano Atlântico, não estão conseguindo regenerar
sua população, mesmo com o fim da pesca comercial. Mais plástico se acumula no estômago
dos albatrozes e as 175 espécies exóticas já instaladas na área que mais sofre com esse
problema no mundo – a baía de São Francisco, nos EUA – causam prejuízos bilionários. O
bom senso pede que tentemos salvar com urgência esse mundo invisível. Mas ele mostra que
não veio com manual de conserto: ninguém sabe bem o que ainda está a tempo de ser salvo.
escreveu
a Bíblia?
A HISTÓRIA DE DEUS FOI ESCRITA
PELOS HOMENS. MAS QUEM É O
AUTOR DO LIVRO MAIS INFLUENTE
DE TODOS OS TEMPOS? AS
RESPOSTAS SÃO SURPREENDENTES
E VÃO MUDAR SUA MANEIRA
DE VER AS ESCRITURAS.
m algum lugar do Oriente Médio, por volta do século 10 a.C., uma pessoa decidiu
escrever um livro. Pegou uma pena, nanquim e folhas de papiro (uma planta importada
E do Egito) e começou a contar uma história mágica, diferente de tudo o que já havia
sido escrito. Era tão forte, mas tão forte, que virou uma obsessão. Durante os mil anos
seguintes, outras pessoas continuariam reescrevendo, rasurando e compilando aquele
texto, que viria a se tornar o maior best-seller de todos os tempos: a Bíblia. Ela
apresentou uma teoria para o surgimento do homem, trouxe os fundamentos do judaísmo e do
cristianismo, influenciou o surgimento do islã, mudou a história da arte – sem a Bíblia, não
existiriam os afrescos de Michelangelo nem os quadros de Leonardo da Vinci – e nos legou
noções básicas da vida moderna, como os direitos humanos e o livre-arbítrio. Mas quem
escreveu, afinal, o livro mais importante que a humanidade já viu? Quem eram e o que
pensavam essas pessoas? Como criaram o enredo, e quem ditou a voz e o estilo de Deus? O
que está na Bíblia deve ser levado ao pé da letra, o que até hoje provoca conflitos armados?
A resposta tradicional você já conhece: segundo a tradição judaico-cristã, o autor da Bíblia
é o próprio Todo-Poderoso. E ponto final. Mas a verdade é um pouco mais complexa que
isso.
A própria Igreja admite que a revelação divina só veio até nós por meio de mãos
humanas. A palavra do Senhor é sagrada, mas foi escrita por reles mortais. Como não
sobraram vestígios nem evidências concretas da maioria deles, a chave para encontrá-los
está na própria Bíblia. Mas ela não é um simples livro: imagine as Escrituras como uma
biblioteca inteira, que guarda textos montados pelo tempo, pela história e pela fé. Aliás, o
termo “Bíblia”, que usamos no singular, vem do plural grego ta biblia ta hagia – “os livros
sagrados”. A tradição religiosa sempre sustentou que cada livro bíblico foi escrito por um
autor claramente identificável. Os cinco primeiros livros do Antigo Testamento (que no
judaísmo se chamam Torá e no catolicismo Pentateuco) teriam sido escritos pelo profeta
Moisés por volta de 1200 a.C. Os Salmos seriam obra do rei Davi, o autor de Juízes seria o
profeta Samuel, e assim por diante. Hoje, a maioria dos estudiosos acredita que os livros
sagrados foram um trabalho coletivo. E há uma boa explicação para isso.
As histórias da Bíblia derivam de lendas surgidas na chamada Terra de Canaã, que hoje
corresponde a Líbano, Palestina, Israel e pedaços da Jordânia, do Egito e da Síria. Durante
séculos, acreditouse que Canaã fora dominada pelos hebreus. Mas descobertas recentes da
arqueologia revelam que, na maior parte do tempo, Canaã não foi um Estado, mas uma terra
sem fronteiras habitada por diversos povos – os hebreus eram apenas uma entre muitas
tribos que andavam por lá. Por isso, sua cultura e seus escritos foram fortemente
influenciados por vizinhos como os cananeus, que viviam ali desde o ano 5000 a.C. E eles
não foram os únicos a influenciar as histórias do livro sagrado.
As raízes da árvore bíblica também remontam aos sumérios, antigos habitantes do atual
Iraque, que no terceiro milênio a.C. escreveram a Epopeia de Gilgamesh. Essa história,
protagonizada pelo semideus Gilgamesh, menciona uma enchente que devasta o mundo (e da
qual algumas pessoas se salvam construindo um barco). Notou semelhanças com a Bíblia e
seus textos sobre o dilúvio, a arca de Noé, o fato de Cristo ser humano e divino ao mesmo
tempo? Não é mera coincidência. “A Bíblia era uma obra aberta, com influências de muitas
culturas”, afirma o especialista em história antiga Anderson Zalewsky Vargas, da UFRGS.
Foi entre os séculos 10 e 9 a.C. que os escritores hebreus começaram a colocar essa sopa
multicultural no papel. Isso aconteceu após o reinado de Davi, que teria unificado as tribos
hebraicas num pequeno e frágil reino por volta do ano 1000 a.C. A primeira versão das
Escrituras foi redigida nessa época e corresponde à maior parte do que hoje são o Gênesis e
o Êxodo. Nesses livros, o tema principal é a relação passional (e às vezes conflituosa) entre
Deus e os homens. Só que, logo no começo da Bíblia, já existiu uma divergência sobre o
papel do homem e do Senhor na história toda. Isso porque o personagem principal, Deus, é
tratado por dois nomes diferentes.
Em alguns trechos, ele é chamado pelo nome próprio, Yahweh – traduzido em português
como Javé ou Jeová. É um tratamento informal, como se o autor fosse íntimo de Deus. Em
outros pontos, o Todo-Poderoso é chamado de Elohim, um título respeitoso e distante (que
pode ser traduzido simplesmente como “Deus”). Como se explica isso? Para os
fundamentalistas, não tem conversa: Moisés escreveu tudo sozinho e usou os dois nomes
simplesmente porque quis. Só que um trecho desse texto narra a morte do próprio Moisés.
Isso indica que ele não é o único autor. Os historiadores e a maioria dos religiosos aceitam
outra teoria: esses textos tiveram pelo menos outros dois editores.
Acredita-se que os trechos que falam de Javé sejam os mais antigos, escritos numa época
em que a religiosidade era menos formal. Eles contêm uma passagem reveladora: antes da
criação do mundo, “Yahweh não derramara chuva sobre a terra, e nem havia homem para
lavrar o solo”. Essa frase, “não havia homem para lavrar o solo”, indica que, na primeira
versão da Bíblia, o homem não era apenas mais uma criação de Deus – ele desempenha um
papel ativo e fundamental na história toda. “Nesse relato, o homem é cocriador do mundo”,
diz o teólogo Humberto Gonçalves, do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, no Rio
Grande do Sul.
Pelo nome que usa para se referir a Deus (Javé), o autor desses trechos foi apelidado de
Javista. Já o outro autor, que teria vivido por volta de 850 a.C., é apelidado de Eloísta. Mais
sisudo e religioso, ele compôs uma narrativa bastante diferente. Ao contrário do Deus- Javé,
que fez o mundo num único dia, o Deus-Elohim levou seis (e descansou no sétimo). Nessa
história, a criação é um ato exclusivo de Deus, e o homem surge apenas no sexto dia, junto
com os animais.
Tempos mais tarde, os dois relatos foram misturados por editores anônimos – e a narrativa
do Eloísta, mais comportada, foi parar no início das Escrituras. Começando por aquela frase
incrivelmente simples e poderosa, notória até entre quem nunca leu a Bíblia: “E, no início,
Deus criou o céu e a terra...”
Em 589 a.C., Jerusalém foi arrasada pelos babilônios, e grande parte da população foi
aprisionada e levada para o atual Iraque. Décadas depois, os hebreus foram libertados por
Ciro, senhor do Império Persa – um conquistador “esclarecido”, que tinha tolerância
religiosa. Aos poucos, os hebreus retornaram a Canaã – mas com sua fé transformada. Agora
os sacerdotes judaicos rejeitavam o politeísmo e diziam que Javé era o único e absoluto
deus do Universo. “O monoteísmo pode ter surgido pelo contato com os persas – a religião
deles, o masdeísmo, pregava a existência de um deus bondoso, Ahura Mazda, em constante
combate contra um deus maligno, Arimã. Essa noção se reflete até na ideia cristã de um
combate entre Deus e o Diabo”, afirma Zalewsky, da UFRGS.
A versão final do Pentateuco surgiu por volta de 389 a.C. Nessa época, um religioso
chamado Esdras liderou um grupo de sacerdotes que mudaram radicalmente o judaísmo – a
começar por suas escrituras. Eles editaram os livros anteriores e escreveram a maior parte
dos livros Deuteronômio, Números, Levítico e também um dos pontos altos da Bíblia: os
Dez Mandamentos. Além de afirmar o monoteísmo sem sombra de dúvidas (“amarás a Deus
acima de todas as coisas” é o primeiro mandamento), a reforma conduzida por Esdras
impunha leis religiosas bem rígidas, como a proibição do casamento entre hebreus e não-
hebreus. Algumas das leis encontradas no Levítico se assemelham à ética moderna dos
direitos humanos: “Se um estrangeiro vier morar convosco, não o maltrates. Ama-o como se
fosse um de vós”.
Outras passagens, no entanto, descrevem um Senhor belicoso, vingativo e sanguinário, que
ordena o extermínio de cidades inteiras – mulheres e crianças incluídas. “Se a religião prega
a compaixão, por que os textos sagrados têm tanto ódio?”, pergunta a historiadora americana
Karen Armstrong, autora de um novo e provocativo estudo sobre a Bíblia. Para os
especialistas, a violência do Antigo Testamento é fruto dos séculos de guerras com os
assírios e os babilônios. Os autores do livro sagrado foram influenciados por essa atmosfera
de ódio, e daí surgiram as histórias em que Deus se mostra bastante violento e até cruel. Os
redatores da Bíblia estavam extravasando sua angústia.
Por volta do ano 200 a.C., o cânone (conjunto de livros sagrados) hebraico já estava
finalizado e começou a se alastrar pelo Oriente Médio. A primeira tradução completa do
Antigo Testamento é dessa época. Ela foi feita a mando do rei Ptolomeu 2º em Alexandria,
no Egito, grande centro cultural da época. Segundo uma lenda, essa tradução (de hebraico
para grego) foi realizada por 72 sábios judeus. Por isso, o texto é conhecido como
Septuaginta. Além da tradução grega, também surgiram versões do Antigo Testamento no
idioma aramaico – que era uma espécie de língua franca do Oriente Médio naquela época.
Dois séculos mais tarde, a Bíblia em aramaico estava bombando: ela era a mais lida na
Judeia, na Samária e na Galileia (províncias que formam os atuais territórios de Israel e da
Palestina). Foi aí que um jovem judeu, grande personagem desta história, começou a se
destacar. Como Sócrates, Buda e outros pensadores que mudaram o mundo, Jesus de Nazaré
nada deixou por escrito – os primeiros textos sobre ele foram produzidos décadas após sua
morte.
E o cristianismo já nasceu perseguido: por se recusarem a cultuar os deuses oficiais, os
cristãos eram considerados subversivos pelo Império Romano, que dominava boa parte do
Oriente Médio desde o século 1 a.C. Foi nesse clima de medo que os cristãos passaram a
colocar no papel as histórias de Jesus, que circulavam em aramaico e também em coiné – um
dialeto grego falado pelos mais pobres. “Os cristãos queriam compreender suas origens e
debater seus problemas de identidade”, diz o teólogo Paulo Nogueira, da Universidaquemde
Metodista de São Paulo. Para fazer isso, criaram um novo gênero literário: o evangelho.
Esse termo, que vem do grego evangélion (“boa-nova”), é um tipo de narrativa religiosa,
contando os milagres, os ensinamentos e a vida do Messias.
A maioria dos evangelhos escritos nos séculos 1 e 2 desapareceu. Naquela época, um
“livro” era um amontoado de papiros avulsos, enrolados em forma de pergaminho, podendo
ser facilmente extraviados e perdidos. Mas alguns evangelhos foram copiados e recopiados
à mão, por membros da Igreja. Até que, por volta do século 4, tomaram o formato de códice
– um conjunto de folhas de couro encadernadas, ancestral do livro moderno. O problema é
que, a essa altura do campeonato, gerações e gerações de copiadores já haviam introduzido
alterações nos textos originais – seja por descuido, seja de propósito. “Muitos erros foram
feitos nas cópias, erros que às vezes mudaram o sentido dos textos. Em certos casos, tais
erros foram também propositais, de acordo com a teologia do escrivão”, afirma o padre e
teólogo Luigi Schiavo, da Universidade Católica de Goiás. Quer ver um exemplo?
Sabe aquela famosa cena em que Jesus salva uma adúltera prestes a ser apedrejada? De
acordo com especialistas, esse trecho foi inserido no Evangelho de João por algum escriba,
por volta do século 3. Isso porque, na época, o cristianismo estava cortando seu cordão
umbilical com o judaísmo. E apedrejar adúlteras é uma das leis que os sacerdotes-escritores
judeus haviam colocado no Pentateuco. A introdução da cena em que Jesus salva a adúltera
passa a ideia de que os ensinamentos de Cristo haviam superado a Torá – e, portanto, os
cristãos já não precisavam respeitar ao pé da letra todos os ensinamentos judeus.
A julgar pelo último livro da Bíblia cristã, o Apocalipse (que descreve o fim do mundo),
o receio de ter suas narrativas “editadas” era comum entre os autores do Novo Testamento.
No versículo 18, lê-se uma terrível ameaça: “Se alguém fizer acréscimos às páginas deste
livro, Deus o castigará com as pragas descritas aqui”. Essa ameaça reflete bem o clima dos
primeiros séculos do cristianismo: uma verdadeira baderna teológica, com montes de seitas
defendendo ideias diferentes sobre Deus e o Messias. A seita dos docetas, por exemplo,
acreditava que Jesus não teve um corpo físico. Ele seria um espírito, e sua crucificação e
morte não passariam – literalmente – de ilusão de ótica. Já os ebionistas acreditavam que
Jesus não nascera Filho de Deus, mas fora adotado, já adulto, pelo Senhor. A primeira
tentativa de organizar esse caos das Escrituras ocorreu por volta de 142 – e o responsável
não foi um clérigo, mas um rico comerciante de navios chamado Marcião.
A B íblia segundo Marcião
Ele nasceu na atual Turquia, foi para Roma, converteu-se ao cristianismo, virou um teólogo
influente e resolveu montar sua própria seleção de textos sagrados. A Bíblia de Marcião era
bem diferente da que conhecemos hoje. Isso porque ele simpatizava com uma seita cristã
hoje desaparecida, o gnosticismo. Para os gnósticos, o Deus do Velho Testamento não era o
mesmo que enviara Jesus – na verdade, as duas divindades seriam inimigas mortais. O Deus
hebraico era monstruoso e sanguinário, e controlava apenas o mundo material. Já o universo
espiritual seria dominado por um Deus bondoso, o pai de Jesus. A Bíblia editada por
Marcião continha apenas o Evangelho de João, 11 cartas de Paulo e nenhuma página do
Velho Testamento. Se as ideias de Marcião tivessem triunfado, hoje as histórias de Adão e
Eva no paraíso, a arca de Noé e a travessia do mar Vermelho não fariam parte da cultura
ocidental. Mas, por volta de 170, o gnosticismo foi declarado proibido pelas autoridades
eclesiásticas, e o primeiro editor da Bíblia cristã acabou excomungado.
Roma, até então pior inimiga dos cristãos, ia se rendendo à nova fé. Em 313, o imperador
romano Constantino se aliou à Igreja. Ele pretendia usar a força crescente da nova religião
para fortalecer seu império. Para isso, no entanto, precisava de uma fé una e sólida. A
pressão de Constantino levou os mais influentes bispos cristãos a se reunirem no Concílio de
Niceia, em 325, para colocar ordem na casa de Deus. Ali, surgiu o cânone do cristianismo –
a lista oficial de livros que, segundo a Igreja, realmente haviam sido inspirados por Deus.
“A escolha também era política. Um grupo afirmou seu poder e autoridade sobre os
outros”, diz o padre Luigi. Esse grupo era o dos cristãos apostólicos, que ganharam poder ao
se aliar com o Império Romano. Os apostólicos eram, por assim dizer, o “partido do
governo”. E por isso definiram o que iria entrar, ou ser eliminado, das Escrituras.
Eles escolheram os evangelhos de Marcos, Mateus, Lucas e João para representar a
biografia oficial de Cristo, enquanto as invenções dos docetas, dos ebionistas e de outras
seitas foram excluídas, e seus autores declarados hereges. Os textos excluídos do cânone
ganharam o nome de “apócrifos” – palavra que vem do grego apocrypha, “o que foi
ocultado”. A maioria dos apócrifos se perdeu – afinal de contas, os escribas da Igreja não
estavam interessados em recopiálos para a posteridade. Mas, com o surgimento da
arqueologia, no século 19, pedaços desses textos foram encontrados nas areias do Oriente
Médio. É o caso de um polêmico texto encontrado em 1886 no Egito. Ele é assinado por uma
certa “Maria”, que muitos acreditam ser a Madalena, discípula de Jesus, presente em vários
trechos do Novo Testamento. O evangelho atribuído a ela é bem feminista: Madalena é
descrita como uma figura tão importante quanto Pedro e os outros apóstolos. Nos primórdios
do cristianismo, as mulheres eram aceitas no clero – e eram, inclusive, consideradas capazes
de fazer profecias. Foi só no século 3 que o sacerdócio virou monopólio masculino, o que
explicaria a censura da apóstola e seu testemunho. Aliás, tudo indica que Madalena não foi
prostituta – ideia que teria surgido por um erro na interpretação do livro sagrado. No ano
591, o papa Gregório fez um sermão dizendo que Madalena e outra mulher, também citada
nas Escrituras e essa sim ex-pecadora, na verdade seriam a mesma pessoa (em 1967, o
Vaticano desfez o equívoco, limpando a reputação de Maria).
Na evolução da Bíblia, foram aparecendo vários trechos machistas – e suspeitos. É o caso
de uma passagem atribuída ao apóstolo Paulo: “A mulher aprenda (...) com toda a sujeição.
Não permito à mulher que ensine, nem que tenha domínio sobre o homem (...) porque Adão
foi formado primeiro, e depois Eva”. É provável que Paulo jamais tenha escrito essas
palavras – porque, na época em que ele viveu, o cristianismo não pregava a submissão da
mulher. Acredita-se que essa parte tenha sido adicionada por algum escriba por volta do
século 2.
Após a conversão do imperador Constantino, o eixo do cristianismo se deslocou do
Oriente Médio para Roma. Só que, para completar a romanização da fé, faltava um passo:
traduzir a palavra de Deus para o latim. A missão coube ao teólogo Eusebius Hyeronimus,
que mais tarde viria a ser canonizado com o nome de são Jerônimo. Sob ordens do papa
Damaso, ele viajou a Jerusalém em 406 para aprender hebraico e traduzir o Antigo e o Novo
Testamento. Não foi nada fácil: o trabalho durou 17 anos.
Daí saiu a Vulgata, a Bíblia latina, que até hoje é o texto oficial da Igreja Católica. Essa é
a Bíblia que todo mundo conhece. “A Vulgata foi o alicerce da Igreja no Ocidente”, explica
o padre Luigi. Ela é tão influente, mas tão influente, que até seus erros de tradução se
tornaram clássicos. Ao traduzir uma passagem do Êxodo que descreve o semblante do
profeta Moisés, são Jerônimo escreveu em latim: cornuta esse facies sua, ou seja, “sua face
tinha chifres”. Esse detalhe esquisito foi levado a sério por artistas como Michelangelo –
sua famosa escultura representando Moisés, hoje exposta no Vaticano, está ornada com dois
belos corninhos. Tudo porque Jerônimo tropeçou na palavra hebraica karan, que pode
significar tanto “chifre” quanto “raio de luz”. A tradução correta está na Septuaginta: o
profeta tinha o rosto iluminado, e não chifrudo. Apesar de erros como esse, a Vulgata reinou
absoluta ao longo da Idade Média – durante séculos, não houve outras traduções.
O único jeito de disseminar o livro sagrado era copiá-lo à mão, tarefa realizada pelos
monges copistas. Eles raramente saíam dos mosteiros e passavam a vida copiando e
catalogando manuscritos antigos. Só que, às vezes, também se metiam a fazer o papel de
autores.
Após a queda do Império Romano, grande parte da literatura da Antiguidade grega e
romana se perdeu – foi graças ao trabalho dos monges copistas que livros como a Ilíada e a
Odisseia chegaram até nós. Mas alguns deles eram meio malandros: costumavam interpolar
textos nas Escrituras Sagradas para agradar a reis e imperadores. No século 15, por
exemplo, monges espanhóis trocaram o termo “babilônios” por “infiéis” no texto do Antigo
Testamento – um truque para atacar os muçulmanos, que disputavam com os espanhóis a
posse da Península Ibérica.
E scrituras em série
Tudo isso mudou após a invenção da imprensa, em 1455. Agora ninguém mais dependia dos
copistas para multiplicar os exemplares da Bíblia. Por isso, o grande foco de mudanças no
texto sagrado passou a ser outro: as traduções. Em 1522, o pastor Martinho Lutero usou a
imprensa para divulgar em massa sua tradução da Bíblia, que tinha feito direto do hebraico e
do grego para o alemão. Era a primeira vez que o texto sagrado era vertido numa língua
moderna – e a nova versão trouxe várias mudanças, que provocavam a Igreja. Logo depois
um britânico, William Tyndale, ousou traduzir a Bíblia para o inglês. No Novo Testamento,
ele traduziu a palavra ecclesia por “congregação”, em vez de “igreja”, o termo preferido
pelas traduções católicas. A mudança nessa palavrinha era um desafio ao poder dos papas:
como era protestante, Tyndale tinha suas diferenças com a Igreja. Resultado? Ele foi
queimado como herege em 1536. Mas até hoje seu trabalho é referência para as versões
inglesas do livro sagrado.
A Bíblia chegou ao nosso idioma em 1753 – quando foi publicada sua primeira tradução
completa para o português, feita pelo protestante João Ferreira de Almeida. Hoje, a tradução
considerada oficial é a feita pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e
lançada em 2001. Ela é considerada mais simples e coloquial que as traduções anteriores.
De lá para cá, a Bíblia ganhou o mundo e as línguas. Já foi vertida para mais de 300 idiomas
e continua um dos livros mais influentes do mundo: todos os anos, são publicadas 11 milhões
de cópias do texto integral, e 14 milhões só do Novo Testamento.
Depois de tantos séculos de versões e contraversões, ainda não há consenso sobre a forma
certa de traduzi-la. Alguns buscam traduções mais próximas do sentido e da época original –
como as passagens traduzidas do hebraico pelo linguista David Rosenberg na obra O Livro
de J, de 1990. Outros acham que a Bíblia deve ser modernizada para atrair leitores. O
linguista Eugene Nida, que verteu a Bíblia na década de 1960, chegou ao extremo de traduzir
a palavra “sestércios”, a antiga moeda romana, por “dólares”. Em 2008, duas versões
igualmente ousadas estão agitando as Escrituras: a Green Bible (“Bíblia Verde”, ainda sem
versão em português), que destaca mil passagens relacionadas à ecologia – como o momento
em que Jó fala sobre os animais –, e a Bible Illuminated (“Bíblia Iluminada”, em inglês),
com design ultramoderno e fotos de celebridades como Nelson Mandela e Angelina Jolie.
A Bíblia se transforma, mas uma coisa não muda: cada pessoa, ou grupo de pessoas, a
interpreta de uma maneira diferente – às vezes, com propósitos equivocados. Em pleno
século 21, pastores fundamentalistas tentam proibir o ensino da Teoria da Evolução nas
escolas dos EUA, sendo que a própria Igreja aceita as teorias de Darwin desde a década de
1950. Líderes como o pastor Jerry Falwell defendem o retorno da escravidão e o
apedrejamento de adúlteros. E, no Oriente Médio, rabinos extremistas usam trechos da Torá
para justificar a ocupação de terras árabes. Por quê? Porque está na Bíblia, dizem os
radicais. Não é nada disso. Hoje, os principais estudiosos afirmam que a Bíblia não deve
ser lida como um manual de regras literais – e sim como o relato da jornada, tortuosa e cheia
de percalços, do ser humano em busca de Deus. Porque esse é, afinal, o verdadeiro sentido
dessa árvore de histórias regada há 3 mil anos por centenas de mãos, cabeças e corações
humanos: a crença num sentido transcendente da existência.
– como eles
viraram gente
ELE ESCOLHEU DEIXAR A NATUREZA
PARA VIVER ENTRE NÓS. APRENDEU A
FALAR COM A GENTE, ENGANOU NOSSOS
INSTINTOS E VIROU NOSSO FILHO.
SÓ TEM UM PROBLEMA: ISSO ESTÁ
MATANDO O NOSSO MELHOR AMIGO.
iquem tranquilos, diz a mulher. “Nesta creche, cuidamos das crianças com muito
carinho. No primeiro dia, cada uma ganha uma mochila e uma agenda para
uando Nick* tinha três anos, seu pai, John, achava estranho que o menininho gostasse
tanto de vestir uma camiseta bem comprida e de ficar andando com ela pela casa,
Q como se estivesse de vestido. Também não entendia a fascinação da criança por tudo
que era cor-de-rosa ou por que ele só dava nomes femininos a seus animais de
pelúcia. um dia, John presenciou uma cena estranha. Junto com dois outros meninos, o
filho brincava no jardim. Mas, enquanto os amiguinhos fingiam ser Batman e Super-
Homem, Nick imaginava ser uma fada princesa. Aquilo disparou o alarme. O menino gostava
demais de coisas de meninas-e ficava muito triste quando tinha de se vestir de acordo com
seu sexo. A mãe, então, arriscou: “Nick, você gostaria de comprar um vestido?” A reação do
filho assustou os pais. Ele começou a tremer e a ofegar, de tanta felicidade. Foi aí que tudo
ficou claro: Nick só seria feliz se vivesse como menina. E foi exatamente isso que os pais
fizeram. Hoje, aos sete anos, Nick se chama Mary. Deixou o cabelo crescer, só usa roupas
femininas e mudou de vida. Na escolinha, na Califórnia, quase ninguém sabe que ela é um
menino com variação de gênero-que especialistas estimam afetar uma em cada 500 crianças.
E ninguém imagina que ela mudou de sexo ainda durante a infância.
“É tão estranho quando as pessoas me perguntam como eu sei que sou um menino. É uma
pergunta tão boba. A minha vida inteira eu soube que era menino”, diz William, uma criança
de sete anos que nasceu menina, mas vive como menino. É difícil levar a opinião de uma
criança tão nova a sério. Pais às vezes entendem que talvez a criança seja gay ou lésbica.
Mas o caso não é esse. Para crianças transgêneres, não faz sentido nenhum dividir o mundo
entre hétero e homossexuais. Elas não se sentem atraídas pelo mesmo sexo - nem sabem o
que é atração. O que querem mesmo é pertencer ao sexo oposto.
Geralmente, é logo no começo da infância que os pais reparam no comportamento
estranho. Meninos às vezes tentam arrancar o próprio pênis, e meninas não suportam a ideia
de usar um vestido. “Só fui perceber que era um menino aos três anos de idade, quando a
professora mandou os alunos se dividirem por sexo. Eu fiquei chateada, porque antes disso
achava que era uma menininha como as outras”, diz Luciana, uma paulistana de 28 anos, cujo
nome no RG ainda é Luciano. Em crianças assim, a tendência é a situação só se agravar. Isso
porque, durante a infância, é fácil fazer uma criança se passar pelo sexo oposto - bastam
umas roupas cor-de-rosa ou umas camisas de futebol. O problema é quando a puberdade se
aproxima.
Na adolescência, a criança começa a ter consciência de sua sexualidade e passa pelas
maiores (e mais irreversíveis) mudanças fisiológicas da vida. Já não é um período fácil para
quem está satisfeito com o seu gênero - imagine, então, para quem rejeita o próprio corpo.
Ter seios e menstruar (ou ter barba e engrossar a voz) é o pesadelo de qualquer criança com
transtorno de identidade de gênero. “Metade dos adolescentes transgêneres tenta se matar
entre a puberdade e a vida adulta”, diz Stephanie Brill, autora do livro The Trangender Child
(“A Criança Transgênere”, sem tradução no Brasil). Luciana passou boa parte de sua vida
sem fazer sexo, de tanta aversão que sentia a seu pênis. Se para essas pessoas a adolescência
é tão traumática, o que pode ser feito? Segundo a Sociedade Internacional de
Endocrinologia, a resposta é bloquear a puberdade.
Garotos interrompidos
A ideia parece radical, mas já está sendo feita na Europa e nos EUA desde o começo dos
anos 2000. Quando uma criança é diagnosticada com transtorno de identidade de gênero, o
tratamento começa entre os dez e os 12 anos. Nessa idade, prescrevem-se os bloqueadores
de puberdade, originalmente criados para crianças que entram na adolescência muito cedo,
aos sete ou oito anos. O mais comum deles é o hormônio liberador de gonadotrofina
(GNRH), que impede a testosterona e o estrogênio de agir. Sem esses hormônios, o corpo
fica congelado numa infância eterna. Ele não se desenvolverá para nenhum gênero e ficará
sexualmente neutro. O método foi imaginado para que as crianças tenham tempo de decidir a
qual sexo pertencem -sem que seu corpo passe pelas mudanças sem volta da puberdade.
“Bloquear a puberdade é um tratamento totalmente reversível. Hormônios e cirurgias -
esses não têm volta”, diz a psiquiatra Annelou de Vries, da universidade Livre de Amsterdã,
o primeiro lugar do mundo a oferecer esse tratamento. Lá, mais de cem adolescentes estão
neste momento tomando o GnRH para, aos 16 anos, começarem com os hormônios sexuais e,
aos 18, cogitarem a cirurgia de troca de sexo. Para John, o pai da menina Mary (que nasceu
Nick), os bloqueadores são um milagre. “Quero que minha filha passe apenas uma vez pela
puberdade - e só no sexo feminino. Ela mal pode esperar para começar com os
bloqueadores.”
Essa história faz todo o sentido na teoria, mas não na prática. Como é possível
diagnosticar com segurança o transtorno de identidade de gênero numa criança tão nova?
Peguemos o exemplo de André, um produtor de moda homossexual, de 24 anos. Quando
criança, seu brinquedo favorito era uma Barbie-Lambada, e ele adorava usar uma toalha na
cabeça para fingir ter cabelo comprido. André nem sequer sabia dizer se era menino ou
menina. Hoje, ele namora um rapaz, mas jamais cogitaria mudar de sexo. Como saber, ainda
na infância, que ele seria feliz em seu gênero de nascença? “Ainda não conseguimos ter
100% de certeza com crianças. O que avaliamos é a insistência dela em ser, se vestir e se
comportar como o sexo oposto durante anos de acompanhamento psicológico”, diz Vries. O
importante nesses casos é a atitude irredutível. Se a criança um dia diz que é menino e no
outro menina, é bem provável que a confusão de gênero não siga até a vida adulta. Mas,
como tudo que envolve a mente humana, não há como ter certeza.
Um médico americano, Charles Davenport, tentou quantificar a longo prazo o
comportamento de meninos afeminados. Dos dez garotos que ele acompanhou até a vida
adulta, quatro viraram héteros, dois viraram gays, três ficaram incertos sobre sua orientação
sexual, e apenas um deles virou transexual e quis trocar de sexo. Isso também se comprova
com estatísticas: na infância, uma em cada 500 crianças pode apresentar alguma variação de
gênero. Já entre adultos, o transexualismo é muito mais raro: calcula-se que seja apenas um
em cada 30 mil homens e uma em cada 100 mil mulheres. (Ou seja, se você conhecer um
menino que gosta de brincar de boneca, não há razão para se alarmar.) E é justamente isso
que torna o tratamento com bloqueadores de puberdade tão polêmico.
De Vítor a Vitória
Joanne tinha oito anos quando contou à mãe que, na verdade, era um menino e queria ser
chamado de Jack. Sem que os pais soubessem, já dizia para os coleguinhas no colégio que só
atenderia por “ele”. Para a mãe, a mudança foi traumática - ela precisou de um ano para
conseguir fazer a troca de pronomes. Em compensação, Jack deixou de ser uma menina
deprimida para virar o menino contente que é hoje, aos dez. “Os seios de Jack estão
começando a despontar, e eu sei que deveria pensar em bloqueadores e cirurgias, mas é
muito difícil para mim”, diz Anna, a mãe, no livro sobre crianças transgêneres.
Deixar o filho viver no sexo oposto inclui uma série de problemas que nenhum pai
gostaria de enfrentar. É preciso contar à família que aquela menina agora atenderá pelo nome
de Jack, é preciso pedir que o professor fique atento a provocações com o novo menino na
escola, e é preciso se despedir do sonho de ver a filha casar e ter filhos. “Eu sempre quis
brincar de bola com o meu filho. Mas percebi que com Mary isso não se tornaria realidade”,
conta John, o pai de Mary, que até os quatro anos era Nick. No Brasil, até as leis atrapalham
a mudança. O Conselho Federal de Medicina proíbe qualquer intervenção com remédios
antes dos 18 anos, e a cirurgia é vetada até os 21. Além disso, não é simples convencer
alguém de que o filho talvez precise trocar de sexo. “No Brasil, quando a família entende
que a mudança logo cedo ajuda, os pais vão sozinhos atrás de remédios e hormônios para os
filhos”, diz Alexandre Saadeh, psiquiatra do Hospital das Clínicas de São Paulo.
Tudo indica que as causas para o transtorno sejam biológicas. Em 2008, um estudo do
Instituto Karolinska, na Suécia, mostrou que a estrutura e o tamanho de diversas áreas do
cérebro são parecidos em homens gays e mulheres héteros. O mesmo acontece em lésbicas e
homens héteros. Assim, poderia haver “uma mente masculina” dentro de um corpo feminino,
e vice-versa. “Imagina-se que pode haver alguma influência de hormônios durante a
gestação. Por exemplo, se o feto é do sexo masculino, mas entrou em contato com hormônios
femininos, é possível que o cérebro do bebê se forme de maneira diferente”, diz Carmita
Abdo, do Projeto Sexualidade do Hospital das Clínicas. Quando os pais percebem que não
adianta forçar a barra para mudar o comportamento do filho, é geralmente também quando
enxergam que são eles que precisam mudar.
Uma escolha difícil
Ninguém escolheria ser transexual. Eles são a minoria sexual mais discriminada, abaixo de
gays, lésbicas, bissexuais e travestis. 73% deles sofrem assédio nas ruas e 45% rompem
com a família quando anunciam seu verdadeiro gênero. Os bloqueadores de puberdade
ajudam a aliviar o preconceito porque deixam a pessoa com uma aparência mais natural
depois da troca de sexo. As contraindicações são muitas: há indícios de que atrapalham na
calcificação dos ossos e, se o tratamento for iniciado muito cedo, com bloqueadores e
hormônios na puberdade, a pessoa quase certamente ficará infértil. Além disso, a dose do
GnRH pode chegar a r$ 3 mil.
“Eu vejo que, aos poucos, os pais estão deixando seus filhos fazerem essa transformação,
mesmo que escondida. Eles preferem ver os filhos felizes - e vivos - do que infelizes no
sexo biológico”, diz Brill. Há alguns anos, quem recomendasse bloqueadores de puberdade
a crianças saudáveis seria chamado de louco ou radical. Hoje, alguns lugares já se
acostumaram com o arco-íris da sexualidade humana. A Park Day School, em Oakland, nos
EUA, é uma escola que dá as boas-vindas a essas crianças. Nos últimos anos, oito aluninhos
que nasceram num sexo, mas vivem no outro, passaram por lá. Na hora de ir ao banheiro,
podiam escolher entre o feminino, o masculino e o neutro. Mas nem é preciso ir tão longe: no
Mato Grosso do Sul, alunos da rede estadual que vivem no sexo oposto ganharam na Justiça
o direito de ser chamados pelo nome de sua preferência. A mudança já começou.
* Nome fictício.
da
inteligência
JÁ EXISTEM MEDICAMENTOS
CAPAZES DE TURBINAR O
CÉREBRO - PARA VOCÊ PENSAR,
ESTUDAR E TRABALHAR MAIS E
MELHOR. MAS ATÉ QUE PONTO
É SEGURO TOMÁ-LOS?
N você pode ler o texto inteiro antes, para entender melhor cada um dos elementos da
fórmula. Fica a seu critério.
Você chega cedo ao trabalho, entrega tudo no prazo, se dá bem com seus colegas e
conhece os processos como ninguém. Ainda assim, está há anos no mesmo cargo,
fazendo o arroz com feijão de sempre. De repente, chega um novato na área. Ele é jovem,
tem as roupas da moda, se deu bem com a chefia e, pior, começou a abocanhar os melhores
projetos. Em seis meses lá está ele, promovido, na vaga que deveria ser sua. Em dois anos,
ele virou seu chefe. No fim, você teve de reconhecer o talento do novato e aceitar que você
não nasceu para ser chefe. Mas será que é isso mesmo? O que as pessoas bem-sucedidas têm
que você não tem? A resposta, dolorida, é: nada. Absolutamente nada. Seu chefe, o dono da
empresa, o Kaká e o presidente Lula não vieram ao mundo com um sinal gravado nos genes,
que diga: eu nasci para brilhar. Muito menos têm um talento inato que você não possui. Para
desespero dos medíocres da nação, a ciência está descobrindo que todo mundo (e isso inclui
você) teria potencial para ser a bolacha mais recheada do pacote. Aqui você vai descobrir
como - e o que pode dar errado no meio do caminho.
É difícil se acostumar com a ideia de que nascemos todos com as mesmas chances de
brilhar. Principalmente quando olhamos para aquelas pessoas que parecem ter habilidades
sobrenaturais - aquelas que fazem você se lembrar diariamente das suas limitações: as
crianças prodígios, por exemplo. A maior de todas foi Wolfgang Amadeus Mozart (perto
dele, a menina Maysa é amadora). Aos três anos, o austríaco começou a tocar piano, aos
cinco já compunha, aos seis se apresentava para o rei da Bavária de olhos vendados, aos 12
terminou sua primeira ópera. Há séculos, ele vem sendo citado como prova absoluta de que
talento é uma coisa que vem de nascença para alguns escolhidos. Mas parece que não é bem
assim. A vocação de Mozart não apareceu do nada. Seu pai era professor de música e desde
cedo dedicou sua vida a educar o filho. Quando criança, Mozart passava boa parte dos dias
na frente do piano. As primeiras peças que compôs não eram obras-primas - pelo contrário,
contêm muitas repetições e melodias que já existiam. Os críticos de música, aliás,
consideram que a primeira obra realmente genial que o austríaco escreveu foi um concerto
de 1777, quando o músico já tinha 21 anos de idade. Ou seja, apesar de ter começado muito
cedo, Mozart só compôs algo digno de gênio depois de 15 anos de treino.
O mesmo pode ser observado com talentos das mais diversas áreas. Ronaldo, o
Fenômeno, tinha de ser arrancado dos campos de futebol quando criança porque não queria
fazer nada que não fosse jogar bola. Os técnicos de Michael Jordan se lembram de que o
jogador era sempre o primeiro a chegar aos treinos e o último a ir embora. E mesmo Bill
Gates, como bom nerd que era, não fez sua fortuna do nada: quando adolescente, ele passou
boa parte da sua (não muito agitada) vida programando computadores enfurnado numa sala
da Universidade da Califórnia. Ou seja, mesmo aquelas pessoas bem-sucedidas, que
parecem esbanjar talento, ralaram muito antes de chegar lá.
Isso faz todo sentido, se considerarmos a nova maneira como os cientistas têm enxergado
a influência dos genes na formação de talentos. Aquilo que costumamos chamar de “talento
natural para liderança” ou “aptidão nata para os esportes” parece não ter nenhuma relação
com o nosso DNA. “Não há nenhuma evidência de que exista uma causa genética para o
sucesso ou o talento de alguém”, diz Anders Ericsson, professor de psicologia da
Universidade da Flórida, que há 20 anos estuda por que algumas pessoas são mais
bemsucedidas do que outras. A questão aí reside no fato de os genes (e sua interação com a
nossa vida) serem um assunto tremendamente complexo - que dá pesadelos até nos
geneticistas mais gabaritados. Já se sabe, por exemplo, que até mesmo traços diretamente
ditados pelo DNA, como a cor dos nossos olhos, são definidos por mais de um gene que se
relacionam entre si. O que dizer, então, de atributos mais complexos?
Há alguns anos, o fetiche dos laboratórios tem sido relacionar genes a traços de
personalidade ou a propensões para desenvolver distúrbios psiquiátricos. O mais famoso
deles é o 5-HTTLPR, que em 2003 virou notícia ao ser chamado de o “gene da depressão”.
Ele previa uma interação com o ambiente: quem tivesse sofrido um trauma pessoal e
carregasse o 5-HTTLPR em seu DNA teria também alta probabilidade de ficar deprimido.
Muitos outros estudos foram no embalo dessa descoberta, e logo vieram à luz genes que
explicavam a ansiedade, o déficit de atenção, a hiperatividade e até a psicopatia. No ano
passado, no entanto, uma série de novos estudos virou essas descobertas de ponta-cabeça.
Numa revisão que incluiu todas as pesquisas já feitas sobre o gene da depressão, concluiu-se
que era impossível concluir que ele influísse na doença. (Isso, sim, é deprimente.) Já com os
outros distúrbios, as descobertas foram ainda mais intrigantes. Os mesmos genes que
causariam ansiedade, psicopatia, hiperatividade etc. podiam ter os efeitos opostos
dependendo do ambiente em que o portador fosse criado. Ou seja, quem carrega esses genes
“malditos”, mas não passa por traumas, será muito mais ajustado do que quem não tem essas
mutações. E o que se conclui disso tudo? Bem, que os cientistas ainda vão quebrar a cabeça
por muito tempo. Se não dá nem para dizer que existe um gene da depressão, como falar,
então, do gene da “habilidade-dedriblar-adversários-e-chutar-a-bola-no-gol”? Ou seja,
ainda não há consenso entre os cientistas de que exista talento para futebol (ou para música,
ou para gerir uma empresa). Pelo menos, não um ditado pelo DNA.
99% transpiração
Em 1992, pesquisadores ingleses e alemães resolveram estudar pessoas talentosas para
entender o que as diferenciava dos reles mortais. Para isso, investigaram pianistas
profissionais e os compararam com pessoas que tinham apenas começado a estudar, mas
desistido. (Pianistas são excelentes cobaias porque seu talento é mensurável: ou eles sabem
executar a música ou não sabem). O problema foi que os cientistas não conseguiram achar
ninguém com habilidades sobrenaturais entre as 257 pessoas investigadas - todos eram
igualmente dotados. A única diferença encontrada entre os dois grupos é que os pianistas
fracassados tinham passado muito menos tempo estudando do que os bem-sucedidos. Quer
dizer, não é que faltou talento para os amadores virarem mestres - faltou dedicação.
Ok, isso não é novidade. Todo mundo sabe que a prática leva à perfeição. A novidade é
que, pela primeira vez, cientistas conseguiram medir o tempo necessário de estudo para
alguém se destacar internacionalmente em alguma área: 10 mil horas. Foi a esse número que
o especialista em sucesso Anders Ericsson chegou depois de observar os grandes talentos
das mais diversas áreas. Todo mundo que foi alguém, ele concluiu, do campeão de xadrez
Kasparov ao Steve Jobs, ficou esse tempo todo aperfeiçoando seu ofício. E não estamos
falando de exercícios leves. O que realmente faz alguém ficar bom em algo é treino duro,
dolorido, no limite do executável. No fim das contas, é treino tão difícil que modifica seu
cérebro. (Só para constar: estima-se que, aos seis anos, Mozart já tivesse estudado piano
durante 3.500 horas. Quer dizer, ele não era talentoso, era assustadoramente dedicado.)
É aí que está a chave do sucesso: no cérebro (para variar). Nosso cérebro é formado por
duas partes principais: a massa cinzenta (os neurônios) e a massa branca. Durante muito
tempo, acreditamos que a capacidade cerebral estava escondida nos neurônios. Nos últimos
cinco anos, no entanto, neurologistas e psiquiatras resolveram estudar a massa branca, que
até então era ignorada. O que eles descobriram mudou a maneira de entender as habilidades.
A massa branca é formada principalmente por mielina, um tipo de gordura que envolve os
axônios (aquele rabinho comprido que todo neurônio tem). Ela serve de isolante para os
impulsos elétricos que percorrem o cérebro. Sempre se soube que a mielina estava
distribuída de forma irregular ao redor dos neurônios, mas só agora descobriu-se por quê.
Ela é depositada sobre as células nervosas com o intuito de melhorar a condução da
eletricidade. A distribuição desigual serve para deixar os impulsos elétricos mais precisos -
para chegarem ao mesmo tempo nos neurônios, por exemplo. À medida que os impulsos
elétricos se tornam precisos, eles coordenam melhor os nossos movimentos e pensamentos.
Isso vale para qualquer tipo de ação: de jogar basquete a entender física quântica ou falar
em público. “Quando você pratica algo, a mielina se deposita e os sinais entre as sinapses
vão ficando mais eficientes. A mielinização leva à perfeição”, diz George Bartzokis,
professor de psiquiatria da Universidade da Califórnia, maior especialista do assunto no
mundo. Esse processo é tão importante que até um bebê recém-nascido só abre os olhos
depois que a mielina em seu cérebro se depositou nos lugares certos. Da mesma forma,
afirma Bartzokis, um idoso perde sua mobilidade não porque seus músculos se atrofiaram,
mas porque a mielina do cérebro decaiu.
P ane no sistema
Para a mielinização ser mais eficiente, é preciso errar muito e sempre. Você já deve ter
sentido isso na pele. Quando cai da bicicleta ou leva uma bronca do seu chefe por causa de
um relatório malfeito, você vai se esforçar em dobro para o escorregão não acontecer de
novo. “Se você sempre repetir aquilo que já sabe, não há evolução. O ideal é falhar tentando
algo novo e mais difícil”, diz Anders Ericsson. É nessa condição que a mielina é mais
eficientemente espalhada pelo cérebro. Os que erram - e treinam mais - são também
recompensados. Isso é visível em ressonâncias magnéticas. Músicos, escritores e crianças
que tiram nota alta têm muito mais massa branca do que seus pares “comuns”. Quem, aliás,
era recordista em massa branca era Einstein. Quando o cérebro do físico foi dissecado,
notou-se, entre outras coisas, uma quantidade anormal de mielina. “Quem nunca errou nunca
fez nada de novo”, dizia ele.
Na teoria, a mielina é muito linda: ela recompensa quem se esforça e qualquer um pode
ser bem-sucedido. Mas, como tudo na vida, há algumas limitações (ou você acreditava
realmente que poderia ser como o Kaká?). O auge da mielinização acontece durante a
infância, quando toda forma de atividade é novidade e tem de ser aprendida: de abrir os
olhos a usar os talheres. Até os 30 anos, ela continua em alta escala - e é justamente quando
se aprendem novas habilidades com facilidade. Até os 50, a mielina ainda pode ser ajustada
em direção a um ou outro aprendizado. Depois disso, infelizmente, as perdas são maiores
que os ganhos. A mielinização continua, mas para preservar as aptidões já adquiridas. Ou
seja, a má notícia é que, se você quisesse ter sido o Kaká, deveria ter começado cedo. Já a
boa é que, se você se contenta em apenas melhorar o seu trabalho para ser promovido, há
tempo de sobra.
Além da idade, há algumas limitações sérias. Há cérebros mais preparados para
mielinizar do que outros. Por exemplo, quem não consegue metabolizar apolipoproteínas já
sai perdendo. Elas são proteínas que se ligam às gorduras (o colesterol, principalmente) e
têm grande influência na produção de mielina. (Mielina tem muito colesterol. Por isso, se
você andava cortando o ovo com medo de problemas cardíacos, pense que isso pode estar
emburrecendo você. Não é à toa também que médicos ultimamente têm receitado ovo para
pacientes com Alzheimer - ele parece influir nas habilidades do cérebro.) Essa disfunção
pode ser detectada numa análise genética, mas, adivinhe só, como tudo que envolve genes,
ainda não está esclarecida.
Tem de lutar, não se abater
Se treino é responsável por boa parte do sucesso das pessoas que chegaram ao ponto mais
alto do pódio (outros fatores virão), é preciso entender o que as levou a se esforçar tanto.
Quem passa 10 mil horas da vida se dedicando a qualquer coisa que seja tem pelo menos
uma característica muito ressaltada: o autocontrole. É ele que permite que a pessoa não
lembre que seria muito mais legal dormir ou estar no bar do que trabalhando. O teste do
marshmallow, feito na Universidade Stanford na década de 1960, é o melhor exemplo que se
tem sobre a ocorrência de autocontrole. Psicólogos ofereciam a crianças um grande
marshmallow e davam a elas a opção de comê-lo imediatamente ou esperar um tempinho
enquanto os psicólogos saíssem da sala. Se as crianças esperassem, ganhariam de
recompensa um segundo marshmallow. Apenas um terço das crianças aguentava esperar, o
resto comia o doce afoitamente. (Há um vídeo na internet desse teste feito nos dias de hoje.
As imagens das crianças tentando resistir à tentação são de partir o coração.) Depois, os
pesquisadores acompanharam o desempenho dessas crianças nas décadas seguintes. Aquelas
que haviam esperado pelo segundo doce tinham tirado notas mais altas no vestibular e
tinham mais amigos. Depois de anos estudando esse grupo de voluntários, concluiu-se que a
capacidade de manter o autocontrole previa com muito mais precisão a ocorrência de
sucesso e ajustamento - era mais eficiente do que QI ou condição social, por exemplo. Por
isso, tente sempre atrasar as gratificações - passe vontade e não faça sempre o que der na
telha: o segredo para o sucesso pode estar aí.
A questão agora é entender por que algumas pessoas abrem mão do prazer imediato em
troca do trabalho duro, e por que outras preferem sempre sair mais cedo do escritório. O
processo mental, na verdade, é muito simples: para ter autocontrole, é preciso não ficar
pensando na tentação e focar naquilo que é realmente importante no momento - por exemplo,
terminar o serviço. É possível que esses traços tenham uma origem genética, mas é mais
provável que a diferença esteja em outro ponto importante para entender o sucesso:
motivação. Quem está motivado para ganhar uma medalha olímpica ou fazer um bom
trabalho também abre mão da soneca da tarde com mais facilidade.
Motivação e ambição é um negócio meio misterioso, na verdade. Não funciona para todos
da mesma maneira. “A maioria das pessoas sonha com um emprego estável, um salário
aceitável, um chefe legal. Nem todo mundo tem ambição e quer crescer o tempo todo”, diz
Marcelo Ribeiro, professor do departamento de psicologia social e do trabalho da USP.
Evolucionariamente, isso também faz todo o sentido. Durante séculos de seleção natural,
alguns poucos ambiciosos foram escolhidos para conquistar os melhores pares, os maiores
pedaços de comida e os cargos de liderança. Infelizmente, toda essa fartura não pode ir para
todos - e a maioria teve de aprender a se satisfazer com o pouco que sobrou.
Dinheiro também não é a solução para todos os problemas. Nem sempre ele funciona
como um bom motivador. (Não deixe seu chefe ler isso, se você estiver querendo um
aumento.) Num estudo da Universidade Clark, nos EUA, que testava a capacidade de
voluntários de resolver problemas de lógica, o dinheiro só atrapalhou. Aqueles que eram
recompensados financeiramente para chegar à solução levavam muito mais tempo para
resolver o problema. Os outros, sem a pressão do dinheiro, se deram melhor. Em muitos
casos, acreditar que você está fazendo algo relevante é mais eficiente para motivação do que
um salário mais rechonchudo. Não é à toa, então, que empresas que esperam resultados
inovadores têm horários e cobranças flexíveis - para esses funcionários, fazer a diferença e
a ilusão de independência valem mais do que ganhar bem. “O desejo de atribuir significado
ao nosso trabalho é uma parte inata e inflexível da nossa composição. É pelo fato de sermos
animais concentrados no significado que podemos pensar em nos render a uma carreira
ajudando a levar água potável à Malaui rural”, escreve o filósofo pop francês Alain de
Botton, em seu livro Os Prazeres e Desprazeres do Trabalho.
Agulha no palheiro
Christopher Langan e Robert Oppenheimer eram dois americanos de QI sobre-humano (o de
Christopher é um dos maiores de que se tem notícia: 195. O QI de Einstein, por exemplo, era
150). Christopher aprendeu a ler sozinho aos três anos, aos 15 desenhava retratos tão
realistas que pareciam fotografias, aos 16 gabaritou o vestibular e, perto dos 20, decidiu
dedicar sua vida à física teórica. Já Robert fazia experimentos químicos complexos aos oito
anos de idade, aos nove já falava grego e latim e, aos 22, tinha concluído seu doutorado,
com passagens pelas Universidades Harvard e de Cambridge. Os dois, além de gênios, eram
esforçados e passaram a juventude enfurnados em livros - alcançaram facilmente a marca
das 10 mil horas de estudo. Robert virou um dos físicos mais importantes do século 20 e
ficou conhecido como o “pai da bomba atômica”, pois liderou o time que desenvolveu a
arma durante a Segunda Guerra Mundial. Já Christopher fracassou. Largou a faculdade em
pouco mais de um ano. Trabalhou como garçom, operário da construção civil e zelador.
Hoje, vive enfurnado em casa, sozinho, tentando elaborar uma teoria geral que explique o
Universo inteiro. O que foi que deu errado com Christopher?
É duro dizer, mas sucesso depende também de uma boa quantidade de sorte. Estar na hora
e lugar certos é muito importante - às vezes até mais do que as horas de treino. Christopher
Langan, por exemplo, nasceu em uma família pobre. Chegou à faculdade porque ganhou uma
bolsa de estudo. Mas teve de largar as aulas depois de perdê-la, porque sua mãe, que nunca
acompanhou ou incentivou seus estudos, esqueceu-se de renovar o contrato que daria ao
filho mais um ano de estudos grátis. Sim, ele deu muito azar. Não por causa da mãe
desleixada - mas porque nasceu em uma família desestruturada. Um estudo feito na
Universidade do Kansas mostrou que crianças que crescem em classes sociais mais baixas
ouvem, em média, 32 milhões de palavras a menos nos primeiros quatro anos de vida do que
seus colegas abastados (sim, alguém contou). Além disso, elas são expostas a um
vocabulário menos variado e não são incluídas nas conversas “de adulto”. Isso pode não ter
consequências diretas na inteligência das crianças, mas tem na maneira como elas se
relacionam com as pessoas.
Ter habilidade social, aliás, é fator determinante para ser bemsucedido. E é esse o
elemento que foge das estatísticas da ciência. Em áreas em que os mais talentosos são
sempre recompensados, como nos esportes ou na música, a regra das 10 mil horas e a
importância da persistência fazem sempre sentido. Mas, em ambientes onde a competição é
velada, como nos escritórios, o talento pode facilmente ficar em segundo plano - e perder
importância para o tête-à-tête, as famosas afinidades. “A personalidade de uma pessoa afeta
não só a escolha do trabalho, mas, mais importante, quão bem-sucedida ela vai ser na
carreira”, diz Timothy Judge, especialista em carreisucessora e personalidade da
Universidade da Flórida. Timothy revisou três estudos longitudinais de personalidade que
acompanharam a carreira de mais de 500 pessoas e chegou a conclusões interessantes.
Pessoas autoconscientes, racionais e que pensam antes de agir costumam ganhar mais e subir
mais cargos. Já quem é extrovertido e emocionalmente estável é mais feliz. Para o
pesquisador, depois de anos observando as pesquisas, subir de status pode ser importante,
mas o fator mais determinante para o sucesso ainda é sentir-se realizado. “Se a pessoa está
infeliz no trabalho, tem de descobrir o que está atrapalhando. Senão o sucesso não vem
mesmo.”
A fórmula do sucesso
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INTEIRA ATÉ O FINAL ANTES DE CHEGAR AQUI?
Motivação + Treino + Autocontrole + S orte =
S ucesso
Se você leu a matéria antes, parabéns, você faz parte dos 30% das pessoas que conseguem
atrasar gratificações sem sofrimento - ou seja, fazem primeiro o trabalho duro e depois
partem para a diversão. Isso é obra do seu autocontrole: um grande passo no caminho para o
sucesso. O autocontrole foi estudado na Universidade Stanford, no teste do marshmallow, na
década de 1960. Crianças que se controlavam para não comer um grande marshmallow
imediatamente cresciam e se tornavam adultos mais bem-sucedidos: tiravam notas mais altas
no vestibular, tinham mais amigos e sofriam menos de estresse e obesidade. Por isso, tente
se segurar da próxima vez que tiver vontade de deixar o trabalho para amanhã - pode fazer
toda a diferença.
sem mentir
(ou quase)
APLIQUEI NA MINHA VIDA A
TEORIA DA HONESTIDADE RADICAL.
AFASTEI-ME DOS AMIGOS E PERDI
A VONTADE DE CONVERSAR.
SIMPLES. TUDO ISSO PORQUE SOMOS
DEPENDENTES DA MENTIRA.
azia mais de um mês que não ia para a casa dos meus pais. Sábado de sol, com
“comidinha especial para os filhos queridos”. Família reunida, tarde gostosa. Mas
F minha mãe estava inquieta à mesa. Não ficou satisfeita com o risoto que preparara. “É,
está apenas passável, mãe.” Ela concordou, cabisbaixa. “Mas talvez o problema seja
eu. Passei a noite em claro. Ainda estou meio doidão”, disse, ao dar um belo gole de
caipirinha. Silêncio. “Aliás, estou falando isso porque tenho de passar um tempo sem
mentir para escrever uma reportagem. Posso usar esta conversa para abrir o texto? Sabe
como é, as pessoas têm esse velho tabu de falar mal da comida da própria mãe, então acho
que é um bom jeito de começar. Que tal?” Ela concordou, mas fez um alerta: “Tome cuidado
com o jeito de falar as coisas”.
Não queria fazer esta reportagem. Achei que corria o risco de sofrer uma lenta
degradação social. Parar de fingir que atendo o celular para não falar com alguém? Deixar
de usar a salvadora “Não ouvi o telefone tocar”? Era uma enrascada. Mas aceitei, por dois
motivos: 1. levar uma vida 100% sincera levanta uma boa discussão sobre nossa relação
com a mentira. 2. eu gosto de aparecer. Informei - me sobre revistas e livros que já trataram
o assunto (sim, a ideia não é inédita) e decidi passar 50 dias em função da honestidade
radical, prática defendida pelo psicoterapeuta americano Brad Blanton. “Então é falar o que
dá na cabeça?” Não necessariamente. Basicamente, a proposta é ser sincero consigo mesmo
o tempo inteiro. Só assim se consegue ser com os outros. Ser honesto com seus sentimentos
em relação às atitudes das pessoas que importam à sua volta. E já aviso para não enganar
ninguém: fraquejei algumas vezes. Policiar as próprias mentiras é perceber a facilidade com
que as cuspimos o tempo todo. Mas, ao reconhecê-las e voltar atrás, você assume erros e se
mostra mais, inclusive o lado pouco louvável. Confessei pequenos pecados do dia a dia,
extravasei inveja, egoísmo, prepotência, manipulação e futilidade. Porque eu minto. Muito. E
quer saber? Você também.
P etulância sincera
Em seu livro de maior sucesso, Radical Honesty (sem edição em português), Brad Blanton
explica por que mentimos tanto. Fomos educados assim. Desde a infância, aprendemos a
interpretar papéis no cotidiano. Mentimos para ser aceitos na turma do futebol, para a
professora gostar de nós, para chamar a atenção da menina mais bonita da escola, para
conseguir emprego. Interpretamos papéis autoimpostos - e lutamos para mantê-los
verossímeis. Quando eu queria um brinquedo mais caro no Natal, puxava papo com minha
avó, ouvia-a falar mal do Collor, concordava com tudo mesmo sem entender e buscava
mudar o assunto para dizer como gostaria de ganhar aquela pista incrível de carrinhos. Bem,
posso dizer que é “o meu jeitinho”. A vida é assim, certo? Mas jeitinho é mentira. E mentira
é a maior fonte de estresse e infelicidade do mundo, segundo Blanton. Ele diz que, se todos
parassem de usar tantas máscaras, as pessoas teriam mais tempo e vigor para se dedicar a
relações honestas. Vivemos o tempo todo a imagem que queremos ter de nós mesmos e que
os outros tenham de nós. Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos diz que 93% dos
americanos assumiram que mentem regularmente. Estamos acostumados a agir assim porque
é mais confortável. E vamos levando.
Percebi a facilidade com que mentia no terceiro dia. Um clássico: aumentar um conto. Em
uma conversa sobre música, exagerei ao falar “que conheci o movimento punk da
Lombardia”. Que bobagem. Não conheci nada, só ouvi um CD largado na casa de um primo
nos arredores de Milão. Nem sequer me dei ao trabalho de checar se o som era mesmo da
Lombardia. A primeira máscara a cair seria a da insegurança cultural. As pessoas engoliam
meu personagem antenado e eclético. E eu sentia necessidade de manter isso, para mim e
para elas, o que produz muitas mentiras como efeito colateral. “Quando você assume que
representa, você assume sua ignorância”, explica Blanton. Ao assumir, fiquei inseguro por
sujar minha pose (“Como assim você ainda não ouviu essa música!?”). Mas senti alívio.
Parei de fazer esse papel e passei a dizer: “Não faço ideia do que você está falando. Conta
mais”. Em um almoço com a redação, demonstrei minha curiosidade ao aprender, por
exemplo, que a suposta tartaruga que ajudou Charles Darwin a criar a teoria da evolução
morreu em 2006. Antes, me sentiria mal em reconhecer que não sabia. Fingiria que conheço
o assunto e acenaria com um vago “pode crer”, enquanto caramujos, joaninhas ou huskies
siberianos passeavam no pensamento, lá longe. O problema é que expressões assim não são
saudáveis. O “pode crer” é o açúcar refinado da roda social. Adoça, mas em excesso faz
mal.
O bem-estar me conduziu à prepotência. Afinal, eu estava me despindo de fantasias
mentirosas que usava desde sempre. Eu falo a verdade, os outros mentem. Logo, sou
superior. É o nível 1 da honestidade radical: revelar fatos sobre você. A súbita sensação de
prazer deu um verniz de legitimidade a explosões grosseiras. “Você é pago para escrever
qualquer lixo que sai da cabeça sem ninguém para questionar”, disse a um amigo
temporariamente insatisfeito no emprego. “Não vou divulgar a pesquisa, isso é um porre”, a
uma prima que pediu ajuda para colher respostas para um trabalho de faculdade. “Se você
tirar o quebra-mato, seu carro ficará muito efeminado”, a um editor desta revista. Cheguei a
xingar uma colega em um dia de estresse. Estaria perdoado pela sinceridade. Mas não é
assim. Extravasar raiva é um exercício que precisa ser usado a seu favor. Falar o que vem à
cabeça não faz de mim uma pessoa necessariamente honesta. O caminho é outro.
Discutindo a relação
“Você só quer me pegar?”, perguntou uma garota no bar, na lata. “Sim”, respondi. “E só quer
isso de mim?”, insistiu. “Não. Às vezes tenho vontade de conversar.” Achei que levaria um
tapa (que foi o que aconteceu quando uma amiga perguntou o que eu tinha achado do seu
corte novo de cabelo, e respondi sem piscar: “está pronta para o abate”), mas não. Ela
queria que fosse algo com sentimento. Fui sincero. Então não houve nada. Mas não dá para
ser direto e honesto assim sempre na hora de paquerar. Uma pesquisa com universitários
americanos diz que 34% dos homens admitiram mentir para ficar com alguém. E 11% das
mulheres mentem sobre peso em sites de relacionamento, segundo a empresa de segurança
online Symantec. Blanton defende que a honestidade é o caminho da felicidade em qualquer
tipo de relacionamento. Então vamos lá. Outra garota perguntou, no décimo dia, o que eu
faria no feriado. “Nada.” “Que coincidência, eu também.” Perguntei se era uma indireta para
chamá-la para sair. “Não, sou eu te chamando para sair, se estiver afim.” Fiquei impaciente e
expliquei que a grafia certa é “a fim”. “Obrigada, editor.” A conversa acabou. Ela não me
procurou mais.
Na quarta semana, a superioridade virou uma sensação de estar se despindo em público.
Incômodo, mas com certa dose de liberdade. Bastava não explodir tanto, apenas falar o que
sentia e convidar as pessoas a compartilhar a sinceridade. Dói? Muitas vezes. É claro que
falar “Olha, achava que tínhamos futuro, mas não vejo nada mais do que diversão em você,
ainda gosto de outra” pode ser um caroço de azeitona na garganta. É muito mais fácil
desconversar até que a pessoa desista. Aliás, “não há nada de errado, estou bem” é a mentira
mais contada por mulheres e a segunda mais usada por homens, segundo o Museu de Ciência
de Londres. Quem nunca?
Eu estava chegando ao nível 2 da honestidade radical: ser sincero com os sentimentos.
Mas para isso precisava de mais dedicação das pessoas à volta. Quando a sinceridade está
em via de mão única, é difícil. No 14º dia, em um bar, disse a uma menina frases do tipo:
“Você tem uma desagradável necessidade de ser descolada” e “Para que escrever um livro
de boatos sobre os outros, procure algo mais digno na vida”. A única reação que tive como
resposta foi um clima pesado na mesa e um olhar de pouco caso dela. Mas, no 22º dia,
retomamos a conversa. Ela saiu da defensiva e tivemos um papo sincero pela primeira vez
desde que a conheci. Mas foi só naquela noite. O casaco de couro, o batom vermelho e a
pose blasé voltaram no dia seguinte. Pelo menos em público.
Ao dizer somente a verdade, você se abraça a ela porque é o que tem a oferecer. No
oitavo dia, antes da despedida da banda de uns amigos, um deles me perguntou sobre seu
futuro musical. Ele estava emotivo, claro. E eu não podia mentir. Demorei alguns instantes
para falar o que sentia: “Você precisa se dedicar mais a se divertir do que a tentar fazer
sucesso. Não deposite nos outros colegas de música sua grande vontade de ser famoso”. Eu
me senti um idiota. Poderia ter dado rodeios e amaciado, falado algo que ele quisesse ouvir.
Era o último show, caramba! Mas esse era o eu desprotegido falando, sentindo falta da
manta quente da mentira. Fiquei tão perdido nesses pensamentos que quase não vi a reação
dele: “Sim, você está certo”. Sinceridade às vezes dói mais na gente. E por causa disso
podemos deixar de falar a verdade a quem mais importa.
S olidão antissocial
A reta final foi um caminho mais sofrido. Não aguentava mais me testar e ser testado a todo
momento. Não queria mais pedir que as pessoas repetissem o que estavam falando porque eu
não estava prestando atenção. Não aguentava mais ser encostado na parede. Nove anos de
histórias, brigas e paixões não correspondidas vieram à tona. A maioria das conversas,
reconheço, foi boa. Tive reveladoras discussões com amigos de trabalho, faculdade e
escola, colegas, chefe, chefe do chefe, garçom do bar preferido, dono do bar preferido. Mas
cansa. Demais. Só não discuti a relação com exnamorada.
Contabilizei oito pequenas mentiras no período. Coisas irrisórias que passariam
despercebidas normalmente, como “Não tenho dinheiro” para o vendedor ambulante da rua,
quando na verdade eu tinha. Tinha a sensação que perdi a necessidade de mentir à toa.
Mesmo que me achasse um pouco antissocial. Os melhores amigos se afastaram por um
tempo. Com um deles cortei a relação de vez ao dizer à sua namorada que a turma inteira
estava melhor longe dele. Passei a sair menos.
Não tinha mais vontade de conversar. Somente com quem se dispusesse a tentar ser
sincero de verdade comigo. O que foi ótimo. Renovei amizades. No saldo geral, apesar de
tudo, ouvi mais elogios que críticas à minha conduta. Mesmo cansado, estava indo bem, já
que Blanton havia alertado que o processo é lento. Pena que ele não pôde acompanhar o
final da vivência, pois nossa troca de mensagens foi interrompida quando ele foi
supostamente preso durante os protestos do movimento Ocupe Wall Street, nos EUA. Tudo
bem. Já estava bem menos apegado às mentiras fúteis que teimamos em incorporar no nosso
cotidiano. Valorizava mais o que importava. “Acho que agora acertei”, disse minha mãe ao
voltar à cozinha e preparar um macarrão. “Está ótimo”, respondi. Sincero.
nos tornou amigos
PURA, SINCERA, DESINTERESSADA. A
AMIZADE HUMANA NÃO NASCEU ASSIM.
MAS UM IMPROVISO DO CÉREBRO
MUDOU TUDO: CRIOU UM NOVO TIPO
DE RELAÇÃO, QUE REVOLUCIONOU A
CONVIVÊNCIA ENTRE AS PESSOAS - E
FEZ A HUMANIDADE SER O QUE É HOJE.
udo começou por puro interesse. Quando os primeiros macacos se tornaram amigos,
fizeram isso por motivos bem objetivos - ajudar uns aos outros em lutas contra rivais,
T no caso dos machos, e cuidar melhor dos filhotes, no caso das fêmeas. A amizade não
passava de uma troca de favores. Agora pense nos dias de hoje: com você e os seus
amigos, não é assim. Você tem amigos simplesmente porque gosta de estar na
companhia deles, certo? Errado. Você continua fazendo amizades por puro interesse -
no caso, alimentar o seu cérebro com uma substância chamada ocitocina.
Talvez você já tenha ouvido falar dela. É um hormônio que está relacionado ao instinto
mais primordial do ser humano: a reprodução. O orgasmo libera ocitocina - e estimula a
fêmea a contrair seu útero, o que leva o esperma do macho mais rapidamente até o óvulo e
aumenta as chances de ela engravidar. Mas seus efeitos mais profundos acontecem no
cérebro. A ocitocina é responsável pelo afeto que a fêmea desenvolve pelo macho, e pelo
amor incondicional que ela tem pelos filhos. Ou seja: é a ocitocina que fez, e faz, a espécie
se reproduzir com sucesso. Outros animais também produzem esse hormônio. Mas, entre os
humanos, ela é muito mais potente. Tanto que influi até nos machos - fazendo com que
assumam um comportamento carinhoso, o que é muito raro no mundo animal. “Só em 3% das
outras espécies de mamífero os machos cuidam dos filhotes”, explica o neurologista Paul
Zak, da Universidade da Califórnia.
Em algum momento da Pré-História, a relação com estranhos passou a ser necessária.
Provavelmente, isso aconteceu no momento em que grupos de hominídeos começaram a se
fixar em uma mesma região, e viver em grupos cada vez maiores. E foi aí que surgiu a forma
mais primitiva de amizade. “Os amigos fornecem um suporte social para os primatas”, diz o
antropólogo Robin Dunbar, da Universidade de Oxford.
Há cerca de 10 mil anos, a ocitocina ganhou um papel maior. O homem fez sua primeira
grande invenção - a agricultura, que viria a revolucionar a relação da espécie com o
alimento (e abrir espaço para todas as revoluções seguintes). Mas ela só dava certo se
tivesse a colaboração de vários indivíduos. Aí, a ocitocina deixou de ser apenas uma coisa
“de família” para agir em prol da sociedade - e facilitar a formação das alianças de que a
humanidade precisava. Ela nos condicionou a fazer amigos.
Experiências feitas na Universidade da Califórnia comprovaram que, quando você
conhece uma pessoa que lhe pareça confiável, o nível de ocitocina no seu cérebro aumenta.
Isso faz com que você se sinta mais propenso a criar uma relação com aquela pessoa. Ou
seja: graças à ocitocina, o cérebro aprendeu a transformar algo que era necessário à
sobrevivência - a cooperação - em prazer.
Com a evolução, a amizade deixou de ser imprescindível à sobrevivência do indivíduo.
No mundo atual, para obter comida, basta ir a um restaurante. Dá para fazer isso sozinho.
Mas é muito desagradável - porque o seu cérebro está condicionado a fazer alianças (e
também porque, como você verá na próxima matéria, a amizade tem uma série de efeitos
importantes no organismo). É por isso que procuramos amigos, mesmo que tecnicamente não
precisemos deles. “A ocitocina faz com que tratemos estranhos como se fossem nossa
própria família. E a amizade é exatamente isso”, diz Zak.
Como tudo o que tem base biológica, a amizade afeta os sexos de maneiras diferentes. As
mulheres produzem mais ocitocina do que os homens. E isso faz com que seu cérebro se
organize para ter amizades profundas. Testes feitos no Instituto Nacional de Saúde Mental
dos EUA apontaram que, nas mulheres, as áreas do cérebro ligadas a emoções e produção de
hormônios se acendem quando existe a possibilidade de conhecer alguém novo. Nos
meninos, isso não acontece. É por isso que as mulheres têm, sim, amizades mais intensas do
que os homens. Mas, por isso mesmo, elas também são menos tolerantes - e suas amizades
duram menos. Aliás, existe amizade (sem envolver sexo) entre homens e mulheres? Existe e
não existe. Por um lado, a origem desse sentimento é inegavelmente sexual. A amizade entre
homens e mulheres nasceu para facilitar a reprodução e a criação dos filhotes. E ela é
alimentada pela ocitocina - que é liberada durante o sexo. Por outro lado, a evolução nos
tornou capazes de separar as coisas. Isso porque, quando a ocitocina adquiriu sua função
social (facilitar a criação de alianças entre as pessoas do mesmo sexo), o cérebro humano
também mudou. Ele ganhou muito mais receptores de ocitocina, que foram se espalhando por
várias regiões cerebrais - inclusive aquelas que nada têm a ver com o desejo sexual. Por
isso, a ocitocina que é liberada quando você está com amigos (seja do mesmo sexo, seja do
oposto) não produz o mesmo efeito da ocitocina que é liberada quando você está namorando
ou fazendo sexo. É diferente.
B em menos que 1 milhão
Ter amigos só traz benefícios. Quanto mais, melhor. Mas há um limite. Um estudo feito na
Universidade de Oxford comparou o tamanho do cérebro humano, mais precisamente do
neocórtex (área responsável pelo pensamento consciente), com o de outros primatas. Ele
cruzou essas informações com dados sobre a organização social de cada uma das espécies
ao longo do tempo. E chegou a uma conclusão reveladora: 150 é o máximo de amigos que
uma pessoa consegue ter ao mesmo tempo.
Para que você mantenha uma amizade com alguém, precisa memorizar informações sobre
aquela pessoa (desde o nome até detalhes
da personalidade dela), que serão acionadas quando vocês interagirem. Por algum motivo,
o cérebro não comporta dados sobre mais de 150 pessoas. Os relacionamentos que
extrapolam esse número são inevitavelmente mais casuais. Não é amizade. Outros
pesquisadores foram além e constataram que, dentro desse grupo de 150, há uma série de
círculos concêntricos de amizade: 5, 15, 50 e 150 pessoas, cada um com características
diferentes.
O curioso é que esses círculos já haviam sido mencionados por filósofos como Confúcio,
Platão e Aristóteles - e também estão presentes em várias formas de organização humana. Na
Antiguidade clássica, cinco já era considerado o número máximo de amigos íntimos que
alguém poderia ter. Tirando o futebol, 12 a 15 pessoas é a quantidade de jogadores na
maioria dos esportes coletivos. Cinquenta é o número médio de pessoas nos acampamentos
de caça em comunidades primitivas (como os aborígenes da Austrália, por exemplo). Cento
e cinquenta é o tamanho médio dos grupos do período Neolítico, dos clãs da sociedade pré-
industrial, das menores cidades inglesas no século 11 e, até hoje, de comunidades
camponesas tradicionais, como os amish (que dividem uma comunidade em duas quando ela
ultrapassa as 150 pessoas). Os 150 podem, inclusive, ser a chave do sucesso profissional.
Como no caso da Gore-Tex, uma empresa têxtil americana que se divide (e abre uma nova
sucursal) cada vez que seu número de funcionários passa de 150 pessoas. A vantagem disso
é que todos os empregados se conhecem, têm relações amistosas e cooperam melhor. “As
coisas ficavam confusas quando havia mais de 150 pessoas”, explicou o fundador da
empresa, William Gore, numa entrevista concedida alguns anos antes de morrer, em 1986. E
a aposta nesse modelo de organização deu certo. A Gore-Tex virou uma multinacional com
US$ 2,5 bilhões de faturamento anual - e é apontada pela revista Fortune como um dos cem
melhores lugares para trabalhar desde que esse ranking começou a ser compilado, em 1984.
Mas, mesmo com tantos exemplos práticos, ninguém sabe explicar por que nosso limite de
amizades é de 150 pessoas. Para os cientistas, foi como o cérebro conseguiu construir e
administrar o que viria a se tornar, ao longo do tempo, o bem mais importante da espécie
humana: a rede social.
Parte 2: A coisa mais importante da
vida
VOCÊS COMPARTILHAM EXPERIÊNCIAS, DIVIDEM
SEGREDOS, INFLUENCIAM UNS AOS OUTROS.
PASSAM JUNTOS OS MELHORES MOMENTOS
DA VIDA. SEUS AMIGOS PODEM LHE TRAZER
SAÚDE, RIQUEZA E FELICIDADE - OU TIRAR TUDO
ISSO DE VOCÊ. VEJA POR QUE ELES SÃO AINDA
MAIS IMPORTANTES DO QUE VOCÊ IMAGINA.
Qual é a primeira coisa que você faz quando entra na internet? Checa seu e-mail, dá uma
olhadinha no Twitter, confere as atualizações dos seus contatos no Orkut ou no Facebook?
Há diversos estudos comprovando que interagir com outras pessoas, principalmente com
amigos, é o que mais fazemos na internet. Só o Facebook já tem mais de 500 milhões de
usuários, que juntos passam 700 bilhões de minutos por mês conectados ao site - que chegou
a superar o Google em número de acessos diários. A internet é a ferramenta mais poderosa
já inventada no que diz respeito à amizade. E está transformando nossas relações: tornou
muito mais fácil manter contato com os amigos e conhecer gente nova. Mas será que as
amizades online não fazem com que as pessoas acabem se isolando e tenham menos amigos
off-line, “de verdade”? Essa tese, geralmente citada nos debates sobre o assunto, foi criada
em 1995 pelo sociólogo americano Robert Putnam. E provavelmente está errada. Uma
pesquisa feita pela Universidade de Toronto constatou que a internet faz você ter mais
amigos - dentro e fora da rede. Durante a década passada, período de surgimento e ascensão
dos sites de rede social, o número médio de amizades das pessoas cresceu. E os chamados
heavy users, que passam mais tempo na internet, foram os que ganharam mais amigos no
mundo real - 38% a mais. Já quem não usava a internet ampliou suas amizades em apenas
4,6%.
Então as pessoas começam a se adicionar no Facebook e no final todo mundo vira amigo?
Não é bem assim. A internet raramente cria amizades do zero - na maior parte dos casos, ela
funciona como potencializadora de relações que já haviam se insinuado na vida real. Um
estudo feito pela Universidade de Michigan constatou que o segundo maior uso do Facebook,
depois de interagir com amigos, é olhar os perfis de gente que acabamos de conhecer. Se
você gostar do perfil, adiciona aquela pessoa, e está formado um vínculo. As redes sociais
têm o poder de transformar os chamados elos latentes (pessoas que frequentam o mesmo
ambiente social que você, mas não são suas amigas) em elos fracos - uma forma superficial
de amizade. Pois é. Por mais que existam exceções a qualquer regra, todos os estudos
apontam que amizades geradas com a ajuda da internet são mais fracas, sim, do que aquelas
que nascem e crescem fora dela.
Isso não é inteiramente ruim. Os seus amigos do peito geralmente são parecidos com
você: pertencem ao mesmo mundo e gostam das mesmas coisas. Os elos fracos não. Eles
transitam por grupos diferentes do seu, e por isso podem lhe apresentar coisas e pessoas
novas e ampliar seus horizontes - gerando uma renovação de ideias que faz bem a todos os
relacionamentos, inclusive às amizades antigas. Os sites sociais como Orkut e Facebook
tornam mais fácil fazer, manter e gerenciar amigos. Mas também influem no desenvolvimento
das relações - pois as possibilidades de interagir com outras pessoas são limitadas pelas
ferramentas que os sites oferecem. “Você entra nas redes sociais e faz o que elas querem que
você faça: escrever uma mensagem, mandar um link, cutucar”, diz o físico e especialista em
redes Augusto de Franco, que já escreveu mais de 20 livros sobre o tema. O problema, por
assim dizer, é que a maioria das redes na internet é simétrica: se você quiser ter acesso às
informações de uma pessoa ou mesmo falar reservadamente com ela, é obrigado a pedir a
amizade dela, que tem de aceitar. Como é meio grosseiro dizer “não” a alguém que você
conhece, mesmo que só de vista, todo mundo acabava adicionando todo mundo. E isso vai
levando à banalização do conceito de amizade. “As pessoas a quem você está conectado não
são necessariamente suas amigas de verdade”, diz o sociólogo Nicholas Christakis, da
Universidade Harvard. É verdade. Mas, com a chegada de sites como o Twitter, a coisa
ficou diferente.
Amizade assimétrica
No Twitter, eu posso te seguir sem que você tenha de autorizar isso, ou me seguir de volta. É
uma rede social completamente assimétrica. E isso faz com que as redes de “seguidores” e
“seguidos” de alguém possam se comunicar de maneira muito mais fluida. Ao estudar, com
um time de pesquisadores, a sua própria rede no Twitter, Christakis percebeu que seu grupo
de amigos tinha começado a se comunicar entre si independentemente da mediação dele.
Pessoas cujo único ponto em comum era o próprio Christakis acabaram ficando amigas entre
si. “As redes sociais estão ficando maiores e mais diversificadas”, diz o sociólogo e
pesquisador de redes Barry Wellman, da Universidade de Toronto.
É o seguinte. Eu posso me interessar pelo que você tem a dizer e começar a te seguir. Nós
não nos conhecemos. Mas você saberá quando eu o retuitar ou mencionar seu nome no site, e
poderá falar comigo. Meus seguidores também podem se interessar pelos seus tuítes e
começar a seguir você. Os seus seguidores podem ter curiosidade sobre mim e entrar na
conversa que estamos tendo. Em suma: nós continuaremos não nos conhecendo, mas as
pessoas que estão à nossa volta estabelecem vários níveis de interação - e podem até mesmo
virar amigas entre si.
Mas boa parte dos cientistas ainda acha que, mesmo estando em contato com qualquer
pessoa mais facilmente e a todo o momento, a distância continuará prejudicando as
amizades. “A internet faz com que você consiga desacelerar o processo, mas não salva as
relações”, acredita o antropólogo Robin Dunbar. “No fim das contas, ainda precisamos estar
próximos das pessoas de vez em quando.” É verdade. A maioria dos especialistas em
relacionamento humano acredita que a proximidade física é essencial para sentirmos os
efeitos benéficos das amizades profundas. Só que o cérebro pode estar começando a mudar
de opinião.
Um estudo que está sendo realizado na Universidade da Califórnia começou a desvendar o
efeito que as redes sociais produzem no organismo. Mais precisamente, o que acontece com
os níveis de ocitocina quando usamos o Twitter, por exemplo. É há um efeito. Os primeiros
resultados mostraram que tuitar estimula a liberação desse hormônio, e consequentemente
diminui os níveis de hormônios como cortisol e ACTH, associados ao estresse.
Isso significa que o cérebro pode ter desenvolvido uma nova maneira de interpretar as
conversas no Twitter. “O cérebro entende a conexão eletrônica como se fosse um contato
presencial”, diz Paul Zak. Isso seria uma adaptação evolutiva ao uso da internet. “O sistema
de ocitocina está sempre se ajustando ao ambiente em que você está”, diz. “Pode ser que, de
tanto interagir em redes sociais, as pessoas estejam se tornando mais sintonizadas para a
amizade. E aí elas acabam fazendo mais amigos, inclusive presencialmente.” Ou seja: além
de mudar as amizades, a internet também pode acabar modificando o próprio cérebro
humano. Mas ainda é cedo para dizer se acabaremos nos tornando seres hiper-sociais, com
cérebros capazes de acomodar um número maior de amigos. O próprio Paul Zak diz que não
é possível desconsiderar a importância do contato físico - um dos mais importantes
estimulantes da liberação de ocitocina no organismo. “No máximo, vamos ter mais
possibilidades de manter relações íntimas a distância por mais tempo”, diz. Outros, como
Robin Dunbar, acham que a tecnologia ainda pode nos surpreender e romper a última
barreira da amizade online: “O Skype e outros serviços do tipo ainda não são bons o
suficiente, porque não nos permitem tocar um no outro em realidade virtual”. Ainda.