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FÍSICA
O QUE É A
PERSPETIVA QUÂNTICA?
PÁG. 14
TECNOLOGIA
COMO SOBREVIVER A UM
BLACKOUT NA INTERNET?
PÁG. 49
HISTÓRIA
NABATEUS, O POVO MISTERIOSO
QUE CONSTRUIU PETRA
PÁG. 73
ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO
OS ANIMAIS CONHECEM
A “MATEMÁTICA”
PÁG. 62
NEUROPRIVACIDADE
JÁ É POSSÍVEL LER A MENTE E IMPLANTAR MEMÓRIA.
COMO DEVE SER REGULAMENTADA?
VIVER A HISTÓRIA
COM PAIXÃO
Nova
edição
de coleç
ão
AGORA À VENDA!
EDITORIAL
da neurotecnologia
Direção: Carmen Sabalete
(csabalete@zinetmedia.es).
Editora-chefe: Cristina Enríquez
(cenriquez @zinetmedia.es).
Edição gráfica: Manuela Arias
A
imparável evolução tecnológica levanta, inevitavelmente (marias@zinetmedia.es).
(e para nosso bem) questões éticas. É agora possível tanto Coordenação de design: María Somonte
registar a atividade neuronal como agir diretamente sobre (msomonte@zinetmedia.es).
certas regiões do cérebro. Por exemplo, uma das últimas inovações Colaboram neste número:
é o desenvolvimento de uma interface neural direta capaz de captar Miguel Á. Sabadell, Carlos Aguilera, Carmen Castellanos,
Laura G. de Rivera, Jorge de los Santos, Marta Peirano,
a atividade elétrica do cérebro e entregar esta informação a um Ramón Núñez, Chanda Prescod-Weinstein, Amanda
computador para que possa ser processada e interpretada. Isto é Gefter, Juan Fernández, Silvia Collado, José Á. Martos,
Daniel Méndez, Eugenio M. Fernández, Henar L. Senovilla,
conseguido através da simples instalação de sensores que registam Vicente Bustillo, José M. Viñas, Leila Pallarés, Gema
as ondas cerebrais e não requerem qualquer intervenção cirúrgica. Boiza, José M. López Nicolás, Borja Bauza, Javier
Moreno, Janire Rámila, Sergio Parra, Javier Rada y Eva
Estes avanços podem melhorar a qualidade de vida de muitas Carnero (editora).
pessoas, uma vez que ao intervir na atividade elétrica do cérebro, os
Conselho Editorial:
efeitos de doenças como Parkinson, dores crónicas ou perturbações José Pardina, Angela Posada-Swarford, Ramón Núñez,
neurológicas podem ser atenuados. No entanto, o que acontece Miguel Á. Sabadell, Elena Sanz, Pampa García,
Manu Montero, Mario García Bartual,
se os dados registados forem utilizados para outros fins? É aí que José Á. Martos, Fernando Cohnen.
importa impor limites legais. O que aconteceria se estes dispositivos
EN D EREÇO E T E LE FONE
identificassem as nossas emoções e padrões de comportamento
C/ Alcalá 79 1.º A - 28009 Madrid - España;
e os associassem a estímulos específicos? É sem dúvida um tema Tel. +34 810 583 412
Email: minteresante@zinetmedia.es
apaixonante, um debate multidisciplinar que temos de enfrentar e
Subscrições: tel. 910 604 482.
que mereceu ser o protagonista da nossa capa. Contudo, nesta edição
Email: suscripciones@zinetmedia.es
encontrará outros artigos que, como sempre,
não o deixarão indiferente: a verdade sobre
os filmes snuff, a intervenção de hormonas
em ciclos anuais e não apenas em ritmos
circadianos, a explicação de como o Sol brilha,
Chefe do Executivo: Marta Ariño
o que é a perspetiva quântica, como se formou
Responsável financeiro: Carlos Franco
oxigénio da Terra, quem foram os misteriosos Diretor Comercial: Alfonso Juliá
Nabateus, as pessoas que construíram a bela (ajulia@zinetmedia.es)
Diretor de Desenvolvimento Empresarial:
Carmen Sabalete, Petra, ou como as alterações climáticas afetam
diretora Óscar Pérez-Solero (operez@zinetmedia.es)
csabalete@zinetmedia.es o equilíbrio emocional. Tenho a certeza de
Editada por Zinet Media Global, S.L.
que desfrutará da leitura de cada um deles.
DISTRIBUIÇÃO:
V.A.S.P. Distribuidora de Publicaçöes, S.A.
EDIÇÃO A TRAIÇÃO
BIBLIOTECA DE ESTALINE
PORQUÊ As ambições soviéticas
POLÓNIA
de Jornais de Informação (ARI).
PINTAR?
ORIGEM A cobiçada presa
GRANDES DRAMAS
Da República Do genocídio judeu ao
CARICATURAS, ao Império SILÊNCIO
OS INÍCIOS COMPROMETIDO massacre de Katyn
MONET A LUZ DO INSTANTE
Posturas da França
© Zinet Media Global, S.L. Todos os direitos reservados. Esta
O IMPÉRIO ROMANO
A RENOVAÇÃO DA MULHERES
O plano mestre de Hitler
publicação é propriedade exclusiva da Zinet Media Global, S.L.,
PINTURA PAISAGÍSTICA Para além EXÉRCITOS
O MUNDO DO
da domus E ARMAS
Uma guerra
e a sua reprodução total ou parcial, não autorizada, é
IMPRESSIONISMO desigual
PRELÚDIO DA
TERRITÓRIO
Uma Roma, totalmente proibida, de acordo com os termos da legislação
mil províncias
ABSTRAÇÃO
em vigor. Os contraventores serão perseguidos legalmente,
MONET
A LUZ DO INSTANTE
O IMPÉRIO ROMANO
história e vida quotidiana
A INVASÃO
DA POLÓNIA
INÍCIO DA II GUERRA MUNDIAL
tanto a nível nacional como internacional. O uso, cópia,
reprodução ou venda desta revista só poderá realizar-se com
autorização expressa e por escrito da Zinet Media Global, S.L.
Muy Interesante - 3
Sumário
AGE
39
SHTUTTERSTOCK
13
SHUTTERSTOCK
AGE
90
65
R EP OR TAGENS
CA PA 10 Como brilha o Sol? 88 A origem do oxigénio
14 Outra realidade A fusão nuclear no interior do Sol é a causa
da sua luz visível.
Os cientistas culpam a vida microbiana pela
O que é a perspetiva quântica? sua origem que mudou a terra.
62 Fauna Matemática
Existem alternativas ao atual consumo e
fornecimento de carne? EN T R E V ISTA S
Os animais utilizam a matemática para 22 Katrine Marçal
sobreviver. 56 Compreendo o meu médico Esta jornalista, autora de A mãe do Engenho diz-
A comunicação sanitária está a iniciar um novo nos como o facto de ignorar as mulheres tem
73 Os Nabateus curso que procura aproximar-se do paciente. abrandado o desenvolvimento tecnológico.
O povo misterioso que construiu
Petra.
80 Filmes snuff 68 Miguel Nicolelis
Os filmes sobre assassinatos reais existem O neurocientista fala sobre a necessidade de
FOTO DE COBERTURA: SHUTTERSTOCK
realmente ou são apenas um mito mórbido? transformar energia em conhecimento.
4 SUPER
SALA BIT DISCOVERY
POR
MARTA PEIRANO
INTELIGÊNCIA
PARTILHADA
PODEMOS ESTAR A ASSISTIR AO INÍCIO DE UMA ERA EM QUE A PROGRAMAÇÃO
JÁ NÃO É O TERRITÓRIO EXCLUSIVO DE HOMENS JOVENS, BRANCOS, RICOS E
HETEROSSEXUAIS.
eep Blue derrotou pela primeira vez Garry Kas- Será que Watson compreendeu que a piada de Jennings era uma
D
parov em 1997, durante um torneio de seis jo- citação dos Simpsons citando Orson Welles? A resposta a essa
gos contra o campeão mundial. O russo tinha pergunta é: depende do que se entende por “compreender”.
vencido a máquina em Filadélfia, mas perdeu
para ela em Nova Iorque. Primeiro ponto para ALAN TURING COLOCOU A QUESTÃO EM 1947, PERANTE O LABORATÓ-
as máquinas. Em 2011, outra máquina IBM bateu dois huma- RIO NACIONAL DE FÍSICA, e não a tinha resolvido quando come-
nos pela primeira vez no Jeopardy, o equivalente americano teu suicídio em 1954, aos 42 anos de idade. Mas ele pensava que
do concurso Saber y Ganar. Tinha sido nomeado Watson em em cinquenta anos teríamos conseguido construir máquinas
honra do fundador da empresa, Thomas J. Watson, o vende- capazes de pensar ou, pelo menos, capazes de nos imitar tão
dor ambulante de pianos e máquinas de costura que fundou eficientemente que não notaríamos a diferença entre nós e elas.
o primeiro império informático. Em 1937, Watson recebeu a Quando o GPT-3, o modelo linguístico de OpenAI, provou ser
Cruz de Mérito da Ordem da Águia Alemã por serviços pres- capaz de escrever artigos, competir com romancistas imitando
tados ao regime nazi, que se revelaram indispensáveis pa- o seu próprio estilo, e até discutir política ou economia, muitas
ra a condução eficiente da chamada Operação Final. Nessa pessoas gritaram alto, declarando que este era o fim do jorna-
noite no Jeopardy, o novo Watson esmagou impiedosamente lismo, o fim da ficção. Esperemos que isso seja verdade, pelo
um dos jogadores mais antigos da história do espectáculo. menos algum do tipo de jornalismo automático que preenche
Ken Jennings, famoso por ganhar 74 espectáculos seguidos, as newsletters das agências, ou as variações da Fan Fiction
escreveu no seu ecrã: “E eu, pela minha parte, gostaria de que triunfam na Internet. No verão passado, a empresa de São
dar as boas-vindas aos nossos novos amos, as máquinas”. Francisco apresentou um GPT-3 para código, chamado OpenAI
Humanos zero, máquinas dois. Em 2016, Alpha Go venceu o Codex, capaz de escrever Go, JavaScript, Perl, PHP, Ruby, Shell,
melhor jogador Go de todos os tempos e deixámos de contar. Swift, TypeScript e, acima de tudo, Python.
O jogo parece perdido.
HÁ TANTA BELEZA E CRIATIVIDADE NO CÓDIGO, COMO EM LITERA-
FAZ FALTA UM GÉNIO PARA VENCER KASPAROV NO XADREZ OU LEE TURA, MÚSICA, xadrez e Go. Nem todo o código que produ-
SEDOL NUM JOGO DE GO. O génio do Deep Blue era ser capaz de zimos é belo, inteligente ou criativo. É um desperdício de
calcular um milhão de posições por segundo num jogo que humanidade. Por outro lado, Kasparov que aprendeu jo-
consiste em tomar gando contra o Deep
decisões baseadas no Blue e Lee Sedol
SHUTTERSTOCK
SUPER 5
DISCOVERY NOVIDADES
A INTELIGÊNCIA
SHUTTERSTOCK
Os corvos detetam
ameaças, usam
AO SERVIÇO
DO AMBIENTE
odos os anos, mil milhões de pontas
66- SUPER
Muy Interesante
ATUALIDADE DISCOVERY
SHUTTERSTOCK
Living Lang, uma
ferramenta capaz
de detetar
notícias falsas
através da IA
CONTRA O EMBUSTE
nunca se está sozinho, mas um os adultos mais velhos contra a
estudo no Japão mostra agora descapacitação física se com-
que as pessoas mais velhas binada com o exercício físico,
que possuem cães têm um ris- orientando os esforços para
co mais baixo de desenvolver promover um envelhecimen-
s notícias falsas foram definidas pelo New York Ti-
A
incapacidades físicas do que to saudável.” A investigação
mes como “uma história inventada com a intenção
as que não os têm. A revista também salientou que passear
de enganar, muitas vezes com o ganho monetário
PLoS ONE realizou um inqué- um cão durante a fase mais
como motivo”. E não há dúvida de que a pandemia
rito a mais de 11.000 pessoas dura do confinamento “pode
desencadeou a circulação deste tipo de informação nas redes,
idosas no Japão. Algumas ter sido especialmente útil
a fim de desinformar, manipular, controlar ou influenciar. Os
investigações já tinham asso- para evitar problemas físicos
investigadores do MIT (Massachusetts Institute of Technology)
ciado um menor risco de fra- resultantes de restrições de
realizaram um estudo mostrando que este tipo de notícias se
gilidade entre os adultos mais mobilidade”. Além disso, uma
espalha muito mais longe, mais depressa e mais amplamente do
velhos se tivessem um cão, análise de quatro milhões de
que as notícias reais. Daí a importância desta nova descoberta.
uma vez que partilhar a vida pessoas concluiu que a posse
O Departamento de Linguagens e Sistemas Informáticos da
com um cão significa um ele- de um cão estava associada a
Universidade de Alicante, o grupo de investigação GPSLI, jun-
vado nível de atividade física e uma redução de 24% na morte
tamente com a Universidade de Jaén, o grupo de investigação
social. Esta relação mantém-se prematura. E se a pessoa já
SINAI, desenvolveram um sistema capaz de descobrir embustes e
mesmo quando outros fatores tivesse sofrido um ataque ou
notícias falsas relacionadas com a saúde através da inteligência
sociodemográficos e de saúde AVC, reduzia a probabilidade
artificial. O projeto Living Lang alimenta o sistema de inteligên-
são tidos em conta. Os inves- de morrer de doença cardio-
cia artificial com uma base de dados de 228 notícias, embustes
tigadores afirmaram que “a vascular em 31%.
e informações falsas com a aparência premeditada de notícias
reais. Living Lang compara notícias reais e falsas para ver se a
inteligência artificial consegue distingui-las. Nas fases iniciais
SHUTTERSTOCK
SUPER 7
DISCOVERY ATUALIDADE
É
desertos e zonas de temperaturas um modelo de fabrico de alimentos virais tanto nos meios de comunicação social
como nas redes sociais. Em geral, como acontece
GETTY
com os vídeos de gatinhos, tendem a ser notícias
Um membro do insípidas ou curiosas. Isto aconteceu no final de Março com
pessoal do LSG a descoberta da “mais distante estrela individual alguma vez
serve comida observada”. Um pequeno pormenor: todos os meios de comu-
enlatada aos nicação, com honrosas exceções - como Super Interessante
astronautas. - acrescentaram o adjetivo “individual”, no que eu diria ser uma
má interpretação do comunicado de imprensa original, onde
aparece a expressão “single-star record holder”. Foi a agência
noticiosa Europa Press que incluiu “single-star”, e acho que foi
de lá que os meios de comunicação social beberam. Isto leva-
-me a duas conclusões.
A primeira é a necessidade de haver pelo menos um jornalista
científico em cada meio de comunicação social, de modo a que
possamos tonificar coisas como “estrela única”, como se estes
sóis cintilantes, por definição, não o fossem. Para esclarecer: a
referência à estrela única no comunicado de imprensa original é
em oposição aos aglomerados de estrelas, um aparte que o es-
critor original poderia facilmente ter deixado de fora. A segunda
conclusão, talvez a mais injusta, é que esta história noticiosa de-
monstra a ausência de narrativa na escrita de notícias científicas .
A pergunta a que devemos tentar responder, como regra geral,
quando se escreve uma notícia é: porque é que o leitor deve sa-
ber isto? Obviamente, se quiser contar uma mera curiosidade,
responder a essa pergunta é irrelevante. É como um “vídeo de
gatinhos”, tão inane que uma vez visto, esquecemo-nos dele.
8 SUPER
DA VIDA QUOTIDIANA SCIENCE
A
so de
um dos setores mais impor- destilação é
tantes do tecido empresarial. realizado com
Em Espanha, 79 milhões de flores, semen-
perfumes foram vendidos em 2021, um tes, conchas,
aumento de 26% em comparação com o madeiras e er-
ano anterior. Estes números não devem vas aromáticas.
surpreender, pois o perfume é um aces-
sório essencial para os espanhóis (94,6%
usam-no mais ou menos frequentemente
e 54,7% usam-no diariamente). Mas os
odores não se encontram apenas nos per-
fumes. Também emanam de desodorizan-
tes, purificadores de ar, detergentes, etc.
Em todos eles, são utilizados ingredientes
com elevado potencial aromático na sua
SHUTTERSTOCK
formulação.
SUPER 9
UA RN TI VÍ CE RU SL O
SHUTTERSTOCK
Grandes
tempestades
solares podem
ocorrer em
qualquer período
do Sol. Uma
equipa de
cientistas afirma
que uma muito
extrema ocorreu há
9200 anos atrás.
10 SUPER
COMO BRILHA O
A luz do Sol deve-se à fusão nuclear que tem lugar no seu interior. Produzem-se tantas
reações que a quantidade de energia libertada é imensa. A luz visível, que leva oito minutos
a chegar à Terra, é parte dessa energia que perdeu potência. Descubra em detalhe cada
uma das fases que explicam a luminosidade do Sol.
U
ma das melhores coisas de ser colunista da New
Scientist é o público leitor. Posso dizer que lêem
cuidadosamente as minhas colunas porque rece-
bo e-mails fantásticos com perguntas inteligentes
sobre elas. No mês passado escrevi sobre como
funciona a fusão dentro da esfera de gás de plasma
local, também conhecida como Sol. Isto motivou
uma carta de alguém que tinha sido encorajado a
ler cuidadosamente como funciona a fusão e que
se tinha apercebido de que existem inconsistên-
cias na literatura científica sobre este assunto.
Ora bem, não será novidade para muitos de nós
que existem mistérios não resolvidos associados ao sol. Na minha última co-
luna, escrevi sobre o problema do aquecimento coronal, o facto de uma das
camadas mais exteriores do sol ser significativamente mais quente do que a
sua superfície. Seria de esperar o contrário: que à medida que nos afastamos da
SUPER 11
Imagem do Telescópio
Espacial Spitzer da NASA
mostrando o que se
encontra perto da espada
da constelação Orion.
NASA
fonte de energia primária do Sol no seu núcleo central, Isto parece ser uma simples questão de colagem de
as regiões exteriores tornar-se-iam cada vez mais frias elementos, mas não é. De facto, as condições têm de
(uma das minhas esperanças para 2022 é que este pro- ser as adequadas. O hidrogénio tem de estar suficien-
blema seja resolvido, ou pelo menos que um dos meus temente quente e suficientemente perto para se fun-
alunos decida abordá-lo ele próprio). dir. E todo este processo, a fusão, acontece em várias
Mas o Sol não tem apenas grandes mistérios pontuais. fases. As teorias que descrevem como tudo isto acon-
O funcionamento básico de como arde é complicado e tece não são a física Newtoniana clássica que descreve,
muitas vezes imperfeitamente compreendido. por exemplo, dois jogadores de futebol a colidir quan-
do ambos querem controlar a bola. Em vez disso, pre-
A RAZÃO PELA QUAL AS ESTRELAS BRILHAM encontra-se ge- cisamos da mecânica quântica e da física nuclear.
ralmente no facto de a força da gravidade ter atraído Um dos problemas que dificulta a ocorrência da
átomos de hidrogénio suficientes para um lugar tão fusão de hidrogénio é que o átomo de hidrogénio
próximo que começam a fundir-se em hélio. Pode di- mais simples, um isótopo chamado prótio, tem ape-
zer-se que a origem de todas as estrelas começa desta nas um protão com carga positiva e nenhum eletrão
forma. Quando o hidrogénio se esgota, o hélio começa quando ionizado sob as condições extremas de fusão,
a fundir-se, e assim sucessivamente, produzindo ele- pelo que tem uma carga global positiva. Tal como as
mentos cada vez mais pesados. cargas similares se repelem mutuamente, assim dois
É aqui que nós, humanos, começamos. A maioria dos protões de prótio repelem-se eletricamente. A gra-
elementos de que somos compostos são feitos nas estre- vidade atua contra isto, juntando-as. Temos, por-
las, e durante as supernovas e kilonovas, as mortes por tanto, forças que competem entre si. Além disso,
explosão destas enormes estrelas. há outra força, a força nuclear forte, que é ativada
12 SUPER
O funcionamento básico de como o Sol arde exige uma explicação
complexa e é muitas vezes imperfeitamente compreendido
AGE
quando as partículas estão muito próximas umas das Representação da
outras e as junta. Esta força acaba por inclinar a ba- força nuclear forte. É
lança. De modo que quando se ativa, os dois prótios uma das quatro forças
podem colidir entre si. fundamentais que
sustentam a estrutura
do Universo.
A PARTE SEGUINTE DA HISTÓRIA É NOVAMENTE MAIS COMPLEXA
DO QUE OS RELATOS MAIS GENERALIZADOS POR VEZES ADMITEM.
Em vez de expelir instantaneamente um átomo de hé-
lio, estas duas partículas em colisão expelem na reali-
dade outro tipo de hidrogénio que tem um protão e um
neutrão (deutério), bem como um positrão (a versão
antimatéria de um eletrão) e outra partícula fundamen-
tal, um neutrino. Nesta etapa do processo, entra em jo-
go outra força fundamental, a força nuclear fraca.
Neste ponto, sugiro que mantenha o alento, porque o
processo não acaba aqui. O positrão recém formado es-
tá agora em posição de se aniquilar quando inevitavel-
mente entra em contacto com um eletrão, uma colisão
que produz dois fotões, ou partículas de luz.
Estes fotões acabarão por sair do Sol e talvez, a dada
altura, tenhamos registos de que chegam ao nosso pla-
neta, fornecendo uma pequena fração da luz solar que
rege as nossas vidas.
SHUTTERSTOCK
SUPER 13
F Í S I C A
Representação
SHUTTERSTOCK
da inter-relação
entre o peso de
diferentes objetos
espaciais e a sua
influência na
distorção do
espaço-tempo.
14 SUPER
O QUE É A
PERSPETIVA
QUÂNTICA?
Existe uma realidade objetiva única partilhada por todos os observadores? A comunidade
científica atual está a tentar responder a esta questão, que tem sido objeto de estudo por parte
dos investigadores ao longo dos tempos. Revemos os marcos mais relevantes desta questão, que
encontra na física quântica uma nova perspetiva cuja viagem parece fascinante.
SUPER 15
O princípio da
complementaridade
refere-se ao princípio da
incerteza de Heisenberg,
que é fundamental para a
quântica.
N
ASC
a física, como na vida, é im- Curiosamente, a resposta parece ser não, até começarmos
portante ver as coisas a partir a falar entre nós.
de mais do que uma perspeti- Quando Einstein desenvolveu a sua teoria da relativida-
va. Ao fazê-lo, no último sécu- de no início do século XX, ele partiu de uma premissa fun-
lo, temos tido muitas surpre- damental: as leis da física devem ser as mesmas para to-
sas. Uma delas foi a teoria da dos. O problema é que as leis do eletromagnetismo exigem
relatividade especial de Albert que a luz viaje sempre a 299 792 quilómetros por segundo,
Einstein, que nos mostrou que e Einstein apercebeu-se de que isso criava um problema.
a dimensão do espaço e a du- Se correr ao lado de um feixe de luz numa nave espacial,
ração do tempo variam con- esperaria ver o feixe mover-se muito mais lentamente do
soante quem observa. Pintou que o normal, tal como os carros vizinhos não parecem ir
também um quadro totalmente inesperado da realidade tão depressa quando se está a descer a auto-estrada em ve-
partilhada subjacente: um quadro em que espaço e tem- locidade. No entanto, se fosse esse o caso, as leis da física
po se fundiam numa união tetradimensional conhecida seriam violadas nessa perspetiva.
como espaço-tempo.
Quando a teoria quântica apareceu mais tarde, as coi- NO MUNDO QUÂNTICO, NUNCA HOUVE UMA FORMA DE CONCILIAR
sas ficaram ainda mais estranhas. Parecia mostrar que, ao AS DIFERENTES PERSPETIVAS e vislumbrar a realidade parti-
medir as coisas, participamos na determinação das suas lhada por baixo. Einstein estava convencido de que isso
propriedades. Mas no mundo quântico, ao contrário do não poderia ocorrer, pelo que foi forçado a propor que a
que ocorria com a relatividade, nunca houve uma forma velocidade da luz é constante para todos, independente-
de conciliar as diferentes perspetivas e vislumbrar a rea- mente da velocidade com que se estejam a mover. Para
lidade objetiva que há por baixo. Um século mais tarde, compensar, o espaço e o tempo tinham de mudar de uma
muitos físicos interrogam-se se existe uma única realida- perspetiva para outra. As equações da relatividade per-
de objetiva, partilhada por todos os observadores. mitiram-lhe mudar a perspetiva de um observador, ou
Agora, dois conjuntos de ideias emergentes estão a quadro de referência, para outro, e assim construir uma
mudar esta história. Pela primeira vez, podemos saltar imagem comum do mundo que permanece a mesma de
de uma perspetiva quântica para outra. Isto já nos está a todas as perspetivas.
ajudar a resolver problemas práticos complicados com as Desenvolveu então estas ideias na relatividade ge-
comunicações de alta velocidade. Também lança luz so- ral, que continua a ser a nossa melhor teoria da gra-
bre se existe alguma realidade partilhada a nível quântico. vidade. Mas essa não é a história completa. Nos escri-
16 SUPER
Como se pode medir o tempo com um relógio de interbloqueio, ou a
distância com uma régua que está em vários lugares ao mesmo tempo?
tos de Einstein, os quadros de referência são sempre volvidas por Isaac Newton. A partícula a ser medida é
definidos por "réguas e relógios", objetos físicos com quântica; o quadro de referência não é. A linha divisó-
os quais o espaço e o tempo são medidos. No entanto, ria entre os dois é conhecida como o corte de Heisen-
estes objetos são governados por uma teoria completa- berg. É arbitrária e móvel, mas tem de estar presente
mente diferente. para que o aparelho de medição possa registar um re-
A teoria quântica trata da matéria e da energia e é sultado definitivo.
mais bem sucedida do que a relatividade. Mas pinta um
quadro profundamente desconhecido da realidade, em CONSIDEREMOS O GATO DE SCHRÖDINGER, A EXPERIÊNCIA DE
que as partículas não têm propriedades definidas antes PENSAMENTO EM QUE UM FELINO INFELIZ se encontra numa
de as medirmos, e existem numa sobreposição de múl- caixa com uma partícula radioativa. Se a partícula se
tiplos estados. Mostra também que as partículas podem desintegrar, desencadeia um martelo que quebra uma
entrelaçar-se e que as suas propriedades estão intima- bolha que liberta um veneno que mata o gato. Se não
mente ligadas, mesmo a grandes distâncias. Tudo isto o fizer, o gato vive. O leitor está fora da caixa. Da sua
faz cambalear a definição de um quadro de referência: perspetiva, os conteúdos estão entrelaçados e sobre-
como se pode medir o tempo com um relógio que está postos. A partícula desintegrou-se e não se desintegrou;
entrelaçado, ou a distância com uma régua que está em o gato está vivo e morto. Mas, como na relatividade, não
vários lugares ao mesmo tempo? deveria ser possível descrever a situação da perspetiva
Os físicos quânticos evitam frequentemente esta do gato?
questão, tratando os instrumentos de medição como Este enigma incomoda há muito Časlav Brukner,
se obedecessem às leis clássicas da mecânica desen- cientista e professor no Instituto de Ótica Quântica e
AGE
O gato de Schrödinger é uma experiência de pensamento que apresenta um gato hipotético que pode estar vivo e morto ao mesmo tempo.
SUPER 17
"O que é quântico e o que é clássico depende da escolha de
quadros quânticos de referência", diz Brukner
Informação Quântica em Viena, Áustria. O investigador olham de todo. "Os meus colegas e eu esperávamos que
queria compreender como ver as coisas de múltiplos a situação de amigo de Wigner pudesse ser reequacio-
pontos de vista na teoria quântica. Tal como Einstein, nada em quadros quânticos de referência", diz Brukner.
partiu do pressuposto de que as leis da física devem ser Mas até agora, isso não tem sido possível. "Não sei" sus-
as mesmas para todos, e depois desenvolveu uma forma pira. E acrescenta: "Há um elemento em falta".
de alternar matematicamente entre quadros de refe- O trabalho de Flavio Mercati da Universidade de Bur-
rência quânticos. Se pudéssemos descrever uma situa- gos (Espanha) e Giovanni Amelino-Camélia da Univer-
ção de ambos os lados do corte de Heisenberg, Brukner sidade de Nápoles Federico II (Itália) fornece algumas
suspeitaria que poderia surgir alguma verdade sobre pistas sobre o que poderá ser. As suas pesquisas pare-
um mundo quântico partilhado. cem sugerir que, através do intercâmbio de informação
O que Brukner e os seus colegas encontraram em 2019 quântica, os observadores podem criar uma realidade
foi surpreendente. Quando se passa ao ponto de vista do partilhada, mesmo que esta não exista desde o início.
gato, verifica-se que - tal como na relatividade - as coi-
sas têm de ser distorcidas para preservar as leis da física. A DUPLA FOI INSPIRADA PELA INVESTIGAÇÃO REALIZADA EM
O quantum anteriormente atribuído ao gato é baralhado 2016 POR MARKUS MÜLLER E PHILIPP HÖHN , ambos então
através do corte de Heisenberg. no Instituto Perimeter de Waterloo, Canadá, que ima-
Desta perspetiva, o gato está num estado definido: é ginaram um cenário em que duas pessoas, Alice e Bob,
o observador fora da caixa que está numa sobreposi- se enviam mutuamente partículas quânticas num es-
ção, enredado com o laboratório lá fora. Durante muito tado particular de "spin". O "spin" é uma propriedade
tempo pensou-se que o emaranhamento era uma pro-
priedade absoluta da realidade. Mas neste novo quadro,
SHUTTERSTCOCK
18 SUPER
quântica que pode ser comparada a uma seta que po- ao Bob: "Vou enviar-te uma centena de partículas que
de apontar para cima ou para baixo ao longo de cada rodam todas para cima no eixo x". Neste caso, à me-
um de três eixos espaciais. Alice envia uma partícula dida que Bob mede cada vez mais partículas começa a
a Bob e ele tem de descobrir a sua "spin"; Bob prepara conseguir calcular a orientação relativa dos seus qua-
então uma nova partícula com a mesma rotação e en- dros de referência.
via-a de volta a Alice, que confirma que ele acertou. O
problema é que Alice e Bob não conhecem a orientação É AQUI QUE A COISA SE TORNA INTERESSANTE. MÜLLER E HÖHN
relativa dos seus quadros de referência: o eixo x de um PERCEBERAM QUE, AO FAZER TUDO ISTO, Alice e Bob ob-
poderia ser o eixo y do outro. A comunicação estabe- têm automaticamente as equações que lhes permitem
lecida entre Alice e Bob pode falsificar a estrutura do mover a visão de uma perspetiva para outra na relati-
espaço-tempo. vidade especial de Einstein. Tendemos a pensar no es-
Se Alice enviar a Bob uma única partícula, ele nunca paço-tempo como a estrutura pré-existente através da
será capaz de decifrar o spin. Por vezes, na física, duas qual os observadores comunicam. Mas Müller e Höhn
variáveis estão ligadas de tal forma que se uma for me- dão a volta à história. Se se partir de observadores que
dida com precisão, a outra deixa de existir num estado enviam mensagens, pode-se derivar o espaço-tempo.
definido. Este problema complicado, conhecido como o Para Mercati e Amelino-Camelia esta reviravolta foi um
princípio da incerteza de Heisenberg, aplica-se à rota- momento de iluminação. Levantou uma questão-chave
ção de partículas ao longo de diferentes eixos. que se revelou ter influência no trabalho de Brukner:
Assim, se Bob quisesse medir a rotação ao longo do Alice e Bob estão a aprender sobre um espaço-tempo
que pensa ser o eixo x de Alice, teria de adivinhar qual pré-existente ou será que o espaço-tempo emerge à
o eixo que realmente é, e se se enganasse, o resultado medida que comunicam?
seria que toda a informação seria apagada. Há duas formas de isto poder acontecer. A primeira
No entanto, o par pode impedir que isto aconteça tem a ver com o compromisso da mecânica quântica
através da troca de muitas partículas. Alice pode dizer entre informação e energia. "Para obter informações
Ilustração da experiência
mental de Erwin
Schrödinger, onde o gato
está vivo e morto devido a
interpretações da
mecânica quântica e do
estado conhecido como
sobreposição quântica.
SUPER 19
Quando as pessoas trocam informações quânticas, estão a
colaborar na construção da sua realidade mútua
sobre um sistema quântico é preciso pagar energia", diz -iam ativamente. As decisões que tomam sobre os eixos
Mercati. Cada vez que Bob escolhe o eixo certo, perde a medir alterariam a própria coisa que a sua comunica-
um pouco de energia; quando escolhe o errado e apa- ção pretendia revelar. A dupla também concebeu uma
ga a informação de Alice, ele ganha alguma. Uma vez forma de testar se este é de facto o caso.
que a curvatura do espaço-tempo depende da energia Todo este trabalho aponta no mínimo para uma con-
presente, quando Bob mede a sua orientação relativa ele clusão surpreendente, e é que quando as pessoas tro-
também acaba por mudar um pouco a orientação. cam informações quânticas, o que estão a fazer é cola-
borar na construção da sua realidade mútua.
PODERIA HAVER UM SENTIDO MAIS PROFUNDO EM QUE A COMU- Significa que se olharmos simplesmente para o es-
NICAÇÃO QUÂNTICA CRIA ESPAÇO-TEMPO. Isto entra em jogo paço e o tempo de uma única perspetiva, não só per-
se o espaço for o que se chama "não-comutativo". Se demos toda a sua beleza, como pode não haver uma
quisermos chegar a um ponto num mapa normal, não realidade partilhada mais profunda. Para a dupla de
importa em que ordem especificamos as coordenadas. investigação Mercati e Amelino-Camelia, um observa-
Pode ser acima de cinco e acima de dois; ou acima de dor não faz um espaço-tempo.
dois e acima de cinco, de qualquer forma aterraremos Isto leva-nos de volta ao paradoxo do amigo de Wig-
no mesmo ponto. ner que intrigou Brukner. No seu trabalho, pode-se
Mas se as leis da mecânica quântica se aplicarem ao considerar que observadores só têm perspetivas sobre a
próprio espaço-tempo, isto pode não ser verdade. Tal mesma realidade apenas quando olham um para o outro
como conhecer a posição de uma partícula o impede de a partir do outro lado do corte de Heisenberg. Ou, por
medir o seu momento, passar acima de cinco pode im- outras palavras, apenas quando lhes é possível comu-
pedir que passe acima de dois. nicar, que é precisamente o que Wigner e o seu amigo
Mercati e Amelino-Camelia argumentam que se o es- não podem fazer. Talvez o que este argumento nos este-
paço-tempo funciona assim, as tentativas de Alice e Bob ja realmente a dizer é que até duas pessoas interagirem,
para descobrir a sua orientação relativa não só desven- não partilham a mesma realidade, já que é a própria co-
dariam a estrutura do espaço-tempo, mas falsificá-la- municação que é responsável pela sua criação.
CHAO-YANG LU / UNIVERSITY OF SCIENCE AND TECHNOLOGY OF CHINA
Jiuzhang 2.0 é um
setilhão de vezes mais
potente que o
supercomputador mais
rápido do mundo.
20 SUPER
As vísceras de um
computador quântico
IBM mostram o
emaranhado de fios
utilizados para controlar
e ler as suas qubits.
ASC
REDES DE FIOS QUE TRANSPORTAM INFORMAÇÃO QUÂNTICA JÁ da na partícula para recuperar a informação contida
ESTÃO A SER CRIADAS EM TODO o mundo como um protó- no qubit original.
tipo para a Internet quântica. Estas redes transportam
informação sob a forma de qubits, ou bits quânticos, NO ESPAÇO COMUM, NÃO É TANTO A VIAGEM QUE IMPORTA, MAS
que podem ser codificados nas propriedades das partí- SIM O DESTINO. Se quiser chegar a um determinado lugar,
culas, normalmente uma propriedade quântica chama- tanto vale ir cinco quilómetros para sul e depois três
da spin. Uma pessoa envia um fluxo de partículas para quilómetros para oeste, ou vice-versa. Isto porque as
outra, que depois mede o seu spin para descodificar a coordenadas "comutam-se", levam-no ao mesmo lugar
mensagem; para serem um meio de comunicação útil, independentemente da ordem.
estas partículas devem viajar a uma velocidade próxima Nas escalas muito pequenas a que se aplica a teoria
da velocidade da luz. A essas velocidades, o "spin" de quântica, isto pode não ser verdade. Na teoria quântica,
uma partícula "emaranha-se quanticamente" com o seu medir a posição de uma partícula resulta em informa-
momento de tal forma que se o recetor medir apenas o ção sobre o seu momento. Do mesmo modo, a ordem
"spin", a informação é perdida. "Isto é grave", diz Fla- pela qual os movimentos são executados poderia afetar
minia Giacomini do Instituto Perimeter no Canadá. "O a estrutura do espaço. Se assim for, não faz sentido falar
qubit é a base da informação quântica, mas para uma de espaço-tempo como um domínio fixo.
partícula que se move a velocidades muito elevadas, já Os físicos Flavio Mercati e Giovanni Amelino Camelia
não podemos identificar um qubit". Como se isso não creem ter uma forma de descobrir se o espaço-tempo é
fosse um problema suficiente, cada qubit não se move comutado. Inspiraram-se numa investigação que imagi-
a uma velocidade definida: graças à mecânica quântica, nava duas pessoas a trocar partículas quânticas e a medir
encontra-se no que é conhecido como uma sobreposi- as suas propriedades para deduzir a sua orientação relati-
ção de velocidades. va. O que aconteceria, perguntam Mercati e Amelino Ca-
As regras dos quadros de referência quântica de- melia, se este jogo fosse realmente jogado? À medida que
senvolvidas por Časlav Brukner poderiam ser a res- as pessoas trocam cada vez mais partículas, a sua incerte-
posta. Giacomini mostrou como as regras podem za quanto à sua orientação deverá diminuir. Mas será que
ser usadas para saltar para o quadro de referência da alguma vez chegará a zero? No espaço-tempo comum,
partícula, mesmo quando a partícula está em sobre- sim. Mas se o espaço-tempo não for comutativo, alguma
posição. Dessa perspetiva, é o resto da realidade que incerteza permanecerá sempre, uma vez que a sua orien-
passa numa sobreposição difusa. Com o conhecimen- tação é ligeiramente reescrita a cada medição. Triliões de
to de como o qubit vê o mundo, pode-se determinar a partículas podem ter de ser trocados antes de termos uma
transformação matemática que precisa de ser realiza- resposta, mas Mercati acha que vale a pena tentar. e
SUPER 21
ENTREVISTA
A jornalista e escritora
Katrine Marçal examina
no seu livro A Mãe do
ASC
Engenho a ideia de
como as mulheres
foram marginalizadas
no desenvolvimento
tecnológico e o que
teria acontecido se tal
não tivesse sido o caso.
22 SUPER
Katrine
MARÇAL
«Ignorar as mulheres tem
atrasado o desenvolvimento
tecnológico»
Há apenas algumas décadas, uma mala com rodas ou um carro
que mal fazia um som eram considerados «demasiado femininos»
por isso pensou-se que era melhor deixar as coisas como estavam.
Independentemente de tal decisão ter levado a mais dores nas
costas ou ao buraco na camada de ozono, esta perspetiva claramente
masculina, que a jornalista Katrine Marçal nos mostra hoje, tem
tido muitas consequências importantes, tanto no ritmo e direção da
história da tecnologia como, por extensão, da humanidade. No seu livro,
A Mãe do Engenho, Katrine Marçal partilha connosco as suas reflexões
sobre a impressão masculina nos setores tecnológico e económico,
convidando-nos a refletir sobre o assunto.
Entrevista de
JUAN FERNÁNDEZ
SUPER 23
ENTREVISTA
SHUTTERSTOCK
O
que teria acontecido se as inferiores na conceção da inovação e que esta margina-
mulheres tivessem estado lização significou um enorme desperdício económico e
ao leme do desenvolvimento um atraso no desenvolvimento tecnológico.
tecnológico ao mesmo nível
que os homens? Como se- Teríamos hoje outras invenções à nossa volta se as mu-
ria o mundo de hoje se o seu lheres tivessem participado na história da inovação em
julgamento, imaginação e pé de igualdade com os homens?
interesses tivessem contado Sim, e muitas invenções que eram muito úteis para a
tanto como os dos homens sociedade teriam sido desenvolvidas mais cedo, mas
quando se tratou de apontar foram abandonadas porque apenas o olhar masculino
invenções nas quais valia a foi tido em conta. O exemplo mais paradigmático é o
pena apostar? Qual foi o verdadeiro peso das mulheres carro elétrico. Hoje em dia é visto como o futuro do au-
na história da inovação e até que ponto esta história tomóvel e a solução para os problemas de mobilidade
está longe da que nos foi contada? Movida por estas nas cidades. Acontece que a tecnologia necessária para
dúvidas, a jornalista económica Katrine Marçal (Lund, o seu desenvolvimento foi descoberta há cem anos, mas
Suécia, 1983) passou vários anos a rever a história da foi abandonada porque se pensou que um carro movi-
tecnologia de uma perspetiva de género. Apresentou a do a eletricidade que funcionava a uma velocidade mais
sua análise em La madre del ingenio ( Principal de los lenta e fazia menos barulho do que um motor de com-
Libros, 2022), um ensaio cujo subtítulo antecipa, sob a bustão interna era um invento “demasiado feminino”.
forma de um lamento, a conclusão a que chegou após Este foi o argumento dado na altura, e assim aparece
completar a sua investigação: Como as boas ideias são nos documentos da época. E uma vez que as mulheres
ignoradas numa economia desenhada para homens. mal conduziam nessa altura, ninguém investiu nele ou
o fabricou industrialmente.
Até agora, temos falado de feminismo em termos de jus-
tiça. Você vai um passo além e põe um preço na margina- Teríamos poupado muitas décadas de poluição. É a isso
lização histórica das mulheres. Será que o machismo nos que se refere quando fala no seu livro sobre inovação tec-
custou dinheiro? nológica em atraso?
Muito, e tem causado um lamentável freio ao progresso. Não chegaria ao ponto de dizer categoricamente que
Quando revemos a história da tecnologia e da economia foi a consideração do carro elétrico como veículo de
e analisamos que investigação foi desenvolvida e o que mulher que fez cair a balança a favor do petróleo em
foi descartado, de acordo com que critérios e, sobretu- detrimento da eletricidade, mas contribuiu certa-
do, quem tomou essas decisões, verificamos que as mu- mente para o que aconteceu no final. O que é absolu-
lheres foram historicamente relegadas a vários níveis tamente claro para mim é que a história da indústria
24 SUPER
«A inovação tem sido impulsionada por critérios tais como
força bruta, violência e competitividade. O resultado tem
sido o desenvolvimento de tecnologia que virou as costas a
valores mais femininos como o cuidado com as pessoas»
automóvel, que tem sido manifestamente masculina, A que se está a referir exatamente?
teria sido diferente se as mulheres tivessem estado A inovação tem sido historicamente guiada por critérios
mais envolvidas no seu desenvolvimento. Por um associados à força bruta, violência e competitividade. O
lado, estou convencido de que os carros elétricos se objetivo tem sido sempre correr mais depressa, ir mais
teriam tornado populares mais cedo e que teríamos longe, bater mais forte, ter o maior impacto e destruir o
outros modelos de mobilidade e transportes públi- adversário em vez de cooperar com ele.
cos nas nossas cidades de hoje. E provavelmente nem O resultado foi o desenvolvimento de uma tecnologia
todos aspiram a possuir um carro, que é algo muito pouco humana que virou as costas a outros critérios, tais
masculino. como o cuidado com as pessoas ou a proteção do am-
biente, que foram considerados como os valores fracos
Diria que a forma como as mulheres inovam é diferente das mulheres. Estes interesses simplesmente não conta-
da forma como os homens o fazem? vam quando se tratava de pensar a inovação tecnológica.
Não há mulheres a pilotar projetos de desenvolvimento
tecnológico há tempo suficiente para poder responder Será que este preconceito foi traduzido em invenções
a essa pergunta com dados na mão. Penso que temos concretas?
tendência para exagerar as diferenças entre os sexos. O caso mais paradigmático é a história da mala com ro-
No mundo económico, de onde venho, há uma ideia de das que conto no livro. A ideia de colocar rodas nas ma-
que as mulheres são avessas a uma situação de risco e, las, que é algo que todos vemos como muito útil hoje em
portanto, tendem a ser menos empreendedoras do que dia e que facilita a nossa vida, foi patenteada nos anos
os homens, que não percebem esse risco. Mas o núme- 70. Foram produzidos vários modelos, mas os grandes
ro de mulheres que foram capazes de liderar projetos armazéns rejeitaram-nos porque pensavam, e até de-
empreendedores é minúsculo em comparação com os clararam nos seus anúncios, que uma mala com rodas
homens! Ponha mais mulheres a cargo destes projetos, era uma ofensa à força e virilidade dos seus clientes
deixe-as trabalhar e depois podemos falar sobre isso. masculinos, que eram os que mais viajavam nessa altura
Contudo, há uma coisa que é clara para mim, que é que carregando o peso das suas malas e das suas acompa-
a supremacia masculina, que é claramente evidente na nhantes femininas. O preconceito masculino aplicado
história da tecnologia humana, tem condicionado a sua à tecnologia atrasou durante algumas décadas algo tão
trajetória e desenvolvimento. prático como a possibilidade de arrastar a bagagem so-
SHUTTERSTOCK
Sempre existiu
uma crença no
setor das finanças
de que as
mulheres se
afastam de
situações de
risco, ao contrário
dos homens.
SUPER 25
ASC
ENTREVISTA A jornalista
económica Katrine
Marçal posa com o
26 SUPER
E C O L O G I A
GETTY
cataratas de Khone
Phapheng no rio Mekhong
na estação das chuvas,
Champasak, sul do Laos. A
queda mais alta é de cerca
de 21 metros e a sucessão
de rápidos estende-se 9,7
quilómetros ao longo do rio.
ECO-ANSIEDADE
Ansiedade, medo, insegurança e culpa sobre a atual crise climática são alguns dos sentimentos
vividos pelas pessoas que sofrem de eco-ansiedade. Mas em que consiste exatamente este distúrbio
mental, porque surge neste momento e a quem afeta mais? Descobrimos a melhor maneira de o
detetar e, mais importante ainda, de como lidar com ele.
SUPER 27
SHUTTERSTOCK
U
m dos maiores desafios glo- forma de ondas de calor, fortes nevões, inundações,
bais é enfrentar os graves tornados, furacões, secas e incêndios florestais. As
problemas ambientais que alterações climáticas são agora consideradas como o
ameaçam o presente e o fu- maior desafio que a ciência e a sociedade enfrentam
turo da vida na Terra. Há e, embora por vezes tenha sido concetualizado co-
uma consciência crescente mo um problema que afeta principalmente os ursos
dos efeitos prejudiciais do polares, está a tornar-se cada vez mais claro que to-
comportamento humano so- dos estes fenómenos podem causar direta ou indi-
bre os ambientes naturais. retamente patologias físicas e psicológicas nos seres
As nossas ações não só com- humanos.
prometem a qualidade do
ambiente, como, em última A SAÚDE FÍSICA DAS PESSOAS É AMEAÇADA PELAS ALTAS
análise, põem em perigo a saúde humana. Devido à TEMPERATURAS, PELA INALAÇÃO DE partículas poluen-
atividade humana, a concentração de vários poluen- tes comuns no ar que respiramos e pelo aumento da
tes na atmosfera, prejudiciais aos seres vivos, tem propagação de doenças anteriormente mais locali-
aumentado significativamente nos últimos anos. zadas, como o dengue ou a malária, entre outras. Is-
Isto resulta no efeito de estufa e na consequente al- to é agravado por fatores como o impacto social da
teração dos padrões climáticos da Terra, levando a migração forçada e os conflitos ligados às alterações
um aumento dos eventos climáticos extremos sob a climáticas.
28 SUPER
As crianças e adolescentes são
particularmente suscetíveis à
eco-ansiedade, uma vez que o
seu sentido do tempo, do lugar e
do eu ainda estão a ser formados
SUPER 29
As populações indígenas
SHUTTERSTOCK
30 SUPER
onde aqueles que estão envolvidos em estudos cli- procurando promover sentimentos negativos, como
máticos e aqueles que sentem a natureza como parte a indignação pela insuficiente proteção do ambiente
da sua identidade tendem a sofrer de eco-ansiedade e a culpa pelo legado que estamos a deixar às gerações
chegando, nos casos mais extremos a abandonar a sua futuras. Estes sentimentos negativos e a consequen-
profissão. te eco-ansiedade podem aumentar a ação ambiental,
mas também podem provocar a reação oposta. Po-
EMBORA O DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO POSSA AJUDAR- demos sentir que nada do que fizermos irá inverter
-NOS A ALIVIAR A DETERIORAÇÃO que as nossas ações cau- a atual crise climática, ou que a mensagem que nos é
sam no planeta, não existe uma solução puramente transmitida é demasiado alarmista, o que pode levar
técnica para a atual crise ecológica. As estratégias de a níveis de eco-ansiedade não funcionais ou, no outro
intervenção para enfrentar os desafios ambientais extremo, a apatia perante a crise climática.
devem, portanto, promover mudanças nas atitudes e Existem outras estratégias para promover com-
comportamentos ecológicos pessoais e coletivos. portamentos pró-ambientais que se afastam desta
Uma estratégia utilizada por educadores e psicó- abordagem mais catrastofista e podem, por sua vez,
logos ambientais para promover comportamentos ajudar a reduzir a eco-ansiedade. Uma das estraté-
pró-ambientais de conservação tem sido a de salien- gias que ganhou ímpeto nos últimos anos é a promo-
tar os danos que as ações humanas têm na natureza, ção de um sentimento de pertença a um grupo social
GETTY
SUPER 31
Uma mulher segura o seu
cão nos braços durante os
incêndios na ilha de Evia,
Grécia, em agosto de 2021.
GETTY
Estratégias psicológicas
GETTY
32 SUPER
Quando a frustração, a
desesperança e o nervosismo
sobre a crise climática nos
paralisam, é tempo de
procurar ajuda profissional
SUPER 33
CA RO TN Í SC UU ML O
Os espanhóis
passaram de 8 kg de
consumo de carne
de vaca por ano em
2006 para 5,1 kg em
2020 e de 8,2 kg de
carne de porco em
2006 para 7,9 kg em
SHUTTERSTOCK
2020. E a tendência
continua.
34 SUPER
Poderá a humanidade manter o consumo de carne ao ritmo atual com
os desafios que coloca, tanto pelo seu impacto climático (o gado é uma
das principais causas do aquecimento global), como pela dificuldade de
satisfazer a procura crescente de um mundo cada vez mais desenvolvido
que irá necessitar de mais proteínas?
SUPER 35
M
uitos acreditam que a criação de
A pecuária pode ser
gado está a atingir os seus limi- responsável por até 14,5%
tes e é muito pouco sustentável. das emissões globais de
Portanto, para eles, a respos- gases com efeito de estufa.
ta à pergunta que introduz esta
reportagem seria, não. A voz au-
torizada que se pronunciou de
forma mais decisiva foi a de Bill
Gates: "As nações ricas devem
mudar para carne 100% sinté-
tica", recomendou ele em 2021
numa entrevista viral na revista MIT sobre o seu livro
(Como evitar um desastre climático). O magnata que
SHUTTERSTOCK
se tornou guru técnico-científico global acredita que
"pode habituar-se à diferença de gosto e a promessa das
pessoas que a produzem é que a sua carne vai saber me-
lhor no futuro".
A corrida para substituir a carne tal como a conhece- Science) calcula que se a pecuária desaparecesse comple-
mos começou há pouco mais de uma década (a empresa tamente, as emissões globais seriam reduzidas em 28%.
Beyond Meat, uma das pioneiras, foi fundada em 2009 E se o decréscimo nos produtos pecuários fosse de 50%,
nos EUA ao adquirir a tecnologia pioneira de dois pro- concentrando este decréscimo nos maiores produtores,
fessores da Universidade do Missouri) e acelerou nos as emissões poderiam ser reduzidas em cerca de 20%.
últimos anos. Isto tem sido ajudado pela confluência de Ao mesmo tempo, o movimento animal (que luta
duas preocupações públicas crescentes: as alterações pelos direitos das espécies com as quais partilhamos o
climáticas e o bem-estar animal. planeta) também tem vindo a ganhar terreno. Em Espa-
Enquanto o impacto dos combustíveis fósseis capturou nha, foi apenas este ano que explodiu o debate sobre a
a atenção dos ambientalistas durante décadas, as preo- pecuária intensiva e as chamadas "macro-fazendas". As
cupações com o enorme consumo de recursos naturais posições destes grupos têm vindo a impressionar mui-
pela pecuária e a sua pegada de carbono associada co- tos consumidores, que são cada vez mais favoráveis ao
meçaram a surgir como foco de debate em 2014, com o vegetarianismo, ao veganismo e a outras variedades de
lançamento do documentário produzido por Leonardo dietas sem carne.
DiCaprio-Cowspiracy de Kip Andersen e Keegan Ku-
ph. Nele, a influência da pecuária nos gases com efeito ENQUANTO ESTAS QUESTÕES SE DISCUTEM RUIDOSAMENTE NA
de estufa foi colocada em 51%, principalmente devido ao ARENA PÚBLICA, OS CIENTISTAS TÊM ESTADO A TRABALHAR
metano emitido pelos animais ruminantes criados para SILENCIOSAMENTE. Como resultado, começaram a sur-
consumo. Este número é agora considerado impreciso gir tecnologias nos laboratórios em todo o mundo que
e exagerado, mas mesmo assim, uma das estimativas podem constituir a base de alternativas inovadoras aos
mais amplamente aceites (publicada em 2018 na revista produtos tradicionais à base de proteínas de carne. A
SHUTTERSTOCK
A mesma técnica da
medicina regenerativa é
utilizada para a produção
de carne in vitro.
36 SUPER
SHUTTERSTOCK
Macro suinicultura.
Este tipo de instalação
pode alojar milhões de
animais, como no caso
dos macro aviários.
Células estaminais
musculares
Placa de
Petri
Cultivo
As células estaminais são separadas e utilizadas
para produzir a cultura inicial. As células são
colocadas numa placa de Petri com um banho
de nutrientes para o seu crescimento.
ESQUEMA
DE UM BIORREATOR
De que
é feita? Vapor Ácido /
base
Agitador
Médio
A carne de cultura é feita a
Ar
partir dos mesmos tipos de
células dispostas na mesma
estrutura ou em estrutura Água de
semelhante aos tecidos animais. arrefecimento Sensores Biorreactor
Este método de produção elimina A cultura de células
a necessidade de criar e cultivar Saída estaminais é
Camisa de de água transferida para um
animais para alimentação. regulação de
Espera-se que a produção seja temperatura biorreator onde as
isenta de antibióticos e que células proliferam
resulte numa menor incidência de até às densidades
doenças de origem alimentar desejadas.
devido à não exposição a agentes Saída do
patogénicos. Vapor produto
38 SUPER
INFOGRAFÍA . AGUILERA
Formação da estrutura muscular
Os miotubos contraem-se e alinham-se em fibras musculares sólidas,
para formar microfibrilhas, fibras tecido muscular real, ao ponto São necessários cerca de
musculares e eventualmente pequenos de se assemelharem à carne 20 000 fibras para obter 200 g
filamentos de tecido muscular. À medida que estamos habituados a de carne ’in vitro’
que crescem, as células transformam-se comer.
Estima-se
que o processo
de produção
demore entre 2
a 8 semanas
Estimulação do
crescimento Outros ingredientes
Para tornar a textura e o sabor o mais próximo possível da carne
real, o músculo fabricado é misturado com gordura animal
sintetizada em laboratório, e ingredientes como sal, ovo em pó,
Fibras em
pão ralado, e sumo de beterraba para obter a cor vermelha
crescimento característica.
Nutrientes
O In-Vitro
O Meat Consortium
estima que poderia
produzir-se por cerca
de 3.500 €/tonelada
No biorreator são adicionados nutrientes
naturais, oxigénio, temperatura constante e
estimulação eléctrica.
Produção
Os primeiros produtos
Miotubos serão provavelmente
carne picada, com o
objectivo a longo
Formação prazo de obter tecido
muscular totalmente
de miotubos desenvolvido.
As células musculares Qualquer tecido
fundem-se para formar muscular animal pode
estruturas alongadas potencialmente ser
Têm um diâmetro
chamadas miotubos. cultivado através de
de 0,3 mm.
um processo 'in vitro'.
SUPER 39
Os laticínios e os ovos
de que, numa prova cega com agricultores profissionais
de abate numa aldeia de Toledo, o seu chouriço vegetal também podem ser
era indistinguível do chouriço tradicional.
As empresas que, como esta, fabricam "sucessores de substituídos.
carne" com base em espécies vegetais concentram os
SHUTTERSTOCK
seus esforços na obtenção de uma textura e sabor tão
semelhantes quanto possível, pois sabem que no final
este é o aspeto mais valorizado pelos consumidores e o
que os levará a repetir (ou não). É nisto que as suas equi-
pas de I&D estão a trabalhar, em primeiro lugar para
descobrir que proteínas vegetais se podem comportar
de forma semelhante às da carne. Procuram então re-
mover os componentes de sabor que seriam estranhos
ao consumidor que come carne e, o que é importante,
dar ao conjunto uma textura de carne.
Neste esforço, as descobertas na área das proteínas
são fundamentais para alcançar o objetivo. A Impossi-
ble Foods, uma empresa americana considerada entre
as mais inovadoras, criou um processo acelerado para
a síntese de hemo, um grupo de proteínas do qual a he-
moglobina faz parte. Em particular, separa as chamadas
O s empresários da food tech não se contentam
em procurar um sucessor para a carne, mas têm
também como objetivo a substituição dos produtos
leghemoglobinas, presentes nas raízes de leguminosas animais. O leite e os ovos são os seus principais alvos.
como a soja, e incorpora-as nas suas carnes veganas. O Uma nova empresa israelita anunciou no início deste
seu principal produto é o Impossible Burger. ano que está a trabalhar na extração de ingredientes
lácteos a partir de células de tecido da glândula ma-
MAS HÁ OUTRA FORMA DE FAZER CARNE QUE PODE PARECER mária tanto de animais como de humanos. A empresa
QUASE FICÇÃO CIENTÍFICA: A PARTIR DE ALGUMAS CÉLULAS. afirma que estes ingredientes serão "estéreis, seguros e
Isto é "carne de cultura" ou carne in vitro. Os seus totalmente personalizados". A empresa chama-se Wilk
proponentes prometem que milhões de hambúrgue- (que "brinca" ao colocar a primeira letra do milk ao con-
res podem ser feitos a partir das poucas células de um trário) e já tem uma patente americana para a produção
único animal, que nem sequer precisa de ser abatido. de leite in vitro.
Esta nova ideia teve o seu pioneiro no farmacologista Quanto aos ovos, há já algum tempo que têm vindo
holandês Mark Post, que produziu o primeiro pedaço a surgir alternativas. Uma das mais bem sucedidas é o
de carne comestível utilizando este processo em 2013. ovo líquido vegan Just Egg, vendido numa garrafa, feito
Desde então, a ideia suscitou paixões: hoje já existem a partir de uma leguminosa, o feijão mungo (feijão ver-
sessenta empresas em fase de arranque a tentar produ- de de soja). Quando cozinhado, comporta-se de forma
zi-la, que angariaram mais de 450 milhões de dólares muito similar a um ovo, por isso pode ser usado para
em financiamento. fazer omeletes, ovos mexidos ou em sanduíches. Para
Uma delas é espanhola: Biotech Foods, com sede em obter a cor amarela, é colorido com curcuma.
San Sebastian e também fundada em 2017 por Mercedes
SHUTTERSTOCK
40 SUPER
SHUTTERSTOCK
Carne cultivada ou in
vitro é carne que não
provém de um animal
mas da cultura de
células musculares
retiradas do animal.
SUPER 41
NA ERUTRÍOCT EU CL NOO L O G I A
mais próximos de
recolher e inter-
pretar toda a ativi-
dade neural. Isto
leva-nos à ques-
tão do que irá
acontecer à neu-
roprivacidade.
42 SUPER
A ERA DA
SUPER 43
E
m maio de 2017, um grupo de micos conspiradores. Mas todas estas coisas já estão a ser
vinte e cinco investigadores re- testadas em animais em muitos laboratórios, incluindo
uniu-se durante três dias numa os de alguns dos presentes na reunião. Entre eles estava
sala de aula na Universidade de o anfitrião e promotor da ideia, o neurocientista espanhol
Columbia, Nova Iorque. Enge- Rafael Yuste, professor e investigador na Universidade de
nheiros, neurocientistas, físi- Columbia. Foi o autor principal de um artigo intitulado
cos, assim como especialistas Quatro Prioridades Éticas para a Neurotecnologia e Inte-
em ética e direito discutiram um ligência Artificial, que foi assinado por todos os presentes
tema que os preocupava mui- no encontro e que foi publicado na revista Nature. Nele
to: os limites éticos e legais dos aparece o conceito de neurodireitos: o quadro legal para
rápidos avanços que estão a ser proteger o cérebro e a sua atividade face aos imparáveis
feitos no campo da neurotecnologia. Ou seja, aquelas fer- avanços da neurotecnologia.
ramentas tecnológicas que servem para interagir com o cé- Na sua pesquisa, na qual ele tenta compreender co-
rebro: aquela grande "floresta escura, onde tantos explora- mo diferentes grupos de neurónios trabalham no cór-
dores se perderam" (como descrito por Ramón y Cajal, um tex visual do cérebro, Yuste e a sua equipa perceberam
dos pais da neurociência, na sua biografia Recuerdos de mi algo fascinante: eles podiam alterar a perceção dos
vida) . Graças a estes avanços, os estudiosos estão a entrar ratos. Podiam fazê-los "ver" algo que não estava à sua
no coração desta selva. É agora possível ler pensamentos, e frente. Os investigadores localizaram os neurónios que
até influenciá-los: implantar memórias, por exemplo. são ativados quando um rato olha para barras verticais
Aqueles três dias na sala de aula da universidade foram num ecrã e ensinaram os roedores a beber água quan-
uma sessão de brainstorming em que surgiram grandes do viam aquelas riscas. Depois, simplesmente ativaram
questões: que legislação deveria estar em vigor para impe- estes neurónios e os ratos beberam água, sem terem de
dir que uma pessoa alterasse a memória de outra através apresentar a imagem aos seus olhos: tinham criado uma
de um implante cerebral? Se alguém consegue ler mentes, alucinação.
como é que protegemos os nossos pensamentos? Quem No MIT (Massachusetts Institute of Technology) os
detém os direitos de autor de um sonho? Pode soar como neurologistas foram um passo mais longe: conseguiram
fição científica, delírios futuristas de um grupo de acadé- implantar memórias no cérebro de um rato.
ARCHIVE COLLECTION
No Instituto de
Tecnologia de
Massachusetts,
implantaram
memórias no
cérebro de um
rato.
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Uma experiência mostra
que um macaco pode
jogar um jogo de vídeo
telematicamente.
ASC
TODAS ESTAS EXPERIÊNCIAS ABREM UMA PORTA FASCINANTE mas músculo com cerca de 1.500 gramas e 100 mil milhões de
também preocupante.E os próprios cientistas envolvi- neurónios interligados: o cérebro.
dos na investigação estão cientes disso. "Temos de legislar
antes que seja demasiado tarde", concluem eles. Durante ELON MUSK JÁ ESTÁ A REALIZAR EXPERIÊNCIAS CONTROVERSAS
anos, o investigador espanhol Rafael Yuste tem vindo a COM MACACOS. Através da sua empresa Neuralink, implan-
compaginar o seu trabalho no seu laboratório - no qual tou elétrodos no cérebro dos macacos que lhes permitem
tenta explicar o código neuronal que puxa as cordas dos jogar ping pong num ecrã sem usar as mãos em nenhum
circuitos do nosso córtex cerebral - com ativismo em de- momento. Apenas com os seus pensamentos e a ajuda
fesa da neuroprivacidade e da liberdade de pensamento. destes elétrodos, Pager, um macaco, pode interagir com
E o seu objetivo é elevado: defende a inclusão dos direi- a máquina. Quando acerta, recebe um gole de batido de
tos neurológicos na Declaração Universal dos Direitos do banana como prémio. Foi recentemente anunciado um
Homem. Não esquecendo que o original foi assinado em processo judicial contra o magnata e a sua start-up neu-
Paris em 1948, será altura de uma atualização? Muitos rotecnológica: pelo menos oito destes macacos morreram
acreditam que sim. E é impressionante que sejam precisa- nas experiências. Mas por mais perturbador que isto seja,
mente muitos dos cientistas encarregados dos avanços da as suas implicações vão muito além do abuso de animais.
neurotecnologia que viram a luz do dia em primeiro lugar. Entre outras coisas, os investigadores estão alegadamente
Perceberam que na sua investigação estão as sementes de a trabalhar num chip sem fios, que, implantado no cére-
grandes avanços para a humanidade. Uma promessa de bro, permite que a mente seja ligada a um computador.
cura de doenças, sim... Mas com um lado negro. Quando isto funcionar, teremos criado uma espécie de
A sua preocupação? Que nem todos os envolvidos na sobre-humano cujas capacidades cognitivas serão me-
revolução neurotecnológica são tão cuidadosos como os lhoradas com a ajuda da inteligência artificial. Promissor
cientistas que trabalham em laboratórios em universida- ou perturbador, dependendo da forma como se olha para
des como o MIT, Stanford ou a Universidade de Columbia. ele, mas não esqueçamos que também funciona na dire-
Isto é compreensível quando olhamos para outros joga- ção oposta: com a ajuda da inteligência artificial e de um
dores num campo que está prestes a revolucionar o nosso scanner cerebral portátil, os nossos pensamentos podem
conhecimento e capacidade de influenciar esse pequeno ser expostos.
Que legislação deve estar em vigor para impedir que uma pessoa
altere a memória de outra através de um implante cerebral?
SUPER 45
A Neurotecnologia
procura melhorar a
qualidade de vida
das pessoas
através do acesso
e interação com os
processos e
informação do
cérebro.
SHUTTERSTOCK
O montante global investido no setor excede os 19 mil permitem às pessoas que perderam um braço ou uma
milhões de dólares, tanto do setor público como do priva- perna o poder de manejar uma prótese com o seu cérebro.
do. Em 2019, a Microsoft investiu $1 milhão de dólares na É mesmo possível sentir frio ou calor através da prótese,
OpenAI, uma empresa co-fundada por Elon Musk. O Face- que comunica diretamente com a mente. Outro exemplo:
book pagou uma quantia desconhecida - entre $500.000 BrainGate, um implante cerebral construído pela empre-
e $1 milhão - pelo CTRL-Labs, especializado em interfaces sa Cyberkinetics, concebido para ajudar pacientes com
cérebro-computador não invasivas. O Facebook Reality esclerose lateral amiotrófica ou lesão da medula espinal.
Labs, entretanto, está a trabalhar num dispositivo seme- Graças a ele, uma pessoa que não conseguia falar ou mo-
lhante a um capacete que utiliza luzes infravermelhas para ver-se pode agora escrever e enviar e-mails, navegar no
aceder ao cérebro. Já é capaz de ler palavras que o sujeito Google ou fazer compras na Amazon com a ajuda de uma
está a pensar. Neste momento são apenas coisas simples, tábua. No Campeonato Mundial de 2014 no Brasil, o pon-
tais como casa, escolher, apagar ou nos próximos anos. tapé de abertura foi dado por um jovem tetraplégico com
Muito útil para ajudar pessoas com dificuldades de fala. a ajuda de um exoesqueleto controlado por um destes in-
Mas leva à cautela ao ver quem está por detrás e, sobre- terfaces cérebro-computador .
tudo, qual a empresa que a dirige. A conhecida empresa A neurocirurgia é também utilizada com sucesso no tra-
de Mark Zuckerberg é tristemente célebre pelo seu abuso tamento e estudo da epilepsia. Um pioneiro absoluto neste
das regras mais básicas (e também as mais complexas) de campo é o neurocirurgião canadiano Wilder Penfield. Já
respeito pela privacidade. Se os seus algoritmos tiverem na década de 1930, tratou os seus pacientes removendo
agora acesso aos nossos pensamentos e memórias, os de- as pequenas regiões do cérebro que desencadeavam as
bates atuais sobre privacidade parecerão uma piada em convulsões. Mais de mil pacientes foram submetidos a ci-
comparação com a porta que se abre. rurgia cerebral com sucesso: a epilepsia deixou de ser uma
doença incurável, e pelo caminho Penfield criou um mapa
TAIS DISPOSITIVOS TÊM SIDO UTILIZADOS NO CAMPO MÉDICO dos córtices sensoriais e motores do cérebro. Ainda hoje
HÁ MUITOS ANOS. Por exemplo, podem ser utilizados para é utilizado tal como ele o desenhou. Também descobriu,
criar implantes cocleares que ajudam as pessoas com per- entre outras coisas, que podia desencadear memórias nos
da auditiva grave (surdez) a ouvir. A estimulação cerebral seus pacientes com pequenos choques elétricos no lóbulo
profunda é utilizada para ajudar as pessoas com doença de temporal; provou que podia recuperar eventos há muito
Parkinson a manter uma mobilidade adequada e a aliviar esquecidos pelos seus pacientes. Se o trabalho deste neu-
outros sintomas, tais como tremores. E eles funcionam. rocirurgião pioneiro pode ser comparado a uma caravela a
Também são prometedores no tratamento da esquizo- caminho da América, os avanços atuais na neurocirurgia
frenia, autismo, demência, Alzheimer, depressão... Ou são mais como um passeio de foguetão.
SUPER 47
Formas de aceder ao cérebro
D esde implantar um elétrodo
diretamente no cérebro, até uma
imagem de ressonância magnética,
que novos elétrodos sejam implantados
com uma precisão sub-milimétrica (ou
seja, menos de um milímetro). Outra
vezes envolve uma duração mais longa da
intervenção.
As técnicas não invasivas, por outro
passando por um capacete que interpreta técnica invasiva utilizada para combater lado, não entram de todo em contacto
os impulsos neuronais, há muitas o Parkinson é a estimulação cerebral com o cérebro. Algumas passam por
maneiras de aceder ao cérebro. Uma profunda (DBB na sua sigla inglesa): usar um capacete ou fita para a cabeça
diferença fundamental é a que existe através de uma pequena abertura no e ligar o cérebro a um computador.
entre as tecnologias que são invasivas, crânio, o neurocirurgião coloca pequenos Podem ser utilizados para observar
que requerem cirurgia, e as que não o elétrodos ativados por um pequeno o que se passa no interior, ou para
são. As primeiras estão cada vez mais neuroestimulador, que gera a corrente melhorar a nossa atividade cognitiva.
difundidas no campo médico, para tratar elétrica e é normalmente colocado Fora da sala de operações, poderiam
a epilepsia ou a doença de Parkinson. debaixo da pele perto da clavícula. tornar-se os dispositivos eletrónicos
Podem implantar uma placa de elétrodos Os cientistas utilizam por vezes estas do público. É aqui que soam os sinais
diretamente na superfície do cérebro, intervenções para aprofundar os seus de alarme: o nível de dados que
para monitorizar ou estimular a parte estudos académicos, o que mais uma vez as empresas tecnológicas podem
do cérebro associada a convulsões conduz a debates controversos sobre o recolher sobre nós está a dar um salto
epiléticas em cada paciente. Outra consentimento do paciente e possíveis gigantesco. Será que vamos ler as letras
técnica, a estereoencefalografia, permite riscos acrescidos, uma vez que muitas pequenas antes de assinarmos?
ARCHIVE COLLECTION
Em algumas escolas na China,
líder em inovação em inteligência
artificial, as bandas de deteção
de atenção já estão a ser
testadas em crianças.
as nossas casas (e centros comerciais). Muitas das expe- damental, para estabelecer o desenvolvimento científico e
riências mencionadas exigem que a máquina seja treina- tecnológico ao serviço das pessoas". Os nossos dados neuro-
da sobre um assunto específico. Nem todos nós temos os lógicos adquirem o mesmo estatuto na constituição chilena
mesmos neurónios ativados pela visão de uma cadeira, que os órgãos doados: é proibido traficá-los ou manipulá-
por exemplo. À medida que mais dados forem recolhidos, -los. Embora não tenham o estatuto de lei, a Organização
mais próxima a tecnologia chegará a uma compreensão para a Cooperação e Desenvolvimento Económico adotou
universal da mente. É também uma questão de tamanho. em 2019 uma Recomendação para uma Inovação Responsá-
As máquinas de ressonância magnética pesam toneladas e vel em Neurotecnologia, que reconhece os riscos relaciona-
são tão grandes como uma sala. Com um scanner cerebral dos com estes desenvolvimentos tecnológicos e a nossa pri-
portátil, no entanto, as coisas mudam muito. vacidade e liberdade de pensamento. Em Espanha, já existe
Face a um futuro mais próximo do que parece, alguns co- uma "carta de direitos digital", embora ainda não tenha sido
meçaram a alterar as suas leis. O Chile foi um pioneiro: em traduzida em lei. A era da neuroprivacidade e dos direitos
outubro de 2021 aprovaram a lei "Modificar a Carta Fun- neurológicos chegou. Bem-vindo ao século XXI. e
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TECNOLOGIA
COMO
SOBREVIVER A UM
BLACK UT
TECNOLÓGICO
ELETRICIDADE, RÁDIO, INTERNET, REDES, FORNECIMENTOS...
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GETTY
A
pandemia da COVID-19, os realidade? Devemos tomar consciência a esse respeito?
problemas de abastecimento Devemos desenvolver um procedimento para lidar com
de algumas matérias-primas, um possível "grande apagão"?
a escalada dos preços da ener-
gia e a ação militar da Rússia JÁ TIVEMOS EXPERIÊNCIA DE OUTROS "APAGÕES". DESDE SOBRE-
contra a Ucrânia funcionaram CARGAS DEVIDAS A PICOS DE PROCURA, a falhas técnicas ou
como a tempestade perfeita acidentes, as causas de um possível apagão de energia
para nos incutir a sensação de podem ser muito diversas. De facto, já sofremos no pas-
que um cenário apocalíptico sado apagões de intensidade variável, embora sempre
sob a forma de um apagão tec- locais e de curta duração.
nológico por tempo indefinido Em média, a cada quatro meses, os Estados Unidos so-
poderia não só ser possível, mas até provável. A ideia frem um apagão suficientemente significativo para dei-
foi mesmo alimentada em outubro de 2021 pela Minis- xar pelo menos meio milhão de casas sem eletricidade.
tra da Defesa austríaca Klaudia Tanner, que afirmou que Por exemplo, a 13 e 14 de julho de 1977, nove milhões
o apagão, caso ocorresse, afetaria não só os serviços da de pessoas na cidade de Nova Iorque foram deixadas às
Áustria, mas também os de toda a Europa. escuras no que muitos chamaram o apagão mais grave
As palavras de Tanner foram de facto preocupantes, da história do país. Foi causado por um raio em Bucha-
porque as consequências imediatas de um apagão desta nan South, uma subestação elétrica no rio Hudson, bem
natureza traduzir-se-iam em graves problemas de forne- como por um segundo raio que afetaria duas linhas de
cimento de energia, problemas de comunicação, escassez transmissão de 345 kV. O corte de energia também le-
de alimentos, bem como em problemas de segurança pú- vou a saques em toda a cidade que resultaram na maior
blica. Mas até que ponto poderia este cenário tornar-se detenção em massa de Nova Iorque: 3776 pessoas. Uma
As tempestades de inverno em
2021 congelaram as turbinas
eólicas no Texas, deixando
milhões de casas sem energia
durante vários dias.
SUPER 51
SHUTTERSTOCK
uma central nuclear, eventualmente falha. Assim, um res não permite aos espanhóis ser totalmente auto-su-
bom lugar para viver se ocorresse um apagão global seria ficientes.
precisamente a Europa, uma vez que a rede elétrica eu- Por conseguinte, é improvável que todos ou muitos
ropeia é a consequência de uma acumulação progressiva dos sistemas falhem em diferentes regiões e países ao
de vários sistemas elétricos individuais. A rede é com- mesmo tempo. No entanto, uma equipa de investigado-
posta por seis sistemas isolados entre si que podem con- res da Universidade de Valladolid desenvolveu um mo-
tinuar a funcionar mesmo que um ou outro falhe: os da delo informático para a análise prospetiva dos recursos
região da Europa Continental, das regiões Báltica, Nórdi- energéticos globais, recentemente publicado em Ener-
ca, Britânica, Irlandesa, Islandesa e Cipriota. Esta diver- gy, cujos resultados mostram que o mercado energético
sificação energética consubstanciada numa rede de mais global poderia estar sujeito a tensões graves entre 2020
de 307.503 km, fornecendo fornecimento de eletricidade e 2030. Tais estudos, contudo, não devem servir para
a mais de quinhentos milhões de utilizadores, evitaria o alarmar, mas sim para identificar as mudanças que pre-
caos total no continente. cisam de ser adotadas progressivamente a fim de res-
52 SUPER
ponder aos novos desafios energéticos. Um mundo sem
Um exemplo paradigmático nas comunicações di-
gitais é o efeito 2038 ou Y2K38, um evento que pode- ligação à Internet
ria comprometer o funcionamento de alguns sistemas
operativos, dispositivos e software. O Y2K38 é um apa-
gão informático que terá lugar a 19 de janeiro de 2038
às 3:14:07 UTC (Espanha iria experimentá-lo uma hora
O certificado da IdentTrust DST Root CA X3 é um certificado
de autenticação que permite uma ligação entre um com-
putador e o servidor da Internet. O problema é que se tornou
mais tarde). A origem do problema reside no facto de obsoleto em 30 de setembro do ano passado, tornando im-
dispositivos, aplicações e sistemas baseados numa ar- possível a ligação à Internet de pelo menos um terço de todos
quitetura de 32 bits não suportarem referências tempo- os computadores existentes no mundo. O problema poderia
rais posteriores: ou seja, o número máximo de combi- ser resolvido criando atualizações de software para dispositi-
nações suportadas por 32 dígitos binários é de 4 294 967 vos como iPhone e iPad com iOS 9 ou versões anteriores, Win-
296. Como a maioria dos processadores conta o tempo dows XP Service PACK 2 ou anteriores, ou consolas de jogos
a partir de 1 de janeiro de 1970, a sua cronologia só po- PlayStation 3 com versão de Firmware 5.00 ou anteriores.
de remontar a 13 de dezembro de 1901 (com combina-
ções de valores negativos) ou 19 de janeiro de 2038 (com
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combinações de valores positivos). Este problema já
está identificado no nosso horizonte, pelo que seremos
capazes de lidar com ele quando chegar a altura sem
qualquer problema, graças a atualizações do sistema ou,
mais provavelmente, substituindo a arquitetura de 32
bits pela arquitetura de 64 bits.
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seus planos para criar a RuNet, após o hiato devido à O Evento Carrington
pandemia da COVID-19, embora ela não acredite que
ela esteja operacional a curto prazo.
Assim, os conflitos modernos serão cada vez mais as-
sociados a apagões tecnológicos mais ou menos graves,
A última tempestade solar massiva teve lugar a 1 de setem-
bro de 1859. Na manhã seguinte ao que agora é conhe-
cido como o "evento Carrington", os fios do telégrafo foram
porque a Internet é vital para as comunicações, econo- afetados, causando picos de energia que incendiaram alguns
mia e propaganda. Mesmo os Estados mais totalitários gabinetes de telégrafo.
tentarão intervir nestas tecnologias a fim de permane- Em 1859 não havia infraestruturas elétricas suficientemen-
cer no poder. Não é em vão que o último relatório da Ac- te importantes ou complicadas para causar problemas reais,
ces Now, um grupo internacional sem fins lucrativos, pelo que a tempestade solar, embora intensa, não foi mais do
revela que só em 2020 houve pelo menos 155 interrup- que um evento anedótico. No entanto, na sociedade atual de-
ções da Internet em 29 países diferentes. pendente da eletricidade, somos muito mais vulneráveis a este
tipo de eventos.
GUIA DE SOBREVIVÊNCIA EM CASO DE APAGÃO GLOBAL. Em- A má notícia é que não temos qualquer previsão sobre
bora a possibilidade de um apagão global de energia e/ quando poderá ocorrer o próximo evento Carrington. O nosso
ou tecnologia ainda seja remota, não podemos eliminar melhor palpite, com base em dados reconhecidamente muito
completamente a sua possibilidade, especialmente se a limitados, é que uma tempestade solar semelhante atinge a
causa do apagão for de origem natural. Nesse sentido, Terra cerca de uma vez em cada meio século.
uma tempestade solar massiva poderia ser a causa mais
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provável de um apagão global.
As erupções solares podem perturbar temporaria-
mente a atmosfera superior, criando interrupções na
transmissão de sinal, por exemplo, de um satélite GPS
para a Terra. Outro fenómeno produzido pelo Sol é a
chamada ejeção de massa coronal ou CME, que são ex-
plosões que provocam a projeção de partículas e flutua-
ções eletromagnéticas na atmosfera terrestre que tam-
bém podem induzir flutuações elétricas ao nível do solo
capazes de danificar os transformadores nas redes de
energia em todo o planeta.
Até agora, as tempestades solares têm sido de baixa
intensidade, mas os seus efeitos têm estado longe de
ser negligenciáveis. Por exemplo, uma enorme erup-
ção solar a 4 de agosto de 1972 destruiu as comunica-
ções telefónicas de longa distância em todo o Illinois,
nos Estados Unidos. Esse evento, de facto, obrigou a
AT&T a redesenhar o seu sistema de energia para cabos
transatlânticos. Uma ocorrência semelhante em 13 de
março de 1989 causou tempestades geomagnéticas que No caso de uma falha total de energia, é essencial ter um kit de
interromperam a transmissão de energia da estação ge- sobrevivência como o aqui retratado.
radora Hydro Quebec no Canadá, deixando sem energia
a maior parte da província e mergulhando seis milhões
de pessoas na escuridão durante nove horas.
ou congelador deixará de funcionar. Um abre-latas é
NO CASO DE UM APAGÃO GLOBAL DEVIDO A UMA TEMPESTADE essencial neste caso. Para aquecer os alimentos, seria
SOLAR DE ALTA INTENSIDADE, a primeira coisa a fazer seria necessário um fogão que funcionasse com propano ou,
abrir a torneira da banheira, para recolher uma grande idealmente, com energia solar. Existem também purifi-
quantidade de água antes de o abastecimento ser corta- cadores de água portáteis movidos a energia solar, que
do. Felizmente, o nosso telemóvel continuaria a funcio- seriam muito úteis.
nar durante mais algum tempo porque as companhias As pilhas são essenciais na eventualidade de um
telefónicas terão geradores de energia de emergência. apagão porque fornecem energia instantânea para
No entanto, seria aconselhável não o utilizar para fazer dispositivos de baixa potência, tais como uma lanter-
chamadas, exceto em caso de emergência, de modo a na ou um rádio para receber comunicações ou alertas
não sobrecarregar as linhas. de emergência. As lanternas e rádios que funcionam
É também aconselhável limitar a utilização do automó- a dínamo, também disponíveis comercialmente, são
vel ou qualquer outro veículo de transporte para evitar certamente uma opção mais interessante. Finalmen-
a escassez de combustível, bem como o possível colapso te, recomendam-se kits de primeiros socorros, co-
do sistema de iluminação pública, incluindo semáforos. bertores ou sacos de dormir. E, dado que a situação
Em termos de alimentos, a prioridade deve ser da- pode durar muito tempo e podemos estar a entrar
da aos produtos enlatados e secos porque o frigorífico num novo mundo do tipo Mad Max, não há nada co-
EU COMPREENDO
O MEU MÉDICO!
56 SUPER
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Ficou provado que à
medida que a comunicação
entre o paciente e o
médico melhora, também
melhora a evolução do
estado do paciente.
SUPER 57
A atual redação dos
relatórios médicos é
quase incompreensível
para qualquer
paciente.
G
abriel tem nove anos de idade. ção e menos ansiedade. Quando a operação terminou, a
Desenvolveu uma apendicite, equipa médica saiu novamente para lhe dar novas infor-
quase peritonite, de um dia mações sobre como tudo tinha corrido. Porquê? O que
para o outro. Com um eleva- mudou na comunicação entre o pessoal de saúde e o pa-
do nível de infeção e sintomas ciente nos últimos anos? Porque é agora comum termos
preocupantes, foi internado acesso a explicações sobre as nossas doenças e tratamen-
com urgência para ser opera- tos de uma forma mais inteligível e o pessoal de saúde é
do o mais rapidamente possí- mais acessível?
vel. Uma operação de rotina,
dado o número de operações NOS ÚLTIMOS ANOS, A COMUNICAÇÃO DOS CUIDADOS DE SAÚDE
deste tipo, e em comparação TORNOU-SE UMA PARTE VITAL DA PRÁTICA CLÍNICA. Enquanto
com as cirurgias com risco de há décadas atrás, nem a informação nem a forma como
vida realizadas diariamente nos nossos hospitais, mas era fornecida era valorizada nos processos de cuidados
não sem complicações por tratar-se da zona abdominal de saúde, nas últimas décadas foi demonstrado o poten-
e pelo estado avançado da infeção. cial terapêutico tanto do conteúdo que o pessoal de saúde
Minutos antes de ser transferido para a sala de operações, transmite ao paciente como a forma como esta comuni-
o cirurgião que ia realizar a operação veio à sala para ex- cação tem lugar, tendo sido desenvolvidas várias estraté-
plicar à criança e à sua mãe que tipo de operação ia reali- gias para a promover.
zar. O início da conversa pareceu algo saído de um filme "Historicamente, sempre houve a opção de tratar e de
de fição científica: "Vamos realizar uma operação lapa- cuidar, mas a partir de um modelo muito vertical. Desde
roscópica monoporto para apendicectomia aguda fleg- o curandeiro aos primeiros médicos que tinham conhe-
monosa". Mas ele traduziu imediatamente: "E isto signi- cimentos sobre doenças e sabiam como lidar com elas,
fica que vamos fazer uma incisão na zona do umbigo para os profissionais de saúde aplicavam tratamentos com a
remover o apêndice de lá, limpar a infeção e manter as melhor intenção possível e com a informação certa, mas
feridas internas e externas tão pequenas quanto possível". sem qualquer tipo de explicação aos pacientes, possi-
Gabriel desceu à sala de operações mais calmo e a mãe bilidades de negociação ou intervenção na tomada de
enfrentou o resultado da operação com mais informa- decisões", explica Álvaro Ruigómez, chefe da Secção de
58 SUPER
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A língua como
barreira
A Universidade Pompeu Fabra organiza periodicamente a
conferência Comunicação, linguagem e saúde , que inves-
tiga novas estratégias para melhorar a comunicação com os
pacientes. Uma das questões mais discutidas neste evento é a
compreensibilidade dos relatórios médicos, ou seja, o desafio
de tentar adaptá-los tanto quanto possível a um registo mais
acessível sem substituir a terminologia médica mas simplifi-
cando a linguagem especializada para que a informação pos-
sa ser compreendida, sem perder o rigor ou banalizá-la.
O grupo IULATERM (acrónimo de Lexicon, Terminologia,
Discurso Especializado e Engenharia Linguística) desta uni-
versidade, no âmbito do projeto RecerCaixa JUNTOS, inves-
tigou como os relatórios médicos apresentam uma grande
opacidade semântica, abuso de anglicismos e abreviaturas
técnicas, erros ortotipográficos, falta de conectores e abuso
do uso de formas reflexivas ("administram-se doses de", "re-
fere-se a mal-estar"...), características que dificultam a com-
preensão, despersonalizam a informação e estabelecem uma
distância pouco saudável entre o paciente e o pessoal médico.
Para ultrapassar estas barreiras, este grupo publicou manuais
e lançou uma aplicação para melhorar a qualidade da redação
de relatórios.
Anestesia do hospital Ramón y Cajal e membro da Uni- enviados testes... Mesmo às crianças. Também lhes é dito
dade de Coordenação de Transplantes. "Durante séculos, o que lhes vai ser feito, como vai ser a operação, quanto
esta relação paciente-médico tem sido abordada com um tempo vai durar e para que é o procedimento".
sentido vertical e um certo paternalismo: o médico a ditar "As pessoas querem conhecer e participar nas decisões
e o paciente a obedecer. Mas este modelo foi transformado que afetam a sua qualidade de vida e a sua saúde, procu-
porque nas últimas décadas vivemos mudanças sociais e rando uma relação mais horizontal baseada na confiança.
avanços muito fortes em tecnologia e medicina que nos le- Sem perder de vista o facto de não poder e não dever ser
varam a avançar para uma relação muito mais horizontal. uma relação de iguais, porque é o profissional que tem
A posição do doente mudou radicalmente porque agora o conhecimento, mas agimos agora sob um novo prisma
as pessoas que vêm aos cuidados de saúde querem saber no qual a informação é partilhada e as decisões são ali-
o que têm, porque sofrem com isso, que alternativas de nhadas", salienta o Dr. Ruigómez.
tratamento existem e como participar na tomada de de-
cisões, de modo que a forma de lidar com as doenças e as PARA ESTE MÉDICO, A COMUNICAÇÃO PROFISSIONAL, A COMUNICA-
suas abordagens é mais horizontal", acrescenta. ÇÃO PESSOAL DE SAÚDE-PACIENTE, deve ser individualizada,
Esta opinião é partilhada por María Soledad Paraíso e adaptando a cada caso a explicação do conteúdo do que o
Rosa María Contreras, enfermeiras também do hospital paciente sofre, em que fase se encontra a doença e quais
Ramón y Cajal em Madrid, que, com mais de quatro dé- são as estratégias para o seu tratamento. A confiança no
cadas a trabalhar nos cuidados de saúde, também pas- pessoal de saúde é essencial para que o paciente se deixe
saram por esta transformação do modelo: "A forma co- aconselhar, uma vez que a decisão final é sempre sua.
mo agimos mudou muito. Antes, em geral, não era dada "No caso do hospital Ramón y Cajal, por exemplo, no ser-
qualquer informação aos doentes ou aos seus familiares, viço de anestesia percebemos que tudo o que envolve o
mas agora tudo o que vai ser feito é-lhes explicado, são mundo cirúrgico, as operações, produz muito stress por-
que em muitos casos há um risco de vida e porque o ní- são ou foram pacientes durante um período de tempo e
vel de conhecimento e informação é muito baixo. Assim, adquiriram um vasto conhecimento sobre a sua doença,
criámos uma comissão clínica, uma reunião de especia- suficiente para servir de referência para outros pacien-
listas que analisam voluntariamente um tema específi- tes e ajudá-los na gestão da sua doença. A iniciativa não
co, e criámos um projeto denominado Humanização da é nova, uma vez que surgiu há mais de trinta anos pela
Anestesia, que coloca o paciente no centro do processo mão de Kate Lorig, Jacqueline Laurin e Halsted Holman,
de cuidados de saúde, a fim de melhorar a compreensão da Universidade de Stanford. Em Espanha, esta figura
adequada dos tratamentos que vão ser prestados. Todos foi implementada em comunidades autónomas como a
nós envolvidos num processo cirúrgico (enfermagem, Andaluzia e a Catalunha. Assim, a Escola Andaluza de
anestesia, cirurgia...) tentamos coordenar os nossos es- Saúde Pública tem uma Escola de Doentes em que unida-
forços para que o processo funcione e o paciente tenha des clínicas muito diferentes têm estado envolvidas para
informações de todas as ligações e em todas as fases, e formar pacientes com fibromialgia, diabetes, doenças
participe. Verificámos que quanto mais envolvidos estão cardíacas, DPOC, cancro colorrectal e cancro da mama,
os pacientes, melhores serão as decisões tomadas e mais entre outras doenças.
satisfatórios serão os resultados do ponto de vista médico Vários estudos confirmam que os pacientes que partici-
e do ponto de vista do bem-estar dos pacientes. Porque pam nestes programas experimentam menos readmissões
para nós também é importante que os pacientes perce- e visitam menos frequentemente os serviços de urgência
bam que estão a ser bem tratados", explica o chefe da Se- porque têm uma melhor compreensão da doença de que
ção de Anestesia no hospital Ramón y Cajal e membro da sofrem e aprendem a cuidar melhor de si próprios, o que
Unidade de Coordenação de Transplantes. se traduz num aumento da sua qualidade de vida.
Outra estratégia que responde a este novo paradigma Por outro lado, para além da quantidade e clareza da in-
centrada em fornecer aos cidadãos informações de saú- formação, outro elemento que ajuda na relação paciente-
de claras, verdadeiras e inteligíveis é o chamado "pa- -agente de saúde é o ambiente em que a relação tem lugar.
ciente especialista". Este termo refere-se a pessoas que Os espaços de saúde nem sempre são amigáveis devido
ao tipo de atividade que se realiza em muitos deles, o que embustes ou notícias falsas que afetam o setor médico e
requer um nível de desinfeção, esterilização, iluminação representam um enorme risco para a saúde da população
especial e condições de temperatura... Mas algumas salas, em geral: duas em cada três notícias falsas que circulam
áreas ou departamentos podem ser equipados para ofere- na Internet estão relacionadas com questões de saúde e
cer espaços mais agradáveis para o tratamento de pacien- qualidade de vida. As redes sociais e as mensagens ins-
tes. É o caso, por exemplo, das áreas destinadas aos cuida- tantâneas são dois dos meios mais comuns de divulgação
dos dos mais pequenos, as áreas pediátricas. de informações falsas desta natureza.
"Atualmente, a primeira coisa que um doente faz quando
DO MESMO MODO, É TAMBÉM UMA FONTE DE CONFORTO CONHECER sai do consultório médico é procurar na Internet o que lhe
AS INSTALAÇÕES em que os tratamentos serão realizados e foi dito que tem. Mas a informação publicada na web nem
em que a relação paciente-agente de saúde vai ser desen- sempre é exata. Além disso, a verdade é que as abordagens
volvida. Neste sentido, a iniciativa Hospital Amigável vi- são frequentemente alarmistas e também é normal não
sa alcançar ambientes hospitalares mais amigáveis e mais saber dimensioná-la", diz o Dr. Álvaro Ruigómez.
próximos das necessidades dos pacientes, tornando os Face a este fenómeno, várias instituições e organiza-
hospitais mais fáceis de se transitar, mais confortáveis, ções têm apresentado iniciativas para contrariar a pro-
acolhedores, humanos e sensíveis . pagação deste falso conteúdo. O website #Saludsinbulos,
Desta forma, o programa Hospital Amigável forma vo- desenvolvido pela agência de comunicação COM Salud e
luntários que acompanham os pacientes e as suas famílias pela Asociación de Investigadores en Salud, ensina pa-
para os ajudar a adaptarem-se à vida hospitalar através cientes, crianças em idade escolar e profissionais de saú-
da localização de serviços, itinerários e pessoal de cui- de a procurar informação fiável na Internet.
dados. Durante alguns dias, são formados numa série de Peritos em diferentes áreas da saúde são responsáveis
competências, incluindo o conhecimento das diferentes por identificar e refutar conteúdos falsos que tenham si-
fases da doença e do impacto que têm no doente e no seu do publicados online e por melhorar o nível de conhe-
ambiente, a identificação das necessidades relacionadas cimento existente sobre doenças e tratamentos. Esta é
com o itinerário dos doentes nos centros, e a proposta de mais uma iniciativa nesta nova abordagem da comuni-
estratégias de melhoria, entre outras. cação entre profissionais de saúde e doentes, com vista
Desafiando este esforço para melhorar e reforçar a a estabelecer relações mais próximas, mais humanas e
comunicação no campo da saúde e a relação entre pa- cordiais entre os dois grupos, que são chamados a com-
cientes e profissionais, do outro lado da moeda estão os preender-se mutuamente. e
SUPER 61
A R T Í DE
ANIMAIS C ESTIMAÇÃO
U L O
OS ANIMAIS SABEM
"MATEMÁÁTICA"
E UTILIZAM-NA PARA SOBREVIVER
62 SUPER
Basta olhar cuidadosamente à nossa volta para detetar como
a matemática permeia tudo o que nos rodeia. Se observarmos
atentamente as formas da natureza, podemos ver a sua perfeição,
mas também descobriremos padrões matemáticos que certos
seres vivos aplicam no seu comportamento, na maior parte das
vezes, com o objectivo de sobreviver.
A forma da concha do
GETTY
SUPER 63
Descobriu-se que os
tubarões caçavam
utilizando o padrão de
movimento "vôos de Levy",
especialmente quando há
poucos peixes e plâncton
para se alimentarem.
GETTY
A
matemática pode ser defini- descobrindo antecipadamente as suas hipóteses de so-
da como aquela coisa perfeita e brevivência face a uma ameaça.
harmoniosa que nos une como A forma como os animais reagem a um estímulo e o
um todo. Quando falamos de processam está completamente ligada a um padrão, uma
matemática, estamos a falar dos sequência de sobrevivência, adaptação e procura de re-
detalhes perfeitos da criação do cursos. Em suma, uma linguagem que está vagamente
ser, da vida e do universo. Nas relacionada com um mundo matemático.
nervuras das folhas, na espessura Albert Neisser, um prestigiado bacteriologista alemão,
dos ramos das árvores, na concha no século XX, realizou uma análise da abordagem cognitiva
de um caracol, nas sementes dos em animais. O objetivo deste estudo era medir a inteligência
girassóis, nos chifres das cabras, em animais por meio de processos de aprendizagem. Os es-
na curvatura das presas de um tudos mentais que foram realizados compararam as capaci-
elefante, na forma de um furacão, na distribuição dos dades cognitivas dos seres humanos com as dos animais, e a
planetas, luas, mesmo no sistema solar. Tudo isto é ma- conclusão foi que os animais mostram que têm uma mente
temática, ou neste caso, mais matematicamente falan- e uma perceção do ambiente que os rodeia. Com estes re-
do, "Proporção áurea" ou Phi. A proporção de ouro tem sultados pode-se ver claramente que a atenção dos animais
um valor matemático de 1,618 e está presente em todo consiste na capacidade de distinguir estímulos, a busca vi-
o lado à nossa volta. Mesmo estudos recentes liderados sual para diferenciar certos objetos, bem como a conclusão
por Jan Boeyens e Francis Thackeray, acreditam tê-la de que a memória nos animais se pode desenvolver através
encontrado também na topologia do espaço-tempo de categorias de curto e longo prazo.
do universo. Todas estas descobertas foram publicadas
no South African Journal of Science, com uma grande PODEMOS OBSERVAR TODAS ESTAS CAPACIDADES NATURAIS E
aceitação de toda a comunidade científica . PERFEITAS, em maior ou menor grau, percebendo que todos
Não surpreende, por isso, que a precisão matemática estes estudos são de facto corretos. Sem ir mais longe, um
também se aplique aos comportamentos entre espécies, grande número de pessoas no mundo vive com animais
aos campos da vida humana, bem como ao reino animal, nas suas próprias casas. Mais importante ainda, amamo-
insetos, mamíferos e outros. -los como se fizessem parte da nossa própria família e se
O nosso mundo é constituído por padrões e sequências olharmos de perto podemos encontrar muitas semelhan-
que estão à nossa volta; o dia transforma-se em noite, ças connosco, humanos, especialmente em certas áreas.
a noite transforma-se em dia e os animais percorrem o Por exemplo, não há dúvida de que o grande compa-
mundo em cada mudança de estação com precisão. Uma nheiro do homem, o cão, sempre foi acompanhado por
das razões pelas quais a matemática surgiu foi devido à humanos, e sempre pudemos tirar partido das qualida-
necessidade de dar sentido a estes padrões naturais. des deste belo animal, que tem demonstrado grande in-
Para começar, é de notar que a análise da capacidade teligência desde a sua origem. O cão é um descendente
cognitiva dos animais determinou que os números, as claro de uma raça específica de lobos que está agora ex-
medidas e as formas não são conceitos exclusivos dos tinta mas que evoluiu, e o lobo usou o homem para obter
seres humanos. Assim, a matemática é também um alimento em tempos de escassez. Nesse processo, uma
processo que os animais realizam quando percebem o linguagem que só o lobo e o homem podiam compreen-
seu ambiente através dos seus sentidos. Os animais têm der foi iniciada desde os tempos mais remotos.
perceção da distância, de números e a capacidade de cal- O homem primitivo, ao preparar a sua comida, atraía
cular quando atacar ou fugir, dependendo se a manada a atenção do lobo. O lobo, atraído pelo seu olfato, apro-
que decidem combater é maior ou menor em número, ximou-se gradualmente do ser humano, estabelecendo
64 SUPER
Graças ao seu olfato, os cães podem detetar os nossos níveis
de stress, e mesmo o estado da nossa saúde física e emocional
uma relação de confiança, o que lhe permitiu obter ali-
SHUTTERSTOCK
mento do homem. Em troca, o homem começou a utili- Imagem de um
zar o lobo para a caça e proteção dos animais do lar. nautilus, um
Desde o primeiro contacto do lobo com o homem e a molusco
cefalópode do
sua astúcia para encontrar comida em tempos de escas-
qual três espécies
sez, pudemos apreciar como se adaptou a nós, como pro- sobrevivem hoje
curou uma forma de sobreviver e finalmente se tornou o em dia.
melhor amigo do homem.
Uma coisa muito peculiar sobre os cães é que eles sabem
identificar, medir e ler certos padrões de comportamento
humano, tais como a frequência do som da nossa voz e, o
que é mais interessante, a emoção que lhe está associada.
SUPER 65
A abelha dançarina analisa a direção do seu voo do favo de
mel até ao seu destino com referência ao sol
com regulação podem, passiva e suavemente baixar dezassete são números primos, ambas as ninhadas emer-
e subir na água, como se estivessem num submarino. gem juntas apenas uma vez em cada vinte e dois anos.
Detetam baixas de oxigénio e podem sobreviver com o Os números primos estão intimamente ligados à sobrevi-
oxigénio das câmaras se houver uma sua redução nos vência das cigarras, e curiosamente são um dos elemen-
oceanos. tos mais importantes do código, porque o código é um
Mas uma das coisas mais surpreendentes são as dimen- mundo matemático construído de números.
sões das câmaras, onde se pode ver claramente um pa-
drão, que dividido pela medida anterior é 1,08. Isto indica O CASO DAS ABELHAS É TAMBÉM MUITO INTERESSANTE. Com-
que o nautilus cresce a um ritmo constante, cada vez que preendem como utilizar a matemática e as formas geo-
constrói uma nova sala, as suas dimensões são 1,08 vezes métricas para a eficiência do espaço e do tempo. O fa-
as dimensões das anteriores, criando assim uma espiral vo de mel que as abelhas constroem é uma maravilha
perfeita. Aqui estamos de volta a Phi ou "divina propor- da engenharia natural. Se olharmos para o seu interior,
ção", a perfeição do todo . podemos ver como tudo o que elas precisam está dentro
O peixe mosquito e a sua capacidade de contar. A uni- dele. É o local onde criam as suas crias e armazenam os
versidade de Pádua em Itália realizou um estudo sobre o seus alimentos. É todo feito de cera, uma substância tão
peixe mosquito (gambusia affinis), um peixe de água doce intensamente laboriosa que as abelhas têm de voar do-
do Golfo do México que mede quatro a sete centímetros ze vezes à volta da Terra para produzir 0,5 quilos. Fazem
e é capaz de desenvolver competências matemáticas. O hexágonos que parecem feitos pelo homem, de uma es-
peixe tem a capacidade de contar até quatro. Quando uma trutura muito resistente. Porque é que as abelhas fazem
fêmea é assediada por um macho, ela tenta fugir e mistu- padrões hexagonais?
rar-se num cardume próximo. Os cientistas demonstra- Cada uma das células é idêntica às outras seis pare-
ram que uma fêmea é capaz de diferenciar entre um e dois des, formando sempre um ângulo de 120 graus, é como
peixes, entre dois e três peixes, até três e quatro peixes. se tivessem o hexágono incorporado no seu ADN, cada
célula tem exatamente o tamanho do seu corpo, usam o
OS GOLFINHOS PODEM USAR MATEMÁTICA COMPLEXA NÃO LINEAR seu corpo como se fosse uma régua. Mas há outra razão
NA CAÇA À COMIDA, de acordo com um novo estudo de Tim pela qual as abelhas criam hexágonos e não seguem ne-
Leighton, da Universidade de Southampton UK. Eles nhuma outra estrutura. É porque as abelhas precisam
fazem isto soprando múltiplas pequenas bolhas em tor- de armazenar grandes quantidades de mel utilizando
no das presas, e estes sopros podem variar em ampli- pequenas quantidades de cera, e os hexágonos são os
tude. O primeiro pode ter o valor de um, enquanto o que necessitam de menos quantidade de cera, por isso
segundo ser um terço da amplitude. Assim, sempre que são mais eficientes.
o golfinho se recorda de quais eram as proporções dos Entre os muitos tipos de abelhas, existe uma chamada
dois sopros, pode multiplicar o segundo eco a partir daí
e adicionar os ecos juntos. Desta forma, ele pode tornar
SHUTTERSTOCK
66 SUPER
SHUTTERSTOCIK
Um bando de
estorninhos em voo.
Estas aves são capazes
de sincronizar o seu voo
tendo em conta a
distância e a velocidade
de cada uma delas.
abelha bailarina, que é realmente especial. Esta abelha é que afugenta potenciais predadores na sua vizinhança.
capaz de armazenar informação que lhe permite localizar Têm uma sincronização incrível, que adquiriram medin-
a fonte de alimento, que consiste em analisar a direção e do a sua proximidade uns dos outros, e também fazendo
magnitude da sua viagem desde o favo de mel até ao ob- uso do som que emitem. Como podem milhares de aves
jetivo, tomando o sol como referência. Se estiver nublado, prever os movimentos de milhares de outras à sua volta?
deve ser orientado de uma forma diferente, por exemplo, Primeiro, cada um voa à mesma velocidade; segundo,
utilizando a sua sensibilidade à radiação solar, o que lhe todos eles ficam perto dos seus vizinhos; e finalmente,
permitirá completar a informação necessária. quando vêem um predador por perto, saem do caminho.
O caminho percorrido pelas abelhas tem sido estudado Um estudo demonstrou que num bando de centenas de
desde a antiguidade, e tem resolvido numerosos problemas milhares de aves, cada estorninho apenas segue os seus
matemáticos, alguns deles complexos, tais como o do ven- sete vizinhos mais próximos.
dedor ambulante, que consiste em visitar muitas cidades e Particularmente interessante é o caso dos Furnários e
regressar à cidade inicial sem repetir nenhuma delas, ou o do seu canto. O investigador Gabriel Mindlin descobriu
problema das pontes de Königsberg, que trata de sete pon- que as aves seguem um padrão matemático quando can-
tes sobre o rio Pregolya sobre as quais se deve passar até ao tam. Os ritmos sincronizados de machos e fêmeas res-
ponto de partida sem repetir nenhuma delas. Este proble- pondem a leis simples da física, em particular as que re-
ma foi estudado por muitos europeus até ter sido resolvido gem sistemas conhecidos como osciladores não lineares,
por Leonhard Euler na teoria gráfica. De acordo com a in- tais como um pêndulo movido por uma força vertical
vestigação de Lars Chittka e da sua equipa na Queen Mary's oscilando sobre uma vasta região. e
School of Biological Sciences, Universidade de Londres, as
abelhas escolhem sempre o caminho mais curto nos seus
percursos, por mais complexo que seja. É óbvio que as abe-
SHUTTERSTOCK
lhas têm uma mente matemática de primeira classe, espe- O tamanho das
cialmente tendo em conta que os seus cérebros são do células alveolares
que as abelhas
tamanho de um alfinete.
constroem
corresponde
OS ESTORNINHOS APLICAM A MATEMÁTICA PARA A SO- exatamente ao
BREVIVÊNCIA DO GRUPO. Quando os estorninhos tamanho dos
fazem a sua migração anual entre o sul da seus corpos.
Europa e a Escandinávia, um único bando
pode conter um milhão ou mais de aves.
Pode-se ver que quando começam a
voar em grupo formam uma bela
dança, em diferentes formas, que
se desvanece à luz da noite, dando
a esta formação o seu misterioso
nome "O Sol Negro". Fazem-no
para proporcionar a segurança
do número. A forma completa
parece bastante ameaçadora como
se fosse uma besta grande e escura
SUPER 67
ENTREVISTA
Miguel Nicolelis,
professor emérito de
neurociência,
propõe em O
Verdadeiro Criador
de Tudo uma visão
cosmológica
radicalmente nova
que coloca o cérebro
humano no centro
do universo.
ASC
68 SUPER
Miguel
NICOLELIS
«Receio que nos
estejamos a tornar
zombies digitais»
Transformar energia em conhecimento. É este propósito que motiva
o neurocientista Miguel Nicolelis todos os dias, a seguir em frente
com a sua vida pessoal e profissional. Um pensamento impulsionado
por um poderoso otimismo que abre o caminho face a uma visão que
não está muito de acordo com a realidade atual. Para Nicolelis, a
preocupação com o futuro da sociedade não é um obstáculo para se
sentir esperançoso. De facto,nesta entrevista ele revela que o seu maior
sonho é ver a humanidade recuperar os valores humanistas que em
tempos nos deram esperança, e fala-nos da teoria que reúne no seu
livro O Verdadeiro Criador de Tudo, e que defende a preponderância do
cérebro e da inteligência humana face ao perigoso mundo digital.
Entrevista por
GEMA BOIZA
SUPER 69
ENTREVISTA
M
iguel Nicolelis (São Pau- soas (uma em cada sete no mundo, segundo a Organiza-
lo, 7 de março de 1961) é ção Mundial de Saúde) que sofrem de uma doença cere-
por direito e méritos pró- bral, psiquiátrica ou neurológica. Não lhe falta certamente
prios, uma referência no vontade e coragem. É isto que ele nos diz nesta entrevista.
campo da neurociência
à escala internacional. O Miguel Nicolelis, acaba de publicar O Verdadeiro Cria-
artífice do robô que deu o dor de Tudo. O que é este livro e como o define?
pontapé «mágico» à bola É o meu legado científico, uma combinação dos meus
que inaugurou o Campeo- quarenta anos de carreira como cientista, um resumo da
nato do Mundo no Brasil minha viagem ao longo destas últimas quatro décadas.
em 2014, assiste hoje ao Comecei a estudar medicina e muito cedo com a infor-
sucesso de O Verdadeiro mática, fui o primeiro cientista brasileiro a trabalhar com
Criador de Tudo, um livro microchips nos Estados Unidos, e lembro-me de explicar
em que nos avisa de co- aos meus professores como utilizar computadores. Foi
mo algumas pessoas estão a tentar substituir o cérebro então que me ocorreu que o cérebro era uma espécie de
humano por computadores e as pessoas por máquinas. computador, embora cedo me tenha apercebido que es-
Nicolelis avisa que estamos a perder a nossa capacidade te órgão era outra coisa e quis dedicar-me à ciência para
de tomar decisões racionais, e diz que teme que a lógica compreender o que realmente era.
digital nos sequestre os nossos cérebros. Um feroz detra-
tor da inteligência artificial, adverte que “se perdermos a O livro é dirigido às gerações presentes ou futuras?
nossa mente e a entregarmos à lógica digital, não haverá Penso que a ambas. Há alguns dias ouvi um casal de filó-
volta a trás”. Tendo coordenado um grupo gigantesco de sofos brasileiros dizer que pensavam que o livro ia durar,
cientistas para aconselhar os líderes do seu país durante que ia ser para o futuro. Há alguns capítulos onde falo
grande parte da pandemia da COVID-19, este neurocien- sobre o que a lógica digital pode estar a fazer ao nosso
tista lamenta que os políticos não estejam preparados cérebro como espécie, e como ela nos está a tirar e pode
para os desafios científicos de hoje, porque as suas prio- tirar os principais atributos que nos tornam humanos.
ridades são ser reeleitos. Há pessoas que estão a tentar substituir o cérebro e as
Embora esteja certo de que há falta de vontade insti- pessoas por computadores e máquinas. Elon Musk diz
tucional para estudar mais e melhor o cérebro, Nicolelis que poderia descarregar a informação do nosso cérebro,
recorda que já demonstrou que a eletroestimulação da e isso é algo impossível, que nunca poderia acontecer! É
medula espinal pode ser utilizada para tratar a doença de um estratagema de marketing para tentar vender coisas
Parkinson, e argumenta que um maior conhecimento da a pessoas que talvez sejam mais ignorantes.
nossa matéria cinzenta poderia ajudar os milhões de pes-
O que pretende com a publicação deste «legado»?
Eu quero apoiar a humanidade, as artes e tudo o que nos
torna humanos e que devemos preservar. Ao mesmo
Nicolelis tempo, este livro é um alarme, um alerta para dizer que
reivindica o valor podemos estar a perder algo que é o atributo mais valioso
da inteligência da nossa condição humana, que podemos estar a perder
humana face aos
empatia, as nossas relações com outros seres humanos, e
perigos da
inteligência deixar que coisas que não são mais do que abstrações da
artificial. nossa mente se tornem mais importantes do que o nosso
próprio instinto de sobrevivência.
70 SUPER
Os primeiros estudos
de Miguel Nicolelis
sobre o funcionamento
do cérebro foram
realizados em animais
adormecidos, que
estavam anestesiados.
SHUTTERSTOCK
um, mas que somos animais sociais que interagem a to- Porque é que o cérebro não está a ser estudado com mais
da a hora com outros seres vivos. O nosso cérebro evoluiu profundidade? o que é que falta? meios? interesse?
com o objetivo de se integrar com outros indivíduos, por De certa forma há falta de vontade política e, ao mes-
isso, uma vez terminada a pandemia, quero estudar ani- mo tempo, há também uma certa relutância no campo
mais que estão a interagir entre si, e humanos que estão neurocientífico em aplicar o que foi descoberto. Há uma
a interagir uns com os outros, e ao mesmo tempo medir a dicotomia, que é que as ciências aplicadas são conside-
atividade cerebral, aquilo a que eu chamo a rede cerebral. radas inferiores nestes círculos às ciências teóricas ou às
Nisto reside o segredo de como os seres humanos cons- ciências puras. Contudo, vimos que milhares, ou mesmo
truíram a civilização ao longo da história. milhões de vidas podem ser salvas em todo o mundo. Is-
to foi demonstrado com a vacina e a pandemia da CO-
Como pode o cérebro melhorar as nossas vidas? No livro VID-19. Espero que este exemplo ajude a eliminar o es-
fala em restaurar a mobilidade de pessoas com lesões da tigma que existe no mundo científico no que diz respeito
espinal-medula. É possível sonhar em encontrar uma so- às ciências aplicadas. Penso que ainda há muitas pessoas
lução para doenças tão generalizadas na sociedade como de espírito estreito.... Se é um cientista, é um cientista
Alzheimer, Parkinson ou demência senil? quer seja um cientista puro ou um cientista aplicado. A
Há cerca de doze anos descobri que era possível utilizar ciência tem um impacto sobre o público, se lhes dermos a
a eletroestimulação da medula espinal como ferramen- possibilidade de a ver. Foi o que conseguimos com aquele
ta para tratar a doença de Parkinson, algo que já está a robô que chutou a bola na abertura do Campeonato do
ser aplicado no tratamento de mais de uma centena de Mundo no Brasil. Isso também faz parte da nossa missão,
pacientes em países de todo o mundo. Estou atualmen- de mostrar à sociedade o que se pode alcançar.
te a criar uma rede global de institutos de investigação
clínica para tentar implementar esta técnica, para tratar Estaremos talvez a concentrar-nos demasiado na inteli-
doentes com Parkinson e outros com depressão crónica, gência artificial e menos na mente humana?
epilepsia crónica.... Se eu começar a falar sobre isto, nunca mais acabo! Sou
Segundo a Organização Mundial de Saúde, as doenças uma daquelas pessoas que os peritos em inteligência arti-
cerebrais afetam mais de um bilião de pessoas em todo ficial mais odeiam, porque eu digo que não é inteligência
o mundo. Uma em cada sete pessoas foi diagnosticada nem artificial. A inteligência é uma propriedade dos orga-
com algum tipo de distúrbio cerebral, seja psiquiátrico nismos biológicos, dos seres vivos. Nenhuma máquina é
ou neurológico, por isso criei um novo slogan para a mi- inteligente, nós somos inteligentes. Os programadores que
nha rede que é: tratar um bilião de pessoas. Penso que criam o software de inteligência artificial têm inteligência,
é possível, e penso que seria uma alternativa às drogas mas não as máquinas. E também não é artificial porque foi
que têm efeitos secundários terríveis. Quero encontrar criado por seres humanos, não caiu do céu, vem das nossas
algo que minimize os efeitos secundários e maximize o mentes. Há muito marketing, porque há muita gente que
impacto positivo. ganha muito dinheiro com isso, muito dinheiro! Assisti re-
72 SUPER
H I S T Ó R I A
OS
NABATEUS
O povo misterioso que
construiu Petra
Petra, a cidade das rochas a meio caminho entre o Mar Morto e Vista do espetacular
SHUTTERSTOCK
Tesouro de Petra, o
o Golfo de Aqaba na atual Jordânia, apresenta-se há décadas ao primeiro edifício
que o viajante
mundo como "a capital dos nabateus", um povo que apareceu na encontra quando
emerge do Siq, o
região por volta do século V a.C. e do qual pouco resta. desfiladeiro de 1,5
km de comprimento
que leva a Petra,
Texto de BORJA BAUZA, Jordânia.
jornalista
SUPER 73
GETTY
Gravura mostrando
uma bela vista das
famosas ruínas de
Selah (Petra) na
Jordânia. A litografia
foi gravada por
Grünewald em 1840.
A
primeira pessoa a mencionar os novos 4000 soldados a pé seriam acompanhados por
os nabateus foi, tanto quanto outros 4000 cavaleiros comandados pelo seu filho De-
sabemos, um historiador gre- metrius, um soldado particularmente feroz, que também
go chamado Diodoro Sículo. era conhecido como "o sitiador de cidades".
Fê-lo na sua Bibliotheca His- O problema era que os nabateus ainda não viviam em
torica, uma enciclopédia de cidades. Assim, quando viram aproximar-se o segundo
quarenta volumes que publi- exército de Antígono, optaram por guardar os seus bens
cou em algum momento no em vários abrigos secretos espalhados pelo deserto e re-
século I a.C. fugiar-se, eles próprios, numa colina rochosa alta que,
Refere-se a um episódio re- dizem, era inexpugnável.
gistado 300 anos antes, no A estratégia era suficientemente simples: com tudo e
século IV a.C., quando um dos antigos generais de Ale- todos a salvo, era uma questão de esperar que o deser-
xandre o Grande, Antígono Monóftalmos, embarcou to fizesse o seu trabalho. Demetrius apercebeu-se disto
numa campanha militar que o levou da Ásia Menor, quando os nabateus iniciaram negociações diplomáti-
onde tinha estabelecido o seu reino, até às portas da cas nas quais ofereceram parte da sua riqueza em troca
península do Sinai. Ali, como escreveu um dos seus de uma retirada. O "sitiador das cidades" aceitou.
tenentes, Antígono encontrou os habitantes que ocu- Jane Taylor, autora de Petra e o Reino Perdido dos na-
pavam "uma terra sem água", vivendo ao ar livre em bateus, diz que tal mentalidade (oferecendo uma saída
tendas e se dedicavam principalmente ao pastoreio de digna ao invasor) já era prova da inteligência de um po-
camelos. vo ao qual esperavam quatro séculos de expansionismo,
O velho general de Alexandria decidiu que estes estra- prosperidade e glória.
nhos nómadas eram presas fáceis e ordenou que 4000
homens de infantaria e 600 cavaleiros marchassem con- ALGUNS AINDA SUSTENTAM QUE OS PRIMEIROS NABATEUS ERAM
tra eles. Contudo, o exército de Antígono foi emboscado na realidade a tribo de Nebayot mencionada no Antigo
por uma força duas vezes superior ao seu número. "Os Testamento. No entanto, os peritos rejeitaram esta hi-
4.000 soldados de infantaria foram abatidos, e dos 600 pótese e apontam, em vez disso, para a Arábia. Ainda
cavaleiros, meia centena sobreviveram, embora feridos", hoje se debate se a sua origem exata se situa no sudeste
escreveu o tenente. Ao saber o que tinha acontecido, da península, onde o Iémen se situa a leste, em frente
Antígono decidiu lançar uma segunda ofensiva na qual ao atual Bahrein, ou na região de Hijaz, nas margens do
74 SUPER
Acredita-se que os primeiros nabateus foram comerciantes
extremamente habilidosos que controlavam as várias rotas
ASC
Dracma de prata de
Obodas I, 86 a.C. O seu
reinado durou apenas
onze anos.
Mar Vermelho. Contudo, tanto a hipótese bíblica como conscientes da existência do reino de Edom, quase a
outra que as coloca na Mesopotâmia já não são tidas em última paragem da rota antes de chegarem ao porto
conta.Por outras palavras, os nabateus não eram nati- de Gaza, e também do seu declínio e subsequente de-
vos do local onde Antígono os encontrou. sintegração por volta do século V a.C. Pouco depois,
Embora ninguém pareça saber ao certo quando e argumenta esta tese, os nabateus começaram a esta-
como chegaram ao que tinha sido o reino de Edom al- belecer-se progressivamente na região, ou seja, teria
guns séculos antes, Taylor sugere a possibilidade de sido uma ocupação sem derramamento de sangue por-
uma expansão eminentemente pacífica através do co- que não havia nenhuma entidade política - um reino,
mércio. Segundo a sua tese, os primeiros nabateus uma espécie de Estado - para derrotar. Havia povoa-
eram comerciantes extremamente hábeis que contro- ções dispersas aqui e ali, restos da chamada civilização
lavam e viajavam em extensas caravanas as rotas que edomita, que teriam aceite de bom grado a presença
ligavam a Arábia com o Mediterrâneo. Assim, estavam dos nabateus. Existem outras teorias menos simpáti-
cas que sugerem um expansionismo mais agressivo do
que o apresentado por Taylor. Estas hipóteses dizem,
finalmente, que os Edomitas, que tinham caído em
ALBUM
SUPER 75
AGE
Ilustração
mostrando Gnaeus
Magnus Pompeius
(Pompeu) a
celebrar a vitória
que lhe valeu a
anexação da Síria
como província
romana.
povo nabateu.
POUCO TEMPO DEPOIS, UM DELES, MARCO EMÍLIO ESCAURO, DECIDIU
USAR AS DUAS LEGIÕES deixadas sob o seu comando para mar-
SUPER 77
Bibliografia para leitura posterior
A ausência dos nabateus de trabalhos de análise e
explicação do Próximo Oriente na antiguidade é im-
pressionante. Muitos textos de referência, geralmente
Blánquez e Ángel del Río. Blánquez é também o autor de um
ensaio anterior intitulado Petra, a Cidade dos nabateus. Há
também duas obras interessantes em inglês: Os nabateus,
recomendáveis, ignoram abertamente a sua existência. Ou, por Dan Gibson, e Petra e o Reino Perdido dos nabateus, por
na melhor das hipóteses, eles tombam sobre esta parte da Jane Taylor. Este último deve ser lido com cautela, pois Tay-
história e mencionam brevemente a sua presença. É difícil lor não pode - ou não quer - esconder a sua simpatia pelos
encontrar livros sobre o reino nabateu. Um livro que o faz nabateus. No entanto, o seu livro é uma boa abordagem à
é Petra. Historia y arqueología, dos historiadores Carmen questão.
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char contra a cidade de Petra. O seu objetivo era conquistar a retirada imediata. Um movimento semelhante ao feito
cidade. Porquê? Outra questão que só pode ser especulada, pelos seus antepassados alguns séculos antes, quando,
embora a maioria dos estudiosos refira o seu afã de glória embora ainda um povo nómada, decidiram afastar De-
como razão da sua decisão. No entanto, o romano não conse- métrio, o filho de Antígono, por meio de suborno. Nesta
guiu conquistar Petra, que, sendo esculpida na rocha de um ocasião, Escauro também aceitou a proposta.
vale extremamente estreito, é muito fácil de defender. Farto O episódio envolvendo Escauro marca o início das
e frustrado, Escauro começou a queimar o pouco que podia relações entre o reino nabateu e Roma. Estas relações
ser queimado na área circundante enquanto ponderava sobre iam desde agressões como a que sofreu às mãos de Au-
o que fazer para salvaguardar a sua honra. lo Gabínio até jogos de malabarismo nas guerras civis
Sentindo o dilema em que Scaurus se encontrava, Aretas romanas, quando o rei Malicos I se aliou primeiro com
III ofereceu-lhe trezentos talentos de prata em troca da sua Júlio César, a quem enviou cavaleiros para o apoiar na
78 SUPER
Mapa do Levante
Sul por volta de
830 a.C.,
mostrando a
localização das
tribos nabateias.
CREDITO
sua disputa com Pompeu, e depois com Octávio contra bém incluída na estrada que articulava o comércio da
Marco António. Sem esquecer atos como o do intrigan- nova província. Houve mesmo um governador romano,
te Syllaios, um ministro nabateu que, ao oferecer-se Sexto Florentino, que expressou o seu desejo de ser ali
como guia, frustrou uma expedição romana na Arábia enterrado.
que punha em perigo a independência do reino. Ou as A verdadeira queda de graça da cidade começou com
artes diplomáticas de Aretas IV, que conquistou a ad- o terramoto de 363, um terramoto que destruiu gran-
miração do próprio Octávio Augusto. Finalmente, em de parte da cidade. Inicialmente Petra continuou a
106, o Imperador Trajano ordenou a anexação do reino funcionar como tal, mas a sua população e importân-
e a consequente criação de uma nova província romana cia declinou constantemente até que, com a chegada
chamada Arábia Petraea. do Islão, se tornou um mero enclave para caravanas
que viajavam de lugar em lugar. Consequentemente,
A PERDA DA INDEPENDÊNCIA DO POVO NABATEU É VISTA PELA durante as Cruzadas passou despercebido e assim, in-
CRENÇA POPULAR como o início do declínio dos nabateus tocado pela luta trazida pelo passar do tempo, caiu no
e de Petra em particular . No entanto, historiadores co- esquecimento. O último registo conhecido é a crónica
mo Ángel del Río e Carmen Blánquez, autores de Petra. de uma viagem feita pelo Sultão Mameluco Baibars, que
Historia y arqueología, não concorda com esta afirma- passou em 1276 e, depois de ver os restos da antiga capi-
ção. Ambos concordam que após a anexação por Roma, tal nabateia, prosseguiu o seu caminho com uma pausa
a cidade recebeu grandes e múltiplas honras e foi tam- quase nula.e
Filmes
A VERDADE POR DETRÁS DA LENDA URBANA
80 SUPER
A existência de filmes snuff sempre se moveu entre o mito e a realidade.
Não há dúvida que este tipo de filmes e o seu ambiente nos levam aos
cantos mais escuros da alma humana, onde reside o prazer de observar
um assassinato real. No entanto, continuam sem encontrar-se as provas
irrefutáveis da sua existência.
Crimonóloga
SUPER 81
AP
A
13 de abril de 1999, o británico requisitos do FBI para se poder considerar um filme
Daily Mail e outros meios de snuff, a mesma notícia anunciava que os homens deti-
comunicação social relataram dos foram "os primeiros assassinos do mundo a serem
que dois cidadãos alemães, condenados por homicídio enquanto produziam um
Ernst Dieter Korzen e Stefan filme snuff".
Michael Mahn, tinham sido E quais são estes requisitos? "A gravação de um ho-
condenados a prisão perpétua micídio destinado a satisfazer uma motivação sexual
pelo tribunal de Hagen sob a e com a intenção de ser distribuído comercialmente",
acusação de agredir sexual- salienta a agência americana. Dos dois, o mais difícil
mente, torturar, assassinar e de realizar é sempre a comercialização, porque, em-
filmar uma mulher de 21 anos bora tenham existido dezenas de vídeos conhecidos
de idade que era prostituta, para vender a fita por 100 de homicídios colocados em diferentes redes sociais
000 libras. No entanto, a mulher morreu antes da con- ou distribuídos em mão, não foram feitos para um fim
clusão das filmagens, pelo que raptaram uma segunda económico, mas por um sentimento exibicionista,
vítima que conseguiu escapar, e a polícia foi alertada propagandístico ou de auto-consumo. São casos como
para o que tinha acontecido. Como o caso satisfazia os o de Steve Stephens, que em abril de 2017 filmou a si
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Os seres humanos sempre foram fascinados pela observação
da violência e das mortes públicas
próprio a disparar sobre um homem de 74 anos até à as massas. As pessoas lotam as bancadas dos tribunais
morte e mais tarde carregou o vídeo para a sua página de justiça quando casos excepcionais são julgados e
do Facebook. assistem deleitando-se com o horror das execuções
É também o caso do que aconteceu na cidade me- públicas. Alguns até tentam apanhar a areia ensan-
xicana de Colonia Malinche, quando, a 14 de maio de guentada depois da decapitação de um condenado",
1998, uma rapariga de 17 anos de idade relatou ter si- relata o estudioso Robert Muchembled no seu livro
do raptada por um homem armado. Ao entrar na casa Uma História da Violência (Paidós, 2010).
do raptor, os agentes encontraram os corpos de dois
estudantes do bairro enterrados e uma falsa parede a O TERMO 'SNUFF MOVIE' FOI POPULARIZADO PELO INVESTI-
esconder uma cassete de vídeo numa caixa de plásti- GADOR ED SANDERS no seu livro The Family: The Story
co com a inscrição "Violação de Ana Maria". Ao visio- of Charles Manson's Dune Buggy Attack Battalion
ná-lo, observava-se o raptor, José Lázaro Bouchán, a (1971), mas as suas origens apontam para o escritor
executar a violação e outra pessoa a ajudá-lo com a Anthony Burgess, que criou o seu próprio calão para
gravação. o seu livro A Laranja Mecânica (1962), que foi adap-
Outro caso recente foi o assassinato do jogador de tado com sucesso para cinema pelo realizador Stan-
voleibol afegão Mahjabin Hakimi, cuja decapitação ley Kubrick oito anos mais tarde. "Uma das palavras
pelos Talibãs no início de outubro de 2021 está a cir- que utilizou foi snufar, na versão inglesa, que signi-
cular livremente nos meios de comunicação social do fica morrer. Na versão original aparece o termo snuff
país, de acordo com a imprensa internacional. it (mata-o)", explica a investigadora Paz Velasco de la
Quanto à necessidade de satisfazer uma motivação Fuente no seu livro Homo Criminalis (Ariel, 2021).
sexual, o seu cumprimento é muito mais simples. Não Neste trabalho, Ed Sanders sugeriu que a seita de
é por acaso que os humanos sempre tiveram um gran- Charles Manson pode ter estado envolvida na produ-
de fascínio pela violência e pelos assassínios públicos, ção de filmes de "brutalidade", como também eram
com o grande exemplo chamados na altura. A
dos jogos multitudiná- razão pela qual nun-
ASC
rios da Roma antiga. "Os ca foram encontrados
jogos foram o grande é porque, segundo ele,
escape emocional pa- podem ter sido enter-
ra uma população que rados no deserto, rou-
tentou aproveitá-los ao bados ou já vendidos,
máximo. Durante uma embora ele não tenha
corrida, as pessoas li- oferecido provas de
teralmente enlouque- tais pressupostos. Seja
ciam. As mulheres des- como for, Sanders lan-
maiavam, ou inclusivé, çou as bases para um
tinham orgasmos. Os conceito que se tornou
homens mordiam-se, cada vez mais famoso,
rasgavam as suas rou- ao ponto de o FBI ter
pas, dançavam louca- começado a investigar
mente, apostavam até a possível existência
ficar sem dinheiro e de gravações em fita de
depois apostavam-se 8mm de homicídios,
a eles mesmos contra que foi utilizado pelo
os comerciantes de es- produtor de filmes por-
cravos para conseguir no de baixo orçamento
mais dinheiro", escreve Alan Shackelton para
o investigador Daniel P. lançar em Nova Iorque o
Mannix no seu famoso filme Snuff, 1976. O en-
livro Gladiadores (No- redo baseava-se, mais
wtilus, 2004). uma vez, nos verdadei-
Fascinação que se es- ros crimes de Charles
palhou ao público em Manson, aqui encarna-
geral a partir do século dos sob a forma de um
XIX, com descrições de culto de motoqueiras
atrocidades assassinas femininas que assassi-
em publicações baratas. navam sob as ordens do
"O sangue vende tinta seu líder, um homem
e papel. A brutalidade Poster para o filme Snuff realizado por Alan Shackelton (1976). A chamado Satanás. No
cruel, que é agora dis- este filme foram acrescentadas algumas cenas filmadas mais tarde, final do filme, apare-
creta na vida real, excita sobre uma atriz brutalmente esfaqueada e mutilada. ciam cinco minutos de
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SPLENDID FILM Ainda de A
Beginner's Guide to
Snuff. um thriller de
comédia negra de
2016 na linha dos
primeiros filmes dos
irmãos Coen.
84 SUPER
afirmações como a que apareceu em 1991 na biografia
Filmes snuff,
de Henry Lee Lucas. Retrato de um Serial Killer, do
escritor Joel Norris.
e marketing
Nas suas páginas descreve como este assassino em
série entrou em contacto com uma seita satânica cha-
mada A Mão da Morte, que exigia que crianças e jo-
A o longo da história do cinema, houve vários filmes que brin-
caram com a autenticidade das mortes que aparecem nas
suas filmagens. Talvez o primeiro deles seja Nosferatu (Murnau,
vens fossem violados e assassinados em frente a uma 1922), que deu origem à lenda de que o seu ator principal, Max
câmara. "Fiz mais de 35 viagens ao México, levando Shreck, era um verdadeiro vampiro, a quem foi atribuído como
cada vez 3 ou 4 crianças. E posso dizer-vos exatamen- prémio morder os protagonistas do filme ao vivo e durante as fil-
te onde as entreguei. É um rancho bastante grande, magens, em troca da sua participação. Esta lenda seria retomada
com casas, está bem dentro do México. Os líderes do pelo realizador Elias Merhige para filmar A Sombra do Vampiro
culto diziam quantas precisavam e que tipo de criança (2000).
era mais valiosa. Normalmente eram crianças peque- Mas talvez seja o subgénero de filmagens encontradas o
nas, entre os 4 e 11 anos de idade. Davam-me mil dóla- que mais beneficiou deste logro, ou seja, fitas encontradas por
res por cada carregamento", disse Lucas. No entanto, acaso por um protagonista em que, ao serem visualizadas, se
nada disto foi alguma vez provado. Nem tampouco a veem acontecimentos terríveis, geralmente incluindo a morte
veracidade da alegada investigação levada a cabo pelo dos protagonistas. Os historiadores do cinema afirmam que o
detetive e escritor israelita Yaron Svoray no seu livro primeiro a seguir este argumento foi o Holocausto Canibal (Deo-
Gods of Dead (1997). dato, 1980), relatando a chegada de uma equipa de resgate à
Segundo Svoray, encorajado na sua busca para des- selva amazónica após o desaparecimento de quatro jovens que
cobrir a verdade por detrás dos filmes snuff, conse- ali tinham ido para filmar um documentário sobre certas tribos
guiu assistir a uma exibição clandestina em Nova Ior- antropofágicas. Filmado como um falso documentário, o filme
que, onde dois homens faziam sexo com uma mulher inclui numerosas cenas de sexo e violência explícita que, graças
sul-americana de cabelo escuro: "A cabeça da rapariga a uma campanha de marketing bem orquestrada e altamente
pairava sobre a borda da cama enquanto o homem em eficaz, fez as pessoas acreditarem que eram reais, contribuindo
cima dela a penetrava. O outro homem brandiu uma para um enorme sucesso comercial em videoclubes .
faca e ajoelhou-se perto da cabeça da mulher. Num Foi o precursor do outro grande filme que jogou com um en-
segundo, estava tudo acabado. A exibição, diz ele, foi gano semelhante, The Blair Witch Project (Myrick e Sanchez,
organizada pela Máfia e cada participante teve de pa- 1999). Ainda hoje é o filme mais rentável da história, com um
gar 1500 dólares para assistir, a maioria dos quais ho- orçamento de 60.000 dólares e um valor bruto mundial de mais
mens de negócios, com idades compreendidas entre de 248 milhões de dólares. A sua fórmula seria repetida com
os trinta e os cinquenta anos. variações em filmes como a Atividade Paranormal (Peli, 2007),
mas com muito menos sucesso.
ENTÃO O QUE ESTÁ REALMENTE POR DETRÁS DOS SUPOSTOS
ARCHIVE COLLECTION
86 SUPER
É tão difícil acreditar em filmes snuff que Al Goldstein ofereceu um
milhão de euros a qualquer pessoa que lhe mostrasse um deles
por cento dos casos, estes pagamentos são efetuados Paz Velasco de la Fuente também menciona o risco
utilizando moedas criptográficas. de sanções penais que estes criminosos devem ter em
Além disso, não devemos esquecer que estamos a conta e assumir, o que pode ir até à pena de morte em
falar de quase um assassinato por encomenda, pelo alguns países. Por esta razão, diz ele, "é muito mais sim-
que é muito difícil para aqueles que foram enganados ples e menos arriscado filmar simulações de tortura ou
ousarem denunciá-lo. assassinato usando efeitos especiais de qualidade e fazê-
Noutras ocasiões, o que lhes é dado são "clips de fil- -los parecer como a execução de crimes reais".
me retirados de películas autênticas da Série B que não Além disso, acrescenta de la Fuente, "filmar um
são muito conhecidas. É preciso pensar que a Deep Web filme snuff requer, entre outras coisas, uma rede
representa 95% de toda a informação que se move na muito bem organizada e preparada na qual diferen-
Internet. E a falta de rastreabilidade destas transações tes tipos de pessoas têm de estar envolvidas, com
torna-o um terreno ideal para fóruns deste tipo", diz ele. papéis bem estudados e descritos, uma vez que cada
uma tem um papel específico. Por outro lado, uma
OUTRO PONTO QUE PODE DEITAR POR TERRA A CRENÇA EM FILMES vítima tem de ser procurada e encontrada e uma
SNUFF É UMA SIMPLES QUESTÃO DE LOGÍSTICA. Obviamente, exis- pessoa com certas características para executar o
tem grandes dificuldades, quase intransponíveis na maioria guião do filme, registá-lo, vendê-lo ou distribuí-lo e
dos casos, que teriam de ser ultrapassadas por quem de- fazer desaparecer a vítima e quaisquer vestígios que
cidisse fazer uma gravação deste tipo e comercializar este possam ter deixado".
tipo de filme. Nas palavras do perito Manuel Huerta: "Al- A sua existência é tão difícil, diz o autor, que numa
guém que tenha decidido comercializar este material muito ocasião, Al Goldstein, um produtor de filmes pornográ-
específico deve ter em conta muitos aspetos importantes. ficos de baixo orçamento, ofereceu mesmo uma recom-
Antes de mais, deve ser muito protetor do seu anonimato. pensa de não menos de um milhão de euros a quem lhe
E acrescenta: "Ele deve fazer todos os esforços para cobrir mostrasse uma destas gravações.
completamente o seu rasto, porque, claro, sempre que há Tanto quanto se sabe, não recebeu nenhum até à data
um alerta deste tipo, a polícia leva-o muito a sério". do seu falecimento em 2013.e
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EA VR OT LÍ CU UÇ ÃL O
A ORIGEM DO
OXIGÉNIO
TERRESTRE O nosso planeta nem sempre dispôs de oxigénio nas
concentrações atuais. Pelo menos dois grandes eventos
primitivos de oxigenação estão ligados à sua origem. Os
cientistas consideram a vida microbiana responsável por
esta mudança que transformou a Terra para sempre.
88 SUPER
Um estudo publicado na
SHUTTERSTOCK
SUPER 89
ASC
Diorama
mostrando vida
marinha em
Ediacara, um
local pré-
câmbrico numa
área montanhosa
em Adelaide,
Austrália.
E
m termos humanos, seria como
uma história de horror bacterio-
lógico, micróbios que tinham de
AGE
90 SUPER
Um pouco mais de O2 e temos insetos gigantes
C ompreendemos o impacto do oxigénio na modulação da vida,
olhando para o Carbonífero, um período pré-histórico que te-
ve lugar há cerca de 359 milhões de anos. Houve uma emergência
bélulas de um metro... Apenas mais alguns por cento de oxigénio
livre na atmosfera... e para matar uma mosca teríamos de chamar o
exército ou a polícia.
de florestas e selvas, o que provocou o aumento das concentra- Essa concentração de oxigénio não pôde ser mantida, no
ções de oxigénio. Pensa-se que este aumento tenha chegado entanto, por uma questão de equilíbrio geológico. Demasiado
aos 35% (hoje em dia é de 21%). Isto causou enormes mudanças oxigénio, demasiada floresta, significava demasiados fogos. A Ter-
na vida complexa. Apareceu o fenómeno do gigantismo animal. ra voltou então a autoregular-se até às condições atuais, que se
Monstros terríveis. Libélulas de dois metros de comprimento, li- mantiveram mais ou menos estáveis até aos dias de hoje.
SHUTTERSTOCK
cio com enormes quantidades de oxigénio. "Trabalhamos primeiro campo magnético. Algum oxigénio apareceria
com uma série de modelos que apontam para aconteci- através de processos químicos, como a fotoionização nas
mentos que aumentaram o oxigénio episodicamente, mais camadas superiores da atmosfera, mas apenas por um
do que como um aumento gradual", explica Álvaro. Entre curto período de tempo, pois o oxigénio é extremamen-
estes, destacam-se dois grandes eventos de oxigenação. O te amigável ou reativo: combina ou oxida rapidamente,
primeiro, conhecido como a Grande Oxidação, ocorreu combinando com outros elementos da tabela periódi-
no final do Arqueano (cerca de 2500 Ma atrás). O outro ca... Apesar de ser um dos elementos mais abundantes
ocorreu posteriormente, no final do Proterozóico (1700 do universo, por ser tão reativo, não é fácil acumular-se
milhões de anos depois). Em ambos os eventos o oxigénio na sua forma livre (O2) ."Para que a sua concentração
subiu a concentrações nunca antes vistas. aumente na água ou na atmosfera, não deve haver mais
nada oxidável", acrescenta Álvaro.
RASTREÁMOS ROCHAS, FÓSSEIS, PROCURÁMOS RESTOS BIOQUÍ- Embora possa não parecer, esta jovem Terra será um lu-
MICOS PRIMITIVOS, DADOS ISOTÓPICOS. Agora temos muitos gar de sorte. Aí surgirá a primeira vida que não utilizará
dados, mas temos de ordená-los cronologicamente. Antes oxigénio nos seus processos metabólicos, mas outros ga-
destes eventos havia uma atmosfera primitiva e inóspita. ses e minerais. Seres extremófilos. Futuros refugiados.
"Tanto quanto sabemos, não havia oxigénio no Arquea- Ao contrário dos seus planetas irmãos Vénus e Marte, a
no, ou pelo menos não nos níveis que se conheceram Terra está localizada dentro do que os cientistas chamam
mais tarde. Entre outros indicadores, há minerais bem a "zona habitável", e isto tem sido fundamental para a
preservados que não teriam sobrevivido numa atmosfera história do oxigénio na Terra: mantém água líquida na su-
oxidante", explica José María Fernández, geólogo da IGEO. perfície e foram as cianobactérias e os seus descendentes,
A Terra infantil estava a ser formada por calor radioati- algas fotossintéticas, que souberam aproveitá-lo. A fotos-
vo e elementos voláteis. Esse mundo vulcânico, há mais síntese, que causa oxigénio como dano colateral, permite
de 4000 Ma atrás, seria semelhante ao Mordor do Senhor a decomposição das moléculas de água e a captura de CO2
dos Anéis: um céu cego, outros pores-do-sol, um ocea- para gerar matéria orgânica. A energia luminosa é con-
no negro, o constante bombardeamento dos viajantes vertida em energia química sob a forma de açúcares. Estes
espaciais, como numa teomaquia ou guerra dos deuses eram abundantes na Terra primitiva.
gregos. Um sol demasiado jovem e inútil. O impacto Mas o oxigénio livre precisa de mais do que uma zona
dos planetesimais que formaram a primeira Terra e Lua, de conforto para se acumular. "O oxigénio não poderia
trouxe consigo elementos que mais tarde gaseificariam ter aparecido em quantidade considerável antes da evo-
e formariam a atmosfera inicial não respirável, graças lução das cianobactérias. Mas não é assim tão simples,
à gravidade do núcleo incandescente do planeta e do mais fatores estiveram envolvidos", explica Donald E.
ao equador. "Dois episódios do período pré-câmbrico presentada por minerais como a hematita (Fe2O3). Isso
destacam-se para este tipo de glaciação global. Um deles significa que, nesse período, "o oxigénio já era suficiente-
marca a transição Arqueano-Paleoproterozóica, há cerca mente abundante para que quase todo o ferro dissolvido
de 2500 Ma atrás: a glaciação Huroniana", explica Álvaro. no oceano se precipitasse", explica Álvaro.
Segundo esta teoria, quando o gelo recuou devido ao As seguintes "bolas de neve" (conhecidas como as Es-
aquecimento climático, os nutrientes transportados pe- turtiense e Marinoana) terminaram muito mais tarde, no
los glaciares fertilizaram maciçamente o oceano, gerando final do período criogénico (assim chamado por ser tão
eutrofização. Isto produziu crescimentos espetaculares frio), há cerca de 630 Ma atrás.
de colónias de cianobactérias: a superfície e o fundo dos
oceanos cobertos por esteiras microbianas exalaram bo- A TERRA ESTAVA PRESTES A TER O ASPETO QUE TEM HOJE. AS
lhas infinitas de oxigénio. QUANTIDADES DE CONCENTRAÇÃO DE OXIGÉNIO permitirão a
O fim da glaciação huroniana, provavelmente induzida complexidade para além das comunidades microbianas.
pelo movimento dos continentes ou por perturbações no A vida irá dividir-se em dois grandes grupos, refugiados
eixo de rotação da Terra, coincide com o primeiro grande e novos colonizadores. Uma janela de oportunidade. Os
evento de oxigenação. Sabemos isto, entre outras coisas, primeiros metazoários ou animais emergem no regis-
pela precipitação maciça de ferro no início do Proterozói- to geológico. Um milagre pode acontecer, a formação de
co, presente como ferro em bandas na Austrália, Canadá colagénio, uma proteína fundamental para as fibras mus-
ou Escandinávia. Muito ferro que só poderia ter sido for- culares e o movimento, "que só é sintetizada a partir de
mado por um aumento brutal de oxigénio na atmosfera. 10% de concentração de oxigénio", explica Álvaro. E as-
"Na forma menos oxidada (Fe2 ), o ferro é solúvel na sim o Câmbrico surgiria (cerca de 540 Ma atrás): a época
água", explica Fernández, "mas assim que o oxigénio está da explosão da vida complexa. O oxigénio pôs fim ao mo-
presente, oxida (Fe3 ), deixa de ser solúvel e precipita-se", nopólio da vida microbiana, que tinha durado quase 4 mil
acrescenta ele. Esta é uma pista, a arma fumegante re- milhões de anos, ou seja, 85% da história da Terra.
SHUTTERSTOCK
O exame dos
destroços de
asteróides que
afetaram a Terra
revelou que estes
acontecimentos
eram mais comuns
do que se pensava e
atrasaram o
aumento do
oxigénio no planeta.
92 SUPER
Será que um dia impregnado a matéria orgânica e isolado esta do oxigénio
ficaremos sem oxigénio? ambiente? Alguns cientistas apontam a lama, argila (um
material também modificado por ação microbiana, seja
fungo, líquen ou musgo), um elemento fundamental para
U m estudo recente publicado na revista Nature
Geoscience alertava para esta possibilidade. A
investigação, conduzida pela NASA e pela Universi-
a preservação da matéria orgânica nos sedimentos.
dade Toho do Japão, sugere que, ao longo de alguns "ALGUNS INVESTIGADORES SALIENTAM QUE O AUMENTO DE
milhares de milhões de anos, poderá acontecer, de- OXIGÉNIO NO PERÍODO PRÉ-CÂMBRICO estaria relacionado
pendendo das condições biológicas, cósmicas e com a proteção do carbono da ação oxidante do am-
planetárias. Atualmente, contudo, as quantidades de biente", explica Fernández. Talvez o que aconteceu
oxigénio que temos na reserva fóssil da atmosfera são é que esta proliferação de substratos de argila, que
muito elevadas. Existem excedentes. As comunida- ocorreu após as glaciações, facilitou o facto de parte
des microbianas também operam como reguladoras. da matéria orgânica ter sido abrigada nestes locais de
Teorias como Gaia, uma tese promovida por James Lo- sepultamento, isolada do ambiente.
velock, tentam argumentar que a vida microbiana tem Mas também pode ter sido ajudado pelo aumento sig-
vindo a regular os grandes equilíbrios geoquímicos nificativo da intensidade do jovem sol (facilitando o
desde os tempos antigos. Mas a mudança climática processo de fotossíntese), a inclinação do eixo de rotação
que estamos a desencadear é historicamente inigua- produzindo mudanças sazonais, ou o abrandamento da
lável. "O problema com a ação humana é que a taxa de própria rotação da terra, produzindo dias mais longos. O
mudança que estamos a causar é muito mais rápida problema é que é difícil encontrar provas do passado, por-
do que as comunidades microbianas são capazes de que tudo se recicla no planeta Terra.
enfrentar, o que levará muito tempo a reagir. Saímos de A partir desses acontecimentos no período pré-cam-
enormes glaciações graças ao aquecimento global, brico, o oxigénio será uma realidade até aos dias de hoje.
mas foi muito mais lento do que o atual", diz J. Javier Irá flutuar em diferentes episódios ao longo da história
Álvaro, diretor da IGEO. humana, mas voltará a autoregular-se, como se a vida in-
Sempre houve novos equilíbrios que permitiram que terviesse para agir como guardiã do elixir. É um equilíbrio
a vida não se extinguisse, mesmo que fosse no pro- geoquímico entre a atmosfera oceânica e a sua variante
longamento, como aconteceu no período Permiano, climática, mas sobretudo, pela atividade microbiana que
quando a terra de Pangea era um deserto. "Até à inter- o mantém", diz Álvaro.
venção humana, tem sido a vida bacteriana que tem Quando procuramos vida noutro planeta, procuramos
mantido o equilíbrio", conclui Álvaro. A questão é se a principalmente provas de oxigénio. Procuramos um de-
vida tal como a conhecemos hoje pode recuperar sob sequilíbrio. Mas ainda não sabemos como surgiu a vida.
estas novas condições. Apenas uma ideia parece clara: são as comunidades mi-
crobianas que dominam o planeta, não nós.
Atualmente, os refugiados que sobrevivem no seu inte-
Mas não é assim tão simples, recorda-nos Canfield. "O rior hermético estão protegidos do oxigénio venenoso e
oxigénio foi produzido pelas cianobactérias, sim, mas o praticam a fermentação (vida sem ar). Vieram ter consigo
seu oxigénio também foi utilizado à medida que próprias utilizando o leite da mãe. Você dá-lhes casa e eles digerem.
cianobactérias se decompunham. Portanto, a única forma São como restos de um mundo reduzido, os primordiais,
de o oxigénio se poder acumular na atmosfera relaciona-se os primeiros habitantes do planeta.
com o enterro de grande parte das cianobactérias (ou ou- Se depois de comer sentir que um certo gás (metano)
tros organismos que contêm carbono orgânico)", diz ele. quer fugir de si, pense na sorte e nos holocaustos passa-
Outra reviravolta. A degradação desse excesso de vida, dos. No incrível mistério. Esses micróbios primordiais
essas florações, também roubaram oxigénio. A matéria ainda cá estão. e
orgânica acaba por se depositar no fundo do oceano, onde
se decompõe e se degrada, consumindo grandes quanti-
dades de oxigénio até ficar isolada por sedimentos que a Todo o nosso
cobrem. Felizmente, nem tudo o que produzem os orga- planeta foi uma
nismos fotossintéticos é consumido pela degradação da grande bola de
matéria orgânica ou pela respiração aeróbica de outros neve. Uma manta
organismos. De facto, na realidade, esse desequilíbrio de enorme, branca e
21% que flutua atualmente na atmosfera é o oxigénio fós- gelada que
chegava ao
sil, ou seja, o excedente que foi despejado após eventos de
equador.
oxigenação maciça. Que substância natural poderia ter
monopólio da vida
microbiana, que tinha durado
4000 Ma, ou seja, 85% da
história da Terra
SUPER 93
FA IRS TI OÍ LC OUGLI OA
Estrutura dos
AGE
fatores de
crescimento.
Juntamente com
as hormonas,
desempenham um
papel fundamental
na comunicação
intercelular.
AS ESTACÕE
DAS HORMONA
O ciclo das hormonas mais conhecido é aquele associado ao dia
e à noite, os ritmos circadianos. O que não sabíamos até agora
é que também existem ciclos anuais relacionados com elas.
S
Texto de LAURA G. DE RIVERA,
jornalista científico
94 SUPER
D
izem que a primavera muda o vida quotidiana durante este período", diz o diretor
sangue, e a ciência pode mais do estudo, Alon Bar, um biólogo especializado em
uma vez corroborar o que diz modelos matemáticos e gestão de Big Data, , à Su-
o ditado popular. A explica- per Interessante. A explicação adatativa poderia ser
ção pode residir em algo tão que "estimula-o a sair da caverna e procurar comida
concreto como as hormo- quando o tempo se torna mais amigável e a comida
nas: neste caso, a culpa é do está mais disponível", diz ele.
cortisol, como uma equipa
do Departamento de Biolo- MAS ERA ALGO PONTUAL OU OUTRAS HORMONAS TAMBÉM MU-
gia Molecular do Instituto de DAVAM COM AS ESTAÇÕES DO ANO? Os cientistas propuse-
Ciência Weizmann (Israel) ram-se a a investigar e mediram os níveis de outras
acaba de estudar. No ano passado, os investigadores onze. Descobriram, por exemplo, que a testosterona
propuseram-se a examinar quanto desta molécula es- nos homens e o estradiol nas mulheres experimentam
tava presente em seis milhões de amostras de sangue, dois picos em janeiro e agosto, as épocas do ano em
colhidas durante diferentes meses do ano, de homens que a nossa disponibilidade para a reprodução au-
e mulheres com idades compreendidas entre os 20 menta. Talvez porque é uma boa ideia trazer crianças
e os 50 anos. Para sua surpresa, descobriram que a ao mundo nos meses suaves de maio e setembro. A
hormona do stress por excelência atinge o seu clímax hormona do crescimento, entretanto, é produzida em
entre o final de março e abril, "algo que pode estar maior quantidade na primavera do que durante o res-
relacionado com o aumento de energia e estímulos na to do ano, mais uma vez, talvez porque é a altura em
Efeitos do cortisol
Abranda a digestão.
Promove a osteoporose e
enfraquece os músculos.
SUPER 95
GETTY
de uma zona geográfica, maior a amplitude dos ci-
clos dos seus habitantes. Além disso, no hemisfério
norte, seguirão o padrão oposto ao hemisfério sul
em termos da época do ano", explica Bar, quando
compararam o pico sazonal do cortisol em diferen-
tes países. "Por exemplo, na população de Israel (la-
titude 32N), o pico estava cinco por cento acima da
média. Algo semelhante aconteceu na Austrália (la-
titude 30S), embora aqui o pico tenha ocorrido seis
meses mais tarde do que em Israel. Por outro lado, o
pico tinha uma diferença muito maior em relação à
média dos habitantes da Suécia, cerca de 20 por cen-
to", explica o biólogo. Como ele confirma, "parece
claro que o ritmo dos picos hormonais e dos canais é
marcado por estímulos ambientais tais como a tem-
peratura e as horas do dia". Sobre este último ponto,
Micrografia leve de uma o papel da melatonina - uma hormona produzida no
glândula tiróide cérebro que é ativada pela luz e escuridão - abre uma
mostrando os folículos. nova porta para a investigação, como uma espécie de
Estes são revestidos por
"sensor" que poderia desencadear esta série de alte-
uma camada de células
epiteliais cuboidais que
rações hormonais ou ciclos.
secretam T3 e T4.
TAMBÉM RESTA ESCLARECER ATÉ QUE PONTO ESTAS FLUTUA-
ÇÕES, que muitas vezes podem ter pequenos efeitos se-
que há mais recursos disponíveis para alimentar es- cundários,têm impacto no nosso comportamento. "Na
sas crianças em crescimento. Mas de todas as hormo- maioria da população, as variações sazonais das hor-
nas testadas, a que mais flutuou com as estações foi a monas são pequenas, pelo que não devem ter um efeito
hormona tiroideia T3, que é responsável por ajudar a demasiado grande sobre o aspeto psicológico. No en-
regular a temperatura do corpo, assegurando que li- tanto, nos países de alta latitude, onde as flutuações
berta ou conserva o calor conforme as circunstâncias são maiores, podem contribuir para a prevalência de
o exigirem. transtornos cíclicos afetivos ou do estado de ânimo",
Os seus resultados, porém, não são universais, adverte Bar.
mas correspondem à população de um país com um A dança está a decorrer. Mas na realidade, é mais
certo clima, como Israel. "É lógico esperar uma re- como uma rave multitudinaria, com ciclos que se
lação entre as flutuações sazonais devido à latitude e intersetam ou se sobrepõem. Deve ter-se em conta
ao ciclo hormonal. Ou seja, quanto maior a latitude que temos cinquenta tipos diferentes de hormonas
SHUTTERSTOCK
Ritmo circadiano
MELATONINA
Diagrama que
explica a relação
entre o ritmo
circadiano e o
ciclo sono-vigília.
ESTIMULAÇÃO
NSC A ilustração
mostra como a
Núcleo exposição à luz
supraquiasmático solar regula a
secreção de
melatonina no
cérebro humano e
em muitos
Gânglio
cervical processos
superior corporais.
96 SUPER
SHUTTERSTOCK
A hormona
melatonina está
envolvida no ciclo
do sono. Os seus
níveis são mais
elevados à noite.
SUPER 97
SHUTTERSTCOCK Com iluminação
artificial e luz azul
dos ecrãs, a
produção de
melatonina é
interrompida,
resultando em
problemas de
adormecer.
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