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NÚMERO 293

MENSAL ○ SETEMBRO 2022

FÍSICA
O QUE É A
PERSPETIVA QUÂNTICA?
PÁG. 14

TECNOLOGIA
COMO SOBREVIVER A UM
BLACKOUT NA INTERNET?
PÁG. 49

HISTÓRIA
NABATEUS, O POVO MISTERIOSO
QUE CONSTRUIU PETRA
PÁG. 73
ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO
OS ANIMAIS CONHECEM
A “MATEMÁTICA”
PÁG. 62

NEUROPRIVACIDADE
JÁ É POSSÍVEL LER A MENTE E IMPLANTAR MEMÓRIA.
COMO DEVE SER REGULAMENTADA?
VIVER A HISTÓRIA
COM PAIXÃO

Nova
edição
de coleç
ão

AGORA À VENDA!
EDITORIAL

Debate aberto: o impacto GABINETE EDITORIAL

da neurotecnologia
Direção: Carmen Sabalete
(csabalete@zinetmedia.es).
Editora-chefe: Cristina Enríquez
(cenriquez @zinetmedia.es).
Edição gráfica: Manuela Arias

A
imparável evolução tecnológica levanta, inevitavelmente (marias@zinetmedia.es).
(e para nosso bem) questões éticas. É agora possível tanto Coordenação de design: María Somonte
registar a atividade neuronal como agir diretamente sobre (msomonte@zinetmedia.es).

certas regiões do cérebro. Por exemplo, uma das últimas inovações Colaboram neste número:
é o desenvolvimento de uma interface neural direta capaz de captar Miguel Á. Sabadell, Carlos Aguilera, Carmen Castellanos,
Laura G. de Rivera, Jorge de los Santos, Marta Peirano,
a atividade elétrica do cérebro e entregar esta informação a um Ramón Núñez, Chanda Prescod-Weinstein, Amanda
computador para que possa ser processada e interpretada. Isto é Gefter, Juan Fernández, Silvia Collado, José Á. Martos,
Daniel Méndez, Eugenio M. Fernández, Henar L. Senovilla,
conseguido através da simples instalação de sensores que registam Vicente Bustillo, José M. Viñas, Leila Pallarés, Gema
as ondas cerebrais e não requerem qualquer intervenção cirúrgica. Boiza, José M. López Nicolás, Borja Bauza, Javier
Moreno, Janire Rámila, Sergio Parra, Javier Rada y Eva
Estes avanços podem melhorar a qualidade de vida de muitas Carnero (editora).
pessoas, uma vez que ao intervir na atividade elétrica do cérebro, os
Conselho Editorial:
efeitos de doenças como Parkinson, dores crónicas ou perturbações José Pardina, Angela Posada-Swarford, Ramón Núñez,
neurológicas podem ser atenuados. No entanto, o que acontece Miguel Á. Sabadell, Elena Sanz, Pampa García,
Manu Montero, Mario García Bartual,
se os dados registados forem utilizados para outros fins? É aí que José Á. Martos, Fernando Cohnen.
importa impor limites legais. O que aconteceria se estes dispositivos
EN D EREÇO E T E LE FONE
identificassem as nossas emoções e padrões de comportamento
C/ Alcalá 79 1.º A - 28009 Madrid - España;
e os associassem a estímulos específicos? É sem dúvida um tema Tel. +34 810 583 412
Email: minteresante@zinetmedia.es
apaixonante, um debate multidisciplinar que temos de enfrentar e
Subscrições: tel. 910 604 482.
que mereceu ser o protagonista da nossa capa. Contudo, nesta edição
Email: suscripciones@zinetmedia.es
encontrará outros artigos que, como sempre,
não o deixarão indiferente: a verdade sobre
os filmes snuff, a intervenção de hormonas
em ciclos anuais e não apenas em ritmos
circadianos, a explicação de como o Sol brilha,
Chefe do Executivo: Marta Ariño
o que é a perspetiva quântica, como se formou
Responsável financeiro: Carlos Franco
oxigénio da Terra, quem foram os misteriosos Diretor Comercial: Alfonso Juliá
Nabateus, as pessoas que construíram a bela (ajulia@zinetmedia.es)
Diretor de Desenvolvimento Empresarial:
Carmen Sabalete, Petra, ou como as alterações climáticas afetam
diretora Óscar Pérez-Solero (operez@zinetmedia.es)
csabalete@zinetmedia.es o equilíbrio emocional. Tenho a certeza de
Editada por Zinet Media Global, S.L.
que desfrutará da leitura de cada um deles.
DISTRIBUIÇÃO:
V.A.S.P. Distribuidora de Publicaçöes, S.A.

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A INVASÃO DA POLÓNIA, O INÍCIO DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

EDIÇÃO A TRAIÇÃO
BIBLIOTECA DE ESTALINE
PORQUÊ As ambições soviéticas
POLÓNIA
de Jornais de Informação (ARI).
PINTAR?
ORIGEM A cobiçada presa
GRANDES DRAMAS
Da República Do genocídio judeu ao
CARICATURAS, ao Império SILÊNCIO
OS INÍCIOS COMPROMETIDO massacre de Katyn
MONET A LUZ DO INSTANTE

Posturas da França
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O IMPÉRIO ROMANO

PINTANDO AO AR LIVRE, OCTÁVIO AUGUSTO e do Reino Unido


PINTAR O FUGAZ O primeiro imperador
FALL WEISS

A RENOVAÇÃO DA MULHERES
O plano mestre de Hitler
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PINTURA PAISAGÍSTICA Para além EXÉRCITOS
O MUNDO DO
da domus E ARMAS
Uma guerra
e a sua reprodução total ou parcial, não autorizada, é
IMPRESSIONISMO desigual

PRELÚDIO DA
TERRITÓRIO
Uma Roma, totalmente proibida, de acordo com os termos da legislação
mil províncias
ABSTRAÇÃO
em vigor. Os contraventores serão perseguidos legalmente,

MONET
A LUZ DO INSTANTE
O IMPÉRIO ROMANO
história e vida quotidiana
A INVASÃO
DA POLÓNIA
INÍCIO DA II GUERRA MUNDIAL
tanto a nível nacional como internacional. O uso, cópia,
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Muy Interesante - 3
Sumário
AGE

39

SHTUTTERSTOCK
13
SHUTTERSTOCK

AGE
90

65
R EP OR TAGENS
CA PA 10 Como brilha o Sol? 88 A origem do oxigénio
14 Outra realidade A fusão nuclear no interior do Sol é a causa
da sua luz visível.
Os cientistas culpam a vida microbiana pela
O que é a perspetiva quântica? sua origem que mudou a terra.

42 Neuro-privacidade 27 Eco-Ansiedade 94 As estações das suas


Está na hora de legislar os direitos
neurológicos?
É possível sentir angústia, medo e culpa
sobre a crise climática.
hormonas
Descobrimos que existem ciclos hormonais
49 Blackout tecnológico 34 Substituir a Carne
anuais, para além dos ritmos circadianos.
Como sobreviver sem a Internet.

62 Fauna Matemática
Existem alternativas ao atual consumo e
fornecimento de carne? EN T R E V ISTA S
Os animais utilizam a matemática para 22 Katrine Marçal
sobreviver. 56 Compreendo o meu médico Esta jornalista, autora de A mãe do Engenho diz-
A comunicação sanitária está a iniciar um novo nos como o facto de ignorar as mulheres tem
73 Os Nabateus curso que procura aproximar-se do paciente. abrandado o desenvolvimento tecnológico.
O povo misterioso que construiu
Petra.
80 Filmes snuff 68 Miguel Nicolelis
Os filmes sobre assassinatos reais existem O neurocientista fala sobre a necessidade de
FOTO DE COBERTURA: SHUTTERSTOCK
realmente ou são apenas um mito mórbido? transformar energia em conhecimento.

4 SUPER
SALA BIT DISCOVERY

POR
MARTA PEIRANO

INTELIGÊNCIA
PARTILHADA
PODEMOS ESTAR A ASSISTIR AO INÍCIO DE UMA ERA EM QUE A PROGRAMAÇÃO
JÁ NÃO É O TERRITÓRIO EXCLUSIVO DE HOMENS JOVENS, BRANCOS, RICOS E
HETEROSSEXUAIS.

eep Blue derrotou pela primeira vez Garry Kas- Será que Watson compreendeu que a piada de Jennings era uma

D
parov em 1997, durante um torneio de seis jo- citação dos Simpsons citando Orson Welles? A resposta a essa
gos contra o campeão mundial. O russo tinha pergunta é: depende do que se entende por “compreender”.
vencido a máquina em Filadélfia, mas perdeu
para ela em Nova Iorque. Primeiro ponto para ALAN TURING COLOCOU A QUESTÃO EM 1947, PERANTE O LABORATÓ-
as máquinas. Em 2011, outra máquina IBM bateu dois huma- RIO NACIONAL DE FÍSICA, e não a tinha resolvido quando come-
nos pela primeira vez no Jeopardy, o equivalente americano teu suicídio em 1954, aos 42 anos de idade. Mas ele pensava que
do concurso Saber y Ganar. Tinha sido nomeado Watson em em cinquenta anos teríamos conseguido construir máquinas
honra do fundador da empresa, Thomas J. Watson, o vende- capazes de pensar ou, pelo menos, capazes de nos imitar tão
dor ambulante de pianos e máquinas de costura que fundou eficientemente que não notaríamos a diferença entre nós e elas.
o primeiro império informático. Em 1937, Watson recebeu a Quando o GPT-3, o modelo linguístico de OpenAI, provou ser
Cruz de Mérito da Ordem da Águia Alemã por serviços pres- capaz de escrever artigos, competir com romancistas imitando
tados ao regime nazi, que se revelaram indispensáveis pa- o seu próprio estilo, e até discutir política ou economia, muitas
ra a condução eficiente da chamada Operação Final. Nessa pessoas gritaram alto, declarando que este era o fim do jorna-
noite no Jeopardy, o novo Watson esmagou impiedosamente lismo, o fim da ficção. Esperemos que isso seja verdade, pelo
um dos jogadores mais antigos da história do espectáculo. menos algum do tipo de jornalismo automático que preenche
Ken Jennings, famoso por ganhar 74 espectáculos seguidos, as newsletters das agências, ou as variações da Fan Fiction
escreveu no seu ecrã: “E eu, pela minha parte, gostaria de que triunfam na Internet. No verão passado, a empresa de São
dar as boas-vindas aos nossos novos amos, as máquinas”. Francisco apresentou um GPT-3 para código, chamado OpenAI
Humanos zero, máquinas dois. Em 2016, Alpha Go venceu o Codex, capaz de escrever Go, JavaScript, Perl, PHP, Ruby, Shell,
melhor jogador Go de todos os tempos e deixámos de contar. Swift, TypeScript e, acima de tudo, Python.
O jogo parece perdido.
HÁ TANTA BELEZA E CRIATIVIDADE NO CÓDIGO, COMO EM LITERA-
FAZ FALTA UM GÉNIO PARA VENCER KASPAROV NO XADREZ OU LEE TURA, MÚSICA, xadrez e Go. Nem todo o código que produ-
SEDOL NUM JOGO DE GO. O génio do Deep Blue era ser capaz de zimos é belo, inteligente ou criativo. É um desperdício de
calcular um milhão de posições por segundo num jogo que humanidade. Por outro lado, Kasparov que aprendeu jo-
consiste em tomar gando contra o Deep
decisões baseadas no Blue e Lee Sedol
SHUTTERSTOCK

cálculo de posições. declarou que o jo-


AlphaGo utilizou go contra a máqui-
redes neurais para na tinha elevado o
aprender com milha- seu jogo quase so-
res de milhões de jo- brenaturalmente.
gos e um engenhoso É possível que haja
sistema de incentivos oportunidades nesta
para aprender jogan- coexistência. Pode
do contra si próprio. também ser o início
Mas Watson foi capaz de uma era em que
de compreender as programar não seja o
perguntas feitas em território exclusivo
linguagem natural, dos homens jovens,
por vezes coloquial. brancos, heterosse-
Uma criança pode xuais e ricos que do-
fazer isso, mas uma minam as empresas
máquina não pode. tecnológicas. e

SUPER 5
DISCOVERY NOVIDADES

A INTELIGÊNCIA

SHUTTERSTOCK
Os corvos detetam
ameaças, usam

DOS CORVOS ferramentas e até


resolvem puzzles.

AO SERVIÇO
DO AMBIENTE
odos os anos, mil milhões de pontas

T de cigarro são lançadas para as ruas da


Suécia, cerca de 96 por habitante, e a
sua recolha custa vinte milhões de co-
roas suecas aos cofres públicos. Representam 62% de
todo o lixo. Para ajudar a aliviar este problema, foi
concebida uma solução surpreendente: formar corvos
para apanhar pontas de cigarro e outros pequenos
resíduos urbanos. A iniciativa envolve a formação de
um grupo de corvos com um processo de aprendiza-
gem baseado na técnica da recompensa alimentar.
Foi construido um equipamento no qual os corvos de-
positam os resíduos e em troca recebem um pedaço SAAP-148,
UM JARDIM ELDE007ROSAS
DE LOSNOAGENTES
OCEANOANTIBACTE-
de comida. O modelo foi concebido por uma start-up
sueca, Corvid Cleaning, com base em estudos realiza- RIANOS
Um enorme jardim de corais corais em forma de rosa numa
dos nos Países Baixos e França sobre a inteligência e
capacidade de algumas espécies de corvídeos. rosas. Foi isso que uma missão área de cerca de três quilómetros
De acordo com um estudo da revista Science, os cor- de apoio científico da ONU e a uma profundidade entre
vos possuem consciência primária. Esta capacidade, descobriu recentemente 30 e 65 metros. O aspeto mais
também chamada consciência sensorial, refere-se à ao largo da costa do Taiti surpreendente da descoberta
capacidade de memorizar e observar factos para de- na Polinésia Francesa. A é a sua profundidade, uma vez
senvolver uma consciência do presente e do passado expedição responsável por esta que a maioria dos recifes de
imediato. A espécie escolhida para o teste é a Nova descoberta faz parte da iniciativa coral descobertos até agora
Caledónia, conhecida pela sua inteligência e por ser de mapeamento oceânico só descem até cerca de 25
capaz de fabricar ferramentas a partir de paus e ou- da UNESCO, a campanha "1 metros. Esta descoberta abre
tros objetos. É também uma espécie considerada como Oceano, a Anatomia", liderada a porta à existência de muitos
boa aprendiz, fácil de ensinar e onde os indivíduos pelo fotógrafo-explorador Alexis mais recifes de coral de grande
aprendem uns com os outros. Os corvos são capazes de Rosenfeld, em colaboração tamanho a profundidades
processos psicológicos complexos e têm uma grande com a UNESCO para a Década superiores a 30 m, conhecidos
capacidade de memória e de raciocínio. Vários estudos das Ciências Oceânicas para o como a zona crepuscular do
demonstraram que possuem faculdades intelectuais Desenvolvimento Sustentável. A oceano. Os grandes recifes de
comparáveis às dos grandes símios adultos. e descoberta consiste em grandes coral, são uma fonte de alimento
para outros organismos, pelo
UNESCO

que a sua descoberta ajuda a


Mergulhador envolvido na investigação da biodiversidade.
descoberta. A equipa fez Os recifes de coral albergam
mergulhos de 200 horas. 25% da biodiversidade marinha e
são também uma fonte de novas
curas para doenças. Além disso,
os recifes podem proporcionar
proteção contra a erosão costeira.
A Diretora Geral da UNESCO
Audrey Azoulay salienta que
apenas 20% do fundo marinho
está cartografado, "conhecemos
melhor a superfície da lua do
que as profundezas do oceano".
Pensa-se que os recifes mais
profundos podem estar mais bem
protegidos contra o aquecimento
global, mas até agora muito
poucos cientistas puderam
investigá-los.

66- SUPER
Muy Interesante
ATUALIDADE DISCOVERY

SHUTTERSTOCK
Living Lang, uma
ferramenta capaz
de detetar
notícias falsas
através da IA

INTELIGÊNCIA CÃES PARA MANTER-SE


EM FORMA NA VELHICE
ARTIFICIAL Já se sabia que com um cão posse de cães pode proteger

CONTRA O EMBUSTE
nunca se está sozinho, mas um os adultos mais velhos contra a
estudo no Japão mostra agora descapacitação física se com-
que as pessoas mais velhas binada com o exercício físico,
que possuem cães têm um ris- orientando os esforços para
co mais baixo de desenvolver promover um envelhecimen-
s notícias falsas foram definidas pelo New York Ti-

A
incapacidades físicas do que to saudável.” A investigação
mes como “uma história inventada com a intenção
as que não os têm. A revista também salientou que passear
de enganar, muitas vezes com o ganho monetário
PLoS ONE realizou um inqué- um cão durante a fase mais
como motivo”. E não há dúvida de que a pandemia
rito a mais de 11.000 pessoas dura do confinamento “pode
desencadeou a circulação deste tipo de informação nas redes,
idosas no Japão. Algumas ter sido especialmente útil
a fim de desinformar, manipular, controlar ou influenciar. Os
investigações já tinham asso- para evitar problemas físicos
investigadores do MIT (Massachusetts Institute of Technology)
ciado um menor risco de fra- resultantes de restrições de
realizaram um estudo mostrando que este tipo de notícias se
gilidade entre os adultos mais mobilidade”. Além disso, uma
espalha muito mais longe, mais depressa e mais amplamente do
velhos se tivessem um cão, análise de quatro milhões de
que as notícias reais. Daí a importância desta nova descoberta.
uma vez que partilhar a vida pessoas concluiu que a posse
O Departamento de Linguagens e Sistemas Informáticos da
com um cão significa um ele- de um cão estava associada a
Universidade de Alicante, o grupo de investigação GPSLI, jun-
vado nível de atividade física e uma redução de 24% na morte
tamente com a Universidade de Jaén, o grupo de investigação
social. Esta relação mantém-se prematura. E se a pessoa já
SINAI, desenvolveram um sistema capaz de descobrir embustes e
mesmo quando outros fatores tivesse sofrido um ataque ou
notícias falsas relacionadas com a saúde através da inteligência
sociodemográficos e de saúde AVC, reduzia a probabilidade
artificial. O projeto Living Lang alimenta o sistema de inteligên-
são tidos em conta. Os inves- de morrer de doença cardio-
cia artificial com uma base de dados de 228 notícias, embustes
tigadores afirmaram que “a vascular em 31%.
e informações falsas com a aparência premeditada de notícias
reais. Living Lang compara notícias reais e falsas para ver se a
inteligência artificial consegue distingui-las. Nas fases iniciais
SHUTTERSTOCK

do projeto, o trabalho consistiu em identificar as características


dos indivíduos através da linguagem e da sua pegada online,
mas também de um grupo social. “É essencial captar os elemen-
tos sociais que também definem o indivíduo e a sua interação
com o ambiente em que este se integra.
O sistema de inteligência artificial utilizado, denominado FN-
DeepML, visa detetar separadamente as partes e elementos onde
é mais provável que apareçam informações falsas. Para tal, ana-
lisa dois fatores fundamentais da história noticiosa: a estrutura
e o conteúdo. Notícias bem escritas seriam caracterizadas pela
sua neutralidade e pela sua estrutura em pirâmide invertida com
a resposta aos tradicionais 5 Ws, ou seja, o quê, quem, porquê,
como e quando. O sistema marcaria automaticamente num tex-
to, enquanto este é lido, os sinais que advertem que a informa-
ção não é fiável. e

SUPER 7
DISCOVERY ATUALIDADE

PROPOSTA ESPANHOLA PARA OS MISTÉRIOS DE M.A.S.


ALIMENTAR OS ASTRONAUTAS POR MIGUEL ÁNGEL
SABADELL

O concurso Deep Space Food As propostas devem portanto


Challenge, da Agência Espacial dos
EUA está a encorajar as pessoas a
abordar “tudo o que é necessário
para armazenar, preparar e entregar A ESTRELA
juntarem-se à iniciativa para ajudar
a desenvolver tecnologias inova-
alimentos à tripulação, incluindo a
produção, processamento, trans- MAIS DISTANTE
doras de produção alimentar no
espaço e na Terra. Até um milhão
porte, consumo e eliminação de
resíduos”, disse a NASA. OU A FALTA
de dólares será pago pela NASA a
quem proponha um menu inovador
Os estudantes Sik-lad Ortíz
Peña, María Alejandra Sánchez DA NARRATIVA
para astronautas no espaço durante
as missões mais longas e comple-
xas e em áreas da Terra onde a pro-
e Sebastián Oliveros Sepúlveda,
membros da UIS Aerospace Rocke-
try seedbed, e o seu diretor Julián
NA CIÊNCIA
dução alimentar é difícil, tais como Rodríguez Ferreira, apresentaram edificante ver que notícias científicas se tornam

É
desertos e zonas de temperaturas um modelo de fabrico de alimentos virais tanto nos meios de comunicação social
como nas redes sociais. Em geral, como acontece

GETTY
com os vídeos de gatinhos, tendem a ser notícias
Um membro do insípidas ou curiosas. Isto aconteceu no final de Março com
pessoal do LSG a descoberta da “mais distante estrela individual alguma vez
serve comida observada”. Um pequeno pormenor: todos os meios de comu-
enlatada aos nicação, com honrosas exceções - como Super Interessante
astronautas. - acrescentaram o adjetivo “individual”, no que eu diria ser uma
má interpretação do comunicado de imprensa original, onde
aparece a expressão “single-star record holder”. Foi a agência
noticiosa Europa Press que incluiu “single-star”, e acho que foi
de lá que os meios de comunicação social beberam. Isto leva-
-me a duas conclusões.
A primeira é a necessidade de haver pelo menos um jornalista
científico em cada meio de comunicação social, de modo a que
possamos tonificar coisas como “estrela única”, como se estes
sóis cintilantes, por definição, não o fossem. Para esclarecer: a
referência à estrela única no comunicado de imprensa original é
em oposição aos aglomerados de estrelas, um aparte que o es-
critor original poderia facilmente ter deixado de fora. A segunda
conclusão, talvez a mais injusta, é que esta história noticiosa de-
monstra a ausência de narrativa na escrita de notícias científicas .
A pergunta a que devemos tentar responder, como regra geral,
quando se escreve uma notícia é: porque é que o leitor deve sa-
ber isto? Obviamente, se quiser contar uma mera curiosidade,
responder a essa pergunta é irrelevante. É como um “vídeo de
gatinhos”, tão inane que uma vez visto, esquecemo-nos dele.

QUE NOS TRAZ A NOTÍCIA DA DESCOBERTA DE EÄRENDEL?


extremas. Uma das dez propostas que foi um dos dez vencedores do Para além do facto de os cientistas descobridores gostarem de
vencedoras é espanhola. concurso. Tolkien, muito pouco. É como falar sobre a descoberta do mais
Este concurso, organizado nos A sua proposta, Agro-Migra, con- pequeno inseto do mundo. A resposta é “oh, que curioso!”, e
Estados Unidos pela Fundação Me- siste num sistema de produção de depois acabou e está feito. O triste é que esta notícia tem uma
thuselah, propõe-se conceber, cons- alimentos no espaço para astronau- história, porque o que é realmente importante não é a desco-
truir e demonstrar um protótipo de tas em missões de longa duração. berta em si, mas como ela foi feita. A utilização da lente gravita-
sucesso na tecnologia de produção “Atualmente, as missões espaciais cional - um fenómeno previsto pela relatividade geral de Eins-
alimentar. A dificuldade, e o desafio, enviam naves espaciais para en- tein - permite-nos observar objetos astronómicos e fenómenos
é que este alimento deve ser repli- tregar alimentos aos astronautas, que estão para além da observação direta. A narrativa das no-
cável noutros planetas e numa nave o que é altamente dispendioso. A tícias poderia ter sido a seguinte: ou devido à sua distância ou
espacial. nossa proposta reduz significati- devido à luz fraca que emitem, há objetos no universo sobre os
À medida que o tempo passa, vamente estes custos e melhora quais sabemos muito pouco, pelo que não temos acesso a in-
os alimentos perdem nutrientes. o cultivo de alguns alimentos no formação que poderia ser muito importante para compreender
Em missões longas, tais como espaço”, dizem eles. A equipa pro- a história do cosmos. Mas (e é aqui que a história começa) com
uma missão plurianual a Marte, curou criar um ecossistema num es- um pouco de sorte e graças à lente gravitacional, o universo
os alimentos não conservariam o paço fechado, no qual uma grande conspira a nosso favor, tornando-nos capazes de descobrir es-
seu sabor e valor nutricional, e isto quantidade de recursos biológicos se universo escondido dos nossos olhos, tal como encontrar a
afetaria a saúde, a perda de energia pode ser aproveitada para produzir estrela mais distante e, portanto, mais antiga que conhecemos.
e o desempenho dos astronautas. alimentos. Se contarmos as notícias desta forma, não terão mais poder?

8 SUPER
DA VIDA QUOTIDIANA SCIENCE

O ENCAPSULAMENTO MOLECULAR, OU A ARTE DE


CHEIRAR BEM Nos laborató-
rios de perfu-
mes, o proces-
indústria de fragrâncias é

A
so de
um dos setores mais impor- destilação é
tantes do tecido empresarial. realizado com
Em Espanha, 79 milhões de flores, semen-
perfumes foram vendidos em 2021, um tes, conchas,
aumento de 26% em comparação com o madeiras e er-
ano anterior. Estes números não devem vas aromáticas.
surpreender, pois o perfume é um aces-
sório essencial para os espanhóis (94,6%
usam-no mais ou menos frequentemente
e 54,7% usam-no diariamente). Mas os
odores não se encontram apenas nos per-
fumes. Também emanam de desodorizan-
tes, purificadores de ar, detergentes, etc.
Em todos eles, são utilizados ingredientes
com elevado potencial aromático na sua
SHUTTERSTOCK

formulação.

OS LABORATÓRIOS DE I & D DAS EMPRE-


SAS DO SETOR têm uma grande responsa- tos aromáticos da degradação por vários das por frição com a pele e os compostos
bilidade para o sucesso deste tipo de pro- agentes como o calor, ar, luz, humidade, aromáticos são constante e gradualmente
dutos. Contudo, nos últimos anos, os seus etc.; para modificar as suas características libertados para a atmosfera, fazendo com
cientistas e investigadores têm enfrentado físicas e torná-las mais fáceis de manusear; que o cheiro agradável perdure ao longo
um problema grave: a elevada volatilidade para mascarar sabores e odores desagradá- do tempo. Isto prolonga a eficácia do de-
de muitos compostos aromáticos significa veis; para estabilizar aromas instáveis... sodorizante por um período de tempo mais
que, mesmo que o odor seja muito intenso Indicarei a seguir duas aplicações es- longo do que seria o caso se as fragrâncias
no início, perde-se rapidamente. pecíficas de encapsulamento molecular não estivessem encapsuladas nas malto-
Muitas técnicas estão a ser desenvol- no campo dos aromas. dextrinas.
vidas para resolver este problema, mas
se tivesse de escolher apenas uma, seria MUITOS DESODORIZANTES E PERFU- OUTRO EXEMPLO PODE SER ENCON-
sem dúvida o encapsulamento molecular, MES UTILIZAM MALTODEXTRINAS NA TRADO EM ALGUNS AMBIENTADORES
um processo pelo qual certas substâncias SUA FORMULAÇÃO, polissacáridos com que visam eliminar odores desagradáveis
bioativas (chamadas moléculas hospedei- capacidade de encapsulação obtida por em vários espaços. Para este fim, a sua
ras) são introduzidas num agente encap- hidrólise parcial, ácida e/ou enzimática do lista de ingredientes inclui ciclodextri-
sulante. Existem diferentes métodos de amido presente no arroz, milho ou bata- nas, oligossacáridos cíclicos contendo
encapsulação de aromas (físicos, químicos, ta. Quimicamente, as maltodextrinas são seis a doze unidades de glucose, cuja
bioquímicos...) e a escolha depende de fa- oligossacarídeos compostos por várias uni- principal peculiaridade é a sua forma có-
tores tais como o tamanho e a natureza da dades de glucose unidas por ligações alfa nica (semelhante a um donut) com um
molécula a encapsular, as propriedades fí- (1-4) e ligações alfa (1-6). Além disso, são interior altamente apolar e uma super-
sico-químicas do agente de encapsulação, altamente solúveis, têm uma elevada capa- fície exterior hidrofílica. A sua principal
o mecanismo de libertação desejado ou o cidade de ligação às moléculas hospedeiras propriedade é que encapsula moléculas
custo total do processo. e, acima de tudo, têm um baixo custo em hidrofóbicas, tais como as responsáveis
comparação com outros materiais encap- por muitos maus cheiros. Isto permite
PARA QUE SERVE O ENCAPSULAMENTO sulantes. a sua remoção da atmosfera quando o
MOLECULAR NO CAMPO DAS FRAGRÂN- Graças à sua capacidade de encapsula- ambientador é utilizado. Ao contrário do
CIAS? A principal mento, as maltodextrinas são capazes de que costumava acontecer com os deso-
função é fazer com reter muitas substâncias aromáticas (tais dorizantes onde se adicionavam molécu-
que a molécula hos- como geraniol ou linalol, que também es- las desejáveis, os compostos indesejá-
pedeira seja gradual- tão presentes na composição de desodori- veis são removidos.
mente libertada no zantes e perfumes), formando microcápsu-
ambiente, prolon- las. Quando adicionamos o desodorizante CAROS LEITORES, hoje voltei a mostrar-
gando assim todas ou perfume à nossa pele, as microcápsulas -vos que o progresso científico e tecnoló-
as suas propriedades de maltodextrina/aroma aderem ao nosso gico não só é responsável pelos grandes
POR JOSÉ MANUEL
LÓPEZ NICOLÁS aromáticas. Além corpo. Subsequentemente, à medida que avanços e descobertas, como também es-
Vice-reitor de Transferência
e Divulgação Científica na
disso, serve para vamos desenvolvendo as nossas atividades tá por de trás de inúmeros produtos indis-
Universidade de Múrcia e
autor do blog Scientia.
proteger os compos- diárias, estas microcápsulas são quebra- pensáveis que fazem parte da nossa vida

SUPER 9
UA RN TI VÍ CE RU SL O
SHUTTERSTOCK

Grandes
tempestades
solares podem
ocorrer em
qualquer período
do Sol. Uma
equipa de
cientistas afirma
que uma muito
extrema ocorreu há
9200 anos atrás.

10 SUPER
COMO BRILHA O

A luz do Sol deve-se à fusão nuclear que tem lugar no seu interior. Produzem-se tantas
reações que a quantidade de energia libertada é imensa. A luz visível, que leva oito minutos
a chegar à Terra, é parte dessa energia que perdeu potência. Descubra em detalhe cada
uma das fases que explicam a luminosidade do Sol.

Texto de CHANDA PRESCOD-WEINSTEIN


@ New Scientist

U
ma das melhores coisas de ser colunista da New
Scientist é o público leitor. Posso dizer que lêem
cuidadosamente as minhas colunas porque rece-
bo e-mails fantásticos com perguntas inteligentes
sobre elas. No mês passado escrevi sobre como
funciona a fusão dentro da esfera de gás de plasma
local, também conhecida como Sol. Isto motivou
uma carta de alguém que tinha sido encorajado a
ler cuidadosamente como funciona a fusão e que
se tinha apercebido de que existem inconsistên-
cias na literatura científica sobre este assunto.
Ora bem, não será novidade para muitos de nós
que existem mistérios não resolvidos associados ao sol. Na minha última co-
luna, escrevi sobre o problema do aquecimento coronal, o facto de uma das
camadas mais exteriores do sol ser significativamente mais quente do que a
sua superfície. Seria de esperar o contrário: que à medida que nos afastamos da

SUPER 11
Imagem do Telescópio
Espacial Spitzer da NASA
mostrando o que se
encontra perto da espada
da constelação Orion.

NASA

fonte de energia primária do Sol no seu núcleo central, Isto parece ser uma simples questão de colagem de
as regiões exteriores tornar-se-iam cada vez mais frias elementos, mas não é. De facto, as condições têm de
(uma das minhas esperanças para 2022 é que este pro- ser as adequadas. O hidrogénio tem de estar suficien-
blema seja resolvido, ou pelo menos que um dos meus temente quente e suficientemente perto para se fun-
alunos decida abordá-lo ele próprio). dir. E todo este processo, a fusão, acontece em várias
Mas o Sol não tem apenas grandes mistérios pontuais. fases. As teorias que descrevem como tudo isto acon-
O funcionamento básico de como arde é complicado e tece não são a física Newtoniana clássica que descreve,
muitas vezes imperfeitamente compreendido. por exemplo, dois jogadores de futebol a colidir quan-
do ambos querem controlar a bola. Em vez disso, pre-
A RAZÃO PELA QUAL AS ESTRELAS BRILHAM encontra-se ge- cisamos da mecânica quântica e da física nuclear.
ralmente no facto de a força da gravidade ter atraído Um dos problemas que dificulta a ocorrência da
átomos de hidrogénio suficientes para um lugar tão fusão de hidrogénio é que o átomo de hidrogénio
próximo que começam a fundir-se em hélio. Pode di- mais simples, um isótopo chamado prótio, tem ape-
zer-se que a origem de todas as estrelas começa desta nas um protão com carga positiva e nenhum eletrão
forma. Quando o hidrogénio se esgota, o hélio começa quando ionizado sob as condições extremas de fusão,
a fundir-se, e assim sucessivamente, produzindo ele- pelo que tem uma carga global positiva. Tal como as
mentos cada vez mais pesados. cargas similares se repelem mutuamente, assim dois
É aqui que nós, humanos, começamos. A maioria dos protões de prótio repelem-se eletricamente. A gra-
elementos de que somos compostos são feitos nas estre- vidade atua contra isto, juntando-as. Temos, por-
las, e durante as supernovas e kilonovas, as mortes por tanto, forças que competem entre si. Além disso,
explosão destas enormes estrelas. há outra força, a força nuclear forte, que é ativada

12 SUPER
O funcionamento básico de como o Sol arde exige uma explicação
complexa e é muitas vezes imperfeitamente compreendido

AGE
quando as partículas estão muito próximas umas das Representação da
outras e as junta. Esta força acaba por inclinar a ba- força nuclear forte. É
lança. De modo que quando se ativa, os dois prótios uma das quatro forças
podem colidir entre si. fundamentais que
sustentam a estrutura
do Universo.
A PARTE SEGUINTE DA HISTÓRIA É NOVAMENTE MAIS COMPLEXA
DO QUE OS RELATOS MAIS GENERALIZADOS POR VEZES ADMITEM.
Em vez de expelir instantaneamente um átomo de hé-
lio, estas duas partículas em colisão expelem na reali-
dade outro tipo de hidrogénio que tem um protão e um
neutrão (deutério), bem como um positrão (a versão
antimatéria de um eletrão) e outra partícula fundamen-
tal, um neutrino. Nesta etapa do processo, entra em jo-
go outra força fundamental, a força nuclear fraca.
Neste ponto, sugiro que mantenha o alento, porque o
processo não acaba aqui. O positrão recém formado es-
tá agora em posição de se aniquilar quando inevitavel-
mente entra em contacto com um eletrão, uma colisão
que produz dois fotões, ou partículas de luz.
Estes fotões acabarão por sair do Sol e talvez, a dada
altura, tenhamos registos de que chegam ao nosso pla-
neta, fornecendo uma pequena fração da luz solar que
rege as nossas vidas.
SHUTTERSTOCK

O Universo surge da agregação


de partículas subatómicas, que
formam átomos. Na imagem
vemos a recriação de partículas
subatómicas cor-de-rosa.

O DEUTÉRIO TAMBÉM SOFRE A SUA PRÓPRIA TRANSFORMAÇÃO,


produzindo, entre outras coisas, outro fotão, que pode
chegar até nós na Terra. Esta sequência é conhecida co-
mo a primeira fase da cadeia protão-protão, e produz
não só hélio, mas também energia sob a forma de fotões
e neutrinos que são libertados no universo.
Em suma, há muitas coisas a acontecer, e talvez isso
explique, até certo ponto, porque há alguma inconsis-
tência nos artigos científicos sobre física solar.
A questão de saber exatamente quanta energia é
libertada nestas reações em cadeia, por exemplo, e
quantas vezes ocorrem, implica a necessidade de nu-
merosos cálculos em teoria nuclear, bem como a com-
binação dessa informação com muitas outras expe-
riências nucleares (extremamente seguras) na Terra.
Na verdade, posso dizer-vos que estamos sempre a
afinar os números.
Aqui chegados, à pessoa que me perguntou por que
existem inconsistências na literatura sobre fusão solar,
posso dizer que o certo é que ainda estamos a trabalhar
nos pormenores. e

SUPER 13
F Í S I C A

Representação
SHUTTERSTOCK

da inter-relação
entre o peso de
diferentes objetos
espaciais e a sua
influência na
distorção do
espaço-tempo.

14 SUPER
O QUE É A
PERSPETIVA
QUÂNTICA?
Existe uma realidade objetiva única partilhada por todos os observadores? A comunidade
científica atual está a tentar responder a esta questão, que tem sido objeto de estudo por parte
dos investigadores ao longo dos tempos. Revemos os marcos mais relevantes desta questão, que
encontra na física quântica uma nova perspetiva cuja viagem parece fascinante.

Texto de AMANDA GEFTER,


New Scientist

SUPER 15
O princípio da
complementaridade
refere-se ao princípio da
incerteza de Heisenberg,
que é fundamental para a
quântica.

N
ASC

a física, como na vida, é im- Curiosamente, a resposta parece ser não, até começarmos
portante ver as coisas a partir a falar entre nós.
de mais do que uma perspeti- Quando Einstein desenvolveu a sua teoria da relativida-
va. Ao fazê-lo, no último sécu- de no início do século XX, ele partiu de uma premissa fun-
lo, temos tido muitas surpre- damental: as leis da física devem ser as mesmas para to-
sas. Uma delas foi a teoria da dos. O problema é que as leis do eletromagnetismo exigem
relatividade especial de Albert que a luz viaje sempre a 299 792 quilómetros por segundo,
Einstein, que nos mostrou que e Einstein apercebeu-se de que isso criava um problema.
a dimensão do espaço e a du- Se correr ao lado de um feixe de luz numa nave espacial,
ração do tempo variam con- esperaria ver o feixe mover-se muito mais lentamente do
soante quem observa. Pintou que o normal, tal como os carros vizinhos não parecem ir
também um quadro totalmente inesperado da realidade tão depressa quando se está a descer a auto-estrada em ve-
partilhada subjacente: um quadro em que espaço e tem- locidade. No entanto, se fosse esse o caso, as leis da física
po se fundiam numa união tetradimensional conhecida seriam violadas nessa perspetiva.
como espaço-tempo.
Quando a teoria quântica apareceu mais tarde, as coi- NO MUNDO QUÂNTICO, NUNCA HOUVE UMA FORMA DE CONCILIAR
sas ficaram ainda mais estranhas. Parecia mostrar que, ao AS DIFERENTES PERSPETIVAS e vislumbrar a realidade parti-
medir as coisas, participamos na determinação das suas lhada por baixo. Einstein estava convencido de que isso
propriedades. Mas no mundo quântico, ao contrário do não poderia ocorrer, pelo que foi forçado a propor que a
que ocorria com a relatividade, nunca houve uma forma velocidade da luz é constante para todos, independente-
de conciliar as diferentes perspetivas e vislumbrar a rea- mente da velocidade com que se estejam a mover. Para
lidade objetiva que há por baixo. Um século mais tarde, compensar, o espaço e o tempo tinham de mudar de uma
muitos físicos interrogam-se se existe uma única realida- perspetiva para outra. As equações da relatividade per-
de objetiva, partilhada por todos os observadores. mitiram-lhe mudar a perspetiva de um observador, ou
Agora, dois conjuntos de ideias emergentes estão a quadro de referência, para outro, e assim construir uma
mudar esta história. Pela primeira vez, podemos saltar imagem comum do mundo que permanece a mesma de
de uma perspetiva quântica para outra. Isto já nos está a todas as perspetivas.
ajudar a resolver problemas práticos complicados com as Desenvolveu então estas ideias na relatividade ge-
comunicações de alta velocidade. Também lança luz so- ral, que continua a ser a nossa melhor teoria da gra-
bre se existe alguma realidade partilhada a nível quântico. vidade. Mas essa não é a história completa. Nos escri-

16 SUPER
Como se pode medir o tempo com um relógio de interbloqueio, ou a
distância com uma régua que está em vários lugares ao mesmo tempo?
tos de Einstein, os quadros de referência são sempre volvidas por Isaac Newton. A partícula a ser medida é
definidos por "réguas e relógios", objetos físicos com quântica; o quadro de referência não é. A linha divisó-
os quais o espaço e o tempo são medidos. No entanto, ria entre os dois é conhecida como o corte de Heisen-
estes objetos são governados por uma teoria completa- berg. É arbitrária e móvel, mas tem de estar presente
mente diferente. para que o aparelho de medição possa registar um re-
A teoria quântica trata da matéria e da energia e é sultado definitivo.
mais bem sucedida do que a relatividade. Mas pinta um
quadro profundamente desconhecido da realidade, em CONSIDEREMOS O GATO DE SCHRÖDINGER, A EXPERIÊNCIA DE
que as partículas não têm propriedades definidas antes PENSAMENTO EM QUE UM FELINO INFELIZ se encontra numa
de as medirmos, e existem numa sobreposição de múl- caixa com uma partícula radioativa. Se a partícula se
tiplos estados. Mostra também que as partículas podem desintegrar, desencadeia um martelo que quebra uma
entrelaçar-se e que as suas propriedades estão intima- bolha que liberta um veneno que mata o gato. Se não
mente ligadas, mesmo a grandes distâncias. Tudo isto o fizer, o gato vive. O leitor está fora da caixa. Da sua
faz cambalear a definição de um quadro de referência: perspetiva, os conteúdos estão entrelaçados e sobre-
como se pode medir o tempo com um relógio que está postos. A partícula desintegrou-se e não se desintegrou;
entrelaçado, ou a distância com uma régua que está em o gato está vivo e morto. Mas, como na relatividade, não
vários lugares ao mesmo tempo? deveria ser possível descrever a situação da perspetiva
Os físicos quânticos evitam frequentemente esta do gato?
questão, tratando os instrumentos de medição como Este enigma incomoda há muito Časlav Brukner,
se obedecessem às leis clássicas da mecânica desen- cientista e professor no Instituto de Ótica Quântica e
AGE

O gato de Schrödinger é uma experiência de pensamento que apresenta um gato hipotético que pode estar vivo e morto ao mesmo tempo.

SUPER 17
"O que é quântico e o que é clássico depende da escolha de
quadros quânticos de referência", diz Brukner
Informação Quântica em Viena, Áustria. O investigador olham de todo. "Os meus colegas e eu esperávamos que
queria compreender como ver as coisas de múltiplos a situação de amigo de Wigner pudesse ser reequacio-
pontos de vista na teoria quântica. Tal como Einstein, nada em quadros quânticos de referência", diz Brukner.
partiu do pressuposto de que as leis da física devem ser Mas até agora, isso não tem sido possível. "Não sei" sus-
as mesmas para todos, e depois desenvolveu uma forma pira. E acrescenta: "Há um elemento em falta".
de alternar matematicamente entre quadros de refe- O trabalho de Flavio Mercati da Universidade de Bur-
rência quânticos. Se pudéssemos descrever uma situa- gos (Espanha) e Giovanni Amelino-Camélia da Univer-
ção de ambos os lados do corte de Heisenberg, Brukner sidade de Nápoles Federico II (Itália) fornece algumas
suspeitaria que poderia surgir alguma verdade sobre pistas sobre o que poderá ser. As suas pesquisas pare-
um mundo quântico partilhado. cem sugerir que, através do intercâmbio de informação
O que Brukner e os seus colegas encontraram em 2019 quântica, os observadores podem criar uma realidade
foi surpreendente. Quando se passa ao ponto de vista do partilhada, mesmo que esta não exista desde o início.
gato, verifica-se que - tal como na relatividade - as coi-
sas têm de ser distorcidas para preservar as leis da física. A DUPLA FOI INSPIRADA PELA INVESTIGAÇÃO REALIZADA EM
O quantum anteriormente atribuído ao gato é baralhado 2016 POR MARKUS MÜLLER E PHILIPP HÖHN , ambos então
através do corte de Heisenberg. no Instituto Perimeter de Waterloo, Canadá, que ima-
Desta perspetiva, o gato está num estado definido: é ginaram um cenário em que duas pessoas, Alice e Bob,
o observador fora da caixa que está numa sobreposi- se enviam mutuamente partículas quânticas num es-
ção, enredado com o laboratório lá fora. Durante muito tado particular de "spin". O "spin" é uma propriedade
tempo pensou-se que o emaranhamento era uma pro-
priedade absoluta da realidade. Mas neste novo quadro,
SHUTTERSTCOCK

é tudo uma questão de perspetiva. "O que é quântico e


o que é clássico depende da escolha de quadros de refe-
rência quânticos", diz Brukner.
Jacques Pienaar, da Universidade de Massachusetts
diz que tudo isto nos permite colocar com rigor algu-
mas perguntas fascinantes. Por exemplo, a conhecida
experiência de dupla ranhura, que mostrou que uma
partícula quântica pode passar por duas fendas de uma
grelha ao mesmo tempo. "Vemos que, em relação ao
eletrão, são as próprias fendas que estão em sobreposi-
ção", diz Pienaar. "Para mim, isso é simplesmente ma-
ravilhoso". Embora tudo isto possa parecer uma mera
teorização, uma coisa que dá credibilidade às ideias de
Brukner é que elas já ajudaram a resolver um problema
intratável relacionado com a comunicação quântica.
No entanto, os quadros quânticos de referência têm um
calcanhar de Aquiles, embora possa, em última análise,
apontar para uma apreciação mais profunda da realidade.

TRATA-SE DE "O AMIGO DE WIGNER", UMA EXPERIÊNCIA DE


PENSAMENTO CONCEBIDA NOS ANOS 50 PELO FÍSICO EUGENE
WIGNER. Acrescenta uma reviravolta alucinante ao puz-
zle de Schrödinger. Perante o cenário habitual, o amigo
do Wigner abre a caixa e descobre, por exemplo, que o
gato está vivo. Mas e se o próprio Wigner estiver fora
da porta do laboratório? No seu quadro de referência,
o gato ainda se encontra numa sobreposição de vivo e
morto, só que agora está enredado com o amigo, que
está numa sobreposição de ter visto um gato vivo e de
ter visto um gato morto. A descrição que Wigner faz
do gato e do amigo são mutuamente exclusivas, mas de
acordo com a teoria quântica ambas estão corretas. É
um paradoxo profundo que parece revelar uma realida-
de dividida.
As regras de Brukner não ajudam neste caso. Não po-
demos saltar de um lado do corte de Heisenberg para o
outro porque as duas pessoas estão a usar cortes dife-
rentes. O amigo tem o corte entre ele e a caixa; o Wig-
ner tem-no entre ele e o laboratório. Eles não se olham
do outro lado da divisão quântica clássica. Eles não se

18 SUPER
quântica que pode ser comparada a uma seta que po- ao Bob: "Vou enviar-te uma centena de partículas que
de apontar para cima ou para baixo ao longo de cada rodam todas para cima no eixo x". Neste caso, à me-
um de três eixos espaciais. Alice envia uma partícula dida que Bob mede cada vez mais partículas começa a
a Bob e ele tem de descobrir a sua "spin"; Bob prepara conseguir calcular a orientação relativa dos seus qua-
então uma nova partícula com a mesma rotação e en- dros de referência.
via-a de volta a Alice, que confirma que ele acertou. O
problema é que Alice e Bob não conhecem a orientação É AQUI QUE A COISA SE TORNA INTERESSANTE. MÜLLER E HÖHN
relativa dos seus quadros de referência: o eixo x de um PERCEBERAM QUE, AO FAZER TUDO ISTO, Alice e Bob ob-
poderia ser o eixo y do outro. A comunicação estabe- têm automaticamente as equações que lhes permitem
lecida entre Alice e Bob pode falsificar a estrutura do mover a visão de uma perspetiva para outra na relati-
espaço-tempo. vidade especial de Einstein. Tendemos a pensar no es-
Se Alice enviar a Bob uma única partícula, ele nunca paço-tempo como a estrutura pré-existente através da
será capaz de decifrar o spin. Por vezes, na física, duas qual os observadores comunicam. Mas Müller e Höhn
variáveis estão ligadas de tal forma que se uma for me- dão a volta à história. Se se partir de observadores que
dida com precisão, a outra deixa de existir num estado enviam mensagens, pode-se derivar o espaço-tempo.
definido. Este problema complicado, conhecido como o Para Mercati e Amelino-Camelia esta reviravolta foi um
princípio da incerteza de Heisenberg, aplica-se à rota- momento de iluminação. Levantou uma questão-chave
ção de partículas ao longo de diferentes eixos. que se revelou ter influência no trabalho de Brukner:
Assim, se Bob quisesse medir a rotação ao longo do Alice e Bob estão a aprender sobre um espaço-tempo
que pensa ser o eixo x de Alice, teria de adivinhar qual pré-existente ou será que o espaço-tempo emerge à
o eixo que realmente é, e se se enganasse, o resultado medida que comunicam?
seria que toda a informação seria apagada. Há duas formas de isto poder acontecer. A primeira
No entanto, o par pode impedir que isto aconteça tem a ver com o compromisso da mecânica quântica
através da troca de muitas partículas. Alice pode dizer entre informação e energia. "Para obter informações

Ilustração da experiência
mental de Erwin
Schrödinger, onde o gato
está vivo e morto devido a
interpretações da
mecânica quântica e do
estado conhecido como
sobreposição quântica.

SUPER 19
Quando as pessoas trocam informações quânticas, estão a
colaborar na construção da sua realidade mútua
sobre um sistema quântico é preciso pagar energia", diz -iam ativamente. As decisões que tomam sobre os eixos
Mercati. Cada vez que Bob escolhe o eixo certo, perde a medir alterariam a própria coisa que a sua comunica-
um pouco de energia; quando escolhe o errado e apa- ção pretendia revelar. A dupla também concebeu uma
ga a informação de Alice, ele ganha alguma. Uma vez forma de testar se este é de facto o caso.
que a curvatura do espaço-tempo depende da energia Todo este trabalho aponta no mínimo para uma con-
presente, quando Bob mede a sua orientação relativa ele clusão surpreendente, e é que quando as pessoas tro-
também acaba por mudar um pouco a orientação. cam informações quânticas, o que estão a fazer é cola-
borar na construção da sua realidade mútua.
PODERIA HAVER UM SENTIDO MAIS PROFUNDO EM QUE A COMU- Significa que se olharmos simplesmente para o es-
NICAÇÃO QUÂNTICA CRIA ESPAÇO-TEMPO. Isto entra em jogo paço e o tempo de uma única perspetiva, não só per-
se o espaço for o que se chama "não-comutativo". Se demos toda a sua beleza, como pode não haver uma
quisermos chegar a um ponto num mapa normal, não realidade partilhada mais profunda. Para a dupla de
importa em que ordem especificamos as coordenadas. investigação Mercati e Amelino-Camelia, um observa-
Pode ser acima de cinco e acima de dois; ou acima de dor não faz um espaço-tempo.
dois e acima de cinco, de qualquer forma aterraremos Isto leva-nos de volta ao paradoxo do amigo de Wig-
no mesmo ponto. ner que intrigou Brukner. No seu trabalho, pode-se
Mas se as leis da mecânica quântica se aplicarem ao considerar que observadores só têm perspetivas sobre a
próprio espaço-tempo, isto pode não ser verdade. Tal mesma realidade apenas quando olham um para o outro
como conhecer a posição de uma partícula o impede de a partir do outro lado do corte de Heisenberg. Ou, por
medir o seu momento, passar acima de cinco pode im- outras palavras, apenas quando lhes é possível comu-
pedir que passe acima de dois. nicar, que é precisamente o que Wigner e o seu amigo
Mercati e Amelino-Camelia argumentam que se o es- não podem fazer. Talvez o que este argumento nos este-
paço-tempo funciona assim, as tentativas de Alice e Bob ja realmente a dizer é que até duas pessoas interagirem,
para descobrir a sua orientação relativa não só desven- não partilham a mesma realidade, já que é a própria co-
dariam a estrutura do espaço-tempo, mas falsificá-la- municação que é responsável pela sua criação.
CHAO-YANG LU / UNIVERSITY OF SCIENCE AND TECHNOLOGY OF CHINA

Jiuzhang 2.0 é um
setilhão de vezes mais
potente que o
supercomputador mais
rápido do mundo.

20 SUPER
As vísceras de um
computador quântico
IBM mostram o
emaranhado de fios
utilizados para controlar
e ler as suas qubits.

ASC
REDES DE FIOS QUE TRANSPORTAM INFORMAÇÃO QUÂNTICA JÁ da na partícula para recuperar a informação contida
ESTÃO A SER CRIADAS EM TODO o mundo como um protó- no qubit original.
tipo para a Internet quântica. Estas redes transportam
informação sob a forma de qubits, ou bits quânticos, NO ESPAÇO COMUM, NÃO É TANTO A VIAGEM QUE IMPORTA, MAS
que podem ser codificados nas propriedades das partí- SIM O DESTINO. Se quiser chegar a um determinado lugar,
culas, normalmente uma propriedade quântica chama- tanto vale ir cinco quilómetros para sul e depois três
da spin. Uma pessoa envia um fluxo de partículas para quilómetros para oeste, ou vice-versa. Isto porque as
outra, que depois mede o seu spin para descodificar a coordenadas "comutam-se", levam-no ao mesmo lugar
mensagem; para serem um meio de comunicação útil, independentemente da ordem.
estas partículas devem viajar a uma velocidade próxima Nas escalas muito pequenas a que se aplica a teoria
da velocidade da luz. A essas velocidades, o "spin" de quântica, isto pode não ser verdade. Na teoria quântica,
uma partícula "emaranha-se quanticamente" com o seu medir a posição de uma partícula resulta em informa-
momento de tal forma que se o recetor medir apenas o ção sobre o seu momento. Do mesmo modo, a ordem
"spin", a informação é perdida. "Isto é grave", diz Fla- pela qual os movimentos são executados poderia afetar
minia Giacomini do Instituto Perimeter no Canadá. "O a estrutura do espaço. Se assim for, não faz sentido falar
qubit é a base da informação quântica, mas para uma de espaço-tempo como um domínio fixo.
partícula que se move a velocidades muito elevadas, já Os físicos Flavio Mercati e Giovanni Amelino Camelia
não podemos identificar um qubit". Como se isso não creem ter uma forma de descobrir se o espaço-tempo é
fosse um problema suficiente, cada qubit não se move comutado. Inspiraram-se numa investigação que imagi-
a uma velocidade definida: graças à mecânica quântica, nava duas pessoas a trocar partículas quânticas e a medir
encontra-se no que é conhecido como uma sobreposi- as suas propriedades para deduzir a sua orientação relati-
ção de velocidades. va. O que aconteceria, perguntam Mercati e Amelino Ca-
As regras dos quadros de referência quântica de- melia, se este jogo fosse realmente jogado? À medida que
senvolvidas por Časlav Brukner poderiam ser a res- as pessoas trocam cada vez mais partículas, a sua incerte-
posta. Giacomini mostrou como as regras podem za quanto à sua orientação deverá diminuir. Mas será que
ser usadas para saltar para o quadro de referência da alguma vez chegará a zero? No espaço-tempo comum,
partícula, mesmo quando a partícula está em sobre- sim. Mas se o espaço-tempo não for comutativo, alguma
posição. Dessa perspetiva, é o resto da realidade que incerteza permanecerá sempre, uma vez que a sua orien-
passa numa sobreposição difusa. Com o conhecimen- tação é ligeiramente reescrita a cada medição. Triliões de
to de como o qubit vê o mundo, pode-se determinar a partículas podem ter de ser trocados antes de termos uma
transformação matemática que precisa de ser realiza- resposta, mas Mercati acha que vale a pena tentar. e

SUPER 21
ENTREVISTA
A jornalista e escritora
Katrine Marçal examina
no seu livro A Mãe do

ASC
Engenho a ideia de
como as mulheres
foram marginalizadas
no desenvolvimento
tecnológico e o que
teria acontecido se tal
não tivesse sido o caso.

22 SUPER
Katrine
MARÇAL
«Ignorar as mulheres tem
atrasado o desenvolvimento
tecnológico»
Há apenas algumas décadas, uma mala com rodas ou um carro
que mal fazia um som eram considerados «demasiado femininos»
por isso pensou-se que era melhor deixar as coisas como estavam.
Independentemente de tal decisão ter levado a mais dores nas
costas ou ao buraco na camada de ozono, esta perspetiva claramente
masculina, que a jornalista Katrine Marçal nos mostra hoje, tem
tido muitas consequências importantes, tanto no ritmo e direção da
história da tecnologia como, por extensão, da humanidade. No seu livro,
A Mãe do Engenho, Katrine Marçal partilha connosco as suas reflexões
sobre a impressão masculina nos setores tecnológico e económico,
convidando-nos a refletir sobre o assunto.

Entrevista de
JUAN FERNÁNDEZ

SUPER 23
ENTREVISTA
SHUTTERSTOCK

A tecnologia para desenvolver o carro


elétrico foi descartada porque um
carro mais lento e silencioso do que o
de combustão era considerado
“demasiado feminino”.

O
que teria acontecido se as inferiores na conceção da inovação e que esta margina-
mulheres tivessem estado lização significou um enorme desperdício económico e
ao leme do desenvolvimento um atraso no desenvolvimento tecnológico.
tecnológico ao mesmo nível
que os homens? Como se- Teríamos hoje outras invenções à nossa volta se as mu-
ria o mundo de hoje se o seu lheres tivessem participado na história da inovação em
julgamento, imaginação e pé de igualdade com os homens?
interesses tivessem contado Sim, e muitas invenções que eram muito úteis para a
tanto como os dos homens sociedade teriam sido desenvolvidas mais cedo, mas
quando se tratou de apontar foram abandonadas porque apenas o olhar masculino
invenções nas quais valia a foi tido em conta. O exemplo mais paradigmático é o
pena apostar? Qual foi o verdadeiro peso das mulheres carro elétrico. Hoje em dia é visto como o futuro do au-
na história da inovação e até que ponto esta história tomóvel e a solução para os problemas de mobilidade
está longe da que nos foi contada? Movida por estas nas cidades. Acontece que a tecnologia necessária para
dúvidas, a jornalista económica Katrine Marçal (Lund, o seu desenvolvimento foi descoberta há cem anos, mas
Suécia, 1983) passou vários anos a rever a história da foi abandonada porque se pensou que um carro movi-
tecnologia de uma perspetiva de género. Apresentou a do a eletricidade que funcionava a uma velocidade mais
sua análise em La madre del ingenio ( Principal de los lenta e fazia menos barulho do que um motor de com-
Libros, 2022), um ensaio cujo subtítulo antecipa, sob a bustão interna era um invento “demasiado feminino”.
forma de um lamento, a conclusão a que chegou após Este foi o argumento dado na altura, e assim aparece
completar a sua investigação: Como as boas ideias são nos documentos da época. E uma vez que as mulheres
ignoradas numa economia desenhada para homens. mal conduziam nessa altura, ninguém investiu nele ou
o fabricou industrialmente.
Até agora, temos falado de feminismo em termos de jus-
tiça. Você vai um passo além e põe um preço na margina- Teríamos poupado muitas décadas de poluição. É a isso
lização histórica das mulheres. Será que o machismo nos que se refere quando fala no seu livro sobre inovação tec-
custou dinheiro? nológica em atraso?
Muito, e tem causado um lamentável freio ao progresso. Não chegaria ao ponto de dizer categoricamente que
Quando revemos a história da tecnologia e da economia foi a consideração do carro elétrico como veículo de
e analisamos que investigação foi desenvolvida e o que mulher que fez cair a balança a favor do petróleo em
foi descartado, de acordo com que critérios e, sobretu- detrimento da eletricidade, mas contribuiu certa-
do, quem tomou essas decisões, verificamos que as mu- mente para o que aconteceu no final. O que é absolu-
lheres foram historicamente relegadas a vários níveis tamente claro para mim é que a história da indústria

24 SUPER
«A inovação tem sido impulsionada por critérios tais como
força bruta, violência e competitividade. O resultado tem
sido o desenvolvimento de tecnologia que virou as costas a
valores mais femininos como o cuidado com as pessoas»
automóvel, que tem sido manifestamente masculina, A que se está a referir exatamente?
teria sido diferente se as mulheres tivessem estado A inovação tem sido historicamente guiada por critérios
mais envolvidas no seu desenvolvimento. Por um associados à força bruta, violência e competitividade. O
lado, estou convencido de que os carros elétricos se objetivo tem sido sempre correr mais depressa, ir mais
teriam tornado populares mais cedo e que teríamos longe, bater mais forte, ter o maior impacto e destruir o
outros modelos de mobilidade e transportes públi- adversário em vez de cooperar com ele.
cos nas nossas cidades de hoje. E provavelmente nem O resultado foi o desenvolvimento de uma tecnologia
todos aspiram a possuir um carro, que é algo muito pouco humana que virou as costas a outros critérios, tais
masculino. como o cuidado com as pessoas ou a proteção do am-
biente, que foram considerados como os valores fracos
Diria que a forma como as mulheres inovam é diferente das mulheres. Estes interesses simplesmente não conta-
da forma como os homens o fazem? vam quando se tratava de pensar a inovação tecnológica.
Não há mulheres a pilotar projetos de desenvolvimento
tecnológico há tempo suficiente para poder responder Será que este preconceito foi traduzido em invenções
a essa pergunta com dados na mão. Penso que temos concretas?
tendência para exagerar as diferenças entre os sexos. O caso mais paradigmático é a história da mala com ro-
No mundo económico, de onde venho, há uma ideia de das que conto no livro. A ideia de colocar rodas nas ma-
que as mulheres são avessas a uma situação de risco e, las, que é algo que todos vemos como muito útil hoje em
portanto, tendem a ser menos empreendedoras do que dia e que facilita a nossa vida, foi patenteada nos anos
os homens, que não percebem esse risco. Mas o núme- 70. Foram produzidos vários modelos, mas os grandes
ro de mulheres que foram capazes de liderar projetos armazéns rejeitaram-nos porque pensavam, e até de-
empreendedores é minúsculo em comparação com os clararam nos seus anúncios, que uma mala com rodas
homens! Ponha mais mulheres a cargo destes projetos, era uma ofensa à força e virilidade dos seus clientes
deixe-as trabalhar e depois podemos falar sobre isso. masculinos, que eram os que mais viajavam nessa altura
Contudo, há uma coisa que é clara para mim, que é que carregando o peso das suas malas e das suas acompa-
a supremacia masculina, que é claramente evidente na nhantes femininas. O preconceito masculino aplicado
história da tecnologia humana, tem condicionado a sua à tecnologia atrasou durante algumas décadas algo tão
trajetória e desenvolvimento. prático como a possibilidade de arrastar a bagagem so-

SHUTTERSTOCK

Sempre existiu
uma crença no
setor das finanças
de que as
mulheres se
afastam de
situações de
risco, ao contrário
dos homens.

SUPER 25
ASC
ENTREVISTA A jornalista
económica Katrine
Marçal posa com o

«O mais urgente é reescrever a


seu livro A Mãe do
Engenho,
publicado em
história do progresso tecnológico Fevereiro de 2022.

que nos foi contada e destacar a


contribuição das mulheres»
bre rodas sem muito esforço, como fazemos hoje e poderíamos
ter feito há muito tempo. Basta pensar que a roda é uma invenção
com 5000 anos de idade.

No seu livro, chama a atenção para um duplo efeito de discrimi-


nação contra as mulheres no desenvolvimento tecnológico: não
só foram marginalizadas na orientação da inovação, mas também,
quando estiveram envolvidas em grandes descobertas históricas,
o seu papel foi silenciado.
Deixem-me dar-vos um exemplo: se perguntássemos na rua o que
a viagem à lua tinha a ver com as costureiras de soutiens, tenho
a certeza de que ninguém saberia a resposta. No entanto, existe
uma relação estreita entre a corrida aeroespacial e as mulheres que
cosiam espartilhos há sessenta anos que nunca foi contada. Quan-
do a NASA enfrentou o desafio de conceber os fatos dos astronau-
tas, depararam-se com um problema: não sabiam como os fazer.
Tinham pilhas de papel sobre a mesa cheias de planos, cálculos e
medidas, mas não conseguiram transformá-los em roupa útil para mesmo que as ideias fossem delas. A história da pré-história fala
viagens espaciais. No final, tiveram de contar com uma equipa de da Idade do Bronze e do Ferro, mas não da cerâmica ou do linho,
mulheres habituadas a coser cintas e soutiens, capazes de fazer os que foram contribuições para o avanço da civilização tão impor-
fatos sem ter de olhar para os planos sofisticados que os engenhei- tantes ou até mais importantes do que esses minerais, mas que
ros tinham elaborado. Não só isso: para resolver esse problema, estavam nas mãos das mulheres e por isso considerados menos
os engenheiros acabaram por ter aulas ensinadas pelas costureiras relevantes.
para aprenderem as suas técnicas.
Já não estamos na pré-história, nem quando o carro ou a mala de ro-
O papel das mulheres na história da tecnologia está muito longe da das foram patenteados. A discriminação contra as mulheres na tec-
história oficial que nos foi contada? nologia foi corrigida ou o preconceito masculino ainda prevalece?
Durante séculos, a história tem sido contada pelos homens numa Para responder a esta pergunta só temos de seguir o rasto do
perspetiva masculina que silenciou a influência e os interesses dinheiro e, quando o fazemos, vemos que hoje, no século XXI,
das mulheres. Todos sabem que Carl Benz foi o engenheiro que 90 por cento dos investimentos de capital de risco vão para
inventou o primeiro carro com um motor de combustão, mas é projetos liderados por homens. Mas isto não se deve ao facto
menos conhecido que a pessoa que viu o potencial do carro co- de as mulheres terem ideias piores ou serem menos criativas
mo meio de transporte foi a sua esposa Bertha, que pagou pela quando se trata de estabelecer e desenvolver planos tecnológi-
sua fabricação e foi quem conduziu o carro quando este fez a sua cos eficientes e inovadores. Isto acontece devido a um simples
primeira viagem. Não admira: até muito recentemente, as mu- preconceito de género que ainda persiste neste setor, o qual
lheres eram impedidas de deter patentes em seu próprio nome, mantém a ideia de que a inovação e a tecnologia são da compe-
tência dos homens. As mulheres continuam a ser excluídas do
progresso e da sua narrativa.
SHUTTERSTOCK

Como pode este preconceito ser corrigido?


O mais urgente é reescrever a história do progresso tecnológi-
co que nos foi contada até agora, destacando a contribuição das
mulheres, que tem sido historicamente silenciada, e apontando
a marginalização que temos sofrido na conceção da inovação. Só
assim as jovens que hoje decidem dedicar-se a este setor podem
ver-se refletidas noutras mulheres semelhantes a elas e ser ins-
piradas pela sua experiência. É o caso do setor das TI, que era
originalmente puramente feminino, mas que foi ocupado quase
inteiramente por homens quando se tornou relevante. O sistema
financeiro também precisa de ser repensado para que o capital
As mulheres foram a seja distribuído de forma mais justa entre homens e mulheres e
maioria no mundo das TI acabe por ir para os projetos mais inovadores e úteis para a so-
até que o setor ganhou ciedade. Isto não está a acontecer hoje em dia. Hoje em dia, os
importância. A partir daí,
homens ainda prevalecem quando se trata de liderar o progresso
tornou-se masculino.
tecnológico e muitos projetos liderados por mulheres são deixa-
dos nas gavetas devido à falta de financiamento. e

26 SUPER
E C O L O G I A

Imagem espetacular das

GETTY
cataratas de Khone
Phapheng no rio Mekhong
na estação das chuvas,
Champasak, sul do Laos. A
queda mais alta é de cerca
de 21 metros e a sucessão
de rápidos estende-se 9,7
quilómetros ao longo do rio.

Um primeiro passo para a mobilização climática?

ECO-ANSIEDADE
Ansiedade, medo, insegurança e culpa sobre a atual crise climática são alguns dos sentimentos
vividos pelas pessoas que sofrem de eco-ansiedade. Mas em que consiste exatamente este distúrbio
mental, porque surge neste momento e a quem afeta mais? Descobrimos a melhor maneira de o
detetar e, mais importante ainda, de como lidar com ele.

Texto de SILVIA COLLADO,


Docente no Departamento de Psicologia e Sociologia da Universidade de Saragoça.

SUPER 27
SHUTTERSTOCK

U
m dos maiores desafios glo- forma de ondas de calor, fortes nevões, inundações,
bais é enfrentar os graves tornados, furacões, secas e incêndios florestais. As
problemas ambientais que alterações climáticas são agora consideradas como o
ameaçam o presente e o fu- maior desafio que a ciência e a sociedade enfrentam
turo da vida na Terra. Há e, embora por vezes tenha sido concetualizado co-
uma consciência crescente mo um problema que afeta principalmente os ursos
dos efeitos prejudiciais do polares, está a tornar-se cada vez mais claro que to-
comportamento humano so- dos estes fenómenos podem causar direta ou indi-
bre os ambientes naturais. retamente patologias físicas e psicológicas nos seres
As nossas ações não só com- humanos.
prometem a qualidade do
ambiente, como, em última A SAÚDE FÍSICA DAS PESSOAS É AMEAÇADA PELAS ALTAS
análise, põem em perigo a saúde humana. Devido à TEMPERATURAS, PELA INALAÇÃO DE partículas poluen-
atividade humana, a concentração de vários poluen- tes comuns no ar que respiramos e pelo aumento da
tes na atmosfera, prejudiciais aos seres vivos, tem propagação de doenças anteriormente mais locali-
aumentado significativamente nos últimos anos. zadas, como o dengue ou a malária, entre outras. Is-
Isto resulta no efeito de estufa e na consequente al- to é agravado por fatores como o impacto social da
teração dos padrões climáticos da Terra, levando a migração forçada e os conflitos ligados às alterações
um aumento dos eventos climáticos extremos sob a climáticas.

28 SUPER
As crianças e adolescentes são
particularmente suscetíveis à
eco-ansiedade, uma vez que o
seu sentido do tempo, do lugar e
do eu ainda estão a ser formados

A ansiedade refere-se a um estado de agitação, in-


quietação ou quebra de ânimo, e é uma das sensações
mais frequentes nos seres humanos, sendo uma emoção
complicada e desagradável. A ansiedade está relacio-
nada com um conjunto de sintomas derivados de uma
ameaça (real ou percebida) em relação à qual existe um
elevado grau de incerteza. Neste sentido, a crise ecoló-
gica, incluindo a crise climática, pode causar situações
e sentimentos difíceis de gerir, tais como incerteza,
imprevisibilidade e falta de controlo sobre a situação,
todos eles ingredientes clássicos da ansiedade. Não é,
portanto, surpreendente que a comunidade científica
esteja interessada no estudo da eco-ansiedade, ou na
apreensão e stress que uma pessoa sente quando con-
frontada com a ameaça aos ecossistemas. A ansiedade
pela mudança climática tem sido, dentro do termo glo-
bal de eco-ansiedade, a que maior interesse tem recebi-
do por parte dos investigadores.
O termo "ansiedade pela mudança climática" refere-
-se ao medo, preocupação, frustração, sentimentos de
culpa, desesperança, perda, e mesmo melancolia pro-
duzida pela mudança climática. É de notar que a ansie-
dade em si não precisa de ser patológica. Diferenciaría-
A ansiedade em mos assim entre a ansiedade adaptativa ou funcional,
si não é que nos ajuda a avançar para soluções, e a ansiedade não
necessariamente funcional que, para além de causar sofrimento intenso
patológica. O nas pessoas, leva frequentemente à inação.
problema é
quando causa EM QUE NÍVEIS DE ECO-ANSIEDADE NOS ENCONTRAMOS?
intenso A INVESTIGAÇÃO LEVADA A CABO EM VÁRIOS PAÍSES, in-
sofrimento e leva cluindo Espanha, Estados Unidos, Brasil, Nigéria,
à inação.
Reino Unido, Itália, Alemanha, Canadá, Filipinas e
Índia, mostrou que existe uma resposta emocional
negativa às alterações climáticas que tem aumen-
As consequências das alterações climáticas na saú- tado nos últimos anos e, embora comum, na maio-
de mental são menos óbvias do que as físicas, embora ria dos casos não pode ser considerada patológica.
existam agora provas científicas suficientes para apoiar No entanto, foram encontradas diferenças grupais,
a ligação entre a crise climática e a saúde mental. com diferentes grupos populacionais identificados
A comunidade científica demonstrou que a prolife- como sendo mais vulneráveis a níveis elevados de
ração de tempestades graves associadas ao aumento eco-ansiedade. Em geral, as pessoas cujas vidas es-
da temperatura global está ligada a elevados níveis de tão mais diretamente relacionadas com a terra, tais
stress pós-traumático, depressão, ansiedade e abu- como os povos indígenas, ou agricultores e pastores,
so de substâncias, tais como o álcool. A isto acresce mostram níveis mais elevados de medo e desespe-
o stress resultante do impacto das catástrofes natu- rança em relação às alterações climáticas. A estes
rais nas infra-estruturas físicas e sociais, incluindo o juntam-se indivíduos que têm menos apoio social e
encerramento temporário de instalações de educação são menos resistentes (menos capazes de se adaptar
e saúde, e a perturbação dos sistemas de transporte, à mudança). Por sua vez, as mulheres pontuam mais
entre outros efeitos importantes. alto na eco-ansiedade do que os homens, relatando
Recentemente, os investigadores interessaram-se sentir-se mais nervosas ou ansiosas com as altera-
pelo estudo e análise da ansiedade gerada pelas per- ções climáticas do que os homens.
ceções das pessoas sobre as alterações climáticas e as As crianças e adolescentes são particularmente sus-
suas consequências, mesmo que não tenham sido di- cetíveis à eco-ansiedade, uma vez que o seu sentido do
retamente afetadas por elas. tempo, do lugar e do eu ainda estão a ser formados.

SUPER 29
As populações indígenas
SHUTTERSTOCK

são mais vulneráveis a


sofrer de eco-ansiedade
O s inuítes vivem nas regiões árticas da América do Norte e são consi-
derados particularmente suscetíveis às alterações climáticas dada
a sua localização geográfica em áreas onde os efeitos da variabilidade
climática são especialmente notórios, bem como a sua dependência da
terra e a sua ligação emocional à natureza. Os resultados de estudos re-
centes mostram que as comunidades inuítes estão conscientes das alte-
rações climáticas e das suas consequências para a sua região. Os jovens
inuítes são particularmente vulneráveis à eco-ansiedade, e relatam sentir
medo, preocupação, stress, raiva e frustração perante as consequências
das alterações climáticas, relatando mesmo uma perda da sua própria
identidade individual e coletiva.

As questões ambientais abstratas, tais como as alte-


rações climáticas, podem ser esmagadoras para eles,
desencadeando frustração, medo e desesperança. Os
resultados de um inquérito realizado no Reino Unido
a crianças dos oito aos 16 anos de idade mostraram
que 73% delas dizem estar preocupadas com o estado
do planeta, 19% têm tido pesadelos com as alterações
climáticas e 41% não confiam nos adultos para toma-
rem medidas eficazes para mitigar a crise climática.

50% DOS QUASE 1300 ADOLESCENTES (DE 12-19 ANOS) EN-


TREVISTADOS TEMEM que algo terrível possa acontecer
em relação às alterações climáticas. Estes são dados
de uma investigação recente realizada em Espanha
pela Universidade de Saragoça, pela Pontifícia Co-
millas e pela Universidade Autónoma de Madrid.
Além disso, 20% dos participantes relataram sen-
tir-se nervosos, ansiosos ou muito tensos quando
pensam nas alterações climáticas, sentimentos que
são agravados naqueles que não acreditam que os
políticos irão melhorar a atual situação de crise cli-
mática (mais de 50% dos entrevistados). 40% dos
adolescentes interrogam-se porque é que o proble-
ma não pode ser melhor gerido e 15% afirmam que
têm dificuldade em concentrar-se como resultado
das alterações climáticas, o que poderia ter um im-
pacto na sua vida quotidiana, por exemplo, no âmbi-
to académico. Os adolescentes que têm uma ligação
emocional mais forte com a natureza tendem a sofrer
mais com a eco-ansiedade, o que é consistente com
os resultados encontrados em amostras de adultos,

As mulheres têm uma pontuação


mais elevada em eco-ansiedade
do que os homens, e sentem-se
mais ansiosas do que eles com
as alterações climáticas

30 SUPER
onde aqueles que estão envolvidos em estudos cli- procurando promover sentimentos negativos, como
máticos e aqueles que sentem a natureza como parte a indignação pela insuficiente proteção do ambiente
da sua identidade tendem a sofrer de eco-ansiedade e a culpa pelo legado que estamos a deixar às gerações
chegando, nos casos mais extremos a abandonar a sua futuras. Estes sentimentos negativos e a consequen-
profissão. te eco-ansiedade podem aumentar a ação ambiental,
mas também podem provocar a reação oposta. Po-
EMBORA O DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO POSSA AJUDAR- demos sentir que nada do que fizermos irá inverter
-NOS A ALIVIAR A DETERIORAÇÃO que as nossas ações cau- a atual crise climática, ou que a mensagem que nos é
sam no planeta, não existe uma solução puramente transmitida é demasiado alarmista, o que pode levar
técnica para a atual crise ecológica. As estratégias de a níveis de eco-ansiedade não funcionais ou, no outro
intervenção para enfrentar os desafios ambientais extremo, a apatia perante a crise climática.
devem, portanto, promover mudanças nas atitudes e Existem outras estratégias para promover com-
comportamentos ecológicos pessoais e coletivos. portamentos pró-ambientais que se afastam desta
Uma estratégia utilizada por educadores e psicó- abordagem mais catrastofista e podem, por sua vez,
logos ambientais para promover comportamentos ajudar a reduzir a eco-ansiedade. Uma das estraté-
pró-ambientais de conservação tem sido a de salien- gias que ganhou ímpeto nos últimos anos é a promo-
tar os danos que as ações humanas têm na natureza, ção de um sentimento de pertença a um grupo social

GETTY

Uma mulher inspeciona os


danos na sua casa queimada
durante um incêndio
provocado pela seca, a 23 de
novembro de 2016.

SUPER 31
Uma mulher segura o seu
cão nos braços durante os
incêndios na ilha de Evia,
Grécia, em agosto de 2021.
GETTY

Estratégias psicológicas
GETTY

para lidar com as


alterações climáticas
A s mensagens excessivamente alarmistas a que as crianças e adolescentes são
por vezes expostas provam ser um fator de stress que gera sentimentos nega-
tivos, diminui o seu bem-estar e satisfação de vida. A fim de lidar com as emoções
negativas produzidas pelas alterações climáticas, as crianças utilizam diferentes
estratégias de enfrentamento que, por sua vez, têm consequências em diferentes
áreas da vida dos jovens. Encontramos, por um lado, aqueles que utilizam uma es- A activista
tratégia centrada no problema (por exemplo, pensar no que um adolescente pode Greta
fazer por si próprio sobre as alterações climáticas) e, por outro lado, aqueles que Thunberg fica
utilizam uma estratégia centrada no significado (por exemplo, ter fé na humanidade emocionada
e que podemos resolver todos os problemas que enfrentamos). Ambas estas estra- durante um
debate no
tégias levam os jovens a envolverem-se em comportamentos mais pró-ambientais
Parlamento
de cuidados e proteção. No entanto, os adolescentes que utilizam uma estratégia
Europeu a 16
de sobrevivência baseada na minimização da gravidade das alterações climáticas de abril de
tendem a não se envolver em comportamentos que atenuem o problema. 2019.

32 SUPER
Quando a frustração, a
desesperança e o nervosismo
sobre a crise climática nos
paralisam, é tempo de
procurar ajuda profissional

As experiências na natureza durante a infância são


particularmente importantes, deixando uma marca
nas crianças que dura até à idade adulta. Passar tem-
po na natureza está associado a atitudes ambientais
mais positivas, maior ligação emocional ao ambien-
te, maior apreciação da beleza do ambiente, senti-
do de apego ao ambiente natural, conhecimento do
ambiente e desenvolvimento de um sentido de mo-
ralidade para com os elementos naturais. Por con-
seguinte, se esperamos que as pessoas atuem para
mitigar as consequências negativas das alterações
climáticas, é essencial que conheçam e apreciem os
ambientes naturais que, em última análise, estarão
a ajudar a preservar. Iniciativas como os banhos de
floresta (passeios em ambientes naturais, principal-
mente arborizados, ao mesmo tempo que se tem ple-
na consciência do ambiente que nos rodeia) e a tera-
pia de aventura na natureza servem a dupla função
de trazer o indivíduo de volta aos níveis funcionais
de ansiedade e, por sua vez, de aumentar os com-
portamentos de proteção da natureza. Para o fazer,
não basta apenas ter um conhecimento profundo do
ambiente, é também necessário que as pessoas este-
jam conscientes das consequências reais que as suas
ações podem ter para o ambiente.

O QUE SIGNIFICA SE EU NÃO FOR DE CARRO PARA O TRABALHO,


E FOR ANTES DE BICICLETA OU PARTILHAR O CARRO com os
meus colegas? Tornar as consequências positivas das
nossas ações na natureza mais tangíveis aumentará o
consciente do clima. Estudos recentes indicam que nosso sentido de eficácia e o nosso sentido de con-
a promoção do comportamento pró-ambiental atra- trolo das alterações climáticas, o que é em si mesmo
vés dos meios de comunicação social e dos chama- um fenómeno incontrolável individualmente. E isto
dos influenciadores pode ser um bom instrumento resultará diretamente numa diminuição palpável da
para atingir grupos populacionais mais jovens. Por ansiedade pela mudança climática.
exemplo, a participação de jovens ativistas climáti- As provas científicas atuais indicam que a eco-an-
cos (com idades compreendidas entre os 13 e os 25 siedade acerca das consequências que a crise climá-
anos) no movimento das sextas-feiras para o fu- tica tem e terá no planeta e na saúde é generalizada
turo, criado por Greta Thunberg, é motivada prin- em vários grupos populacionais. Quando a frustra-
cipalmente pela perceção de ativismo no grupo de ção, a desesperança e o nervosismo associados à crise
pares, identificação intergrupal com outros envol- climática nos paralisam, tornando a vida quotidiana
vidos na proteção do clima e norma ambiental pes- difícil, é tempo de procurar ajuda profissional. Aí
soal. Sentimentos de auto-eficácia coletiva (crença encontraremos ferramentas que nos permitirão lidar
de que juntos podemos tomar medidas significativas com a incerteza e incontrolabilidade das alterações
para travar as alterações climáticas) derivados des- climáticas a partir de um estado de espírito mais se-
tes movimentos ajudam a diminuir a frustração e a reno. Em geral, os níveis de eco-ansiedade encon-
desesperança típicas da eco-ansiedade. trados tanto em adultos como em crianças estão em
Outro instrumento emergente na luta contra a faixas funcionais que, apesar do seu desconforto, não
crise ecológica e a eco-ansiedade é reconectar as requerem intervenção psicológica. Estes níveis mo-
pessoas com os ambientes naturais, uma vez que derados de ansiedade sublinham a crescente preocu-
o contacto direto com a natureza desempenha um pação das pessoas com o estado da natureza, com o
papel importante no desenvolvimento da consciên- seu próprio bem-estar e o das gerações futuras, e são
cia ecológica e na promoção do bem-estar pessoal. essenciais para mobilizar a ação climática. e

SUPER 33
CA RO TN Í SC UU ML O

Os espanhóis
passaram de 8 kg de
consumo de carne
de vaca por ano em
2006 para 5,1 kg em
2020 e de 8,2 kg de
carne de porco em
2006 para 7,9 kg em
SHUTTERSTOCK

2020. E a tendência
continua.

34 SUPER
Poderá a humanidade manter o consumo de carne ao ritmo atual com
os desafios que coloca, tanto pelo seu impacto climático (o gado é uma
das principais causas do aquecimento global), como pela dificuldade de
satisfazer a procura crescente de um mundo cada vez mais desenvolvido
que irá necessitar de mais proteínas?

Texto de JOSÉ ÁNGEL MARTOS


Jornalista e editor

SUPER 35
M
uitos acreditam que a criação de
A pecuária pode ser
gado está a atingir os seus limi- responsável por até 14,5%
tes e é muito pouco sustentável. das emissões globais de
Portanto, para eles, a respos- gases com efeito de estufa.
ta à pergunta que introduz esta
reportagem seria, não. A voz au-
torizada que se pronunciou de
forma mais decisiva foi a de Bill
Gates: "As nações ricas devem
mudar para carne 100% sinté-
tica", recomendou ele em 2021
numa entrevista viral na revista MIT sobre o seu livro
(Como evitar um desastre climático). O magnata que

SHUTTERSTOCK
se tornou guru técnico-científico global acredita que
"pode habituar-se à diferença de gosto e a promessa das
pessoas que a produzem é que a sua carne vai saber me-
lhor no futuro".
A corrida para substituir a carne tal como a conhece- Science) calcula que se a pecuária desaparecesse comple-
mos começou há pouco mais de uma década (a empresa tamente, as emissões globais seriam reduzidas em 28%.
Beyond Meat, uma das pioneiras, foi fundada em 2009 E se o decréscimo nos produtos pecuários fosse de 50%,
nos EUA ao adquirir a tecnologia pioneira de dois pro- concentrando este decréscimo nos maiores produtores,
fessores da Universidade do Missouri) e acelerou nos as emissões poderiam ser reduzidas em cerca de 20%.
últimos anos. Isto tem sido ajudado pela confluência de Ao mesmo tempo, o movimento animal (que luta
duas preocupações públicas crescentes: as alterações pelos direitos das espécies com as quais partilhamos o
climáticas e o bem-estar animal. planeta) também tem vindo a ganhar terreno. Em Espa-
Enquanto o impacto dos combustíveis fósseis capturou nha, foi apenas este ano que explodiu o debate sobre a
a atenção dos ambientalistas durante décadas, as preo- pecuária intensiva e as chamadas "macro-fazendas". As
cupações com o enorme consumo de recursos naturais posições destes grupos têm vindo a impressionar mui-
pela pecuária e a sua pegada de carbono associada co- tos consumidores, que são cada vez mais favoráveis ao
meçaram a surgir como foco de debate em 2014, com o vegetarianismo, ao veganismo e a outras variedades de
lançamento do documentário produzido por Leonardo dietas sem carne.
DiCaprio-Cowspiracy de Kip Andersen e Keegan Ku-
ph. Nele, a influência da pecuária nos gases com efeito ENQUANTO ESTAS QUESTÕES SE DISCUTEM RUIDOSAMENTE NA
de estufa foi colocada em 51%, principalmente devido ao ARENA PÚBLICA, OS CIENTISTAS TÊM ESTADO A TRABALHAR
metano emitido pelos animais ruminantes criados para SILENCIOSAMENTE. Como resultado, começaram a sur-
consumo. Este número é agora considerado impreciso gir tecnologias nos laboratórios em todo o mundo que
e exagerado, mas mesmo assim, uma das estimativas podem constituir a base de alternativas inovadoras aos
mais amplamente aceites (publicada em 2018 na revista produtos tradicionais à base de proteínas de carne. A
SHUTTERSTOCK

A mesma técnica da
medicina regenerativa é
utilizada para a produção
de carne in vitro.

36 SUPER
SHUTTERSTOCK
Macro suinicultura.
Este tipo de instalação
pode alojar milhões de
animais, como no caso
dos macro aviários.

necessidade de opções alimentares foi também iden-


tificada por empresários e investidores, incluindo o
próprio Bill Gates. O resultado é um florescimento es- Food Tech,
petacular de novas empresas que partilham um traço
comum de querer introduzir inovações tecnológicas um novo "El Dorado"
profundas na produção de carne.
A primeira alternativa viável que os inovadores con- tecnológico?
ceberam foi imitar o sabor da carne, utilizando vegetais
com um elevado teor proteico. Os resultados são fami-
liares à maioria dos consumidores há já alguns anos,
com produtos anteriormente desconhecidos e qua-
A indústria alimentar tem sido até agora um setor bas-
tante tradicional e até conservador, mas a mentalidade
de start-up que revolucionou outras empresas começa a
se impronunciáveis como o seitan (uma preparação introduzir-se nele. Uma multidão de novos empreendedo-
alimentar à base de glúten de trigo) ou o tofu (feito a res impulsionados pela tecnologia lançaram-se nos últimos
partir de grãos de soja) a rebentarem nas prateleiras dos anos para encontrar as transformações, ou disrupções (de
nossos supermercados. Estes alimentos proteicos são acordo com o jargão da indústria) que podem resolver pro-
conhecidos no jargão como à base de plantas, uma ca- blemas enquistados. E a produção alimentar tem alguns,
tegoria que está sem dúvida a experimentar um boom desde a redução do impacto sobre o clima até ao comércio
com a chegada de outros ingredientes. justo, passando pela personalização da dieta.
Um exemplo disto é a jovem empresa espanhola "A transição vai ser uma exigência tanto dos consumidores
Heura Foods, fundada por dois jovens empresários e como da legislação", explica Beatriz Jacoste, diretora do KM
ativistas dos direitos dos animais, Marc Coloma e Ber- Zero Innovation Hub, uma plataforma baseada em Valência
nat Añanos. Fundada em 2017 e com produtos feitos que visa acelerar a transformação do setor agro-alimentar,
a partir de soja ou proteína de ervilha, incluindo ori- apoiando o investimento e reunindo as melhores práticas em
ginalidades como um chouriço 100 por cento vegetal, conferências e publicações, como o livro Fooduristic.
duplicou o seu volume de negócios no último exercício A inovação aberta é a solução que pode abrir caminho",
financeiro, de oito milhões de euros em 2020 para 17,7 prevê a perita, "e consiste na colaboração entre novos
milhões de euros em 2021. E está a conseguir entrar nas empresários e empresas mais estabelecidas, porque se
principais cadeias de supermercados europeus e mes- fossem estas últimas a ter de inovar, levaria anos a adapta-
mo no gigantesco Walmart no México. Bernat Añanos rem-se às mudanças, e estamos a ficar sem tempo". Toda
está convencido de que "os animais são uma tecnolo- esta efervescência leva muitos a falar de um novo setor, o
gia obsoleta para gerar proteína final" e explica que "os das empresas de food tech, ou seja, as empresas de tecno-
últimos cinco anos têm sido uma loucura em termos logia alimentar. O seu dinamismo palpável faz lembrar o das
do crescimento do consumo de carne de origem vege- empresas "dotcom" e é a última tendência, mesmo no para-
tal. Em Espanha tem sido muito rápido: países como a digmático Silicon Valey.
França e a Itália estão mais atrasados". Ele vangloria-se

Laboratórios em todo o mundo estão a desenvolver tecnologias


para a criação de produtos de carne alternativos aos clássicos
SUPER 37
Biopsia celular
Este produto é feito a partir de células estaminais Um pequeno número de
musculares de animais vivos, sem a necessidade de os células musculares é
sacrificar. As células estaminais são multiplicadas em extraído de um animal
por biopsia.
laboratório, colocando-as num meio de cultura que as
Diferentes tipos de
nutre e contém os elementos necessários para o seu células estaminais,
crescimento, permitindo-lhes multiplicarem-se. tais como células
estaminais esqueléticas,
adipogénicas ou
mesenquimais, podem
ser obtidas desta
forma.

Células estaminais
musculares

Placa de
Petri

Cultivo
As células estaminais são separadas e utilizadas
para produzir a cultura inicial. As células são
colocadas numa placa de Petri com um banho
de nutrientes para o seu crescimento.
ESQUEMA
DE UM BIORREATOR
De que
é feita? Vapor Ácido /
base
Agitador

Médio
A carne de cultura é feita a
Ar
partir dos mesmos tipos de
células dispostas na mesma
estrutura ou em estrutura Água de
semelhante aos tecidos animais. arrefecimento Sensores Biorreactor
Este método de produção elimina A cultura de células
a necessidade de criar e cultivar Saída estaminais é
Camisa de de água transferida para um
animais para alimentação. regulação de
Espera-se que a produção seja temperatura biorreator onde as
isenta de antibióticos e que células proliferam
resulte numa menor incidência de até às densidades
doenças de origem alimentar desejadas.
devido à não exposição a agentes Saída do
patogénicos. Vapor produto

38 SUPER
INFOGRAFÍA . AGUILERA
Formação da estrutura muscular
Os miotubos contraem-se e alinham-se em fibras musculares sólidas,
para formar microfibrilhas, fibras tecido muscular real, ao ponto São necessários cerca de
musculares e eventualmente pequenos de se assemelharem à carne 20 000 fibras para obter 200 g
filamentos de tecido muscular. À medida que estamos habituados a de carne ’in vitro’
que crescem, as células transformam-se comer.

Estima-se
que o processo
de produção
demore entre 2
a 8 semanas

Estimulação do
crescimento Outros ingredientes
Para tornar a textura e o sabor o mais próximo possível da carne
real, o músculo fabricado é misturado com gordura animal
sintetizada em laboratório, e ingredientes como sal, ovo em pó,
Fibras em
pão ralado, e sumo de beterraba para obter a cor vermelha
crescimento característica.

Nutrientes

O In-Vitro
O Meat Consortium
estima que poderia
produzir-se por cerca
de 3.500 €/tonelada
No biorreator são adicionados nutrientes
naturais, oxigénio, temperatura constante e
estimulação eléctrica.
Produção
Os primeiros produtos
Miotubos serão provavelmente
carne picada, com o
objectivo a longo
Formação prazo de obter tecido
muscular totalmente
de miotubos desenvolvido.
As células musculares Qualquer tecido
fundem-se para formar muscular animal pode
estruturas alongadas potencialmente ser
Têm um diâmetro
chamadas miotubos. cultivado através de
de 0,3 mm.
um processo 'in vitro'.

SUPER 39
Os laticínios e os ovos
de que, numa prova cega com agricultores profissionais
de abate numa aldeia de Toledo, o seu chouriço vegetal também podem ser
era indistinguível do chouriço tradicional.
As empresas que, como esta, fabricam "sucessores de substituídos.
carne" com base em espécies vegetais concentram os

SHUTTERSTOCK
seus esforços na obtenção de uma textura e sabor tão
semelhantes quanto possível, pois sabem que no final
este é o aspeto mais valorizado pelos consumidores e o
que os levará a repetir (ou não). É nisto que as suas equi-
pas de I&D estão a trabalhar, em primeiro lugar para
descobrir que proteínas vegetais se podem comportar
de forma semelhante às da carne. Procuram então re-
mover os componentes de sabor que seriam estranhos
ao consumidor que come carne e, o que é importante,
dar ao conjunto uma textura de carne.
Neste esforço, as descobertas na área das proteínas
são fundamentais para alcançar o objetivo. A Impossi-
ble Foods, uma empresa americana considerada entre
as mais inovadoras, criou um processo acelerado para
a síntese de hemo, um grupo de proteínas do qual a he-
moglobina faz parte. Em particular, separa as chamadas
O s empresários da food tech não se contentam
em procurar um sucessor para a carne, mas têm
também como objetivo a substituição dos produtos
leghemoglobinas, presentes nas raízes de leguminosas animais. O leite e os ovos são os seus principais alvos.
como a soja, e incorpora-as nas suas carnes veganas. O Uma nova empresa israelita anunciou no início deste
seu principal produto é o Impossible Burger. ano que está a trabalhar na extração de ingredientes
lácteos a partir de células de tecido da glândula ma-
MAS HÁ OUTRA FORMA DE FAZER CARNE QUE PODE PARECER mária tanto de animais como de humanos. A empresa
QUASE FICÇÃO CIENTÍFICA: A PARTIR DE ALGUMAS CÉLULAS. afirma que estes ingredientes serão "estéreis, seguros e
Isto é "carne de cultura" ou carne in vitro. Os seus totalmente personalizados". A empresa chama-se Wilk
proponentes prometem que milhões de hambúrgue- (que "brinca" ao colocar a primeira letra do milk ao con-
res podem ser feitos a partir das poucas células de um trário) e já tem uma patente americana para a produção
único animal, que nem sequer precisa de ser abatido. de leite in vitro.
Esta nova ideia teve o seu pioneiro no farmacologista Quanto aos ovos, há já algum tempo que têm vindo
holandês Mark Post, que produziu o primeiro pedaço a surgir alternativas. Uma das mais bem sucedidas é o
de carne comestível utilizando este processo em 2013. ovo líquido vegan Just Egg, vendido numa garrafa, feito
Desde então, a ideia suscitou paixões: hoje já existem a partir de uma leguminosa, o feijão mungo (feijão ver-
sessenta empresas em fase de arranque a tentar produ- de de soja). Quando cozinhado, comporta-se de forma
zi-la, que angariaram mais de 450 milhões de dólares muito similar a um ovo, por isso pode ser usado para
em financiamento. fazer omeletes, ovos mexidos ou em sanduíches. Para
Uma delas é espanhola: Biotech Foods, com sede em obter a cor amarela, é colorido com curcuma.
San Sebastian e também fundada em 2017 por Mercedes
SHUTTERSTOCK

Seitan com legumes.


Seitan é uma preparação
à base de glúten de
trigo, o que lhe deu o
pseudónimo de carne
vegetal.

40 SUPER
SHUTTERSTOCK
Carne cultivada ou in
vitro é carne que não
provém de um animal
mas da cultura de
células musculares
retiradas do animal.

O verdadeiro desafio agora é tornar a produção mais barata e


mais acessível para o consumidor
Vila, doutorada em Física de Materiais, e pelo executivo vestimento de 36 milhões de euros. Como Íñigo Charola
Íñigo Charola. Este último explica como a empresa surgiu explica, "com uma única biópsia podemos obter a carne
quando "identificámos que, para além das plantas, exis- equivalente a duzentos porcos". Esta nova tecnologia
te outra fonte de produção alternativa de proteínas, que enfrenta o desafio de obter a aprovação das autorida-
é através da tecnologia da engenharia de tecidos, que é des sanitárias. Em 2020, Singapura foi o primeiro país
utilizada na medicina regenerativa e que torna possível a onde a sua agência pública alimentar permitiu a venda
criação de órgãos ou tecidos a partir de células animais". de um produto de carne de cultura in vitro. Eram peda-
A tecnologia, embora nova na sua aplicação aos alimen- ços de galinha produzidas a partir de células de galinha
tos, é conhecida há décadas na medicina. Charola, que pela Good Meat, uma divisão da empresa californiana
exerce como CEO da empresa de biotecnologia, explica Eat Just, uma das precursoras no desenvolvimento de
o processo: "Extraímos células musculares e fazemo-las alternativas aos ovos frescos (ver caixa).
crescer e replicar-se; para isso, colocamo-las em reci- Mas há outro desafio que decidirá a sua viabilidade: o
pientes, do mesmo tipo que vemos na indústria vinícola de ser capaz de tornar a produção destas linhas celula-
ou leiteira, nos quais lhes fornecemos os nutrientes de que res, atualmente muito cara, mais barata e de a escalar
necessitam e as condições vitais de que necessitam, em industrialmente para atingir preços finais que sejam
particular uma temperatura e oxigénio constantes. Com acessíveis aos consumidores. Um estudo do Good Food
estas propriedades, as células fazem o que estão progra- Institute observou que os custos industriais nesta fase
madas para fazer: crescer, fundir e criar músculo, que é o de investigação e desenvolvimento são atualmente de-
que chamamos carne e onde reside a proteína. zenas de milhares de dólares por quilograma, mas que
em 2030, com os avanços tecnológicos necessários, po-
A CARNE "CULTIVADA" DESTA FORMA É APENAS A PARTE MUS- deriam ser reduzidos para 6,43 dólares por quilograma,
CULAR (NÃO TEM SANGUE, GORDURA OU TECIDO CONJUNTIVO), um valor muito mais viável.
pelo que é utilizada para a preparação de produtos A corrida para alcançar um mundo em que menos
transformados, se não apenas frescos. Por outras pala- animais sejam abatidos e não haja necessidade de os
vras, um lombo ou bife não é obtido in vitro, mas "um alimentar tão intensamente (com as emissões que o
hambúrguer, uma salsicha, um nugget ou um cozido", acompanham) já está em curso. Se for bem sucedida, a
nas palavras de Íñigo Charola. E quanto tempo demora previsão feita há quase um século atrás, em 1931, por
a cultivar um hambúrguer? "Cerca de quinze dias", res- ninguém menos que Winston Churchill num artigo
ponde o executivo. sobre o futuro visto a cinquenta anos pode tornar-se
As perspetivas desta tecnologia estão a aguçar o ape- realidade: "Com um melhor conhecimento das chama-
tite dos investidores. A Biotech Foods anunciou no das hormonas", imaginou o futuro primeiro-ministro e
final de 2021 a entrada no seu capital do gigante da prémio Nobel, "será possível controlar o crescimento.
carne brasileira JBS (o maior processador de carne da Então escaparemos ao absurdo de ter de criar uma ga-
América Latina) como acionista maioritário, com um in- linha inteira apenas para comer o seu peito ou asa". e

SUPER 41
NA ERUTRÍOCT EU CL NOO L O G I A

Estamos cada vez


SHUTTERSTOCK

mais próximos de
recolher e inter-
pretar toda a ativi-
dade neural. Isto
leva-nos à ques-
tão do que irá
acontecer à neu-
roprivacidade.

42 SUPER
A ERA DA

Pode parecer fição científica, mas o pensamento pode ser lido


e estamos um passo mais perto de o influenciar, graças aos
avanços da neurotecnologia. Em breve, os dados não virão
das redes sociais ou das nossas pesquisas na Internet: serão
recolhidos diretamente dos nossos cérebros. E enquanto as
grandes empresas esfregam as mãos, os cientistas avisam que é
altura de regular. Legislemos os direitos neurológicos.

Texto de DANIEL MÉNDEZ


Jornalista

SUPER 43
E
m maio de 2017, um grupo de micos conspiradores. Mas todas estas coisas já estão a ser
vinte e cinco investigadores re- testadas em animais em muitos laboratórios, incluindo
uniu-se durante três dias numa os de alguns dos presentes na reunião. Entre eles estava
sala de aula na Universidade de o anfitrião e promotor da ideia, o neurocientista espanhol
Columbia, Nova Iorque. Enge- Rafael Yuste, professor e investigador na Universidade de
nheiros, neurocientistas, físi- Columbia. Foi o autor principal de um artigo intitulado
cos, assim como especialistas Quatro Prioridades Éticas para a Neurotecnologia e Inte-
em ética e direito discutiram um ligência Artificial, que foi assinado por todos os presentes
tema que os preocupava mui- no encontro e que foi publicado na revista Nature. Nele
to: os limites éticos e legais dos aparece o conceito de neurodireitos: o quadro legal para
rápidos avanços que estão a ser proteger o cérebro e a sua atividade face aos imparáveis
feitos no campo da neurotecnologia. Ou seja, aquelas fer- avanços da neurotecnologia.
ramentas tecnológicas que servem para interagir com o cé- Na sua pesquisa, na qual ele tenta compreender co-
rebro: aquela grande "floresta escura, onde tantos explora- mo diferentes grupos de neurónios trabalham no cór-
dores se perderam" (como descrito por Ramón y Cajal, um tex visual do cérebro, Yuste e a sua equipa perceberam
dos pais da neurociência, na sua biografia Recuerdos de mi algo fascinante: eles podiam alterar a perceção dos
vida) . Graças a estes avanços, os estudiosos estão a entrar ratos. Podiam fazê-los "ver" algo que não estava à sua
no coração desta selva. É agora possível ler pensamentos, e frente. Os investigadores localizaram os neurónios que
até influenciá-los: implantar memórias, por exemplo. são ativados quando um rato olha para barras verticais
Aqueles três dias na sala de aula da universidade foram num ecrã e ensinaram os roedores a beber água quan-
uma sessão de brainstorming em que surgiram grandes do viam aquelas riscas. Depois, simplesmente ativaram
questões: que legislação deveria estar em vigor para impe- estes neurónios e os ratos beberam água, sem terem de
dir que uma pessoa alterasse a memória de outra através apresentar a imagem aos seus olhos: tinham criado uma
de um implante cerebral? Se alguém consegue ler mentes, alucinação.
como é que protegemos os nossos pensamentos? Quem No MIT (Massachusetts Institute of Technology) os
detém os direitos de autor de um sonho? Pode soar como neurologistas foram um passo mais longe: conseguiram
fição científica, delírios futuristas de um grupo de acadé- implantar memórias no cérebro de um rato.
ARCHIVE COLLECTION

No Instituto de
Tecnologia de
Massachusetts,
implantaram
memórias no
cérebro de um
rato.

44 SUPER
Uma experiência mostra
que um macaco pode
jogar um jogo de vídeo
telematicamente.

ASC
TODAS ESTAS EXPERIÊNCIAS ABREM UMA PORTA FASCINANTE mas músculo com cerca de 1.500 gramas e 100 mil milhões de
também preocupante.E os próprios cientistas envolvi- neurónios interligados: o cérebro.
dos na investigação estão cientes disso. "Temos de legislar
antes que seja demasiado tarde", concluem eles. Durante ELON MUSK JÁ ESTÁ A REALIZAR EXPERIÊNCIAS CONTROVERSAS
anos, o investigador espanhol Rafael Yuste tem vindo a COM MACACOS. Através da sua empresa Neuralink, implan-
compaginar o seu trabalho no seu laboratório - no qual tou elétrodos no cérebro dos macacos que lhes permitem
tenta explicar o código neuronal que puxa as cordas dos jogar ping pong num ecrã sem usar as mãos em nenhum
circuitos do nosso córtex cerebral - com ativismo em de- momento. Apenas com os seus pensamentos e a ajuda
fesa da neuroprivacidade e da liberdade de pensamento. destes elétrodos, Pager, um macaco, pode interagir com
E o seu objetivo é elevado: defende a inclusão dos direi- a máquina. Quando acerta, recebe um gole de batido de
tos neurológicos na Declaração Universal dos Direitos do banana como prémio. Foi recentemente anunciado um
Homem. Não esquecendo que o original foi assinado em processo judicial contra o magnata e a sua start-up neu-
Paris em 1948, será altura de uma atualização? Muitos rotecnológica: pelo menos oito destes macacos morreram
acreditam que sim. E é impressionante que sejam precisa- nas experiências. Mas por mais perturbador que isto seja,
mente muitos dos cientistas encarregados dos avanços da as suas implicações vão muito além do abuso de animais.
neurotecnologia que viram a luz do dia em primeiro lugar. Entre outras coisas, os investigadores estão alegadamente
Perceberam que na sua investigação estão as sementes de a trabalhar num chip sem fios, que, implantado no cére-
grandes avanços para a humanidade. Uma promessa de bro, permite que a mente seja ligada a um computador.
cura de doenças, sim... Mas com um lado negro. Quando isto funcionar, teremos criado uma espécie de
A sua preocupação? Que nem todos os envolvidos na sobre-humano cujas capacidades cognitivas serão me-
revolução neurotecnológica são tão cuidadosos como os lhoradas com a ajuda da inteligência artificial. Promissor
cientistas que trabalham em laboratórios em universida- ou perturbador, dependendo da forma como se olha para
des como o MIT, Stanford ou a Universidade de Columbia. ele, mas não esqueçamos que também funciona na dire-
Isto é compreensível quando olhamos para outros joga- ção oposta: com a ajuda da inteligência artificial e de um
dores num campo que está prestes a revolucionar o nosso scanner cerebral portátil, os nossos pensamentos podem
conhecimento e capacidade de influenciar esse pequeno ser expostos.

Que legislação deve estar em vigor para impedir que uma pessoa
altere a memória de outra através de um implante cerebral?
SUPER 45
A Neurotecnologia
procura melhorar a
qualidade de vida
das pessoas
através do acesso
e interação com os
processos e
informação do
cérebro.
SHUTTERSTOCK

O montante global investido no setor excede os 19 mil permitem às pessoas que perderam um braço ou uma
milhões de dólares, tanto do setor público como do priva- perna o poder de manejar uma prótese com o seu cérebro.
do. Em 2019, a Microsoft investiu $1 milhão de dólares na É mesmo possível sentir frio ou calor através da prótese,
OpenAI, uma empresa co-fundada por Elon Musk. O Face- que comunica diretamente com a mente. Outro exemplo:
book pagou uma quantia desconhecida - entre $500.000 BrainGate, um implante cerebral construído pela empre-
e $1 milhão - pelo CTRL-Labs, especializado em interfaces sa Cyberkinetics, concebido para ajudar pacientes com
cérebro-computador não invasivas. O Facebook Reality esclerose lateral amiotrófica ou lesão da medula espinal.
Labs, entretanto, está a trabalhar num dispositivo seme- Graças a ele, uma pessoa que não conseguia falar ou mo-
lhante a um capacete que utiliza luzes infravermelhas para ver-se pode agora escrever e enviar e-mails, navegar no
aceder ao cérebro. Já é capaz de ler palavras que o sujeito Google ou fazer compras na Amazon com a ajuda de uma
está a pensar. Neste momento são apenas coisas simples, tábua. No Campeonato Mundial de 2014 no Brasil, o pon-
tais como casa, escolher, apagar ou nos próximos anos. tapé de abertura foi dado por um jovem tetraplégico com
Muito útil para ajudar pessoas com dificuldades de fala. a ajuda de um exoesqueleto controlado por um destes in-
Mas leva à cautela ao ver quem está por detrás e, sobre- terfaces cérebro-computador .
tudo, qual a empresa que a dirige. A conhecida empresa A neurocirurgia é também utilizada com sucesso no tra-
de Mark Zuckerberg é tristemente célebre pelo seu abuso tamento e estudo da epilepsia. Um pioneiro absoluto neste
das regras mais básicas (e também as mais complexas) de campo é o neurocirurgião canadiano Wilder Penfield. Já
respeito pela privacidade. Se os seus algoritmos tiverem na década de 1930, tratou os seus pacientes removendo
agora acesso aos nossos pensamentos e memórias, os de- as pequenas regiões do cérebro que desencadeavam as
bates atuais sobre privacidade parecerão uma piada em convulsões. Mais de mil pacientes foram submetidos a ci-
comparação com a porta que se abre. rurgia cerebral com sucesso: a epilepsia deixou de ser uma
doença incurável, e pelo caminho Penfield criou um mapa
TAIS DISPOSITIVOS TÊM SIDO UTILIZADOS NO CAMPO MÉDICO dos córtices sensoriais e motores do cérebro. Ainda hoje
HÁ MUITOS ANOS. Por exemplo, podem ser utilizados para é utilizado tal como ele o desenhou. Também descobriu,
criar implantes cocleares que ajudam as pessoas com per- entre outras coisas, que podia desencadear memórias nos
da auditiva grave (surdez) a ouvir. A estimulação cerebral seus pacientes com pequenos choques elétricos no lóbulo
profunda é utilizada para ajudar as pessoas com doença de temporal; provou que podia recuperar eventos há muito
Parkinson a manter uma mobilidade adequada e a aliviar esquecidos pelos seus pacientes. Se o trabalho deste neu-
outros sintomas, tais como tremores. E eles funcionam. rocirurgião pioneiro pode ser comparado a uma caravela a
Também são prometedores no tratamento da esquizo- caminho da América, os avanços atuais na neurocirurgia
frenia, autismo, demência, Alzheimer, depressão... Ou são mais como um passeio de foguetão.

Em Espanha temos uma "carta de direitos digital",


embora este texto ainda não tenha sido traduzido em lei
46 SUPER
Do Juramento de
Hipócrates ao
Juramento Tecnocrático
D edicarei a minha vida ao serviço da humanidade", "respei-
tarei os segredos que me foram confiados", "respeitarei
sempre a vontade dos meus pacientes" .... Estes são alguns dos
aspetos do juramento de Hipócrates a que os médicos se com-
prometem quando ingressam na profissão. A Fundação Neu-
rorights da Universidade de Columbia acredita que é tempo de
promulgar o Juramento Tecnocrático para proteger os direitos
humanos e promover a inovação ética em neurotecnologia e in-
teligência artificial. Aqui estão os seus sete princípios básicos:

Não maleficência. Isto refere-se à obrigação de não infligir in-


tencionalmente danos.
Beneficência. Contribuir na medida do possível para o bem
comum com o trabalho realizado.
Autonomia. Estabelecer que nada pode ser feito sem o con-
sentimento voluntário das pessoas envolvidas numa dada si-
tuação.
Justiça. Procurando assegurar que a aplicação da neuro-
tecnologia gere resultados justos e imparciais, evitando, por
exemplo, os preconceitos dos algoritmos.
Dignidade. Assegurar que todas as pessoas são tratadas com
respeito e que a sua integridade é salvaguardada.
E PELO CAMINHO ABREM-SE INÚMERAS VANTAGENS PARA A MEDICI- Privacidade. Remover toda a informação sensível e identificá-
NA E NEUROLOGIA, MAS TAMBÉM RISCOS DE LONGO ALCANCE para a vel dos dados recolhidos por tecnologia.
nossa privacidade. Em algumas escolas primárias na Chi- Transparência. Assegurar que os algoritmos utilizados são
na, por exemplo, os estudantes são obrigados a usar um tão transparentes e corretivos quanto possível.
capacete armado com elétrodos que medem o seu nível de
concentração. Estes dados são transmitidos para o com-
SHUTTERSTOCK

putador do professor e comunicados aos pais sem qual-


quer consentimento das crianças. Medo? A sua utilização,
legítima ou não, pode ir muito mais longe. E há poucas
dúvidas de que assim será.
Jack Gallant é um cientista da Universidade de Berkeley (Ca-
lifórnia) que investiga como funciona o sistema visual huma-
no. Usando imagens de ressonância magnética (fMRI na sua
sigla inglesa) e algoritmos de inteligência artificial treinados
em vídeos do YouTube, consegue que a máquina mostre o que
a pessoa está a ver com um grau surpreendente de precisão
(mesmo com alguns bugs). Isto abre a porta à descodificação
de grande parte da nossa atividade cerebral. De facto, utili-
zando uma técnica baseada em exames de ressonância mag-
nética, uma equipa de investigadores japoneses está a tentar
desenvolver uma máquina que possa adivinhar os nossos so-
nhos. Nada, num futuro não muito distante, impediria que
estas ferramentas de descodificação de imagens fossem utili-
zadas para interrogar, digamos, os prisioneiros de guerra. Ou
que uma empresa privada utilize estes algoritmos ao contratar
uma pessoa: saber o que um candidato está a pensar pode ser
muito mais útil do que digitalizar o seu CV! Para não mencio-
nar o neuromarketing: a utilização destas tecnologias para in-
fluenciar as nossas decisões de compra é uma verdadeira mina
de ouro.

NOS PRÓXIMOS ANOS, A PALAVRA "NEURO" FUNCIONARÁ COMO UM


Imagem do deus grego da medicina Asclépio
PREFIXO PARA UM GRANDE CATÁLOGO DE TERMOS: neurotecnolo- (Esculápio para os antigos romanos), a quem o
gia, sim, e com ela, neurodireitos, neurocapitalismo, neu- juramento de Hipócrates se refere.
roprivacidade..., até mesmo neurogaming. Embora ainda
existam obstáculos para que dê o salto do laboratório para

SUPER 47
Formas de aceder ao cérebro
D esde implantar um elétrodo
diretamente no cérebro, até uma
imagem de ressonância magnética,
que novos elétrodos sejam implantados
com uma precisão sub-milimétrica (ou
seja, menos de um milímetro). Outra
vezes envolve uma duração mais longa da
intervenção.
As técnicas não invasivas, por outro
passando por um capacete que interpreta técnica invasiva utilizada para combater lado, não entram de todo em contacto
os impulsos neuronais, há muitas o Parkinson é a estimulação cerebral com o cérebro. Algumas passam por
maneiras de aceder ao cérebro. Uma profunda (DBB na sua sigla inglesa): usar um capacete ou fita para a cabeça
diferença fundamental é a que existe através de uma pequena abertura no e ligar o cérebro a um computador.
entre as tecnologias que são invasivas, crânio, o neurocirurgião coloca pequenos Podem ser utilizados para observar
que requerem cirurgia, e as que não o elétrodos ativados por um pequeno o que se passa no interior, ou para
são. As primeiras estão cada vez mais neuroestimulador, que gera a corrente melhorar a nossa atividade cognitiva.
difundidas no campo médico, para tratar elétrica e é normalmente colocado Fora da sala de operações, poderiam
a epilepsia ou a doença de Parkinson. debaixo da pele perto da clavícula. tornar-se os dispositivos eletrónicos
Podem implantar uma placa de elétrodos Os cientistas utilizam por vezes estas do público. É aqui que soam os sinais
diretamente na superfície do cérebro, intervenções para aprofundar os seus de alarme: o nível de dados que
para monitorizar ou estimular a parte estudos académicos, o que mais uma vez as empresas tecnológicas podem
do cérebro associada a convulsões conduz a debates controversos sobre o recolher sobre nós está a dar um salto
epiléticas em cada paciente. Outra consentimento do paciente e possíveis gigantesco. Será que vamos ler as letras
técnica, a estereoencefalografia, permite riscos acrescidos, uma vez que muitas pequenas antes de assinarmos?

ARCHIVE COLLECTION
Em algumas escolas na China,
líder em inovação em inteligência
artificial, as bandas de deteção
de atenção já estão a ser
testadas em crianças.

as nossas casas (e centros comerciais). Muitas das expe- damental, para estabelecer o desenvolvimento científico e
riências mencionadas exigem que a máquina seja treina- tecnológico ao serviço das pessoas". Os nossos dados neuro-
da sobre um assunto específico. Nem todos nós temos os lógicos adquirem o mesmo estatuto na constituição chilena
mesmos neurónios ativados pela visão de uma cadeira, que os órgãos doados: é proibido traficá-los ou manipulá-
por exemplo. À medida que mais dados forem recolhidos, -los. Embora não tenham o estatuto de lei, a Organização
mais próxima a tecnologia chegará a uma compreensão para a Cooperação e Desenvolvimento Económico adotou
universal da mente. É também uma questão de tamanho. em 2019 uma Recomendação para uma Inovação Responsá-
As máquinas de ressonância magnética pesam toneladas e vel em Neurotecnologia, que reconhece os riscos relaciona-
são tão grandes como uma sala. Com um scanner cerebral dos com estes desenvolvimentos tecnológicos e a nossa pri-
portátil, no entanto, as coisas mudam muito. vacidade e liberdade de pensamento. Em Espanha, já existe
Face a um futuro mais próximo do que parece, alguns co- uma "carta de direitos digital", embora ainda não tenha sido
meçaram a alterar as suas leis. O Chile foi um pioneiro: em traduzida em lei. A era da neuroprivacidade e dos direitos
outubro de 2021 aprovaram a lei "Modificar a Carta Fun- neurológicos chegou. Bem-vindo ao século XXI. e

48 SUPER
TECNOLOGIA

COMO
SOBREVIVER A UM

BLACK UT
TECNOLÓGICO
ELETRICIDADE, RÁDIO, INTERNET, REDES, FORNECIMENTOS...

Não seria a primeira vez que experimen-


tariamos um "apagão" global. Contudo,
a hiperconetividade do mundo atual é tal
que, se isso acontecesse hoje, os seus
efeitos seriam devastadores.
Um apagão de
SHUTTERSTOCK

Texto por SERGIO PARRA energia global


poderia ter
consequências
graves para a
população. Mas
será realmente
possível uma tal
situação?

SUPER 49
GETTY

A
pandemia da COVID-19, os realidade? Devemos tomar consciência a esse respeito?
problemas de abastecimento Devemos desenvolver um procedimento para lidar com
de algumas matérias-primas, um possível "grande apagão"?
a escalada dos preços da ener-
gia e a ação militar da Rússia JÁ TIVEMOS EXPERIÊNCIA DE OUTROS "APAGÕES". DESDE SOBRE-
contra a Ucrânia funcionaram CARGAS DEVIDAS A PICOS DE PROCURA, a falhas técnicas ou
como a tempestade perfeita acidentes, as causas de um possível apagão de energia
para nos incutir a sensação de podem ser muito diversas. De facto, já sofremos no pas-
que um cenário apocalíptico sado apagões de intensidade variável, embora sempre
sob a forma de um apagão tec- locais e de curta duração.
nológico por tempo indefinido Em média, a cada quatro meses, os Estados Unidos so-
poderia não só ser possível, mas até provável. A ideia frem um apagão suficientemente significativo para dei-
foi mesmo alimentada em outubro de 2021 pela Minis- xar pelo menos meio milhão de casas sem eletricidade.
tra da Defesa austríaca Klaudia Tanner, que afirmou que Por exemplo, a 13 e 14 de julho de 1977, nove milhões
o apagão, caso ocorresse, afetaria não só os serviços da de pessoas na cidade de Nova Iorque foram deixadas às
Áustria, mas também os de toda a Europa. escuras no que muitos chamaram o apagão mais grave
As palavras de Tanner foram de facto preocupantes, da história do país. Foi causado por um raio em Bucha-
porque as consequências imediatas de um apagão desta nan South, uma subestação elétrica no rio Hudson, bem
natureza traduzir-se-iam em graves problemas de forne- como por um segundo raio que afetaria duas linhas de
cimento de energia, problemas de comunicação, escassez transmissão de 345 kV. O corte de energia também le-
de alimentos, bem como em problemas de segurança pú- vou a saques em toda a cidade que resultaram na maior
blica. Mas até que ponto poderia este cenário tornar-se detenção em massa de Nova Iorque: 3776 pessoas. Uma

Em média, a cada quatro meses, os Estados Unidos sofrem um


apagão que deixa meio milhão de casas sem eletricidade
50 SUPER
década mais tarde, a 13 de março de 1989, seis milhões de
cidadãos sofreram outro corte de energia no Quebeque,
Canadá, devido a uma tempestade geomagnética.
Em 2003, uma sobrecarga do sistema causada por um
erro de software no sistema de alarme de uma empresa
de energia também fez com que grande parte da popu-
lação do nordeste dos Estados Unidos e Canadá enfren-
tasse um corte de energia que durou até duas semanas.
A nível internacional, o pior apagão da história re-
cente ocorreu no norte da Índia a 30 de julho de 2012,
afetando 300 milhões de pessoas em nove estados, in-
cluindo a região da capital da Índia, Nova Deli.
Estes tipos de apagões locais de curta duração estão
a tornar-se mais frequentes devido a condições meteo-
rológicas extremas causadas pelas alterações climáticas.
Por exemplo, em fevereiro de 2021, as tempestades de
inverno no Texas congelaram as turbinas eólicas e os
painéis solares, deixando 4,5 milhões de casas e empre-
sas sem energia, muitas delas durante vários dias.
Os apagões são também cada vez mais gravosos para
uma sociedade que está mais interligada e digitalizada
Uma multidão de do que há alguns anos atrás. Dada a nossa tecnologia
nova-iorquinos atual, ficar sem energia significaria também ficar sem
dirige-se para casa Internet, bem como sem o complexo ecossistema de
durante uma falha ferramentas e aplicações que dela dependem. Assim, se
de energia após houvesse um apagão global e duradouro, poderíamos
um raio ter atingido ficar em sérios apuros.
uma central
elétrica, a 3 de EXISTE REALMENTE A PROBABILIDADE DE UM APAGÃO? APESAR
julho de 1977.
DAS PALAVRAS ALARMISTAS DA MINISTRA DA DEFESA AUSTRÍACA,
os apagões globais (ou pelo menos os apagões continen-
tais ou apagões que afetam simultaneamente muitos paí-
ses) são altamente improváveis. Não há qualquer indica-
ção de que tais apagões possam ocorrer e pôr em perigo
a nossa estabilidade económica e social devido à própria
forma como o sistema foi concebido: normalmente exis-
tem reservas de energia quando uma fonte, por exemplo
GETTY

As tempestades de inverno em
2021 congelaram as turbinas
eólicas no Texas, deixando
milhões de casas sem energia
durante vários dias.

SUPER 51
SHUTTERSTOCK

A rede elétrica europeia é


composta por seis sistemas
isolados que poderiam
continuar a funcionar
independentemente se um
deles falhasse.

uma central nuclear, eventualmente falha. Assim, um res não permite aos espanhóis ser totalmente auto-su-
bom lugar para viver se ocorresse um apagão global seria ficientes.
precisamente a Europa, uma vez que a rede elétrica eu- Por conseguinte, é improvável que todos ou muitos
ropeia é a consequência de uma acumulação progressiva dos sistemas falhem em diferentes regiões e países ao
de vários sistemas elétricos individuais. A rede é com- mesmo tempo. No entanto, uma equipa de investigado-
posta por seis sistemas isolados entre si que podem con- res da Universidade de Valladolid desenvolveu um mo-
tinuar a funcionar mesmo que um ou outro falhe: os da delo informático para a análise prospetiva dos recursos
região da Europa Continental, das regiões Báltica, Nórdi- energéticos globais, recentemente publicado em Ener-
ca, Britânica, Irlandesa, Islandesa e Cipriota. Esta diver- gy, cujos resultados mostram que o mercado energético
sificação energética consubstanciada numa rede de mais global poderia estar sujeito a tensões graves entre 2020
de 307.503 km, fornecendo fornecimento de eletricidade e 2030. Tais estudos, contudo, não devem servir para
a mais de quinhentos milhões de utilizadores, evitaria o alarmar, mas sim para identificar as mudanças que pre-
caos total no continente. cisam de ser adotadas progressivamente a fim de res-

ESPANHA, POR SUA VEZ, TEM VANTAGENS E DESVANTAGENS


QUANDO SE TRATA DE SOBREVIVER A UM APAGÃO. Por exem-
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plo, imagine uma escassez de fornecimento de gás na


Europa. Nesse caso, Espanha seria pouco afetada por-
que um quarto do seu abastecimento provém da Argé-
lia. Além disso, é possível que o gás natural liquefeito
(GNL) possa ser transportado em navios especiais cha-
mados navios-tanque, tal como defendeu em diversas
ocasiões o Ministro dos Negócios Estrangeiros, União
Europeia e Cooperação, José Manuel Albares. Por outro
lado, se a rede elétrica espanhola entrasse em colapso,
o país poderia ficar muito isolado porque existem pou-
cas interligações com a França e a capacidade instalada O efeito 2038 é um apagão informático previsto para 19 de janeiro de
das centrais hidroelétricas, renováveis, a gás e nuclea- 2038 às 3:14:07 UTC que podería afetar as comunicações digitais.

52 SUPER
ponder aos novos desafios energéticos. Um mundo sem
Um exemplo paradigmático nas comunicações di-
gitais é o efeito 2038 ou Y2K38, um evento que pode- ligação à Internet
ria comprometer o funcionamento de alguns sistemas
operativos, dispositivos e software. O Y2K38 é um apa-
gão informático que terá lugar a 19 de janeiro de 2038
às 3:14:07 UTC (Espanha iria experimentá-lo uma hora
O certificado da IdentTrust DST Root CA X3 é um certificado
de autenticação que permite uma ligação entre um com-
putador e o servidor da Internet. O problema é que se tornou
mais tarde). A origem do problema reside no facto de obsoleto em 30 de setembro do ano passado, tornando im-
dispositivos, aplicações e sistemas baseados numa ar- possível a ligação à Internet de pelo menos um terço de todos
quitetura de 32 bits não suportarem referências tempo- os computadores existentes no mundo. O problema poderia
rais posteriores: ou seja, o número máximo de combi- ser resolvido criando atualizações de software para dispositi-
nações suportadas por 32 dígitos binários é de 4 294 967 vos como iPhone e iPad com iOS 9 ou versões anteriores, Win-
296. Como a maioria dos processadores conta o tempo dows XP Service PACK 2 ou anteriores, ou consolas de jogos
a partir de 1 de janeiro de 1970, a sua cronologia só po- PlayStation 3 com versão de Firmware 5.00 ou anteriores.
de remontar a 13 de dezembro de 1901 (com combina-
ções de valores negativos) ou 19 de janeiro de 2038 (com

SHUTTERSTOCK
combinações de valores positivos). Este problema já
está identificado no nosso horizonte, pelo que seremos
capazes de lidar com ele quando chegar a altura sem
qualquer problema, graças a atualizações do sistema ou,
mais provavelmente, substituindo a arquitetura de 32
bits pela arquitetura de 64 bits.

O APAGÃO INTENCIONAL DA RÚSSIA. Ironicamente, um dos


mais importantes apagões tecnológicos da atualidade
está a ser deliberadamente levado a cabo: a tentativa
das grandes empresas tecnológicas de mergulharem a
Rússia num grande inverno digital a fim de a fazer parar
as suas ações militares contra a Ucrânia.
A Ucrânia tem o apoio e a simpatia de grande parte Embora uma
do mundo, enquanto a Rússia está submersa em san- falha global da
ções económicas e tecnológicas. No entanto, ao con- ligação à
Internet não
trário de outras guerras, as sanções tecnológicas são
pareça viável, a
agora mais relevantes do que nunca. Por essa razão, o
possibilidade
vice-primeiro-ministro da Ucrânia, Mykhailo Fedo- existe.
rov, chegou ao ponto de tweetar apelos à Apple e Tim
Cook para bloquear o acesso à App Store na Rússia; ao
Google e ao seu CEO Sundar Pichai, e ao YouTube e à
sua CEO Susan Wojcicki para eliminar a plataforma dos
meios estatais russos; ou à Meta e Mark Zuckerberg
para bloquear o acesso ao Facebook e Instagram. Em- global se considerar que existe uma emergência. Para
bora Fedorov não tenha conseguido tudo o que pediu, tal, contaria com a sua própria "Internet": RuNet. Uma
a Apple deixou de vender produtos na Rússia, removeu rede nacional, onde os utilizadores só poderão ligar-se
a Apple Pay no país e removeu as aplicações de notícias a sítios e nodes localizados na Rússia. Para que RuNet se
controladas pelo Estado russo da sua App Store fora torne uma realidade, estão também a ser feitos investi-
da Rússia. O YouTube, entretanto, está também a re- mentos na criação de versões próprias dos serviços mais
mover a plataforma dos meios de comunicação social utilizados, como a Wikipédia, que seria substituída por
controlados pelo Estado russo na Europa, enquanto o uma versão on-line e digitalizada da Grande Enciclopé-
Google e o YouTube deixaram de monetizar anúncios dia Russa. Além disso, a nova Lei da Internet Soberana
em sítios e canais controlados pelo Estado russo. O tornaria obrigatória a venda de telemóveis no país com
Meta está também a restringir o acesso aos meios de aplicações pré-instaladas e aprovadas pelo governo
comunicação social russos controlados pelo Estado no russo.
Facebook e Instagram na UE.
Paralelamente, a Rússia tem vindo a desenvolver há ENTRE 15 DE JUNHO E 15 DE JULHO DE 2021, FOI REALIZA-
vários anos alternativas para viver à margem das co- DO UM TESTE PILOTO BEM SUCEDIDO para desconectar a
municações digitais globais e assim resistir às ofensivas Rússia da Internet, sem que a população se aperce-
digitais do Ocidente. A 1 de novembro de 2019, entrou besse de quaisquer alterações. De acordo com Karen
em vigor a Lei da Internet Soberana, que dá à Roskom- Kazaryan, diretora da empresa analítica Internet Re-
nazor, a organização que controla as telecomunicações search Institute, estes testes constituiram uma de-
no país, o poder de desligar as ligações da Rússia à rede monstração de que a Rússia estava a avançar com os

A Rússia está a desenvolver a sua própria "Internet", RuNet, onde


os utilizadores só poderão conectar-se a sites de origem russa
SUPER 53
NASA

Embora seja uma


possibilidade
remota, uma
tempestade solar
massiva poderia ser
a causa mais
provável de um
apagão global.

54 SUPER
seus planos para criar a RuNet, após o hiato devido à O Evento Carrington
pandemia da COVID-19, embora ela não acredite que
ela esteja operacional a curto prazo.
Assim, os conflitos modernos serão cada vez mais as-
sociados a apagões tecnológicos mais ou menos graves,
A última tempestade solar massiva teve lugar a 1 de setem-
bro de 1859. Na manhã seguinte ao que agora é conhe-
cido como o "evento Carrington", os fios do telégrafo foram
porque a Internet é vital para as comunicações, econo- afetados, causando picos de energia que incendiaram alguns
mia e propaganda. Mesmo os Estados mais totalitários gabinetes de telégrafo.
tentarão intervir nestas tecnologias a fim de permane- Em 1859 não havia infraestruturas elétricas suficientemen-
cer no poder. Não é em vão que o último relatório da Ac- te importantes ou complicadas para causar problemas reais,
ces Now, um grupo internacional sem fins lucrativos, pelo que a tempestade solar, embora intensa, não foi mais do
revela que só em 2020 houve pelo menos 155 interrup- que um evento anedótico. No entanto, na sociedade atual de-
ções da Internet em 29 países diferentes. pendente da eletricidade, somos muito mais vulneráveis a este
tipo de eventos.
GUIA DE SOBREVIVÊNCIA EM CASO DE APAGÃO GLOBAL. Em- A má notícia é que não temos qualquer previsão sobre
bora a possibilidade de um apagão global de energia e/ quando poderá ocorrer o próximo evento Carrington. O nosso
ou tecnologia ainda seja remota, não podemos eliminar melhor palpite, com base em dados reconhecidamente muito
completamente a sua possibilidade, especialmente se a limitados, é que uma tempestade solar semelhante atinge a
causa do apagão for de origem natural. Nesse sentido, Terra cerca de uma vez em cada meio século.
uma tempestade solar massiva poderia ser a causa mais

SHUTTERSTOCK
provável de um apagão global.
As erupções solares podem perturbar temporaria-
mente a atmosfera superior, criando interrupções na
transmissão de sinal, por exemplo, de um satélite GPS
para a Terra. Outro fenómeno produzido pelo Sol é a
chamada ejeção de massa coronal ou CME, que são ex-
plosões que provocam a projeção de partículas e flutua-
ções eletromagnéticas na atmosfera terrestre que tam-
bém podem induzir flutuações elétricas ao nível do solo
capazes de danificar os transformadores nas redes de
energia em todo o planeta.
Até agora, as tempestades solares têm sido de baixa
intensidade, mas os seus efeitos têm estado longe de
ser negligenciáveis. Por exemplo, uma enorme erup-
ção solar a 4 de agosto de 1972 destruiu as comunica-
ções telefónicas de longa distância em todo o Illinois,
nos Estados Unidos. Esse evento, de facto, obrigou a
AT&T a redesenhar o seu sistema de energia para cabos
transatlânticos. Uma ocorrência semelhante em 13 de
março de 1989 causou tempestades geomagnéticas que No caso de uma falha total de energia, é essencial ter um kit de
interromperam a transmissão de energia da estação ge- sobrevivência como o aqui retratado.
radora Hydro Quebec no Canadá, deixando sem energia
a maior parte da província e mergulhando seis milhões
de pessoas na escuridão durante nove horas.
ou congelador deixará de funcionar. Um abre-latas é
NO CASO DE UM APAGÃO GLOBAL DEVIDO A UMA TEMPESTADE essencial neste caso. Para aquecer os alimentos, seria
SOLAR DE ALTA INTENSIDADE, a primeira coisa a fazer seria necessário um fogão que funcionasse com propano ou,
abrir a torneira da banheira, para recolher uma grande idealmente, com energia solar. Existem também purifi-
quantidade de água antes de o abastecimento ser corta- cadores de água portáteis movidos a energia solar, que
do. Felizmente, o nosso telemóvel continuaria a funcio- seriam muito úteis.
nar durante mais algum tempo porque as companhias As pilhas são essenciais na eventualidade de um
telefónicas terão geradores de energia de emergência. apagão porque fornecem energia instantânea para
No entanto, seria aconselhável não o utilizar para fazer dispositivos de baixa potência, tais como uma lanter-
chamadas, exceto em caso de emergência, de modo a na ou um rádio para receber comunicações ou alertas
não sobrecarregar as linhas. de emergência. As lanternas e rádios que funcionam
É também aconselhável limitar a utilização do automó- a dínamo, também disponíveis comercialmente, são
vel ou qualquer outro veículo de transporte para evitar certamente uma opção mais interessante. Finalmen-
a escassez de combustível, bem como o possível colapso te, recomendam-se kits de primeiros socorros, co-
do sistema de iluminação pública, incluindo semáforos. bertores ou sacos de dormir. E, dado que a situação
Em termos de alimentos, a prioridade deve ser da- pode durar muito tempo e podemos estar a entrar
da aos produtos enlatados e secos porque o frigorífico num novo mundo do tipo Mad Max, não há nada co-

No caso de um apagão global, a primeira coisa a fazer seria encher


a banheira com água antes de o abastecimento ser cortado
SUPER 55
S A Ú D E

A EVOLUÇÃO DA COMUNICAÇÃO EM MATÉRIA DE SAÚDE

EU COMPREENDO
O MEU MÉDICO!
56 SUPER
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Ficou provado que à
medida que a comunicação
entre o paciente e o
médico melhora, também
melhora a evolução do
estado do paciente.

Termos desconhecidos, breves explicações baseadas em tecnicidades, falta de informação...


Há já alguns anos que a comunicação como ferramenta terapêutica tem sido introduzida no
mundo médico, juntamente com uma abordagem mais humana e horizontal da relação pessoal
de saúde-paciente para ultrapassar barreiras de comunicação como estas. Atualmente,
novas estratégias ajudam estes dois grupos a compreenderem-se mutuamente e, sobretudo,
a tornarem o conteúdo fornecido muito mais acessível quando é necessário um tratamento,
criando ao mesmo tempo uma relação mais estreita com os profissionais de saúde.

Texto de HENAR L. SENOVILLA

SUPER 57
A atual redação dos
relatórios médicos é
quase incompreensível
para qualquer
paciente.

G
abriel tem nove anos de idade. ção e menos ansiedade. Quando a operação terminou, a
Desenvolveu uma apendicite, equipa médica saiu novamente para lhe dar novas infor-
quase peritonite, de um dia mações sobre como tudo tinha corrido. Porquê? O que
para o outro. Com um eleva- mudou na comunicação entre o pessoal de saúde e o pa-
do nível de infeção e sintomas ciente nos últimos anos? Porque é agora comum termos
preocupantes, foi internado acesso a explicações sobre as nossas doenças e tratamen-
com urgência para ser opera- tos de uma forma mais inteligível e o pessoal de saúde é
do o mais rapidamente possí- mais acessível?
vel. Uma operação de rotina,
dado o número de operações NOS ÚLTIMOS ANOS, A COMUNICAÇÃO DOS CUIDADOS DE SAÚDE
deste tipo, e em comparação TORNOU-SE UMA PARTE VITAL DA PRÁTICA CLÍNICA. Enquanto
com as cirurgias com risco de há décadas atrás, nem a informação nem a forma como
vida realizadas diariamente nos nossos hospitais, mas era fornecida era valorizada nos processos de cuidados
não sem complicações por tratar-se da zona abdominal de saúde, nas últimas décadas foi demonstrado o poten-
e pelo estado avançado da infeção. cial terapêutico tanto do conteúdo que o pessoal de saúde
Minutos antes de ser transferido para a sala de operações, transmite ao paciente como a forma como esta comuni-
o cirurgião que ia realizar a operação veio à sala para ex- cação tem lugar, tendo sido desenvolvidas várias estraté-
plicar à criança e à sua mãe que tipo de operação ia reali- gias para a promover.
zar. O início da conversa pareceu algo saído de um filme "Historicamente, sempre houve a opção de tratar e de
de fição científica: "Vamos realizar uma operação lapa- cuidar, mas a partir de um modelo muito vertical. Desde
roscópica monoporto para apendicectomia aguda fleg- o curandeiro aos primeiros médicos que tinham conhe-
monosa". Mas ele traduziu imediatamente: "E isto signi- cimentos sobre doenças e sabiam como lidar com elas,
fica que vamos fazer uma incisão na zona do umbigo para os profissionais de saúde aplicavam tratamentos com a
remover o apêndice de lá, limpar a infeção e manter as melhor intenção possível e com a informação certa, mas
feridas internas e externas tão pequenas quanto possível". sem qualquer tipo de explicação aos pacientes, possi-
Gabriel desceu à sala de operações mais calmo e a mãe bilidades de negociação ou intervenção na tomada de
enfrentou o resultado da operação com mais informa- decisões", explica Álvaro Ruigómez, chefe da Secção de

58 SUPER
SHUTTERSTOCK
A língua como
barreira
A Universidade Pompeu Fabra organiza periodicamente a
conferência Comunicação, linguagem e saúde , que inves-
tiga novas estratégias para melhorar a comunicação com os
pacientes. Uma das questões mais discutidas neste evento é a
compreensibilidade dos relatórios médicos, ou seja, o desafio
de tentar adaptá-los tanto quanto possível a um registo mais
acessível sem substituir a terminologia médica mas simplifi-
cando a linguagem especializada para que a informação pos-
sa ser compreendida, sem perder o rigor ou banalizá-la.
O grupo IULATERM (acrónimo de Lexicon, Terminologia,
Discurso Especializado e Engenharia Linguística) desta uni-
versidade, no âmbito do projeto RecerCaixa JUNTOS, inves-
tigou como os relatórios médicos apresentam uma grande
opacidade semântica, abuso de anglicismos e abreviaturas
técnicas, erros ortotipográficos, falta de conectores e abuso
do uso de formas reflexivas ("administram-se doses de", "re-
fere-se a mal-estar"...), características que dificultam a com-
preensão, despersonalizam a informação e estabelecem uma
distância pouco saudável entre o paciente e o pessoal médico.
Para ultrapassar estas barreiras, este grupo publicou manuais
e lançou uma aplicação para melhorar a qualidade da redação
de relatórios.

Anestesia do hospital Ramón y Cajal e membro da Uni- enviados testes... Mesmo às crianças. Também lhes é dito
dade de Coordenação de Transplantes. "Durante séculos, o que lhes vai ser feito, como vai ser a operação, quanto
esta relação paciente-médico tem sido abordada com um tempo vai durar e para que é o procedimento".
sentido vertical e um certo paternalismo: o médico a ditar "As pessoas querem conhecer e participar nas decisões
e o paciente a obedecer. Mas este modelo foi transformado que afetam a sua qualidade de vida e a sua saúde, procu-
porque nas últimas décadas vivemos mudanças sociais e rando uma relação mais horizontal baseada na confiança.
avanços muito fortes em tecnologia e medicina que nos le- Sem perder de vista o facto de não poder e não dever ser
varam a avançar para uma relação muito mais horizontal. uma relação de iguais, porque é o profissional que tem
A posição do doente mudou radicalmente porque agora o conhecimento, mas agimos agora sob um novo prisma
as pessoas que vêm aos cuidados de saúde querem saber no qual a informação é partilhada e as decisões são ali-
o que têm, porque sofrem com isso, que alternativas de nhadas", salienta o Dr. Ruigómez.
tratamento existem e como participar na tomada de de-
cisões, de modo que a forma de lidar com as doenças e as PARA ESTE MÉDICO, A COMUNICAÇÃO PROFISSIONAL, A COMUNICA-
suas abordagens é mais horizontal", acrescenta. ÇÃO PESSOAL DE SAÚDE-PACIENTE, deve ser individualizada,
Esta opinião é partilhada por María Soledad Paraíso e adaptando a cada caso a explicação do conteúdo do que o
Rosa María Contreras, enfermeiras também do hospital paciente sofre, em que fase se encontra a doença e quais
Ramón y Cajal em Madrid, que, com mais de quatro dé- são as estratégias para o seu tratamento. A confiança no
cadas a trabalhar nos cuidados de saúde, também pas- pessoal de saúde é essencial para que o paciente se deixe
saram por esta transformação do modelo: "A forma co- aconselhar, uma vez que a decisão final é sempre sua.
mo agimos mudou muito. Antes, em geral, não era dada "No caso do hospital Ramón y Cajal, por exemplo, no ser-
qualquer informação aos doentes ou aos seus familiares, viço de anestesia percebemos que tudo o que envolve o
mas agora tudo o que vai ser feito é-lhes explicado, são mundo cirúrgico, as operações, produz muito stress por-

A confiança no pessoal de saúde é essencial para que o paciente


se deixe aconselhar, uma vez que a decisão final é sua
SUPER 59
Comunicação em
tempos difíceis
O utra iniciativa que foi criada no hospital Ramón y Cajal em
Madrid é uma unidade de porta aberta na seção de doen-
tes críticos, para que os doentes possam manter contacto re-
gular com os seus familiares. A prática tem-lhes mostrado que
o facto de os pacientes serem acompanhados pelos seus en-
tes queridos em processos tão complicados como as fases crí-
ticas de uma doença tem um impacto muito positivo no seu es-
tado de espírito. "Creio que a criação de unidades de cuidados
críticos nos anos 50 também contribuiu para a mudança para
esta abordagem mais aberta da comunicação, pois havia uma
necessidade urgente de explicar à pessoa o que lhes estava
a acontecer, porquê e como lidar com isso. Hoje em dia, algo
tão simples como permitir que os membros da família acompa-
nhem o paciente durante estes momentos difíceis, ou o facto
de dar instruções por escrito, por exemplo, para que as veja re-
petidas vezes quando em dúvida, tem sido de vital importância
na evolução destes processos", conclui Álvaro Ruigómez, che-
fe da Secção de Anestesia do hospital Ramón y Cajal e mem-
bro da Unidade de Coordenação de Transplantes.
"Quando temos de transmitir más notícias", dizem as enfermei-
ras María Soledad Paraíso e Rosa María Contreras. "A primeira
coisa é empatizar com o paciente, olhar para ele, ter contacto
visual, especialmente agora que não podem ser tocados ou
abraçados por causa da pandemia. Começamos por estar com
a pessoa e gerar uma forte empatia, esperando que o paciente
fale consigo e depois transmitimos todo o conteúdo, e respon-
demos às suas perguntas fornecendo-lhe toda a informação
de que necessita".

que em muitos casos há um risco de vida e porque o ní- são ou foram pacientes durante um período de tempo e
vel de conhecimento e informação é muito baixo. Assim, adquiriram um vasto conhecimento sobre a sua doença,
criámos uma comissão clínica, uma reunião de especia- suficiente para servir de referência para outros pacien-
listas que analisam voluntariamente um tema específi- tes e ajudá-los na gestão da sua doença. A iniciativa não
co, e criámos um projeto denominado Humanização da é nova, uma vez que surgiu há mais de trinta anos pela
Anestesia, que coloca o paciente no centro do processo mão de Kate Lorig, Jacqueline Laurin e Halsted Holman,
de cuidados de saúde, a fim de melhorar a compreensão da Universidade de Stanford. Em Espanha, esta figura
adequada dos tratamentos que vão ser prestados. Todos foi implementada em comunidades autónomas como a
nós envolvidos num processo cirúrgico (enfermagem, Andaluzia e a Catalunha. Assim, a Escola Andaluza de
anestesia, cirurgia...) tentamos coordenar os nossos es- Saúde Pública tem uma Escola de Doentes em que unida-
forços para que o processo funcione e o paciente tenha des clínicas muito diferentes têm estado envolvidas para
informações de todas as ligações e em todas as fases, e formar pacientes com fibromialgia, diabetes, doenças
participe. Verificámos que quanto mais envolvidos estão cardíacas, DPOC, cancro colorrectal e cancro da mama,
os pacientes, melhores serão as decisões tomadas e mais entre outras doenças.
satisfatórios serão os resultados do ponto de vista médico Vários estudos confirmam que os pacientes que partici-
e do ponto de vista do bem-estar dos pacientes. Porque pam nestes programas experimentam menos readmissões
para nós também é importante que os pacientes perce- e visitam menos frequentemente os serviços de urgência
bam que estão a ser bem tratados", explica o chefe da Se- porque têm uma melhor compreensão da doença de que
ção de Anestesia no hospital Ramón y Cajal e membro da sofrem e aprendem a cuidar melhor de si próprios, o que
Unidade de Coordenação de Transplantes. se traduz num aumento da sua qualidade de vida.
Outra estratégia que responde a este novo paradigma Por outro lado, para além da quantidade e clareza da in-
centrada em fornecer aos cidadãos informações de saú- formação, outro elemento que ajuda na relação paciente-
de claras, verdadeiras e inteligíveis é o chamado "pa- -agente de saúde é o ambiente em que a relação tem lugar.
ciente especialista". Este termo refere-se a pessoas que Os espaços de saúde nem sempre são amigáveis devido

O "doente especialista" é um doente que conhece muito bem a


sua doença e pode servir de referência para outros doentes
60 SUPER
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A comunicação
verbal e não verbal
entre pacientes e
profissionais de
saúde é fundamental
para a compreensão
mútua.

ao tipo de atividade que se realiza em muitos deles, o que embustes ou notícias falsas que afetam o setor médico e
requer um nível de desinfeção, esterilização, iluminação representam um enorme risco para a saúde da população
especial e condições de temperatura... Mas algumas salas, em geral: duas em cada três notícias falsas que circulam
áreas ou departamentos podem ser equipados para ofere- na Internet estão relacionadas com questões de saúde e
cer espaços mais agradáveis para o tratamento de pacien- qualidade de vida. As redes sociais e as mensagens ins-
tes. É o caso, por exemplo, das áreas destinadas aos cuida- tantâneas são dois dos meios mais comuns de divulgação
dos dos mais pequenos, as áreas pediátricas. de informações falsas desta natureza.
"Atualmente, a primeira coisa que um doente faz quando
DO MESMO MODO, É TAMBÉM UMA FONTE DE CONFORTO CONHECER sai do consultório médico é procurar na Internet o que lhe
AS INSTALAÇÕES em que os tratamentos serão realizados e foi dito que tem. Mas a informação publicada na web nem
em que a relação paciente-agente de saúde vai ser desen- sempre é exata. Além disso, a verdade é que as abordagens
volvida. Neste sentido, a iniciativa Hospital Amigável vi- são frequentemente alarmistas e também é normal não
sa alcançar ambientes hospitalares mais amigáveis e mais saber dimensioná-la", diz o Dr. Álvaro Ruigómez.
próximos das necessidades dos pacientes, tornando os Face a este fenómeno, várias instituições e organiza-
hospitais mais fáceis de se transitar, mais confortáveis, ções têm apresentado iniciativas para contrariar a pro-
acolhedores, humanos e sensíveis . pagação deste falso conteúdo. O website #Saludsinbulos,
Desta forma, o programa Hospital Amigável forma vo- desenvolvido pela agência de comunicação COM Salud e
luntários que acompanham os pacientes e as suas famílias pela Asociación de Investigadores en Salud, ensina pa-
para os ajudar a adaptarem-se à vida hospitalar através cientes, crianças em idade escolar e profissionais de saú-
da localização de serviços, itinerários e pessoal de cui- de a procurar informação fiável na Internet.
dados. Durante alguns dias, são formados numa série de Peritos em diferentes áreas da saúde são responsáveis
competências, incluindo o conhecimento das diferentes por identificar e refutar conteúdos falsos que tenham si-
fases da doença e do impacto que têm no doente e no seu do publicados online e por melhorar o nível de conhe-
ambiente, a identificação das necessidades relacionadas cimento existente sobre doenças e tratamentos. Esta é
com o itinerário dos doentes nos centros, e a proposta de mais uma iniciativa nesta nova abordagem da comuni-
estratégias de melhoria, entre outras. cação entre profissionais de saúde e doentes, com vista
Desafiando este esforço para melhorar e reforçar a a estabelecer relações mais próximas, mais humanas e
comunicação no campo da saúde e a relação entre pa- cordiais entre os dois grupos, que são chamados a com-
cientes e profissionais, do outro lado da moeda estão os preender-se mutuamente. e

SUPER 61
A R T Í DE
ANIMAIS C ESTIMAÇÃO
U L O

OS ANIMAIS SABEM
"MATEMÁÁTICA"
E UTILIZAM-NA PARA SOBREVIVER

62 SUPER
Basta olhar cuidadosamente à nossa volta para detetar como
a matemática permeia tudo o que nos rodeia. Se observarmos
atentamente as formas da natureza, podemos ver a sua perfeição,
mas também descobriremos padrões matemáticos que certos
seres vivos aplicam no seu comportamento, na maior parte das
vezes, com o objectivo de sobreviver.

Texto de LEILA PALLARÉS


Etóloga

A forma da concha do
GETTY

nautilus está muito


próxima da espiral de
Fibonacci, formada com
triângulos equiláteros.

SUPER 63
Descobriu-se que os
tubarões caçavam
utilizando o padrão de
movimento "vôos de Levy",
especialmente quando há
poucos peixes e plâncton
para se alimentarem.
GETTY

A
matemática pode ser defini- descobrindo antecipadamente as suas hipóteses de so-
da como aquela coisa perfeita e brevivência face a uma ameaça.
harmoniosa que nos une como A forma como os animais reagem a um estímulo e o
um todo. Quando falamos de processam está completamente ligada a um padrão, uma
matemática, estamos a falar dos sequência de sobrevivência, adaptação e procura de re-
detalhes perfeitos da criação do cursos. Em suma, uma linguagem que está vagamente
ser, da vida e do universo. Nas relacionada com um mundo matemático.
nervuras das folhas, na espessura Albert Neisser, um prestigiado bacteriologista alemão,
dos ramos das árvores, na concha no século XX, realizou uma análise da abordagem cognitiva
de um caracol, nas sementes dos em animais. O objetivo deste estudo era medir a inteligência
girassóis, nos chifres das cabras, em animais por meio de processos de aprendizagem. Os es-
na curvatura das presas de um tudos mentais que foram realizados compararam as capaci-
elefante, na forma de um furacão, na distribuição dos dades cognitivas dos seres humanos com as dos animais, e a
planetas, luas, mesmo no sistema solar. Tudo isto é ma- conclusão foi que os animais mostram que têm uma mente
temática, ou neste caso, mais matematicamente falan- e uma perceção do ambiente que os rodeia. Com estes re-
do, "Proporção áurea" ou Phi. A proporção de ouro tem sultados pode-se ver claramente que a atenção dos animais
um valor matemático de 1,618 e está presente em todo consiste na capacidade de distinguir estímulos, a busca vi-
o lado à nossa volta. Mesmo estudos recentes liderados sual para diferenciar certos objetos, bem como a conclusão
por Jan Boeyens e Francis Thackeray, acreditam tê-la de que a memória nos animais se pode desenvolver através
encontrado também na topologia do espaço-tempo de categorias de curto e longo prazo.
do universo. Todas estas descobertas foram publicadas
no South African Journal of Science, com uma grande PODEMOS OBSERVAR TODAS ESTAS CAPACIDADES NATURAIS E
aceitação de toda a comunidade científica . PERFEITAS, em maior ou menor grau, percebendo que todos
Não surpreende, por isso, que a precisão matemática estes estudos são de facto corretos. Sem ir mais longe, um
também se aplique aos comportamentos entre espécies, grande número de pessoas no mundo vive com animais
aos campos da vida humana, bem como ao reino animal, nas suas próprias casas. Mais importante ainda, amamo-
insetos, mamíferos e outros. -los como se fizessem parte da nossa própria família e se
O nosso mundo é constituído por padrões e sequências olharmos de perto podemos encontrar muitas semelhan-
que estão à nossa volta; o dia transforma-se em noite, ças connosco, humanos, especialmente em certas áreas.
a noite transforma-se em dia e os animais percorrem o Por exemplo, não há dúvida de que o grande compa-
mundo em cada mudança de estação com precisão. Uma nheiro do homem, o cão, sempre foi acompanhado por
das razões pelas quais a matemática surgiu foi devido à humanos, e sempre pudemos tirar partido das qualida-
necessidade de dar sentido a estes padrões naturais. des deste belo animal, que tem demonstrado grande in-
Para começar, é de notar que a análise da capacidade teligência desde a sua origem. O cão é um descendente
cognitiva dos animais determinou que os números, as claro de uma raça específica de lobos que está agora ex-
medidas e as formas não são conceitos exclusivos dos tinta mas que evoluiu, e o lobo usou o homem para obter
seres humanos. Assim, a matemática é também um alimento em tempos de escassez. Nesse processo, uma
processo que os animais realizam quando percebem o linguagem que só o lobo e o homem podiam compreen-
seu ambiente através dos seus sentidos. Os animais têm der foi iniciada desde os tempos mais remotos.
perceção da distância, de números e a capacidade de cal- O homem primitivo, ao preparar a sua comida, atraía
cular quando atacar ou fugir, dependendo se a manada a atenção do lobo. O lobo, atraído pelo seu olfato, apro-
que decidem combater é maior ou menor em número, ximou-se gradualmente do ser humano, estabelecendo

64 SUPER
Graças ao seu olfato, os cães podem detetar os nossos níveis
de stress, e mesmo o estado da nossa saúde física e emocional
uma relação de confiança, o que lhe permitiu obter ali-

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mento do homem. Em troca, o homem começou a utili- Imagem de um
zar o lobo para a caça e proteção dos animais do lar. nautilus, um
Desde o primeiro contacto do lobo com o homem e a molusco
cefalópode do
sua astúcia para encontrar comida em tempos de escas-
qual três espécies
sez, pudemos apreciar como se adaptou a nós, como pro- sobrevivem hoje
curou uma forma de sobreviver e finalmente se tornou o em dia.
melhor amigo do homem.
Uma coisa muito peculiar sobre os cães é que eles sabem
identificar, medir e ler certos padrões de comportamento
humano, tais como a frequência do som da nossa voz e, o
que é mais interessante, a emoção que lhe está associada.

AS EMOÇÕES ESTÃO ESPECIFICAMENTE LIGADAS ÀS PARTÍCULAS


DE ODOR PORQUE LEVAM A ALTERAÇÕES FISIOLÓGICAS e meta-
bólicas, (a sudação) bem como a alterações no coração
e ritmo glandular. Eles sabem como detetar tudo isto
com o seu sentido de olfato. Graças a este sentido, eles
têm a capacidade de detetar os nossos níveis de stress e
de açúcar no sangue, inclusivé o nosso estado de saúde
emocional e físico.
Também utilizam o seu sentido do olfato para recor-
dar e medir distâncias, graças ao qual seguem corren-
tes de ar que transportam partículas de odor. Quando a para eles. Outros animais, não tão familiares, utilizam
detetam, por muito pequenas ou distantes que estejam, também a matemática como recurso para a sobrevivên-
são capazes de seguir o rasto, criando um mapa men- cia, ataque e adaptação ao ambiente.
tal que lhes permite encontrar alimentos, animais ou
humanos num espaço de tempo muito curto. São um OS ANIMAIS AQUÁTICOS TAMBÉM COMPREENDEM A MATEMÁTICA,
dos únicos animais que conseguem distinguir o odor do POR EXEMPLO, OS TUBARÕES. Foram efetuados estudos sobre
corpo humano e lembrar-se dele. É por isso que estes os tubarões e a forma como caçam utilizando o padrão
animais são as espécies mais frequentemente utilizadas "Vôos de Lévy" em certas ocasiões. O comportamento
para resolver tarefas de salvamento. Lévy é utilizado por este predador quando escasseiam
Estes incríveis animais são mesmo capazes de aprender recursos como plâncton, peixe e outros alimentos. Em
matemática, graças aos padrões de associação e recom- regiões com alimentos abundantes, predomina o movi-
pensa. A forma como os cães são capazes de aprender é mento aleatório, que é o comportamento mais comum
através da contagem de objetos em certas posições. Eles desta espécie. Portanto, os tubarões utilizam o padrão
associam a ideia de que quanto mais objetos, maior a re- Lévy para melhorar as suas hipóteses de encontrar pre-
compensa, e é assim que este jogo matemático começa sas. Ao contrário do movimento aleatório, em que per-
correm distâncias de tamanho semelhante em qualquer
direção, os passeios de Lévy são interrompidos por uma
SHUTTERSTCOCK

longa incursão em qualquer direção. Se um gráfico de


passeio de Lévy for desenhado, as suas linhas transfor-
mam-se num padrão fractal, o fenómeno matemático
cuja forma permanece semelhante independentemente
da escala de visualização.
A espiral dos nautilus é uma das imagens mais icónicas
da matemática. O padrão listrado nas suas conchas ajuda-
-os a esconderem-se facilmente a grandes profundidades,
que é o local onde vivem.
Estão relacionados com polvos, lulas e chocos. Basi-
camente são polvos com uma concha e o mais fascinan-
te é a sua linhagem, que tem centenas de milhares de
anos. O mais curioso é que não evoluíram muito, e é por
isso que se lhes chamam fósseis vivos.
Apesar de ser conhecido Para os biólogos marinhos, são uma grande oportu-
desde os tempos nidade para verem um cérebro e um comportamento
antigos, pouco se sabe ancestrais, e uma forma maravilhosa de estudar a evo-
sobre as cigarras lução da inteligência.
periódicas e o seu O uso mais óbvio da sua concha é para proteção mas
peculiar ciclo de vida. também a usam para flutuar; só vivem na câmara fron-
tal, o resto das câmaras estão cheias de gás e fluido que

SUPER 65
A abelha dançarina analisa a direção do seu voo do favo de
mel até ao seu destino com referência ao sol
com regulação podem, passiva e suavemente baixar dezassete são números primos, ambas as ninhadas emer-
e subir na água, como se estivessem num submarino. gem juntas apenas uma vez em cada vinte e dois anos.
Detetam baixas de oxigénio e podem sobreviver com o Os números primos estão intimamente ligados à sobrevi-
oxigénio das câmaras se houver uma sua redução nos vência das cigarras, e curiosamente são um dos elemen-
oceanos. tos mais importantes do código, porque o código é um
Mas uma das coisas mais surpreendentes são as dimen- mundo matemático construído de números.
sões das câmaras, onde se pode ver claramente um pa-
drão, que dividido pela medida anterior é 1,08. Isto indica O CASO DAS ABELHAS É TAMBÉM MUITO INTERESSANTE. Com-
que o nautilus cresce a um ritmo constante, cada vez que preendem como utilizar a matemática e as formas geo-
constrói uma nova sala, as suas dimensões são 1,08 vezes métricas para a eficiência do espaço e do tempo. O fa-
as dimensões das anteriores, criando assim uma espiral vo de mel que as abelhas constroem é uma maravilha
perfeita. Aqui estamos de volta a Phi ou "divina propor- da engenharia natural. Se olharmos para o seu interior,
ção", a perfeição do todo . podemos ver como tudo o que elas precisam está dentro
O peixe mosquito e a sua capacidade de contar. A uni- dele. É o local onde criam as suas crias e armazenam os
versidade de Pádua em Itália realizou um estudo sobre o seus alimentos. É todo feito de cera, uma substância tão
peixe mosquito (gambusia affinis), um peixe de água doce intensamente laboriosa que as abelhas têm de voar do-
do Golfo do México que mede quatro a sete centímetros ze vezes à volta da Terra para produzir 0,5 quilos. Fazem
e é capaz de desenvolver competências matemáticas. O hexágonos que parecem feitos pelo homem, de uma es-
peixe tem a capacidade de contar até quatro. Quando uma trutura muito resistente. Porque é que as abelhas fazem
fêmea é assediada por um macho, ela tenta fugir e mistu- padrões hexagonais?
rar-se num cardume próximo. Os cientistas demonstra- Cada uma das células é idêntica às outras seis pare-
ram que uma fêmea é capaz de diferenciar entre um e dois des, formando sempre um ângulo de 120 graus, é como
peixes, entre dois e três peixes, até três e quatro peixes. se tivessem o hexágono incorporado no seu ADN, cada
célula tem exatamente o tamanho do seu corpo, usam o
OS GOLFINHOS PODEM USAR MATEMÁTICA COMPLEXA NÃO LINEAR seu corpo como se fosse uma régua. Mas há outra razão
NA CAÇA À COMIDA, de acordo com um novo estudo de Tim pela qual as abelhas criam hexágonos e não seguem ne-
Leighton, da Universidade de Southampton UK. Eles nhuma outra estrutura. É porque as abelhas precisam
fazem isto soprando múltiplas pequenas bolhas em tor- de armazenar grandes quantidades de mel utilizando
no das presas, e estes sopros podem variar em ampli- pequenas quantidades de cera, e os hexágonos são os
tude. O primeiro pode ter o valor de um, enquanto o que necessitam de menos quantidade de cera, por isso
segundo ser um terço da amplitude. Assim, sempre que são mais eficientes.
o golfinho se recorda de quais eram as proporções dos Entre os muitos tipos de abelhas, existe uma chamada
dois sopros, pode multiplicar o segundo eco a partir daí
e adicionar os ecos juntos. Desta forma, ele pode tornar
SHUTTERSTOCK

o peixe visível ao seu sonar.


Mas não é tudo, a segunda fase envolve subtrair os ecos
um ao outro, assegurando que o eco do sopro é multi-
plicado por três. O processo, em suma, envolve primeiro
tornar o peixe visível ao sonar por adição, e em segundo
lugar, torna-se depois invisível por subtração para con-
firmar que é um verdadeiro alvo.
Os insetos também utilizam a matemática - a cigarra
periódica, por exemplo - para sobreviver. O que torna
estes insetos tão notáveis é o seu extravagante ciclo de
vida. Durante doze anos vivem escondidos no subsolo,
depois no décimo terceiro ano, e todos ao mesmo tem-
po, emergem de cada toca para se reproduzirem. A sua
estratégia de sobrevivência é a segurança em números.
Estas cigarras requerem um grande número de mem-
bros da sua espécie para sobreviverem aos predadores e,
grandes populações, são a chave. Se saírem em pequenos
grupos, os predadores podem devorá-los.
Então porque é que as cigarras evoluíram com este ci-
clo de vida de treze anos e não com outro? Treze é um
número primo. Ao contrário de outros números, os pri-
mos só podem ser divididos por um, pelo que um ciclo de Os golfinhos emitem
uma série de sons de
vida de treze anos torna a cigarra periódica muito menos
alta frequência que,
suscetível de se sobrepor a outros grupos. quando batem num
Há outra ninhada de cigarras periódicas, e também objeto, regressam sob
elas têm um ciclo de vida com um número primo, neste a forma de ecos.
caso, o período é fixado em dezassete anos. Como treze e

66 SUPER
SHUTTERSTOCIK
Um bando de
estorninhos em voo.
Estas aves são capazes
de sincronizar o seu voo
tendo em conta a
distância e a velocidade
de cada uma delas.

abelha bailarina, que é realmente especial. Esta abelha é que afugenta potenciais predadores na sua vizinhança.
capaz de armazenar informação que lhe permite localizar Têm uma sincronização incrível, que adquiriram medin-
a fonte de alimento, que consiste em analisar a direção e do a sua proximidade uns dos outros, e também fazendo
magnitude da sua viagem desde o favo de mel até ao ob- uso do som que emitem. Como podem milhares de aves
jetivo, tomando o sol como referência. Se estiver nublado, prever os movimentos de milhares de outras à sua volta?
deve ser orientado de uma forma diferente, por exemplo, Primeiro, cada um voa à mesma velocidade; segundo,
utilizando a sua sensibilidade à radiação solar, o que lhe todos eles ficam perto dos seus vizinhos; e finalmente,
permitirá completar a informação necessária. quando vêem um predador por perto, saem do caminho.
O caminho percorrido pelas abelhas tem sido estudado Um estudo demonstrou que num bando de centenas de
desde a antiguidade, e tem resolvido numerosos problemas milhares de aves, cada estorninho apenas segue os seus
matemáticos, alguns deles complexos, tais como o do ven- sete vizinhos mais próximos.
dedor ambulante, que consiste em visitar muitas cidades e Particularmente interessante é o caso dos Furnários e
regressar à cidade inicial sem repetir nenhuma delas, ou o do seu canto. O investigador Gabriel Mindlin descobriu
problema das pontes de Königsberg, que trata de sete pon- que as aves seguem um padrão matemático quando can-
tes sobre o rio Pregolya sobre as quais se deve passar até ao tam. Os ritmos sincronizados de machos e fêmeas res-
ponto de partida sem repetir nenhuma delas. Este proble- pondem a leis simples da física, em particular as que re-
ma foi estudado por muitos europeus até ter sido resolvido gem sistemas conhecidos como osciladores não lineares,
por Leonhard Euler na teoria gráfica. De acordo com a in- tais como um pêndulo movido por uma força vertical
vestigação de Lars Chittka e da sua equipa na Queen Mary's oscilando sobre uma vasta região. e
School of Biological Sciences, Universidade de Londres, as
abelhas escolhem sempre o caminho mais curto nos seus
percursos, por mais complexo que seja. É óbvio que as abe-
SHUTTERSTOCK

lhas têm uma mente matemática de primeira classe, espe- O tamanho das
cialmente tendo em conta que os seus cérebros são do células alveolares
que as abelhas
tamanho de um alfinete.
constroem
corresponde
OS ESTORNINHOS APLICAM A MATEMÁTICA PARA A SO- exatamente ao
BREVIVÊNCIA DO GRUPO. Quando os estorninhos tamanho dos
fazem a sua migração anual entre o sul da seus corpos.
Europa e a Escandinávia, um único bando
pode conter um milhão ou mais de aves.
Pode-se ver que quando começam a
voar em grupo formam uma bela
dança, em diferentes formas, que
se desvanece à luz da noite, dando
a esta formação o seu misterioso
nome "O Sol Negro". Fazem-no
para proporcionar a segurança
do número. A forma completa
parece bastante ameaçadora como
se fosse uma besta grande e escura

SUPER 67
ENTREVISTA

Miguel Nicolelis,
professor emérito de
neurociência,
propõe em O
Verdadeiro Criador
de Tudo uma visão
cosmológica
radicalmente nova
que coloca o cérebro
humano no centro
do universo.
ASC

68 SUPER
Miguel
NICOLELIS
«Receio que nos
estejamos a tornar
zombies digitais»
Transformar energia em conhecimento. É este propósito que motiva
o neurocientista Miguel Nicolelis todos os dias, a seguir em frente
com a sua vida pessoal e profissional. Um pensamento impulsionado
por um poderoso otimismo que abre o caminho face a uma visão que
não está muito de acordo com a realidade atual. Para Nicolelis, a
preocupação com o futuro da sociedade não é um obstáculo para se
sentir esperançoso. De facto,nesta entrevista ele revela que o seu maior
sonho é ver a humanidade recuperar os valores humanistas que em
tempos nos deram esperança, e fala-nos da teoria que reúne no seu
livro O Verdadeiro Criador de Tudo, e que defende a preponderância do
cérebro e da inteligência humana face ao perigoso mundo digital.

Entrevista por
GEMA BOIZA

SUPER 69
ENTREVISTA

M
iguel Nicolelis (São Pau- soas (uma em cada sete no mundo, segundo a Organiza-
lo, 7 de março de 1961) é ção Mundial de Saúde) que sofrem de uma doença cere-
por direito e méritos pró- bral, psiquiátrica ou neurológica. Não lhe falta certamente
prios, uma referência no vontade e coragem. É isto que ele nos diz nesta entrevista.
campo da neurociência
à escala internacional. O Miguel Nicolelis, acaba de publicar O Verdadeiro Cria-
artífice do robô que deu o dor de Tudo. O que é este livro e como o define?
pontapé «mágico» à bola É o meu legado científico, uma combinação dos meus
que inaugurou o Campeo- quarenta anos de carreira como cientista, um resumo da
nato do Mundo no Brasil minha viagem ao longo destas últimas quatro décadas.
em 2014, assiste hoje ao Comecei a estudar medicina e muito cedo com a infor-
sucesso de O Verdadeiro mática, fui o primeiro cientista brasileiro a trabalhar com
Criador de Tudo, um livro microchips nos Estados Unidos, e lembro-me de explicar
em que nos avisa de co- aos meus professores como utilizar computadores. Foi
mo algumas pessoas estão a tentar substituir o cérebro então que me ocorreu que o cérebro era uma espécie de
humano por computadores e as pessoas por máquinas. computador, embora cedo me tenha apercebido que es-
Nicolelis avisa que estamos a perder a nossa capacidade te órgão era outra coisa e quis dedicar-me à ciência para
de tomar decisões racionais, e diz que teme que a lógica compreender o que realmente era.
digital nos sequestre os nossos cérebros. Um feroz detra-
tor da inteligência artificial, adverte que “se perdermos a O livro é dirigido às gerações presentes ou futuras?
nossa mente e a entregarmos à lógica digital, não haverá Penso que a ambas. Há alguns dias ouvi um casal de filó-
volta a trás”. Tendo coordenado um grupo gigantesco de sofos brasileiros dizer que pensavam que o livro ia durar,
cientistas para aconselhar os líderes do seu país durante que ia ser para o futuro. Há alguns capítulos onde falo
grande parte da pandemia da COVID-19, este neurocien- sobre o que a lógica digital pode estar a fazer ao nosso
tista lamenta que os políticos não estejam preparados cérebro como espécie, e como ela nos está a tirar e pode
para os desafios científicos de hoje, porque as suas prio- tirar os principais atributos que nos tornam humanos.
ridades são ser reeleitos. Há pessoas que estão a tentar substituir o cérebro e as
Embora esteja certo de que há falta de vontade insti- pessoas por computadores e máquinas. Elon Musk diz
tucional para estudar mais e melhor o cérebro, Nicolelis que poderia descarregar a informação do nosso cérebro,
recorda que já demonstrou que a eletroestimulação da e isso é algo impossível, que nunca poderia acontecer! É
medula espinal pode ser utilizada para tratar a doença de um estratagema de marketing para tentar vender coisas
Parkinson, e argumenta que um maior conhecimento da a pessoas que talvez sejam mais ignorantes.
nossa matéria cinzenta poderia ajudar os milhões de pes-
O que pretende com a publicação deste «legado»?
Eu quero apoiar a humanidade, as artes e tudo o que nos
torna humanos e que devemos preservar. Ao mesmo
Nicolelis tempo, este livro é um alarme, um alerta para dizer que
reivindica o valor podemos estar a perder algo que é o atributo mais valioso
da inteligência da nossa condição humana, que podemos estar a perder
humana face aos
empatia, as nossas relações com outros seres humanos, e
perigos da
inteligência deixar que coisas que não são mais do que abstrações da
artificial. nossa mente se tornem mais importantes do que o nosso
próprio instinto de sobrevivência.

Até que ponto estamos longe de saber tudo sobre o cérebro?


Na minha opinião, ainda estamos nas fases iniciais da
tentativa de compreender como funciona o nosso cére-
bro. Há muitas coisas que não sabemos. O problema é
que estamos a esquecer o todo, o conjunto, e tentamos
estudá-lo em pedaços. Penso que isso tem sido um erro,
por isso no livro tento dar a minha teoria sobre como ver
o cérebro no seu conjunto, como um todo.

Como poderíamos melhorar o seu estudo e como deve-


ríamos abordar melhor a sua investigação?
Ao longo da minha carreira, mudei a forma como o estudei
várias vezes. Comecei com animais adormecidos, que es-
tavam anestesiados, e nos anos 90, quando me mudei para
os Estados Unidos, apercebi-me que esta não era a melhor
opção, porque quando estamos anestesiados ou bêbados,
o cérebro comporta-se de forma diferente do que quando
estamos acordados. Isso foi uma mudança total para mim
e tive de desenvolver uma tecnologia completamente no-
va para o fazer. Foi como uma revolução. Agora percebi
GETTY

que não posso estudar o cérebro olhando para ele um a

70 SUPER
Os primeiros estudos
de Miguel Nicolelis
sobre o funcionamento
do cérebro foram
realizados em animais
adormecidos, que
estavam anestesiados.
SHUTTERSTOCK

um, mas que somos animais sociais que interagem a to- Porque é que o cérebro não está a ser estudado com mais
da a hora com outros seres vivos. O nosso cérebro evoluiu profundidade? o que é que falta? meios? interesse?
com o objetivo de se integrar com outros indivíduos, por De certa forma há falta de vontade política e, ao mes-
isso, uma vez terminada a pandemia, quero estudar ani- mo tempo, há também uma certa relutância no campo
mais que estão a interagir entre si, e humanos que estão neurocientífico em aplicar o que foi descoberto. Há uma
a interagir uns com os outros, e ao mesmo tempo medir a dicotomia, que é que as ciências aplicadas são conside-
atividade cerebral, aquilo a que eu chamo a rede cerebral. radas inferiores nestes círculos às ciências teóricas ou às
Nisto reside o segredo de como os seres humanos cons- ciências puras. Contudo, vimos que milhares, ou mesmo
truíram a civilização ao longo da história. milhões de vidas podem ser salvas em todo o mundo. Is-
to foi demonstrado com a vacina e a pandemia da CO-
Como pode o cérebro melhorar as nossas vidas? No livro VID-19. Espero que este exemplo ajude a eliminar o es-
fala em restaurar a mobilidade de pessoas com lesões da tigma que existe no mundo científico no que diz respeito
espinal-medula. É possível sonhar em encontrar uma so- às ciências aplicadas. Penso que ainda há muitas pessoas
lução para doenças tão generalizadas na sociedade como de espírito estreito.... Se é um cientista, é um cientista
Alzheimer, Parkinson ou demência senil? quer seja um cientista puro ou um cientista aplicado. A
Há cerca de doze anos descobri que era possível utilizar ciência tem um impacto sobre o público, se lhes dermos a
a eletroestimulação da medula espinal como ferramen- possibilidade de a ver. Foi o que conseguimos com aquele
ta para tratar a doença de Parkinson, algo que já está a robô que chutou a bola na abertura do Campeonato do
ser aplicado no tratamento de mais de uma centena de Mundo no Brasil. Isso também faz parte da nossa missão,
pacientes em países de todo o mundo. Estou atualmen- de mostrar à sociedade o que se pode alcançar.
te a criar uma rede global de institutos de investigação
clínica para tentar implementar esta técnica, para tratar Estaremos talvez a concentrar-nos demasiado na inteli-
doentes com Parkinson e outros com depressão crónica, gência artificial e menos na mente humana?
epilepsia crónica.... Se eu começar a falar sobre isto, nunca mais acabo! Sou
Segundo a Organização Mundial de Saúde, as doenças uma daquelas pessoas que os peritos em inteligência arti-
cerebrais afetam mais de um bilião de pessoas em todo ficial mais odeiam, porque eu digo que não é inteligência
o mundo. Uma em cada sete pessoas foi diagnosticada nem artificial. A inteligência é uma propriedade dos orga-
com algum tipo de distúrbio cerebral, seja psiquiátrico nismos biológicos, dos seres vivos. Nenhuma máquina é
ou neurológico, por isso criei um novo slogan para a mi- inteligente, nós somos inteligentes. Os programadores que
nha rede que é: tratar um bilião de pessoas. Penso que criam o software de inteligência artificial têm inteligência,
é possível, e penso que seria uma alternativa às drogas mas não as máquinas. E também não é artificial porque foi
que têm efeitos secundários terríveis. Quero encontrar criado por seres humanos, não caiu do céu, vem das nossas
algo que minimize os efeitos secundários e maximize o mentes. Há muito marketing, porque há muita gente que
impacto positivo. ganha muito dinheiro com isso, muito dinheiro! Assisti re-

«Preocupa-me que as gerações mais jovens comecem a


comportar-se num binário, sim ou não, preto e branco,
como se não houvesse cinzentos» SUPER 71
ENTREVISTA
Quem é Miguel Nicolelis?
Miguel Nicolelis tem uma brilhante carreira em neurociência. É Professor Emérito de Neurociência
na Faculdade de Medicina da Duke University. É também o fundador do Centro Universitário Duke
de Neuroengenharia e o criador do projeto Walk Again.

a acontecer neste momento. Eu sou um desses cientistas,


estou a tentar dizer às pessoas que vem aí um meteorito,
neste caso é um vírus, e as pessoas não se importam. Receio
que os nossos cérebros vão ser desviados por esta lógica di-
gital, e isso vai transformar-nos em máquinas digitais bio-
lógicas. Penso que esse é o problema mais dramático que
enfrentamos. Se perdermos a nossa mente e os entregar-
mos à lógica digital, não haverá volta atrás.

Como é ser um neurocientista no século XXI?


É engraçado que me perguntem isso!... [silêncio] Nesta
pandemia eu era o coordenador de um grupo de trabalho
para fornecer aconselhamento científico a nove gover-
nos regionais no Brasil, mais ou menos do tamanho do
Reino Unido, com sessenta milhões de pessoas. Éramos
duzentos cientistas a trabalhar 24 horas por dia, sete dias
por semana, para emitir recomendações sobre decisões
que tinham de ser tomadas numa questão de horas sobre
o confinamento de uma cidade, sobre o encerramento do
espaço aéreo...! Passei um ano a trabalhar todos os dias
ASC

indo para a cama entre duas e três da manhã a olhar para


«A inteligência artificial não é um gráfico que previa quantas pessoas iriam morrer no
dia seguinte. Comecei a sonhar que tinha chamado os go-
nem inteligência nem artificial. vernadores para lhes dizer: «confinem-se se não querem
perder 60.000 pessoas» e eles disseram ‘é a economia,
Nenhuma máquina é inteligente» é o eleitorado...’, e eu disse ‘estamos a falar da vida das
pessoas’. Durante a primeira vaga eles ouviram-nos, de-
pois não nos ouviram. Por isso, retirei-me. Eu tinha de-
centemente a uma palestra de um professor que disse mui- sistido de toda a minha vida.
to claramente que a grande maioria do que é prometido não Percebi como é difícil ser um cientista em 2021. Os po-
se tornará realidade, mas ninguém o vai verificar. É por isso líticos não estão preparados para os desafios científicos
que se limitam a prever, a fazer o balão crescer, para que as atuais, não fazem ideia e não são capazes de dialogar com
empresas de consultadoria ponham cada vez mais dinhei- pessoas como eu, porque as suas prioridades são ser elei-
ro, levando muito por sua vez, porque sabem que daqui a tos, não pensam no bem-estar do povo... pelo menos no
dez ou vinte anos ninguém vai pedir explicações. Há muito Brasil! O nosso problema como espécie é muito mais gra-
barulho em torno da inteligência artificial! ve do que pensamos. Sabemos quais são os nossos pro-
blemas, aquecimento global, pandemias... No entanto,
Sabendo tanto quanto sabe sobre o cérebro, encontrou não existe qualquer ligação ou diálogo entre ciência e po-
algo de assustador? lítica, é praticamente impossível falar com eles, porque
Não, o que me assusta é o que estamos a fazer aos nossos quando chegamos ao cerne da questão, eles vão e falam
cérebros como sociedade. Algo que me preocupa muito é com os seus consultores, com os lobbies económicos,
esta obsessão que temos pela lógica digital e como ela está com as suas partes... e dão mais peso a tudo isso do que
a moldar o nosso pensamento. O nosso cérebro não é uma aos conselhos que nós cientistas lhes damos.
máquina binária, não somos seres digitais. Acima de tudo,
estou preocupado com as gerações mais jovens que come- Depois desta provação com a COVID-19, qual é o seu
çam a comportar-se de forma binária, sim ou não, como se principal desafio profissional e sonho pessoal?
não houvesse cinzento entre o preto e o branco. Já o vimos O meu maior desafio em termos de trabalho é sobreviver
e estamos a vê-lo com a pandemia... perdemos milhões de à pandemia, sobreviver intacto no sentido físico e men-
pessoas e ainda há pessoas que preferem ir a uma festa ou a tal, e ser capaz de retomar o meu trabalho como cien-
um jogo de futebol... Adoro futebol, mas não fui a nenhum tista. Agora estou a criar um novo instituto e espero ser
estádio nos últimos dois anos porque quero sobreviver a mentalmente mais forte para continuar a dedicar-me à
esta pandemia. Há pessoas que estão a arriscar as suas vi- ciência e talvez celebrar cinquenta anos da minha carrei-
das, ou a arriscar a COVID crónica que as irá afetar para o ra profissional. E o meu sonho? Ver como a humanidade
resto das suas vidas. É muito difícil fazer passar essa men- toma um caminho diferente, como recupera os valores
sagem, porque há muitas pessoas que tomaram a decisão humanistas que nos deram esperança, que nos disseram
de viver no presente, e isso é um tipo de comportamento que podíamos viver juntos e continuar a avançar o nos-
de sim ou não. Vai haver sempre um «próximo ano». Re- so conhecimento do universo e do mundo à nossa volta.
ceio que nos estejamos a tornar zombies digitais. Estamos a É isso que me faz continuar todos os dias: transformar
perder a nossa capacidade de decidir racionalmente, como energia em conhecimento. Creio que esta é a maior mis-
seres humanos, o que é bom para o indivíduo e para o co- são da humanidade, aquela que a natureza nos deu e...
letivo. O filme Don’t look up mostra exatamente o que está espero poder fazer a minha parte. e

72 SUPER
H I S T Ó R I A

OS
NABATEUS
O povo misterioso que
construiu Petra
Petra, a cidade das rochas a meio caminho entre o Mar Morto e Vista do espetacular
SHUTTERSTOCK

Tesouro de Petra, o
o Golfo de Aqaba na atual Jordânia, apresenta-se há décadas ao primeiro edifício
que o viajante
mundo como "a capital dos nabateus", um povo que apareceu na encontra quando
emerge do Siq, o
região por volta do século V a.C. e do qual pouco resta. desfiladeiro de 1,5
km de comprimento
que leva a Petra,
Texto de BORJA BAUZA, Jordânia.
jornalista

SUPER 73
GETTY

Gravura mostrando
uma bela vista das
famosas ruínas de
Selah (Petra) na
Jordânia. A litografia
foi gravada por
Grünewald em 1840.

A
primeira pessoa a mencionar os novos 4000 soldados a pé seriam acompanhados por
os nabateus foi, tanto quanto outros 4000 cavaleiros comandados pelo seu filho De-
sabemos, um historiador gre- metrius, um soldado particularmente feroz, que também
go chamado Diodoro Sículo. era conhecido como "o sitiador de cidades".
Fê-lo na sua Bibliotheca His- O problema era que os nabateus ainda não viviam em
torica, uma enciclopédia de cidades. Assim, quando viram aproximar-se o segundo
quarenta volumes que publi- exército de Antígono, optaram por guardar os seus bens
cou em algum momento no em vários abrigos secretos espalhados pelo deserto e re-
século I a.C. fugiar-se, eles próprios, numa colina rochosa alta que,
Refere-se a um episódio re- dizem, era inexpugnável.
gistado 300 anos antes, no A estratégia era suficientemente simples: com tudo e
século IV a.C., quando um dos antigos generais de Ale- todos a salvo, era uma questão de esperar que o deser-
xandre o Grande, Antígono Monóftalmos, embarcou to fizesse o seu trabalho. Demetrius apercebeu-se disto
numa campanha militar que o levou da Ásia Menor, quando os nabateus iniciaram negociações diplomáti-
onde tinha estabelecido o seu reino, até às portas da cas nas quais ofereceram parte da sua riqueza em troca
península do Sinai. Ali, como escreveu um dos seus de uma retirada. O "sitiador das cidades" aceitou.
tenentes, Antígono encontrou os habitantes que ocu- Jane Taylor, autora de Petra e o Reino Perdido dos na-
pavam "uma terra sem água", vivendo ao ar livre em bateus, diz que tal mentalidade (oferecendo uma saída
tendas e se dedicavam principalmente ao pastoreio de digna ao invasor) já era prova da inteligência de um po-
camelos. vo ao qual esperavam quatro séculos de expansionismo,
O velho general de Alexandria decidiu que estes estra- prosperidade e glória.
nhos nómadas eram presas fáceis e ordenou que 4000
homens de infantaria e 600 cavaleiros marchassem con- ALGUNS AINDA SUSTENTAM QUE OS PRIMEIROS NABATEUS ERAM
tra eles. Contudo, o exército de Antígono foi emboscado na realidade a tribo de Nebayot mencionada no Antigo
por uma força duas vezes superior ao seu número. "Os Testamento. No entanto, os peritos rejeitaram esta hi-
4.000 soldados de infantaria foram abatidos, e dos 600 pótese e apontam, em vez disso, para a Arábia. Ainda
cavaleiros, meia centena sobreviveram, embora feridos", hoje se debate se a sua origem exata se situa no sudeste
escreveu o tenente. Ao saber o que tinha acontecido, da península, onde o Iémen se situa a leste, em frente
Antígono decidiu lançar uma segunda ofensiva na qual ao atual Bahrein, ou na região de Hijaz, nas margens do

74 SUPER
Acredita-se que os primeiros nabateus foram comerciantes
extremamente habilidosos que controlavam as várias rotas
ASC

Dracma de prata de
Obodas I, 86 a.C. O seu
reinado durou apenas
onze anos.

Mar Vermelho. Contudo, tanto a hipótese bíblica como conscientes da existência do reino de Edom, quase a
outra que as coloca na Mesopotâmia já não são tidas em última paragem da rota antes de chegarem ao porto
conta.Por outras palavras, os nabateus não eram nati- de Gaza, e também do seu declínio e subsequente de-
vos do local onde Antígono os encontrou. sintegração por volta do século V a.C. Pouco depois,
Embora ninguém pareça saber ao certo quando e argumenta esta tese, os nabateus começaram a esta-
como chegaram ao que tinha sido o reino de Edom al- belecer-se progressivamente na região, ou seja, teria
guns séculos antes, Taylor sugere a possibilidade de sido uma ocupação sem derramamento de sangue por-
uma expansão eminentemente pacífica através do co- que não havia nenhuma entidade política - um reino,
mércio. Segundo a sua tese, os primeiros nabateus uma espécie de Estado - para derrotar. Havia povoa-
eram comerciantes extremamente hábeis que contro- ções dispersas aqui e ali, restos da chamada civilização
lavam e viajavam em extensas caravanas as rotas que edomita, que teriam aceite de bom grado a presença
ligavam a Arábia com o Mediterrâneo. Assim, estavam dos nabateus. Existem outras teorias menos simpáti-
cas que sugerem um expansionismo mais agressivo do
que o apresentado por Taylor. Estas hipóteses dizem,
finalmente, que os Edomitas, que tinham caído em
ALBUM

declínio, foram forçados a migrar para norte devido à


pressão que os nabateus começaram a exercer a partir
do sul.

SEJA COMO FOR, POR VOLTA DE 312 A.C., QUANDO ANTÍGONO OS


ENCONTROU, os nabateus já eram o grupo dominante na
região. E embora ainda não se tivessem estabelecido
completamente, estavam, a julgar pela forma como li-
daram com Demétrio, já bastante bem organizados.
Os nabateus foram constituídos como um reino - se-
dentarizado - algures no século II a.C. O seu primeiro
monarca foi Aretas I, cuja existência é conhecida atra-
vés de uma inscrição encontrada no deserto de Negev.
Aretas I foi sucedido por Rabbel I, cujo reinado viu Pe-
tra florescer. A cidade, até então pouco mais do que
Tito Flávio um povoado para caravanas que viajavam ao longo da
Josefo, nascido rota para o Mar Mediterrâneo, começou a aparecer nos
Yosef ben mapas da região, como evidenciado pela sua inclusão
Matityahu, foi um numa lista de cidades a visitar elaborada por um patrí-
historiador cio romano em 129 a.C.
judeu-romano do Após a consolidação do reino pelos dois monarcas, o
primeiro século. primeiro rei nabateu, do qual se conhece mais do que o
seu nome, chegou ao poder em 103 a.C.: Aretas II. Es-

SUPER 75
AGE

Ilustração
mostrando Gnaeus
Magnus Pompeius
(Pompeu) a
celebrar a vitória
que lhe valeu a
anexação da Síria
como província
romana.

Sob Aretas III, o reino nabateu atingiu o seu auge de expansão


territorial com a captura de Damasco
76 SUPER
A descoberta de Johann
te conhecimento deriva das menções que o historiador
judeu-romano Flavius Josephus faria mais tarde depois Ludwig Burckhardt
de o identificar como o grande rival de Alexandre Janeu,
que chegou ao trono da Judeia no mesmo ano.
Janeu e Aretas II tinham duas coisas em comum. Pri- F oi um explorador suíço chamado Johann Ludwig Burckhardt
que, a 22 de agosto de 1812, quase involuntariamente des-
cobriu as ruínas de Petra após séculos de negligência. Acontece
meiro, ambos subiram ao poder em reinos que se estavam
a expandir. Em segundo lugar, estes reinos tocavam-se que Burckhardt, que viajou pelo Próximo Oriente durante anos
um com o outro. Dito de outra forma, Janeu e Aretas II fazendo-se passar por um muçulmano chamado Ibrahim ibn Ab-
estavam destinados a entrar em conflito. E assim acon- dallah para evitar levantar as suspeitas de uma população local
teceu: em 96 a.C. o exército do primeiro conquistou o bastante rude em relação aos ocidentais, ouviu uma conversa
porto de Gaza, que, embora não pertencendo aos naba- entre beduínos no seu caminho pela Jordânia atual sobre uma
teus, estava dentro da sua esfera de influência. cidade escondida nas montanhas.
Intrigados pela referência, os suíços contrataram um pastor
ARETAS II, QUE INCIDENTALMENTE FOI O PRIMEIRO REI NABATEU para o levar ao lugar com a desculpa de querer sacrificar uma
A CUNHAR A SUA PRÓPRIA MOEDA, não pôde vingar a afronta cabra em honra de Aarão, o irmão de Moisés. Ao chegar e ver
porque morreu nesse mesmo ano. Foi o seu filho, Obo- todos aqueles templos, ou o que restava deles, esculpidos em
das I, que confrontou Janeu em Gadara, a região agora pedra, Burckhardt não conseguiu conter a sua excitação e o
conhecida como as Colinas de Golan. O rei judeu con- pastor beduíno começou a suspeitar que ele poderia não ser
seguiu sobreviver à batalha apenas para encontrar, no um muçulmano devoto querendo sacrificar nada além de um
seu regresso a Jerusalém, uma revolta resultante do res- ladrão de sepulturas. Consciente do perigo de ser descoberto,
sentimento que uma parte substancial dos judeus sentia o batedor apressou-se a realizar o sacrifício que tinha prome-
para com ele por, entre outras coisas, não respeitar os tido fazer e abandonou rapidamente o local. Burckhardt nunca
rituais religiosos. Essa revolta transformou-se numa voltou a Petra, mas deixou um registo da sua descoberta no seu
guerra civil que, segundo o estudioso Simon Schama, diário para que outros pudessem agarrar o testemunho.
causou 50.000 mortes e enfraqueceu ostensivamente a
Judeia. Obodas I aproveitou a situação para exigir algu-
mas terras a Janeu em troca de não intervir no conflito enterrado no deserto de Negev num túmulo que nunca
interno em favor dos seus rivais. O reinado de Obodas foi encontrado, e convertido numa divindade pelo seu
I não durou muito, apenas onze anos, mas o suficiente povo pouco tempo depois.
para "mudar o mapa político do Médio Oriente em favor
dos nabateus", de acordo com Taylor. As crónicas dizem O FILHO DE OBODAS I, ARETAS III, FOI O ÚLTIMO GRANDE CON-
que ele morreu jovem devido a feridas infligidas pelos QUISTADOR NABATEU. Sob o seu domínio, o reino atingiu
Seleucidas, os seus vizinhos em declínio e descontentes o seu auge em termos de expansão territorial com a
com a ascensão nabateia, numa batalha em 87 a.C. Foi captura de Damasco. Esta conquista consolidou os na-
bateus como uma importante potência regional a ser
considerada não só pelos seus vizinhos imediatos mas
também por um império romano emergente.
Depois de assumir o domínio da cidade síria, Aretas III
sentiu-se suficientemente poderoso para invadir a Judeia.
Isto provocou outra campanha de Janeu, ainda rei dos ju-
deus, contra os territórios nabateu a sul do Mar Morto.
O conflito renovado entre nabateus e judeus sobre-
viveu a Janeu, cuja morte em 76 a.C. levou a uma série
de conflitos entre os seus descendentes, e durou até à
chegada das legiões romanas.
Pompeu chegou à Síria no final de 64 a.C. e, depois de
anexar o território como província romana, fez da Judeia
um protetorado. Dirigiu-se então para sul, em direção à
cidade de Petra, até então capital do povo nabateu, com
a intenção de desvendar que tipo de relação havia para
construir com o ainda poderoso Aretas III.
Alguns dizem que Pompeu marchou até Petra com a
intenção de ocupar a cidade. Outros dizem que a sua ex-
pedição foi eminentemente diplomática. Se a incógnita
continua ainda hoje é porque Pompeu teve de voltar
atrás quando recebeu a notícia da morte de Mitríades,
rei do Ponto, e nunca chegou ao seu destino. Depois de
Marco Emílio ter tomado Ponto e assumindo que os nabateus, em-
Escauro, (163 a.C. - bora mantendo o seu estatuto de reino independente,
89 a.C.), político não ousariam incomodar Roma, o general regressou à
romano cuja península italiana, deixando para trás vários tenentes
retirada de Petra com a missão de resolver quaisquer crises territoriais ou
iniciou as relações políticas que surgissem na região.
entre Roma e o
ASC

povo nabateu.
POUCO TEMPO DEPOIS, UM DELES, MARCO EMÍLIO ESCAURO, DECIDIU
USAR AS DUAS LEGIÕES deixadas sob o seu comando para mar-

SUPER 77
Bibliografia para leitura posterior
A ausência dos nabateus de trabalhos de análise e
explicação do Próximo Oriente na antiguidade é im-
pressionante. Muitos textos de referência, geralmente
Blánquez e Ángel del Río. Blánquez é também o autor de um
ensaio anterior intitulado Petra, a Cidade dos nabateus. Há
também duas obras interessantes em inglês: Os nabateus,
recomendáveis, ignoram abertamente a sua existência. Ou, por Dan Gibson, e Petra e o Reino Perdido dos nabateus, por
na melhor das hipóteses, eles tombam sobre esta parte da Jane Taylor. Este último deve ser lido com cautela, pois Tay-
história e mencionam brevemente a sua presença. É difícil lor não pode - ou não quer - esconder a sua simpatia pelos
encontrar livros sobre o reino nabateu. Um livro que o faz nabateus. No entanto, o seu livro é uma boa abordagem à
é Petra. Historia y arqueología, dos historiadores Carmen questão.

GETTY

Gravura antiga dos


cativos de Baibars
na queda de
Antioquia da
História das
Cruzadas de
Michaud, ilustrada
por Gustave Doré.

char contra a cidade de Petra. O seu objetivo era conquistar a retirada imediata. Um movimento semelhante ao feito
cidade. Porquê? Outra questão que só pode ser especulada, pelos seus antepassados alguns séculos antes, quando,
embora a maioria dos estudiosos refira o seu afã de glória embora ainda um povo nómada, decidiram afastar De-
como razão da sua decisão. No entanto, o romano não conse- métrio, o filho de Antígono, por meio de suborno. Nesta
guiu conquistar Petra, que, sendo esculpida na rocha de um ocasião, Escauro também aceitou a proposta.
vale extremamente estreito, é muito fácil de defender. Farto O episódio envolvendo Escauro marca o início das
e frustrado, Escauro começou a queimar o pouco que podia relações entre o reino nabateu e Roma. Estas relações
ser queimado na área circundante enquanto ponderava sobre iam desde agressões como a que sofreu às mãos de Au-
o que fazer para salvaguardar a sua honra. lo Gabínio até jogos de malabarismo nas guerras civis
Sentindo o dilema em que Scaurus se encontrava, Aretas romanas, quando o rei Malicos I se aliou primeiro com
III ofereceu-lhe trezentos talentos de prata em troca da sua Júlio César, a quem enviou cavaleiros para o apoiar na

78 SUPER
Mapa do Levante
Sul por volta de
830 a.C.,
mostrando a
localização das
tribos nabateias.
CREDITO

sua disputa com Pompeu, e depois com Octávio contra bém incluída na estrada que articulava o comércio da
Marco António. Sem esquecer atos como o do intrigan- nova província. Houve mesmo um governador romano,
te Syllaios, um ministro nabateu que, ao oferecer-se Sexto Florentino, que expressou o seu desejo de ser ali
como guia, frustrou uma expedição romana na Arábia enterrado.
que punha em perigo a independência do reino. Ou as A verdadeira queda de graça da cidade começou com
artes diplomáticas de Aretas IV, que conquistou a ad- o terramoto de 363, um terramoto que destruiu gran-
miração do próprio Octávio Augusto. Finalmente, em de parte da cidade. Inicialmente Petra continuou a
106, o Imperador Trajano ordenou a anexação do reino funcionar como tal, mas a sua população e importân-
e a consequente criação de uma nova província romana cia declinou constantemente até que, com a chegada
chamada Arábia Petraea. do Islão, se tornou um mero enclave para caravanas
que viajavam de lugar em lugar. Consequentemente,
A PERDA DA INDEPENDÊNCIA DO POVO NABATEU É VISTA PELA durante as Cruzadas passou despercebido e assim, in-
CRENÇA POPULAR como o início do declínio dos nabateus tocado pela luta trazida pelo passar do tempo, caiu no
e de Petra em particular . No entanto, historiadores co- esquecimento. O último registo conhecido é a crónica
mo Ángel del Río e Carmen Blánquez, autores de Petra. de uma viagem feita pelo Sultão Mameluco Baibars, que
Historia y arqueología, não concorda com esta afirma- passou em 1276 e, depois de ver os restos da antiga capi-
ção. Ambos concordam que após a anexação por Roma, tal nabateia, prosseguiu o seu caminho com uma pausa
a cidade recebeu grandes e múltiplas honras e foi tam- quase nula.e

A queda em desgraça de Petra começou com o terramoto de


363, um sismo que destruiu grande parte da cidade
SUPER 79
CINEMA

Filmes
A VERDADE POR DETRÁS DA LENDA URBANA

80 SUPER
A existência de filmes snuff sempre se moveu entre o mito e a realidade.
Não há dúvida que este tipo de filmes e o seu ambiente nos levam aos
cantos mais escuros da alma humana, onde reside o prazer de observar
um assassinato real. No entanto, continuam sem encontrar-se as provas
irrefutáveis da sua existência.

Texto de JANIRE RÁMILA


ISTOCK

Crimonóloga

SUPER 81
AP

Charles Manson, algemado e


conduzido pela polícia
durante o julgamento pelo
assassinato da atriz Sharon
Tate em 1969.

A
13 de abril de 1999, o británico requisitos do FBI para se poder considerar um filme
Daily Mail e outros meios de snuff, a mesma notícia anunciava que os homens deti-
comunicação social relataram dos foram "os primeiros assassinos do mundo a serem
que dois cidadãos alemães, condenados por homicídio enquanto produziam um
Ernst Dieter Korzen e Stefan filme snuff".
Michael Mahn, tinham sido E quais são estes requisitos? "A gravação de um ho-
condenados a prisão perpétua micídio destinado a satisfazer uma motivação sexual
pelo tribunal de Hagen sob a e com a intenção de ser distribuído comercialmente",
acusação de agredir sexual- salienta a agência americana. Dos dois, o mais difícil
mente, torturar, assassinar e de realizar é sempre a comercialização, porque, em-
filmar uma mulher de 21 anos bora tenham existido dezenas de vídeos conhecidos
de idade que era prostituta, para vender a fita por 100 de homicídios colocados em diferentes redes sociais
000 libras. No entanto, a mulher morreu antes da con- ou distribuídos em mão, não foram feitos para um fim
clusão das filmagens, pelo que raptaram uma segunda económico, mas por um sentimento exibicionista,
vítima que conseguiu escapar, e a polícia foi alertada propagandístico ou de auto-consumo. São casos como
para o que tinha acontecido. Como o caso satisfazia os o de Steve Stephens, que em abril de 2017 filmou a si

82 SUPER
Os seres humanos sempre foram fascinados pela observação
da violência e das mortes públicas

próprio a disparar sobre um homem de 74 anos até à as massas. As pessoas lotam as bancadas dos tribunais
morte e mais tarde carregou o vídeo para a sua página de justiça quando casos excepcionais são julgados e
do Facebook. assistem deleitando-se com o horror das execuções
É também o caso do que aconteceu na cidade me- públicas. Alguns até tentam apanhar a areia ensan-
xicana de Colonia Malinche, quando, a 14 de maio de guentada depois da decapitação de um condenado",
1998, uma rapariga de 17 anos de idade relatou ter si- relata o estudioso Robert Muchembled no seu livro
do raptada por um homem armado. Ao entrar na casa Uma História da Violência (Paidós, 2010).
do raptor, os agentes encontraram os corpos de dois
estudantes do bairro enterrados e uma falsa parede a O TERMO 'SNUFF MOVIE' FOI POPULARIZADO PELO INVESTI-
esconder uma cassete de vídeo numa caixa de plásti- GADOR ED SANDERS no seu livro The Family: The Story
co com a inscrição "Violação de Ana Maria". Ao visio- of Charles Manson's Dune Buggy Attack Battalion
ná-lo, observava-se o raptor, José Lázaro Bouchán, a (1971), mas as suas origens apontam para o escritor
executar a violação e outra pessoa a ajudá-lo com a Anthony Burgess, que criou o seu próprio calão para
gravação. o seu livro A Laranja Mecânica (1962), que foi adap-
Outro caso recente foi o assassinato do jogador de tado com sucesso para cinema pelo realizador Stan-
voleibol afegão Mahjabin Hakimi, cuja decapitação ley Kubrick oito anos mais tarde. "Uma das palavras
pelos Talibãs no início de outubro de 2021 está a cir- que utilizou foi snufar, na versão inglesa, que signi-
cular livremente nos meios de comunicação social do fica morrer. Na versão original aparece o termo snuff
país, de acordo com a imprensa internacional. it (mata-o)", explica a investigadora Paz Velasco de la
Quanto à necessidade de satisfazer uma motivação Fuente no seu livro Homo Criminalis (Ariel, 2021).
sexual, o seu cumprimento é muito mais simples. Não Neste trabalho, Ed Sanders sugeriu que a seita de
é por acaso que os humanos sempre tiveram um gran- Charles Manson pode ter estado envolvida na produ-
de fascínio pela violência e pelos assassínios públicos, ção de filmes de "brutalidade", como também eram
com o grande exemplo chamados na altura. A
dos jogos multitudiná- razão pela qual nun-

ASC
rios da Roma antiga. "Os ca foram encontrados
jogos foram o grande é porque, segundo ele,
escape emocional pa- podem ter sido enter-
ra uma população que rados no deserto, rou-
tentou aproveitá-los ao bados ou já vendidos,
máximo. Durante uma embora ele não tenha
corrida, as pessoas li- oferecido provas de
teralmente enlouque- tais pressupostos. Seja
ciam. As mulheres des- como for, Sanders lan-
maiavam, ou inclusivé, çou as bases para um
tinham orgasmos. Os conceito que se tornou
homens mordiam-se, cada vez mais famoso,
rasgavam as suas rou- ao ponto de o FBI ter
pas, dançavam louca- começado a investigar
mente, apostavam até a possível existência
ficar sem dinheiro e de gravações em fita de
depois apostavam-se 8mm de homicídios,
a eles mesmos contra que foi utilizado pelo
os comerciantes de es- produtor de filmes por-
cravos para conseguir no de baixo orçamento
mais dinheiro", escreve Alan Shackelton para
o investigador Daniel P. lançar em Nova Iorque o
Mannix no seu famoso filme Snuff, 1976. O en-
livro Gladiadores (No- redo baseava-se, mais
wtilus, 2004). uma vez, nos verdadei-
Fascinação que se es- ros crimes de Charles
palhou ao público em Manson, aqui encarna-
geral a partir do século dos sob a forma de um
XIX, com descrições de culto de motoqueiras
atrocidades assassinas femininas que assassi-
em publicações baratas. navam sob as ordens do
"O sangue vende tinta seu líder, um homem
e papel. A brutalidade Poster para o filme Snuff realizado por Alan Shackelton (1976). A chamado Satanás. No
cruel, que é agora dis- este filme foram acrescentadas algumas cenas filmadas mais tarde, final do filme, apare-
creta na vida real, excita sobre uma atriz brutalmente esfaqueada e mutilada. ciam cinco minutos de

SUPER 83
SPLENDID FILM Ainda de A
Beginner's Guide to
Snuff. um thriller de
comédia negra de
2016 na linha dos
primeiros filmes dos
irmãos Coen.

filmagens extra nas quais a equipa de filmagem mata-


CREDITO

va uma das atrizes. E esse era o fim do filme.


Graças a uma campanha de marketing bem sucedida,
na qual o próprio Shackelton escreveu anonimamente
a vários meios de comunicação para os fazer acredi-
tar que o filme tinha sido contrabandeado da Argen-
tina para os EUA, gerou-se um rumor de que a morte
da atriz era real. "O filme que só podia ser rodado na
América do Sul", "A coisa mais sangrenta alguma vez
filmada" foram alguns dos slogans promocionais que
podem ler-se no cartaz.
E embora no final o próprio Shackelton tivesse de Os serviços forenses
admitir a montagem, o debate sobre a existência deste enterram os corpos
tipo de filmagens já estava presente nos jornais e em de 47 vítimas não
todas as estações de rádio e televisão. identificadas em
Ciudad Júarez, 2020.
DESDE 1971, A PERGUNTA TEM SIDO SEMPRE: EXISTEM REAL-
MENTE FILMES SNUFF? "Descartamos a possibilidade de
existirem", diz Manuel Huerta, fundador da empresa Um dos exemplos mais flagrantes de acusações sem
de cibersegurança Lazarus e colaborador nas investi- provas pode ser encontrado no México do final do sécu-
gações policiais espanholas, dado o seu elevado nível lo XX, que se tinha tornado um lugar altamente perigo-
de especialização e a tecnologia de ponta que tem no so onde tudo podia acontecer. "Uma nação fronteiriça
seu laboratório, numa entrevista com Muy Interesan- que viu crescer o flagelo do crime, a impunidade, a per-
te. "As pessoas falam muito sobre estas gravações, mas da do respeito pela vida, o desaparecimento de pessoas
acabam por ser pouco mais do que lendas urbanas", como uma indústria de extermínio", o jornalista Sergio
diz ele. González narrou sem rodeios no seu livro Ossos no De-
E assim parece, uma vez que, de momento, não há serto (Bones in the Desert, Anagrama, 2002).
provas de qualquer comercialização deste tipo de ví- Eram os inícios do feminicídio em Ciudad Juárez,
deos, para além das declarações de certas pessoas ou com a descoberta de dezenas de corpos de mulheres
de uma alegada intenção comercial não concretizada, todos os anos em valas ou semi-enterradas no deser-
como descrito na notícia acima referida, publicada to. Uma das hipóteses que surgiram para explicar tal
pelo Daily Mail em abril de 1999 . violência foi a filmagem de filmes snuff, aludindo a

84 SUPER
afirmações como a que apareceu em 1991 na biografia
Filmes snuff,
de Henry Lee Lucas. Retrato de um Serial Killer, do
escritor Joel Norris.
e marketing
Nas suas páginas descreve como este assassino em
série entrou em contacto com uma seita satânica cha-
mada A Mão da Morte, que exigia que crianças e jo-
A o longo da história do cinema, houve vários filmes que brin-
caram com a autenticidade das mortes que aparecem nas
suas filmagens. Talvez o primeiro deles seja Nosferatu (Murnau,
vens fossem violados e assassinados em frente a uma 1922), que deu origem à lenda de que o seu ator principal, Max
câmara. "Fiz mais de 35 viagens ao México, levando Shreck, era um verdadeiro vampiro, a quem foi atribuído como
cada vez 3 ou 4 crianças. E posso dizer-vos exatamen- prémio morder os protagonistas do filme ao vivo e durante as fil-
te onde as entreguei. É um rancho bastante grande, magens, em troca da sua participação. Esta lenda seria retomada
com casas, está bem dentro do México. Os líderes do pelo realizador Elias Merhige para filmar A Sombra do Vampiro
culto diziam quantas precisavam e que tipo de criança (2000).
era mais valiosa. Normalmente eram crianças peque- Mas talvez seja o subgénero de filmagens encontradas o
nas, entre os 4 e 11 anos de idade. Davam-me mil dóla- que mais beneficiou deste logro, ou seja, fitas encontradas por
res por cada carregamento", disse Lucas. No entanto, acaso por um protagonista em que, ao serem visualizadas, se
nada disto foi alguma vez provado. Nem tampouco a veem acontecimentos terríveis, geralmente incluindo a morte
veracidade da alegada investigação levada a cabo pelo dos protagonistas. Os historiadores do cinema afirmam que o
detetive e escritor israelita Yaron Svoray no seu livro primeiro a seguir este argumento foi o Holocausto Canibal (Deo-
Gods of Dead (1997). dato, 1980), relatando a chegada de uma equipa de resgate à
Segundo Svoray, encorajado na sua busca para des- selva amazónica após o desaparecimento de quatro jovens que
cobrir a verdade por detrás dos filmes snuff, conse- ali tinham ido para filmar um documentário sobre certas tribos
guiu assistir a uma exibição clandestina em Nova Ior- antropofágicas. Filmado como um falso documentário, o filme
que, onde dois homens faziam sexo com uma mulher inclui numerosas cenas de sexo e violência explícita que, graças
sul-americana de cabelo escuro: "A cabeça da rapariga a uma campanha de marketing bem orquestrada e altamente
pairava sobre a borda da cama enquanto o homem em eficaz, fez as pessoas acreditarem que eram reais, contribuindo
cima dela a penetrava. O outro homem brandiu uma para um enorme sucesso comercial em videoclubes .
faca e ajoelhou-se perto da cabeça da mulher. Num Foi o precursor do outro grande filme que jogou com um en-
segundo, estava tudo acabado. A exibição, diz ele, foi gano semelhante, The Blair Witch Project (Myrick e Sanchez,
organizada pela Máfia e cada participante teve de pa- 1999). Ainda hoje é o filme mais rentável da história, com um
gar 1500 dólares para assistir, a maioria dos quais ho- orçamento de 60.000 dólares e um valor bruto mundial de mais
mens de negócios, com idades compreendidas entre de 248 milhões de dólares. A sua fórmula seria repetida com
os trinta e os cinquenta anos. variações em filmes como a Atividade Paranormal (Peli, 2007),
mas com muito menos sucesso.
ENTÃO O QUE ESTÁ REALMENTE POR DETRÁS DOS SUPOSTOS
ARCHIVE COLLECTION

'SNUFF MOVIES'? "O que realmente existe é uma fraude",


diz Manuel Huerta. "Não se pode descartar a possibi-
lidade de ter havido um caso de filme snuff, porque
existe um certo interesse neles. Mas é um interesse
que surge da própria figura cinematográfica. São pes-
soas curiosas e procuram o que podem encontrar, mas
sem uma resposta real à sua procura", explica após ter
vasculhado a Deep Web em busca de provas da exis-
tência deste possível comércio nas redes.
É uma fraude porque, como diz Huerta, "há defrau-
dadores que tiram partido desta procura. Basicamente,
eles são verdadeiros "hustlers" que podem vender-lhe
qualquer produto, como bases de dados fraudulen-
tas, e que respondem à procura evidenciada nalgum
fórum, alegando ter este tipo de gravações. Condi-
cionam a entrega a um pagamento prévio e, quando
o recebem, simplesmente desaparecem. Chegam a al-
cançar ofertas tão altas como $150.000 por uma fita.
É um negócio extremamente lucrativo e, ao mesmo
tempo, muito seguro porque, como Manuel Huer-
ta argumenta, "são transações realizadas através da Cena do Holocausto
Deep Web, sem qualquer possibilidade de rastrea- Canibal, um controverso
bilidade. Assim que os autores da fraude recebem o filme de terror lançado
dinheiro, dispersam-no e geralmente levam-no pa- em 1980.
ra sucursais em países terceiros, geralmente bancos
sem organismos reguladores por trás deles. Em 95

Há muita fraude em torno dos filmes snuff. Foram pedidos até


150.000 euros por um filme com este conteúdo
SUPER 85
ASC

A série documental Veleno


(2021) conta a história das
acusações de pedofilia e
satanismo que tiveram lugar
em Itália em 1997.
SHUTTERSTOCK

O Deep Web é um conteúdo


da Internet que não é
indexado pelos motores de
busca convencionais.

86 SUPER
É tão difícil acreditar em filmes snuff que Al Goldstein ofereceu um
milhão de euros a qualquer pessoa que lhe mostrasse um deles

por cento dos casos, estes pagamentos são efetuados Paz Velasco de la Fuente também menciona o risco
utilizando moedas criptográficas. de sanções penais que estes criminosos devem ter em
Além disso, não devemos esquecer que estamos a conta e assumir, o que pode ir até à pena de morte em
falar de quase um assassinato por encomenda, pelo alguns países. Por esta razão, diz ele, "é muito mais sim-
que é muito difícil para aqueles que foram enganados ples e menos arriscado filmar simulações de tortura ou
ousarem denunciá-lo. assassinato usando efeitos especiais de qualidade e fazê-
Noutras ocasiões, o que lhes é dado são "clips de fil- -los parecer como a execução de crimes reais".
me retirados de películas autênticas da Série B que não Além disso, acrescenta de la Fuente, "filmar um
são muito conhecidas. É preciso pensar que a Deep Web filme snuff requer, entre outras coisas, uma rede
representa 95% de toda a informação que se move na muito bem organizada e preparada na qual diferen-
Internet. E a falta de rastreabilidade destas transações tes tipos de pessoas têm de estar envolvidas, com
torna-o um terreno ideal para fóruns deste tipo", diz ele. papéis bem estudados e descritos, uma vez que cada
uma tem um papel específico. Por outro lado, uma
OUTRO PONTO QUE PODE DEITAR POR TERRA A CRENÇA EM FILMES vítima tem de ser procurada e encontrada e uma
SNUFF É UMA SIMPLES QUESTÃO DE LOGÍSTICA. Obviamente, exis- pessoa com certas características para executar o
tem grandes dificuldades, quase intransponíveis na maioria guião do filme, registá-lo, vendê-lo ou distribuí-lo e
dos casos, que teriam de ser ultrapassadas por quem de- fazer desaparecer a vítima e quaisquer vestígios que
cidisse fazer uma gravação deste tipo e comercializar este possam ter deixado".
tipo de filme. Nas palavras do perito Manuel Huerta: "Al- A sua existência é tão difícil, diz o autor, que numa
guém que tenha decidido comercializar este material muito ocasião, Al Goldstein, um produtor de filmes pornográ-
específico deve ter em conta muitos aspetos importantes. ficos de baixo orçamento, ofereceu mesmo uma recom-
Antes de mais, deve ser muito protetor do seu anonimato. pensa de não menos de um milhão de euros a quem lhe
E acrescenta: "Ele deve fazer todos os esforços para cobrir mostrasse uma destas gravações.
completamente o seu rasto, porque, claro, sempre que há Tanto quanto se sabe, não recebeu nenhum até à data
um alerta deste tipo, a polícia leva-o muito a sério". do seu falecimento em 2013.e

SUPER 87
EA VR OT LÍ CU UÇ ÃL O

DE VENENO A ELIXIR DA VIDA

A ORIGEM DO
OXIGÉNIO
TERRESTRE O nosso planeta nem sempre dispôs de oxigénio nas
concentrações atuais. Pelo menos dois grandes eventos
primitivos de oxigenação estão ligados à sua origem. Os
cientistas consideram a vida microbiana responsável por
esta mudança que transformou a Terra para sempre.

Texto por JAVIER RADA

88 SUPER
Um estudo publicado na
SHUTTERSTOCK

Nature Geoscience estima que


em cerca de 1000 Ma a
atmosfera ficará sem oxigénio
e voltará a assemelhar-se à da
Terra primitiva.

SUPER 89
ASC
Diorama
mostrando vida
marinha em
Ediacara, um
local pré-
câmbrico numa
área montanhosa
em Adelaide,
Austrália.

E
m termos humanos, seria como
uma história de horror bacterio-
lógico, micróbios que tinham de
AGE

morrer, fugir ou adaptar-se. Um


veneno que penetrou no plane-
ta por ondas e picos: primeiro Micrografia de luz
permeou os mares, depois a su- de algas azuis-
perfície da terra, e finalmente esverdeadas de
acumulou-se na atmosfera. água doce
Para compreender exata- (cianobactérias).
As células destes
mente o que aconteceu, pense
microrganismos
nas vítimas desse holocausto; tente encontrar um re-
estão enfiadas
fúgio atual sem oxigénio na Terra habitável (restam como contas,
poucos), um lugar que poderia ter acolhido os refugia- sem núcleos e
dos daquela extinção em massa que ocorreu no início do sem plastídeos.
Paleoproterozóico, há cerca de 2,4 mil milhões de anos.
Essa zona estanque, essa "Arca de Noé" dos seres micro-
bianos primordiais, é o seu estômago. Um ecossistema plantas, a energia necessária para a vida e o movimento,
primitivo, ainda anaeróbico (não utilizador de oxigénio) a respiração, o céu azul... tudo hoje é medido por este gás.
subsiste aí. É um bunker isolado do processo que ocorreu Basta pensar na camada de ozono (O3), que é formada a
há milhares de milhões de anos. Todos os dias interage partir do oxigénio (O2) . Até aparecer, os primeiros seres
com um êxodo, porque a essa parte do seu intestino mal vivos, organismos unicelulares, estavam condenados a vi-
chega o oxigénio. ver no escuro, em locais onde não seriam atingidos pela
Esse veneno tinha sido escasso (na sua forma livre) radiação mortal da qual o ozono nos protege.
durante eons. Uma força biológica teve de o libertar em O que hoje tomamos por garantido, o ar tal como o
quantidades incríveis para formar nada menos do que 21% necessitamos (cerca de 78% de azoto inerte e 21% de
da atmosfera atual. Chamamos a essa toxina, que mais tar- oxigénio), não estava lá. Ainda temos dificuldade em
de se tornou o elixir da vida, o oxigénio. E a sua história é compreender o processo. Como os seres vivos foram
misteriosa... Vamos contá-la. quem organizou a conspiração. Ainda temos muita in-
Houve vários episódios (estamos a falar de milhões de formação que não conseguimos resolver em tempo útil",
anos, M.a. em termos geológicos) que mudaram tudo. Se explica J. Javier Álvaro, paleoclimatologista e diretor do
por um feitiço ou por um salto quântico você pudesse voltar Instituto de Geociências (IGEO).
ao período arcaico (mais de 2500 Ma atrás), não reconhe- Tanto quanto podemos ler hoje, pode-se dizer que foi a
ceria este planeta. Não conseguiria respirar. Morreria em própria vida que iniciou o novo caminho, foram as comu-
minutos. Triste fim para a sua primeira viagem no tempo. nidades microbianas, as cianobactérias, especificamente,
O oxigénio passou de um veneno oxidante a um cata- que organizaram essa confusão inicial, desenvolvendo
lisador para quase tudo. A evolução dos animais e das um novo tipo de fotossíntese que resultou num desperdí-

90 SUPER
Um pouco mais de O2 e temos insetos gigantes
C ompreendemos o impacto do oxigénio na modulação da vida,
olhando para o Carbonífero, um período pré-histórico que te-
ve lugar há cerca de 359 milhões de anos. Houve uma emergência
bélulas de um metro... Apenas mais alguns por cento de oxigénio
livre na atmosfera... e para matar uma mosca teríamos de chamar o
exército ou a polícia.
de florestas e selvas, o que provocou o aumento das concentra- Essa concentração de oxigénio não pôde ser mantida, no
ções de oxigénio. Pensa-se que este aumento tenha chegado entanto, por uma questão de equilíbrio geológico. Demasiado
aos 35% (hoje em dia é de 21%). Isto causou enormes mudanças oxigénio, demasiada floresta, significava demasiados fogos. A Ter-
na vida complexa. Apareceu o fenómeno do gigantismo animal. ra voltou então a autoregular-se até às condições atuais, que se
Monstros terríveis. Libélulas de dois metros de comprimento, li- mantiveram mais ou menos estáveis até aos dias de hoje.

SHUTTERSTOCK
cio com enormes quantidades de oxigénio. "Trabalhamos primeiro campo magnético. Algum oxigénio apareceria
com uma série de modelos que apontam para aconteci- através de processos químicos, como a fotoionização nas
mentos que aumentaram o oxigénio episodicamente, mais camadas superiores da atmosfera, mas apenas por um
do que como um aumento gradual", explica Álvaro. Entre curto período de tempo, pois o oxigénio é extremamen-
estes, destacam-se dois grandes eventos de oxigenação. O te amigável ou reativo: combina ou oxida rapidamente,
primeiro, conhecido como a Grande Oxidação, ocorreu combinando com outros elementos da tabela periódi-
no final do Arqueano (cerca de 2500 Ma atrás). O outro ca... Apesar de ser um dos elementos mais abundantes
ocorreu posteriormente, no final do Proterozóico (1700 do universo, por ser tão reativo, não é fácil acumular-se
milhões de anos depois). Em ambos os eventos o oxigénio na sua forma livre (O2) ."Para que a sua concentração
subiu a concentrações nunca antes vistas. aumente na água ou na atmosfera, não deve haver mais
nada oxidável", acrescenta Álvaro.
RASTREÁMOS ROCHAS, FÓSSEIS, PROCURÁMOS RESTOS BIOQUÍ- Embora possa não parecer, esta jovem Terra será um lu-
MICOS PRIMITIVOS, DADOS ISOTÓPICOS. Agora temos muitos gar de sorte. Aí surgirá a primeira vida que não utilizará
dados, mas temos de ordená-los cronologicamente. Antes oxigénio nos seus processos metabólicos, mas outros ga-
destes eventos havia uma atmosfera primitiva e inóspita. ses e minerais. Seres extremófilos. Futuros refugiados.
"Tanto quanto sabemos, não havia oxigénio no Arquea- Ao contrário dos seus planetas irmãos Vénus e Marte, a
no, ou pelo menos não nos níveis que se conheceram Terra está localizada dentro do que os cientistas chamam
mais tarde. Entre outros indicadores, há minerais bem a "zona habitável", e isto tem sido fundamental para a
preservados que não teriam sobrevivido numa atmosfera história do oxigénio na Terra: mantém água líquida na su-
oxidante", explica José María Fernández, geólogo da IGEO. perfície e foram as cianobactérias e os seus descendentes,
A Terra infantil estava a ser formada por calor radioati- algas fotossintéticas, que souberam aproveitá-lo. A fotos-
vo e elementos voláteis. Esse mundo vulcânico, há mais síntese, que causa oxigénio como dano colateral, permite
de 4000 Ma atrás, seria semelhante ao Mordor do Senhor a decomposição das moléculas de água e a captura de CO2
dos Anéis: um céu cego, outros pores-do-sol, um ocea- para gerar matéria orgânica. A energia luminosa é con-
no negro, o constante bombardeamento dos viajantes vertida em energia química sob a forma de açúcares. Estes
espaciais, como numa teomaquia ou guerra dos deuses eram abundantes na Terra primitiva.
gregos. Um sol demasiado jovem e inútil. O impacto Mas o oxigénio livre precisa de mais do que uma zona
dos planetesimais que formaram a primeira Terra e Lua, de conforto para se acumular. "O oxigénio não poderia
trouxe consigo elementos que mais tarde gaseificariam ter aparecido em quantidade considerável antes da evo-
e formariam a atmosfera inicial não respirável, graças lução das cianobactérias. Mas não é assim tão simples,
à gravidade do núcleo incandescente do planeta e do mais fatores estiveram envolvidos", explica Donald E.

Até ao advento do oxigénio, os primeiros organismos unicelulares


estavam condenados a viver na escuridão
SUPER 91
Canfield, Professor de Ecologia na Universidade do Sul Os Tardigrados (na
da Dinamarca. foto) são capazes de
Existem diferentes modelos que tentam explicar os au- sobreviver no vácuo
mentos acentuados que ocorreram no final do Arqueano do espaço e suportar
e do Proterozóico. A mera existência de bactérias fotos- -200°C.
sintéticas, que já existiam há alguns milhões de anos, não
explica estes grandes eventos de oxigenação.
Alguma coisa tinha de causar o seu crescimento explo-
sivo. E a sua explicação reside num fator climático, outro
fenómeno planetário já descrito pelos geólogos de Har-
vard Paul Hoffmann e Daniel Schrag no final dos anos 90:
a Terra como uma grande bola de neve. "Neste momento é
o modelo mais robusto que liga o fim da era do gelo com de-
senvolvimentos espetaculares de tapetes de cianobactérias
que geraram aumentos súbitos de oxigénio", diz Álvaro.

CHAMAM-LHES BOLAS DE NEVE PORQUE ERA ISSO QUE TODO O


NOSSO PLANETA ERA: BRANCO, GELADO, UMA ENORME BOLA DE
GELO, coberta por várias camadas de gelo que chegavam
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ao equador. "Dois episódios do período pré-câmbrico presentada por minerais como a hematita (Fe2O3). Isso
destacam-se para este tipo de glaciação global. Um deles significa que, nesse período, "o oxigénio já era suficiente-
marca a transição Arqueano-Paleoproterozóica, há cerca mente abundante para que quase todo o ferro dissolvido
de 2500 Ma atrás: a glaciação Huroniana", explica Álvaro. no oceano se precipitasse", explica Álvaro.
Segundo esta teoria, quando o gelo recuou devido ao As seguintes "bolas de neve" (conhecidas como as Es-
aquecimento climático, os nutrientes transportados pe- turtiense e Marinoana) terminaram muito mais tarde, no
los glaciares fertilizaram maciçamente o oceano, gerando final do período criogénico (assim chamado por ser tão
eutrofização. Isto produziu crescimentos espetaculares frio), há cerca de 630 Ma atrás.
de colónias de cianobactérias: a superfície e o fundo dos
oceanos cobertos por esteiras microbianas exalaram bo- A TERRA ESTAVA PRESTES A TER O ASPETO QUE TEM HOJE. AS
lhas infinitas de oxigénio. QUANTIDADES DE CONCENTRAÇÃO DE OXIGÉNIO permitirão a
O fim da glaciação huroniana, provavelmente induzida complexidade para além das comunidades microbianas.
pelo movimento dos continentes ou por perturbações no A vida irá dividir-se em dois grandes grupos, refugiados
eixo de rotação da Terra, coincide com o primeiro grande e novos colonizadores. Uma janela de oportunidade. Os
evento de oxigenação. Sabemos isto, entre outras coisas, primeiros metazoários ou animais emergem no regis-
pela precipitação maciça de ferro no início do Proterozói- to geológico. Um milagre pode acontecer, a formação de
co, presente como ferro em bandas na Austrália, Canadá colagénio, uma proteína fundamental para as fibras mus-
ou Escandinávia. Muito ferro que só poderia ter sido for- culares e o movimento, "que só é sintetizada a partir de
mado por um aumento brutal de oxigénio na atmosfera. 10% de concentração de oxigénio", explica Álvaro. E as-
"Na forma menos oxidada (Fe2 ), o ferro é solúvel na sim o Câmbrico surgiria (cerca de 540 Ma atrás): a época
água", explica Fernández, "mas assim que o oxigénio está da explosão da vida complexa. O oxigénio pôs fim ao mo-
presente, oxida (Fe3 ), deixa de ser solúvel e precipita-se", nopólio da vida microbiana, que tinha durado quase 4 mil
acrescenta ele. Esta é uma pista, a arma fumegante re- milhões de anos, ou seja, 85% da história da Terra.
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O exame dos
destroços de
asteróides que
afetaram a Terra
revelou que estes
acontecimentos
eram mais comuns
do que se pensava e
atrasaram o
aumento do
oxigénio no planeta.

92 SUPER
Será que um dia impregnado a matéria orgânica e isolado esta do oxigénio
ficaremos sem oxigénio? ambiente? Alguns cientistas apontam a lama, argila (um
material também modificado por ação microbiana, seja
fungo, líquen ou musgo), um elemento fundamental para
U m estudo recente publicado na revista Nature
Geoscience alertava para esta possibilidade. A
investigação, conduzida pela NASA e pela Universi-
a preservação da matéria orgânica nos sedimentos.

dade Toho do Japão, sugere que, ao longo de alguns "ALGUNS INVESTIGADORES SALIENTAM QUE O AUMENTO DE
milhares de milhões de anos, poderá acontecer, de- OXIGÉNIO NO PERÍODO PRÉ-CÂMBRICO estaria relacionado
pendendo das condições biológicas, cósmicas e com a proteção do carbono da ação oxidante do am-
planetárias. Atualmente, contudo, as quantidades de biente", explica Fernández. Talvez o que aconteceu
oxigénio que temos na reserva fóssil da atmosfera são é que esta proliferação de substratos de argila, que
muito elevadas. Existem excedentes. As comunida- ocorreu após as glaciações, facilitou o facto de parte
des microbianas também operam como reguladoras. da matéria orgânica ter sido abrigada nestes locais de
Teorias como Gaia, uma tese promovida por James Lo- sepultamento, isolada do ambiente.
velock, tentam argumentar que a vida microbiana tem Mas também pode ter sido ajudado pelo aumento sig-
vindo a regular os grandes equilíbrios geoquímicos nificativo da intensidade do jovem sol (facilitando o
desde os tempos antigos. Mas a mudança climática processo de fotossíntese), a inclinação do eixo de rotação
que estamos a desencadear é historicamente inigua- produzindo mudanças sazonais, ou o abrandamento da
lável. "O problema com a ação humana é que a taxa de própria rotação da terra, produzindo dias mais longos. O
mudança que estamos a causar é muito mais rápida problema é que é difícil encontrar provas do passado, por-
do que as comunidades microbianas são capazes de que tudo se recicla no planeta Terra.
enfrentar, o que levará muito tempo a reagir. Saímos de A partir desses acontecimentos no período pré-cam-
enormes glaciações graças ao aquecimento global, brico, o oxigénio será uma realidade até aos dias de hoje.
mas foi muito mais lento do que o atual", diz J. Javier Irá flutuar em diferentes episódios ao longo da história
Álvaro, diretor da IGEO. humana, mas voltará a autoregular-se, como se a vida in-
Sempre houve novos equilíbrios que permitiram que terviesse para agir como guardiã do elixir. É um equilíbrio
a vida não se extinguisse, mesmo que fosse no pro- geoquímico entre a atmosfera oceânica e a sua variante
longamento, como aconteceu no período Permiano, climática, mas sobretudo, pela atividade microbiana que
quando a terra de Pangea era um deserto. "Até à inter- o mantém", diz Álvaro.
venção humana, tem sido a vida bacteriana que tem Quando procuramos vida noutro planeta, procuramos
mantido o equilíbrio", conclui Álvaro. A questão é se a principalmente provas de oxigénio. Procuramos um de-
vida tal como a conhecemos hoje pode recuperar sob sequilíbrio. Mas ainda não sabemos como surgiu a vida.
estas novas condições. Apenas uma ideia parece clara: são as comunidades mi-
crobianas que dominam o planeta, não nós.
Atualmente, os refugiados que sobrevivem no seu inte-
Mas não é assim tão simples, recorda-nos Canfield. "O rior hermético estão protegidos do oxigénio venenoso e
oxigénio foi produzido pelas cianobactérias, sim, mas o praticam a fermentação (vida sem ar). Vieram ter consigo
seu oxigénio também foi utilizado à medida que próprias utilizando o leite da mãe. Você dá-lhes casa e eles digerem.
cianobactérias se decompunham. Portanto, a única forma São como restos de um mundo reduzido, os primordiais,
de o oxigénio se poder acumular na atmosfera relaciona-se os primeiros habitantes do planeta.
com o enterro de grande parte das cianobactérias (ou ou- Se depois de comer sentir que um certo gás (metano)
tros organismos que contêm carbono orgânico)", diz ele. quer fugir de si, pense na sorte e nos holocaustos passa-
Outra reviravolta. A degradação desse excesso de vida, dos. No incrível mistério. Esses micróbios primordiais
essas florações, também roubaram oxigénio. A matéria ainda cá estão. e
orgânica acaba por se depositar no fundo do oceano, onde
se decompõe e se degrada, consumindo grandes quanti-
dades de oxigénio até ficar isolada por sedimentos que a Todo o nosso
cobrem. Felizmente, nem tudo o que produzem os orga- planeta foi uma
nismos fotossintéticos é consumido pela degradação da grande bola de
matéria orgânica ou pela respiração aeróbica de outros neve. Uma manta
organismos. De facto, na realidade, esse desequilíbrio de enorme, branca e
21% que flutua atualmente na atmosfera é o oxigénio fós- gelada que
chegava ao
sil, ou seja, o excedente que foi despejado após eventos de
equador.
oxigenação maciça. Que substância natural poderia ter

O oxigénio pôs fim ao


SHUTTERSTOCK

monopólio da vida
microbiana, que tinha durado
4000 Ma, ou seja, 85% da
história da Terra
SUPER 93
FA IRS TI OÍ LC OUGLI OA

Estrutura dos

AGE
fatores de
crescimento.
Juntamente com
as hormonas,
desempenham um
papel fundamental
na comunicação
intercelular.

AS ESTACÕE
DAS HORMONA
O ciclo das hormonas mais conhecido é aquele associado ao dia
e à noite, os ritmos circadianos. O que não sabíamos até agora
é que também existem ciclos anuais relacionados com elas.
S
Texto de LAURA G. DE RIVERA,
jornalista científico

94 SUPER
D
izem que a primavera muda o vida quotidiana durante este período", diz o diretor
sangue, e a ciência pode mais do estudo, Alon Bar, um biólogo especializado em
uma vez corroborar o que diz modelos matemáticos e gestão de Big Data, , à Su-
o ditado popular. A explica- per Interessante. A explicação adatativa poderia ser
ção pode residir em algo tão que "estimula-o a sair da caverna e procurar comida
concreto como as hormo- quando o tempo se torna mais amigável e a comida
nas: neste caso, a culpa é do está mais disponível", diz ele.
cortisol, como uma equipa
do Departamento de Biolo- MAS ERA ALGO PONTUAL OU OUTRAS HORMONAS TAMBÉM MU-
gia Molecular do Instituto de DAVAM COM AS ESTAÇÕES DO ANO? Os cientistas propuse-
Ciência Weizmann (Israel) ram-se a a investigar e mediram os níveis de outras
acaba de estudar. No ano passado, os investigadores onze. Descobriram, por exemplo, que a testosterona
propuseram-se a examinar quanto desta molécula es- nos homens e o estradiol nas mulheres experimentam
tava presente em seis milhões de amostras de sangue, dois picos em janeiro e agosto, as épocas do ano em
colhidas durante diferentes meses do ano, de homens que a nossa disponibilidade para a reprodução au-
e mulheres com idades compreendidas entre os 20 menta. Talvez porque é uma boa ideia trazer crianças
e os 50 anos. Para sua surpresa, descobriram que a ao mundo nos meses suaves de maio e setembro. A
hormona do stress por excelência atinge o seu clímax hormona do crescimento, entretanto, é produzida em
entre o final de março e abril, "algo que pode estar maior quantidade na primavera do que durante o res-
relacionado com o aumento de energia e estímulos na to do ano, mais uma vez, talvez porque é a altura em

Efeitos do cortisol

Altera o estado de ânimo em O hipotálamo e a pituitária


função da situação. controlam a sua produção.

Estimula a gluconeogénese Aumenta a glicose no sangue,


no fígado. a pressão arterial e
enfraquece o sistema
imunitário.

Abranda a digestão.

Reduz as reações alérgicas.


Ação anti-inflamatória.
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Reduz a sensação de dor.


O corpo começa a suar.

Promove a osteoporose e
enfraquece os músculos.
SUPER 95
GETTY
de uma zona geográfica, maior a amplitude dos ci-
clos dos seus habitantes. Além disso, no hemisfério
norte, seguirão o padrão oposto ao hemisfério sul
em termos da época do ano", explica Bar, quando
compararam o pico sazonal do cortisol em diferen-
tes países. "Por exemplo, na população de Israel (la-
titude 32N), o pico estava cinco por cento acima da
média. Algo semelhante aconteceu na Austrália (la-
titude 30S), embora aqui o pico tenha ocorrido seis
meses mais tarde do que em Israel. Por outro lado, o
pico tinha uma diferença muito maior em relação à
média dos habitantes da Suécia, cerca de 20 por cen-
to", explica o biólogo. Como ele confirma, "parece
claro que o ritmo dos picos hormonais e dos canais é
marcado por estímulos ambientais tais como a tem-
peratura e as horas do dia". Sobre este último ponto,
Micrografia leve de uma o papel da melatonina - uma hormona produzida no
glândula tiróide cérebro que é ativada pela luz e escuridão - abre uma
mostrando os folículos. nova porta para a investigação, como uma espécie de
Estes são revestidos por
"sensor" que poderia desencadear esta série de alte-
uma camada de células
epiteliais cuboidais que
rações hormonais ou ciclos.
secretam T3 e T4.
TAMBÉM RESTA ESCLARECER ATÉ QUE PONTO ESTAS FLUTUA-
ÇÕES, que muitas vezes podem ter pequenos efeitos se-
que há mais recursos disponíveis para alimentar es- cundários,têm impacto no nosso comportamento. "Na
sas crianças em crescimento. Mas de todas as hormo- maioria da população, as variações sazonais das hor-
nas testadas, a que mais flutuou com as estações foi a monas são pequenas, pelo que não devem ter um efeito
hormona tiroideia T3, que é responsável por ajudar a demasiado grande sobre o aspeto psicológico. No en-
regular a temperatura do corpo, assegurando que li- tanto, nos países de alta latitude, onde as flutuações
berta ou conserva o calor conforme as circunstâncias são maiores, podem contribuir para a prevalência de
o exigirem. transtornos cíclicos afetivos ou do estado de ânimo",
Os seus resultados, porém, não são universais, adverte Bar.
mas correspondem à população de um país com um A dança está a decorrer. Mas na realidade, é mais
certo clima, como Israel. "É lógico esperar uma re- como uma rave multitudinaria, com ciclos que se
lação entre as flutuações sazonais devido à latitude e intersetam ou se sobrepõem. Deve ter-se em conta
ao ciclo hormonal. Ou seja, quanto maior a latitude que temos cinquenta tipos diferentes de hormonas
SHUTTERSTOCK

Ritmo circadiano
MELATONINA

INIBIÇÃO Glândula pineal

Diagrama que
explica a relação
entre o ritmo
circadiano e o
ciclo sono-vigília.
ESTIMULAÇÃO
NSC A ilustração
mostra como a
Núcleo exposição à luz
supraquiasmático solar regula a
secreção de
melatonina no
cérebro humano e
em muitos
Gânglio
cervical processos
superior corporais.

96 SUPER
SHUTTERSTOCK
A hormona
melatonina está
envolvida no ciclo
do sono. Os seus
níveis são mais
elevados à noite.

Nem todos têm o mesmo relógio interno. Se fôssemos para


uma caverna, o ciclo diário variaria ligeiramente
no nosso corpo, cada uma com a sua própria função e do é dia e quando é hora de dormir (nem todos têm o
ritmo, interagindo com as demais. É em grande parte mesmo relógio interno: se entrássemos numa caverna
dependente da sua ação no nosso corpo que podemos sem luz do exterior, o ciclo diário de todos - acordar-
fazer coisas humanas como engravidar, dormir, apai- -dormir - variaria ligeiramente em cerca de 24 horas:
xonar, rir, digerir alimentos, crescer, querer cantar o seu poderia ser 23,2 horas e o meu 24,6). Através
ou meter-se debaixo da cama, para citar apenas algu- de sinais enviados pelo SCN ao resto do corpo, este
mas das atividades mais comuns. sabe quando é altura de produzir mais ou menos de
As hormonas que os nossos corpos segregam não certas hormonas. Por exemplo, as ordens que envia
só seguem ciclos sazonais ou lunares, mas também ao hipotálamo regulam a atividade da hipófise, que
variam entre a noite e o dia. Cortisol, hormona ti- segrega uma hormona (ACTH) que dirige a produção
roideia e prolactina - que faz com que as mulheres de cortisol nas glândulas supra-renais dos rins. Como
que amamentam produzam leite - seguem ciclos de resultado, os níveis de cortisol são cinco a seis vezes
sono e vigília. Mais conhecida é a melatonina, uma mais elevados pela manhã do que à hora de dormir,
hormona extremamente importante que serve mui- caso contrário não conseguiríamos dormir! E não só:
tos propósitos essenciais, tais como estimular a se- sabe-se que a depressão grave pode estar relacionada
creção da hormona de crescimento, regular o apetite com um ritmo perturbado nos níveis de cortisol. Por
e apoiar o sistema imunitário, bem como ter efeitos esta razão, os doentes experimentam frequentemente
antioxidantes. Mas, sobretudo, é conhecida pelo seu um aumento ligeiramente superior ao normal desta
papel fundamental no nosso relógio biológico: sabe- hormona nas horas da manhã. Mas o verdadeiro pro-
-se que a sua produção aumenta quando a luz do dia blema é que não diminui ao longo do dia, mas conti-
cai e também que, com iluminação artificial e luz azul nua a sua atividade stressante a todo o vapor, mesmo
dos ecrãs, a melatonina é expelida e perturba todo o quando é altura de se desligar e descansar. O cortisol
ritmo circadiano, resultando em insónia ou proble- também não funciona bem para pessoas com Alzhei-
mas de sono. mer, com padrões elevados de cortisol quando deve-
ria ser baixo - o que explicaria porque é que as pessoas
O RELÓGIO QUE DÁ AS ORDENS NESTA ORQUESTRA QUE FLU- com Alzheimer são bastante ativas à noite.
TUA ENTRE A NOITE E O DIA É O NÚCLEO SUPRAQUIASMÁTICO
DO CÉREBRO (SCN, na sua sigla em inglês), que é res- OUTRO CICLO HORMONAL QUE AFETA A QUALIDADE DO SONO É
ponsável pela sincronização do seu ritmo vital com o VIVIDO POR MULHERES EM IDADE FÉRTIL, como mostra um
do mundo exterior. Para tal, está ligado ao nervo óti- estudo recente publicado no International Journal of
co, que sente a luz no nosso ambiente e nos diz quan- Endocrinology. Os investigadores analisaram como

SUPER 97
SHUTTERSTCOCK Com iluminação
artificial e luz azul
dos ecrãs, a
produção de
melatonina é
interrompida,
resultando em
problemas de
adormecer.

as flutuações das suas hormonas sexuais - gonado-


trofinas, progresterona e estrogénios - durante o ci- Os doentes com depressão
clo menstrual são responsáveis pelo facto de, na fase
pós-ovulatória luteal, muitas mulheres se queixarem sofrem frequentemente um
de um ritmo circadiano alterado, com dificuldade em
descansar durante a sonolência diurna. Um descon- aumento da hormona
forto que é ainda mais agudo naquelas que sofrem de
síndrome pré-menstrual.
Aí o temos. És tu, as tuas circunstâncias... e as tuas
cortisol, que é um pouco
hormonas. Tudo aponta para o facto de quando e
quanto elas circulam nas suas veias influenciarão não
mais elevada do que o
só a sua saúde, mas também o seu comportamento.
Tal como estudos mostram que as mulheres são mais
normal nas horas da manhã
suscetíveis de serem hospitalizadas ou detidas pela po-
lícia nos dias anteriores ao início do seu período, ou-
tros relacionam o pico de testosterona que os homens as ações que mais subiriam. Era um processo que se
experimentam no verão com um comportamento mais retroalimentava, porque os homens produzem mais
agressivo. "Todos os crimes violentos cometidos por testosterona quando ganham", diz Herbert.
homens, incluindo agressões sexuais, são mais fre-
quentes no verão. Contudo, nenhum aumento sazonal OUTRA HORMONA QUE ESTE NEUROCIENTISTA TEM INVES-
de carteiristas ou outros crimes não violentos foi ob- TIGADO PELO SEU ENVOLVIMENTO NA TOMADA DE DECISÕES
servado", escreve o psicólogo evolucionista Nigel Bar- FINANCEIRAS É O CORTISOL, que influencia muitos aspe-
ber em Psicologia Hoje. Os machos de outras espécies, tos psicológicos, desde a atenção à memória, a deteção
desde melros a elefantes e camelos, são também mais de erros, a ansiedade e a impulsividade. Além disso,
agressivos durante as épocas de acasalamento, quando também sabemos que "sobe rapidamente em situações
a sua testosterona é mais elevada. stressantes, especialmente quando se sente incerte-
Outras pesquisas sobre como esta hormona influen- za e se acredita que não se tem controlo sobre o que
cia as nossas ações podem ser encontradas nas expe- vai acontecer". Herbert descobriu que, como espera-
riências de Joe Herbert, professor de neurociência do, os corretores estudados tinham níveis de cortisol
na Universidade de Cambridge, que mostrou que os mais elevados nos dias em que as condições de merca-
níveis de testosterona influenciam a inclinação para do eram mais incertas. Mais interessante ainda, "au-
correr riscos. Em particular, mediu a sua presença em mentos a curto prazo do cortisol - momentos de stress
corretores de bolsa e descobriu que era mais alta nos agudo - aumentam o apetite de risco, enquanto níveis
dias em que ganhavam mais dinheiro. A sua equipa elevados prolongados - stress crónico - ocorre o con-
decidiu explorar mais esta questão com um grupo de trário. Assim, o cortisol ajuda a tomar uma decisão
voluntários, aos quais foi dada testosterona e depois rápida de compra - por exemplo, quando uma ação cai
pediu para jogarem um jogo que simulava o mercado subitamente - mas torna-se um obstáculo em transa-
de ações. "Apostaram mais porque se tornaram mais ções que requerem mais deliberação - tal como inves-
otimistas quanto à sua capacidade de prever quais tir numa empresa", observa. e

98 SUPER
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