EDIÇÃO EXCLUSIVA

DO ASSINANTE

1
Maio/Junho 2022 • ULTIMATO
 EDIÇÃO EXCLUSIVA
DO ASSINANTE

2
ULTIMATO • Maio/Junho 2022

Sempre na bênção
Ao falar dos quarenta anos de caminhada do povo de
Israel do Egito a Canaã, sob a liderança de Moisés, o
apóstolo Paulo faz uso de três diferentes palavras para
se referir aos seus antepassados (1Co 10.1-3). As três
medidas numéricas são: todos, a maioria e alguns.
Todos os israelitas estiveram sob a coluna de nuvem
(de dia) e sob a coluna de fogo (de noite). Todos atraves-
saram a seco o mar Vermelho. Todos foram batizados
tanto na nuvem como no mar. Todos comeram do maná
e beberam da rocha.
A maioria dos israelitas, no entanto, desagradou
a Deus com o seu comportamento. Por essa razão, a
maioria tombou no deserto durante o êxodo.
Alguns dos israelitas foram longe demais e abor-
receram tremendamente a Deus. Alguns praticaram a
idolatria e adoraram o bezerro de ouro. Alguns pratica-
ram a imoralidade e se deitaram com mulheres moa-
bitas. Alguns praticaram a provocação e falaram mal
do Senhor e do maná que ele lhes mandava dia após
dia. Alguns praticaram a murmuração e se amotinaram
contra Moisés e Arão.
Todos foram abençoados por Deus, a maioria não
correspondeu à expectativa de Deus e alguns comete-
ram extravagâncias na presença de Deus.
Onde você está: no primeiro, no segundo ou no
terceiro grupo?
É certo que você faz parte daquele todo que des-
fruta pelo menos da graça comum. Possivelmente
você desfruta também daquela graça especial que lhe
permite ter acesso a Deus e comunhão com ele. Mas
você não pode permitir a inclusão de seu nome entre a
maioria que se divorcia de Deus e comete asneira, nem
entre alguns que extrapolam por completo.
Tomáš Malík
Você precisa permanecer a vida inteira sob a coluna
de nuvem e sob a coluna de fogo até chegar à Canaã
celestial. Não se afaste dessa cúpula abençoadora. Você
precisa constantemente de alimento espiritual, do maná
e da água, do pão e do vinho.
Tome cuidado com a maioria. Não se junte a ela. Seja
um sobrevivente do desmiolamento das multidões. A
maioria tem o poder de atrair, puxar, convencer, enga-
nar, dominar, subverter. Veja o que Moisés ensinava ao
povo de Israel: “Não tomarás o partido da maioria para
EDIÇÃO EXCLUSIVA
fazer o mal” (Êx 23.2, CNBB). É a minoria, e não a maio-
DO ASSINANTE
ria, que atravessa a porta estreita e anda pelo caminho
apertado que leva à vida (Mt 7.13-14).
Tome mais cuidado ainda para você não se deixar
arrastar para o lado de alguns que seguem os desejos
da natureza pecaminosa, cometem loucuras cada vez
maiores e menosprezam toda norma. Para Pedro, esses
são como animais irracionais rumo à captura e à ruína.
Eles fazem do excesso seu prazer em pleno dia e são
insaciáveis no pecar (2Pe 2.4-16)
Você não pode cometer a loucura de pular do
sétimo céu para os porões da iniquidade. Continue
na bênção! Até o último dia! Até colocar o pé na terra
prometida!
De autoria de Elben César (1930-2016), fundador e
diretor-redator de Ultimato, os artigos desta seção são
textos diversos publicados nos primeiros anos da revista
e nas seções “Abertura” e “Pastorais” de edições mais
recentes.
MAIS NA INTERNET
Legado Elben César
ultimato.com.br/sites/elbencesar
Maio/Junho 2022 • ULTIMATO 3
 CARTA AO LEITOR

O que fazer frente

às adversidades? ISSN 1415-3165
Revista Ultimato – Ano LV – N° 395
Maio/Junho 2022
www.ultimato.com.br
Publicação evangélica não denominacional destinada à
evangelização e edificação, Ultimato relaciona Escritura
com Escritura e acontecimentos com Escrituras. Visa
contribuir para criar uma mentalidade bíblica e estimular
a arte de encarar os acontecimentos sob uma perspectiva
cristã. Pretende associar a teoria com a prática, a fé com
as obras, a evangelização com a ação social, a oração
com a ação, a conversão com santidade de vida, o suor de
hoje com a glória por vir.
Circula em meses ímpares

Fundador
Elben M. Lenz César

Winslow Homer
A oferta de paz, de serenidade e correlatos é grande no universo on-line e
off-line. Podemos constatar isso em literatura de autoajuda e espiritualista,
programas de coaching, playlists de músicas para relaxar, imagens para
“acalmar a mente”, exercícios de respiração etc. É fácil encontrar artigos do
tipo “Dicas para ser uma pessoa mais serena” ou “Como ser uma pessoa zen”.
A oferta corresponde ao aumento da procura, que por sua vez está
relacionada ao estado em que o mundo se encontra. Pandemia, conflitos
armados, violência, crise climática, instabilidade política e outros eventos
globais formam um quadro de incertezas propício à ansiedade e ao medo.
Cada um de nós convive também com particularidades que trazem situa-
EDIÇÃO EXCLUSIVA
Projeto gráfico: Rick Szuecs
Diagramação: Ana Cláudia Nunes
Impressão: Grafilar
Tiragem: 10 mil exemplares
Colunistas: Alderi Matos • Bráulia Ribeiro • Carlos
“Catito” Grzybowski • Carlinhos Veiga • Dagmar Fuchs
Grzybowski • Ed René Kivitz • Gladir Cabral • Marcos
Bontempo • Paul Freston • Ricardo Barbosa de Sousa
Rubem Amorese • Valdir Steuernagel
Participam desta edição: Alicia Bausch Macedo
Antonia Leonora van der Meer • Ariane Gomes • Cacau
Marques • Daniela Bianchin • Elben César • Elza Barcelos
Jacira Monteiro • Jan Greenwood • Klênia Fassoni
Lucas Pegoraro • Marcelo Bittencourt • Ricardo Agreste
Rosana Basile • Saulo Porto • Susan Chou • Thiago Costa
Vanessa Belmonte

ções concretamente aflitivas. São dias propícios para se perder a cabeça. Publicidade: anuncio@ultimato.com.br
DO ASSINANTE

Assinaturas e edições anteriores:

A serenidade é um tema bíblico, embora Jesus, os salmistas, os profetas
atendimento@ultimato.com.br
e os autores das cartas se refiram a este estado usando outras expressões. Reprodução permitida: Favor mencionar a fonte.
O reino de Deus é essencialmente um espaço de serenidade – individual e
coletivo. Os três maiores dons – fé, esperança e amor – e vários aspectos do Publicado pela Editora Ultimato Ltda., membro
da Associação de Editores Cristãos (AsEC)
fruto do Espírito – domínio próprio, alegria, humildade, mansidão, paz – são
Editora Ultimato
âncoras da serenidade. Como Consolador, o Espírito Santo gera e mantém
Telefone: (31) 3611-8500
em nós a serenidade, também por nos lembrar de que o mais importante Caixa Postal 43
drama de nossa vida já foi resolvido em Cristo Jesus. 36570-970 — Viçosa, MG
O que Asafe, ministro de louvor, descreve no Salmo 73 é uma intensa ADMINISTRAÇÃO/MARKETING: Klênia Fassoni
crise de falta de serenidade, a tal ponto de quase negar a fé; graças a Deus Ana Cláudia Nunes • Ariane Gomes • Lucinéa de Campos
ele registrou: “Quando o meu coração estava amargurado, agi como insen- EDITORIAL/PRODUÇÃO/ULTIMATO ONLINE:
Marcos Bontempo • Bernadete Ribeiro • Djanira
sato e ignorante. Contudo, sempre estou contigo; tomas a minha mão direita Momesso César • Vanessa Oliveira
e me susténs”. Habacuque – com os seus “ainda que...” – deixou exemplo de
serenidade a toda prova (Hc 3). Neemias, o líder empreendedor, nos inspira FINANÇAS/CIRCULAÇÃO: Emmanuel Bastos
Aline de Aquino • Cristina Pereira • Daniel César • Fábio
à serenidade que alia tranquilidade com muito trabalho de reconstrução em Freitas • Filipe Emerick • João Marcos Percinoto
tempos difíceis. Com Maria, aprendemos a arte da espera serena, de não se
VENDAS: Lúcia Viana • Daniela Maciel • Érica Oliveira
aborrecer com tantas coisas em aberto, não entendidas na sua totalidade. Juliani Lenz Fonseca • Romilda Oliveira • Rose Mary
A melhor resposta às adversidades é a serenidade! Arruda • Vanilda Costa
Esta edição traz a terceira reportagem do ano. Confira na página 30. ESTAGIÁRIOS: Aleff Oliveira • Kedma Júlia Muniz • Kevin
Boa leitura! Alexandre Lourencini

Klênia Fassoni

4 ULTIMATO • Maio/Junho 2022

EDIÇÃO EXCLUSIVA
DO ASSINANTE

5
Maio/Junho 2022 • ULTIMATO
 PASTORAIS
ARIANE GOMES

Amar de todo o coração

Maria é um exemplo singular de amor a Deus.
Na primeira menção a ela nos Evangelhos, seu amor
é uma entrega silente, concentrada, “quedada”, como
registra Lucas: “Maria quedava-se assentada aos pés do
Senhor a ouvir-lhe os ensinamentos” (10.39). O barulho
da rua no povoado, o vai e vem da irmã dentro de casa,
nada detém sua devoção de coração. Ela não tem pressa
para encerrar o tempo dedicado ao amigo e Mestre.
Em outro encontro, há tristeza e desolação. O cená-
rio é de dor, lágrimas e gemido: Lázaro, irmão de Maria
e Marta, morrera. Ao saber que Jesus chama por ela,
Maria corre ao seu encontro e, ao vê-lo, lança-se aos
seus pés e faz uma declaração sincera: “Se estiveras
aqui, meu irmão não teria morrido” (Jo 11.32). A dor da
partida do irmão amado não impede o reconhecimento
do insondável e todo-poderoso amor divino.
No caminho para Jerusalém, rumo à cruz, Jesus
encontra-se com Maria. Mais uma vez na casa dela e de

Fr Lawrence Lew,OP | L. Lew

seus irmãos. Mais uma vez para ser servido e adorado. E
em meio à conversa alegre – Lázaro havia ressuscitado!
– e ao movimento em torno da mesa de celebração,
Maria surge com gestos de amor e, “tomando uma libra
de bálsamo de nardo puro, mui precioso, ungiu os pés
de Jesus e os enxugou com seus cabelos; e encheu-se gentileza, da esperança e do acolhimento. Ele é bon-
EDIÇÃO EXCLUSIVA

toda a casa com perfume de bálsamo” (Jo 12.3). doso e terno. Seu ensino, sua companhia e palavras
DO ASSINANTE

Nos três encontros de Maria com Jesus o seu amor
por ele é extravagante e acolhedor: ao mesmo tempo
que se entrega como que derramando a si mesma – aos
pés de Jesus –, ela recebe o amor que ele lhe oferece:
no ensino, na restauração da vida, na revelação de que
ele é, de fato, “Cristo, o Filho de Deus que devia vir ao
mundo” (Jo 11.27).
Maria aprende a amar amando. Seus gestos são evi-
dência de genuína apreciação do amor de Deus e de sub-
missão a ele. Ela oferece disposição e tempo para ouvir
os ensinamentos, sinceridade e abertura de coração ao
falar de sentimentos e se prepara para demonstrar amor:
a melhor quantidade do melhor bálsamo que perfuma
toda a festa.
O amor de Maria a Deus impacta os de sua casa,
os judeus que lamentam com ela a morte de Lázaro, os
discípulos e outros, atravessando os séculos até chegar
a nós.
A recíproca de amor é verdadeira. Diante do silêncio
de quem escuta atento, do som de lamento e dor pela
perda de alguém amado e em meio à sala que recende
fino bálsamo, Jesus deixa romper as comportas da
de autoridade e a maneira como recebe e confirma a
adoração de Maria empurram-na para amar mais, servir
mais, adorar mais.
Amar a Deus dignifica o seu nome, que é bendito,
prepara aquele que o ama para o amor ao próximo e
é uma forma de testemunho aos que ainda resistem,
não ouviram falar ou anseiam desesperadamente por
dignidade, salvação, esperança e alegria.
Em tempos tão difíceis e cheios de hostilidade, de
guerras e perdas, de pobreza e lágrimas, tal como Maria,
recebamos Jesus de portas abertas na vida e na casa e
vamos correndo ao encontro dele para derramar todo
o nosso ser aos seus pés. Sejamos amáveis e amemos
a Deus de todo o coração e ao próximo como amamos
a nós mesmos.
Ariane Gomes atua como coordenadora de produção
de Ultimato e gestora de conteúdo do Portal Ultimato.
MAIS NA INTERNET
O argumento do amor
bit.ly/395-pastorais

6 ULTIMATO • Maio/Junho 2022

 SUMÁRIO

O CAMINHO DO CORAÇÃO
24 Quando a morte é o clímax daquilo
que já existia
Ricardo Barbosa

REDESCOBRINDO A PALAVRA DE DEUS

26 Mais Cristo e menos “política”
Valdir Steuernagel

FAMÍLIA
28 O casamento é um “campo
de treinamento”

Rawpixel
Carlos “Catito” e Dagmar Grzybowski

14
CAMINHOS DA MISSÃO
29 O jovem “rusgado” e a missão em
CAPA e a partir de Angola
Antonia Leonora van der Meer
Serenidade é definida como o estado da pessoa serena, que age
de maneira calma e tranquila. Serenidade subentende a existência
REFLEXÃO
de adversidades: é a condição de estar em paz apesar de. 33 A crise vocacional da igreja
Os artigos da matéria de capa nos convidam a novamente Jacira Monteiro
escolher o caminho da plena confiança em Deus. Isso não significa
fechar os olhos e cruzar os braços para a realidade. Ao contrário. HISTÓRIA
Fortalecidos pela serenidade, devemos nos engajar para viver no 34 O primeiro pastor brasileiro
mundo cuidando das pessoas, sendo família, sendo igreja. Alderi Souza de Matos

OPINIÃO
SEÇÕES 36 Transcendência e dignidade
Bráulia Ribeiro

EDIÇÃO EXCLUSIVA
3 ABERTURA OPINIÃO

DO ASSINANTE
4 CARTA AO LEITOR 37 O julgamento da grande Babilônia
6 PASTORAIS Ed René Kivitz
8 CARTAS
ACONTECEU COMIGO – MEU
10 MAIS DO QUE NOTÍCIAS ENCONTRO COM JESUS
12 RECONCILIE-SE!
41 Minha vida não é minha – entrando
30 REPORTAGEM na dança do Rei do universo
39 ARTE E CULTURA Daniela Bianchin

PONTO FINAL
42 Os aplicativos do Criador
Rubem Amorese
/editoraultimato Inscreva-se em nosso canal e acompanhe
as lives Diálogos da Esperança.
Podcast Ultimato Ouça devocionais diárias, playlists, histórias e mais!
Siga-nos no Spotify. SERVIÇO DE ATENDIMENTO AO LEITOR
/editora.ultimato Mais de 87 mil pessoas já “curtiram” a página Para assinar ou adquirir exemplares anteriores, consultar dados
de sua assinatura, comunicar alteração de endereço, tirar dúvidas
da Editora Ultimato no Facebook. Junte-se a nós!
sobre pagamento ou entrega, renovação e outros serviços.
@ultimato Quer saber o que a Editora Ultimato e seus • 31 3611 8500 31 99437 0043
blogueiros estão falando? Siga-nos no Twitter. de segunda a sexta, das 8h às 18h
@editoraultimato Acompanhe o dia a dia, os bastidores e as • atendimento_sac@ultimato.com.br
promoções da Editora Ultimato no Instagram. Editora Ultimato – Caixa postal 43 | CEP 36570-970, Viçosa, MG
Mais de 73 mil pessoas já nos seguem.

Maio/Junho 2022 • ULTIMATO 7

 CARTAS
O assunto abordado na matéria de capa
Saudades da Igreja (março/abril de 2022) é
justamente o que comecei a discutir com a
igreja neste tempo. Foi com grande alegria
que recebi essa edição. Será de grande valor
para reflexão de todos.
Antonio Carlos Nogueira, São Paulo, SP
O excelente artigo Alegrei-me quando me
disseram: vamos à casa do Senhor, do pastor
Luiz Fernando dos Santos, fez-me lembrar
dos irmãos da igreja perseguida: eles já
enfrentam, “normalmente”, muitas dificul-
dades para poder se reunir. Mas eles não
EDIÇÃO EXCLUSIVA
consideram suas vidas mais valiosas do que
DO ASSINANTE
aquilo que poderão enfrentar por Cristo,
nosso Senhor. Voltar à normalidade da vida
para nós do Ocidente não é parecido com a
normalidade para nossos irmãos do Oriente,
pois para eles a perseguição é tão certa
como o nascer do sol: ela acontecerá.
Marinaldo Ferreira Lima,
Belo Horizonte, MG
Tonica van der Meer é uma das pessoas
mais sensíveis – no bom sentido da palavra
–, mais humanas, mais serenas e mais doces
que já conheci (Um tributo a Tonica – 50 anos
de ministério, “Caminhos da missão”). Seu
compromisso com o evangelho de Jesus é
notável, e poucas pessoas têm coerência
entre discurso e vida como Tonica tem. Ela
tem sido um canal que espalha e irradia
a graça e o amor de Deus por onde passa.
Graças a Deus pela vida de Tonica! Vida
longa, saúde, alegria e paz, minha queridís-
sima irmã!
Carlos Caldas, São Paulo, SP
MINHA SEÇÃO PREFERIDA
“Pastorais” é a minha seção preferida. É a
8 ULTIMATO • Maio/Junho 2022
primeira que separo para uma leitura mais
detida. O artigo A verdadeira adoração
conduz à verdadeira missão, de Ronaldo
Lidório (janeiro/fevereiro de 2022), é uma
reflexão perfeita! “Um povo encantado com
Deus é um povo que declara o seu nome por
toda a terra.” Peço vênia para um adendo: um
povo apaixonado por Jesus é um povo que
faz a diferença na terra.
José Augusto Gabina de
Oliveira, São Luís, MA
AS BEM-AVENTURANÇAS
O artigo de Paul Freston sobre as bem-aven-
turanças foi muito esclarecedor e inspirador
(As bem-aventuranças: interpretações cristãs
antigas e modernas, janeiro/fevereiro de
2022). Consegui ver esse sermão de Jesus de
uma forma totalmente nova.
Jaqueline Stela Vilas Bôas, Bauru, SP
SAÚDE DA IGREJA
Talvez por uma auspiciosa coincidência, as
três edições mais recentes de Ultimato abor-
daram assuntos determinantes para a saúde
da igreja. Na edição 392 (O que será desta
criança? Cuidado, esperança e vida plena),
depreende-se a importância da adequada for-
mação cristã (no sentido mais pleno do termo)
para a sociedade. Já na edição 393 (Jesus –
singular, superior, suficiente), aponta-se para a
necessidade urgente de a igreja estar efetiva-
mente firmada no Senhor Jesus Cristo. E, por
fim, a edição 394 (Saudades da Igreja – Como
é bom e agradável quando o povo de Deus se
junta!) traz à tona a necessidade de refletirmos
sobre algumas nuances da comunhão entre
os irmãos, aspecto crucial em um mundo que
busca ressignificar a todo momento o que é
presencial e o que é virtual.
Rogério do Nascimento
Alves, São Paulo, SP
IGREJAS E FAKE NEWS
Parabenizo a doutora Magali Cunha por sua
reportagem (Igrejas e fake news, janeiro/feve-
reiro de 2022). A responsabilidade em verificar
a autenticidade das notícias antes de com-
partilhar é de cada um. Creio que o ambiente
das igrejas é permeado de muitas fake news
com aspecto noticioso, principalmente no
tocante a política (perseguição religiosa imi-
nente), vacinas, Covid, recortes de textos ou
vídeos ou áudios, fora do contexto. Como o
diabo é o pai da mentira, desde a primeira fake
news contada por ele no Éden, estaríamos,
como membros da igreja, cedendo a suas
investidas?
Elias Bispo, Recife, PE
PORTAL ULTIMATO
Excelente artigo sobre Maria (A herança de
Maria, de Lidice Meyer P. Ribeiro, “Opinião”,
23/2/2022). Conhecedora das Escrituras, que
traz no seu cântico o legado da esperança do
resgate da humanidade.
Natalino Soares
Incrível e atual o artigo Feminilidade “bíblica”
de Instagram: apologia ao machismo velada
de piedade cristã, de Cássia de Oliveira (Blog
Ultimato Jovem, 8/3/2022). Como mulheres,
precisamos ser libertas de padrões sociais
que nos oprimem mesmo dentro das igrejas.
Em nome da feminilidade é aceita a violência
contra a mulher e romantizada a sobrecarga
de ser filha, esposa, profissional e mãe per-
feitas. O que precisamos é estar aos pés
de Cristo, reconhecendo que somos filhas
amadas dele e fazendo somente o que ele
espera de nós. Todo o restante só será capaz
de nos sobrecarregar e nos tornar amargas
na vida.
Nany de Castro
Parabéns a Elaine Milazzo e Rosana Basile por
O ipê amarelo (Blog da Ultimato, 2/3/2022).
Obra inspiradora que denuncia e anuncia, por
transpor as barreiras com criatividade, mos-
trando que a tecnologia pode estar a serviço
do amor, que se traduz em vínculos e pontes
transpondo distâncias! A beleza salvará o
mundo!
Isabelle Ludovico da Silva
LIVRO ULTIMATO
A Missão da Igreja Hoje é um excelente livro,
um dos melhores que já li sobre o tema.
Michael Goheen, de
forma fluida e abran-
gente, aborda a
missão da igreja a
partir dos pressu-
postos das Escrituras,
entretanto adiciona
à “equação” os desa-
fios de nosso tempo.
É um chamado para
ser igreja em um
mundo caído.
Welington Reis
CENTRO PRESBITERIANO DE
PÓS-GRADUAÇÃO
ANDREW JUMPER (CPAJ)
O Centro Presbiteriano de
Pós-Graduação Andrew Jumper (CPAJ)
tem por finalidade principal capacitar
professores para seminários, institutos
bíblicos e outras instituições de ensino
teológico, bem como preparar outros
docentes e profissionais para atuarem
alicerçados numa cosmovisão reformada
em suas respectivas vocações.

PROCESSOS SELETIVOS
Para ingresso no
2º SEMESTRE DE 2022

Cursos EAD
• Teologia Sistemática

EDIÇÃO EXCLUSIVA
• Teologia Bíblica

DO ASSINANTE
• Teologia Aplicada
• Missiologia
• Exposição Bíblica

Especialização em Educação
Cristã (EEC) - On-line

Para ingresso no
1º SEMESTRE DE 2023

• Mestrado Magister Divinitatis (MDIV) - On-line

• Mestrado Magister Divinitatis (MDIV) - Híbrido
• Especialização em Educação Cristã (EEC) - On-line
• Revitalização e Multiplicação de Igrejas (RMI) - Híbrido
• Doutorado em Ministério (DMIN) - Presencial

CONHEÇA OS PROGRAMAS
CPAJ .MA C KENZIE. B R Maio/Junho 2022 • ULTIMATO 9
 + DO QUE NOTÍCIAS
// NOTÍCIAS

NINGUÉM É IRRECUPERÁVEL –
ASSOCIAÇÃO DE PROTEÇÃO E
ASSISTÊNCIA AOS CONDENADOS
COMPLETA 50 ANOS
Em 1972, na cidade de São José dos Campos, SP, por meio de
um grupo de voluntários cristãos, nascia a APAC – Amando o
Próximo Amarás a Cristo – para evangelizar e dar apoio moral
aos presos.
Sem deixar de ser APAC, mas com novo nome (Associação
de Proteção e Assistência aos Condenados), em 1974 a enti-
dade ganhou status jurídico com o objetivo ampliado: auxiliar
a justiça na execução da pena, na recuperação do preso, na
proteção da sociedade, no socorro às vítimas e na promoção
da justiça restaurativa.
Nestes cinquenta anos, a APAC tem auxiliado e preparado
os presos e suas famílias, os voluntários e a sociedade para o
biblesociety.ca

reingresso e a reintegração social.

Segundo relatório da Fraternidade Brasileira de Assistência
aos Condenados (FBAC), que dá assistência às APACs, no Brasil
há 141 unidades da APAC que acolhem 5.308 pessoas. Das uni-
SECRETÁRIO-GERAL DA dades existentes, 78 estão em processo de implantação, dez
SOCIEDADE BÍBLICA DA UCRÂNIA acolhem mulheres e uma acolhe apenas jovens. O estado bra-
sileiro que tem o maior número de APACs é Minas Gerais, com
FAZ APELO: “AJUDEM-NOS COM 46 unidades. Atualmente, todos os recuperandos trabalham e
BÍBLIAS” 2.442 estudam. Ainda segundo o relatório, a média nacional
de reincidência no crime é de 80%. No caso das pessoas que
Um apelo feito pelo secretário-geral da Sociedade Bíblica
passam pela APAC, esse índice é de 13,9%.
da Ucrânia às sociedades bíblicas do mundo deixa clara a
EDIÇÃO EXCLUSIVA
DO ASSINANTE

necessidade de ajuda que ultrapassa os limites do territó- MAIS NA INTERNET

rio onde se dão os combates de guerra: “Ajudem-nos com APAC: conheça um modelo de penitenciária inspirado no amor ao próximo
bit.ly/395-apac
Bíblias. Não temos Bíblias suficientes para distribuir”.
Desde o início da guerra, junto com as igrejas, a
Sociedade Bíblica da Ucrânia atua oferecendo ajuda huma-
nitária, Bíblias e literatura bíblica para a população. Visita
abrigos, soldados, hospitais e asilos levando auxílio. É um
trabalho duro, mas muito necessário.
Por causa da violência da guerra, milhões de pes-
soas saíram das suas casas e de seu país para buscar
refúgio nos países vizinhos. Em todos eles há sociedades
bíblicas e elas precisam de Bíblias em ucraniano para
oferecer aos refugiados. A ajuda de que as pessoas mais
precisam é a orientação e o consolo que só a Palavra de
Divulgação

Deus pode trazer.

40
anos foram necessários para que a Usina
Hidrelétrica de Itaipu atingisse a meta de
compensação ambiental referente à sua
implantação, por meio do plantio de 24
milhões de árvores nativas
72
por cento dos 53.300 artigos
científicos publicados no
Brasil entre 2014 e 2017 têm
mulheres como autoras
principais ou como coautoras
8 98
em cada dez brasileiros consideram anos é a idade de Priscilla
o aquecimento global uma questão Sitienei, mulher queniana que
muito importante, mas apenas sonha tornar-se médica e que
dois em cada dez dizem estar bem voltou às aulas para dar um
informados sobre o tema bom exemplo aos bisnetos

10 ULTIMATO • Maio/Junho 2022

 ULTIMATOONLINE

FRASES A C E S S E U LT I M AT O.C O M . B R
E L E I A A S N OV I DA D E S D E
U LT I M ATO TO D O S O S D I A S
SE HOJE VOCÊS OUVIREM PARA LER O CONTEÚDO DESTA SEÇÃO, ACESSE:

A VOZ DE DEUS, NÃO

WWW.ULTIMATO.COM.BR/SITES/BLOGDAULTIMATO/ULT395

SEJAM TEIMOSOS.
Hebreus 4.7, NTLH
U M A D E VO C I O N A L
ARTIGOS
PARA CHAMAR DE SUA
ALGUNS DOS
LIDOS

Jesus leva nossos pedidos imperfeitos e

os insere na história do reino de Deus para „ Amados pastores
colocá-los em ação, de acordo com a sua armados
vontade – incrível e maravilhosa. Paulo Ribeiro
Sarah Plummer „ Fazer discípulos
Presidente do Grupo de Trabalho de Intercessão do
Rachel Strong

Movimento de Lausanne envolve mais vida e

menos estratégia,
mais convicção e
Quando o cristão é fiel ao evangelho de Cristo AMAR, OLHAR, RECONECTAR menos eloquência
e não vive uma pseudoneutralidade religiosa, Karen Bomilcar Ronaldo Lidório
o mundo perdido encontra a verdade por Quanta vida brota de um olhar que
„ Mesmo em
meio de seu testemunho da mesma forma que comunica: “Eu amo você e acredi-
guerra, há racismo
encontramos uma luz em uma casa escura. to em você. Mesmo conhecendo escancarado
Rafael Zulato Langraff suas limitações, aprendi com Deus

EDIÇÃO EXCLUSIVA
Jacira Monteiro

DO ASSINANTE
Teólogo e escritor sobre as novas possibilidades”.

Se a igreja segue a Cristo, segue onde a A VIDA REDUZIDA À

necessidade é maior e permanece lá. SIMPLICIDADE
LIVROS
Stanley Jones
Ivan Rusyn
Reitor do Seminário Teológico Evangélico Ucraniano Jesus não apenas era simples, mas ALGUNS DOS
(UETS) em Kiev também exigia simplicidade. Ele a VISTOS
exigiu como uma condição para
Não há misericórdia sem excesso. entrar no reino de Deus.
José Tolentino de Mendonça „ O Que Cristo
Teólogo, poeta, arquivista e professor da Universidade Pensa da Igreja
Católica de Lisboa John Stott

Não há gente completamente boa nem gente „ O Que Rouba

a Sua Alegria?
completamente má, está tudo misturado e a Marta Kerr Carriker
separação é impossível. O mal está no próprio
Surface

gênero humano, ninguém presta. Às vezes a „ Pensamentos

gente melhora. Mas passa. Transformados,
A UM CLIQUE Emoções Redimidas
Lygia Fagundes Telles Ricardo Barbosa de
Escritora Todo o conteúdo oferecido em
Sousa
“MAIS NA INTERNET” desta edição
em bit.ly/ult395-mais

Maio/Junho 2022 • ULTIMATO 11

 + DO QUE NOTÍCIAS
CONCURSO PRISMA CULTURAL
PROMOVE ARTISTAS CRISTÃOS
BRASILEIROS
Entre fevereiro e março deste ano, Efeito Prisma, uma
organização paraeclesiástica dedicada a capacitar a Igreja
a reintegrar a fé com as atividades do dia a dia da socie-
dade, realizou o concurso Prisma Cultural, o qual convidou
artistas cristãos brasileiros para refletirem e produzirem
trabalhos mostrando que a arte é, sim, uma das formas de
manifestação da glória de Deus.
“A narrativa da redenção” foi o tema do concurso e
participantes em diferentes categorias – pintura, desenho,
design; crônica, conto, poesia; música; curta, dança, teatro;
e fotografia – apresentaram belíssimos trabalhos.
Jordana de Souza foi vencedora na categoria “Pintura,
desenho, design”. É dela a obra abaixo, “Luminária”.
Para conhecer os vencedores procure o Efeito Prisma
no Instagram: @efeitoprisma.
Jordana de Souza
RECONCILIE-SE!
Há um primeiro passo em qualquer tentativa de reconciliação
entre duas pessoas: o reconhecimento de que houve ruptura
no relacionamento.
Como poderemos ouvir e entender o convite à reconcilia-
ção com Deus se antes não acreditarmos nele e aceitarmos que
dele estamos separados pelo pecado?
É o próprio Deus, por meio de sua Palavra e do Espírito
Santo, quem nos convence de que vivemos em um estado de
rebelião, fruto da desobediência: “Porque todos pecaram e des-
tituídos estão da glória de Deus” (Rm 3.23). Para Deus, pecado
é pecado, rebeldia é rebeldia. Ele se ira, se enfurece, por causa
do pecado, a ponto de Habacuque suplicar: “Na tua ira, lembra-
-te de ter compaixão” (Hc 3.2). O salmista também reconhece:
“Se guardares os registros de nossos erros, ó Eterno, quem terá
chance?” (Sl 130.3).
Mas logo em seguida ele celebra: “Mas contigo está o per-
dão para que sejas temido” (v 4). A Bíblia está cheia de decla-
rações sobre a natureza perdoadora e amorosa de Deus. Davi
afirma aliviado: “Tu, Senhor, és bom, pronto a perdoar e cheio de
amor para com todos aqueles que te invocam” (Sl 86).
O ápice do amor de Deus é evidenciado em Cristo: “Deus
nos mostrou o quanto nos ama: Cristo morreu por nós quando

ainda vivíamos no pecado. E, agora que fomos aceitos por Deus

por meio da morte de Cristo na cruz, é mais certo ainda que
ficaremos livres, por meio dele, do castigo de Deus. Nós éramos
inimigos de Deus, mas ele nos tornou seus amigos por meio da
DA SENSIBILIZAÇÃO À MOBILIZAÇÃO, morte do seu Filho” (Rm 5.8-10).
Estes são os passos da reconciliação: reconhecer que o
DA MOBILIZAÇÃO AO ENVIO pecado nos separa de Deus e, arrependidos, invocar ao Deus
EDIÇÃO EXCLUSIVA

Em artigo publicado no site da Cooperação Missionária perdoador o seu perdão, por meio do sacrifício de Jesus Cristo.
DO ASSINANTE

Ibero Americana (COMIBAM), Gérman Ricca afirma que, Dê o primeiro passo e os seguintes. Com a ajuda de Deus!
embora os líderes e igrejas estejam mais atentos às neces-
sidades globais quanto à missão de Deus e o número de
atividades missionárias tenha aumentado, o envio missio-
nário diminuiu: “Há obreiros que expressam o desejo de ir
para o campo, mas não concretizam a saída. Sem dúvida,
isso se deve a múltiplos fatores e talvez um deles seja a falta
de uma mobilização efetiva”.
Para ele, além de rever filosofia, estratégias e meto-
dologias para que a mobilização se converta em envio, é
preciso repensar o discipulado de candidatos potenciais.
Eles devem compreender que a motivação correta para a
missão é, como filhos de Deus, aceitar o seu convite para
fazer parte do plano de redenção global. Cultivar a convic-
ção de que é uma honra colocar a vida a serviço de Deus
em sua missão deve transformar o discípulo, dar-lhe um
propósito, acender sua paixão e não deixar espaço para
que ele permaneça inativo com respeito à missão de Deus.
E esta é uma tarefa conjunta, que envolve todas as
gerações da igreja. O engajamento conjunto pode fornecer
a sinergia necessária para que a experiência dos anos se
sinta honrada pela força da juventude, e essa juventude
seja valorizada e valorize a experiência. Um só corpo com-
prometido com o impacto da missão de Deus no mundo.
Wirestock

Ariane Gomes
12 ULTIMATO • Maio/Junho 2022
 EDIÇÃO EXCLUSIVA
DO ASSINANTE

Maio/Junho 2022 • ULTIMATO 13

 MATÉRIA DE CAPA

a [re]descoberta da
serenidade
“S erenidade” é definida como o estado
da pessoa serena, que age de manei-
ra calma e tranquila. Pode ser enten-
dida também como a paz da mente, o equilíbrio
emocional, o estado não perturbado, o domínio
de si mesmo. Fúria, preocupação, inquietude e
agitação são alguns de seus antônimos.
“Serenidade” pressupõe a existência de
adversidades: é a condição de estar em paz
apesar de. É consenso que vivemos dias espe-
cialmente difíceis. Jesus se antecipou a isso em
suas palavras de despedida aos discípulos: “No
mundo vocês sofrerão aflições, mas tenham
bom ânimo. Eu venci o mundo” (Jo 16.33).
Os artigos a seguir nos convidam a nova-
mente escolher o caminho da plena confiança
em Deus. Isso não significa fechar os olhos e
cruzar os braços para a realidade. Ao contrário.
Fortalecidos pela serenidade, devemos nos en-
gajar para viver no mundo cuidando das pesso-
na jornada da [re]descoberta da serenidade.
Nossa gratidão aos amigos artistas que aceita-
ram o nosso convite.
A serenidade deve ser buscada também
nas igrejas locais. Seus membros, revestidos
com as novas roupas (Cl 3.12-17), devem ma-
nifestar as qualidades da serenidade: “Revis-
tam-se de compaixão, bondade, humildade,
mansidão e paciência. Sejam compreensivos
uns com os outros e perdoem quem os ofen-
der. Revistam-se do amor que une todos nós
em perfeita harmonia. Permitam que a paz de
Cristo governe o seu coração, pois vocês são
chamados a viver em paz. Cantem a Deus com
o coração agradecido”.
Boa leitura!
MAIS NA INTERNET
No portal Ultimatoonline, você encontra artigos, devocionais, podcasts
que complementam o assunto e apresentam mais sobre serenidade.
bit.ly/395-redescoberta-serenidade

as, sendo família, sendo igreja.

EDIÇÃO EXCLUSIVA

As imagens das páginas seguintes comuni-

DO ASSINANTE

cam visualmente a mensagem de versículos re-

lacionados ao tema. Deter-se em cada imagem
por algum tempo e refletir sobre o versículo que
a acompanha pode ajudar o leitor a prosseguir

“Senhor, não busco coisas grandiosas para mim. Na

verdade, acalmo e sossego minha alma; como uma criança
desmamada nos braços da mãe, assim é minha alma.”
– Salmos 131.1-2
Saulo Porto | @sauloportomme

14 ULTIMATO • Maio/Junho 2022


a espiritualidade em tempos de af lição:
a sabedoria de Marcos, o Asceta
PAUL FRESTON
E
m tempos de crise, aflição e estresse, como
tenho passado por motivo de saúde familiar,
voltamos aos alicerces da nossa identidade, pro-
curando a singeleza de visão e a clareza de foco. No
meu caso, essa volta inclui um mergulho renovado na
sabedoria cristã antiga da Filocalia, um compêndio
de textos sobre a espiritualidade e a oração escritos
por cristãos entre o quarto século e o século 15. Daí
a minha descoberta de Marcos, o Asceta (às vezes re-
ferido como Marcos, o Monge, ou Marcos, o Eremi-
ta). Suas datas são incertas, mas provavelmente viveu
no começo do quinto século no que hoje é a Turquia,
e depois na Palestina ou no Egito. Seus escritos são
uma inspiração, cheios de insights sábios em muitas
dimensões da vida. Aqui, destaco quatro: a aflição; a
psicologia do pecado; o discernimento; e a presunção.
A AFLIÇÃO
Que conselhos nos oferece Marcos sobre a aflição,
a razão precípua da minha leitura? É tudo que eu
não queria ouvir! Para começar, frases duras sobre o
comportamento inadequado na aflição:
“Eu lhes falei tudo
isso para que tenham
paz em mim. Aqui
no mundo vocês
terão aflições, mas
animem - se, pois
eu venci o mundo.”
– João 16.33
Thiago Costa e
Dan Bianchin
@ateliemild
EDIÇÃO EXCLUSIVA
DO ASSINANTE
“A angústia faz os sábios se lembrarem de Deus, mas
esmaga aqueles que O esquecem.”
“Não alegue ter adquirido a virtude a menos que você te-
nha sofrido a aflição.”
“Quem lamenta as aflições está apegado ao prazer sensual.”
“Os autoindulgentes se angustiam diante da crítica e das
durezas.”
“Quando testado por alguma prova, você deve tentar des-
cobrir, não por que ou por meio de quem aconteceu, mas
somente como suportá-la sem angústia ou rancor.”
Sempre me pareceu que os cristãos se dividem
em dois tipos: há os que melhoram a qualidade de
sua vida cristã nas aflições, mas têm mais dificulda-
de nos tempos tranquilos; e há os que se empenham
melhor nos tempos tranquilos, mas se perdem no
meio das aflições. Pertencendo eu ao segundo tipo,
as frases de Marcos me incomodam profundamen-
te. Tendendo ao esquecimento (não intelectual, mas
psicológico) de Deus na aflição, serei esmagado? E
nem preciso me perguntar se estou apegado ao pra-
zer sensual, nem se sou um autoindulgente que não
suporta as durezas. Como diz Marcos, “uma afli-
ção imprevista possibilita testar os nossos desejos
Maio/Junho 2022 • ULTIMATO 15
 MATÉRIA DE CAPA
ocultos”, pois o oculto se revela com uma clareza
dolorosa. O que nos leva aos benefícios da aflição:
“Uma semente não cresce sem terra e água; e uma pessoa
não se desenvolve sem o sofrimento voluntário e a ajuda
divina.”
“A aceitação paciente do que quer que aconteça acende a
lembrança de Deus.”
“A misericórdia de Deus está escondida nos sofrimentos
que não escolhemos.”
E ainda, uma versão antiga dos limões e a limo-
nada:
“Todo acontecimento é como um bazar. Quem sabe nego-
ciar terá grande lucro, mas quem não sabe sofrerá perda.”
Para terminar seus ensinamentos sobre a afli-
ção, Marcos adverte para o perigo de desperdiçar
o restante da vida, consumido pela autopiedade e
pelo ressentimento:
“Você deve lembrar continuamente de todas as bênçãos
que Deus lhe conferiu no passado e ainda confere. Você
não deve se tornar desatento, e assim passar o resto da sua
vida inútil e ingratamente.”
A PSICOLOGIA DO PECADO
Marcos, o Asceta também tem coisas profundas a
dizer sobre a maneira de o pecado agir dentro de
nós. Destaco alguns insights mais inusitados.
EDIÇÃO EXCLUSIVA
DO ASSINANTE
Primeiro, uma frase que vincula a psicologia do
pecado com o nosso tema anterior, a aflição.
“Em tempos de aflição, espere uma provocação ao pra-
zer sensual; pois, já que este alivia a aflição, é acolhido
prontamente.”
Em seguida, aponta-se uma outra fonte de ten-
tação, a memória da vida pregressa, a qual traz à
tona...
“... as paixões que resultam da predisposição. A predispo-
sição é a presença involuntária de pecados anteriores na
memória.”
O conceito de “predisposição” é elemento cen-
tral na maneira de Marcos e outros autores da
Filocalia entenderem a operação do pecado na pes-
soa humana e, consequentemente, os desafios que
o seguidor de Cristo enfrenta para crescer espiri-
tualmente.
Marcos também tem uma advertência aos mais
idosos, numa aplicação genial de Mateus 24.20:
“Assim como a fuga no inverno ou no sábado traz so-
frimento ao corpo e imundície à alma, o mesmo resulta
16 ULTIMATO • Maio/Junho 2022
do ressurgimento das paixões num corpo envelhecido e
numa alma consagrada.”
Lembrando que “paixões” abrange muito mais
do que a sexualidade (embora a inclua), esta combi-
nação do ridículo e do incongruente retrata perfei-
tamente as ciladas que muitos de nós enfrentamos
na idade mais madura!
Finalmente, um alerta que vale para todas as
idades.
“Até que você tenha erradicado o mal, não obedeça o seu
coração; pois ele buscará mais daquilo que já possui den-
tro de si.”
O DISCERNIMENTO
Sobre o tema fundamental do discernimento, Mar-
cos nos oferece vários conselhos. Primeiro, uma in-
terpretação instigante da parábola dos talentos.
“A graça talvez se oculte no conselho dado por um vizi-
nho ou numa leitura. Não esconda o talento que é dado
dessa forma.”
“Talentos”, nessa leitura da parábola, incluem “os bons
conselhos ouvidos ou lidos”.
Em seguida, dois alertas para um ano eleitoral,
quando se alastram as fake news e os argumentos
capciosos.
“Há uma energia do mal que se assemelha com a verdade.”
“Há atos que parecem bons, mas a intenção não é; e há
atos que parecem maus, mas a intenção é boa. O mesmo
vale para algumas afirmações.”
Finalmente, um lembrete para todos.
“Suas palavras são sábias e benéficas somente na medida
das suas obras.”
Inclusive, imagino, as nossas palavras escritas
em artigos de Ultimato!
A PRESUNÇÃO
Os conselhos mais contundentes de Marcos, o As-
ceta referem-se ao problema da presunção, da jac-
tância, da fanfarronice, da prepotência.
Primeiro, a incompatibilidade dos dons espiri-
tuais com a jactância.
“Se alguém possui um dom espiritual e sente compaixão
daqueles que não o têm, ele conserva o seu dom. Mas a
pessoa jactanciosa o perderá.”
Em seguida, dois avisos para quem pretende
ensinar a Bíblia e as doutrinas da fé.
 “O Senhor é bom para os que dependem
dele. É bom esperar em silêncio pela
salvação do Senhor.” Lamentações 3.25,26
A Praia, Rosana Basile | teologarte.com.br

“Não seja convencido das suas próprias interpretações

das Escrituras, para que seu intelecto não caia na
blasfêmia.”
“Não tente explicar algo difícil com contenda, mas
com paciência, oração e esperança firme.”

Daí a importância de escolher bem os líderes

que queremos admirar e seguir.
“Não se torne discípulo de alguém que se elogia a si
mesmo, para que você não aprenda o orgulho em vez
da humildade.”
“Assim como a água e o fogo não se combinam, tam-
bém a autojustificação e a humildade se excluem.”

E Marcos arremata com duas frases penetrantes.

“Se quiser que seus pecados sejam ‘cobertos’ pelo
Senhor (Sl 32.1), não mostre suas virtudes aos outros.
Pois o que fizermos com as nossas virtudes, Deus tam-
bém fará com os nossos pecados.”
“Quando alguém se gaba de suas virtudes, não tente
ajudá-lo pela reprovação. Pois uma pessoa não pode
gostar de se ostentar e ao mesmo tempo amar a conf iança paciente
verdade.” PIERRE TEILHARD DE CHARDIN
O verdadeiro conhecimento e a mansidão Acima de tudo, confie no lento trabalho de Deus.
caminham de mãos dadas. Somos, naturalmente, muito impacientes em tudo
“Nosso conhecimento é genuíno na medida em que se para chegar ao fim sem demora.
confirma pela mansidão, humildade e amor.” Gostaríamos de pular os estágios intermediários.

EDIÇÃO EXCLUSIVA
Ficamos impacientes por estarmos a caminho de algo

E, finalmente, outro conselho especialmente
apropriado no Brasil de hoje, e sobretudo em ano
eleitoral.
“Em qualquer assunto, se tivermos entregado nossa es-
perança a Deus, não brigamos mais com o nosso vizi-
nho sobre isso.”
O REALISMO
Para finalizar, após tantos conselhos sábios, Mar-
cos, o Asceta se despede com realismo, mas não
sem uma pitada de humor irônico.
“Quando você faz o bem a alguém, aguente sem rancor
a hostilidade que seguirá. Pois, assim como a noite se-
gue o dia, atos de maldade seguem os atos de bondade.”
Paul Freston, inglês naturalizado brasileiro, é professor
colaborador do programa de pós-graduação em socio-
logia na Universidade Federal de São Carlos e professor
catedrático de religião e política em contexto global
na Balsillie School of International Affairs e na Wilfrid
Laurier University, em Waterloo, Ontário, Canadá.
DO ASSINANTE
desconhecido, algo novo.
E, porém, a lei de todo progresso diz que
ele é alcançado ao passarmos por
alguns estágios de instabilidade –
e que isso pode levar um longo tempo.
E, então, penso que o mesmo acontece com você;
suas ideias amadurecem gradualmente – deixe-as crescer,
permita que tomem forma, sem pressa indevida.
Não tente forçá-las,
como se você pudesse ser, hoje, o que o tempo
(ou seja, graça e circunstâncias,
agindo em sua própria boa vontade)
fará de você, amanhã.
Somente Deus poderia dizer o que este novo espírito
sendo gradualmente formado dentro de você chegará a ser.
Dê ao nosso Senhor o benefício de acreditar
que sua mão está guiando você,
e aceite a ansiedade de sentir que você está
em suspenso e incompleto.
“Patient trust”, de Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955).
Traduzido do livro Hearts on Fire: Praying With Jesuits.

Maio/Junho 2022 • ULTIMATO 17

 MATÉRIA DE CAPA

“Deixo com vocês a paz. É a

minha paz que eu lhes dou;
não lhes dou a paz como
o mundo a dá. Não fiquem
aflitos, nem tenham medo.”
– João 14.27
Susan Chou | @electedalien
EDIÇÃO EXCLUSIVA
DO ASSINANTE

tempestade perfeita
RICARDO AGRESTE

C
reio ser consenso entre a maioria de nós que
os últimos dois anos foram grandemente
marcados pela adversidade e pelo sofrimen-
to, gerando um clima de insegurança e confusão.
Na minha caminhada pessoal, sem sombra de
dúvida, eu apontaria este período recente como
o mais difícil e complexo de toda a minha exis-
tência. Nas dimensões pessoal, familiar e ministe-
rial, vivi o que muitos chamariam de “tempestade
perfeita”. Uma sobreposição de problemas e crises
como nunca havia experimentado em minha vida.
Na dimensão pessoal, conheci de perto o que
significa a experiência da depressão. Se não bas-
tasse as tensões e dificuldades decorrentes da
própria pandemia, situações inesperadas emergi-
ram no contexto da minha família e igreja local,
testando meus limites emocionais como nunca.
Ainda, para tornar o momento mais complexo,
fui diagnosticado com um tumor altamente
agressivo no rim, tendo que ser submetido a uma
cirurgia de quase cinco horas de duração e, ao
longo do processo de recuperação, enfrentar uma
pneumonia.
No contexto familiar, vi minha querida esposa
dedicando-se intensamente na tentativa de salvar
vidas numa UTI respiratória durante a primei-
ra e a segunda ondas da pandemia. No entanto,
a partir de um determinado momento, ela não
conseguia mais lidar com tudo o que acontecia,
sendo diagnosticada com síndrome pós-traumáti-
ca, enfermidade emocional típica de soldados que
enfrentam as atrocidades de um fronte de guerra.
Diante disso, todo o nosso ritmo e rotina de vida
tiveram de ser radicalmente alterados.

18 ULTIMATO • Maio/Junho 2022

 No contexto ministerial, num dos momentos
mais críticos da pandemia, quando a igreja mais
necessitava de cuidado e segurança, perdi metade
de minha equipe pastoral. A decisão tomada por
jovens pastores gerou um clima de grande tensão e
instabilidade nas relações. Minha liderança passou
a ser questionada e pessoas queridas, com quem
caminhávamos há muitos anos, decidiram deixar
a igreja. Tudo isso num momento em que não se
fazia possível encontros pessoais para se tratar com
afetividade os conflitos interpessoais.
Foi neste período de muita adversidade e sofri-
mento que Deus me ofereceu uma nova perspecti-
va do tão conhecido Salmo 23. Por um lado, o vale
de trevas e morte foi uma experiência muito real
em minha jornada. Em alguns momentos, a escu-
ridão não me permitia enxergar saída alguma para
os problemas enfrentados. A consciência de minha
impotência diante de determinadas situações era
também uma constante. Ao longo de semanas mi-
nha alma oscilou entre sentimentos de desânimo,
incerteza, tristeza, medo e ansiedade.
Por outro lado, descobri também uma faceta
de Deus para a qual nunca havia atentado. Não
importa quão densas sejam as trevas do momento
em que vivemos ou quão profundo seja o vale pelo
qual estejamos passando, Deus age de forma sere-
na. Ele nos faz repousar em pastagens verdes, ele
nos conduz a águas tranquilas, ele restaura o nosso
vigor, mas tudo isso de forma graciosa, segura e se-
rena. Ele é o Deus todo-poderoso e, por isso, não se
deixa perturbar pelo caos que envolve nossa vida.
Assim, descobri também quão importante é a
serenidade para aqueles que afirmam confiar em
Deus. O salmista faz uma declaração categórica
logo no início do Salmo 23: “O Senhor é o meu pas-
tor, de nada terei falta”. Ou seja, sua confiança no
caráter, no amor e no cuidado de Deus movia seu
coração do medo e ansiedade para a serenidade.
Mesmo estando diante de problemas para os quais
não existem soluções concretas e visíveis, sabemos
que a bondade e a fidelidade de Deus nos acompa-
nharão todos os dias de nossa vida.
Assim, em meio à tempestade perfeita, descobri
que Deus age de forma serena. Mais do que isso: na
minha caminhada com o Pai, descobri que existem
problemas e crises para as quais não terei soluções
prontas e instantâneas. Por isso, praticar a sereni-
dade implica confiar na bondade e fidelidade de
Deus, mesmo quando ainda estou caminhando por
um vale e ainda cercado por trevas. A serenidade
que vem da confiança no amor e no cuidado de
Deus para com a minha vida me possibilita cami-
nhar na certeza de que ele me conduzirá para pas-
tos verdejantes e águas tranquilas.
Mas toda esta experiência me desafiou também
como pastor, pregador e líder. Como alguém que
estava no meio de um vale de morte e cercado de
sombras, pude perceber quão importante e neces-
sário é ter pessoas que estejam ao redor, orientando
EDIÇÃO EXCLUSIVA
e guiando, com atitudes e palavras que transmitam
DO ASSINANTE
serenidade. Se existe algo dispensável em tempos
de adversidade são atitudes e palavras que inten-
sificam a tensão, o conflito, a polarização e a con-
fusão. Precisa-se, essencialmente, de um exercício
de empatia.
Por isso, deixando de lado os dois últimos anos
da minha vida pessoal, tenho colocado os olhos
na vida em sociedade nos próximos meses. Bem
possivelmente, viveremos ainda um período difí-
cil com muitas tensões políticas e agravamento da
crise econômica. Muitas de nossas igrejas
já estão saindo do período da pandemia não importa
enfraquecidas e divididas por fatores quão densas
ideológicos. Precisamos que Deus nos dê
sejam as
pastores e líderes que façam uso da se-
renidade para guiar as ovelhas de Deus
trevas do
através deste vale de sombras. momento em
Precisamos, sim, como discípulos de que vivemos
Jesus, participar deste momento histó- ou quão
rico de nossa nação, contribuindo para profundo
que valores do reino de Deus tornem-se seja o vale
uma realidade mais presente em nossa pelo qual
sociedade. No entanto, não podemos estejamos
fazê-lo com instrumentos que não nos passando,
tornam identificados com o bom pastor Deus age de
do Salmo 23 e de João 10. Como ovelhas forma serena
guiadas por um Pai sereno, precisamos
fazer da serenidade uma marca tam-
bém em nossa vida. Ela é de grande importância
quando atravessamos vales de morte e sombras,
mas também imprescindível quando guiamos
pessoas que caminham por estes vales.
Ricardo Agreste é pastor da Comunidade Presbiteriana
Chácara Primavera, em Campinas, SP. É formado em teo-
logia pelo Seminário Presbiteriano do Sul e em filosofia
pela Faculdade Interativa de São Paulo. É diretor-presi-
dente do Centro de Treinamento para Plantadores de
Igreja (CTPI). É casado com Sônia, com quem tem três
filhos, Luiza, Levi e Ligia, e dois netos, Gabriel e João.
Maio/Junho 2022 • ULTIMATO 19
 MATÉRIA DE CAPA

“Entregue seu caminho

ao Senhor; confie nele,
e ele o ajudará.”
– Salmos 37.5
Lucas Pegoraro | @creative.lucas

serenidade
como resposta
VANESSA BELMONTE

Q
uando enfrentamos adversi-
dades, somos como arrasta-
dos por uma correnteza de
insegurança e medo que nos leva au-
tomaticamente a respondermos com
ansiedade, preocupação e busca do
controle. E, se formos sinceros, sem-
pre estamos diante de adversidades,
maiores ou menores, mais individu-
ais ou coletivas.
Neste artigo, eu gostaria de con-
vidá-lo a refletir que é possível agir
de modo diferente. É possível nadar
contra a correnteza e responder com
serenidade.
EDIÇÃO EXCLUSIVA

A serenidade, a partir de uma

DO ASSINANTE

visão cristã, pode ser compreendida

como uma virtude ou um estado de
espírito no qual experimentamos
tranquilidade e paz, como resultado
de nossa confiança em Deus.
Então, não é algo que eu consigo
forjar com minhas próprias forças,
nem obter com pensamento positi-
vo. Este tipo de paz nos é dado como um presente
por Jesus Cristo e experimentado ao desenvolver-
mos um relacionamento real com ele.
Jesus disse em João 14.27-28a: “Eu lhes deixo um
presente, a minha plena paz. E essa paz que eu lhes
dou é um presente que o mundo não pode dar. Por-
tanto, não se aflijam nem tenham medo. Lembrem-
-se do que eu lhes disse…” (NVT).
A resposta ao medo pode ser diferente por cau-
sa de nossa fé em Deus, que está baseada em quem
Deus é, no que ele diz e faz. Segundo Ricardo Barbo-
sa, “a serenidade da alma expressa o desejo de ouvir
e conhecer os pensamentos de Deus, submeter-se a
eles e experimentar a consciência de sua presença.
Por outro lado, a ansiedade é a reação emocional de
uma alma inquieta e perturbada, que encontra difi-
culdade em se submeter a Deus e que insiste em ter
o controle de todas as coisas.”1
Se não conhecermos a Deus ou não confiarmos
plenamente nele, o mundo vai se tornar um lugar
inseguro de se viver e nos sentiremos cada vez mais
pressionados a encontrarmos estratégias de sobrevi-
vência. Porém, “para aqueles que vivem no reino de
Deus, o mundo é um lugar perfeitamente seguro de
se viver”, nos lembra Dallas Willard.2
Essa segurança baseia-se na realidade da res-
surreição de Jesus Cristo. Podemos olhar para as
circunstâncias mais adversas, as incertezas que
estamos vivendo atualmente e, ainda assim, ter

20 ULTIMATO • Maio/Junho 2022

 esperança. Porque acreditamos em um Deus
soberano que venceu a morte e o pecado; um
Deus bom que está conduzindo todas as coisas de
acordo com seu propósito eterno e, por isso, não
estamos ao acaso, entregues à própria sorte, de-
pendentes de nosso esforço ou competência para
fazer nossa vida dar certo.
Ao contrário, enfrentaremos tribulações e ad-
versidades que cooperam para o nosso bem e re-
sultam em glória para o nosso Deus. Ainda não
vemos todas as coisas com clareza, nem percebe-
mos como cada situação se encaixa com o plano
perfeito de Deus. Há muitas coisas que não sabe-
mos e outras que não somos capazes de perceber.
Mas, de acordo com a revelação que o Senhor nos
deixou em sua Palavra e por meio de Jesus, nós es-
tamos seguros.
Nós podemos confiar em Deus e depender
dele. Na verdade, é isso que estamos aprendendo.
Toda a nossa jornada é um grande processo de
caminhada com Cristo, no qual ele, pacientemen-
te, nos ensina como dar cada passo no caminho,
confiando em Deus enquanto vivemos cada dia,
momento a momento, com ele. Definitivamente,
não é um aprendizado teórico e distante, mas sim
experimentado nas circunstâncias mais ordinárias
da vida real, nas decisões práticas e escolhas diá-
rias, em meio ao sofrimento e à alegria.
Agora, no dia que se chama hoje, somos convi-
dados por Deus a confiar nele e a viver tudo o que
esse dia trouxer a partir desta fé, que se manifesta
num relacionamento sustentado pelo Espírito San-
to e nos habilita a enfrentar todas as coisas com ele
ao nosso lado.
Nada pode nos separar do amor do Deus que
sustenta o universo. Esse amor é a realidade mais
concreta e segura na qual podemos construir nossa
vida. Como Tish Harrison Warren nos lembra, “este
mundo está cheio de beleza e terror, mas a realidade
imutável por trás de tudo é o amor de Deus que cria,
sustenta e redime todas as coisas”. Por isso, temos
condições de experimentar o sofrimento, mas tam-
bém de perceber o amor preservando-nos em meio a
ele. O amor é a constante, “todas as nossas dúvidas,
questões, medos e alegrias giram em torno do ponto
fixo do amor de Deus”.3
Podemos responder às adversidades e incerte-
zas da vida com serenidade por causa do constante
amor de Deus: “Deem graças ao Senhor porque ele
é bom, porque o seu amor fiel dura para sempre”
(Sl 136.1, NBV).
Deus não irá resolver todos os nossos problemas,
nem nos poupar de todos os nossos sofrimentos.
Mas ele irá gerar vida em nós e por meio de nós, ao
manifestar nessas circunstâncias o seu fiel amor,
que dura para sempre. Mesmo em tempos sombrios,
ele irá brilhar sua luz e manifestar o seu poder. Por-
que ele é o Deus conosco.
Hoje, então, precisamos fazer o esforço de nadar
contra a correnteza do medo e da insegurança. Se-
gundo James Brian Smith, quando estamos muito
ocupados, cansados e preocupados, as primeiras
coisas que fazemos são parar de orar, parar de cui-
dar de nós mesmos e parar de investir em relaciona-
mentos importantes.2 Essas são as três esferas que
Henri Nouwen apresenta como: o relacionamento
com Deus, consigo mesmo e com os outros.4
Portanto, o que podemos fazer de maneira prá-
tica para nadar contra esta correnteza
é observar o modo como estamos nos
comportando nessas três esferas e bus- se não
car intencionalmente proteger: 1) nosso conhecermos
tempo com Deus por meio das discipli- a Deus ou não
nas espirituais; 2) o cuidado diário com confiarmos
o corpo (exercícios físicos, alimentação e plenamente
descanso); e 3) o cuidado de nossos rela- nele, o mundo
cionamentos (hospitalidade, comunhão e vai se tornar
tempo em família). um lugar
EDIÇÃO EXCLUSIVA
Esses cuidados nos ajudam a acertar o inseguro de
DO ASSINANTE
ritmo e a caminhar com o Senhor ao nosso
lado, nos passos dele. A serenidade, assim,
se viver
se torna uma resposta possível ao amor que
sustenta o universo e é derramado em nossa vida na
quantidade exata de que precisamos para enfrentar
as adversidades presentes.
A âncora de toda teodiceia, de toda oração e da prática
cristã é o amor generoso de Deus. No fim, a única forma
de passar por este mistério é colocar todo peso de nossas
vidas no amor de Deus.
Tish Harrison Warren
Notas
1. SOUSA, Ricardo Barbosa de. A serenidade da alma. Ultimato.
Viçosa, p. 26, jan. 2020.
2. Conteúdo citado por James Brian Smith no podcast Things
Above, episódio 69, publicado em março de 2020.
3. WARREN, Tish Harrison. Oração da noite. São Paulo: Thomas
Nelson Brasil, 2021. p. 215-216.
4. NOUWEN, Henri. Crescer: os três movimentos da vida espiritu-
al. São Paulo: Paulinas, 2001.
Vanessa Belmonte, pesquisadora e palestrante na área
de hospitalidade e vida cristã, é coordenadora dos cursos
on-line da ABC2, worker do L’Abri Brasil e membro da
Igreja Esperança, em Belo Horizonte, MG.
Maio/Junho 2022 • ULTIMATO 21
 “Revistam - se de compaixão,
MATÉRIA DE CAPA bondade, humildade, mansidão e paciência.
Revistam - se do amor. Permitam que a
paz de Cristo governe o seu coração. Que
a mensagem a respeito de Cristo
preencha a vida de vocês.” – Colossenses 3.12- 14
Marcelo Bittencourt | @homemquevoa

a serenidade justa
CACAU MARQUES

“D
eus, conceda-me a serenidade para aceitar
as coisas que não posso mudar, a cora-
gem para mudar as coisas que posso e a
sabedoria para discernir uma da outra.” Essa é a
famosa “Oração da serenidade”, atribuída ao teólo-
go estadunidense Reinhold Niebuhr. Ele foi pastor
na cidade de Detroit entre 1915 e 1928, onde envol-
veu-se com a causa dos operários. Seu pastoreio e
sua teologia foram transformados pelas situações
do mundo, pela angústia e pela pressão que aqueles
tempos conturbados promoviam. Ele negou-se a
aderir à alienação social vista nos círculos funda-
mentalistas de sua época, mas também não acei-
tava a utopia otimista e ingênua de certos círculos
mais liberais. Assumiu que as duras condições do
mundo eram efeitos da inescapável depravação de divisão entre abusador e vítima? Como se atreve a
toda a humanidade, mas sem tratá-las como total- perturbar a ilusão de que tudo vai bem?
mente irremediáveis. Era necessário agir na histó- Do mesmo modo, a indignação irada pode ser
ria por justiça, mesmo que esta nunca chegue a ser justificável, mas nunca será justa. A Bíblia mesmo
plena neste mundo. revela que “a ira humana não produz a justiça de
EDIÇÃO EXCLUSIVA

A serenidade da oração é a face de uma moeda Deus” (Tg 1.20). Confiar que nossa raiva é suficien-
DO ASSINANTE

que perde seu valor sem o oposto da coragem para
mudar. Em um mundo tão conturbado, a mansi-
dão pode ser a simples expressão do privilégio de
não precisar se envolver em nenhum conflito. É fá-
cil ser manso quando nada falta. Difícil é quando a
vida ensinou que “quem não chora não mama”. A
serenidade só permanece virtuosa se não se tornar
indiferença em relação aos que não podem se dar
ao luxo de serem tranquilos.
É claro que a mansidão é uma virtude expressa
no Sermão do Monte e a longanimidade é um dos
aspectos do fruto do Espírito. Mas, frequentemen-
te, usamos esses termos para silenciar injustiçados,
apelando que promovam a paz ao se calarem sobre
seus sofrimentos. Os casos de abusos cometidos
por líderes religiosos mostram isso. Muitas teste-
munhas são tratadas como “divisivas” porque não
permanecem caladas quando veem ou sofrem in-
justiças. Isso cria um ambiente avesso à verdade.
Quando levanta a voz, a vítima já está em uma
posição de desvantagem, pois é culpada de pertur-
bar a calmaria da indiferença. Como ousa causar
te para guiar nossos atos em justiça é negar todo o
ensino de Cristo sobre o reino de Deus. A coragem
para mudar precisa ser enriquecida com uma pru-
dência que só se desenvolve no espírito de mansidão.
É Tiago mesmo quem nos oferece uma solução
para essa tensão. A sabedoria que vem de Deus (1.5,
17) é a que nos dá prontidão para ouvir e lentidão
para irar-nos (1.19). Ouvir, em primeiro lugar, a
Palavra de Deus, que nos engaja em ações de jus-
tiça (1.22-25). Engajados, ouvimos o oprimido. Co-
locamos as necessidades dos órfãos e viúvas como
prioritárias (1.27) e garantimos direito e isonomia
ao pobre, que não os encontra nos tribunais (2.1-9).
A Igreja deve ser uma comunidade de serenida-
de engajada. Os indignados devem encontrar alia-
dos que ajudem a dissipar sua ira justificável em ati-
tudes de justiça serena. Que Deus nos dê sabedoria
para vivermos assim.
Carlos “Cacau” Marques, casado com Natália, é pastor
da Igreja Batista Vida Nova em Nova Odessa, SP, pro-
fessor na Faculdade Teológica Batista de Campinas e
integrante da equipe do Bibotalk.

22 ULTIMATO • Maio/Junho 2022

 oração da serenidade
para hoje
ELZA BARCELOS
Deus, conceda-me
a serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar,
a coragem para mudar as coisas que posso
e a sabedoria para discernir uma da outra.
Vivendo um dia de cada vez,
apreciando um momento de cada vez,
recebendo as dificuldades como um caminho para a paz,
aceitando este mundo cheio de pecados como ele é,
assim como fez Jesus,
e não como gostaria que ele fosse;
confiando que o Senhor fará tudo dar certo
se eu me entregar à sua vontade;
pois assim poderei ser razoavelmente feliz nesta vida
e supremamente feliz ao seu lado na eternidade.
E
ssa oração foi escrita em 1912 pelo americano
Reinhold Niebuhr. Ele nasceu em 21 de junho
de 1892 nos Estados Unidos e foi um teólogo
e pensador muito influente que lutou contra o na-
zismo e defendeu os direitos dos trabalhadores no
início do capitalismo. Ele fez essa oração na sua
igreja ao final de sua pregação dominical. Depois
do louvor, um dos membros da congregação pe-
diu a ele uma cópia da oração. Niebuhr deu-lhe
seu original escrito à mão. Essa pessoa pegou a
oração e a mandou nos seus cartões de Natal da-
quele ano. Dessa forma, a Oração da serenidade de
Niebuhr entrou rapidamente em domínio públi-
co. Frequentemente ela é associada aos Alcoólicos
Anônimos (AA). Em 1942, alguém viu essa oração
impressa num obituário de jornal e a mostrou ao
fundador de AA. Desde então, milhares de pesso-
as em recuperação têm usado as quatro primeiras
frases da oração para se colocarem humildemen-
te diante de Deus, confessando suas necessidades
e assumindo a responsabilidade por suas vidas
(Guia de Passos dos Grupos Celebrando Restau-
ração, p. 21-22).
Conheci a Oração da serenidade em 1980,
quando meu marido, Carlos Barcelos, (pastor e
psicólogo) e eu começamos a trabalhar com recu-
peração de dependentes químicos usando os doze
passos de AA. Mais tarde, em 2004, tivemos con-
tato com o Celebrate Recovery na Igreja de Saddle-
back, Califórnia, Estados Unidos. É um programa
baseado nos doze passos, fundamentado na Bíblia,
tendo Jesus Cristo como o poder superior. Em 2005,
iniciamos o Celebrando a Recuperação em São
Paulo, na Igreja Batista do Morumbi, e logo o pro-
grama se espalhou para outras igrejas.
Estamos hoje na Igreja Batista Memorial de
Alphaville, onde todos os frequentadores são con-
vidados a participarem do Celebrando a Recupe-
ração. Trabalhamos com áreas diversificadas de
restauração e com diferentes grupos.
A Oração da serenidade faz parte de nosso guia
de estudos e é um dos pilares da recuperação.
1. Ter serenidade para aceitar o que não posso
mudar.
O primeiro passo do programa diz: “Admiti-
mos ser impotentes diante de nossos vícios, trau-
mas emocionais, maus hábitos e comportamentos
destrutivos e que nossas vidas se tornaram ingo-
vernáveis”. Quando admitimos nossa impotência
ficamos sossegados, serenos.
2. Ter coragem para mudar as coisas que posso.
Segundo passo: “Viemos a acreditar que nosso
Poder Superior Jesus poderia nos restituir a sani-
dade”.
Terceiro passo: “Decidimos entregar nossas vi-
das e nossas vontades aos cuidados de Deus”. Po-
demos crer e entregar, mas é Deus quem nos dá a
coragem.
O programa segue até o décimo segundo passo
EDIÇÃO EXCLUSIVA
DO ASSINANTE
e é todo permeado pela Oração da serenidade.
Nós sabemos que não podemos mudar o nosso
passado, mas podemos admitir que erramos e pe-
dir perdão. Então temos paz, serenidade.
Não podemos mudar pessoas e certas circuns-
tâncias. É preciso ter serenidade para enfrentar a
realidade de nossa vida. Entregar a Deus o que não
podemos fazer e em oração pedir que ele nos revele
aquilo que quer que façamos.
Carlos e eu temos praticado os princípios dessa
oração na nossa jornada aqui na terra e temos tido
paz e serenidade.
Elza Barcelos é psicóloga clínica.
Saiba mais:
A Igreja Batista Memorial de Alphaville, em São Paulo, ofere-
ce oportunidade de participação no seu programa Celebran-
do a Recuperação a distância: bit.ly/395-celebrando-restau-
racao.
A Bíblia de Estudo Despertar (Nova Tradução na Linguagem
de Hoje), publicada pela Sociedade Bíblica do Brasil, traz pla-
nos de leitura com meditações sobre a Oração da serenidade
e sobre os Doze Passos, além de sessenta biografias de per-
sonagens bíblicos com lições de recuperação.
Maio/Junho 2022 • ULTIMATO 23
 O CAMINHO DO CORAÇÃO
RICARDO BARBOSA DE SOUSA
QUANDO A MORTE É O CLÍMAX
DAQUILO QUE JÁ EXISTIA
O
pastor Timothy Keller,
num artigo intitulado
Growing my faith in the
face of death (Crescendo na minha
fé diante da morte), descrevendo
suas primeiras reações quando
recebeu o diagnóstico de um cân-
cer no pâncreas disse: “Apesar do
meu reconhecimento racional e
consciente de que um dia morre-
ria, a realidade arrasadora de um
diagnóstico fatal provocou uma
negação psicoló-
PARA A REALIDADE gica notavelmen-
FÍSICA, O TEMPO te forte da mor-
É IMPLACÁVEL E talidade”.
LEVA À MORTE;
PARA A INTERIOR,
Passamos a
O TEMPO É UMA vida evitando
DÁDIVA QUE pensar na inevi-
POSSIBILITA A tável realidade
RENOVAÇÃO da morte. Porém,
quando recebe-
EDIÇÃO EXCLUSIVA
mos um diagnóstico fatal, ou pre-
DO ASSINANTE
cisamos acompanhar uma pessoa
querida numa enfermidade grave,
torna-se impossível negar o fato
da finitude.
O apóstolo Paulo, para quem a
morte era uma presença constante
– “por amor de ti somos entregues
à morte o dia todo” – procurou
encontrar meios para se preparar
para ela. Esse é um exercício espi-
ritual importante na caminhada
do discípulo de Cristo. Gostaria
de comentar dois pensamentos de
Paulo em relação a este tema.
O primeiro diz respeito à ma-
neira como ele vivia em face da
morte (2Co 4.16-18). Paulo reco-
nhece que nós precisamos apren-
der a considerar as duas esferas
que envolvem a vida: a visível, a
que Paulo chama de “homem ex-
terior”, e a não visível, o “homem
24 ULTIMATO • Maio/Junho 2022
interior”. Desde o dia em que
nascemos, nosso corpo entra num
lento processo de desgaste e enve-
lhecimento que nos acompanha
até o fim.
O que Paulo fez diante des-
sas duas realidades? Passou a dar
mais atenção ao que não se vê do
que ao que se vê. A realidade física
é temporal e, muitas vezes, efême-
ra; a realidade interior diz respei-
to àquilo que é eterno. Enquanto
a primeira sofre os desgastes ine-
vitáveis do tempo, a segunda se
renova a cada dia. Para uma, o
tempo é implacável e leva à morte;
para a outra, o tempo é uma dádi-
va que possibilita a renovação.
O segundo pensamento de
Paulo diz respeito à morte. Para
ele, “o morrer é lucro” e deseja
“partir e estar com Cristo”, o que
ele considera “incomparavelmen-
te melhor” (Fp 1.21-23). Trata-se
de uma percepção da morte mui-
to diferente da que encontramos,
inclusive no meio cristão. Diante
da morte, é comum ouvir cristãos
dizendo coisas do tipo: “Ele agora
está num lugar bem melhor”. O
problema é que todos os que estão
num lugar supostamente pior não
desejam ir para esse lugar melhor.
Para Paulo, morrer é “estar
com Cristo”, que é bem diferente
de estar num lugar melhor. Há
aqui um sentido de continuidade,
não de ruptura. Para ele, “o viver
é Cristo”. Ele já vivia em Cris-
to, buscando se conformar com
ele, conhecendo-o pessoalmente,
amando-o intimamente, experi-
mentando o poder da ressurreição
e participando da comunhão dos
seus sofrimentos, de forma que a
Alex Gruber
morte seria o clímax daquilo que
já existia, a continuidade perfeita
da vida que ele já experimentava.
A morte será sempre um even-
to triste e angustiante. No entan-
to, a ressurreição de Cristo abriu
uma nova perspectiva. Enquanto
vivemos e gozamos de boa saú-
de, precisamos reconhecer, de
um lado, o desgaste inevitável do
corpo e, de outro, a importância
de renovar o “ser interior”. Em
outras palavras, fazer com que a
presença de Cristo em nosso in-
terior seja fortalecida pelo poder
do Espírito Santo. Uma vez que “o
viver é Cristo” e tudo o que mais
desejamos é estar nele, a morte
deixa de ser uma ruptura, mas a
continuidade plena da realidade
já inaugurada aqui. “Onde está, ó
morte, a tua vitória? Tragada foi a
morte pela vitória” (1Co 15.55).
Ricardo Barbosa de Sousa é pastor
da Igreja Presbiteriana do Planalto
e coordenador do Centro Cristão
de Estudos, em Brasília. É autor de,
entre outros, Quando a Alegria Não
Vem pela Manhã, A Espiritualidade,
o Evangelho e a Igreja, Pensamentos
Transformados, Emoções Redimidas
e O Caminho do Coração.
MAIS NA INTERNET
Pascal – a morte é o começo da beatitude do corpo
bit.ly/395-caminho-coracao
 EDIÇÃO EXCLUSIVA
DO ASSINANTE

Maio/Junho 2022 • ULTIMATO 25

 REDESCOBRINDO A PALAVRA DE DEUS
VALDIR STEUERNAGEL

MAIS CRISTO E MENOS “POLÍTICA”

C
ada uma das diferentes
tradições cristãs tem suas
preferências quanto a ritos,
costumes e ênfases na vivência da
fé. Um dos textos mais lembrados
na nossa tradição evangélica é
aquele que diz: “Busquem em pri-
meiro lugar o Reino de Deus e a
sua justiça, e todas essas coisas lhes
serão acrescentadas” (Mt 6.33).
Às vezes, ao cantar ou invocar
este versículo, eu me pergunto se
tenho direito de proferi-lo, por me
perceber em dissonância viven-
cial com ele. Então, ora me calo
e ora sigo adiante, envolvendo a
minha invocação numa oração

que expressa o meu anseio de ser
percebido como um seguidor de
Jesus que quer e precisa da graça
de Deus e da presença do Espírito
para transformar a minha obe-
diência relutante em obediência
EDIÇÃO EXCLUSIVA
chama de aroma de Cristo (2Co 2.15),
faz parte da nossa jornada de fé. O
que não podemos é abraçar o tex-
to bíblico de forma hipócrita, de-
Eugene Ivanov
à igreja evangélica norte-americana,
este é um fenômeno que ocorre
também entre nós. Dudley, segun-
do o artigo, diz que tem ouvido de

contínua e consistente. Quem sautorizando-o com o nosso jeito muitos membros que estes estão
DO ASSINANTE

sabe você também já experimen-
tou isso. Afinal, como seguidores
de Jesus, estamos
QUANDO A FÉ em contínuo pro-
CRISTÃ É POLITI- cesso de conversão,
ZADA, AS IGREJAS buscando “alcançar
TORNAM-SE RE-
POSITÓRIOS NÃO a unidade da fé e
DA GRAÇA, MAS do conhecimento
DE AGRAVOS, do Filho de Deus e
LUGARES ONDE atingir a medida da
AS IDENTIDADES plenitude de Cris-
TRIBAIS SÃO
REFORÇADAS, to” (Ef 4.13).
ONDE OS MEDOS Escutar con-
SÃO ALIMEN- tinuamente o que
TADOS E ONDE Deus diz em sua
A AGRESSÃO É palavra para in-
SACRALIZADA
tegrá-lo em nossa
vida como um con-
vite à conversão e uma afirmação
de que Deus quer nos manter no
caminho de uma transforma-
ção que tenha aquilo que Paulo
de viver. Tampouco podemos usar
o texto para denunciar a um ou-
tro com quem não concordamos.
Se usamos a Bíblia a nosso favor e
para criticar e desautorizar o ou-
tro, não estamos, de fato, acolhen-
do a Deus em nossas vidas.
O que percebo hoje é que esta
tradição da escuta e submissão
àquilo que Deus nos diz está sen-
do desconstruída pelos processos
de polarização e cancelamento em
função de posturas político-(pseu-
do)ideológicas nas quais estamos
imersos, seja dentro ou fora das
igrejas. Num recente artigo publi-
cado na revista The Atlantic, inti-
tulado A igreja evangélica está se
despedaçando,1 o autor cita o pas-
tor presbiteriano Scott Dudley e
sua referência à “nossa idolatria da
política”. Embora seja uma alusão
abandonando suas igrejas por elas
não estarem em consonância com
a sua visão política; “mas nunca
ouvi ninguém dizer que mudou a
sua visão política por esta não es-
tar em consonância com o ensina-
mento da igreja”. “Se a Bíblia não
desafia a nossa postura política,
pelo menos ocasionalmente”, diz
ele, “não estamos realmente pres-
tando atenção ao que as Escritu-
ras dizem”.
O autor do artigo afirma que,
“quando a fé cristã é politizada,
as igrejas tornam-se repositórios
não da graça, mas de agravos, lu-
gares onde as identidades tribais
são reforçadas, onde os medos são
alimentados e onde a agressão e a
sordidez são sacralizadas. O resul-
tado é não apenas a nação ferida,
mas o impacto devastador na fé

26 ULTIMATO • Maio/Junho 2022

cristã”. Quem submete a palavra
de Deus à sua visão política está
negando e desacreditando a sua fé
e cooperando para a destruição do
tecido que mantém a nação unida
em sua pluralidade democrática,
respeitadora do outro e cuidadosa
dos mais frágeis e vulneráveis, pois
é a isso que um testemunho de fé
autêntico deve levar.
O cristão não é chamado a se
encolher em atitude de avestruz
que nega ver e se engajar na so-
ciedade. A fé cristã abraça uma
ação, também política, que é boa
e denuncia uma politicagem que
busca benefícios próprios e ma-
quina dia e noite para se perpe-
tuar no poder. A boa política que
o cristão procura vivenciar, em
todos as suas expressões voca-
cionais e em todos os níveis da
estrutura social, está enraizada
e é inspirada no que o próprio
Jesus chama de reino de Deus.
Num dos momentos em que en-
via um grupo de discípulos em
missão, Jesus lhes dá três manda-
tos: sejam embaixadores da paz,
curem os enfermos e expulsem
os demônios que encontrarem
(Lc 10.1-19). Paz, restauração e
libertação constituem o manda-
to dos discípulos, de ontem e de
hoje, que se identificam como se-
guidores de Jesus.
Assim como no contexto da-
quele envio, também nós vivemos
uma convulsiva realidade de dis-
criminação e exclusão, de dores e
enfermidades, de cancelamentos e
doentia agressividade; e é por isso
que Deus envia o seu povo como
agente de paz, de restauração e
de uma libertação que acolhe e
abraça o outro, sempre a serviço
do reino e promovendo os valores
que fazem brotar no solo pedrego-
so do nosso tempo as sementes do
fruto do Espírito, amor, alegria,
paz, paciência, amabilidade, bon-
dade, fidelidade (Gl 5.22).
Ao nos aproximarmos da
campanha eleitoral, nos próximos
meses, é fundamental que abrace-
mos a nossa tradição evangélica:
escutar a Deus, viver em comuni-
dade e praticar uma ação política
na qual o voto seja uma expressão
e testemunho de valores que hon-
rem a Deus e sirvam ao outro com
“sopa, sabão e salvação”, como diz
o lema do Exército de Salvação. É
dessa igreja que o Brasil precisa e
é por ela que devemos nos unir em
oração e em ação.
Nota
1. WEHNER, Peter. The Evangelical Church
is Breaking Apart. The Atlantic. 24 out. 2021.
Disponível em: https://www.theatlantic.
com/ideas/archive/2021/10/evangelical-
-trump-christians-politics/620469/.
Valdir Steuernagel é pastor lute-
rano e integrante da Aliança Cristã
Evangélica Brasileira e da Visão
Mundial. @silva.steuernagel.
MAIS NA INTERNET
Política e equilíbrio bíblico
bit.ly/395-redescobrindo
EDIÇÃO EXCLUSIVA
DO ASSINANTE
Maio/Junho 2022 • ULTIMATO 27
 FAMÍLIA
CARLOS “CATITO” E DAGMAR GRZYBOWSKI
O CASAMENTO É UM “CAMPO
DE TREINAMENTO”
N
o Evangelho de Mateus
encontramos uma cena em
que um grupo de religiosos
pergunta a Jesus: qual é o maior
mandamento? (Mt 22.36, NVI), e a
resposta de Jesus é surpreendente!
Ele afirma o que aqueles que
perguntaram já sabiam: “‘Ame o
Senhor, o seu Deus de todo o seu
coração, de toda a sua alma e de
todo o seu entendimento. Este é
o primeiro e maior mandamen-
to” (Mt 22.37-38). Mas em segui-
da afirma uma verdade que deixa
seus interlocutores estarrecidos: “E
o segundo é semelhante a ele: ‘Ame
o seu próximo como a si mesmo’”
(Mt 22.39).
E por que eles ficaram estarre-
cidos? Por causa da palavra seme-
lhante, ou seja, Jesus afirma que
amar seu próximo
QUANDO UMA é tão importan-
PESSOA CRISTÃ te quanto amar a
AFIRMA: “EU Deus. Mais tarde
NÃO AMO MAIS João vai confirmar
MEU CÔNJUGE”,
SALVO DENTRO
isso em sua car-
DE RELAÇÕES ta afirmando que
CLARAMENTE “quem não ama o
ABUSIVAS, ESSA seu irmão, a quem
DECLARAÇÃO É vê, não pode amar
QUASE SINÔNIMO
DE DIZER: “MEU
a Deus, a quem não
AMOR POR DEUS vê” (1Jo 4.20).
ESFRIOU” Nesse sentido
é difícil entender
quando uma pessoa cristã afirma:
“Eu não amo mais meu cônjuge”.
Salvo dentro de relações clara-
mente abusivas, entendo que essa
EDIÇÃO EXCLUSIVA
DO ASSINANTE
declaração é quase sinônimo de di-
zer: “Meu amor por Deus esfriou”.
E há um bom paralelo entre o
amor que sentimos por Deus e o
amor que sentimos por nosso côn-
juge. Quando conhecemos a Deus,
geralmente, ficamos empolgados;
28 ULTIMATO • Maio/Junho 2022
nosso coração arde e desejamos
muito buscá-lo; queremos conhecê-lo
mais e mais e contar para as pes-
soas ao nosso redor a diferença
que ele faz em nossa vida. Deseja-
mos que os outros sejam tão felizes
como nós naquele momento.
Algo semelhante a isso ocorre
quando nos apaixonamos: quere-
mos a companhia do outro e acre-
ditamos que encontramos a felici-
dade plena.
Porém, com o passar do tempo,
algumas vezes deixamos que nosso
amor por Deus se esfrie e as coisas
ficam meio sem graça, meio mor-
nas... (Ap 3.16). Também no casa-
mento algumas vezes deixamos
que o amor se esfrie e as coisas fi-
cam mornas e vão perdendo a gra-
ça – então enjoamos! (e, às vezes,
vomitamos fora o relacionamento).
O que é preciso para manter a
chama do primeiro amor para com
Deus? Algumas coisas bem simples
das quais descuidamos: ler a Bíblia
todos os dias, pois assim vamos co-
nhecendo cada vez mais o coração
de Deus e sua vontade para conos-
co; orar diariamente, pois assim
deixamos Deus conhecer nosso
coração; por fim, buscar todos os
dias proceder de forma justa, ter
um coração misericordioso em re-
lação ao próximo e procurar uma
atitude de humildade diante de
Deus (Mq 6.8).
De igual modo, o que é preciso
para manter a chama do primeiro
amor para com o cônjuge? Tam-
bém pequenas coisas das quais
descuidamos: ouvir o outro todos
os dias, suas necessidades, seus an-
seios e desejos, pois assim vamos
conhecendo o coração do cônjuge
mais e mais; manter sempre aberto
Rawpixel
o canal de comunicação por meio
de diálogos fecundos e exposição
de sentimentos (positivos e nega-
tivos), ampliando a transparência
no relacionamento e deixando-nos
conhecer tal qual nós somos (não
só o que aparentamos ser); e tam-
bém aprender a ser tolerante com o
outro, sabendo que se o outro é im-
perfeito em algumas áreas, eu tam-
bém sou em outras e assim posso
tratar o outro com a complacência
e a justiça com que eu gostaria de
ser tratado. Mas para isso é preciso
uma boa dose de humildade e re-
conhecimento de que ‘ainda’ não
sou pleno – e o outro percebe isso
melhor que eu mesmo.
Por isso o matrimônio é um
contínuo “campo de treinamento”
para cumprirmos os dois maiores
mandamentos – “Destes dois man-
damentos dependem toda a Lei e
os Profetas” (Mt 22.40).
Dagmar e Carlos “Catito” são
casados, ambos psicólogos e tera-
peutas de casais e de família. São
autores de Pais Santos, Filhos Nem
Tanto. Acompanhe o blog: ultimato.
com.br/sites/casamentoefamilia/
MAIS NA INTERNET
A absurda decisão de não amar o cônjuge
bit.ly/395-familia

O JOVEM “RUSGADO” E A MISSÃO
EM E A PARTIR DE ANGOLA
C
onheci o professor San-
tareno quando entreguei
uma mensagem aos jovens
e adolescentes de sua igreja em
Luanda. A mensagem foi sobre
a serva de Naamã (2Rs 5). Ele foi
tocado pela mensagem e interes-
sou-se por missões. Porém, Angola
ainda estava em guerra e naquela
época os jovens eram rusgados (le-
vados) para o exército para serem
soldados na guerra civil do país.
Ele foi rusgado aos 16 anos. Foi
treinado por soldados cubanos e
da União Soviética, participou de
vários combates e, um dia, o ca-
minhão Engesa do exército em que
ele estava acionou uma mina anti-
carro. A explosão causou mortes
e deixou feridos; ele foi ferido nos
pés e teve fratura bilateral da tíbia.
Ao voltar para Luanda, trabalhou
com a evangelização de mutilados
e refugiados de guerra. Santareno
encontrou uma edição da revista
Mensagem da Cruz em um balde
de lixo, na qual constava uma re-
portagem sobre seminários e ins-
titutos bíblicos da Missão Betânia.
Depois de um tempo conseguiu vir
ao Brasil, onde foi acolhido e apoia-
do por várias igrejas, tratou do pé,
estudou e formou-se em teologia,
filosofia e missiologia. Casou-se
com uma linda angolana, Elizabe-
th, enfermeira, com quem tem três
filhos: Rafael,18 anos; Samuel Ma-
necos, 14, e Karin Gabriela, 5.
Santareno tornou-se muito
ativo em Curitiba. Serviu a Deus
na igreja Holiness e hoje serve na
Menonita Nova Aliança. Foi pro-
fessor de teologia e missões na Fa-
culdade Teológica Betânia e ensina
na Faculdade Fidelis e no colégio
ANTONIA LEONORA VAN DER MEER
franciscano Bom Jesus, onde é
muito respeitado como professor
e pelo seu conhecimento da Bíblia
e compromisso com Deus. Mui-
tas vezes é convidado para trazer
mensagens bíblicas em ocasiões
especiais.
Tornou-se um dos preletores
mais queridos do curso Perspecti-
vas Brasil e viajou para vários esta-
dos para dar aulas.
Mas Santareno não poderia
esquecer sua terra nem a igreja an-
golana, pela qual tinha um grande
desejo de fazer algo.
Em 2020 e 2021, juntamente
com a liderança do Perspectivas
Brasil, conseguiu levar o curso on-
-line para Angola, onde encontrou
muita abertura e disposição para
trabalhar unido apastores e líderes
de várias igrejas e organizações.
Durante o curso, estes perceberam
a necessidade de treinamento de
obreiros em língua de sinais para
evangelizar, discipular e traduzir
os cultos para os surdos nas igre-
jas. Com o apoio da missionária
Rosangela Teck, da Junta de Mis-
sões Mundiais em Huambo, or-
ganizaram duas turmas; sessenta
irmãos foram treinados e quinze
CAMINHOS DA MISSÃO
Arquivo pessoal
Helena Lopes
igrejas hoje têm o ministério de
evangelização de surdos. No final
de 2021, Santareno foi para Luan-
da com a família para organizar a
formatura de 183 pastores e líderes
que fizeram o curso Perspectivas.
Ele, sua esposa e ex-alunos fizeram
contatos com líderes SESSENTA
de várias denomina- IRMÃOS FORAM
ções e organizações TREINADOS E
cristãs. Há 340 pré- QUINZE IGREJAS
-inscritos para novas HOJE TÊM O
MINISTÉRIO DE
turmas do Perspec- EVANGELIZAÇÃO
tivas 2022. Algumas DE SURDOS;
escolas teológicas E JÁ SÃO 183
querem adotar o cur- PASTORES
so na sua grade cur- E LÍDERES
QUE FIZERAM
ricular. Angola tem O CURSO
dezoito províncias PERSPECTIVAS
e o movimento Pers-
pectivas já está em quatorze delas.
Tudo isso é muito novo, é a hora de
Deus para a igreja angolana assumir
EDIÇÃO EXCLUSIVA
seu papel na obra missionária.
DO ASSINANTE
Antonia Leonora van der Meer,
professora de missiologia, traba-
lhou durante dez anos em Angola.
É autora de Eu, Um Missionário?,
Missionários Feridos e O Estudo
Bíblico Indutivo.
MAIS NA INTERNET
Um gigante na fé
bit.ly/395-caminhos-missao
Maio/Junho 2022 • ULTIMATO 29
 REPORTAGEM
KLÊNIA FASSONI E ARIANE GOMES

A GAROTA [DA FOTO] NA GELADEIRA

Susan Chou | @electedalien

– OS FILHOS DE MISSIONÁRIOS
TAMBÉM SÃO CHAMADOS?
“Sou a menina da foto na sua geladeira, aquela das cartas QUANTOS SÃO E COMO ESTÃO
de oração.
OS FMS?
Oram por mim quando estou doente, se alegram quando
Não há registros sobre o número de crianças que vivem
passo no vestibular. [...]
com seus pais missionários em outros países. De acordo
Sou diferente, esquisita, venho de duas culturas, mas não
com World Christian Database, em 2020, havia 425 mil
pertenço a nenhuma delas. [...]
missionários estrangeiros em todo o mundo2. Paulo
Aprendi que, quando Deus chamou meus pais para o
Feniman, em seu livro Reencontrando o Caminho da
ministério,
EDIÇÃO EXCLUSIVA

Missão, afirma que há cerca de 15 mil missionários brasi-

Ele me tinha em mente.
DO ASSINANTE

leiros em contextos transculturais.3

Não fui esquecida, e, sim, privilegiada.
Também não existem relatórios de pesquisa sobre
Posso não ser compreendida, mas sou amada.
os FMs brasileiros. Nos últimos dois anos, eles viveram as
Queria ser normal, mas agradeço a Deus todos os dias por
restrições impostas pela pandemia da Covid-19 e todos
não ser igual.
os efeitos que elas trouxeram (veja p. 32).
Sou especial!”1
Pesquisas recentes feitas pela organização ameri-

A
A vida missionária transcultural sempre traz desafios.
Quando envolve uma família, esses desafios são
ainda maiores. Os filhos de missionários (FMs) têm
o desafio de se adaptar a uma cultura diferente, aprender
uma nova língua, mudar de escola, fazer novas amizades,
experimentar novas comidas e começar a viver uma nova
vida. Junto com a transição vêm as oportunidades, mas
também as perdas: da família estendida, das amizades, da
casa, de objetos, de animais de estimação, do sentimento
de segurança e outras. Para muitos FMs há um momento
quando eles perguntam a si mesmos: “Quem sou eu?”. Há
uma crise de identidade.
Além das dificuldades inerentes à transição cultural, os
campos de missão de seus pais, em muitos casos, são luga-
res com contexto de conflitos, violência, pobreza, intolerân-
cia religiosa e, em alguns países, discriminação de mulheres.
cana TCK Training (Treinamento Sobre Filhos de Terceira
Cultura)4 indicam que o nível de trauma que as crianças
missionárias vivenciam é muito mais alto – quase o dobro –
do que o das crianças que crescem nos Estados Unidos.
O CUIDADO INTEGRAL
Valioso Demais Para Que se Perca foi publicado no Brasil
em 1998, tendo como organizador William D. Taylor. O
livro é fruto de um encontro realizado, em 1996, com 115
pessoas de 35 países em torno dos resultados de pesqui-
sas encabeçadas pela Comissão de Missões da Aliança
Evangélica Mundial sobre as causas do retorno prematuro
dos missionários do campo.
Essa publicação contribuiu para abrir a mentalidade
das agências de missões sobre o cuidado integral do mis-
sionário. Hoje, além do Cuidado Integral do Missionário
(CIM Brasil), departamento da Associação de Missões

30 ULTIMATO • Maio/Junho 2022

Transculturais Brasileiras (AMTB), muitas organizações e
juntas missionárias têm um setor específico para este fim.
Foram publicados livros sobre o assunto e o tema passou a
fazer parte dos programas de conferências missionárias e das
agendas de igrejas. O acompanhamento no preparo, no envio,
na permanência e na “reentrada” tornou-se mais abrangente.
Os que atuam no cuidado missionário estão convictos de que
deve haver um foco crescente na saúde das famílias.
O cuidado com os FMs é parte do contexto maior do cui-
dado integral do missionário.
Historicamente, pouca atenção se deu aos filhos de missio-
nários. Em nome do “sucesso da missão”, adotavam-se práticas
que hoje seriam consideradas negligentes – como a de mandar
os filhos muito novos para internatos distantes do país em que
os pais moravam.
Rebecca Hopkins, autora do artigo As crianças missionárias
não estão bem5, afirma que ainda hoje as necessidades dos FMs
são muitas vezes negligenciadas por agências missionárias,
igrejas parceiras e até mesmo suas próprias famílias dentro e
fora do campo missionário. Mas reconhece que há um número
crescente de organizações e igrejas que abraçaram a respon-
sabilidade de apoiar os filhos de missionários e suas famílias4.
O CHAMADO DOS PAIS
MISSIONÁRIOS É TAMBÉM
DOS FILHOS?
Quando uma família se apresenta para ir a um campo mis-
sionário, é comum que surjam perguntas como: “Mas e as
crianças?”. A pergunta revela uma preocupação com o fato de
os filhos estarem pagando um alto preço pelo compromisso
de seus pais. De fato, é preciso reconhecer que, ao aceitarem
se envolver na missão de Deus, os pais optam pela “encarna-
ção custosa” e inevitavelmente os filhos os acompanharão
neste caminho.
No caso do missionário, é vital que a família (cônjuge e
filhos) participe de seu ministério. Espera-se que os filhos
tenham atitudes de autonegação, humildade, serviço e enga-
jamento. Como guiá-los no entendimento de mensagem tão
radical sem que sejam forçados a isso e sem que haja um efeito
negativo em seu desenvolvimento?
Alguns chegariam à conclusão de que o custo é proibitivo
para a ida ao campo. Mas também estes – que não vão – preci-
sam responder: qual é o papel da família no ministério do reino?
Pois, na verdade, toda família cristã deve participar da missão
de Deus na terra e isso sempre trará algum tipo de sacrifício,
o que não deveria ser um peso, mas fonte de bênção. Ainda
assim, os desafios são maiores no caso de filhos de missioná-
rios em contextos transculturais.
Muitos FMs consideram-se privilegiados, não só por ser-
virem junto com seus pais, mas também por sentirem que
Susan Chou | @electedalien
tiveram a oportunidade de crescer em outra cultura. Eles
experimentam outras maneiras de viver e de ver o mundo,
outros contextos, e aprendem outras línguas. O FM é capaz de
adaptar-se mais facilmente, é mais aberto a pessoas que são
‘diferentes’, rejeitando o preconceito e tendo amizades com
pessoas diversas. Essas habilidades culturais de observação e
de adaptabilidade são vistas como vantagens no momento de
entrar no mundo do trabalho. E alguns têm seguido ou querem
seguir o mesmo caminho dos pais e se engajar em ministérios.
Em seu artigo As crianças missionárias são missionárias?6,
Rachel Jones conclui: “Como ouvi ao redor do mundo – do
Havaí à China, do Quênia à Colômbia –, a imagem de famílias
envolvidas no ministério juntas muitas vezes mudou de idealista
para dolorosa, para alegre e complicada e, finalmente, para
uma vida vivida autenticamente, fortalecida pelo Espírito Santo,
EDIÇÃO EXCLUSIVA
ao lado de colegas de trabalho, vizinhos e amigos. A despeito
DO ASSINANTE
das lutas da vida familiar, muitos missionários desenvolveram
uma forma mais sutil de ministério autêntico – vivendo o
evangelho no contexto das necessidades, quebrantamento,
dificuldades e limites de sua própria família”.
Que Deus continue levantando famílias para o ministério
transcultural e igrejas e organizações que as apoiem inte-
gralmente. E também intercessores. Por Rebeca e por outras
garotas e garotos das fotos na geladeira.
Notas
1. Trecho da carta “A menina da geladeira”, de Rebeca Rain,
publicada no livro Criando Filhos Entre Culturas, de Alicia Macedo
(Editora Ultimato, 2011, p. 20-21).
2. HOPKINS, Rebecca. The missionary kids are not alright.
Christianity Today. Disponível em bit.ly/395-missionary-kids.
Acesso em 13 abr. 2022.
3. A pesquisa do World Christian Database leva em conta os
missionários que se consideram cristãos de todos os ramos; na
estatística de Feniman estão inclusos apenas os missionários de
denominações evangélicas.
4. Research at TCK Training. Disponível em www.tcktraining.
com/research
5. HOPKINS, Rebecca. The missionary kids are not alright.
Christianity Today. Disponível em bit.ly/395-missionary-kids.
Acesso em 13 abr. 2022.
6. JONES, Rachel. Are missionary kids missionaries?. Christianity
Today. Disponível em bit.ly/395-kids-missionaries. Acesso em 13
abr. 2022.
Maio/Junho 2022 • ULTIMATO 31
 REPORTAGEM
CUIDANDO DOS FILHOS DE
MISSIONÁRIOS BRASILEIROS EM
MEIO A UMA PANDEMIA
JAN GREENWOOD E ALICIA BAUSCH MACEDO
O ministério Philhos é um braço do Departamento de
Cuidado Integral do Missionário (CIM) da Associação de
Missões Transculturais Brasileiras (AMTB). Ele é responsável
pelo cuidado dos filhos de missionários (FMs) brasileiros em
contextos transculturais.
Philhos começou em 2009. Para alcançar seu objetivo de
promover o bem-estar dos FMs, o ministério oferece capaci-
tação e consultoria às agências, igrejas e missionários e provê
publicações e outros recursos relacionados ao cuidado com
o FM, desde o preparo pré-campo até a sua vida adulta plena.
Além disso, desde 2010, Philhos promove encontros anuais
para FMs brasileiros com 16 anos ou mais. A Rede Philhos
conta com mais de setenta voluntários atuando nas áreas
de saúde emocional, educação, proteção à criança e outras.
No início de 2020, os planos para o encontro anual dos
FMs em julho foram por água abaixo com a chegada da pan-
demia da Covid-19. Ao anunciar o cancelamento do evento,
alguns FMs ficaram inconformados e desafiaram a liderança a
promover um encontro on-line. Foi um desafio para a equipe,
mas os próprios jovens se mobilizaram e trabalharam em prol
da iniciativa. No dia 4 de abril aconteceu o primeiro Rolezão
Virtual, uma programação de seis horas com louvor, devo-
cional, oração, conversa e atividades recreativas, por meio
EDIÇÃO EXCLUSIVA
DO ASSINANTE
do aplicativo Zoom. Participaram cinquenta FMs brasileiros
que moram na América Latina, Europa, Ásia, África e América
do Norte.
Esse encontro promoveu o aumento da conectividade
entre eles. E foi possível dar continuidade ao Rolê Virtual
agora no formato de pequenos grupos (PGs) de filhos de
missionários de 14 anos ou mais, divididos por sexo e idade.
Cada pequeno grupo se reunia semanalmente, promovendo
um ambiente seguro de bate-papo no qual os FMs podiam
processar seus desafios, falar sobre a sua dor, confusão,
inseguranças, medos e lutas, e também compartilhar vitó-
rias, motivos de gratidão, alegrias e esperança para o futuro.
Estes encontros tornaram-se pontos de apoio e um lugar de
pertencimento para os FMs neste período de isolamento.
A iniciativa chegou a contar com dezesseis PGs com a
participação de 96 filhos de missionários ao todo. Temas como
“Quem são os Filhos de Terceira Cultura (FTC)”, “Resiliência”,
“AnCoragem” (“Firmando a nossa âncora em tempos incertos”)
e “PertenSER” foram explorados e, nesses espaços, os FMs
foram encorajados a desenvolver hábitos de agradecimento,
de reflexão, de autocuidado, caminhando com o Senhor Jesus
por meio da leitura bíblica, louvor e oração.
32 ULTIMATO • Maio/Junho 2022
Susan Chou | @electedalien
Foi necessário que mais pessoas se juntassem à rede de
voluntários Philhos para atuar como facilitadores dos PGs. Deus
providenciou uma nova safra de voluntários, que receberam
treinamento nos temas do cuidado com o filho de missionário.
Para atender a esta necessidade, foi criada a Capacitação Philhos
Online, um curso de dez semanas, com aulas interativas. Está
em curso a terceira capacitação, com 26 pessoas. Ao todo, já
participaram 57 pessoas, muitas delas morando no exterior.
Ao chegar no final de 2021, com a retomada gradual do ritmo
de vida, o Rolê Virtual com reuniões semanais foi substituído pelas
rodas de conversa no Philhos Ligados, com encontros a cada seis
semanas. A primeira conversa foi sobre a reentrada – o momento
em que um FM retorna ao Brasil após um tempo morando fora.
Neste ano o encontro presencial volta a acontecer. Será de 16
a 30 de julho no acampamento Jovens da Verdade, em Arujá, SP.
Para a liderança do Philhos, ficou muito clara a direção de
Deus, por meio da qual foi possível transformar um cenário ruim
em ricas oportunidades, e assim apoiar os FMs no momento em
que mais se fazia necessário. O ministério nunca esteve tão ativo.
PARA SABER MAIS
Encontro para Filhos de Missionários brasileiros transculturais,
de 16 a 30 de julho de 2022. Mais informações em: amtb.
transforme.tech/evento/encontrophilhos_2022.
Acompanhe notícias no site da AMTB (www.amtb.org.br) ou
entre em contato: eventosphilhos@amtb.org.br.
Jan Greenwood, inglesa, é casada com Philip e tem três
filhos (FMs) e quatro netos (NFs). Foi missionária da Latin Link
no Brasil. É membro da equipe coordenadora de Philhos/CIM
Brasil/AMTB e autora do livro Famílias em Direção ao Campo
e da apostila Minha Aventura pelo Mundo
Alicia Bausch Macedo é casada com Rosifran e tem três filhos
e cinco netos. É missionária da AMEM (WEC Brasil) e coor-
denadora do ministério Philhos/CIM Brasil/AMTB. É autora
de Estamos de Mudança (Editora Ultimato) e organizadora
do Manual Flechas e dos livros Criando Filhos Entre Culturas
(Editora Ultimato), A Presença do Pai e Estudante Global.
 REFLEXÃO
JACIRA MONTEIRO

A CRISE VOCACIONAL DA IGREJA

Quando a Igreja perde de vista sua vocação, a voz profética é perdida,
as boas ações são esquecidas e o testemunho é comprometido

V
ivemos uma crise vocacional,
uma crise de propósito.
Duas das principais razões
são a idolatria ao deus dinheiro –
procura-se uma profissão mais
rentável e não necessariamente a
que reflete os talentos e os propó-
sitos de vida que deveriam mover
as escolhas – e também o indivi-
dualismo. E essa crise de propó-
sito se estende também à igreja.
Igreja, do grego Ekklesia,
traduz-se como “chamados para
fora”. Uma lembrança à última
ordenança dada diretamente por
Cristo antes de sua ascensão: “Ide

Saulo Prto | @ sauloportomme

por todo mundo e pregai o evan-
gelho [...]” (Mc 16.15). É necessá-
rio que a Igreja se relacione com a
cultura pregando o evangelho do
Senhor Jesus e praticando boas

EDIÇÃO EXCLUSIVA
obras. Contudo, a dicotomia gre- 1. A Igreja nem sempre leva a questões contemporâneas, como

ga entre “o sagrado e o profano”
preencheu o coração da igreja a
ponto de criar divisão. Desta for-
ma, sua missão inicial ficou pre-
judicada.
A Igreja deixou sua preemi-
nente voz ativa na sociedade –
basta olhar as grandes contri-
buições para a vida comunitária
que a Igreja teve tanto na sua
origem quanto na pós-Reforma –
e voltou-se para si mesma. É im-
pressionante como, atualmen-
te, a maioria das programações
(eventos, palestras, livros...) são
de cristãos para cristãos e não de
cristãos tentando alcançar pesso-
as que ainda não servem a Cristo
e dialogar com elas.
Desta forma, duas coisas,
principalmente, acontecem em
nosso meio:
cabo a atividade de evangelização
e missões – o que John Stott diz
que deve estar no topo da agenda
da igreja1) – com a seriedade e a
ênfase que a Bíblia dá;
2. A Igreja se esquece da res-
ponsabilidade social cristã e tra-
ta atitudes e ações em prol dos
direitos humanos e ambientais
como se fossem atitudes “mun-
danas”.
Quando a Igreja perde de vis-
ta sua vocação, ela se torna, como
disse o pastor Martin Luther
King, “[...] um clube social irrele-
vante com nenhuma importância
[...]”2. A voz profética é perdida,
as boas ações são esquecidas e o
testemunho é comprometido.
A crise vocacional da Igreja é
uma das principais responsáveis
pela letargia do diálogo dela com
DO ASSINANTE
justiça social e justiça ambien-
tal. Enquanto não recuperarmos
a nossa vocação e missão, esta-
remos tateando no escuro, nos
importando (e brigando) por coi-
sas periféricas e deixando de nos
importar com o que verdadeira-
mente move o coração de Deus, a
saber, missões e responsabilidade
social/comunitária.
Notas
1. NODA, Jorge; CLAYTON, Joyce Every;
BEZERRA, Durvalina (Org.). Chamados
por Deus. João Pessoa: Betel Brasileiro
Publicações, 2014. p. 48.
2. KING, Martin Luther. Por que não po-
demos esperar. São Paulo: Faro Editorial,
2020. p. 102
Jacira Monteiro é autora do livro O
Estigma da Cor.
MAIS NA INTERNET
Declaração de amor à Igreja em tempos de crise
bit.ly/395-reflexao

Maio/Junho 2022 • ULTIMATO 33

 HISTÓRIA
ALDERI SOUZA DE MATOS
O PRIMEIRO PASTOR BRASILEIRO
200 anos da pregação itinerante, total desprendimento e piedade cristocêntrica
de José Manoel da Conceição. Um moderno São Francisco de Assis
E
le nasceu na capital paulista
no ano da Independência
(11.03.1822) e veio a ser um
dos personagens mais singulares da
história religiosa do Brasil. Embora
os pais se chamassem Manoel da
Costa Santos (português) e Cândi-
da Flora de Oliveira Mascarenhas
(brasileira), o menino recebeu o
nome de José Manoel da Conceição.
Quando tinha dois anos, a família
transferiu-se para Sorocaba, onde
ele foi criado e educado pelo padre
José Francisco de Mendonça, seu
tio-avô. Desejando seguir a carrei-
ra sacerdotal, seguiu para a capital
a fim de frequentar o curso anexo
da Academia de Direito e estudar
teologia (1840-1842). Após ser orde-
nado subdiácono, foi trabalhar na
localidade de Ipanema, perto de So-
rocaba, onde funcionava a primei-
EDIÇÃO EXCLUSIVA
ra “fábrica de ferro” do Brasil. Fez
DO ASSINANTE
amizade com imigrantes protestan-
tes que ali moravam, impressionan-
do-se com sua vida religiosa, a ob-
servância respeitosa do domingo e
a leitura da Bíblia e de outros livros.
Dois anos mais tarde foi orde-
nado sacerdote, indo trabalhar em
Limeira. Começaram então as sin-
gularidades de sua trajetória. Por
pregar mensagens evangélicas e
incentivar as pessoas a lerem a Bí-
blia, ficou conhecido como “padre
protestante”. Preocupado, o bispo
passou a transferi-lo com frequên-
cia: Piracicaba, Monte Mor, Limei-
ra, Taubaté, Ubatuba, Santa Bárba-
ra e por fim Brotas, aonde chegou
em 1860. No primeiro semestre
de 1863, escreveu sobre suas lutas
espirituais ao novo bispo de São
Paulo, dom Sebastião Pinto do
Rego, sendo nomeado vigário da
34 ULTIMATO • Maio/Junho 2022
vara, cargo administrativo sem
funções sacerdotais. Passou a morar
em um sítio junto ao rio Corumba-
taí, perto de Rio Claro.
No final daquele ano, recebeu
a visita do reverendo Alexander L.
Blackford, missionário america-
no recém-chegado a São Paulo que
tinha ouvido falar do padre com
ideias protestantes. Após assídua
correspondência, foi à capital em
maio de 1864 para retribuir a visi-
ta, decidindo abraçar a fé evangé-
lica. Seguiu-se nova visita em ou-
tubro, quando comunicou ao bispo
a decisão de deixar o sacerdócio e
a Igreja Romana. Poucas semanas
depois, professou as novas convic-
ções e foi recebido como membro
da Igreja Presbiteriana do Rio de
Janeiro. Tornou-se colaborador do
primeiro periódico protestante do
país, Imprensa Evangélica, lançado
na ocasião. No ano seguinte, além
de redigir sua bela “Profissão de fé
evangélica”, acompanhou os mis-
sionários em várias viagens evan-
gelísticas e participou da fundação
da igreja de Brotas, onde havia
influenciado as famílias Gouvêa e
Cerqueira Leite.
Finalmente, em 17 de dezembro
de 1865, foi solenemente ordenado
pastor pelos três únicos missioná-
rios presbiterianos que atuavam no
Brasil, Ashbel Simonton, Alexander
Blackford e Francis Schneider. Com
isso se tornou, até onde se sabe, o
primeiro brasileiro a se tornar um
ministro protestante. Poucos meses
depois, iniciou as viagens evange-
lísticas que lhe dariam grande no-
toriedade, seguindo quatro roteiros
principais que partiam da capital
bandeirante: sudoeste, até Itapeva;
Arquivo Histórico Presbiteriano, São Paulo
noroeste, até Brotas; nordeste, até
Campanha, no sul de Minas, e leste,
até Piraí do Sul, no vale do Paraí-
ba. Em algumas delas teve compa-
nheiros, em outras seguiu sozinho,
pregando nas cidades, vilas e sítios e
distribuindo Bíblias e literatura. Em
abril de 1867, os jornais publicaram
a “Sentença de Excomunhão e De-
sautoração” expedida contra ele,
respondida no mês seguinte.
Toda essa atividade foi desen-
volvida em meio a sérias dificul-
dades pessoais. Em primeiro lugar,
sua saúde inspirava cuidados e isso
levou os missionários a enviá-lo
aos Estados Unidos, onde perma-
neceu por quase um ano pregando
em igrejas portuguesas, fazendo
traduções e recuperando as ener-
gias. Além disso, lutava com difí-
ceis problemas emocionais. Tinha
sentimentos de culpa por sua vida
anterior à conversão e sofria crises
periódicas de depressão que o le-
varam várias vezes a desaparecer
sem dar notícias, o que angustiava
os colegas. Por fim, era avesso às
formalidades eclesiásticas. Assim,
a partir de 1870 não mais compa-
receu às reuniões de seu Presbitério
nem enviou relatórios. Voltou a ser
uma figura solitária e sofrida nas
estradas, pregando por toda par-
te e muitas vezes experimentando
injúrias e agressões. Em certa oca-
sião, foi apedrejado por uma turba
e dado como morto.
Sua morte foi comovente. Em
agosto de 1873, os missionários deci-
diram que ele deveria morar no Rio
de Janeiro para cuidar da saúde. Bla-
ckford alugou uma casa aprazível no
bairro de Santa Teresa para ele des-
cansar. Em dezembro seguiu a pé até
Piraí, onde pretendia tomar o trem.
Acabou preso como indigente e gas-
tou suas últimas economias, preci-
sando prosseguir a pé. Ao se apro-
ximar da capital do Império, caiu
desfalecido por causa da fraqueza e
exaustão, sendo levado à enfermaria
militar de Campinho. Foi atendido
de modo respeitoso. Mudaram suas
roupas e lhe deram um caldo; só
respondia com monossílabos e mo-
vimentos da cabeça. A certa altura,
pediu para “ficar só com Deus”.
Faleceu enquanto dormia, na ma-
drugada do Natal (25.12.1873), sendo
sepultado no cemitério da ma-
triz de Irajá. Três anos depois, seus
despojos foram transferidos para o
Cemitério dos Protestantes, em São
Paulo. Sua lápide ostenta dois versí-
culos: “Não me envergonho do evan-
gelho de Cristo” (Rm 1.16) e “Me ale-
gro nos sofrimentos por seu corpo,
que é a igreja (Cl 1.24).
Conceição tem despertado o in-
teresse dos historiadores não só pelo
seu pioneirismo, mas pelas contri-
buições que deixou. Para Paul Pier-
son, além de ser o evangelista mais
eficiente da época, ele mostrou a
possibilidade de uma síntese entre o
cristianismo evangélico e a cultura
brasileira que teria ido muito além
da proposta de seus colegas. Sua
pregação itinerante, total despren-
dimento e piedade cristocêntrica
fizeram dele um moderno São
Francisco de Assis e lembraram o que
houve de melhor entre os místicos
medievais. Sua atitude irênica diante
da religião dominante, sensibilidade
para com a fé singela do povo e pre-
ocupação com um cristianismo ético
e prático têm muito a nos ensinar
no tempo presente. Em um trecho
poético de sua lavra, citado muitas
vezes, ele declarou: “Se o Soberano
Monarca dos homens na multidão
me discerne, se me marca na palma
da sua mão, que me importa a mim,
ó mundo, se sempre me desconhe-
ces! Tu, com teu olhar profundo; tu,
Jesus, tu me conheces”.
Alderi Souza de Matos é doutor em
história da igreja pela Universidade
de Boston e professor no Centro
Presbiteriano de Pós-Graduação
Andrew Jumper. É autor de Erasmo
Braga, o Protestantismo e a Sociedade
Brasileira, A Caminhada Cristã na
História e Fundamentos da Teologia
Histórica. Artigos de sua autoria estão
disponíveis em cpaj.mackenzie.br/
historia-da-igreja.
MAIS NA INTERNET
Somente vasos de barro
bit.ly/395-historia
EDIÇÃO EXCLUSIVA
DO ASSINANTE
Maio/Junho 2022 • ULTIMATO 35
 OPINIÃO
BRÁULIA RIBEIRO
TRANSCENDÊNCIA E DIGNIDADE
Quando uma sociedade abraça a ética utilitarista, a vida se torna muito sombria, e
a comunidade, uma ameaça à sobrevivência
N
a 14ª Conferência Mundial
de Bioética em Porto, Por-
tugal, entrei em um debate
sobre a política de contenção e tra-
tamento da Covid-19 do governo
da Itália em 2020, peculiarmen-
te nefastas. Assim que a crise se
agravou, o grupo responsável
pela ética médica limitou o tra-
tamento intensivo requerido aos
pacientes graves a pessoas abaixo
de 55 anos. Não importando o ju-
ramento de Hipócrates, ou qual-
quer obrigação com o paciente, a
grande maioria dos médicos do
país, comandada pelo governo,
foi impedida de usar respiradores
para tratar as pessoas fora da ida-
de limite. A lógica era a da produ-
tividade social. Salvariam os que
tinham mais chances de produzi-
EDIÇÃO EXCLUSIVA
rem anos de serviço ao coletivo.
DO ASSINANTE
Não sei se os limites impostos pe-
los médicos incluíam deficientes,
incapazes, desempregados, mas o
fato é que segundo essa lógica to-
dos tinham a liberdade ética para
se recusar a tratar quem não fosse
considerado “digno” pelo coleti-
vo. A Itália se transformou, na-
quele ano sombrio, num país em
que a dignidade humana foi defi-
nida pela subjetividade da “pro-
dutividade coletiva”. Milhares de
pessoas morreram.
No debate, uma eticista ame-
ricana levantou o problema evi-
dente da discriminação praticada
na Itália. Eu me uni a ela, denun-
ciando a conivência da academia
com os abusos cometidos contra
a vida humana. Filósofos e teólo-
gos morais que poderiam oferecer
uma oposição racional aos abusos
36 ULTIMATO • Maio/Junho 2022
se acomodaram ao silêncio. Expus
meu argumento explicando que,
sem uma perspectiva ética que
nos remeta ao princípio do valor
intrínseco de cada indivíduo, fi-
caremos à mercê do utilitarismo
instrumentalizado pelos grupos
que estão no poder. Os médicos,
com seu mecanicismo, domina-
ram o debate na Itália e decidi-
ram condenar à morte milhares
de pessoas que não satisfaziam
seu critério de vidas que “valiam a
pena serem salvas...”. A discussão
esquentou, mas, no final, numa
sala cheia de pessoas com mais de
50 anos, a realidade pesou sobre
todos, inevitavelmente. Quan-
do uma sociedade abraça a ética
utilitarista, a vida se torna muito
sombria e a comunidade em que
vivemos, em vez de oferecer con-
forto e apoio, se torna uma amea-
ça a nossa sobrevivência.
Acostumamo-nos com a ideia
de que cada vida humana tem
valor, resumida pela frase que vi-
rou clichê: “dignidade humana”,
e nos esquecemos de onde ela se
originou. Essa ideia não é antiga,
não esteve “sempre conosco”, não
é autoevidente nem é encontrada
em todas as culturas do mundo.
Ela inspirou o discurso dos direi-
tos humanos, da liberdade civil, da
autonomia e autodeterminação do
indivíduo. Ela está na raiz da cons-
tituição americana, nas razões da
Revolução Francesa, no discurso
moderno que defende a “democra-
cia”. Governos democráticos são
preferenciais aos ditatoriais porque
eles garantem a dignidade humana
contra a ideologia de quem está no
poder, o indivíduo tem o direito de
participar da vida política do lugar
onde vive. Falamos muito de igual-
dade e equidade, esquecendo que
essa perspectiva é até contrafac-
tual. Não somos intrinsecamente
iguais, mas sim diferentes. A igual-
dade racial e de gênero só pode ser
presumida por causa da implícita
dignidade inerente a todos.
Esse “truísmo secular” não
tem nada de secular. A única ori-
gem do argumento é a religião
judaico-cristã. Porque Deus nos
criou a todos os seres humanos
únicos, cada um de nós tem valor
inerente. O Deus Criador, cujas re-
alidade e existência transcendem
tanto a nossa vida humana quanto
a nossa capacidade de entendê-la,
é que nos aponta para esse fato. Se
o Senhor do Universo me vê indi-
vidualmente e, na visão religiosa
cristã, enviou seu Filho unigênito
para morrer por mim, o valor da
minha vida não é determinado
pela comunidade onde vivo,tmas
por algo além dela, além de mim
e do que eu sou capaz de produ-
zir. Eu tenho valor transcenden-
te. E uma sociedade só pode ser
justa se reconhecer esse valor e se
comprometer a nele não tocar.
Bráulia Ribeiro trabalhou como mis-
sionária na Amazônia durante trinta
anos e no Pacífico Sul por seis anos.
É MDiv pela Universidade de Yale,
Estados Unidos, e doutoranda em his-
tória e teologia política na Universidade
de St. Andrews, Escócia. É autora dos
livros Chamado Radical e Tem Alguém
Aí Em Cima?, publicados pela Editora
Ultimato. www.braulia.com.br.
MAIS NA INTERNET
Transcendência e moral
bit.ly/395-transcendencia
 OPINIÃO
ED RENÉ KIVITZ

O JULGAMENTO DA GRANDE BABILÔNIA

Por que as outras guerras, conflitos étnicos e políticos não menos violentos e crises humanitárias
não ocupam as primeiras páginas dos jornais dedicadas à crise envolvendo Rússia e Ucrânia?

E
xatamente agora enquanto
você lê este artigo existem
pelo menos seis países en-
volvidos em conflitos sangrentos
sem a devida atenção da imprensa
internacional. Uma guerra na Eti-
ópia já dura mais de dezesseis me-
ses e deixou 900 mil pessoas em
situação de fome. O Iêmen é con-
siderado o maior desastre huma-
nitário do mundo, com 223 mil
mortos numa guerra que já dura
mais de oito anos. O assassinato
de seu presidente gerou uma espi-
ral de violência promovida pelas
gangues que disputam o poder
político e territorial no Haiti. O
Minha primeira intuição sugere
que as mortes e as desumanidades
que não viram notícias referem-se
aos nossos irmãos e irmãs pobres.
O historiador israelense Yuval
Harari recentemente denunciou
que muitos pobres do mundo dei-
xaram a categoria de explorados
e passaram a ocupar a categoria
de inexistentes. Não é que serão
usados como mão de obra barata
ou para fins de recursos militares
e paramilitares e milicianos de fá-
cil reposição, mas simplesmente
que não entrariam no cálculo das
sociedades de mercado e teriam
suas vidas, portanto, negligencia-

Marcelo Bittencourt | @homemquevoa

Afeganistão, país invadido pelos
Estados Unidos após os atentados
de 11 de setembro, sofre ainda com
sansões contra o Talibã e convive
com nova crise humanitária. Um
das ao extremo de suas mortes aos
milhares, sua escandalosa fome e
sua miséria desumana sequer al-
cançarem a mínima importância
como notícia. De invisibilizados

EDIÇÃO EXCLUSIVA
ano após golpe militar, Mianmar a inexistentes, num salto rápido,

vive em guerra civil com estimati-
va de 10 mil mortos. Tudo isso nos
informa a BBC Brasil em seu site
e perfil no Instagram. Escrevo no
19º dia da guerra na Ucrânia (não
imagino o status da guerra agora
enquanto você lê, mas, enquanto
escrevo, fala-se em Terceira Guer-
ra; que Deus tenha misericórdia).
Ao lado da categórica afirma-
ção de que considero repugnante
assistir à invasão de um país sobre
outro e do profundo lamento pelo
reiterado fracasso das mediações
democráticas e diplomáticas, a
pergunta que me faço é por que as
outras guerras, conflitos étnicos e
políticos não menos violentos e cri-
ses humanitárias não ocupam as
primeiras páginas dos jornais nem
o tempo de televisão dedicado à
crise envolvendo Rússia e Ucrânia.
cruel e inaceitável, os pobres do
mundo vão morrendo anônimos,
pranteados apenas pelos poucos
ao seu redor que partilham a mes-
ma sorte, ou azar. O mundo não
sente horror de sua sina, não lhes
devota lágrimas e não lhes tributa
um mínimo respeito, pelo simples
fato de que não os enxerga, e não
os enxerga porque aos seus olhos
não existem, e não existem porque
são pobres inúteis, sobrantes das
engrenagens do utilitarismo que
alimenta e mantém funcionando
as máquinas de compra e venda.
A segunda sugestão para ex-
plicar o fenômeno das mortes e
desumanidades que não viram
notícias aponta para o fato de que
se trata de mortes de não brancos.
As notícias que circularam na im-
prensa internacional a respeito da
DO ASSINANTE
guerra na Ucrânia revelam crimes
de segregação por parte das forças
de segurança ucranianas e fun-
cionários da fronteira. Embora
a Convenção da ONU assegure
que todos os que fogem de uma
situação de conflito têm o mesmo
direito, não importando a cor de
seu passaporte ou de sua pele, na
prática a teoria é contradita pelo
racismo seletivo no trânsito entre
fronteiras da Ucrânia com os pa-
íses limítrofes. “A União Africa-
na, organização que reúne os 55
países do continente, condenou
publicamente o tratamento que,
conforme relatos compartilhados
nos últimos dias, vem sendo dis-
pensado aos cidadãos de países
africanos que estão na Ucrânia
em guerra”, noticiou também a
BBC Brasil. O silêncio a respeito

Maio/Junho 2022 • ULTIMATO 37

 das outras guerras e conflitos
espalhados pelo globo não são
noticiados no Ocidente porque
tratam de populações que não
dizem respeito ao ideal racista
eurocêntrico do humanismo oci-
dental. A prepotência de quem se
julga no direito de decidir quem
vive e quem morre é marcada por
uma ideia de raça que condena
não apenas o continente africano,
como também as periferias brasi-
leiras e das Américas, os povos do
Mediterrâneo, e toda parte “onde
a cor da pele ainda diz o não
ser”, expressão de Peter Pál Pel-
bart, editor de Achille Mbembe
no Brasil.
Finalmente, acredito que ao
redor do globo há miríades de
mortes e desumanidades em ter-
ritórios e circunstâncias cujos
efeitos não alteram o tabuleiro
geopolítico e econômico global
e, portanto, não interessam ao
EDIÇÃO EXCLUSIVA
DO ASSINANTE
38 ULTIMATO • Maio/Junho 2022
mundo ocidental. A guerra da
Ucrânia, além de matar “pessoas
ricas e brancas” – embora não tão
ricas e não tão brancas – abala
radicalmente os acordos multila-
terais que se seguiram ao fim da
Guerra Fria e da União Soviética.
A guerra na Ucrânia não é uma
questão apenas entre russos e as
diferentes nações que moram no
seu território e o ocupam. Os ato-
res diretos e indiretos desta guer-
ra incluem também, pelo menos,
a OTAN e seus países considera-
dos por Moscou vassalos dos Es-
tados Unidos, a União Europeia
e a China. A Rússia tem a oita-
va maior reserva de petróleo do
mundo (4,8%) e fornece cerca de
40% do gás natural da Europa, a
segunda matriz energética mais
usada no continente. O que acon-
tece no Haiti ou em Mianmar não
repercute na prateleira do super-
mercado em Londres, na conta
do gás em Berlim ou no preço do
barril do petróleo. Que se matem
e sejam mortos, então, os pobres,
os periféricos, e vocês todos que
na caderneta de contabilidade do
mundo estão na rubrica despesa.
Temo o dia quando dos céus
será pronunciado o julgamento:
“Caiu! Caiu a grande Babilônia
[que vendia corpos e almas de
seres humanos]! Pois todas as na-
ções beberam do vinho da fúria
da sua prostituição. Os reis da
terra se prostituíram com ela;
à custa do seu luxo excessivo os
negociantes da terra se enrique-
ceram”.
Ed René Kivitz é pastor da Igreja
Batista de Água Branca, em São
Paulo, SP. É mestre em ciências da
religião e autor de, entre outros, O
Livro Mais Mal-Humorado da Bíblia.
facebook.com/edrenekivitz.
MAIS NA INTERNET
Contra a (des)humanidade
bit.ly/395-opiniao

LITERATURA E CULTURA
GLADIR CABRAL
A POESIA COMO ANDANÇA: DEBORAH
VIEIRA E “RODOVIA”
A poesia é palavra que apela aos sentidos, repensa o
cotidiano, ensina os olhos a ver a realidade. Pode ser
também caminho, estrada ou, como propõe Debo-
rah Vieira, “rodovia”, quem sabe um roteiro de via-
gem ou quem sabe um diário de viagem, onde são
guardados os marcos do trajeto, os encontros com
pessoas, as paisagens mais marcantes e os tickets de
trem, navio, avião.
A primeira coisa que chama a atenção quando se
lê a poesia de Deborah é sua percepção peculiar da
realidade. Há um tempero que por vezes faz lembrar
o tratamento surrealista da linguagem e do mundo.
A ela importa não apenas o que a realidade é na ob-
viedade da compreensão do cotidiano, mas também
o que ela poderia ser, com um pouquinho de imagi-
nação. Tal atitude permite a compreensão mais pro-
funda do real, o alargamento das suas fronteiras ou
a consciência de seus limites. A negação das coisas
como estão e a proposição de uma perspectiva que
por vezes pode parecer perturbadora é um ato polí-
tico. Nesse particular, sua poesia se aproxima da de
outra jovem escritora da literatura brasileira: Ana
Cristina Cesar.
Outro aspecto curioso da poesia de Deborah é
seu caráter enigmático. Não há uma interpretação
fácil que a decodifique. É como se o sentido total do
poema nos escapasse, como se ficasse sempre algo
a ser esclarecido na próxima leitura ou releitura. O
poema é enigma porque a própria vida é um enig-
ma. São trocadilhos, palavras de sentido duplo ou
contrário, como o palíndromo “Satolep”, lugar mis-
terioso que Deborah conhece tão bem. Ao mesmo
tempo, a ela agrada o uso de palavras em minús-
culas, humildes, vindas do cotidiano, despretensio-
sas, simples senão banais, produzindo um grande
contraste.
Um terceiro aspecto que me chama a atenção
nos poemas de Deborah é a intensidade dramática
de quase todos eles. Em geral, algo incomum acon-
tece, cria-se uma situação incômoda ou perturbado-
ra, algo que pode ser inclusive constrangedor, como
os olhos vigilantes dos vizinhos no prédio onde se
mora ou o comentário maldoso à vida alheia. As
ARTE E CULTURA
Luisa Soberano
Deborah Vieira
portas do apartamento que de repente são seladas,
ou aquele poema que começa bem-humoradamen-
te: “Falaram de mim na terapia”. Em cada poema há
um conflito central que carrega seus versos de ten-
EDIÇÃO EXCLUSIVA
são e emoção, sempre desarmada pela ironia: “Fa-
DO ASSINANTE
laram de mim no balcão do bar pro seu Delamar”.
Finalmente, os poemas de Deborah trazem sem-
pre o encontro, o diálogo, a falta de outro. São, por-
tanto, poemas marcados pela alteridade. É o caso de
“O barulho dos sete mil animais” e a preocupação
com alguém que aparentemente desapareceu sem
dar notícias, sem deixar rastros: “Faz quatro dias
que nasceu um nó na minha garganta / e a cada dia
ele amanhece de um lado. / começou no dia em que
achei que você havia morrido”. Esse outro é alguém
a quem a voz se dirige, ou alguém de quem sente fal-
ta, alguém que interpela na distância ou no silêncio.
O poema “Qual o nome?” traz tanto enigma quan-
to alteridade. Não há como saber de quem se trata.
Convive-se com a “certeza” de que há alguém e não
se poderá saber seu nome, sua identidade.
Gladir Cabral é pastor, músico e professor de letras na
Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc). Acompanhe o
seu blog pessoal: ultimato.com.br/sites/gladircabral.
MAIS NA INTERNET
Poema dos poemas, de Cecília Meireles
bit.ly/395-literatura
Maio/Junho 2022 • ULTIMATO 39
 NOVOS ACORDES
CARLINHOS VEIGA

OS NOVOS SINGLES de vida. Aos poucos reuniu um repertório rico,

DE ILMA BRESCIA autoral, que afirmava seu estilo, com influências de
Ilma Brescia canta des- bossa nova, samba canção e bolero. Pérola, seu pri-
de a adolescência. A meiro álbum, foi gravado em 2014 e reúne onze dessas
influência veio de casa canções, produzidas e arranjadas por Davi Werner.
mesmo. O avô era can- Depois de sete anos sem gravar, Ilma lançou recen-
tor erudito e a avó can- temente três singles, disponíveis nas plataformas de
tava em corais. Iniciou streaming. São canções inéditas: “Recâmaras”, “Desi-
sua jornada apresen- lusão” e “Alma leviana”. “Minhas composições são a
Hender Medina

tando-se nos bares de exposição da minha alma, um espelho no qual o pú-

Belo Horizonte, acom-
panhada por músicos
de renome como Juarez Moreira, Esdra “Neném” e
Chico Amaral. Os primeiros passos como composi-
tora vieram logo após sua conversão à fé cristã. De-
sejava compartilhar com todos essa nova experiência
blico possa se identificar”, afirma. Os singles foram
produzidos por Amauri Muniz e gravados no estúdio
Mister Rec, em Bauru, São Paulo. O ano de 2022 tem
sido especial para Ilma: sua participação destacada
no reality musical The Voice + tem rendido o reco-
nhecimento de sua arte por todo o país e exterior.

Acampamento da MPC, arredores de Belo Horizonte.

Homenageou os quarenta anos do Quarteto Vida,
reunindo um grande número de artistas de diferen-
tes gerações: Verbo em Carne, Bruno Santana, Carol
Gualberto, Norton Pinheiro, Gerson Borges, Cole-
tivo Candiero, Erlon Lemos, Rubão Lima, Nelson
EDIÇÃO EXCLUSIVA

Bomilcar, Telo Borges, Silvestre Kuhlmann, Banda

DO ASSINANTE

MPC, entre outros, além, é claro, da participação

muito especial do Quarteto Vida. O Som do Céu é
produzido pela missão MPC Brasil, sob a batuta do
Jordana Barale

incansável Marcelo Gualberto.

O RETORNO DOS EVENTOS MUSICAIS
O público estava com saudades dos encontros de
música cristã. Desde o início de 2020, os shows pre-
senciais estavam suspensos por conta da pandemia
da Covid-19. Mas tudo indica que estamos entran-
do numa nova fase, após a vacinação de grande par-
te da população, e isso tem incentivado a realização
de encontros presenciais com boa margem de se-
gurança.
O Som do Céu foi o primeiro a retornar. Ele é
o mais longevo entre os eventos de artes cristãs do
país, sendo realizado desde 1985. Esta edição acon-
teceu no feriado da Semana Santa, em abril, no
O Festival Prosa e Canto é outro evento de des-
taque. Ele acontecerá de 30 de junho a 2 de julho
deste ano, no acampamento El Rancho, em Anápo-
lis, Goiás. Com o tema “Arte, Fé e Cultura: divina
mistura”, traz inovações nesta edição. Pela primeira
vez oferece acomodações para acampantes, pro-
porcionando convivência e compartilhamento de
experiências num ambiente natural lindíssimo. Foi
confirmada a presença dos grupos Carta Sonora,
Matizes, Resgate, Tris e dos músicos Fábio Sampaio
e Vitor Quevedo. A produção é de Beto Ribeiro.
A equipe do Jovens da Verdade, responsável pelo
Nossa Música Brasileira, também planeja a volta do
evento presencial. No entanto, por questões de logís-
tica, seu retorno será somente em 2023.

Carlinhos Veiga é pastor, músico e jornalista.

40 ULTIMATO • Maio/Junho 2022


MINHA VIDA NÃO É
MINHA – ENTRANDO
NA DANÇA DO REI
DO UNIVERSO
V
enho do interior de São
Paulo, de uma família com-
plicada e com vínculos bem
frágeis.
Quando criança, ia à missa
com minhas tias. Participei da
primeira comunhão, mas parei na
“perseverança”. Na sétima série,
após uma aula de história sobre
a Reforma Protestante, chorei de
raiva e de desapontamento com o
cristianismo, mas continuei com
fome de transcendência e busquei
outras fontes em qualquer coisa
que aquietasse a minha alma.
Bem nova, li Osho1, conversei
muito sobre espiritismo, pesquisei
sobre candomblé, fui a um encon-
tro budista. Só o evangelicalismo
me causava asco.
Na adolescência, meus colegas
me chamavam de Dan-Super-
-Dan. Desde sempre levantei ban-
deiras. Brigava com professores
sobre imperialismo linguístico,
feminismo, era vegetariana har-
dcore, fazia campanhas contra a
fome e denunciava bizarrices da
Câmara Municipal. O senso de
ética elevado me fazia muito or-
gulhosa e era uma compensação
do vazio gigantesco que me as-
sombrava toda vez que eu deitava
a cabeça no travesseiro.
Eu estava no segundo ano do
Ensino Médio, com a identidade
em frangalhos, quando, depois de
implorar a uma amiga que havia se
convertido que me apresentasse a
sua comunidade e me explicasse a
DANIELA BIANCHIN
sua fé – e ela sempre se esquivava –,
fui convidada para um acampa-
mento do grupo paraeclesiástico
de jovens do qual ela participava
e preparei um caderno com su-
postas contradições bíblicas para
desbancar os crentes. As anotações
não serviram de nada: as pessoas
me tratavam bem sem razão al-
guma, a natureza me constrangia,
eu estava grata e não tinha a quem
agradecer. Na programação do
acampamento, a música “Olhos no
espelho”, de João Alexandre, esti-
lhaçou meu coração: “Por fora um
herói, por dentro um ladrão [...]”,
era exatamente como eu me sentia.
Ao ouvir a mensagem da cruz eu
chorava copiosamente porque era
irresistível, mas meu orgulho não
me permitia confessar. Lutei por
dois meses até conseguir declarar
que Jesus era o Senhor da minha
vida, mas o abalo daquela semente
modificou tudo.
Ao chegar em casa, escrevi car-
tas a todos que eu tinha ferido e
provei a liberdade de poder pedir
perdão e perdoar. Fui encontrada e
também acolhida.
Continuo “difícil”, mas menos
do que já fui. Meus problemas não
acabaram nem foram resolvidos,
as dores do mundo ainda me inco-
modam, os problemas familiares
também, mas poder viver cons-
ciente da própria miséria e da graça
abundante e suficiente de um Deus
que encarnou e venceu a morte me
permite ver sentido na jornada.
ACONTECEU COMIGO
MEU ENCONTRO COM JESUS
Arquivo pessoal
Nesses quinze anos em que tive
o privilégio e a alegria de me re-
conhecer filha adotada por Deus,
tive altos e baixos, conheci irmãos
preciosos na caminhada, mudei de
opinião algumas vezes, mudei de
igreja mais vezes do que gostaria,
servi como missionária, casei, me
frustrei com o evangelicalismo,
servi na defesa de direitos de crian-
ças e adolescentes, tive um filho,
sofri, desenhei, construí.
Já busquei grandes eventos,
moveres, milagres, mas nada disso
me atrai mais. Tenho me conten-
tado com uma teimosa e “perse-
verante” esperança, já que minha
vida não é minha.
EDIÇÃO EXCLUSIVA
Ser discípulo é deixar de seguir
DO ASSINANTE
o ritmo do príncipe deste mundo
para entrar na dança do Rei do
Universo. A gente vai aprendendo,
dia após dia, no chão da vida que
toda a realidade será redimida e
que aquele que em nós começou a
boa obra a aperfeiçoará até o dia de
Jesus Cristo (Fp 1.6) e é nessa pro-
messa que podemos e precisamos
descansar.
Nota
1. Rajneesh Chandra Mohan Jain (1931-
1990), também conhecido como Osho, foi
um líder espiritual indiano, professor de fi-
losofia e mestre de meditação.
Daniela Bianchin, 30 anos, esposa
de Thiago e mãe de Tito, maltrapilha
e peregrina, com saudades de casa.
@dan_bianchin
MAIS NA INTERNET
Corrigindo as lentes
bit.ly/395-testemunho
Maio/Junho 2022 • ULTIMATO 41
 PONTO FINAL
RUBEM AMORESE

Os aplicativos do Criador

E
m que sentido Deus nos criou à sua imagem
e semelhança? Ouço essa pergunta desde pe-
queno. Cedo aprendi que, como Adão, fomos
feitos capazes de escolher entre o bem e o mal.
Em seguida, que o amor, a indiferença ou o ódio
estavam ao nosso alcance (Gn 4.7). Ao ver Adão
dar nome aos animais e cultivar o jardim, aprendi
sobre o mandato cultural. Era a criatura “partici-
pando” da criação. Com mais idade, pude com-
preender o chamado para participar novamente;
agora como colaboradores de Deus no ministério

Rawpixel
da reconciliação. Convidados a cultivar um novo
(e definitivo) jardim.
Hoje, me pergunto se já tenho uma resposta sa- parecida com a dele. Quando nos diz: “Dá-me o teu
tisfatória. E constato que não. Talvez porque sem- coração” (Pv 23.26), sabe que podemos “rodar” o
pre tenha buscado respostas de natureza legal ou aplicativo, a rotina da entrega, da devoção.
ética, do tipo: Adão e Eva podiam ter Descobrimos, assim, pistas sobre muitas roti-
QUANDO DEUS escolhido obedecer? Sim; e escolheram nas implantadas em nossa “memória permanente”,
REQUER QUE O o mal. em nossa humanidade; sejam elas morais, estéticas,
AMEMOS COM imitativas, imaginativas, criativas etc. E isto faz de
INTEGRALIDADE,
Entretanto, podemos pensar que
eles poderiam ter amado o Criador a nós muito mais do que seres moralmente responsá-
NÃO ESTÁ
PEDINDO UM ponto de confiar em suas razões para
veis, imputáveis. Nossa semelhança com o Criador
ABSURDO. ELE proibir aquele fruto. Escolheram des- nos faz, por exemplo, capazes de acionar ou não o
EDIÇÃO EXCLUSIVA
DO ASSINANTE

SABE QUE FEZ confiar, sob a influência da serpente.
O DOWNLOAD
DESSE
Mas esse amor que confia estaria ao seu
APLICATIVO alcance? Dentro deles? Se a resposta for
EM NÓS afirmativa, teremos, em sua “imagem e
semelhança”, a capacidade de escolha e,
dentro dessa, o poder dos afetos. Já se a resposta
for negativa, eles terão sido punidos por não corres-
ponderem a uma expectativa “absurda” do Criador.
Esses pensamentos nos levam a crer que nossas
semelhanças com Deus incluem outras capacidades
inatas; capacidades instrumentais, ferramentais.
Explico: você deve esperar de uma faca que corte;
de um martelo que martele, de um lápis que escre-
va. Porque foram criados com essa capacidade. Não
estão em atividade o tempo todo; mas, quando re-
queridos, responderão adequadamente. Penso em
“aplicativos baixados de Deus”, para que funcio-
nássemos bem.
Assim, quando, em Deuteronômio 6, Deus re-
quer que o amemos com integralidade, certamente
não está pedindo um absurdo. Ele sabe que fez o
download desse aplicativo em nós; uma capacidade
aplicativo da gratidão (Rm 1.21-22). A rotina con-
trição/arrependimento (Sl 51) já está lá dentro. A
adoração é uma rotina-flor que podemos fazer de-
sabrochar. Esta, vinculada a rotinas estéticas, asso-
cia o bem ao belo; e o bem supremo, o sublime, se
torna lindo. E assim, ao tentar reproduzir o belo,
ou recriar o sublime, tornamo-nos músicos, poetas,
arquitetos, escultores, pintores etc.
Que outros aplicativos terão sido gravados em
nossas almas pelo sopro de Deus? Justiça? Esperan-
ça? Verdade? Liberdade? Eternidade? Talvez uma
linha de investigação possa ser aquelas respostas e
qualidades que Deus busca em nós.
Rubem Amorese é presbítero na Igreja Presbiteriana
do Planalto, em Brasília. Foi professor na Faculdade
Teológica Batista por vinte anos e consultor legislativo
no Senado Federal. É autor de, entre outros, Fábrica de
Missionários e Ponto Final. Acompanhe seu blog pessoal:
ultimato.com.br/sites/amorese.
MAIS NA INTERNET
A beleza de Deus
bit.ly/395-ponto-final

42 ULTIMATO • Maio/Junho 2022

 EDIÇÃO EXCLUSIVA
DO ASSINANTE

Maio/Junho 2022 • ULTIMATO 43

EDIÇÃO EXCLUSIVA
DO ASSINANTE